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PROTÁGORAS, INTERLOCUTOR

DO ESTRANGEIRO DE ELÉIA

Eliane Christina de Souza*

Pretendo sustentar que, no Sofista, Protágoras tem um papel


fundamental entre os interlocutores do Estrangeiro de Eléia na questão do
discurso, ao lado de Parmênides, Antístenes e Górgias. E, mais do que isto,
Protágoras seria, paradoxalmente, um aliado de Antístenes contra a
possibilidade do discurso informativo, assim como Górgias é aliado de
Parmênides.
O desafio de garantir as condições de possibilidade do discurso
informativo sobre o ser, que o Estrangeiro de Eléia enfrenta no Sofista, pode
ser esquematizado a partir da aliança paradoxal entre dois pensamentos
antagônicos – de um lado, Parmênides; do outro, Górgias. O paradoxo que
se traça a partir desta aliança é: se aceitarmos Parmênides, chegamos à
incomunicabilidade de Górgias. Ou: se aceitarmos que o discurso tem como

*
Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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Eliane Christina de Souza

referente o ser uno e mesmo que si mesmo, o único discurso possível sobre
o ser é um é sem referente fora do discurso. E a razão deste paradoxo é
que os pressupostos que sustentam os argumentos sofísticos contra o
discurso informativo sobre o ser provêm da lógica de Parmênides.
Para Parmênides, qualquer possibilidade de expressão do não é é
negada. Temos, como conseqüência desta exclusão do não-ser, que: a
contradição não pode ser aceita em nenhuma hipótese; o ser é o único
tema genuíno de um enunciado; em nenhum caso o não pode incidir sobre
o é. Estas regras de construção do discurso legítimo exigem que o ser
esteja em relação apenas consigo mesmo, pois esta é a única maneira de
evitar a contradição. E o ser em relação apenas consigo mesmo é
necessariamente uno. No entanto, mostra o Estrangeiro através de
paradoxos, aceitar a lógica de Parmênides é fornecer a Górgias os
pressupostos para a tese da incomunicabilidade do ser.
Mas Parmênides e Górgias não são os únicos interlocutores do
Estrangeiro de Eléia na questão do discurso. A trajetória do Estrangeiro
passa por um estágio intermediário, resultante da aplicação da lógica eleata
a uma ontologia pluralista, o que me leva a acreditar que não é apenas o
monismo numérico que está em questão no Sofista, mas um monismo que
podemos chamar de predicativo, segundo o qual a cada ser corresponde
apenas um predicado, que, no limite, se resume ao seu nome.1
O novo interlocutor do Estrangeiro, uma espécie de Parmênides
pluralista, é apontado em 251a-c, em um argumento geralmente atribuído a
Antístenes, segundo o qual alguns "se alegram em não permitir dizer bom

1
A expressão "monismo predicativo" é sugerida por Curd (1998).

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um homem, mas bom o bom e homem o homem", por considerarem


impossível "muitas coisas serem uma e uma ser muitas".
O Antístenes apresentado pelo Estrangeiro de Eléia parece uma
maneira de salvar a vinculação entre discurso e ser, ameaçada pela
unidade absoluta do ser eleata. Os seres da ontologia do Antístenes
platônico são múltiplos. Porém, seguindo a lógica da identidade absoluta de
Parmênides, que garante a identidade objetiva daquilo que é dito,
Antístenes os condena ao total isolamento. Algo pode ser dito dos seres,
mas tudo o que é dito funciona como nome do fato. E, indo além disso,
como é impossível muitas coisas serem uma e uma ser muitas, o único
discurso consistente é aquele que diz um único predicado de uma coisa, e
que não seja predicado de nenhuma outra coisa. Teríamos que pensar,
então, em um predicado que dissesse o que uma coisa é no sentido
absoluto: o semelhante é semelhante, o dedo é dedo, o homem é homem, A
é A.
Se na lógica de Antístenes temos recuperado o vínculo entre discurso
e ser, aniquilado na aliança entre Parmênides e Górgias, este vínculo não é
suficiente para fundamentar o discurso informativo, já que esta lógica,
mesmo aplicada a uma ontologia pluralista, leva à transformação da
linguagem em enunciados de identidade. Nesta perspectiva, o único sentido
de é é é idêntico a. E como isto não permite nenhuma relação entre as
coisas que são, a única afirmação possível é A é (idêntico a) A e a única
negação possível é A não é (idêntico a) B, ambas tautológicas.
Pode-se dizer que, do mesmo modo como o Estrangeiro denuncia a
aliança entre Parmênides e Górgias contra a possibilidade do discurso
informativo sobre o ser, Antístenes aparece, no Sofista, aliado a um outro
pensamento sofístico, o pensamento de Protágoras.

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Este novo provável interlocutor do Estrangeiro de Eléia já havia sido


citado em outros diálogos por sua posição na questão do discurso, como é
o caso do Teeteto e do Crátilo. Mas é no Eutidemo que seu nome aparece
em uma situação intrigante, pois, em 283e-287a, são atribuídos a ele dois
argumentos que são historicamente reconhecidos como sendo de
Antístenes, os argumentos contra a possibilidade da falsidade e da
contradição. Penso que delegar a Protágoras argumentos que pertenceriam
a Antístenes é uma forma de denunciar a equivalência entre estes dois
pensamentos, já que, em ambos, as conseqüências sobre o discurso seriam
as mesmas.
Vejamos um esboço dos argumentos:

(1) É impossível dizer falsidade.


(a) Não se diz o falso dizendo a coisa ( ) acerca da qual
seria o , pois, ao falarmos, falamos de uma coisa única
dentre as coisas que são, separada das outras. E, quando alguém
diz esta coisa, diz o que é, e se diz o que é, diz a verdade.
(b) Não se diz o falso dizendo o que não é, pois o que não é está fora do
âmbito da ação. Mas, quando os oradores falam, eles fazem algo.
Portanto, ninguém fala o que não é e ninguém fala o que é falso.
(c) Não se diz o falso dizendo o que é de um certo modo, pois todo
diz o que é como é.

(2) É impossível contradizer, pois há para cada uma das coisas


que são como são, já que ninguém fala de uma coisa ( )
como ela não é. Sendo assim, se duas pessoas falam da mesma coisa,
não podem se contradizer, e se se contradizem, não falam da mesma
coisa; se nenhuma delas diz o da coisa, tampouco há
contradição; e se eu digo o da coisa e você diz outro
de outra coisa, também não há contradição, porque eu falo a

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coisa e você não fala absolutamente nada, e aquele que não fala não
contradiz aquele que fala.

Identificamos, nestes argumentos, os seguintes fundamentos:

(i) para cada coisa, há um preciso, correspondente a esta


coisa;
(ii) o ser dito pelo discurso é um ser determinado;
(iii) dizer a verdade equivale a falar de uma coisa como ela é.

Os argumentos podem facilmente ser atribuídos a Antístenes, mas


podem, também, ser delegados a Protágoras, como veremos.
O ponto central do pensamento de Protágoras é a tese do homem-
medida, exposta por Platão em Teeteto 152a e confirmada por Sexto
Empírico em Contra os Matemáticos VII 60: o homem é a medida de todas
2
as coisas, das que são como são e das que não são como não são. Mais
adiante, em Teeteto 152b-c, a tese do homem-medida é explicitada: às
vezes acontece que, o mesmo vento soprando, uma pessoa o sente frio e
outra não; uma o sente moderadamente frio, outra fortemente. Segundo a
interpretação de Platão, isto significa que o vento é frio para quem o sente
frio e não é frio para quem não o sente frio, e esta afirmação é apresentada
como oposta a dizer que o vento em si é frio ou não frio. Se fosse este o
caso, um dos percipientes estaria certo e outro estaria errado, pois a

2
Este dito de Protágoras tem sido alvo de muitas controvérsias de interpretação, como nota
Untersteiner (1996: 115-128). Tenho optado pela interpretação que me parece menos
problemática e mais adequada para compreender a discussão entre Platão e Protágoras, e que
é seguida por Untersteiner e Kerferd (1981): o homem que é a medida de todas as coisas é o
homem individual, e não a raça humana; o que é medido sobre as coisas não é sua existência,
mas o modo como elas são ou não são, ou seja, que predicados possuem e que predicados
não possuem. A vantagem desta interpretação é que ela não exclui o sentido existencial de
ser. Ao contrário, podemos dizer que as duas interpretações são complementares, pois existir
implica manifestar-se de algum modo.

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medida da afirmação o vento é frio e da negação o vento não é frio seria o


próprio vento. Mas, segundo a doutrina de Protágoras, o vento é o que
parece ( ) para cada um. A seguir, é estabelecida uma
equivalência entre perceber, parecer e ser, a partir da qual se conclui que a
percepção, sendo sempre do que é, é infalível. Assim, a percepção não
pode ser refutada. Como o conhecimento havia sido definido por Teeteto,
em um momento anterior do diálogo, como nada mais do que percepção, a
conclusão é que não há conhecimento falso, já que não há percepção falsa.
Isto fica mais claro em Crátilo 385e-386a, onde a doutrina do homem-
medida é associada à tese de que a das coisas é própria
( ) a cada um, o que é explicado da seguinte forma:
são para mim como parecem a mim e para
você como parecem a você. Esta tese é apresentada como oposta à tese
de que as coisas possuem uma constante, condição
necessária para a caracterização dos enunciados como verdadeiros ou
falsos.
Estando o conhecimento reduzido à percepção, e sendo esta
desprovida de valor de verdade, não há relação entre discurso e
conhecimento, e o discurso é compreendido como pertencendo ao âmbito
da ação. Isto é evidenciado em Teeteto 166d-167b, quando Sócrates
apresenta a defesa que Protágoras faria de sua teoria:

"...cada um de nós é a medida das coisas que são e das que não são;
mas cada pessoa difere incomensuravelmente de todas as outras
exatamente nisto: que, para uma pessoa, algumas coisas parecem e
são, e, para outra pessoa, coisas diferentes [parecem e são]. /.../ Para
o homem enfermo, a comida parece e é amarga, mas parece e é o
contrário para o homem são. Mas não há motivo para dizer que um

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dos dois é mais sábio que o outro — isto não é possível —, nem
tampouco para dizer que o homem doente é ignorante porque suas
opiniões são diferentes. Mas deve ser feita uma mudança de uma
condição para outra, pois a outra é melhor./.../ O médico produz a
mudança por meio de drogas e o sofista, por meio de discursos. E
ainda, ninguém faz pensar verdadeiramente quem antes pensava
falsamente, uma vez que é impossível pensar o que não é ou pensar
algo além do que se experimenta, e o que se experimenta sempre é
verdadeiro. Mas eu acredito que um homem que, estando em uma má
condição de alma, tem pensamentos semelhantes a esta condição, é
levado, por uma boa condição de alma, a ter bons pensamentos. E
alguns homens, por inexperiência, chamam estas aparências
verdadeiras, enquanto eu as chamo melhores que outras, mas não
mais verdadeiras... ".

Podemos entender que, para Protágoras, a escolha do enunciado A é


B em detrimento do enunciado A não é B não é a opção por um enunciado
verdadeiro, mas a opção por um enunciado mais útil do ponto de vista da
ação. Para Protágoras, todas os enunciados são igualmente verdadeiros e o
sábio não é aquele que diz o que as coisas são, mas aquele que sabe fazer
triunfar uma opinião que tem mais valor, sendo que os juízos de valor estão
submetidos aos critérios de coerência e eficácia. Neste sentido, a "verdade"
pode ser entendida não como um dado inicial que remete ao ser em si, mas
como valor constituído através da adesão da maioria dos ouvintes a certos
padrões de juízo que são instituídos como norma: cada sujeito escolhe
aquilo que lhe parece melhor, e o que parece ser melhor para a maioria
passa a ser regra.
A partir desta interpretação da tese do homem-medida, temos um
problema a resolver, pois em um primeiro momento esta tese parece estar
em desacordo com outra tese de Protágoras, exposta por Diógenes Laércio

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(IX, 51): "Protágoras disse que sobre todas as coisas há dois


em oposição um ao outro". Esta tese dos dois nos levaria a
considerar que Platão não teria nenhum motivo para atribuir a Protágoras os
argumentos contra a possibilidade de contradição e do falso. No entanto,
Dupréll (1948:40) apresenta uma interpretação bastante interessante desta
frase, que possibilita compreender a relação entre as duas teses de
Protágoras. Segundo este intérprete, a frase "sobre todas as coisas há dois
em oposição um ao outro" é uma expressão do modo como a
lógica relativista trata a questão da afirmação e da negação. Para
Protágoras, todo pode ser afirmado ou negado segundo o
ponto de vista em que o consideramos. Não se trata da oposição de dois
que remetem, cada um deles, a um ser, como na lógica de
Antístenes. Tampouco se trata de afirmação e negação de uma realidade.
Cada um desses é enunciado sob um ponto de vista. Assim, a
afirmação de que os opostos não concernem à mesma coisa
não significa que, considerando os enunciados o vento é frio e o vento é
quente, cada um deles se refere a um vento diferente, o vento que para mim
é frio e o vento que para você é quente. O enunciado o vento é frio, dito por
mim, e o enunciado o vento é quente, dito por você, são ambos verdadeiros
porque são expressões de sensações diferentes. E é porque são sobre
coisas diferentes que os enunciados opostos A é B e A não é B têm sentido.
No entanto, podemos pensar que, se cada percepção é verdadeira, há
muito mais que dois em oposição sobre cada coisa. Mas a
grande variedade de experiências perceptuais pode ser reduzida a dois
: o que afirma um predicado e o que o nega.
A partir desta exposição, os argumentos contra a possibilidade do
falso e da contradição expostos no Eutidemo podem realmente ser

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atribuídos a Protágoras, se entendermos o referente do


como um fato da percepção. Sobre cada coisa que eu
percebo, há um enunciado que nomeia esta percepção no momento em que
a percebo. Este fato da percepção é uno e separado e, dado que ele é como
eu o percebo, é verdadeiro. Levando isto ao limite, pode-se dizer que, para
Protágoras, o enunciado seria um nome complexo de um fato: o enunciado o
vento é frio nomeia o fato vento-frio e o enunciado o vento é quente nomeia o
fato vento-quente. Assim, se o ser é reduzido ao parecer, o enunciado está
colado ao ser, como em Antístenes. Não ao ser em si, no entanto, mas ao ser
relativo à percepção.
Esta interpretação possibilitaria uma análise da predicação negativa.
O problema da negação é que ela só tem sentido se há um objeto ao qual
se refira. Como o enunciado o vento é quente, segundo a teoria dos dois
em oposição, pode ser traduzido para o vento não é frio, a
negação teria um referente positivo, ou seja, o não-frio indicaria quente.
Assim, o não-B tem um referente não na coisa que não é, mas na
percepção de que a coisa A possui um predicado contrário a B. Mesmo que
seja difícil atribuir estes detalhes a Protágoras, não seria tão difícil
conjeturar que Platão estaria respondendo a uma tal teoria ao tratar da
negação em Sofista 257b-258e. Para o Estrangeiro de Eléia, o não do
enunciado corresponde a uma entre o que é e o que
não é acerca da mesma coisa. Só assim é possível dizer o falso e
contradizer. Daí a insistência do Estrangeiro em estabelecer, nos paradoxos
sobre o não-ser e sobre o ser, a identidade do referente como condição de
possibilidade do discurso. Para Protágoras, por outro lado, há negação sem
falsidade, já que dois A é B e A não é B não são sobre a
mesma coisa, mas sobre coisas diferentes, isto é, sobre experiências

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diferentes. E sequer existe "a mesma coisa", pois em cada circunstância ela
aparece de modo diferente.
O princípio de não-contradição forte de Parmênides exige a anulação
dos qualificadores dos predicados, talvez em uma tentativa de evitar toda
relatividade contextual que possa impedi-los de ser verdadeiros. Qualquer
predicado que admita a contradição, ou seja, que permita dizer é e não é
daquilo que é, embora em contextos distintos, é então recusado. Mas se
Parmênides recusa a contradição por não poder aceitar a relatividade
contextual, é a partir do estabelecimento da relatividade contextual que
Protágoras também recusa a contradição. No entanto, diferentemente de
Parmênides, Protágoras evita a contradição sem recusar a negação. Não há
contradição entre os enunciados A é B e A não é B porque eles recebem
qualificadores do tipo para a e para b, ou no momento t1 e no momento t2.
Antístenes, por sua vez, aplicando a lógica de Parmênides a uma
ontologia pluralista, remete o a um ser internamente uno e
separado dos outros. Protágoras, embora negue a relação homogênea entre
discurso e ser, considera também que há algo de único e separado no
referente do discurso, já que a percepção se dá em cada circunstância,
embora esta unidade não resulte em identidade. Nos dois casos, para
Antístenes e para Protágoras, não se pode dizer o que é de um certo modo,
afirmando ou negando o mesmo referente à mesma coisa em
circunstâncias diferentes, condição do discurso informativo. Para o Antístenes
platônico, afirmação e negação se resumem a afirmação e negação de
identidade. Para Protágoras, afirmação e negação remetem a coisas
diferentes. O , então, está em correspondência transitiva com a
coisa: para Antístenes, com a coisa una e sempre idêntica a si mesma; para
Protágoras, com um parecer instantâneo.

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Se esta interpretação for plausível, poderemos concluir que, ao


apresentar os argumentos de Antístenes e atribuí-lo a Protágoras, Platão está
apontando uma semelhança entre estes dois pensamentos. Antístenes,
embora considere que há uma relação entre discurso e ser, apresenta esta
relação de modo que ela não pode ser sustentada. Ao aderir o discurso ao
ser, Antístenes aniquila a função predicativa do . A concepção de
de Protágoras, por outro lado, permite predicação e negação
ao desvincular o discurso do ser absoluto e colá-lo no ser relativo. Mas, nos
dois casos, não há contradição nem falsidade e tampouco há discurso
informativo sobre o ser.
Assim, se Górgias, utilizando a noção eleata de ser completamente
alheio ao não-ser, condena o discurso à absoluta incomunicabilidade, será
sobre a ontologia de Antístenes que Protágoras irá se debruçar, uma
ontologia de inúmeros seres completamente separados uns dos outros, aos
quais o discurso toca, mas apenas na condição de nome.
A tarefa do Estrangeiro será, então, manter o aspecto referencial do
discurso, postulado por Parmênides e sustentado por Antístenes, já que,
reconhece o Estrangeiro, é uma exigência do discurso informativo remeter a
seres unos e idênticos a si mesmos. Mas é preciso, também, que haja
trânsito no interior do discurso, que seja possível afirmar e negar. Assim, de
certo modo, Protágoras também tem de ser reconhecido como um
contribuinte à solução do problema do discurso informativo, já que, em sua
concepção de , ele possibilita predicação e negação, embora
sob a condição de que o discurso não seja um dizer o que as coisas são em
si.
Podemos dizer que o Estrangeiro seria, ele mesmo, um representante
da aliança entre eleatismo e sofística, mas não mais contra a possibilidade

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do discurso que diz o ser, senão para garantir esta possibilidade, e o faz
conciliando a vinculação entre discurso e ser sustentada por Parmênides e
Antístenes e possibilidade de predicação e negação presente em
Protágoras. Para isto, o Estrangeiro compôs, no plano ontológico, a
complexidade que os sofistas acreditavam presente apenas no plano do
discurso, permitindo a vinculação entre estes dois planos sem o peso
limitante do isolamento ontológico.

Bibliografia
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KERFERD, G.B. The Sophistic Movement. Cambridge: Cambridge


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SCOLNICOV, Samuel. Le parricide déguisé: Platón contre l'antiplatonisme
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UNTERSTEIRNER, Mario. I Sofisti. Milão: Bruno Mondadori, 1996.

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