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COMPENSAÇÃO

Emerson

1
As asas do Tempo são brancas e pretas,
Misturadas com a manhã e com a noite.
Altas como a montanha e profundas como o oceano,
Elas mantêm adequadamente o trêmulo equilíbrio.
Na lua mutante, na vaga da maré,
Brilha a contenda da Penúria e Abundância.
A escala do mais e menos pelo espaço afora
Brinca de astro e pena elétricos.
A solitária Terra entre as esferas
Que precipitam pelos átrios eternos,
Um contrapeso voando para o vazio,
Asteróide suplementar
Ou centelha compensatória,
Lança-se através das neutras Trevas.

O homem é o olmo e a Riqueza a vinha;


Sóbrias e fortes, enroscam-se as gavinhas:
Embora os frágeis aneizinhos te iludam,
A vinha não pode privar-se de nenhum de seus rizomas.
Não temas, portanto, fraca criança,
Não há deus que se atreva a prejudicar um ser inofensivo.
Coroas de louros aferram-se ao mérito,
E poder àquele que exerce o poder;
Não tens teu quinhão? Em pés alados,
Vê! ele corre ao teu encontro;
E tudo que a Natureza te deu,
Flutuando no ar ou confinado na pedra,
Fenderá os montes e singrará os mares
E, como tua sombra, te seguirá.

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ESDE GAROTO, TENHO DESEJADO ESCREVER um discurso sobre a
Compensação. Pois me parecia, quando em jovem, que sobre este assunto a vida se
antecipara à teologia, e as gentes sabiam mais do que aquilo ensinado pelos pregadores.
Os documentos, também, dos quais a doutrina deveria ser extraída, encantavam-me a
fantasia pela sua infinita variedade e me eram sempre presentes, mesmo no sono; pois
eles são as ferramentas em nossas mãos, o pão em nossa cesta, as transações da rua, a
fazenda e a habitação, os cumprimentos, os laços pessoais, os débitos e créditos, a
influência do caráter, a natureza e os dons de todos os homens. Parecia-me também que
nela seria possível mostrar aos homens um raio de divindade, a ação presente da alma
deste mundo, livre de qualquer vestígio de tradição; e, desse modo, o coração do homem
seria capaz de ser banhado por uma inundação de amor eterno, palestrando com aquilo
que ele sabe sempre ter sido e que sempre terá de ser, uma vez que é agora, realmente.
Parecia, ademais, que se esta doutrina pudesse ser formulada em termos que tivessem
alguma semelhança com aquelas esplêndidas intuições nas quais tais verdades nos é por
vezes revelada, seria como uma estrela em muitas horas sombrias, em muitos trechos
tortuosos de nossa jornada, estrela esta que não nos permitiria desviar de nosso
caminho.
Recentemente estes desejos me foram confirmados por um sermão que ouvi numa
igreja. O pregador, um homem estimado pela sua ortodoxia, expôs, da maneira usual, a
doutrina do Juízo Final. Admitiu que tal julgamento não é executado neste mundo; que os
malvados têm êxito; que os bons são infelizes; e então argumentou, segundo a razão e as
Escrituras, que uma compensação seria dada a ambas as partes na vida futura.
Aparentemente, a congregação não tomou essa doutrina como ofensa. Até onde pude
observar, separaram-se ao término da reunião sem ao menos fazer um único comentário
acerca do sermão.
E, todavia, o que era relevante nesse ensinamento? O que o pregador quis dizer ao
asseverar que o bom é infeliz na vida presente? Que homens inescrupulosos detêm casas
e terras, cargos, vinhos, cavalos, vestimentas e luxos, ao passo que os santos são pobres
e desprezados; que será feita a compensação para estes últimos no futuro, sendo-lhes
concedidas gratificações semelhantes em algum outro dia – valores bancários e dobrões,
carnes de caça e champanhe? Esta deve ser a compensação pretendida; que mais, senão
ela? Será que isso que estão fadados a possuir deixa espaço para que se reze e louve,
para que se ame e sirva aos homens? Ora, isso eles podem fazer agora. A legítima
inferência que o discípulo faria haveria de ser: “Iremos nos divertir tanto quanto os
pecadores o fazem hoje.” Ou, levando às últimas conseqüências: “Vós pecais agora, nós
pecaremos dentre em breve; pecaríamos agora, se pudéssemos; porém, não sendo
capazes, aguardamos para tirar a desforra disso amanhã.”
A falácia está na imensa concessão de que os maus têm êxito; de que a justiça não
é feita no presente. A cegueira do pregador consistiu em submeter-se às torpes
estimativas do mercado com respeito ao que constitui um êxito varonil, em lugar de
confrontar o mundo com a verdade e dela convencê-lo; em vez de anunciar a presença da
alma, a onipotência da vontade, estabelecendo, assim, um padrão de bem e mal, de êxito
e falsidade.
Encontro um tom similarmente torpe nas obras religiosas populares de hoje em
dia e as mesmas doutrinas aceitas pelos homens de letras, quando estes tratam
ocasionalmente de tópicos correlatos. Acho que nossa teologia popular ganhou em
decoro, mas não em princípio, na luta contra as superstições a que substituiu. Mas os
homens são melhores que tal teologia. Sua vida diária a desmente. Toda alma ingênua e
repleta de aspirações é capaz de, em sua própria experiência, deixar a doutrina para trás;
e todos os homens sentem, por vezes, a falsidade que não podem demonstrar. Pois os
homens são mais sábios do que imaginam. Aquilo que ouvem nas escolas e nos púlpitos,
sem reflexão posterior, seria provavelmente questionado em silêncio, se fosse discutido
numa conversa. Se um homem dogmatiza, em meio a um grupo sortido, sobre a
Providência e as leis divinas, respondem-lhe com um silêncio que diz muito, a um
observador atento, da insatisfação do ouvinte, de sua incapacidade, em contrapartida, de
formular seu próprio ponto de vista.

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Tentarei, neste e no próximo capítulo, registrar alguns fatos que indicam o curso
da lei da Compensação; serei feliz, acima de minhas expectativas, se em verdade deduzir,
por menor que ele seja, um dos arcos desse círculo.

POLARIDADE, ou ação e reação, encontramos em todas as partes da natureza: nas


trevas e na luz, no calor e no frio, no fluxo e refluxo das águas, no macho e na fêmea, na
inspiração e expiração das plantas e animais, na equação de quantidade e qualidade nos
fluidos do corpo animal, na sístole e na diástole do coração, na ondulação dos fluidos e do
som, na gravidade centrífuga e centrípeta, na eletricidade, no galvanismo e na afinidade
química. Produzi vós magnetismo em uma das extremidades da agulha; o magnetismo
oposto ocorrerá na outra extremidade. Se o sul atrai, o norte repele. Para esvaziar aqui,
deveis comprimir ali. Um dualismo inevitável biparte a natureza, de sorte que toda coisa
é uma metade sugerindo outra coisa para totalizá-la, como: espírito, matéria; homem,
mulher; par, ímpar; subjetivo, objetivo; dentro, fora; sobre, sob; movimento, repouso;
sim, não.
Sendo o mundo dual, assim também o é cada uma de suas partes. O sistema inteiro
das coisas está representado em cada partícula. Há algo que se assemelha ao fluxo e ao
refluxo do mar, ao dia e à noite, ao homem e à mulher, em uma simples agulha do
pinheiro, num grão de trigo, em cada indivíduo de todas as espécies animais. A reação,
tão abrangente nos elementos, repete-se dentro dessas restritas fronteiras. Por exemplo:
no reino animal, foi observado pelo fisiologista que não há criaturas que são favorecidas;
o que há é uma certa compensação que balanceia todo dom e todo defeito. A
superabundância concedida a uma parte é paga com a redução em outra parte da mesma
criatura. Se a cabeça e o pescoço são aumentados, o tronco e as extremidades são
encurtados.
A teoria das forças mecânicas é outro exemplo. Aquilo que ganhamos em potência,
perdemos em tempo; e vice-versa. Os erros periódicos ou compensatórios dos planetas
são ainda mais uma instância. As influências do clima e do solo na história política são
mais outra. O clima frio revigora. O solo infértil não engendra febres, crocodilos, tigres ou
escorpiões.
O mesmo dualismo subjaz à natureza e condição do homem. Todo excesso causa
um defeito; todo defeito, um excesso. Tudo que é doce tem seu amargor; tudo que é mal,
seu bem. Toda faculdade que é receptora de prazer tem uma igual penalidade imputada
ao seu abuso. Terá de responder com a própria vida pela sua moderação. Para cada
pouquinho de juízo, há um de loucura. Para tudo aquilo que perdestes, ganhastes algo
mais; e para tudo aquilo que ganhais, perdeis algo. Se as riquezas aumentam, os que
delas desfrutam também aumentam. Se o colhedor colhe em demasia, a natureza toma
do homem aquilo que lhe põe na burra; avoluma as posses, mas mata o proprietário. A
natureza tem aversão a monopólios e exceções. As ondas do mar não buscam um
nivelamento, depois da mais agitada encapeladura, tão rapidamente quanto as
variedades de condições tendem a igualar-se entre si. Há sempre alguma circunstância
niveladora que rebaixa substancialmente o despótico, o forte, o rico, o afortunado ao
mesmo nível dos demais. Havendo um homem forte e feroz demais para a sociedade, e,
pelo temperamento e posição, um mau cidadão – um rufião rabugento, com um quê de
pirata - , a natureza o envia um bando de belos filhos e filhas que se saem bem na escola
primária da vila, e o amor e receio por eles suaviza sua carranca soturna em simples
cortesia. Assim é que a natureza trama enternecer o granito e o feldspato ; retira o varrão
e coloca o cordeiro, e mantém sua balança equilibrada.
O agricultor imagina que o poder e a posição são coisas admiráveis. Mas o
Presidente pagou caro pela sua Casa Branca. Custou-lhe, de costume, toda a paz e o
melhor dos seus atributos varonis. Para preservar, por um curto período, uma aparência
tão conspícua perante o mundo, ele se contenta em comer poeira perante os mestres
reais que se postam eretos atrás do trono. Ou os homens desejam a grandeza mais
substancial e permanente do gênio? Nem esta é dotada de imunidade. Aquele que, por
força da vontade ou do pensamento, é grande e se eleva acima de milhares, arca com o
ônus dessa celebridade. A cada influxo de luz, vem-lhe novos perigos. Ele tem luz? Resta-
lhe testemunhar a luz e exceder a simpatia que lhe dá tal satisfação pungente, à força de
sua fidelidade a novas revelações da alma incessante. Ele deve odiar pai e mãe, esposa e

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filhos. Tem ele tudo que o mundo ama e admira e cobiça? Cabe-lhe deixar para trás sua
admiração e afligir seus pares com a fidelidade à sua verdade, tornando-se objeto de
escárnio e vaia.
Essa lei escreve a lei das cidades e das nações. É inútil maquinar ou conspirar ou
conluiar contra ela. As coisas se recusam a ser mal administradas por muito tempo. Res
nolunt diu male administrari. Embora não sejam aparentes os empecilhos a um novo mal,
eles existem e por fim aparecerão. Se o governo é cruel, a vida do governante não está a
salvo. Se impingirdes impostos muito elevados, a receita não renderá nada. Se fizerdes
sanguinário o Código Penal, os júris não condenarão. Se a lei for branda demais, a
vingança privada será moda. Se o governo for uma democracia formidável, a pressão será
repelida por uma sobrecarga de energia no cidadão, e a vida brilhará com uma chama
mais impetuosa. A verdadeira vida e satisfações do homem parecem elidir os rigores e
felicidades de condição extremos e estabelecer-se, com grande indiferença, sob todo tipo
de circunstâncias. Sob todos os governos, a influência do caráter permanece a mesma – é
semelhante na Turquia como na Nova Inglaterra. Sob os primevos déspotas do Egito, a
história confessa honestamente que o homem deve ter sido tão livre quanto o poderia ter
feito a cultura.
Tais aparências indicam o fato de que o universo é representado em cada uma de
suas partículas. Cada coisa na natureza contém todos os poderes da natureza. Tudo é
feito de uma matéria oculta; como o naturalista enxerga o mesmo tipo sob todas as
metamorfoses e considera o cavalo como um homem que corre, o peixe um homem que
nada, o pássaro um homem que voa, a arvore um homem que se enraizou. Cada nova
forma repete não apenas o caráter principal do tipo, mas também, parte por parte, todos
os detalhes, todos os objetivos, incrementos, impedimentos, energias e o sistema inteiro
de todos os outros. Toda ocupação, ofício, arte, transação é um compêndio do mundo e
um correlato de todos os outros. Cada um é um emblema completo da vida humana; de
seu bem e de seu mal, suas aflições, seus inimigos, seu curso e seu fim. E cada um deve,
de algum modo, acomodar o homem inteiro e recitar todo o seu destino.
O globo do mundo ele próprio é uma gota de orvalho. O microscópio não pode
divisar o animálculo que é menos perfeito porque pequeno. Olhos, ouvidos, paladar,
olfato, movimento, resistência, apetite e órgãos de reprodução que persistem na
eternidade – todos encontram espaço para residir na pequena criatura. Assim, pomos
nossa vida em cada ação. A verdadeira doutrina da onipresença é a de que Deus
reaparece com todos os seus elementos em cada musgo e cada teia de aranha. O valor do
universo arquiteta infundir-se em cada ponto. Se o bem lá está, também o mal aí se
encontra; se é a afinidade, lá está também a repulsão; se a força, também a limitação.
Desta forma vive o universo. Todas as coisas são morais. Aquela alma que dentro
de nós é sentimento, fora de nós é a lei. Sentimos sua inspiração; lá fora, na história,
podemos medir sua força fatal. “Está no mundo, e o mundo foi feita por ela.” 1 A justiça
não tarda. Uma perfeita eqüidade ajusta seu equilíbrio em todas as partes da vida.
, - Os dados de Deus estão sempre chumbados. O mundo
parece uma tabuada de multiplicação ou uma equação matemática que, virai-a como bem
quiserdes, irá sempre equilibrar-se. Tomai o número que quiserdes: seu valor exato, não
mais nem menos, ainda uma vez se vos repetirá. Todo segredo é desvendado, todo o
crime é punido, toda virtude recompensada, toda afronta desagravada, silenciosa e
certamente. O que chamamos retribuição é a necessidade universal pela qual o todo
aparece onde quer que uma parte apareça. Se vedes fumaça, tem de haver fogo. Se vedes
uma mão ou um membro do corpo, sabeis que o tronco ao qual pertence encontra-se-lhe
atrás.
Todo ato recompensa-se a si mesmo, ou, em outras palavras, integra-se a si
mesmo de maneira dupla: primeira, na coisa ou na natureza real; e, segunda, na
circunstância ou na natureza aparente. Os homens chamam à circunstância retribuição. A
retribuição causal está na coisa e é vista pela alma. A retribuição na circunstância é vista
pelo entendimento; é inseparável da coisa, mas se entende freqüentemente por longo
tempo e se torna distinta apenas ao término de vários anos. Os vergões específicos não
podem tardar a vir após o golpe, mas virão porque o acompanham. O crime e a punição
nascem do mesmo tronco. A punição é um fruto que, insuspeitado, amadurece dentro da
flor que o escondia. Causa e efeito, meios e fins, semente e fruto não podem ser

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desunidos, pois o efeito já viceja na causa, o fim preexiste nos meios, o fruto na
semente.
Enquanto, portanto, o mundo deseja-se indiviso e se recusa a ser fendido, nós
procuramos agir parcialmente, dividir, apropriar; por exemplo – para contentar os
sentidos, desunimos o prazer dos sentidos das necessidades do caráter. A engenhosidade
do homem tem-se dedicado à solução de um único problema – como destacar a doçura
sensual, o vigor sensual, o brilho sensual etc. da doçura moral, da profundeza moral, da
beleza moral; isto é, mais uma vez: arquitetar um modo de amputar habilmente esta
superfície superior tão tênue, fazendo com que a deixe sem fundo; alcançar um fim sem o
outro fim. A alma diz: “Come”; o corpo banqueteia. A alma diz: “O homem e a mulher
serão uma só carne e uma só alma”; o corpo junta-se apenas à carne. A alma diz: “Tem
domínio sobre todas as coisas para os fins da virtude”: o corpo tem o domínio sobre as
coisas para os seus próprios fins.
A alma se empenha com todas as forças para viver e trabalhar por meio de todas
as coisas. Quisera ser o único fato. Todas as coisas ser-lhe-iam somadas – poder, prazer,
conhecimento, beleza. Aquele homem almeja ser alguém: estabelecer-se por si mesmo;
permutar e pechinchar por um bem qualquer; e, no que toca nos particulares, montar o
que possa montar; vestir o que possa vestir; comer o que possa comer; e governar para
que possa ser visto. Os homens buscam ser grandes; pudera tivessem cargos, riqueza,
poder e fama! Acham que ser grande é possuir um lado da natureza – o doce, sem o outro
lado – o amargo.
Tal dividir e isolar é constantemente frustrado. Até hoje, cabe confessar, nenhum
projetista teve o menor êxito. A água fendida se reúne atrás de nossa mão. O prazer é
extraído de coisas prazerosas, o lucro de coisas lucrativas, o poder de coisas vigorosas,
tão logo procuramos separá-las do todo. Não mais podemos partir as coisas ao meio e
obter o bem sensual, por si só, do mesmo modo que não podemos ter o interior sem o
exterior, ou uma luz sem uma sombra. “Expulsai a natureza com uma forqueta, ela
retornará correndo.”
A vida investe a si mesma com condições inevitáveis às quais o imprudente procura
esquivar, que se jacta não conhecer, que supostamente não lhe dizem respeito – mas a
jactância está em seus lábios, as condições estão na sua alma. Se ele logra escapar-lhes
de um lado, elas o atacam numa parte mais vital. Se lhes escapou na forma e na
aparência, foi porque ele resistiu à sua própria vida e esquivou-se de si mesmo, e a
retribuição é nada menos que a morte. Tão notável é o fracasso de todas as tentativas de
fazer essa separação entre o que é bom e o que exige esforço excessivo, que o
experimento não seria tentado – já que tentá-lo é estar louco –, não fosse pela
circunstância de que, quando a moléstia começou na vontade, moléstia da rebelião e da
separação, o intelecto foi de pronto infectado, de sorte que o homem deixa de ver Deus
em cada objeto, mas é capaz de ver a sedução de um objeto, não lhe vendo o dano
sensível; ele vê a cabeça da sereia, mas não a cauda do dragão, e acha poder separar
aquilo que desejaria daquilo que não desejaria ter. “Quão secreto sois Vós que habitais os
céus altíssimos, em silêncio; oh! Vós, único e grande Deus, que borrifais com incansável
Providência certas cegueiras vingadoras sobre os que tenham desejos
desenfreados!”(Santo Agostinho, Confissões, Livro I).
A alma humana é fiel a esses fatos pintados na fábula, na história, na lei, nos
provérbios, na conversa. Encontra, sem o perceber, uma linguagem na literatura. Assim,
os gregos chamavam Júpiter de Mente Suprema; mas, tendo-lhe sido imputadas
tradicionalmente muitas ações vis, eles involuntariamente retificaram a razão,
amarrando as mãos de um deus tão mau. Ele se mostra tão desamparado como um rei da
Inglaterra. Prometeu conhece um segredo que Jove tem de negociar; Minerva, outro. Ele
não pode ter seus próprios trovões; Minerva retém-lhes a chave:

De todos os deuses, apenas eu conheço as chaves


Que abrem as sólidas portas dentro de cujas abóbadas
Dormem seus trovões.2

Uma evidente confissão do trabalho interno do Todo e do seu fim moral. A


mitologia indiana deságua na mesma ética; pareceria impossível inventar qualquer fábula

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que granjeasse a aceitação, que não fosse moral. Aurora esqueceu-se de pedir juventude
para seu amante; embora Titono seja imortal, é velho. Aquiles não é de todo
invulnerável; as águas sagradas não banharam o calcanhar pelo qual Tétis o segurava.
Siegfried, nos Nibelungos, não é de todo imortal, pois uma folha caiu-lhe nas costas
quando estava a banhar-se no sangue do dragão, e o local coberto fez-se mortal. E assim
deve ser. Há um defeito em tudo o que Deus fez. Parece que sempre há tal circunstância
vindicativa, introduzindo-se furtivamente, mesmo na poesia tempestuosa na qual a
fantasia humana tentou atrevidamente passar suas férias e livrar-se das velhas leis –
parece que há sempre esse contragolpe, esse coice da arma de fogo, certificando que a
lei é fatal, que na natureza nada se pode dar, tudo se vende.
Essa é a antiga doutrina de Nêmesis, que vigia o universo e não permite que haja
ofensa sem punição. As Fúrias, diz-se, são ajudantes da justiça, e caso o sol nos céus se
desviasse de seu caminho, elas o puniriam. Os poetas narraram que os muros de pedra e
as espadas de aço e os açoites de couro guardavam uma simpatia oculta com as
transgressões de seus proprietários; que o cinturão que Ajax deu a Heitor arrastou o
herói troiano pelo campo, juntos às rodas do carro de Aquiles, e que a espada que Heitor
deu a Ajax foi a mesma sobre cuja ponta caiu Ajax. Os poetas registraram que, quando os
tácios erigiram uma estátua a Teógenes, vencedor dos jogos, um dos seus rivais se
acercou dela à noite e empenhou-se em botá-la abaixo com repetidas pancadas, até que,
por fim, fez por movê-la de seu pedestal e foi esmagado por sua queda.
A voz da fábula tem em si algo de divino. Ela veio de um pensamento acima da
vontade do escritor. Essa é a melhor parte de cada escritor, parte que não tem em si nada
de particular; parte que é a melhor, pois ele a desconhece; que flui de sua constituição, e
não de sua ágil invenção; aquela que podereis ter dificuldade em encontrar no estudo de
um único artista, mas que, no estudo de muitos, abstrairíeis como o espírito de todos
eles. Não Fídias, mas o trabalho do homem naquele primitivo mundo helênico é o que
desejaria conhecer. O nome e a circunstância de Fídias, embora convenientes para
história, são um embaraço quando ascendemos à mais elevada crítica. Devemos ver
aquilo que o homem tendia a fazer num certo período, sendo impedido ou, se quiserdes,
modificado no fazê-lo pelas volições interferentes de Fídias, de Dante, de Shakespeare, o
órgão através do qual o homem, naquele momento, agiu.
Ainda mais surpreendente é a expressão desse fato nos provérbios de todas as
nações, que são sempre a literatura da razão ou as afirmações de uma verdade absoluta,
sem reservas. Os provérbios, à maneira dos livros sagrados de cada nação, são o
santuário das intuições. Aquilo que o mundo arengador, encadeado às aparências, não
permite ao realista dizer com suas próprias palavras, consentirá em dizê-lo em
provérbios, sem contradição. E essa lei das leis que o púlpito, o senado, e a faculdade
negam, é pregada a qualquer hora em todos os mercados e seminários por um enxame de
provérbios cujo o ensinamento é tão verdadeiro e tão onipresente quanto o de pássaros e
insetos.
Todas as coisas são duplas, uma contra a outra. – Paga-se na mesma moeda, olho
por olho, dente por dente, sangue por sangue, medida por medida, amor por amor. – Dai
e vos será dado. – É dando que se recebe. – Que desejais?, pergunta Deus; pagai e levai-
o. – Quem não arrisca não petisca. – Sereis pago exatamente por aquilo que fizerdes, não
mais, não menos. – Quem não trabalha não come. – Quem brinca com fogo pode se
queimar. – As pragas sempre se voltam contra aqueles que a rogam. – Se prendeis uma
corrente ao pescoço de um escravo, a outra ponta se amarra à volta de seu próprio
pescoço. – O mau conselho confunde o próprio conselheiro. – O demônio é um asno.
Assim está escrito, porque assim é a vida. Nossa ação é subjugada e caracterizada,
acima de nossa vontade, pela lei da natureza. Visamos a um fim insignificante e um tanto
afastado do bem público, mas nosso ato se concilia, por irresistível magnetismo, com os
pólos do mundo.
Um homem não pode falar a não ser que se julgue a si mesmo. Quer queira quer
não, esboça seu próprio retrato aos olhos dos seus companheiros em cada palavra. Toda
opinião reage sobre aquele que a profere. É uma bola amarrada à ponta de um fio,
atirada contra um alvo; a outra ponta permanece junto àquele que a arremessou. Ou
melhor, é um arpão lançado contra baleia, que desenrola, à medida que progride, um rolo

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de corda no barco; se o arpão não for bom ou se for mal lançado, será sorte que não corte
o timoneiro em dois ou afunde o barco.
Não podeis fazer o mal sem padecê-lo. “Nenhum homem teve jamais um ponto de
orgulho que não lhe fosse prejudicial”, afirmou Burke. O exclusivista na vida elegante
não enxerga que se exclui a si próprio da satisfação ao tentar apropriar-se dela. O
exclusivista em religião não enxerga que fecha a porta do céu a si mesmo ao esforçar-se
por fechá-la aos outros. Tratai os homens como peões de xadrez ou paus de boliche e
padecereis tanto quanto eles. Se lhes excluís o coração, perdereis o vosso. Os sentidos
fariam coisas de todas as pessoas: de mulheres, de crianças, de pobres. O provérbio
vulgar: “tirarei da sua bolsa ou da sua pele” é filosofia bem fundada.
Todas as infrações de amor e eqüidade, em nossas relações sociais, são
prontamente punidas. São punidas por medo. Enquanto travo relações simples com meus
pares, não tenho desprazer em encontrar-me com eles. Encontramo-nos como água
encontra água ou como duas correntes de ar se misturam, com perfeita difusão e
interpenetração de natureza. Mas assim que aja um desvio da simplicidade e tentativa de
desmembramento, ou benefício para mim que não o seja também para ele, meu próximo
percebe a afronta; esquiva-se de mim tanto quanto dele me esquivei; seus olhos não
mais procuram os meus; faz-se guerra entre nós; há ódio nele e medo em mim.
Todos os velhos abusos da sociedade, universais e particulares, todas as
acumulações injustas de propriedade e poder são vingados da mesma maneira. O medo é
um instrutor de grande sagacidade e arauto de todas as revoluções. Uma coisa ele
ensina: que há podridão onde ele aparece. Ele é um corvo carniceiro, e embora não
discernis bem o que está rondando, há morte em alguma parte. Nossa propriedade é
tímida, nossas leis são tímidas, nossas classes cultivadas são tímidas. O temor, ao longo
de séculos, augurou, ceifou e garrulou sobre governo e propriedade. Tal pássaro obsceno
não está ali em vão. Ele indica grandes iniqüidades que tem de ser emendadas.
De natureza semelhante é aquela expectativa de mudança que se segue
instantaneamente à suspensão de nossa atividade voluntária. O terror à lua sem nuvens,
a esmeralda de Polícrates,3 o temor reverencial à prosperidade, o instinto que leva toda
alma generosa a impor-se tarefas de um nobre ascetismo e virtude vicária, são as
alternâncias da balança da justiça através do coração e da mente dos homens.
Os homens do mundo experimentados sabem muito bem que é melhor pagar até o
último vintém as dívidas à medida que vencem, e que um homem freqüentemente paga
caro por uma pequena frugalidade. Aquele que toma emprestado avança em seu próprio
débito. Ganhou alguma coisa o homem que recebeu uma centena de favores e não
prestou nenhum? Ganhou com tomar emprestado, por indolência ou astúcia, utensílios
ou cavalos, ou dinheiro do próximo? No feito mesmo emerge o reconhecimento
instantâneo do benefício, de um lado, e o débito, de outro; isto é, da superioridade e da
inferioridade. A transação permanece tanto na sua memória quanto na do seu próximo; e
cada nova transação altera, de acordo com sua natureza, sua relação recíproca. Que ele
em breve reconheça que seria preferível ter quebrado os próprios ossos a ter montado no
coche do próximo e que “o mais alto preço que possa pagar por algo é pedi-lo”.
Um homem sábio estenderá tal lição a todas as partes de sua vida e saberá que faz
parte da prudência enfrentar todo requerente e pagar toda demanda justa de vosso
tempo, talentos ou coração. Pagai sempre; pois, no início ou no fim, tereis sempre de
pagar todo o vosso débito. As pessoas e os acontecimentos podem interpor-se, durante
algum tempo, entre vós e a justiça, mas será apenas um adiamento. Tereis de pagar,
afinal, vosso próprio débito. Se fordes sábio, tereis pavor à prosperidade que tão-
somente vos sobrecarrega. O benefício é o fim da natureza. Mas por cada benefício que
recebeis, um tributo é lançado. Grande é aquele que confere os maiores benefícios. É
mesquinho – e isto é a coisa mais mesquinha do universo – receber favores e não prestar
nenhum. Na ordem da natureza, não podemos prestar benefícios àqueles de quem os
recebemos, ou apenas muito raramente. O benefício que recebemos tem de que ser
prestado novamente, ponto por ponto, ação por ação, centavo por centavo, a alguém.
Tenhais cuidado com benefícios que abundam em vossas mãos. Eles se corrompem
rapidamente e se insinuam como vermes. Pagai-o depressa, da forma que seja.
O trabalho é regulado pela mesma lei impiedosa. O trabalho mais barato, diz o
prudente, é o mais caro. O que compramos numa vassoura, numa esteira, num carro,

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numa faca, é uma certa aplicação do bom senso a uma necessidade presente. É melhor
pagar em vossa terra a um hábil jardineiro, ou comprar bom senso aplicado à
jardinagem; em vosso marinheiro, bom senso aplicado à navegação; na casa, bom senso
aplicado à cozinha, à costura, ao serviço; em vosso representante, bom senso aplicado às
contas e aos negócios. Assim, multiplicais vossa presença ou vos espalhais em meio a
vossas posses. Mais por causa da constituição dupla das coisas, no trabalho como na vida
não pode haver trapaças. O ladrão rouba a si mesmo. O escroque trapaceia a si próprio.
Pois o verdadeiro preço do trabalho é conhecimento e virtude, dos quais a opulência e o
crédito são signos. Tais signos, como papel-moeda, podem ser falsificados ou roubados,
mas aquilo que representam, a saber, conhecimento e virtude, não pode ser falsificado
nem roubado. Tais fins do trabalho não podem ser rendidos senão aos reais empenhos da
mente, e em obediência a puros motivos. O trapaceiro, o infrator, o apostador não podem
extorquir o conhecimento da natureza material e moral que os cuidados e as aflições
rendem ao trabalhador. A lei da natureza é: fazei o que é necessário e tereis o poder; mas
aqueles que não o fazem não terão o poder.
O trabalho humano, em todas as suas formas, desde o afiar de uma estaca para a
construção de uma cidade ou de uma epopéia, é uma imensa ilustração da perfeita
compensação do universo. O equilíbrio absoluto do Dar e Tomar, a doutrina de que toda
coisa tem seu preço – e de que, se o preço não for pago, obter-se-á não aquela coisa, mas
sim outra qualquer, e de que é impossível obter algo sem que seu preço seja pago – , não
é menos sublime nas colunas de um borrador do que nos orçamentos dos Estados, nas
leis da luz e das trevas, em toda ação e reação da natureza. Não posso duvidar de que as
leis sublimes que cada homem vê implicadas naqueles processos nos quais é versado, a
ética rígida que lampeja do fio de seu cinzel, que é medida pelo seu fio de prumo e por
sua craveira, que aparece de forma tão manifesta na soma de uma conta de loja como na
história de um Estado – recomendam-lhe sua ocupação e, apesar de raramente
nomeadas, exaltam-lhe a atividade para sua imaginação.
A liga entre a virtude e a natureza requer que todas as coisas adotem uma frente
hostil ao vício. As belas leis e substâncias do mundo perseguem e açoitam o traidor. Ele
descobre que as coisas estão dispostas de acordo com a verdade e o bem; não há refúgio
no mundo para ocultar um tratante. Cometei um crime e a Terra se fará vidro. Cometei
um crime e parecerá que uma capa de neve cobre o solo, a mesma que revela, nas
florestas, o rastro de toda perdiz e raposa e esquilo e toupeira. Não podeis voltar atrás na
palavra dada, não podeis apagar as pegadas, não podeis içar a escada, de modo a não
deixar uma abertura de entrada ou qualquer vestígio. Alguma circunstância prejudicial
sempre transpira. As leis e as substâncias da natureza – água, neve, vento, gravitação –
tornam-se penalidades para o ladrão.
Por outro lado, a lei é cumprida, com igual certeza, para toda ação correta. Amai e
sereis amado. Todo o amor é matematicamente justo, tanto quanto os dois membros da
equação algébrica. O homem bom possui o bem absoluto que, como fogo, transforma
todas as coisas em sua própria natureza, de sorte que não lhe podeis fazer mal algum;
mas assim como os exércitos reais enviados contra Napoleão, à aproximação deste,
abandonaram suas insígnias e de inimigos se tornaram amigos, assim também desastres
de todos os tipos, como a doença, a ofensa, a pobreza, revelam-se benfazejos:

Os ventos sopram e as águas arrojam


Força para o bravo, e poder e divindade,
E, no entanto, em si mesmos nada são.4

Os bons são favorecidos até mesmo pela fraqueza e pelo defeito. Assim como
nenhum homem jamais teve uma ponta de orgulho que não lhe fosse prejudicial, assim
também nenhum homem jamais teve um defeito que não lhe fosse de algum modo útil. O
cervo da fábula admirava seus chifres e reprovava seus pés, mas quando lhe veio o
caçador, seus pés o salvaram e, em seguida, preso ao matagal, seus chifres o arruinaram.
Todo homem ao longo da vida precisa agradecer às suas faltas. Do mesmo modo que
homem algum compreende inteiramente uma verdade antes de haver com ela disputado,
assim também nenhum homem obtém plena compreensão das deficiências e talentos dos
homens até que tenha padecido graças às primeiras e divisado o triunfo dos últimos

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sobre sua própria falta deles. Tem ele um defeito de temperamento que o inabilita de
viver em sociedade? Desse modo é levado a entreter-se sozinho e adquire hábitos de
ajuda própria; e, assim, à maneira da ostra ferida, remenda sua concha com a pérola.
Nossa força nasce de nossa fraqueza. A indignação que se arma com forças
secretas não desperta antes que sejamos aferroados, picados e dolorosamente
assaltados. Um grande homem está sempre desejando ser pequeno. Enquanto ele está
sentado sobre a almofada das vantagens, dorme de bom grado. Quando é impelido,
atormentado, derrotado, tem a oportunidade de aprender algo; é obrigado a usar seu
engenho, sua virilidade; ganha fatos; reconhece sua ignorância; é curado da loucura da
presunção; adquire moderação e real destreza. O homem sábio toma o partido de seus
assaltantes. É mais do seu interesse do que do deles encontrar seu ponto fraco. A ferida
cicatriza e se desprega como uma pele morta, e quando eles estavam a ponto de triunfar,
vede! ele segue adiante, invulnerável. A reprovação é mais segura do que o louvor. Odeio
ser defendido num jornal. Enquanto tudo que for dito seja contra mim, estou convicto do
êxito. Mas tão logo palavras de louvor melífluas sejam proferidas em meu favor, sinto-me
como aquele que jaz desprotegido ante seus inimigos. De modo geral, todo mal a que não
sucumbimos é benfazejo. Assim como o habitante da Ilha Sanduíche crê que a força e o
valor do inimigo a quem mata transferem-se para ele, assim também ganhamos a força
da tentação à qual resistimos.
Os mesmos resguardos que nos protegem do desastre, da falha e do inimigo
defendem-nos, se quisermos, do egoísmo e do embuste. Ferrolhos e grades não são o
melhor de nossas instituições, nem é a argúcia nos negócios um sinal de sabedoria. Os
homens padecem, durante toda a sua vida, da tola superstição de que podem ser
negaceados. Mas é tão impossível a um homem ser trapaceado por alguém que não ele
próprio, como, a uma coisa, ser e não ser ao mesmo tempo. Há um terceiro e silencioso
cúmplice de todos os nossos ajustes. A natureza e alma das coisas alega para si a
garantia do cumprimento de todo contrato, de sorte que o serviço honesto não venha a
resultar em perdas. Se servis a um mestre ingrato, desdobrai-vos ainda mais ao servi-lo.
Ponde Deus em vosso débito. Todo golpe vos será pago. Quanto mais vos for retido o
pagamento, melhor para vós, pois juros compostos sobre juros compostos são a taxa e o
emprego deste erário.
A história da perseguição é a história de esforços para negacear a natureza, para
fazer com que a água corra montanha acima, para torcer uma corda de areia. Não faz
diferença se os atores são muitos ou um só, um tirano ou uma turba. Uma turba é a
sociedade de corpos voluntariamente privados de razão, razão esta que lhes atravanca o
bom funcionamento. A turba é um homem descendo voluntariamente à natureza bestial.
Sua hora de atividade apropriada é a noite. Suas ações são insanas, como toda a sua
constituição. Ela persegue um princípio; açoitaria de bom grado um direito; alcatroaria e
empenaria a justiça, infligindo fogo e ultraje às casas e pessoas que acaso as possuam.
Assemelha-se à brincadeira de garotos que correm, com carros de incêndio, a apagar a
aurora rósea que flui até às estrelas. O espírito inviolado volta o rancor dos malfeitores
contra eles próprios. O mártir não pode ser desonrado. Cada vergastada infligida é uma
língua de renome; toda prisão, uma moradia mais ilustre; todo livro ou casa queimados
iluminam o mundo; toda palavra suprimida ou expurgada reverbera de lado a lado da
Terra. Horas de bom senso e reflexão chegam sempre a comunidades, como também a
indivíduos, quando a verdade é comprovada e os mártires são justificados.
Assim, todas as coisas pregam a indiferença das circunstâncias. O homem é tudo.
Toda coisa tem dois lados, um bom e um mau. Toda vantagem tem um encargo. Aprendi a
me contentar. Mas a doutrina da compensação não é a doutrina da indiferença. O
insensato diz, ao ouvir tais afirmações: “De que me serve fazer o bem? Um mesmo fato é
bom e mau, simultaneamente; se logro obter algum bem, devo pagar por ele; se deixo de
fazê-lo, obterei mesmo assim algum outro bem; todas as ações são indiferentes.”
Há um fato mais profundo na alma que a compensação, qual seja, sua própria
natureza. A alma não é uma compensação, mas uma vida. A alma é. Sob todo esse mar
corrediço de circunstâncias, cujas águas fluem e refluem em perfeito equilíbrio, jaz o
abismo primitivo do Ser real. A Essência, ou Deus, não é uma relação ou uma parte, mas o
todo. O Ser é a vasta afirmativa, que exclui negações, equilibra a si próprio e absorve
todas as relações, partes e tempos dentro de si. A natureza, a verdade, a virtude são o

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influxo que dele provêm. O vício é a ausência ou o desvio dele. O Nada, a Falsidade, pode
de fato erguer-se como a grande Noite ou como a sombra sobre a qual, como um pano de
fundo, o universo vivo vai-se delineando; mas nenhum fato é gerado por ele; ele não
pode operar, pois não é. Não pode infundir nenhum bem; não pode infundir nenhum mal.
É prejudicial na medida em que é pior não ser do que ser.
Sentimo-nos defraudados da retribuição devida aos atos malévolos porque o
criminoso se mantém fiel ao seu vício e contumácia, sem com isso chegar a uma crise ou
a um julgamento em parte alguma da natureza visível. Não há nenhuma refutação
decisiva de seu disparate perante os homens e os anjos. Terá ele, desta forma, passado a
perna na lei? Na medida em que porte dentro de si a malignidade e a mentira, ele decai
da natureza. De algum modo haverá uma demonstração do erro também em face do
entendimento; muito embora não a divisemos, tal dedução liqüida as contas eternas.
Por outro lado, tampouco se pode dizer que o ganho de retidão deve ser
acompanhado de uma perda. Não há penalidade para virtude; não há penalidade para a
sabedoria; elas são acréscimos apropriados do ser. Numa ação virtuosa, eu sou
propriamente; numa ação virtuosa, aporto algo para o mundo; planto nos desertos
conquistados ao Caos e ao Nada e vejo as trevas recuarem nos limites do horizonte. Não
pode haver excesso para o amor; tampouco para o conhecimento, para a beleza, quando
estes atributos são considerados em seu sentido mais puro. A alma recusa limites e
afirma sempre o Otimismo, nunca o Pessimismo.
Sua vida é um progresso, não há uma estagnação. Seu instinto é de confiança. Em
relação ao homem, nosso instinto usa “mais” ou “menos” da presença da alma, mas
nunca de sua ausência; o homem valente é maior que o covarde; o sincero, o
benevolente, o sábio, é mais homem, e não menos, que o tolo e o velhaco. Não há tributo
sobre o bem da virtude, pois ela é a receita do próprio Deus, ou da existência absoluta,
sem comparação alguma. Os bens materiais têm seu tributo, e se chegarem a mim sem
merecimento ou trabalho duro, não se enraizarão em mim, fazendo com que o primeiro
vento que sopre os arranque. Mas todos os bens da natureza pertencem também a alma,
e podem muito bem ser adquiridos, caso sejam pagos em moeda lícita da natureza, isto é,
pelo trabalho que nos permite o coração e a cabeça. Não desejo mais encontrar um bem
que não tenha sido obtido pelo suor de meu rosto; por exemplo, encontrar um pote de
ouro enterrado, sabendo que com ele me advêm novos gravames. Não mais desejo bens
exteriores – nem possessões, nem honrarias, nem poderes, nem pessoas. O ganho é
aparente; o tributo é certo. Mas não há tributo no reconhecimento de que a compensação
existe e de que não é desejável desenterrar tesouros. Nisso, alegro-me com uma paz
serena e eterna. Diminuo as fronteiras do mal possível. Aprendo a sabedoria de São
Bernardo: “Nada pode causar-me dano senão eu mesmo; o prejuízo que sustento levo-o
comigo e nunca sofro realmente, a não ser por minha própria culpa.”
Na natureza da alma está a compensação para as desigualdades de condição. A
tragédia radical da natureza parece ser a distinção entre Mais e Menos. Como pode o
Menos não sentir dor; como não sentir indignação ou malevolência pelo Mais? Olhai
aqueles que tem menos capacidade; sentimo-nos tristes por causa disso não sabemos
bem o que fazer. Quase que evitamos seus olhares; tememos que comecem a repreender
Deus. Que deveriam fazer? Parece uma grande injustiça. Mas encurtai a distância que vos
separa dos fatos e essas gigantescas desigualdades evanescem. O amor as reduz, do
mesmo modo que o sol derrete o iceberg no mar. Sendo o coração e a alma de todos os
homens uma coisa só, cessa essa acrimônia do Seu e do Meu. O seu é o meu. Eu sou meu
irmão e meu irmão sou eu mesmo. Se eu me sentir eclipsado e sobrepujado por grandes
pares meus, ainda assim posso amar; posso ainda receber; e aquele que ama transforma
em sua a grandeza amada. Isto posto, faço a descoberta de que meu irmão é meu
guardião, agindo por mim com o mais amistoso dos desígnios, e que as posses que eu
tanto admirava e invejava são as minhas próprias. É da natureza da alma apropriar-se de
todas as coisas. Jesus e Shakespeare são fragmentos da alma, e pelo amor eu os
conquisto e incorporo em meu próprio domínio consciente. A virtude deles – não é
minha? O engenho deles – se não se pode torná-lo meu, então não é engenho.
Assim também é a história natural da calamidade. As mudanças que interrompem,
em pequenos intervalos de tempo, a prosperidade dos homens são advertências de uma
natureza cuja lei é o crescimento. Toda alma, devido a esta necessidade intrínseca,

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abandona o sistema inteiro das coisas, seus amigos e lar e leis e fé, da mesma forma que
o marisco rasteja para fora de seu belo mas pétreo envoltório, uma vez que ele não mais
lhe permite o crescimento, e lentamente forma uma nova casa. Em proporção ao vigor do
indivíduo, tais revoluções são freqüentes, e em algumas mentes mais bem-aventuradas,
até mesmo incessantes; todas as relações mundanas pendem bastante frouxamente à
sua volta, convertendo-se, por assim dizer, numa membrana transparente e fluida
através da qual a forma viva pode ser vista, e não, como na maioria dos homens, numa
estrutura endurecida e heterogênea, de muitas datas e sem caráter consolidado, dentro
da qual o homem está aprisionado. No primeiro caso, pode ocorrer uma dilatação, e o
homem de hoje mal e mal reconhece o homem de ontem. E assim deveria ser a biografia
exterior do homem no tempo: um livrar-se de circunstâncias mortas, dia a dia, à medida
que renova, dia a dia, seu vestuário. Mas para nós, em nosso estado decadente, que
folgamos, que não avançamos, que resistimos, não cooperando com a expansão divina,
tal crescimento vem em choques.
Não podemos apartar-nos de nossos amigos. Não podemos aceitar que os anjos
nos deixem. Não vemos que eles vão embora para que seja possível a vinda dos arcanjos.
Somos idólatras do velho. Não acreditamos nas riquezas da alma, em sua eternidade e
onipresença apropriadas. Não acreditamos que aja hoje em dia alguma força apta a
rivalizar ou recriar aquele belo dia de ontem. Demoramo-nos nas ruínas da velha tenda
onde tivemos outrora pão e abrigo e utensílios; tampouco acreditamos que o espírito
possa alimentar-nos, cobrir-nos e fortalecer-nos de novo. Não podemos encontrar
novamente nada tão querido, tão doce, tão gracioso. Mas sentamo-nos e choramos em
vão. A voz do Todo-Poderoso diz: “Levanta-te e prossegue, para todo o sempre!” Não
podemos permanecer entre as ruínas. Tampouco queremos confiar no novo; e, assim,
caminhamos sempre com os olhos voltados para trás, assim como aqueles monstros que
enxergam às suas costas.
E, no entanto, as compensações da calamidade também se tornam manifestas ao
entendimento, após longos intervalos de tempo. Uma febre, uma mutilação, uma
decepção cruel, a perda de uma fortuna, a perda de amigos parece, no momento, uma
perda não saldada e impossível de liquidar. Mas os anos inexoráveis revelam a profunda
força remediadora subjacente a todos os fatos. A morte de um amigo querido, da esposa,
do irmão ou amante, que parecia ser nada além de privação, assume mais tarde, de
algum modo, o aspecto de um guia ou de um gênio; pois comumente acarreta revoluções
em nosso modo de vida, encerra uma época da infância ou da juventude que estava à
espera de ter um fim, desarticula uma ocupação costumeira, uma família ou um estilo de
vida, e permite a formação de outros novos, mais condizentes com o desenvolvimento do
caráter. Permite ou compele a formação de novas relações e a recepção de novas
influências, que se mostram de importância fundamental para os anos que se seguem; e
o homem ou a mulher que teriam permanecido uma ensolarada flor de jardim, sem
espaço para suas raízes e com sol em demasia para sua corola, com a queda dos muros e
a negligência do jardineiro se tornam a figueira-de-bengala da floresta, proporcionando
sombra e frutos a extensas comunidades de homens.

NOTAS

1 - Cf. João 1:10.

2 - Ésquilo, As Fúrias, 894-96.

3 - O Tirano de Samos, temendo a Nêmesis por causa de sua boa fortuna, lançou
uma esmeralda ao mar, mas ela retornou na barriga de um peixe.

4 - Wordsworth, “September, 1802, near Dover”.

BIBLIOGRAFIA: EMERSON, Ralph Waldo, 1803-1882


Ensaios: primeira série, Rio de janeiro, Imago Editora, 1994.

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