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em Gastronomia
Jair Junior Monteiro Solin
Missão
“Promover a educação de qualidade nas
diferentes áreas do conhecimento, forman-
do profissionais cidadãos que contribuam
para o desenvolvimento de uma sociedade
justa e solidária”
DIREÇÃO UNICESUMAR
palavra do reitor
Reitor
Wilson de Matos Silva
Pró-Reitor de EaD
Willian V. K. de Matos Silva
boas-vindas
Diretoria Operacional de Ensino Diretoria de Planejamento de Ensino
Kátia Solange Coelho Fabrício Lazilha
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está conceitos teóricos em situação de realidade, de ma-
iniciando um processo de transformação, pois quando neira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja,
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou pro- estes materiais têm como principal objetivo “provocar
fissional, nos transformamos e, consequentemente, uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta
transformamos também a sociedade na qual estamos forma possibilita o desenvolvimento da autonomia
inseridos. De que forma o fazemos? Criando opor- em busca dos conhecimentos necessários para a sua
tunidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de formação pessoal e profissional.
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
os desafios que surgem no mundo contemporâneo. mento e construção do conhecimento deve ser apenas
O Centro Universitário Cesumar mediante o geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
durante todo este processo, pois conforme Freire seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual
(1996): “Os homens se educam juntos, na transfor- de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, as-
mação do mundo”. sista às aulas ao vivo e participe das discussões. Além
Os materiais produzidos oferecem linguagem disso, lembre-se que existe uma equipe de professores
dialógica e encontram-se integrados à proposta pe- e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dagógica, contribuindo no processo educacional, dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
complementando sua formação profissional, desen- gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
volvendo competências e habilidades, e aplicando segurança sua trajetória acadêmica.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Apresentação do Livro
Professor Especialista
Jair Junior Monteiro Solin
chefs mais inovadores para a época, traçando, assim, uma linha cronológica dos principais
acontecimentos no mundo da gastronomia, que nos ajudarão a compreender os gostos,
as técnicas e as harmonizações comuns no mundo contemporâneo.
Em seguida, ao analisarmos o sistema de criação de um dos restaurantes mais
inovadores e criativos do mundo da gastronomia, poderemos observar algumas das
principais tendências na profissão do gastrólogo. Atualmente, muitos aspirantes a chef
de cozinha não compreendem que saber cozinhar bem é uma parte pequena de um
número expressivo de exigências básicas para se exercer a profissão com excelência. Ser
um bom administrador, talvez, seja o preceito básico para um grande chef.
Entretanto, acima de tudo, é preciso entender a nossa profissão da maneira mais
profunda possível, isso quer dizer que precisamos conhecer a gastronomia por diversos
ângulos: histórico, antropológico, social, físico-químico. Além disso, é preciso entender
de turismo, agricultura, pecuária, estética, enfim, um leque extenso de áreas do co-
nhecimento necessárias para tornar-se um profissional completo. Neste livro, muitos
desses ângulos de estudo serão abordados, afinal ser criativo e inovador dentro de uma
cozinha não é uma tarefa fácil, uma vez que não basta como resultado final um prato
autoral, saboroso e estético, ele também precisa ser viável dentro da realidade de um
restaurante. Isso significa possuir ingredientes sazonais e de fornecedores próximos, que
possam ser estocados por um período significativo, que o mise en place possa ser feito
com antecedência sem prejudicar a qualidade organoléptica dos ingredientes, que haja
um público em potencial para o consumo desse prato, além de diversos outros fatores.
Uma vez que, para criar, é necessário conhecer ao máximo os ingredientes que se
pretende trabalhar, é imprescindível nos apoiarmos em informações valiosas oferecidas
pela gastronomia molecular, tema este da nossa segunda unidade.
Por fim, após entender os mecanismos da criação paralelamente à gastronomia
molecular, trabalharemos com regras básicas na montagem de pratos, engenharia de
cardápio e uma das técnicas mais utilizadas quando se fala em criação gastronômica: a
desconstrução de pratos clássicos.
Espero poder acrescentar o máximo possível de conhecimento e que, ao final da dis-
ciplina, você esteja apto a se tornar um chef criativo e inovador no mercado de trabalho.
Bons estudos!
SUMÁRIO
UNIDADE 1
Conceitualização
15 Evolução Gastronômica: aspectos
históricos e antropológicos
27 Características gerais da
Gastronomia Contemporânea
41 Alimentação e Estética
UNIDADE 2
UNIDADE 3
Viabilizando a Cozinha
de Criação
109 Montagem de Pratos
119 Operacionalizando
Cozinha Autoral
a
Dica do Chef: dicas rápidas para complementar um conceito, detalhar procedimentos e proporcionar
sugestões. Habilidades: elo entre as disciplinas do curso. Mão na massa: indicação de atividade
prática. Fatos e Dados: complementação do conteúdo com informações relevantes ou acontecimentos.
Minicaso: aplicação prática do conteúdo. Reflita: informações relevantes que proporcionam a reflexão de
determinado conteúdo. . Recapitulando: síntese de determinado conteúdo, abordando principais conceitos.
Saiba mais: Informações adicionais ao conteúdo.
Conceitualização
JAIR JUNIOR MONTEIRO SOLIN
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
Objetivos de Aprendizagem
• Compreender os momentos mais criativos e inovadores dentro da his-
tória da gastronomia.
• Detectar quem são os principais chefs da atualidade com um trabalho
mais autoral.
• Estreitar a relação entre a gastronomia e a cultura.
13
Introdução
Olá, caro(a) aluno(a)! Bem-vindo à nossa primeira unidade.
Quando pensamos no que é necessário para criar um prato, as respostas mais óbvias são:
bons ingredientes, utensílios e equipamentos, um cozinheiro com capacitação técnica para tal e
alguém que aceite se aventurar em uma nova experiência gustativa. Entretanto, não é tão fácil
quanto parece. Primeiramente, possuir uma bagagem cultural é fundamental, isso significa estar
sempre em dia com as principais literaturas gastronômicas, viajar e treinar, ao máximo, todas as
técnicas disponíveis. Alguns chefs, no momento da criação, não apenas estão munidos de todas
essas informações, como também optam por projetar os próprios equipamentos, com o intuito de
um resultado ainda mais sofisticado e inusitado. É o caso do restaurante espanhol El Celler, dos
irmãos Roca, que possui uma cozinha extremamente criativa, onde os profissionais partem do
pressuposto de que devem explorar o ingrediente ao máximo e extrair dele a sua essência, para
só então pensar qual o método de cocção, quais os cortes e quais as harmonizações possíveis.
Porém, antes de tomarmos os irmãos Roca como arquétipo de uma cozinha criativa, precisa-
mos voltar um pouco na história e entender como ocorreu o desenvolvimento da gastronomia até
chegar ao que conhecemos hoje. Passaremos pelos mais tradicionais chefs franceses e chegaremos
ao slow food, movimento que veio para romper com a hegemonia dos fast foods e nos trazer
muitas informações sobre como manter uma cozinha sustentável e criativa ao mesmo tempo.
É justamente por toda a preocupação social, estética e cultural acerca da alimentação, que
muitos restaurantes oferecem preparos que alcançam o status de uma obra de arte, tamanha a sua
carga cultural, artística e sensorial. Este, portanto, será o tema do último módulo desta unidade.
Bons estudos!
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 15
Evolução Gastronômica:
aspectos históricos
e antropológicos
Na Revolução Francesa, inúmeros cozinheiros O que podemos pensar é: “mas isso não é nada
que trabalhavam nas grandes mansões presi- inovador”, entretanto, para os hábitos estabe-
denciais ficaram sem emprego. Alguns abriram lecidos da época, tratava-se de uma revolução.
seus próprios restaurantes e este é o caso de Freixa e Chaves (2012) nos ajudam a entender
Antonine Beuvilliers (1754-1817). Outros se a importância de Carême por meio dos molhos.
dedicaram a serviços domésticos, como, por Muitas dessas bases que utilizamos hoje foram
exemplo, Antonin Carême (1783-1833), o mais reunidas e aperfeiçoadas por Carême, que clas-
notório chef desse período histórico. Podemos sificou como clássicos quatro tipos de molhos:
afirmar, inclusive, que a alta gastronomia que bechamel, velouté (base do bechamel, entretan-
conhecemos hoje começou a ser estruturada to com a substituição do leite por um caldo de
com Carême. Entre as suas principais inovações vitela), o alemão (manteiga, farinha, ovo e vina-
está a simplificação das receitas e o incentivo à gre de vinho) e o espanhol (manteiga, farinha,
maior exploração do reino vegetal, exaltando o caldo de carne e purê de tomate). É interessante
seu frescor dentro da cozinha. De acordo com notar que a união desses molhos possui, desde
Drouard (2009), Carême livrou-se também de o início, um forte apelo criativo, uma vez que a
muitos hábitos comuns nas cozinhas da época, articulação deles em um único preparo poderia
como temperos excessivos, optando por condi- originar dezenas de outros sabores. Percebemos,
mentos que, atualmente, fazem parte da nossa assim, que a versatilidade e a criatividade são
rotina gustativa, como, por exemplo, sal, pimen- duas qualidades que não se dissociam.
ta, tomilho, louro e salsinha. Embora iremos tratar da apresentação de
pratos ao final deste livro, sobre Carême é im-
prescindível tomarmos nota da sua importân-
cia na finalização de preparos gastronômicos.
Por considerar que o cozinheiro era mais do
que alguém que cortava e reunia ingredientes,
Carême deu ao profissional o status de artista,
cuja a criação e a invenção estavam intrinseca-
mente ligadas ao trabalho do chef. Tal cuidado
com a apresentação veio da sua forte influência
da confeitaria. Carême poderia facilmente ser
comparado a um arquiteto, uma vez que criava
verdadeiras engenharias de açúcar.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 17
Outro momento importante da história da gas- nouvelle cuisine que vamos encontrar os precei-
tronomia aconteceu com o chef Fernand Point, tos básicos da cozinha de criação, justamente por
também francês, nascido em 1897. Seguindo ser um manifesto que preconizava uma cozinha
a linha de pensamento de Escoffier, sua pro- inventiva, sem proibições, procurando a exalta-
posta era embasada no uso de ingredientes ção da leveza e a repulsão ao virtuosismo. Essa
frescos. Para fazer jus a esse frescor, os pratos cozinha visa estimular uma “fecundação cru-
deveriam ser preparados o mais próximo do zada” de sabores e temperos, abrindo caminho
momento do consumo. Podemos observar, em para a culinária global e a fusion cuisine de hoje
Point, uma característica que hoje também é (cozinha de fusão: vários países em um mesmo
bastante comum: a valorização das cozinhas preparo). Priorizava-se molhos leves e edifican-
regionais. Tal valorização da regionalidade vai tes, que possuíssem uma harmonização entre
despontar de maneira ainda mais moderna na si, bem como a proeminência sobre a cultura
cozinha de Paul Bocuse (1926), um dos precur- de outros países (DROUARD, 2009). Devemos
sores da nouvelle cuisine. Esse movimento foi de pensar, entretanto, que esse movimento surgiu
extrema importância para o desenvolvimento no ápice da sociedade de consumo, que teve a
da gastronomia como conhecemos hoje. É na sua decadência em 1986. As cozinhas sofriam
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 19
Temos então, com a nouvelle cuisine e o seu pensamento na qualidade e no frescor dos ingredientes,
a chave para começar a compreender a gastronomia contemporânea.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 21
Para finalizar, se quisermos delimitar uma citar o restaurante Comerç 24, em Barcelona,
região de produções criativas e inovadoras, que oferece preparos como um “algodão-doce”
a Catalunha, na Espanha, certamente ganha temperado com anchova, manjericão e tomate,
destaque neste mapa de tendências gastronô- bem como o El Bulli, projeto de Ferran Adrià que
micas. Trabalhos que valorizam a intensidade desconstruiu inúmeros pratos, transformando
dos sabores e combinações bastante inusita- ingredientes em espumas, pós e cremes gelados.
das, com estilo lúdico, global e eclético fazem Ou seja, uma cozinha extremamente criativa,
parte da realidade desta comunidade hispânica. de vanguarda e conceitual (FREEDMAN, 2009).
Surge, portanto, a valorização das manipulações É, justamente sobre Adrià, que discutiremos
e transformações do alimento, mais do que a no segundo capítulo deste livro, expondo seus
matéria-prima em si. Como exemplo, podemos métodos de criação de pratos.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 25
CHEFS CONTEMPORÂNEOS!
Fonte: o autor
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 27
Características gerais da
Gastronomia
Contemporânea
C
omo observamos no módulo ante-
rior, tivemos momentos bastante
diferentes um do outro dentro da
história, cada qual com a sua con-
tribuição. Uns aperfeiçoaram as técnicas clás-
sicas do passado, outros nos mostraram que
“menos é mais” (apontando uma tendência ao
minimalismo), assim como também tivemos
movimentos de vanguarda e os que buscaram
aproximar o homem moderno da cadeia geral
de produção. O objetivo foi mostrar que os in-
gredientes não nascem das gôndolas do super-
mercado, que há inúmeras pessoas envolvidas
no processo de produção e que, justamente
por isso, é primordial manter o respeito pelo
produto final, a matéria-prima. Esse talvez seja
um dos conceitos mais discutidos pelos chefs
contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros.
Vivemos atualmente um momento de tran-
sição alimentar, em que muitos conceitos ne-
cessitam ser revistos. Isso porque, como alerta
incessantemente a Organização das Nações
Unidas (ONU), caminhamos para uma escas-
sez alimentar. Diante de tantos problemas na
produção de alimentos e na exploração irracio-
nal dos insumos, o cozinheiro contemporâneo
ganhou uma nova função dentro da socieda-
de: além de todas as características básicas
em termos de instrumentação e técnica, ele
precisa encontrar a melhor forma de articular
os ingredientes disponíveis, possibilitando a
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 29
A relação do homem com o alimento seu melhor momento, e utilizá-lo na sua tota-
precisa ser revista. Precisamos aproxi- lidade, evitando disperdícios. Justamente por
mar o sabor do comer, o comer do cozi- essa preocupação com a sazonalidade, muitos
nhar, o cozinhar do produzir, o produzir
restaurantes trabalham também com menus
da natureza; agir em toda a cadeia de
valor, com o propósito de fortalecer os e cardápios sazonais. A lógica é simples: se eu
territórios a partir da sua biodiversidade, não posso ter um ingrediente explorado de
agrodiversidade e sociobiodiversidade,
maneira racional e responsável o ano todo, ob-
para garantir alimento bom para todos
e para o ambiente (INSTITUTO ATÁ, viamente não poderei oferecer o mesmo prato
2015, online). sempre. Seguir o tempo da natureza, ou seja,
alternância das estações força uma renovação
Podemos estreitar ainda mais a nossa dis- da alimentação. Isso, para realidade de um ser-
cussão, limitando-a as frutas e legumes, por viço gastronômico, está intrinsecamente ligado
exemplo. De acordo com Beardsworth (2010), à criatividade.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Não é de se espantar que muitos chefs têm in- primordialmente, uma cozinha com uma iden-
cluído em seus preparos alguns tipos de insetos, tidade bem definida, uma assinatura, um estilo.
como a formiga saúva. De fato, consumir uma Justamente por isso a criatividade e a inovação
formiga não irá mudar a precariedade do abas- são atitudes delicadas dentro do ambiente de
tecimento de alimentos no mundo, entretanto, trabalho, pois demandam conhecimento téc-
tal atitude provoca uma reflexão no comensal. nico, bagagem cultural e sensibilidade. Todos
Exploramos, aqui, um segundo elemento implí- esses fatores necessitam estar evidenciados de
cito na gastronomia contemporânea: a comu- forma clara no resultado final do prato: sua apre-
nicação e a inter-relação das linguagens dentro sentação, seu conceito e seu sabor. Sobre sabor,
da cozinha. Isso quer dizer que um prato pode Pollan (2014, p. 393) diz que “é a experiência
perfeitamente provocar um diálogo com quem infinitamente mais complexa de uma comida
está se alimentando, sem utilizar da palavra. que oferece a inconfundível assinatura do indi-
Isso se torna mais claro quando o cozinheiro víduo que a fez - o cuidado, o pensamento e a
possui a sua personalidade e, consequentemen- peculiaridade que aquela pessoa colocou na obra
te, o seu conceito bem definidos. Entendemos, que preparou”. Dessa forma, podemos definir a
dessa forma, que uma cozinha criativa é, gastronomia contemporânea como uma cozinha
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 31
flexível, multirracial e multicultural, uma vez Aqui, façamos uma pausa para entender melhor
que se procura harmonizar sempre a origem o que essa palavra “conceito” tem a nos dizer no
(o passado, o clássico, o regional) com a expe- universo da gastronomia. A compreensão desse
rimentação e a intensa troca de informações termo é fundamental para conseguirmos definir
possibilitadas pelo mundo globalizado. a cozinha contemporânea. Basicamente, enten-
demos por conceito o ato de contextualizar, ou
O restaurante, como nós o conhecemos
hoje, representa a tradução de um culto seja, dar um sentido a determinado prato. Dessa
de sensibilidade setentista no sentido forma, procura-se definir tudo o que há por trás
do paladar oitocentista: a mudança do do preparo, se ele faz referências às influências
valor social de uma época no adorno cul-
tural de outra. A substituição do caldo
de algum grupo étnico; se ele busca articular
pela prodigalidade foi quase inevitável. ingredientes regionais que estão desaparecendo;
(SPANG, 2003, p. 13) se ele faz referências aos modos de preparos
tradicionais, porém utilizando de técnicas mais
modernas; se busca movimentar a economia
local ou ser objeto de resistência à padronização
imposta pela indústria e a cultura de massa; as
sensações incitadas pelo uso de determinados
ingredientes etc. Em síntese, a contemporanei-
dade busca uma unidade, visando suplantar
barreiras de linguagem para criar uma situação
multissensorial, universal, única e inesquecível:
além da nutrição, uma experiência.
sistemas são portadores. Exatamente Agora que entendemos um pouco mais das
como a linguagem, a cozinha contém características gerais da gastronomia contem-
e expressa a cultura de quem pratica, é
porânea, vamos utilizar de um dos mais revo-
depositária das tradições e das identi-
dades de grupo. Constitui, assim, um lucionários restaurantes da atualidade como
extraordinário veículo de autorrepre- arquétipo de uma cozinha criativa e inovadora.
sentação e de comunicação: não apenas
Trata-se do El Celler de Can Roca, restaurante
é instrumento de identidade cultural,
mas talvez seja o primeiro modo para cujos trabalhos já duram mais de 25 anos e tem
entrar em contato com culturas diver- à frente os irmãos Joan, Josep e Jordi Roca.
sas, já que consumir o alimento alheio No ano de 2013, a revista inglesa Restaurant
parece mais fácil - mesmo que apenas
considerou El Celler o melhor restaurante do
na aparência - do que decodificar-lhe
a língua. Bem mais do que a palavra, a mundo, coisa que os irmãos jamais poderiam
comida auxilia na intermediação entre imaginar, uma vez que o trabalho iniciou-se de
culturas diferentes, abrindo os sistemas
forma bastante humilde e simplória na cidade
culinários a todas as formas de inven-
ções, cruzamentos e contaminações. de Girona, na Catalunha.
(MONTANARI, 2009, p. 11) Três palavras compõe o conceito deste
restaurante e serão discutidas ao longo deste
módulo: transversalidade, ousadia e liberda-
de. “Transforma vinho em doces, literatura em
pratos, dá concretude ao perfume, captura a
alma, sem perder o senso de humor - presen-
te, por exemplo, na sobremesa Gol de Messi”
(ROCA, 2014, p. 3).
A proposta deste restaurante é, na verda-
de, uma síntese de tudo o que estudamos até
agora sobre a gastronomia contemporânea, ou
seja, os pratos buscam explorar os sentidos, as
emoções, dando ao cliente mais do que uma
refeição, mas sim uma experiência por meio do
paladar. Isso só é possível por meio de uma in-
terpretação objetiva dos avanços da tecnologia,
informação, ciência e comunicação. Juntamente
com os conhecimentos da física e da biologia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 33
(estudos que nos aprofundaremos no próximo no primeiro módulo, é então substituída pela
capítulo), torna-se viável a exploração da ma- cozinha tecnoemocional (que brinca com todos
téria-prima na sua totalidade, dando origem os sentidos do ser humano, ativando memórias
a pratos inusitados. A nouvelle cuisine, citada afetivas e coletivas).
A cozinha que propomos abre-se em várias vertentes, para mostrar colorido, tempo-
ralidade, consciência, ciência, ousadia e agricultura social, além de revelar uma origem
geoclimatológica concreta, porém sem deixar de refletir a mestiçagem oriunda de
gerações passadas e de lugares longínquos. [...] Ao nosso ver, a cozinha do futuro
oscilará entre a tendência produtivista e a elaboracionista, como sempre ocorreu na
história da gastronomia. (ROCA, 2014, p. 17)
No âmbito da pesquisa dos irmãos Roca, fica resultados tão específicos, testes são executados
evidente o uso de ingredientes ou métodos de rotineiramente, acompanhados, claro, de êxitos
preparo que incitem sensações. Eles procuram e fracassos. Esta, provavelmente, seja uma das
criar pratos que resgatem memórias da infân- características mais imprescindíveis para o pro-
cia, por exemplo, aromas que despertam lem- fissional da cozinha autoral: saber lidar com as
branças subjetivas. Obviamente, para alcançar experiências e seus possíveis insucessos.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Nas tentativas de concepção de uma cozinha Na estética final do prato, a impressão é que
inventiva, os chefs perceberam a necessidade o comensal tem a sua frente um canteiro em
de mecanismos que auxiliassem por meio da que brincava quando era criança: o mousse e
tecnologia a exploração dos ingredientes. É a bolacha de cacau resultam em uma idêntica
o caso de aparelhos específicos como o rota- textura e aparência de terra, somada à essência
val (um destilador que permite concentrar extraída por meio do rotaval que emite aromas
a essência aromática de ingredientes que de campo e ao colorido das folhas de beter-
tenham uma certa umidade). Com o rotaval, raba e com laranja supreme (ROCA, 2014, p.
foi possível, por exemplo, criar um prato bas- 292-293).
tante ousado, intitulado “Terra D’Hermès”, Na cozinha, uma ideia que nos seduz é
composto de sorvete de patchuli, mousse de a de “comer a paisagem”, paisagem que
chocolate ao leite, biscoito de cacau, destilado deu caráter e essência a nosso povo e
que, de maneira natural, está presente
de terra, ar de chá de jasmim e finalizado com
em nossos fogões e em nossas mesas. A
gomos de laranja, folhas de beterraba, folhas cozinha tradicional incorpora a paisagem
de shiso roxo e raspas de casca de grapefruit. a partir da história local, das raízes, das
transmissões do receituário de geração
em geração e dos hábitos alimentares do
passado. (ROCA, 2014, p. 183)
no resultado final, oferecer um prato no qual tentar diminuir os vícios do paladar contem-
haja coerência entre os tons, tornando-o ainda porâneo em consumir sempre os mesmos sa-
mais estético. “As cores se convertem em um bores e texturas, propondo associações antes
elemento de escolha culinária a partir de com- impensadas. É nesse âmbito em que o salgado
binações evocativas. Despertam associações pode estar presente na sobremesa e o doce ser o
psicológicas em razão da afinidade cromática protagonista de um prato principal. Seguimos,
dos ingredientes” (ROCA, 2014, p. 230). Como aqui, o conceito proposto pela nouvelle cuisine
exemplos, temos o cromatismo vermelho que de que tudo é possível. Entretanto, logicamente,
provoca excitação, euforia, energia e agressivida- para a criação de um prato cujos elementos de
de (nessa categoria entram o hibisco, morango- composição não se isolem uns dos outros, é
-silvestre, framboesa etc.); cromatismo branco, necessário, primeiramente, conhecer o ingre-
que sugere pureza (perfumes ou destilados de diente química e fisicamente; segundo, domi-
cacau, anis); cromatismo laranja, de evocação nar todas as técnicas de cocção e corte; e, por
outonal (laranja, gema, cenoura) e o cromatismo fim, ter um paladar aguçado para perceber com
verde, uma versão mais relaxante (ervas frescas sensibilidade se a união daqueles elementos
em geral). Este último fica bem evidente no deu certo ou não. Mais do que isso: esse prato
preparo “Salada Verde”, composta de sementes é comercialmente viável dentro da minha rea-
de tomate kumato, minipepino, gel de limão lidade gastronômica?
(feito com o espessante ágar-ágar), creme de Pessoas do mundo inteiro atravessam ocea-
abacate, sorbet de azeitonas verdes, candies de nos para jantar no Celler de Can Roca, aguardam
Chartreuse, suco de casca de pepino, finaliza- meses em uma longa lista de espera, pagam cen-
da com brotos de rúcula e de agrião, folhas de tenas de euros por um único jantar e, portanto,
pimpinela e azeite de oliva extra-virgem (ROCA, vão preparadas para uma experiência bastante
2014, p. 232-233). incomum do que a rotina condicionou o nosso
O que podemos observar, tomando como paladar. Cada restaurante tem a sua proposta:
exemplos alguns preparos do restaurante dos pode-se oferecer simplesmente uma comida re-
irmãos Roca, são as possibilidades infinitas de gional ou se trabalhar com sabores nunca antes
diálogos de ingredientes dentro de um mesmo sentidos, descobertos por meio de uma árdua
prato, ou seja, produtos que dificilmente se har- experimentação. O que é claro, e sinal de sucesso
monizariam in natura, após inúmeros processos em ambos os empreendimentos gastronômi-
culinários, tornam-se gustativamente coerentes cos, é a relação de proximidade com o cliente.
e, acima de tudo, atrativos. É uma forma de Atualmente, os grandes restaurantes preparam
Criatividade e Inovação em Gastronomia
• purê de caqui (o fruto é processado e lados da louça é disposta uma pequena que-
levado ao fogo com ágar-ágar, um geli- nelle de purê de marmelo e, do lado oposto,
ficante que suporta altas temperaturas, os alvéolos de tangerina. Aleatoriamente são
depois é coado e resfriado rapidamen- dispostos pontos de purê de caqui e gotas do
te em um abatedor de temperatura. suco de abóbora. Após aerar o ar de terra,
Uma vez solidificada a preparação, é ele é depositado em uma das extremidades
triturada com um mixer e reservada do prato, juntamente com a lâmina de maçã
em bisnagas). enrolada sobre si mesma. Finaliza-se com uma
• ar de terra (na verdade, trata-se de uma quenelle de sorbet de caqui (ROCA, 2014, p.
espuma feita com destilado de terra e 194-195).
lecitina de soja com auxílio de um mixer.
A lecitina ajuda a sustentar a estrutura
da espuma).
• sorbet de caqui; purê de batata doce
cozida na brasa.
• maçã laminada e embalada a vácuo com Dentro de qualquer preparo gastronô-
calda de açúcar, e mico cuja composição leva vários ele-
• cogumelos chanterelle cortados em mentos, sejam eles vegetais, animais ou
especiarias, é importante trabalhar esses
quatro.
sabores de forma linear no paladar. Ou
seja, se ao levar o preparo à boca todos
Na finalização, traça-se no centro do prato os ingredientes se anunciarem de uma
só vez, as chances do sabor ser indefini-
uma linha de purê de batata-doce, sobre ela
do e “sujo” são muito grandes. O ideal é
são colocados os bastões de pés de boletus, que, ao comer, os sabores e as nuances
cobrindo com areia, uma após a outra: areia de gustativas apareçam gradativamente,
sementes, de nozes e de cogumelos. Depois, seguindo uma ordem pré-estabelecida
pelo chef no momento do planejamento
sobre a última areia, são dispostas aleatoria-
dos ingredientes - temperos e métodos
mente duas sementes de abóboras infladas e de cozimento - e pela forma sequencial
os cogumelos frescos e golden. Nos extremos como o preparo foi apresentado na sua
finalização.
da montagem são colocadas as raízes de boli-
nho fritas. No meio da areia são espetadas as Fonte: o autor
Alimentação
& Estética
Isto é, nos perguntarmos: O que queremos educação” adotado pelo sistema carcerário.
causar com esse prato? O que ele realmente Fonte: Setti (2014, online).
S
egundo Perullo (2013), esse cuidado A intensidade do sabor e da acidez - pro-
em pensar a alimentação como esté- priedades não estéticas, posto que são
expressões quantitativas e de substâncias
tica não tem relação com um status
mensuráveis - estão estreitamente cone-
financeiro, estilo de vida ou definição xas a determinadas propriedades estéti-
de uma cozinha elitista e burguesa, tampou- cas [confronto de perspectivas], como,
co em acreditar nos “[...] fetichismos alimen- por exemplo, o equilíbrio, a elegância e o
tares ou em pedantismos fundamentalistas, fascínio (PERULO, 2013, p. 85).
Perullo (2013, p. 39) nos coloca uma questão Isso tudo se torna plausível quando refletimos
importante para iniciarmos nossa discussão o grau de intimidade que envolve o ato de se
sobre a gastronomia e a arte: “a gastronomia alimentar: é, acima de tudo, incorporar cultura
poderia ser a arte do século XXI assim como o (FISCHLER, MASSON, 2010).
cinema foi a arte do século XX?”. Ao abordarmos Neste ponto, é notável como a socie-
todas as linhas de pensamento que propõem dade atual está disposta a conceder ao
que o restaurante seja um espaço onde diver- cozinheiro o velho status de artista. Não
mais aquele artista que se liga ao arte-
sas linguagens sejam articuladas, notamos que
sanato, isto é, ao conjunto de técnicas
a decoração é mais do que uma ambientação transmitidas de forma pessoal através
agradável, é um cenário. A música, a iluminação, dos tempos, mas ao criador que trans-
cende esse terreno cristalino do trabalho
os aromas do ambiente, e, às vezes, até mesmo
manual, situando-se no campo dos que
projeções audiovisuais, tornam esse espaço um estão “antenados” com as tendências
campo de trocas imagéticas, um conceito bem mais profundas da cultura. (DÓRIA,
diferente da ideia de restaurante na sua gênese, 2009, p. 232)
considerações finais
D
efinir os contornos da gastronomia atual e traçar projeções sobre as tendências
a ela inerentes não é uma tarefa fácil. Ao passo que temos a valorização da
regionalidade e, portanto, de uma cozinha de origem, observamos a evolução
das técnicas e a flexibilização das possibilidades de releitura. Isso significa que
temos como desafio profissional entender que o ingrediente é o grande protagonista da
cozinha, porém ele não é apenas produto alimentício, mas está inserido em uma rede
de significados.
Nos mais variados exemplos de restaurantes, seja na Osteria Francescana de Massimo
Bottura, na Itália, ou no Maní Manioca de Helena Rizo e Daniel Redondo, no Rio de
Janeiro, o que observamos como ponto em comum é que, quanto melhor e mais profun-
damente trabalhamos nossas origens, mais universal é a nossa linguagem e, portanto,
a um maior público poderemos nos dirigir. Tudo isso acompanhado de uma otimização
quase que obsessiva das técnicas vigentes.
Dessa forma, embora a gastronomia contemporânea seja definida por uma cozinha
inventiva e, às vezes, até mesmo paradoxal, devemos encará-la no seu sentido primário:
é, acima de tudo, a cozinha do agora. Uma cozinha que define a sua proposta, detecta
as suas possibilidades e adequa suas técnicas da maneira mais pragmática possível,
apoiando-se em novas tecnologias. Busca, assim, ser sustentável e criativa ao mesmo
tempo, estreitando cada vez mais os vínculos com a biodiversidade e mantendo diálogos
constantes na comunidade em que está inserida.
Por fim, entendemos que o meio esboça e transforma uma cozinha, assim como
uma cozinha também pode transformar seu meio, optando pela utilização de ingre-
dientes nativos da sua região, movimentando a economia local e aplicando ao menu
um conceito que veio se fundamentando ao longo da história: respeitar o ingrediente
é compreender seu papel social, político, ecológico e cultural dentro de uma sociedade.
Essa visão holística da cozinha é, certamente, uma das chaves para abrir as portas do
futuro da gastronomia.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
A Fisiologia do Gosto
Ora, como até hoje não se apresentou nenhuma circunstância em que um sabor devesse
ser apreciado com rigorosa exatidão, tivemos que nos contentar com um pequeno número de
expressões gerais, tais como doce, açucarado, ácido, amargo e outras semelhantes, que se expri-
mem, em última análise, pelas duas seguintes: agradável ou desagradável ao gosto, suficientes
para nos fazermos entender e para indicarmos aproximadamente a propriedade gustativa do
corpo sápido em questão.
Os que vierem depois de nós saberão mais a respeito disso; e não há dúvida de que a química
lhes revelará as aulas ou os elementos primitivos dos sabores” (p. 45).
[...]
“[...] tenho como certeza que o gosto propicia sentimentos de três ordens diferentes, a saber:
a sensação direta, a sensação completa e a sensação refletida.
A sensação direta é aquela primeira impressão que nasce do trabalho imediato dos órgãos
da boca, enquanto o corpo apreciável se acha ainda na parte anterior da língua.
A sensação completa é a que se compõe dessa primeira impressão e daquela que nasce
quando o alimento abandona sua primeira posição, passa para o fundo da boca, impregnando
todo o órgão com seu gosto e seu perfume.
Enfim, a sensação refletida é o julgamento feito pela aula sobre as impressões que o órgão
lhe transmite” (p. 47).
Savarin questionava, há mais de 300 anos, o que seriam alguns dos preceitos básicos da
gastronomia molecular, esta que nos servirá de alicerce para esquematizarmos a cozinha
de criação ou cozinha criativa na próxima unidade.
FONTE: SAVARIN, Brillat. A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
atividades de estudo
material complementar
COZINHA A NU - UMA VISÃO RENOVADORA DO
MUNDO DA GASTRONOMIA
Santi Santamaria
Editora: Senac
Sinopse: o autor apresenta um livro atípico e sugestivo, sem
receitas mágicas, mas salpicado de recordações e referên-
cias pessoais e profissionais, escrito à margem das modas
imperantes e contra a cozinha-espetáculo. Santi Santamaria,
alguém que passou a vida toda entre fogões e que, acima de
tudo, ama a cozinha mediterrânea, pretende aqui estimular
o diálogo, abrir um debate público sobre o futuro da nossa
gastronomia e agitar as consciências de uma cidadania anes-
tesiada que, na sua opinião, em muitos casos parece ter renunciado à
qualidade e ao gosto pela comida.
Editora: Senac
Sinopse: durante mais de três anos de conversa, reflexão e
pesquisa, Alex Atala e Carlos Alberto Dória, – dois experts
da gastronomia em campos distintos, fermentaram o projeto
de um livro de cozinha sem receitas, listas de ingredientes
definidos ou modos de preparo preestabelecidos. Maturaram
as ideias, temperaram o texto, esmeraram-se na apresenta-
ção. O resultado é este livro.
Os autores revisitam o conhecimento clássico da culinária estabelecido
nos últimos séculos e apresentam as novas técnicas desenvolvidas pelas
indústrias do setor e pelas universidades: uma verdadeira revolução
tecnológica que possibilita o cozimento a baixas temperaturas ou a
vácuo, a confecção de sorvetes sem o tradicional resfriamento progres-
sivo em movimento e o preparo de mousses e emulsões de maneiras
completamente diferentes, entre outras inovações.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
material complementar
<https://www.youtube.com/watch?v=lSzI_7lZ0Pcr>
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 53
referências
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Moderna, 2013.
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tânicos. In: FISCHLER, C.; MASSON, E. Comer – A alimentação de franceses, outros europeus e
americanos. São Paulo: Senac, 2010. p.149-168.
CARPENTER, H. SANDISON, T. Fusion food cookbook. New York: Artisan, 1994.
DÓRIA, C. A. Estrelas no céu da boca: escritos sobre culinária e gastronomia. São Paulo: Senac, 2006.
_____. A culinária materialista: construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São
Paulo: Senac, 2009.
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FREEDMAN, P. A história do sabor. São Paulo: Senac, 2009. p. 263-299.
FISCHLER, C.; MASSON, Estelle. Comer – A alimentação de franceses, outros europeus e ameri-
canos. São Paulo: Senac, 2010.
FREIXAS, D.; CHAVES, G. Gastronomia no Brasil e no mundo. São Paulo: Senac, 2012.
FREEDMAN, P. Introdução: uma nova história da culinária. In: _____. A história do sabor. São
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GAGNAIRE, P.; THIS, H. Cozinha: uma questão de amor, arte e técnica. São Paulo: Senac, 2010.
GASTRONOMIA pode ser incluída nos incentivos da Lei Rouanet. Câmara dos Deputados. Disponível
em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/EDUCACAO-E-CULTURA/472050-
GASTRONOMIA-PODE-SER-INCLUIDA-NOS-INCENTIVOS-DA-LEI-ROUANET.html>. Acesso
em: 12 dez. 2015.
INSTITUTO ATÁ. Manifesto. Disponível em: <http://www.institutoata.org.br/pt-br/manifesto.
php#portugues>. Acesso em: 11 dez. 2015.
MONTANARI, M. O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: Senac, 2009.
MCGEE, H. Comida e cozinha: ciência e cultura da culinária. 2. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2014.
PERULLO, N. O Gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento. São Paulo:
SESI-SP, 2013.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
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SPANG, R. A invenção do restaurante: Paris e a moderna cultura gastronômica. Rio de Janeiro:
Record, 2003.
SETTI, R. Na cadeia americana uma comida que serve de castigo por mau comportamento: saibam
por quê. Veja online. Disponível em:<http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/nutraloaf/>.
Acesso em: 12 dez. 2015.
A Prática da Criação / Inovação
JAIR JUNIOR MONTEIRO SOLIN
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
Objetivos de Aprendizagem
• Compreender a função dos conhecimentos propostos pela
Gastronomia Molecular para a construção de uma cozinha
criativa e inovadora.
• Estabelecer métodos e esquematizações que auxiliem no processo
criativo.
• Conhecer a fundo os ingredientes brasileiros e a importância de
uma gastronomia que incentiva o uso racional dos mesmos.
57
Introdução
Olá, caro(a) aluno(a), bem vindo a mais uma unidade de estudo. Antes de começarmos esta nova
fase de estudos, precisamos, primeiramente, nos libertar de alguns preconceitos estabelecidos
sobre a gastronomia molecular e porque a estudaremos neste módulo. Gelo seco, nitrogênio
líquido, cápsulas de óxido nitroso são alguns dos “clichês” estabelecidos ao longo do desenvol-
vimento desta cozinha. Porém, como em toda área do conhecimento ou em toda profissão, não
podemos definir uma atividade por meio dos seus modismos. Obviamente, iremos conhecê-los
e discutir a função de cada um, entretanto, antes convido vocês a compreenderem um pouco a
essência dessa gastronomia tão abordada atualmente.
No primeiro tópico desta unidade iremos, além de estudar os conceitos propostos pela
gastronomia molecular, aprofundar os conhecimentos físico-químicos dos ingredientes como
uma forma de capacitar o profissional nas várias articulações culinárias dentro do processo
criativo. Também serão apresentados alguns compostos químicos e aparelhos específicos usuais
na gastronomia de vanguarda.
No segundo módulo utilizaremos da sequência criativa do aclamado chef catalão, Ferran
Adriá, e do estudo da justaposição dos sabores com o intuito de formularmos uma “metodo-
logia da criação”, elaborando fluxogramas que concatenem as informações necessárias para a
execução de uma cozinha autoral.
Por fim, serão explanados quais são os principais desafios de um profissional da gastrono-
mia dentro do atual cenário brasileiro, abordando questões como, por exemplo, a existência de
um possível terroir nacional e de que forma tais ingredientes autóctones (nativos) - quando
explorados de forma racional - podem servir de base para a criação de preparos gastronômicos
em uma cozinha sustentável e contemporânea.
Então vamos lá? Boa leitura!
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 59
Bases da
Gastronomia Molecular
U
m exemplo claro desta extração tostados em uma chapa com óleo de canola.
controlada e precisa de sabor pode Também nessa embalagem são colocados grãos
ser observado no prato “Quiabo, de pimenta-do-reino, tomilho, alecrim e água.
Quiabo, Quiabo”, do chef brasilei- Em seguida, após o fechamento a vácuo, a
ro Alex Atala. O prato é servido com um caldo embalagem é colocada no equipamento sou-
de legumes tostados. Para fazer esse caldo ini- s-vide, a 60° por 3 horas. Todos os vegetais e
cialmente leva-se ao forno (180°, 30min) uma ervas são descartados (uma vez que perderam
cabeça de alho embrulhada em papel alumí- sabor) e o caldo é coado (ATALA, 2013, p.152).
nio. Em seguida ela é cortada ao meio e co- O que ocorre é que as moléculas sápidas e aro-
locada dentro de um saco para embalagem à máticas nesta cocção são transferidas para a
vácuo, juntamente com pimentões vermelho, água, formando assim um caldo extremamente
amarelo, verde, tomate, cebola e quiabo, todos saboroso.
ALONGANDO SABORES
Fonte: o autor
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 63
Este é apenas um exemplo de uma vasta litera- como componentes líquidos podem adquirir uma
tura gastronômica que nos mostra centenas de consistência quase sólida? Vamos considerar que
possibilidades por meio de um mesmo ingre- a gema do ovo é constituída metade por água,
diente, ou de um só método de cocção. Os co- possuindo também proteínas e fosfolipídios. O
nhecimentos científicos nos ajudam a orquestrar vinagre tem 94% de água, além do ácido acético e
esses ingredientes e a elaborar uma receita que de componentes que formam o seu gosto caracte-
seja concisa e funcional. Atualmente, justamente rístico. Já o óleo, como sabemos, possui moléculas
pela ausência dessas informações em contrapar- que não se dissolvem em água. Para que haja a
tida à glamourização da profissão, um número incorporação, utiliza-se energia mecânica, assim, a
expressivo de receitas, sejam elas virtuais ou do gota de óleo é subdividida em gotículas que serão
mercado editorial, não dão certo. Mas de quem envolvidas pelas proteínas do ovo. Mas porque, no
é a culpa? Cozinheiros com capacitação técnica momento de fazer uma emulsão, devemos jogar
e que fizeram bom uso dos conhecimentos for- o óleo em fio? “O objetivo é dispersar o óleo na
necidos pela gastronomia molecular, certamente água, e não o inverso” (THIS, MONCHICOURT,
saberão, apenas na leitura de uma receita, que a 2009, p.68). Procuramos na maionese um molho
mesma é tecnicamente inviável ou que, com de- estável, se jogamos a água no óleo a emulsão seria
terminadas quantidades e métodos, o resultado instável. Da mesma forma também, quanto mais
final não será o mesmo proposto inicialmente. se bate uma maionese mais serão perceptíveis os
A química é uma profissão mais manual odores; quando se bate a emulsão sem muito vigor,
que a cozinha? Nenhum cálculo baseado os odores não serão tão dispersos, o preparo não
em experiência malpensada e malreali- será muito firme, entretanto, o resultado final será
zada pode ser exato. Portanto, nenhum
mais saboroso (lembrando que moléculas odoran-
prato malpensado é bom. [...] então é
preferível pensar que as profissões ditas tes são mais solúveis em óleo do que em água).
“manuais” não são menos “pensantes” O exemplo serve apenas para compreender-
que os ofícios pretensamente intelectuais
mos a quantidade de informações contidas em
- um ofício onde a mão não fica ativa está
tristemente incompleto, um ofício onde uma simples receita de apenas três ingredientes.
a cabeça estiver ausente não vale nada! Obviamente, quanto mais elementos se pretende
(THIS, MONCHICOURT, 2009, p.62) trabalhar dentro de um preparo gastronômico,
maior será a necessidade de conhecimento para
O segundo exemplo que utilizaremos nesta que o resultado que se pretende obter seja simi-
aula é o molho maionese. Para fazê-lo precisa- lar ao articulado no mundo das ideias, ou das
-se simplesmente de ovos, vinagre e óleo. Mas inspirações iniciais.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
O ovo é, de fato, um dos ingredientes mais comercial. Mas, as pessoas estão abertas para
emblemáticos da cozinha, justamente pelas conhecer o novo? Hervé utiliza o termo “neofilia
inúmeras possibilidades de sabor, texturas e alimentar” [medo do novo] para definir uma
resultados que ele proporciona. Um exemplo sociedade em que não se come o que não se
interessante é o “Ovo Perfeito”, cuja textura conhece. Se somos primatas como os macacos,
ideal é alcançada se for cozido em sous-vide a e tais animais levaram a risca tal neofobia (se
63-63,5°C, por 60 minutos. não levassem, provavelmente o consumo de
vegetais tóxicos teria desaparecido com a es-
pécie), obviamente também “herdamos” essa
neofobia alimentar, e parece-nos difícil sair de
uma rotina gastronômica que culturalmente
nos foi apresentada como ideal. É neste âmbito
em que o cozinheiro contemporâneo entra: ele
OVO PERFEITO
precisa articular a tradição com o futuro, este
Após cozinhar o ovo em sous-vide, retirar
cuidadosamente a clara, evitando que a seria o cerne da gastronomia molecular, uma
gema estoure. Empaná-la em farinha de seleção que justifica os acertos e conserta os
trigo, depois passar em gemas batidas e erros de maneira analítica e científica.
por fim na farinha panko. Fritar por imersão
Em seu primeiro livro, “Um Cientista na
em óleo a 185° por no máximo 60 segun-
dos e servir imediatamente com flor de sal. Cozinha”, Hervé coloca de maneira bastante
Assim, se obterá um ovo com casca crocante didática questões como: por que devemos ela-
e recheio cremoso e untuoso.
borar lentamente as geleias? por que a maionese
Fonte: o autor
talha? por que se acrescenta vinagre à água dos
ovos pochés? por que é preciso fritar em muito
óleo? por que a hollandaise fica espessa? (2008,
p. 240) Todas essas indagações são formas de
Resumidamente, o que procuramos com a gas- tornar a cozinha um ambiente mais preciso.
tronomia molecular, além do que poderia ser Na Espanha, dois institutos também muito
caracterizado como premissa óbvia de qualquer têm colaborado com a rede de informações gas-
cozinheiro - conhecer a fundo sua matéria-prima tronômicas que ajudam a entender as chaves da
- é propor uma inovação. É comum que pense- cozinha de hoje. Um deles é a Fundação Alícia
mos que uma inovação não é apenas uma ideia (Alimentação e Ciência) e o outro é o elBullital-
interessante, mas precisa ser aceita, vendida, ler. Tanto o primeiro, que conta com a assessoria
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 65
do chef catalão Ferran Adriá, quanto o segundo, bacon. Com a transglutaminase, o bacon adere
que visa promover pesquisas de novos produtos de forma definitiva ao filé, possibilitando meda-
que possam ser aplicados à cozinha, formularam lhões perfeitos e que não se desmancharão com
uma ferramenta de informações necessárias o calor. Em termos técnicos, pode-se afirmar que
sobre os mais diversos termos dentro da gas- “a transglutaminase possibilita uniões entre os
tronomia e as transformações referentes aos aminoácidos lisina e glutamina [...] e, portanto,
alimentos. a reestruturação de determinados alimentos”
Dentro dessa vertente de descobertas de (ALICIA, ELBULLITALLER, 2008, p.231). Carnes
novos sabores e texturas, alguns compostos quí- recheadas (como o lombo suíno, por exemplo),
micos, hoje já comercializados no Brasil - e com ou mesmo galantines e filés de peixe, também
foco na gastronomia molecular - possibilitam a podem servir de base para experimentos com
execução de um trabalho mais diversificado. Ou esse produto. Desta forma, é possível descartar
seja, a partir do momento em que utilizamos métodos que atrapalhem o resultado final do
agentes externos, as possibilidades de novos prato, principalmente em seus aspectos visuais.
resultados se multiplicam. Mas para torná-los Este composto, bem como outros que tra-
viáveis é necessário conhecimento e precisão. taremos aqui, não altera o sabor do alimento,
Portanto, embora nossos estudos apontem para desde que seja utilizado nas quantidades cor-
uma cozinha inventiva e artística (tecnoemo- retas indicadas pelo fabricante.
cional), devemos considerar que, antes de tudo,
trata-se de um trabalho racional, quase matemá- Maltodextrina
tico. Tais informações ficarão mais claras com Por meio de um tratamento físico-químico com
os exemplos a seguir. carboidratos resultantes das moléculas de amido
(seja de trigo, milho ou de tapioca) é possível
Transglutaminase formular esse produto que, basicamente, é um
Trata-se de um composto dos alimentos, mais transformador de gorduras e óleos em pó. A
especificamente das proteínas. Na indústria, é gordura resultante da cocção de uma pancetta
encontrado como um produto em pó, obtido defumada é um bom exemplo do uso desse pro-
basicamente do tecido muscular de peixes e ma- duto. A maltodextrina absorve o óleo residual
míferos. Dentro da gastronomia molecular, a do porco e suas moléculas sápidas, formulando
transglutaminase pode ser definida como uma assim um “pó de bacon” aromático e saboroso
“cola de proteínas”. Um exemplo claro seria um que pode ser utilizado, por exemplo, para fina-
medalhão de mignon envolto em uma fatia de lizar um crisp de couve-manteiga.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Ágar-Ágar
Sabemos que as gelatinas comuns, para uso Entretanto, podemos fazer uso de um outro
principalmente em confeitaria, não suportam exemplo também bastante interessante, que
altas temperaturas, uma vez que os agentes são as inúmeras possibilidades de espaguetes.
gelificantes são inativados. Desta forma, A inversão de papéis neste prato pode re-
no momento da execução do creme de uma sultar em uma apresentação bem humorada.
Charlotte Russa, por exemplo, após hidratar as Ao invés de uma massa tradicional de semolina
folhas de gelatina (obtida através do colágeno e ovos coberta por um molho sugo, é possível
de ossos e peles de animais) e incorporá-las transformar o molho em massa. Para a execu-
ao creme, a temperatura do mesmo não pode ção desse preparo, primeiro, deve-se aquecer a
ultrapassar 60° (a temperatura ideal para ge- polpa do tomate com ágar-ágar, introduzindo
lificação, neste caso, seria abaixo de 35°). O em seguida o líquido em uma seringa. Depois,
ágar-ágar é um gelificante, mas sua origem conecta-se a seringa a um “tubo” comum de
não é animal, e sim de algas vermelhas, for- PVC (como, por exemplo, os utilizados para soro
mando, assim, géis termorreversíveis (não hospitalar). Após inserir o líquido neste tubo, o
retornam ao estado líquido com o calor) e mesmo é imerso em água gelada por cinco mi-
resistentes até 80°, com gelificação iniciada a nutos. Com auxílio da própria seringa, retira-se
partir de 50 e 60° (ALICIA, ELBULLITALLER, a polpa do tomate, já gelificada e em formato
2008, p. 23). Alguns chefs utilizam ágar-ágar de espaguete, injetando ar.
para produzir inusitadas gelatinas quentes. Depois de pronta, esta “massa” pode ser
aquecida, por exemplo, com uma fonduta de
queijo e servida com crocante de manjericão.
Porém, embora utilizamos do suco de tomate
como modelo, qualquer substância líquida pode
ganhar os mais variados formatos seguindo a
mesma técnica.
A quantidade de ágar-ágar não deve ultrapassar
10g/Kg. Na cozinha, utiliza-se em média de 0,2
a 1,5 gramas do gelificante por 100 gramas do
líquido a ser gelificado. Obviamente, para do-
sagem de todos esses produtos é indispensável
uma balança de precisão.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 67
No segundo caso, temos como exemplo uma emulsão permanente, como a maionese.
de uma emulsão semi-temporária o molho ho- A carragena entra em nossos exemplos
landês, feito basicamente com gemas, vinagre, como uma maneira de espessar e estabilizar
pimenta e manteiga clarificada. Neste caso, ao essas emulsões por mais tempo, viabilizando
invés do azeite, será vertida em fio a mantei- preparos na dinâmica de um restaurante. Ela
ga sobre as gemas, utilizando também de ação também ajuda a estabilizar alimentos lácteos
mecânica e de cocção (banho-maria). Esta emul- congelados, impedindo que o soro se separe e
são persiste por mais tempo que uma vinagrete evitando, por exemplo, que haja cristalizações
francesa, por exemplo, mas não tanto quanto em um sorvete.
Em nossa receita hipotética, pretendemos ela- Acrescenta-se o alginato ao líquido a ser es-
borar esferas de azeitona, que visualmente se ferificado - no caso, o suco aromatizado das azei-
pareçam muito com o fruto que se colhe das oli- tonas - em seguida, com auxílio de um utensílio,
veiras, mas que, na boca, após o rompimento da mergulha-se esse suco em um banho de cloreto
película, revela-se um untuoso caldo, com notas de cálcio. É neste banho em que a película que en-
de azeite e aromatizado com ervas. As esferas volve e define a esfera será formada. Em seguida,
serão armazenadas em vidros de azeitona com a esfera passa por um outro banho, desta vez de
um líquido conservante, no intuito de reforçar água pura, para retirar o residual de cálcio e então
a aparência do produto industrializado e faci- ser servida. Por meio da mesma técnica é possível
litar a surpresa. Tal sensação, de “enganar” as criar, também, os mais variados tipos de “caviar”.
expectativas do comensal, tem sido um recurso Quantidades: a proporção de alginato no
usual para tornar a refeição multissensorial e produto é, em média, de 0,4% a 0,7%. Já a pro-
menos tediosa. porção de cloreto deve ser de 0,5% a 1%.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Nitrogênio Líquido
Quando pensamos em cocção, rapidamente fa-
zemos referência ao fogo, ou seja, não se pode
cozinhar sem uma fonte de calor. O nitrogênio
líquido é uma forma de subverter esse concei-
to, uma vez que a sua baixa temperatura pode
ser encarada também como método de cocção.
Cozinhar a frio é um termo recente, e, por isso,
alguns chefs ainda lidam com certo receio. O
fato é que o nitrogênio se torna eficaz para a
produção de musses, sorvetes, espumas e gela-
tinas. O sorbet, por exemplo, feito com alguns
ingredientes cítricos, como limão siciliano e es-
pumantes jovens, torna-se um eficaz elemento
para “limpar” o paladar entre um prato e outro.
O nitrogênio é um “elemento que acima
de -196°C é um gás, e que mantido a tempe-
raturas entre -196°C e -210°C permanece em
estado líquido” (ALICIA, ELBULLITALLER,
2008, p.170).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 71
Como falamos de ostra, é interessante que façamos uma pausa para tratar
dos principais cuidados na preparação de frutos do mar, em especial os
bivalves, como as vieiras, mariscos e vôngoles. Antes da cocção, por exemplo,
é imprescindível que todos eles estejam com a concha hermeticamente fe-
chada. Caso haja algum aberto, não está em condições seguras de consumo.
Da mesma forma espera-se que, na cocção, todos abram suas conchas. Os
bivalves que não se abrirem também devem ser descartados imediatamente.
Fonte: o autor
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 73
Equipamentos
Pacojet
Trata-se basicamente de uma sorveteira que
possibilita os mais variados tipos de preparos,
sejam eles doces ou salgados, sem necessidade
de resfriamento. O equipamento também auxi-
lia na formação de emulsões e purês, bem como
inúmeros tipos de cremes. Também funciona
como processador de ingredientes congelados.
Clarimax
Entre os inúmeros preparos consagrados da
gastronomia francesa, encontram-se os tradicio-
nais consommés. Trata-se, basicamente, de um
caldo clarificado: a partir de um líquido saboroso
(obtido, por exemplo, por meio de um fundo
escuro) é feita a retirada dos resíduos sólidos
de carnes e vegetais. A técnica clássica para
fazer a clarificação é com a utilização de uma
proteína, que funcionará no consommé como
“catalizador” das impurezas, possibilitando um
caldo límpido e translúcido. Após a finalização,
nenhum outro procedimento de cocção deve ser
feito, pois isso poderá turvá-lo.
O clarimax, nada mais é do que um aparelho
que clarifica caldos utilizando pastilhas de algas
que retém as impurezas. Desta forma não são
necessários discos de carne ou claras de ovo. O
aparelho torna o processo de clarificação muito
mais preciso e dinâmico.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Thermomix
Comum nas cozinhas domésticas da Europa,
a thermomix, no Brasil, ainda se restringe
aos grandes restaurantes, sobretudo os que
oferecem menu degustação com pratos
mais criativos. Este eletrônico possibilita
picar (legumes, ervas, carnes, tubérculos);
bater (claras em neve, manteigas, molhos,
chantilly); misturar (bolos, tortas, biscoitos,
massas em geral); emulsionar (molhos para
saladas ou maionese); pulverizar (transforma
qualquer grão em pó em questão de segun-
dos, com possibilidade de pré-definir o grau
da moagem); sovar (massas de pão, macarrão
ou pizza); cozinhar (através de uma “colher
inversa” os alimentos se mantém íntegros du-
rante a cocção ou podem ser processados ao
final. O aparelho também controla para que
nada queime ou ferva, já que possui ajuste
preciso de temperatura e tempo. Cozinha a
vapor). Por fim, a thermomix também possui
uma balança embutida, possibilitando que
todos os ingredientes sejam pesados em seu
próprio recipiente.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 79
Métodos de
Processos de Criação
matérias-primas e definir, ainda que hipoteti- - ou seja, os dois ingredientes escolhidos como
camente, algumas possíveis interações. Segnit “situação-problema” - é a “célula” do prato a ser
(2014) parte do princípio de que precisamos ter elaborado. Tendo definida esta “célula”, parti-
uma visão global dos ingredientes, dividindo-os mos para o desenvolvimento da pesquisa, em
da seguinte forma: cítricos (gengibre, limão, que as matérias-primas poderão se harmonizar
laranja); frutas silvestres e arbustos (alecrim, por semelhança ou por oposição. Para compre-
sálvia, cassis, zimbro); florais frutados (figo, ender melhor este conceito, observe os exem-
mirtilo, baunilha); torrados (chocolate, café, plos a seguir:
amendoim); carnes (frango, cordeiro, porco);
COGUMELO E ALHO: Mesmo os cogu-
queijos (azul, duro, macio, de cabra); terrosos melos mais suaves assumem a intensida-
(cogumelo, beterraba, batata); amostardados de de seus primos selvagens com a ajuda
(agrião, alcaparra, raiz forte); sulfurosos (cebola, do alho, mas a relação entre shiitake e
alho é especial. O shiitake possui um
alho, trufa); marinhos (ostra, caviar, peixe); sal- composto chamado lentionina, quimi-
mouras e sais (anchova, bacon, presunto cru); camente semelhante aos sulfetos en-
verdes e gramíneos (pimentão, salsa, pepino, contrados em vegetais do gênero Allium,
como o alho e a cebola, e como estes, ele
endro); condimentos (canela, cravo, noz-mosca-
também é cobiçado por realçar o sabor
da); amadeirados (avelã, noz, abóbora, cenoura); (SEGNIT, 2014, p.97).
frutas frescas (ruibardo, uva, tomate, morango)
PEIXE BRANCO E AZEITONA: Todo
e, por fim, frutas cremosas (banana, melão, pês- mundo acredita numa regra sobre peixe
sego). Obviamente, a quantidade de exemplos com azeitonas: verde com peixes de
carne branca delicada e preta com peixes
em cada tipo de ingrediente vai muito além dos
gordurosos. Não é verdade. Contudo, a
insumos citados, porém, a partir deste mosaico untuosidade salgada da azeitona confere
de sabores e categorias é possível traçar algu- ao pescado branco um bem-vindo toque
mas “situações-problema” que irão sustentar sutil de gordura. Mas em geral, tudo o
que um delicado pedaço de peixe neces-
o começo da criação de um prato. Ao conhecer
sita é de um bom azeite extra-virgem,
a fundo os corpos físicos e os aspectos quími- com notas amargas e sabor herbáceo
cos dos ingredientes, torna-se mais prática e (ibidem, p.182).
segura a técnica da criação, pois isso garantirá REPOLHO E MARISCO: O dimetil sul-
que não sejam necessárias substituições das feto (DMS) é um componente importan-
te do sabor do repolho, com um odor
matérias-primas, mas sim o aperfeiçoamento
descrito como semelhante ao repolho e
das técnicas aplicadas a elas. Podemos deno- levemente oceânico - o que faz sentido,
minar, desta forma, que o princípio da criação já que ele é amplamente responsável
Criatividade e Inovação em Gastronomia
propostas de como esses elementos (opostos) essencial de manjerona tornará esta sim-
ples entrada um preparo ainda mais inte-
poderão se harmonizar no prato.
ressante. Dica: finalizar o queijo grelhado
2° Passo. Ideia (os produtos que a materia- com folhas de alecrim. Ao consumi-lo, um
lizam). Tendo definido o conceito e estabelecido suave aroma herbáceo irá complementar
o sabor deste canapé.
o caminho que se pretende trilhar, bem como
Fonte: O autor
a definição do problema, será possível planejar
quais serão os ingredientes coadjuvantes (se-
cundários) que ajudarão na concepção do prato.
3° Passo. Definição do prato. Mais do
que saber se a criação será uma entrada fria Neste ponto, vale relembrar o papel dos sentidos
ou quente, um prato principal ou uma sobre- no ato de comer. Alicia e Elbullitaller (2008) de-
mesa, é preciso definir suas texturas (creme, finem que a visão é responsável por detectar as
mousse, espuma, crocante, braseado, esfera formas e texturas, cores, disposição, identificação
etc). Tal definição ajudará também para que, do produto e do estilo. O olfato, obviamente, será
durante todo o processo de pesquisas, testes e responsável pelo odor dos produtos, elaborações
experimentos, o foco inicial não seja modificado e temperos. Embora no Brasil ainda seja um tema
e todos os profissionais envolvidos sigam uma desconhecido, a aplicação de óleos essenciais1 na
mesma linha de raciocínio. gastronomia como forma de tornar a experiência
1 De acordo com Bizzo et al. (2009), os óleos essenciais são extraídos de plantas como flores, rizomas, cascas, frutos, folhas e são
compostos, basicamente, de mono e sesquiterpenos, de fenilpropanoides e metabólitos. A extração pode ser feita por destilação,
compressão de frutos ou com uso de solventes. Alguns óleos são destinados à aromaterapia, pois influenciam no sistema nervoso,
alterando determinados estados psicológicos (como exemplo temos a lavanda, considerada ansiolítica). Entretanto, para a gastronomia,
encontramos alguns óleos que podem ser consumidos, como o de cacau, de café, de manjerona, de orégano, pimenta negra, pimenta
rosa, alecrim, anis, alho, hortelã, de limão siciliano etc. Por ser altamente concentrado e se volatizar facilmente, seu aroma intenso
e orgânico (não confundir essências com óleos essenciais) pode conferir a pratos sensações organolépticas ainda mais completas.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
do olfato ainda mais completa tem sido objeto pretende causar no comensal. É neste ponto
de estudo de alguns chefs europeus, que unem em que a estética do prato deverá ser definida.
a aromatologia à culinária. 7° Passo. Materiais e tecnologias. Trata-se do
Já o tato é responsável pelas temperaturas levantamento dos equipamentos, utensílios e aditi-
e texturas; a audição pela percepção de sons vos químicos necessários para a execução do prato.
(crocância) e, por fim, o paladar assume a per- 8° Passo. Experimentação. A fase de testes
cepção de gostos primários (doce, salgado, ácido, pode ser também definida como um “treinamen-
amargo e umami), matizes gustativos (azedo, to culinário”. Por meio da repetição, cercada de
balsâmico, rançoso, iodado, picante etc.), além acertos e erros, é que se poderá chegar a um re-
do sabor intrínseco de cada alimento (ALICIA, sultado preciso. Nesta fase da sequência deverão
ELBULLITALLER, 2008, p. 175). ser feitas adequações de quantidades, produtos,
4° Passo. Reconciliação dos dados. Como cortes adotados, tempos e métodos de cocção.
foi dito anteriormente, para conduzir um pro- 9° Passo. Prova. A degustação e avaliação de
cesso criativo na gastronomia, conhecimentos um prato é sempre uma tarefa complicada, pois
culturais são indispensáveis e é neste ponto em envolve critérios subjetivos. Quando falamos de
que eles se fazem ainda mais necessários. De pratos inovadores, tal prova se torna ainda mais
nada adianta destinar tempo, conhecimento e complexa. Isso porque, em um preparo clássico ou
dinheiro para orquestrar a criação de um novo mesmo despretensioso, embora haja julgamentos
prato, se o mesmo já existe. O mesmo pensa- dominados pela preferência pessoal, sabe-se o que
mento vale para conceitos já saturados, ou seja, tende a ser mais apreciado, conforme a formação
reproduzidos exaustivamente por vários chefs e cultural gastronômica de cada lugar. Quando se
que, portanto, nada têm de inovadores. pretende lançar novos sabores, texturas e aromas
5° Passo. Análise dos dados. A partir deste no mercado gastronômico, imaginar a aceitação é
ponto, começam a ser aplicados os conhecimen- pré-estabelecer que haverá um público aberto para
tos fornecidos pela gastronomia molecular. O o desconhecido, ou seja, para novas experiências
domínio das técnicas e dos produtos possibili- que saiam de uma rotina alimentar conservadora.
tará a construção do modo de preparo lógico. 10° Passo. Elaboração. Trata-se da fixa-
6° Passo. Criação. Parte central da sequên- ção da versão oficial do método de preparo. É
cia, a criação se refere não apenas à aplicação quando a receita vai para a ficha técnica, são
correta da técnica para se obter os resultados calculados os custos e possíveis gastos (iniciais
idealizados anteriormente, mas também o e finais) e a viabilidade do prato dentro da di-
momento de concretizar as sensações que se nâmica de um restaurante.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 85
do, revela todos os sabores característicos de Fonte: (ALICIA, ELBULLITALLER, 2008, p.148).
Criação na
Gastronomia Brasileira
A semente pode ser utilizada em um creme Para que fique mais claro esse conceito de re-
brulée, em sorvetes, no clássico creme de con- gulação das pequenas produções, vamos fazer
feiteiro, aromatizar e saborizar uma cachaça uma comparação com a Europa. Diferentemente
ou até mesmo como componente de um curry. da União Europeia, o Brasil não possui algo se-
Como observamos na primeira unidade melhante ao selo de Especialidade Tradicional
deste livro, a revalorização e redescoberta dos in- Garantida (ETG). Este selo leva em consideração
gredientes autóctones é uma tendência no atual fatores como o mercado comunitário e a trans-
cenário gastronômico. A extração consciente e missão entre gerações para regular a produção.
sustentável destes produtos não só movimenta Com isso, muitas das tradições alimentares no
a economia local de pequenos produtores, como Brasil acabam se perdendo no tempo. Segundo
também preserva determinadas espécies e ajuda Müller (2012), ao adquirir um alimento com
a enriquecer a gastronomia nacional. Temos, selo ETG, “o consumidor tem a garantia que o
portanto, uma profissão que volta-se cada vez produto foi elaborado com matérias-primas e
mais para uma cozinha de origem, porém de- processos tradicionais” (p.59). Em outra instân-
senvolvida dentro de um pensamento contem- cia, o selo se assemelha aos produtos de terroir
porâneo e tecnológico. ou de origem controlada (DOC), e promove a
Antes de conhecermos (ou redescobrirmos) “preservação do conhecimento tradicional como
alguns dos principais ingredientes brasileiros, manifestação cultural, valoriza a história dos
precisamos compreender um pouco sobre seus modos alimentares locais e permite sua repro-
processos produtivos. Isso facilitará a percep- dução além das fronteiras de origem do produto,
ção do funcionamento dos restaurantes que se porém dentro de especificações que possibilitem
preocupam em retratar os sabores do Brasil em a manutenção de sua identidade” (ibidem).
seus pratos, mas encontram uma série de difi- Porém, será que no Brasil é cabível também
culdades burocráticas. Neste módulo, portanto, o conceito de terroir? Em alguns países, as
a proposta é que voltemos nosso olhar para produções de terroir são as que garantem
dentro do país, valorizando seus ingredientes os ingredientes de melhor qualidade, assim
mais naturais e utilizando deles para sustentar acontece com renomados rótulos de vinho,
uma cozinha inventiva. Esta cozinha caracteri- por exemplo.
za-se não apenas por suas técnicas inovadoras, Aqui, estudaremos este tipo de produto
mas por inserir na sociedade ingredientes até para justificar uma lógica simples: uma cozinha
então anônimos, mas que ilustram a cultura de excelência necessita, no mínimo, de excelen-
brasileira. tes ingredientes.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 91
Um exemplo tangível das problemáticas que por causa da resistência do Estado em relação à
envolvem os ingredientes brasileiros é o mel. formação de um possível terroir brasileiro, pro-
Segundo Atala (2012), a legislação que vigora vocando êxodo entre os pequenos produtores .
no Brasil sobre a produção de mel é de 1934,
Os produtos de terroir trazem ao am-
cujo cultivo só é permitido para as abelhas biente urbano de consumo a reminis-
de origem europeia e africana, com índice de cência das técnicas e relações sociais de
umidade menor que 20% na secreção melífera produção mais tradicionais, como se
fossem cristalizações do bom e do belo
desses insetos. “No momento em que foi lavrada que o capitalismo, na voragem do pro-
essa lei, estava sendo dado, sem que se soubesse, cesso de produção de commodities, ainda
um golpe contra a ecologia brasileira” (p.280). não destruiu. Ao comermos produtos de
terroir nos perfilamos, simbolicamente,
Justamente por isso, marginalizaram-se
numa linha de resistência (p.81).
várias outras espécies nativas que produzem mel [...] O produto terroir se aninha no âmago
de abrangentes qualidades organolépticas. Tais da crise alimentar, na qual representa o
produtos poderiam colaborar com o desenvol- bom produto, em oposição ao produto
desnaturado da indústria, que domina a
vimento gastronômico nacional (além de suas
alimentação cotidiana nos grandes cen-
qualidades medicinais) mas possuem umidade tros urbanos e que nos episódios da vaca
superior ao índice permitido. Não obstante, o louca e da gripe aviária, revelou toda a
sua fragilidade, até mesmo tecnológica,
produto é vendido com preço representativa-
expondo o consumidor a um risco psico-
mente abaixo do seu valor, declinando o traba- lógico (se não real) insuportável (p.86).
lho de centenas de pequenos produtores.
O caso do mel é apenas uma pequena parte Todas essas discussões ajudam a exemplificar
do problema das pequenas produções no Brasil. de maneira ainda mais nítida a questão do “con-
Além do mel do Xingu, são relevantes os casos da ceito” dentro da gastronomia. Isso é, conscien-
cachaça Salinas, do café do Cerrado, do Vale dos tizar-se da quantidade de informações contidas
Vinhedos e do queijo Palmira. Neste último, leis dentro de um único ingrediente, contribui para
estaduais e federais se contradizem, marginalizan- a compreensão da complexidade de uma receita
do múltiplos tipos de queijos artesanais de Minas, e, portanto, do grau de dificuldade inerente à
que ora são ditos como patrimônio nacional pelo criação. Tais discussões oportunizam os chama-
IPHAN ( Instituto do Patrimônio Histórico e dos “aspectos sociais” da cozinha e sua função
Artístico Nacional), ora paradoxalmente tolhidos nada mais é do que promover a construção de
pelas leis sanitárias, incitando a clandestinidade. um profissional crítico, ou seja, atento à socie-
De acordo com Dória (2009) tudo isso acontece dade que o cerca.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Ainda segundo Dória (2009), toda a produção No caso de Atala, o quiabo - que embora seja de
de melhor qualidade no Brasil é destinada para origem africana, foi muito bem incorporado na
o mercado externo: os melhores cafés, as me- cultura alimentar brasileira - além de ser servido
lhores cachaças, o melhor cacau. Assim “con- com um caldo de legumes tostados, possibilita
tinuaremos a ver a riqueza do país pelos olhos que se faça um “caviar” com as suas sementes;
de seus visitantes estrangeiros” (p. 257). Em um papel de quiabo (esta textura de “papel” é
uma crítica ao atual sistema alimentar, o autor possível graças à celulose presente na planta) e
conclui que “alienados, experimentaremos o um refogado com cebola, pimenta, vinagre de
prazer mórbido de viver num país saboroso Jerez e limão (ATALA, 2013, p.152).
por natureza, mas que nunca provamos em sua O motivo do preconceito [com o quiabo]
inteireza” (ibidem). é que, uma vez cozido, esse vegetal libera
É justamente para inverter essa situação um muco que lhe confere uma textu-
ra babosa. Mas o quiabo vai bem além
que nasceu o Instituto Atá - estudado na uni-
disso. Como acontece com todos os in-
dade anterior. E é também para iniciarmos um gredientes, decidir como usá-lo é uma
processo de pesquisa que analisaremos, a seguir, função do chef: frito, assado, cozido,
refogado, usando o seu muco para ligar
alguns ingredientes pouco conhecidos ou, se
um caldo ou simplesmente fazendo um
conhecidos, pouco explorados. papel (comestível, claro). Essa é a ideia
O caso do quiabo é uma boa forma de princi- por trás da receita. Suas sementes cozi-
piarmos esta última fase de estudos da unidade. das com carinho revelam-se um caviar
da terra, que delicadas, explodem na
Sejam nas feiras ou nos supermercados, alguns
mordida e nos deleitam com seu sabor
ingredientes sofrem com os mais variados tipos de (ATALA, 2013, p.150).
preconceito. Quando não, são preparados sempre
da mesma forma, corroborando com o confor- O mangarito pode ser mais um exemplo de
mismo de receitas simplórias que pouco explo- ingrediente pouco presente nas cozinhas do-
ram suas riquezas em termos de sabor, texturas mésticas brasileiras, e que cada vezes menos é
e aromas. O que muitos chefs brasileiros têm feito encontrado nos supermercados. O tubérculo,
é dar a esses ingredientes um novo status dentro inclusive, corre risco de extinção. “De textura
da cozinha. É o que Alex Atala faz com o notório ímpar e sabor selvagem, virou ingrediente sem
preparo “Quiabo, Quiabo, Quiabo” - já citado an- brilho nas panelas cotidianas (ATALA, 2013,
teriormente - e a chef carioca Roberta Sudbrack P.146). O chef utiliza o mangarito assado com
fez com a jaca, trabalhando com o fruto das mais camarões e inhame roxo, finalizado com laranja
variadas formas em uma de suas coleções. e brotos de beldroega.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 93
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Também vale citar o caso do caramujo brasileiro. como a cozinha clássica me ensinou. Marinei, fiz
O escargot, comum da culinária francesa, até um pré-cozimento, fatiei e grelhei. Foi o melhor
pouco tempo era inimaginável fora do território caramujo de água salgada que já provei” (ATALA,
europeu e, embora ainda seja visto com dificul- 2013, p.110). Em seu restaurante, o chef serve
dade por alguns comensais no Brasil, pode sim o caramujo marinho (saguaritá) com alga, um
ser um ingrediente interessante. O caramujo co- molho feito à base de caldo de carne e carcaça de
mumente é encontrado o ano inteiro nas costas peixe, espuma de tangerina e flores comestíveis.
brasileiras e encarado como refugo das pescas de Em relação às ervas, não podemos deixar
camarão, sendo sempre descartado. Justamente de falar da chicória do Pará (espécie de coentro
por não ter um tratamento especial por parte dos selvagem); a alfavaca da Amazônia (da família
pescadores, torna-se inviável o uso do caramu- do manjericão); a pimenta-de-cheiro; o cariru
jo com regularidade na rotina de uma cozinha (típico também da Amazônia e com forte nota
profissional. “Procedi com o caramujo brasileiro de acidez e a vinagreira (ibdem, p.168-169).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 95
Observa-se que é comum vários desses ingre- De acordo com McGee (2014), o umami (ou
dientes serem provenientes da Amazônia. São glutamato monossódico) foi “descoberto” há
inúmeras as possibilidades que esse bioma mais de mil anos pelos japoneses, que utiliza-
oferece, muitas delas ainda nem descober- vam de uma alga marrom para produzir sopas,
tas. É, inclusive, visando o potencial amazô- pois esta provocava no paladar uma sensação
nico que o chef Ferran Adrià vislumbra no singular, diferente dos quatro gostos básicos.
bioma brasileiro o futuro da gastronomia, Entretanto, só em 2001 que um biólogo da
certamente, com uma exploração racional e Califórnia conseguiu demostrar, conclusivamen-
sustentável. te, “que os humanos e outros animais têm um
É também na Amazônia em que receptor específico para o sabor do glutamato
encontramos outro ingrediente emblemático monossódico” (p.380). Ao longo de todas as
para a cozinha brasileira: o jambu. Da família dos pesquisas, detectou-se a presença do umami
agriões, possui “fascinante sensação gustativa em outros ingredientes, como os citados por
de eletricidade” (ATALA, 2013, p.172). Atala anteriormente.
Além dos quatro tipos de gosto conhecidos Em seu restaurante, o chef apresenta o
(doce, azedo, amargo e salgado) a modernida- jambu com um gel de tomate verde, acompa-
de revelou um quinto sabor, conhecido como nhado de laranja, azeite, sal negro, broto de
umami. beterraba, cerofólio, coentro, salsão e agrião,
flores de borago e outras flores comestíveis,
Ele é o ponto em comum entre o queijo
parmesão, o presunto cru, o cogume- além, é claro, das folhas do próprio jambu.
lo, o molho de soja e algumas algas. De Por fim, para concluirmos esta série de
forma ainda muito empírica, acredito ingredientes, vamos utilizar o bacuri e o
ter encontrado a maior expressão de
pequi como exemplos. O bacuri, também
um umami brasileiro. A combinação do
tucupi fermentado [caldo extraído da da Amazônia, é qualificado por Atala como
mandioca-brava] com as ervas típicas melhor do que o mangostim e ao rambutã do
da Amazônia - a chicória do Pará, a alfa-
Extremo Oriente. “Sua doçura, acidez, notas
vaca e a pimenta-de-cheiro - formam o
umami amazônico, que é potencializado florais e aroma seco tornam essa fruta supe-
por essa confusão na ponta da língua, rior” (2013, p.232). O bacuri é comumente
esse tremor, como os nativos descreve- encontrado no norte do Piauí, no Maranhão e
ram a sensação produzida pelo jambo.
no Pará e harmoniza bem quando sua polpa é
Esse caldo (o tucupi) nos gera a sensação
de prazer, comum aos ingredientes des- servida com ouriço, caldo de algas, pimentão,
critos como umami (ibidem). hortelã e cará.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
considerações finais
Caro(a) aluno(a), chegamos ao final de mais uma unidade.
Aprendemos que ser inovador em uma profissão tão em alta como a gas-
tronomia não é tarefa fácil. A quantidade de profissionais que têm encarado a
cozinha como ambiente analítico das transformações da natureza em cultura,
possibilita dar à comida um caráter artístico. Entretanto - e isso ficou ainda
mais evidente nesta unidade - a criação e a inovação requerem conhecimento,
responsabilidade e sensatez.
Neste âmbito a gastronomia molecular foi considerada como um instru-
mento de treinamento: conhecer para criar. Mais do que a utilização de aditi-
vos químicos para reestruturar a forma como os ingredientes se apresentam,
trata-se de uma ciência que investiga o alimento e possibilita interpretá-lo.
As inúmeras possibilidades de trabalho não se restringem à “sequência
criativa de Adrià”. Cada cozinheiro pode e deve adotar a forma mais eficaz
de conduzir o seu processo criativo, seja ele individual ou coletivo. Por isso,
quanto maior for o intercâmbio de informações, maiores também serão as
chances de se engendrar um trabalho autoral e que satisfaça as expectativas
do cliente. A riqueza de gestos culinários que alicerçam uma preparação é
definida pela capacidade de uma equipe em articular os legados do passado,
com as tendências propostas pelas novas tecnologias.
Em síntese, não se trata apenas de uma cozinha de inspiração ou de uma
“culinária quântica”. A criatividade sem um conceito, sem uma fundamentação
teórica, torna-se injustificável. É por isso que - inserido em uma sociedade,
em uma localização geográfica específica e, sobretudo, em uma cultura - o
cozinheiro deve dialogar com seu meio e, consequentemente, com os ingre-
dientes oriundos dos vários biomas que o cercam.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
leitura complementar
A morte.
Imaginem uma aula ministrada por um grande chef. Lá está ele brilhando em seu uni-
forme branco, em frente a uma plateia ávida por conhecimento. Então, um frango vivo
entra em cena. Num gesto terno e cuidadoso, o chef toma a ave e lhe afaga a cabeça.
No segundo seguinte, sua expressão se transforma e, com energia, ele lhe torce o pes-
coço, quebrando-o. O frango, ainda agonizante, tem o pescoço cortado, e seu sangue é
recolhido em um prato. Se fosse pública, essa cena certamente chocaria. Faria daquele
personagem um tirano, um selvagem.
Curiosamente as pessoas tendem a se sentir diferentes em relação aos peixes. Eu
sempre sonhei em fazer um vídeo de um peixe recém-capturado sendo limpo, cozido e
comido: um ciclo com começo, meio e fim. A ideia é falar sobre as muitas faces do chef
que eu tenho: um homem primitivo, um pescador, um fornecedor, um transformador,
um glutão e um gourmet. Tal projeto, ainda por se concretizar, soa lírico e romântico,
mas, se, em vez de peixe, eu usasse uma galinha ou um pato, eu correria o risco de ser
rotulado de cruel e sanguinário.
Quando vamos à peixaria, deixamos que nossos olhos passeiem sobre as formas
e tamanhos de peixes, lagostas e outros crustáceos, uma diversidade colorida que nos
atrai e nos leva a comprar, cozinhar e comer, mas quando vemos a foto de um animal
selvagem morto recentemente ou se imaginamos um açougue cheio de bezerros, vacas,
cabras, ovelhas, coelhos e porcos mortos, repelimos prontamente essas imagens.
A única explicação que posso propor é que o peixe muda muito pouco a aparência
quando morre. Seu brilho e frescor tornam-se limpos aos nossos olhos, algo que não
acontece com os outros animais. A natural falta de expressão dos peixes também deve
contribuir para nossa isenção. Matar frangos, patos e porcos era parte da experiência
de nossos antepassados recentes – nossos avôs e avós sacrificavam os animais rotinei-
ramente. E nos lembramos com carinho do gosto da comida que eles faziam. Mas o
homem urbano e moderno distanciou-se das atividades básicas necessárias à efetiva
execução das receitas, como o fato de que, muitas vezes, sua refeição demanda o término
de uma vida. Comprar cortes pré-escolhidos, limpos e acondicionados em embalagens
perfeitamente higienizadas distanciou-nos da realidade.
As vezes eu me divirto imaginando como seria chegar aos nossos iluminados e as-
sépticos supermercados e encontrar bezerros, cordeiros e patos, ainda inteiros, expostos
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 99
leitura complementar
nos balcões. Como tal cena pareceria brutal, violenta e suja à maioria de nós. Eu vejo
pessoas comprando cortes de peito de frango, filé-mignon, costela de cordeiro etc., sem
pensar, enquanto fazem isso, em como reagiriam se vissem as carcaças desses animais
penduradas nos matadouros. Da mesma forma, me surpreende que algumas pessoas
sintam nojo ao tocar em peixe fresco ou frango cru, mas fiquem à vontade para comprar
iscas de peixe ou nuggets de frango congelados e embalados.
O impulso ou vontade de continuar a viver é comum a todos os seres, e incluo aqui
as plantas. Se cortarmos uma árvore, ela provavelmente tornará a brotar. Ao ser ferido,
um animal instintivamente rasteja para longe do agressor, tentando se preservar. Como
ser racional e emocional, eu afirmo que nada justifica tirar a vida de outro ser. Mas não
somos apenas seres racionais e emocionais, somos, acima de tudo, seres naturais. Como
seres naturais, somos onívoros, assassinos e egoístas. Somos humanos.
O caminho entre o homem natural e o homem cultural passa pelo domínio do fogo.
A capacidade de assar uma peça de carne é um sinal de inteligência.
A morte é um elemento de vida, a morte é um elemento inerente ao ato de cozinhar
e, mesmo que estas palavras firam você, para cada peixe, para cada pedaço de carne,
talvez até mesmo para todas as saladas que você come, a vida foi interrompida, direta ou
indiretamente. No prazer que sentimos em cada prato que consumimos, reside apenas
um traço de crueldade, que também pode estar presente no couro usado para fazer os
seus sapatos, em seu perfume ou mesmo no papel que este livro foi impresso.
Nós nos vemos uns aos outros como seres humanos, atrozes, vorazes, emocionais,
complacentes; enfim, nós somos contraditórios. Muitas vezes, o prazer mascara nossa
crueldade. Mas a aceitação e o conhecimento dessas contradições melhoram a nossa
compreensão mútua e as nossas relações uns com os outros e podem até dar um novo
significado ao que é vida e ao que é prazer. Talvez essa seja uma maneira de retornar à
natureza.
A solução que tenho em mente não é julgar e vai muito além de aceitar a situação. A
relação do ser humano com o meio ambiente sempre foi de extração, de tirar proveito.
A mudança que proponho não está em nossas ações, mas em nossos princípios. Vamos
voltar. Com as nossas imperfeições humanas, somos obrigados a extrair. Mas temos que
nos reeducar a fazer o caminho de volta. E retornar à natureza é uma ação transforma-
dora. Sem dúvida não é hedonista, mas cultural.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
leitura complementar
A relação entre o homem e o alimento deve ser repensada. Usar os animais que
consumimos em sua totalidade, e não apenas alguns cortes escolhidos é iniciar uma ação
importante para o futuro do mundo. O respeito à natureza começa assim. Somos hoje
mais de 7 bilhões, uma espécie totalmente fora de controle. Destruímos o equilíbrio de
nosso ecossistema. A próxima ameaça pode ser a nossa própria existência. No modelo
atual, a relação entre o homem e o meio ambiente caminham para a falência. Por isso,
devemos reaprender a lidar com as necessidades primárias do ato de cozinhar, para que
possamos construir um futuro sustentável e equitativo. Precisamos nos ver como um
elemento natural, quase como uma erva daninha, em relação ao nosso planeta. É nessa
atitude do indivíduo, nessa mudança cultural, que eu vejo o futuro de uma cozinha
melhor e um melhor amanhã.
FONTE: ATALA, Alex. D.O.M. – Redescobrindo Ingredientes Brasileiros. Ed. 1ª. São Paulo: Melhoramentos,
2013, p.66-68
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 101
atividades de estudo
1. Sobre a gastronomia molecular e os aditivos químicos e equipamentos necessários para
sua prática, assinale a alternativa INCORRETA.
a. O nitrogênio líquido permitiu um novo conceito dentro da gastronomia: cozinhar a frio.
b. A transglutaminase funciona como uma “cola de proteína”.
c. Produtos obtidos através do equipamento rotaval devem passar, posteriormente, por um
método de cocção para que se intensifiquem os aromas obtidos via destilação.
d. No método de esferificação utiliza-se alginato sódico e banho de cálcio.
e. A gastronomia molecular visa racionalizar o fazer culinário utilizando-se da ciência.
2. A criação de um prato não demanda apenas uma boa ideia. Está atrelada a várias outras
questões secundárias, mas não menos importantes, e que podem ser subjetivas (como
conhecimento teórico e técnico) ou objetivas (ingredientes, aditivos, equipamentos). Cite
quais seriam as principais questões a serem analisadas por um profissional para a elabo-
ração de uma cozinha inovadora.
Resposta: Analisar as características geoclimatológicas do lugar em questão - uma vez que
se procura estreitar a relação entre cozinheiro e fornecedor; definir o conceito da cozinha
e os métodos que possam viabilizar um trabalho autoral; desenvolver o aperfeiçoamento
da técnica clássica; detectar público alvo; analisar a temporalidade do preparo; articular
a produção culinária com a sustentabilidade, movimentando a economia local; preservar
aspectos nutricionais e culturais (valor nutritivo dos alimentos, qualidades organolépticas,
restrições e preferências regionais), entre outros fatores.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
material complementar
Editora: Tapioca
Sinopse: Roberta é capaz de elevar cada ingrediente a
possibilidades totalmente inesperadas. Criando pratos de
apresentação delicadíssima e sabor profundo. A chef é in-
cansável na busca de uma nova linguagem para o ingredien-
te - ‘aquele mais simples, presente no cotidiano da nossa
culinária brasileira’. Os ingredientes do cotidiano brasileiro
formam seu espaço de pesquisa e investigação preferidos
para suas criações.
Um livro acessível, mas com uma vanguarda editorial e gráfica que
expressa toda sua criatividade.
Editora: Senac
Sinopse: O êxito na cozinha é alcançado quando se compre-
ende bem o que se faz. É o objeto da gastronomia molecular:
ela explora os mil fenômenos que ocorrem no momento da
preparação dos pratos. A coagulação de uma simples clara
de ovo não é extraordinária? O douramento de uma carne?
Ou, então, o aumento do volume de um creme chantilly?
Equipada com conhecimentos produzidos pela ciência, a
tecnologia culinária pode posteriormente ajudar a técnica
culinária a progredir a fim de estimular os sentidos e, principalmente,
dar “amor” aos convivas.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 103
referências
ATALA, A. D.O.M. – Redescobrindo Ingredientes Brasileiros. Ed. 1ª. São Paulo:
Melhoramentos, 2013, 292p.
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ADRIÁ, F. Los Secretos del El Bulli: recetas, tecnicas y reflexiones. Barcelona: ALTAYA,
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BIZZO, H. R. HOVELL, A. M. C. REZENDE, C. M. Óleos Essenciais no Brasil:
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MÜLLER, S. G. Patrimônio Cultural Gastronômico: Identificação, Sistematização e
Disseminação dos Saberes e Fazeres Tradicionais. 2012. 288 p. Tese (Doutorado em
Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia e
Gestão do Conhecimento, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina. 2012.
MCGEE. H. Comida e Cozinha: ciência e cultura da culinária. 2ªed. São Paulo: WMF
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SEGNIT, N. Dicionário de Sabores: combinações, receitas e ideias para uma cozinha
criativa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, 461p.
THIS, H. Um Cientista na Cozinha. São Paulo: Ática, 1999, 240p.
_____. Herança Culinária e as Bases da Gastronomia Molecular. São Paulo: Senac,
2009, 200p.
THIS, H. GAGNAIRE, P. Cozinha: uma questão de amor, arte e técnica. São Paulo:
Senac, 2010, 331p.
Viabilizando a Cozinha de Criação
JAIR JUNIOR MONTEIRO SOLIN
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
• Montagem de Pratos
• Operacionalizando a Cozinha Autoral
• Cozinha de Desconstrução
Objetivos de Aprendizagem
• Aprimorar as tendências e técnicas de finalização de pratos.
• Estruturar métodos que possibilitem a aplicação de uma cozinha
criativa e inovadora em realidade de restaurante.
• Compreender o mecanismo da técnica da “desconstrução” de
pratos como vertente dos processos de elaboração de uma cozi-
nha autoral e inventiva.
107
Introdução
Olá alunos(as). Sejam bem vindos(as) à última fase de estudos desta disciplina. Até agora foi
possível conhecer e compreender algumas ferramentas que podem auxiliar o gastrólogo na ela-
boração de uma cozinha inovadora. Entretanto, a partir deste módulo, trataremos da execução
desta cozinha, ou seja, como torná-la viável dentro da realidade de um restaurante ou de um
serviço gastronômico.
Para melhor organizarmos nossos estudos, esta unidade está dividida em três assuntos
cujo foco em comum é a prática. Uma vez que já compreendemos a teoria necessária para se
articularem as tendências do mundo contemporâneo, agora nos aprofundaremos nas técnicas
de finalização de pratos, em engenharia de cardápio e na importância dos planos de ataque.
Embora sejam conhecimentos necessários para qualquer área gastronômica, - de garde manger
à confeitaria - é fundamental que saibamos utilizá-los a nosso favor quando pretendemos
propor ao cliente uma cozinha com “assinatura”, ou seja, com personalidade, responsabilidade
e pragmatismo na sua execução.
Ao longo da segunda unidade deste livro, ficou claro que criar um prato não é tarefa fácil e
envolve, acima de tudo, interdisciplinaridade: é o momento em que todas as disciplinas deste
curso se unem em uma mesma prática. Tendo em vista a complexidade dos processos de criação
- e justamente por visarmos, nesta unidade, a viabilização destes processos - vamos conhecer
uma técnica usual da gastronomia contemporânea: a desconstrução de pratos clássicos. Tal
método pode auxiliar o cozinheiro na busca de resultados cada vez mais inusitados e criativos.
Abraço e ótimos estudos!
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 109
Montagem
de Pratos
O conceito de beleza é algo extremamente Vamos imaginar aqui uma situação corriquei-
subjetivo, ou seja, cada um, conforme a sua ra. Você vai a um restaurante e no menu uma
formação, entende a beleza de uma manei- sugestão ousada lhe atrai. Não existe nenhuma
ra diferente. A arte nos mostra ainda outros fotografia do prato, mas pela composição dos
exemplos: o impressionismo (caracterizado ingredientes descrita no cardápio ele parece ser
pela importância da luz, traços suaves e au- muito interessante. Embora seja um preparo
sência de contornos) se contrapõe ao cubismo que você desconheça, solicita ao garçom que
(cujas formas geométricas invadem a imagem o sirva.
retratada). São duas formas distintas das artes Minutos depois, o preparo chega à mesa
plásticas mas igualmente interessantes e vi- e revela-se ainda mais atraente do que pare-
sualmente atraentes. Quando levamos essa cia na sua descrição. O contraste de cores, os
discussão para a gastronomia, o leque de pos- cortes escolhidos, as texturas apresentadas
sibilidades é ainda maior. Na finalização de são todas harmônicas e iniciam o gourmand no
um prato, as técnicas utilizadas podem ser tão que chamamos de experiência gastronômica.
articuladas quanto as aplicadas nos estilos de O cliente já foi conquistado pelo chef. Resta a
pintura citados. prova final: o sabor. Imagine-se curioso, pois
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 111
tratam-se de ingredientes e texturas que você Conforme Denbury e Hobday (2011), a ousadia
jamais degustou. Na apreciação, vem a frustra- e o bom senso devem caminhar juntos. Isso,
ção: o prato era infinitamente mais bonito do somado a algumas técnicas já comprovadamente
que saboroso. A complexidade visual fica além eficazes, farão com que o prato se torne visu-
da complexidade experimentada no paladar, ou almente agradável, com um número criterioso
seja, da ausência de complexidade em termos de informações ópticas ao comensal, sempre
de sabor. Trata-se de um prato medíocre: a evitando exageros. Tudo isso deve estar presente
excelência na apresentação “equilibra” a mo- desde o momento da escolha da louça - que deve
notonia do sabor, que revela-se muito mais condizer com a proposta estética do preparo,
previsível do que parecia. realçando-o e não tornando-o secundário - até
Temos aqui uma situação que ilustra a pri- a seleção dos insumos.
meira regra quando se trata da montagem de É também importante notarmos que não
pratos, eles necessitam ter unidade, isto é, serem se pode dissociar o processo criativo (a ideia do
tão saborosos quanto belos. Alguns autores, um que se pretende criar) da finalização do prato.
pouco mais radicais, dirão que é preferível um Desde o início - na escolha dos produtos que
prato saboroso, mas visualmente opaco, pálido farão parte da composição - deve-se pensar na
e tedioso, do que uma apresentação artística finalização e montagem, isto é, na estética do
de sabor mediano. Não falamos apenas aqui produto final. Embora esta seja a última fase
de qualidade, mas também de complexidade: da elaboração do preparo, ela deve ser fixada
uma apresentação refinada e complexa necessita e planejada em todas as etapas do processo.
de sabores também requintados e inusitados. Em um segundo momento, podemos aplicar o
Obviamente, tudo isso dependerá da proposta equilíbrio também em relação às cores. Como
do restaurante. veremos mais adiante, uma diversidade de
O segundo ponto a ser analisado na apre- matizes tornará o prato mais atraente. Porém,
sentação ou finalização de um prato é o equilí- um cuidado deve ser tomado: uma quantidade
brio. Este, condiz primeiramente com a seleção exagerada de cores pode indicar ausência de
dos alimentos que serão trabalhados. Deve bom senso. Em geral, alimentos que combinam
haver equilíbrio entre alimentos mais comple- em sabor naturalmente se harmonizam em
xos e alimentos simples: um prato elaborado cores. Também podemos fazer uso do círculo
apenas com elementos exóticos, silvestres, cromático: as cores complementares dão maior
importados, tende a ter uma aceitação mais atração a um prato. Como exemplo temos o ver-
laboriosa. melho e o verde; laranja e azul e amarelo e roxo.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
os torneados, estes, subclassificados conforme exemplo, pode ser feito com 10 lados mili-
o tamanho: olivette (3cm); cocotte (4cm); inglesa metricamente iguais. Maior será o trabalho,
(5cm); château (6cm) e fondat (7cm). entretanto, o resultado estético demonstrará
Entretanto, há uma infinidade de outros que trata-se de uma cozinha com habilidoso
cortes que também podem ser utilizados quando profissionalismo.
se pretende, além de deixar o prato com uma Na decoração, além do uso dos mais varia-
aparência mais criativa, imprimir elegância, so- dos brotos e de flores comestíveis, por exemplo,
fisticação e primor ao preparo. O uso de cortes pode-se utilizar os sumités - extremidades dos
mais específicos demanda treinamento e tempo. galhos, as menores folhas do ramo - isso dará
Entretanto, esta é uma forma de agregar não ao preparo um visual ainda mais primoroso. A
apenas valor ao produto - que será repassado função do cozinheiro na finalização e apresenta-
ao consumidor final - mas preservar o aspecto ção é, sobretudo, saber extrair as mais variadas
artesanal do fazer culinário. nuances do ingrediente.
Outros exemplos para se trabalhar o in- O manejo adequado do equilíbrio, da unidade
grediente são: paysanne (cubos de 1cm x 1cm); e do ponto focal possibilita o desenvolvimento da
parmentier (cubos de 12mm de lado); jardineira última regra geral de montagem de pratos, o fluxo.
(bastões quadrados ou retangulares de 5 a 6 mm Seja em um serviço de self-service ou em um menu
de lado e 2 cm de comprimento); bâstonnet (bas- degustação de empratados, a apresentação deve
tões quadrados ou retangulares de 8 a 10 mm de ser feita pensando também nas dificuldades do
lado e 3 cm de comprimento); parisienne (feito serviço e manejo da louça. A característica visual
com boleador em forma de esfera de 1,5 cm de deve permanecer intacta na mesa do comensal,
diâmetro); macotte (formato de gomos de laranja); tal e qual foi arquitetada na cozinha. Por isso,
pétalas niveladas; biseaux (cortes na diagonal a algumas decorações se tornam inviáveis: ingre-
45° com 7cm); coração de folhosas; flexas com dientes equilibrados da maneira errada uns sobre
parte de talos e folhas; barquette (derivado do tor- os outros, molhos de finalização para desenhos
neado, tem o formato de folha ou de um pequeno (que aqui chamaremos de espelhos ou reduções)
barco); tranche (semelhante ao biseaux, só que muito líquidos, entre outras situações, podem
maior. Mais utilizado em carnes); entre outros. parecer boas ideias na cabeça, mas no momento
É importante ressaltar que as técnicas da execução tornam-se verdadeiros problemas.
clássicas fornecem ao cozinheiro uma base É por isso que devemos levar em consideração
que, conforme seu treinamento e criatividade, que o ponto de cocção dos ingredientes influi
pode originar novas técnicas. Um bastão, por diretamente na finalização dos pratos. O molho
Criatividade e Inovação em Gastronomia
pouco espesso que serviria para compor a estética No momento de escolher em que lugar cada
de uma entrada, por exemplo, pode fluir por toda componente do preparo será depositado, al-
a louça deixando o preparo com aparência de sujo, gumas regras básicas podem servir de ponto
de mal executado. de partida. O primeiro modelo seria o “alvo”.
Outro aspecto importante na montagem do Nele, a proteína fica no centro do prato, ao lado
prato é a altura, que está diretamente relacionada dela o acompanhamento (circundando a prote-
também com o volume, ou seja, a dimensão. Salvo ína) e nas extremidades o molho ou redução.
algumas exceções, evitar montagens muito planas O segundo modelo seria o “relógio”. Nele, para
e lineares ajuda a tornar o produto final mais organizarmos os elementos no prato determi-
atrativo. Isso não significa que devemos empilhar namos as localizações de acordo com as horas
ingredientes deliberadamente, mas saber exaltá- de um relógio analógico. Entre 9h-12h ficaria
-los e torná-los o mais visível possível. Importante o amido; entre 12h-3h a proteína e em 6h os
notar que o prato deve possuir um lado frontal: vegetais e legumes.
trata-se da perspectiva em que o comensal irá Por fim, discutiremos um aspecto um pouco
apreciá-lo visualmente. Isso precisa ser esclarecido mais complexo na apresentação dos pratos,
com antecedência ao garçom, para que o serviço porém de extrema importância para garantir a
seja feito de maneira a garantir a melhor exposição visualidade da comida. Trata-se do movimento.
do trabalho final do chef. Como falamos até agora, as possibilidades de
dar novas formas a um ingrediente são muito
grandes. Por meio dos mais variados cortes é
possível redefinir a geometria do alimento, o
que irá influenciar na estética final do prato.
Para melhor entendermos o conceito de mo-
vimento vamos utilizar como exemplo uma so-
bremesa bem simples: o rocambole. Basicamente
trata-se de uma massa de pão-de-ló, coberta
por uma ganache de chocolate e enrolada em si
mesma. Ao cortar as fatias do rocambole per-
cebemos o primeiro conceito de movimento
que podemos encontrar em um prato: a circu-
laridade. A ganache escura em contraste com a
massa clara formará o desenho de uma espiral. O
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 115
interior de uma cebola, por exemplo, nos causa Vamos supor que nos foi incumbido finalizar
o mesmo efeito. Portanto, quando falamos de um salteado de peixe com legumes e molho de
movimento estamos falando de perspectiva, de ostra que, entre os seus ingredientes, levava
ilusão de ótica. De forma ainda mais resumida, cúrcuma e páprica picante. Antes de dispor os
a maneira como os elementos são dispostos no ingredientes na louça, com auxílio de duas folhas
prato, bem como a forma como os ingredientes de papel manteiga posicionadas paralelamente,
são trabalhados, dara na observação do comensal pulverizamos - utilizando uma peneira - mais
uma sensação de movimento, de um prato vívido páprica e cúrcuma para criar algumas formas
e nada monótono. geométricas no prato. Com isso, fazendo uso
Esta perspectiva está relacionada a dimen- das cores amarelo e vermelho desses condimen-
são implícita do comensal, diferentemente da tos, pretendemos deixá-lo visualmente mais
dimensão real - ou seja, de altura e volume. atrativo. Porém, a depender da quantidade, a
Justamente por isso o gastrólogo precisa sempre pungência da páprica e o gosto do açafrão irão
se colocar no lugar do cliente, conhecer o seu mascarar o sabor dos outros ingredientes. É
público alvo para também pensar na finalização muito importante que, na montagem, se há
de seus pratos, mas este é um assunto para o o uso duplicado de um dos componentes da
próximo tópico desta unidade. receita para deixar a apresentação mais visual,
Por fim, além dos conceitos visuais e, por- ele não se sobressaia no paladar em relação aos
tanto, de beleza, é também importante levarmos outros produtos utilizados. Isso comprometerá
em consideração aspectos funcionais na finaliza- a qualidade do alimento.
ção e montagem de um prato. O primeiro deles Também ainda sobre a funcionalidade da
é que todos os elementos sejam comestíveis. montagem, devemos pensar em como o comen-
Decorações que serão abandonadas na louça ao sal irá fazer uso dos talheres. Ou seja, como ele
final da refeição devem ser evitadas. Assim como irá consumir o preparo. Falamos anteriormente
deve-se evitar também ingredientes decorativos que, de modo geral um prato completo pode ser
que não façam parte da composição do preparo composto por uma proteína, um vegetal, um
em termos de sabor. O mesmo cuidado deve ser amido e um espelho. As quantidades de cada
levado em consideração na situação contrária: elemento, a maneira e a ordem em que estão
utiliza-se como decoração, por exemplo, uma dispostos pode alterar o sabor final.
especiaria que foi aplicada na receita, mas que na Vamos usar como situação hipotética um
apresentação excede em termos de quantidade preparo montado em três camadas, bastante
o que foi indicado na ficha técnica. untuoso e que, em sua base, haja uma redução
Criatividade e Inovação em Gastronomia
cítrica para reduzir um pouco da gordura do terços, que é basicamente estruturada a partir da
elemento principal - neste caso uma mousseline Sequência de Fibonaci.
de salmão. Sobre ela o prato é finalizado com Com o intuito de facilitar o enquadramen-
uma quenelle de queijo com castanhas. to dos elementos no prato, podemos utilizar
Ao se servir, o comensal pegará um pouco esta regra, que comumente é aplicada nas artes
da quenelle, em seguida a mousseline e, auto- plásticas. Para entendê-la melhor, precisamos
maticamente, a redução cítrica. Se a quantidade, imaginar a louça escolhida para a montagem do
o formato e a posição estiverem harmônicos prato como o visor de uma câmera fotográfica.
e proporcionais, o cítrico não irá sobressair a Em seguida, dividimos de forma imaginária esse
mousseline e a quenelle poderá ser consumida espaço em branco em nove partes iguais por
aos poucos, até o final do elemento principal, meio de quatro linhas retas: duas horizontais e
sem “roubar” o sabor do salmão. Teremos, duas verticais. O cruzamento dessas linhas no
portanto, um prato visualmente atrativo, mas prato são chamados de terços, pois dividem a
também funcional. Na montagem dos pratos área selecionada em terços da sua altura e do seu
devemos pensar em facilitar a vida do cliente, comprimento. Ou seja, teremos um quadrado ao
e não complicá-la com apresentações muito ar- centro do prato, três quadrados do lado direito e
quitetônicas, confusas e rebuscadas. três do lado esquerdo. O mesmo se repete acima
e abaixo da área central. Desta forma, podemos
Regra dos Terços dizer que, no enquadramento, a distância entre a
Assim como tratamos no início deste tópico, os borda superior do prato até o terço será também
filósofos gregos também sempre discutiram como sempre de ⅓ da altura considerada, e assim su-
os seres humanos percebiam a beleza. Alguns cessivamente até a borda inferior. O mesmo
chegaram a conclusão que a matemática e o belo acontece com o comprimento. Em síntese, tra-
estavam extremamente conectados. Estamos ta-se de uma divisão matematicamente perfeita.
falando aqui da Proporção Áurea, também co- Ao executar a montagem dos pratos, se os
nhecida como o Número de Ouro da Sequência elementos forem dispostos sobre as linhas da
de Fibonaci. A Proporção Áurea está presente em regra dos terços, as chances do preparo ficar
tudo o que vemos, e portanto, em toda a natu- visualmente mais belo - e, portanto, atrativo -
reza, por isso faz parte das nossas percepções. O serão muito maiores. A imagem fica ainda mais
que achamos belo, geralmente enquadra-se nesta interessante se o elemento principal do prato
proporção. Porém, para simplificar e entender isso (ponto focal) estiver distribuído no encontro de
de forma mais prática, utilizaremos da regra dos uma linha horizontal com uma linha vertical.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 117
A regra dos terços nos ajuda a suplantar julienne. Um exemplo de uso do mandoline é
o conceito de que apenas o que está no centro o talharim de pupunha. Pequenas espátulas
será visualmente mais atrativo. ajudam na disposição dos componentes da
receita de maneira mais controlada, evitando
Utensílios que o ingrediente suje outras áreas da louça
Muitos utensílios podem facilitar a vida do que ficarão expostas. Pincel: ajuda no ajuste
gastrólogo na execução da finalização dos da disposição de molhos, espelhos, reduções,
pratos. Bisnagas ou tubos por sucção ajudam manteiga noisette ou azeites aromatizados por
a trabalhar com molhos, emulsões e reduções infusão sobre alimentos e louças. Aros de diver-
de maneira mais precisa, bem como pinças sos formatos e tamanhos limitam a disposição
cirúrgicas auxiliam a montagem com elemen- de ingredientes não muito consistentes. Papel
tos mais delicados e frágeis, como os sumités, toalha e álcool: antes de iniciar e ao término
flores comestíveis e brotos. O maçarico culi- da montagem, é fundamental que a louça seja
nário também pode ajudar em leves gratina- limpa e que não haja marcas de digitais em ne-
dos. Mandoline: fatiador ajustável e preciso nhuma parte. Devemos notar também que, se a
possibilita as mais finas fatias de ingredientes, preparação for quente, a louça deve ser aquecida
estas, podem originar em outros cortes, como antes da finalização do prato.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 119
Operacionalizando
A Cozinha Autoral
Para que um restaurante ou qualquer outro que se pretende oferecer; tempo de preparo es-
serviço gastronômico consiga manter suas colhido para os pratos; tempo disponível dos
pesquisas e investigações culinárias ativas, ele comensais; possibilidades financeiras do cliente;
necessita ter um mínimo de rotatividade e saber capacidade de produção da cozinha; quantidade
qual o perfil do cliente que ele deseja conquistar de louças, talheres e cristais disponíveis, bem
e agradar. Não podemos ser ingênuos ao achar como o número necessário de funcionários para a
que o simples fato de um prato ser provocativo, execução do serviço (TEICHMANN, 2009, p.33)
saboroso, visualmente atrativo e de preço coe- Vamos discutir de forma ainda mais pro-
rente o tornará um sucesso na realidade de um funda a terceira definição proposta: tempo dis-
restaurante. Isso tudo dependerá de quão bom ponível dos comensais. Desde o início da nossa
administrador o chef será em seu empreendi- disciplina ficou claro que o restaurante deixou de
mento. A cozinha autoral hoje no Brasil é um ser um espaço apenas fisiologicamente funcio-
desafio, entretanto, percebe-se um crescimento nal - ou seja, onde apenas repomos os nutrientes
exponencial de um público disposto a deixar necessários para sobrevivência - e tornou-se um
o tradicionalismo culinário para aventurar-se espaço de articulação da cultura. Ora, se estamos
em novas experiências alimentares. Isso tudo, falando de um trabalho que envolva todos os
obviamente, torna-se mais nítido nas grandes sentidos e seja uma experiência, o cliente não
capitais e metrópoles. Cabe ao chef de cozinha irá usufruir de tudo isso utilizando do mesmo
possibilitar que essa migração seja a mais na- tempo que ele tem para fazer uma refeição no
tural possível. intervalo da sua carga horária de trabalho.
De acordo com Teichmann (2009), alguns Isso tudo reafirma a necessidade de co-
questionamentos devem ser ponderados até nhecer o cliente em potencial e traçar de ma-
mesmo antes da concepção de qualquer prato. neira objetiva o seu perfil. Desta forma, além
Isso facilita que o processo criativo seja homo- do tempo disponível devemos saber: poder
gêneo para toda a equipe e também compatí- aquisitivo, idade, sexo e formação cultural.
vel com a realidade local. Esta, seria a primeira Por exemplo, jovens ou estudantes tendem a
prescrição no intuito de tornar a cozinha autoral procurar refeições mais descomplicadas, aces-
frutífera e rentável. síveis, rápidas e fartas do que pessoas de meia
Em linhas gerais, é primordial antes de idade. Estas, terão mais tempo e dinheiro para
qualquer decisão operacional que as seguintes uma refeição mais completa e um cardápio mais
definições sejam aperfeiçoadas: tipo de refeição sofisticado (p.39).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 121
Criatividade e Inovação em Gastronomia
Saber essas informações nos leva a pensar em e nutricionais básicas. Vale notar que qualquer
outro ponto também muito importante e que restaurante ou serviço que já esteja no mercado
pode influenciar diretamente no sucesso de e queira incorporar no menu opções não tão
uma proposta gastronômica mais autoral: a óbvias, deve fazer isso de maneira gradativa para
localização do restaurante. Estabelecimentos que o comensal mude seus hábitos alimentares
em áreas econômicas centrais terão um fluxo da forma mais natural possível.
maior de trabalhadores que estão mais dispos- Isso nos leva a outro fator importante ao se
tos em repor suas energias. Os restaurantes pensar a engenharia de um cardápio: as prefe-
mais afastados do nicho comercial são onde, rências regionais. Como vimos anteriormente,
geralmente, os comensais estarão propensos a cada localidade possui uma formação histórica,
ficar mais tempo à mesa, uma vez que a refeição social, política, econômica, religiosa e cultural.
já demandou um tempo maior de locomoção. Indiscutivelmente isso provoca no âmbito da
Desta forma é plausível que o cardápio seja mais alimentação uma heterogeneidade considerável
complexo. A excessão seria que, para os estebe- de região para região. Ou seja, um cardápio que
lecimentos cujo foco é uma clientela mista, haja deu certo em um local “X”, pode ser desaprovado
uma diversificação do cardápio. O mesmo acon- quando praticado em uma localização “Y”.
tece para restaurantes que tenham um público A variação climática também é mais um
alvo único e fixo, mas estejam preocupados em elemento que devemos nos preocupar ao pro-
atender o que chamamos de clientela flutuante, jetar uma cozinha autoral. Ela não só define os
no caso de específicas localizações em que há ingredientes disponíveis como também deter-
períodos turísticos definidos, por exemplo. mina peculiaridades regionais de agricultura e
É importante lembrarmos que a criatividade pecuária. Ao respeitar a sazonalidade, automa-
e a inovação não se delimitam apenas aos res- ticamente o menu será modificado. Se o chef
taurantes de alta gastronomia e que atendam souber interpretar os ingredientes disponíveis,
por reserva. Um cardápio arrojado com pro- a inovação - ou pelo menos parte dela - estará
priedades da gastronomia contemporânea pode assegurada (TEICHMANN, 2009, p.40)
estar perfeitamente incluso dentro de refeições Neste sentido, é importante que as receitas
de alta rotatividade do dia-a-dia, desde que haja sejam planejadas visando também a capacida-
o cuidado de se fazer isso de forma orgânica, de do sistema de compras e estocagem (p.43).
trabalhando com ingredientes que possam ser No momento da criação de um prato, devemos
incorporados na dieta sem grandes rejeições e ponderar a vida útil dos ingredientes que o
que tenham, ao menos, preocupações calóricas compõem; as possibilidades de conservação sem
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 123
P
or fim, outra ferramenta útil para
organização do cardápio é o plane-
jamento horizontal (TEICHMANN,
2009, p.49). Após a definição de
todos os pratos, ele possibilita que o chef tenha
uma visão global das receitas, observando se
as mesmas têm o mesmo conceito em comum
e as possíveis harmonizações entre entradas
quente e fria, primeiro prato, prato principal
e sobremesa.
Em uma cartolina grande deve-se dese-
nhar um quadro com todas as opções elabora-
das ao longo do processo criativo. Nas linhas
horizontais deverão ser discriminados os tipos
de serviço (entrada, prato principal, guarnição
e sobremesa) e nas linhas verticais os dias
da semana em que o restaurante ou serviço
gastronômico atenderão seus clientes. Assim,
além de utilizar o planejamento como meca-
nismo de um diagnóstico integral da persona-
lidade do menu - bem como as necessidades de
requisições de compras -, o gastrólogo poderá
assinalar possibilidades de escolhas seguindo
normas de compatibilização de pratos sequen-
ciais por oposição ou por semelhança. Isso
facilitará não apenas a organização de menus
degustação e eventuais substituições de pre-
paros - que não se adequam ao cardápio em
termos de conceito, harmonização ou logística
-, mas também criará sugestões que poderão
ser dirigidas ao comensal, amparando suas
escolhas.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 127
Criatividade e Inovação em Gastronomia
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 129
Cozinha de
Desconstrução
A
o utilizar essa técnica como recur- O intuito de transgredir o clássico é um con-
so de concepção de uma culinária ceito que vem desde das mais variadas formas de
inovadora, devemos voltar aos arte. Por exemplo, a dança contemporânea é um
princípios básicos propostos pela rompimento com a estética imposta pelo ballet.
cozinha molecular. Recapitulando, trata-se do Assim, a depender da crítica especializada e do
conhecimento a fundo das características físi- público, essa transgressão pode ser encarada
co-químicas dos ingredientes. Mas, por que isso como algo ruim ou como algo promissor.
é tão importante na cozinha de desconstrução? Vamos tomar como exemplo um típico
Ao selecionarmos um prato para aplicar essa preparo espanhol: a tortilla. Na receita original
técnica, inicialmente devemos isolar todos os utiliza-se apenas batata, cebola, azeite, ovos e
ingredientes contidos na receita original. Isso é sal. As batatas são descascadas e cortadas em
feito para que se possa estudar os insumos separa- rodelas, juntamente com a cebola. Em seguida,
damente, suas características organolépticas prin- em metade do azeite o tubérculo é frito até que
cipais e as probabilidades de reações positivas com fique macio e ligeiramente dourado. Depois, a
outros ingredientes ou outras técnicas de corte e cebola é adicionada e frita até murchar. O preparo
cocção. O que se pretende é chegar a resultados é então retirado do fogo e reservado. Os ovos são
progressivos em relação à receita original, e nunca levemente batidos, temperados e mesclados com
aquém. É certo que, ao procedermos com essa o refogado de batata. No restante do azeite e em
análise preliminar, veremos que a desconstrução uma frigideira antiaderente essa mistura é adicio-
de alguns pratos é tecnicamente impraticável. Por nada e cozida em fogo brando por dez minutos,
isso trata-se, acima de tudo, de um exercício de ou até que haja uma caramelização uniforme dos
treinamento, experimentação e aperfeiçoamento dois lados. A tortilla então já pode ser servida.
da habilidade de improvisação. Porém, tudo isso Utilizando dos mesmos ingredientes - en-
só se realiza por meio do domínio da técnica. tretanto com técnicas distintas - poderíamos
Em síntese, estamos falando da inversão de alterar completamente a apresentação e a tex-
processos culinários para que se possa extrair do tura, com novas nuances de sabor, todavia, sem
prato novas texturas, sabores, aromas e cores, perder sua carga cultural (vale notar que há con-
contudo, sem perder as suas características ine- troversas na literatura gastronômica sobre este
rentes, ou seja, a sua carga cultural. Trata-se último aspecto).
de um prato de origem, mas apresentado de A batata, após ser descascada e cortada em
maneira completamente diferente: a inovação cubos, pode ser cozida até ficar tenra, e em se-
por meio da tradição. guida processada no liquidificador com creme
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 131
exatamente isso, sobretudo no caso da cebola Qual a sua opinião sobre o assunto?
[...] o formalismo aplicado aos molhos dois minutos. Os legumes escaldados são dis-
clássicos franceses, conforme com- postos no prato formando um círculo, sobre
pilação de Caème, Escoffier e outros, eles é posicionada a esfera de batata, que recebe,
e a observação em microscópio ótico
por fim, o coulis de azeitona. A espuma então é
permitiram descobrir regularidades de
estrutura e comportamento físico-quí- montada com auxílio de um mixer, sobrepondo
mico em todos eles, de modo que possa a esfera (ROCA, 2014, p.112).
reagrupá-los [...]
Além de um exemplo claro de desconstru-
Esse tratamento formalista permite, por
sua vez, a invenção de novos molhos ção, a salada russa do restaurante Celler é um
(DÓRIA, 2009, p.243). modelo de montagem lógica e bem regida, uma
vez que os ingredientes são colocados em quan-
Além da questão dos molhos, podemos ilustrar tidades e disposições que indicam ao comensal
este tópico com outro exemplo bastante inusita- a melhor forma de apreciá-los.
do. A salada russa é um prato relativamente sim- O já saturado presunto com melão ganhou
ples e conhecido pelos brasileiros. Inventada em também uma nova cara na cozinha espanho-
1860 por um chef chamado Lucien Olivier, em la. Para fazer o canapé (que originalmente não
Moscovo, o preparo ganha ao redor do mundo passa da união de dois ingredientes crus), os
inúmeras variações de ingredientes. Entretanto, cozinheiros destruíram e reconstruíram o melão
basicamente trata-se de uma salada de legumes novamente. A casca é feita com uma água de
cozidos (batata, cenoura, vagem) com atum e estragão, ágar-ágar, açúcar e gelatina. Depois de
servidos com uma emulsão. gelificado, o preparo é triturado em ponto purê,
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 133
Fonte: o autor.
Criatividade e Inovação em Gastronomia
considerações finais
N
esta última etapa de nossos estudos foi possível sistematizar
alguns artifícios que ajudam a descomplicar a montagem de pratos.
Esta fase do processo gastronômico é o momento de mostrar ao
comensal o resultado de inúmeras pesquisas e testes, ou seja, de
tornar o produto comercialmente vantajoso. Por isso é imprescindível que
vários cuidados sejam tomados no momento da apresentação. A estética
do prato não apenas deve valorizar as suas nuances gustativas, mas ser um
convite para que o cliente queira descobrir outras faces do menu.
Para tornar tudo isso viável é necessário que o cozinheiro seja, acima
de tudo, analítico e um hábil administrador, compreendendo que um bom
conceito e um primoroso prato não são nada sem um inteligente marketing
gastronômico. Sobretudo quando propomos uma cozinha inovadora, que deixa
de lado certos padrões, indagando tendências e sugerindo novas experiências,
é necessário que estejamos convictos de nosso trabalho para que possamos
proferir sobre ele um discurso enérgico e coerente.
O caminho para inovar passa por uma delicada área de risco. Isso porque,
em comparação com outros países, a gastronomia no Brasil é um estudo
acadêmico recente. A profissionalização do cozinheiro ampara-se em um
conhecimento que ainda está sendo construído. Por isso, ter um olhar atento
e crítico ao que é produzido pelos grandes chefs nacionais é uma forma de
situar-se em uma profissão em desenvolvimento. Não obstante, precisamos
fazer de nossas cozinhas um espaço que estimule o progresso culinário por
meio do uso racional das técnicas, do entendimento dos anseios do público
alvo e, sobretudo, do bom gosto.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 135
leitura complementar
Há quem ainda pense que nós, gastrônomos, com uma definição de “nova gastronomia”, o
somos um bando de comilões egoístas que não gastrônomo tomará plena consciência de toda
se importam com o que os cerca. Infelizmente, a complexidade disciplinar da matéria. Não terá
essas pessoas entenderam mal: ao contrário, são a pretensão de ser onisciente; ao contrário, não
exatamente as habilidades do gastrônomo - que co- hesitará em convocar todos os que possam lhe
meçam pelo treinamento da sensorialidade pessoal estender a mão. (p.9-10)
para saborear (com implicações bem mais profun- [...]
das em relação à realidade, inodora e insípida, que A gastronomia é uma ciência complexa e,
nos circunda) e vão até a produção do alimento que se for estudada com uma abordagem multidis-
o levam a preocupar-se com aquilo que o cerca, a ciplinar, nos restitui, a partir da reapropriação
sentir-se, de alguma maneira, coprodutor do ali- de nossa sensoralidade, as bases para interpre-
mento, parte de uma comunidade de destino. tação, valores sobre os quais trabalhar, novos
Esse destino comum se torna mais evidente companheiros de viagem e todo o sentido da
se pensarmos simplesmente que nós, seres huma- realidade. Ajuda-nos a ver onde estão os me-
nos, habitamos a mesma terra e dela extraímos canismos culturais e produtivos que servem
nutrição. [...] Essa é a razão pela qual o novo gas- à causa de um mundo mais equitativo e feliz;
trônomo deve possuir e justificar uma capacida- incita-nos a intervir, conscientes de nossa ca-
de de análise de tais sistemas: partindo da longa pacidade e possibilidade de fazê-lo. Torna-nos
busca pelo bom, pelo prazer alimentar, descobre criativos (p.187).
que existe também um mundo de produção-con- [...]
sumo, paralelo àquele envolvido em glamour, que [...] uma ciência articulada e redefinida; a
contém as sementes de um sistema global melhor. ideia de bom, limpo e justo; a vontade de educar-
Entretanto, a ciência gastronômica e as -se e de não sucumbir à ignorância dos sentidos
habilidades que dela derivam foram mal com- e do intelecto; a consciência de pertencer a uma
preendidas e deixadas à margem por uma comunidade de destino e a vontade de elaborar
longa cadeia de motivos (em parte por culpa uma nova maneira de promover e praticar o
do próprio gastrônomo [...]) Impor-se não será saber. Há uma nova procura do sabor, que encer-
suficiente. É preciso redefinir a ciência gastro- ra todas essas ideias e que, para não ser apenas
nômica e dar-lhe a dignidade merecida. [...] a ideal e impraticável, necessita de planejamento
partir de uma análise histórica que se encerra e de pragmatismo (p.187-188).
atividades de estudo
1. A montagem de pratos e o planejamento da execução dos mesmos são duas atividades que
se complementam: além do conhecimento técnico e instrumental é preciso saber articular
mecanismos de administração. Sobre isso, é CORRETO afirmar:
a. A viabilização de uma cozinha criativa e inovadora só se dá por meio da interação com um
cardápio “conservador”, cuja aceitação já é garantida. Desta forma a culinária tradicional
subsidia as pesquisas de um projeto de vanguarda. Este, não se autossustenta fora das
grandes metrópoles.
b. A relação entre sabor e visual está condicionada pelo agrupamento de técnicas de trans-
formação. Desta forma, um ingrediente isolado in natura, dificilmente poderá auxiliar na
finalização do preparo em termos estéticos.
c. A aplicação da regra dos terços implica - nas normas de montagem - exclusivamente na
estruturação do fluxo.
d. O planejamento horizontal possibilita uma análise do menu na sua totalidade. Por sua vez,
as sugestões de harmonizações entre serviços se tornarão mais nítidas.
e. A localização do restaurante não possui influência significativa nos casos de produção de
Alta Gastronomia.
2. Com base nos conhecimentos aplicados no último tópico desta unidade, escolha um prato
clássico ou tradicional que você tenha mais conhecimento, seja da sua teoria (história, origem)
ou da prática (execução da ficha técnica). Descreva as características do prato original - com
ingredientes, quantidades e modo de preparo - e faça uma desconstrução do mesmo, justificando
suas escolhas. Para o prato criado elabore também uma ficha técnica e faça o teste de sua receita.
Orientação de resposta: Faça uma análise, primeiramente, das técnicas de cocção e corte
que você mais domina. Isso ajudará no processo de escolha do prato. Opte por preparos
que não possuam muitos ingredientes, mas que os poucos utilizados sejam versáteis.
Ingredientes como ovo, derivados do leite, amidos, entre outros, possibilitam uma articu-
lação mais variada de texturas e sabores. Lembre-se de separar todos os ingredientes que
compõe o prato e experimentá-los isoladamente. Então passe a fazer associações não tão
óbvias, essa experimentação é fundamental para que o cozinheiro possa ter ideias mais
inovadoras. Pense em materiais e ingredientes de apoio. Você não precisa fazer a descons-
trução de um preparo utilizando exatamente os mesmos insumos, apenas os principais
devem ser mantidos. Por fim, faça uma ficha técnica completa, com informações precisas.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 137
material complementar
ALINEA
Grant Achatz
referências