Você está na página 1de 3

Sua Majestade Real Hai É, o Seilassié.

Um Ras da Etiópia
na Porto Alegre dos anos 30.

Professora Mestre Iris Graciela Germano (História-UFRGS)

carnaval de Porto Alegre na década de 1930 se caracterizou pelo


surgimento de inúmeros blocos e cordões carnavalescos populares que
eram compostos, majoritariamente, por descendentes de africanos.
Esses agrupamentos carnavalescos populares se constituíram no interior
de territórios negros localizados dentro de Porto Alegre e desfilavam
pelas principais ruas da cidade. Um dos mais importantes territórios
negros da Porto Alegre desse período, ao lado da Colônia Africana, foi o
famoso e famigerado Areal da Baronesa, conhecido desde a época da
escravidão como um espaço "perigoso", pois era para lá que muitos
escravos fugidos acorriam em busca de proteção e de um bom
esconderijo. Portanto, desde a época da escravidão, o Areal da Baronesa
foi relacionado a uma territorialidade negra, associada à resistência e à
busca da liberdade.

Após a abolição da escravatura, foi para o Areal que muitos ex-escravos


se dirigiram, juntando-se aos demais e fazendo com que ele se
transformasse num imenso território habitado, principalmente, por
descendentes de africanos. Assim nos anos 20 e 30, o Areal da Baronesa
era um imenso território negro existente bem no interior de Porto
Alegre, composto por inúmeros cortiços, malocas, ruelas e becos, bem
como por numerosas casas de religião afro-brasileira e sedes de
sociedades beneficentes, recreativas e carnavalescas negras.

Durante minha pesquisa em torno do carnaval de Porto Alegre nos anos


de 1930 e 40 e da construção da identidade negra nesse período, me
deparei com um bloco carnavalesco do Areal, composto por
descendentes de africanos, chamado Piratasdo Riacho. O Riacho ao qual
o bloco se referia era o conhecido Riachinho, que passava em meio ao
Areal da Baronesa e o isolava do resto da cidade. O acesso para o Areal
da Baronesa somente era possível através de pontes precariamente
construídas por seus moradores, que eram vítimas de seguidas
inundações em épocas de chuva. A sede do bloco
carnavalesco Piratas do Riacho ficava bem na beira da praia que se
formava devido ao Riachinho e que se chamava Rua da Margem. Muito
me chamou a atenção uma mensagem que o bloco enviou a um jornal
local no ano de 1936:

O Carnaval na Rua da Margem

Da Comissão de Festejos da Rua da Margem, recebemos ontem a


seguinte nota: Aportará hoje, na Ponte do Riacho, situada na Rua
da Margem esquina Figueira, S. A. Real Ras Goma, chefe da
juzidia embaixada enviada por S. M. Real Hai É. O Seilassié, afim
de presenciar os folguedos dedicados a Momo, que se realizarão
na Rua João Alfredo. A S. C. Piratas do Riacho, promotora do
carnaval nesta importante artéria, resolveu receber
condignamente tão ilustre personagem e sua comitiva...

Certamente não foi à toa que o Piratas do Riacho, ao se referir ao Ras


Tafari, o Hailé Selassié I, o fez de uma forma toda distorcida. Pois o ano
de 1936, além de ser um ano imediatamente posterior a tentativa de
Mussolini invadir a Etiópia, foi o ano anterior a instauração do Estado
Novo no Brasil, a ditadura de base fascista que teve a frente o ditador
Getúlio Vargas. Portanto, posicionar-se abertamente à resistência etíope
ao fascismo italiano poderia não ser bem visto, em meio a uma política
extremamente nacionalista, como a que se apresentava no Brasil
daquele momento. Além do mais, a inversão e duplicidade de sentidos
são também características próprias tanto da cultura carnavalesca,
como da resistência negra que precisa inverter sentidos para
permanecer viva.

Mas esta não foi a única referência à Etiópia e ao Ras Tafari, ou Hailé
Selassié I, que encontrei em minha pesquisa. Em 1948, Seu Lelé, o
primeiro Rei Momo negro de Porto Alegre, morador do Areal da
Baronesa, o qual tive a rica oportunidade de conhecer e entrevistar, ao
dar início aos festejos carnavalescos do Areal iniciava seu discurso da
seguinte forma:

"Povo, povo do meu reinado, é com grande satisfação, não medindo


esforço, nem energia para vir lá da minha Etiópia para abrir o carnaval
aqui no Brasil..."

Em minha pesquisa, muitas outras questões relacionadas a Etiópia


apareceram, fazendo com que eu fosse atrás do significado e da
simbologia associada à Etiópia pelos descendentes de africanos. Muitas
ainda permanecem encobertas, mas o importante é que a Etiópia
ganhou um sentido, pelo menos um entre tantos que ainda aguardam
serem desvendados.

A Etiópia estabelece uma relação com o passado africano, mas não com
qualquer passado. Quem conhece a história do rastafarianismo sabe que
a Etiópia está associada a um passado forte, resistente e libertário.
Assim o Ras Goma e Hai É, o Seilassié, evocados pelo Piratas do Riacho,
estavam associados a um símbolo repleto de significados para os negros
espalhados pelo mundo inteiro: a Etiópia. E não foi por acaso que a
Etiópia apareceu no imaginário de um bloco carnavalesco popular
composto por descendentes de africanos, justamente em um território
carnavalesco negro da cidade, o Areal da Baronesa, sendo esse também
um território de resistência negra e de busca da liberdade desde a
época da escravidão. Da mesma forma, não foi por acaso que como Rei
Momo negro do Areal da Baronesa Seu Lelé utilizou uma
imagem positiva, identificando-se a um Rei Negro vencedor,
representante da resistência do povo africano.

Nesse sentido, ao evocar a Etiópia como um símbolo a ser


compartilhado pela comunidade do Areal, tanto Seu Lelé quanto
os Piratas do Riacho, além de traçarem uma ligação com suas origens
africanas, utilizaram um símbolo que remete à idéia de resistência e
liberdade de todo povo africano e que traz a esperança de liberdade
para os negros do mundo inteiro, sejam eles da Etiópia ou do Areal da
Baronesa.

Fonte: http://massivereggae.fortunecity.com/cultura.htm

Você também pode gostar