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DO ESTRANGEIRO DE ELÉIA
*
Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
referente o ser uno e mesmo que si mesmo, o único discurso possível sobre
o ser é um é sem referente fora do discurso. E a razão deste paradoxo é
que os pressupostos que sustentam os argumentos sofísticos contra o
discurso informativo sobre o ser provêm da lógica de Parmênides.
Para Parmênides, qualquer possibilidade de expressão do não é é
negada. Temos, como conseqüência desta exclusão do não-ser, que: a
contradição não pode ser aceita em nenhuma hipótese; o ser é o único
tema genuíno de um enunciado; em nenhum caso o não pode incidir sobre
o é. Estas regras de construção do discurso legítimo exigem que o ser
esteja em relação apenas consigo mesmo, pois esta é a única maneira de
evitar a contradição. E o ser em relação apenas consigo mesmo é
necessariamente uno. No entanto, mostra o Estrangeiro através de
paradoxos, aceitar a lógica de Parmênides é fornecer a Górgias os
pressupostos para a tese da incomunicabilidade do ser.
Mas Parmênides e Górgias não são os únicos interlocutores do
Estrangeiro de Eléia na questão do discurso. A trajetória do Estrangeiro
passa por um estágio intermediário, resultante da aplicação da lógica eleata
a uma ontologia pluralista, o que me leva a acreditar que não é apenas o
monismo numérico que está em questão no Sofista, mas um monismo que
podemos chamar de predicativo, segundo o qual a cada ser corresponde
apenas um predicado, que, no limite, se resume ao seu nome.1
O novo interlocutor do Estrangeiro, uma espécie de Parmênides
pluralista, é apontado em 251a-c, em um argumento geralmente atribuído a
Antístenes, segundo o qual alguns "se alegram em não permitir dizer bom
1
A expressão "monismo predicativo" é sugerida por Curd (1998).
coisa e você não fala absolutamente nada, e aquele que não fala não
contradiz aquele que fala.
2
Este dito de Protágoras tem sido alvo de muitas controvérsias de interpretação, como nota
Untersteiner (1996: 115-128). Tenho optado pela interpretação que me parece menos
problemática e mais adequada para compreender a discussão entre Platão e Protágoras, e que
é seguida por Untersteiner e Kerferd (1981): o homem que é a medida de todas as coisas é o
homem individual, e não a raça humana; o que é medido sobre as coisas não é sua existência,
mas o modo como elas são ou não são, ou seja, que predicados possuem e que predicados
não possuem. A vantagem desta interpretação é que ela não exclui o sentido existencial de
ser. Ao contrário, podemos dizer que as duas interpretações são complementares, pois existir
implica manifestar-se de algum modo.
"...cada um de nós é a medida das coisas que são e das que não são;
mas cada pessoa difere incomensuravelmente de todas as outras
exatamente nisto: que, para uma pessoa, algumas coisas parecem e
são, e, para outra pessoa, coisas diferentes [parecem e são]. /.../ Para
o homem enfermo, a comida parece e é amarga, mas parece e é o
contrário para o homem são. Mas não há motivo para dizer que um
dos dois é mais sábio que o outro — isto não é possível —, nem
tampouco para dizer que o homem doente é ignorante porque suas
opiniões são diferentes. Mas deve ser feita uma mudança de uma
condição para outra, pois a outra é melhor./.../ O médico produz a
mudança por meio de drogas e o sofista, por meio de discursos. E
ainda, ninguém faz pensar verdadeiramente quem antes pensava
falsamente, uma vez que é impossível pensar o que não é ou pensar
algo além do que se experimenta, e o que se experimenta sempre é
verdadeiro. Mas eu acredito que um homem que, estando em uma má
condição de alma, tem pensamentos semelhantes a esta condição, é
levado, por uma boa condição de alma, a ter bons pensamentos. E
alguns homens, por inexperiência, chamam estas aparências
verdadeiras, enquanto eu as chamo melhores que outras, mas não
mais verdadeiras... ".
diferentes. E sequer existe "a mesma coisa", pois em cada circunstância ela
aparece de modo diferente.
O princípio de não-contradição forte de Parmênides exige a anulação
dos qualificadores dos predicados, talvez em uma tentativa de evitar toda
relatividade contextual que possa impedi-los de ser verdadeiros. Qualquer
predicado que admita a contradição, ou seja, que permita dizer é e não é
daquilo que é, embora em contextos distintos, é então recusado. Mas se
Parmênides recusa a contradição por não poder aceitar a relatividade
contextual, é a partir do estabelecimento da relatividade contextual que
Protágoras também recusa a contradição. No entanto, diferentemente de
Parmênides, Protágoras evita a contradição sem recusar a negação. Não há
contradição entre os enunciados A é B e A não é B porque eles recebem
qualificadores do tipo para a e para b, ou no momento t1 e no momento t2.
Antístenes, por sua vez, aplicando a lógica de Parmênides a uma
ontologia pluralista, remete o a um ser internamente uno e
separado dos outros. Protágoras, embora negue a relação homogênea entre
discurso e ser, considera também que há algo de único e separado no
referente do discurso, já que a percepção se dá em cada circunstância,
embora esta unidade não resulte em identidade. Nos dois casos, para
Antístenes e para Protágoras, não se pode dizer o que é de um certo modo,
afirmando ou negando o mesmo referente à mesma coisa em
circunstâncias diferentes, condição do discurso informativo. Para o Antístenes
platônico, afirmação e negação se resumem a afirmação e negação de
identidade. Para Protágoras, afirmação e negação remetem a coisas
diferentes. O , então, está em correspondência transitiva com a
coisa: para Antístenes, com a coisa una e sempre idêntica a si mesma; para
Protágoras, com um parecer instantâneo.
do discurso que diz o ser, senão para garantir esta possibilidade, e o faz
conciliando a vinculação entre discurso e ser sustentada por Parmênides e
Antístenes e possibilidade de predicação e negação presente em
Protágoras. Para isto, o Estrangeiro compôs, no plano ontológico, a
complexidade que os sofistas acreditavam presente apenas no plano do
discurso, permitindo a vinculação entre estes dois planos sem o peso
limitante do isolamento ontológico.
Bibliografia
DIOGENES LAERCIO. Vie, Doctrines et Sentences des Philosophes
Illustres. Tradução de Robert Genaille. Paris: Garnier, 19-?.
PARMÊNIDES. Da natureza. Tradução e comentários de José Gabriel
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PLATÃO. Eutidemo. Teeteto. Crátilo. Sofista. Parmênides. Edição bilíngüe,
vários tradutores. Cambridge-London: Loeb Classical Library, 1996.
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Cambridge: Loeb Classical Library, 1983.
AUSTIN, Scott. Parmenides: being, bounds and logic. New Haven: Yale
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BRANCACCI, Aldo. Oikeios Lógos: la filosofia del linguaggio di Antistene.
Napoli: Bibliopolis, 1990.
CURD, Patricia. Eleatic Monism and Later Presocratic Thought. Princeton:
Princeton University Press, 1998.
DUPRÉEL, Eugène. Les Sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias.
Neuchatel: Éditions du Griffon, 1948.