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PRAGMATISMO - WILLIAM JAMES

índice

Prefácio do editor.5
Dedicatória.11
Introdução.13
Prefácio do autor.23

Primeira Conferência

O atual dilema da filosofia.25

Segunda Conferência

O que significa o Pragmatismo.43


Terceira Conferência

Alguns problemas metafísicos considerados pragmaticamente.61


Quarta Conferência
Singular e plural.80
Quinta Conferência
Pragmatismo e senso comum. 97
Sexta Conferência

Concepção da verdade no Pragmatismo.111


Sétima Conferência

Pragmatismo e humanismo.130
Oitava Conferência

Pragmatismo e religião.145
Perfil biográfico.159
Texto Complementar - Pragmatismo.169
Dedicatória do autor de Pragmatismo:

A memória de John Stuart MUI


com quem eu aprendi pela primeira vez
a sinceridade espiritual pragmática
e que na imaginação gosto de conceber
como nosso mestre se hoje fosse vivo.
Introdução

JOSEPH L. BLAU

I I Espirito do homem reflexivo nos últimos anos do século


,

XIX ,
estava dividido contra si mesmo. Intelectualmente,
estava dominado pela visão científica do mundo. Seus conceitos
físicos eram os de um universo de partículas atómicas em movimento
determinado - ao que se faz alusão frequentemente como o "univer-
"
so bola de bilhar da física do século XIX. Sua visão da vida e das
ciências biológicas era impulsionada em uma direção semelhante
pelo impacto do pensamento evolucionista, que culminou na teoria
de Darwin. Emotivamente porém, estava ainda vivendo em um
,

universo pré-científico no qual o homem era a criação especial de


,

uma deidade condescendente, cujo cuidado e dedicação por suas


criaturas era tal que, sendo necessário, realizava milagres, pondo
de lado as leis da natureza a favor de seus favoritos. Os realistas
insistiam em que os seres humanos viviam em um mundo no qual
os consequentes seguiam seus antecedentes com regularidade ine-
xorável. a despeito dos desejos, esperanças e ideais humanos. Os
idealistas insistiam em que os desejos e os esforços humanos pode-
riam acarretar uma diferença no curso dos acontecimentos.
O fato de William James (3842-1910) ter sido distinguido como
filósofo pelo povo durante esse período decorre de ter apresentado
com graça e brilho e considerável entendimento, uma teoria que
poderia reconciliar o realismo e o idealismo. Os filósofos profis-
sionais nunca levaram James a sério. Escrevia muito bem; expres-
sava-se com demasiada clareza para poder ser tido na conta de
profundo; embora torturado possa ter sido o seu próprio curso no
13
alcançar de uma posição, seu estilo nunca o traiu em sendo tortuoso.
Fez o pensamento filosófico parecer muito fácil, ao alcance de
qualquer pessoa. Os problemas que o obsedavam eram os mesmos
que importunavam os espíritos de seus contemporâneos, de
preferência as questões técnicas especiais da fraternidade filosófica.
Ao longo de seus últimos anos, esteve sempre prometendo a si
mesmo escrever uma exposição de sua posição filosófica em
linguagem técnica para benefício de seus colegas profissionais,
mas acabou morrendo deixando apenas fragmentos desse tema.
Não obstante, porém, dentre os filósofos americanos, nenhum outro,
exceto Ralph Waldo Emerson, tem sido tão amplamente lido em
seu país e na Europa, e nenhum outro tem sido tão calorosamente
saudado como o porta-voz de uma atitude de espírito caracteristi-
camente americana.
Embora as obras pelas quais William James seja principalmente.
lembrado como filósofo tenham sido escritas durante a última
década de sua vida, seu contato com a filosofia deu-se cedo. Seu
pai, o mais velho Henry James. foi homem de independência finan-
eeira, que dedicou a maior parte de sua vida a desenvolver uma
teologia filosófica profunda, mas excêntrica. À mesa de jantar de
James. era prática comum a conversação girar em torno de algum
problema filosófico; o pai aparentemente se deleitava com ter o
debate iniciado, guardando-se em seguida, a escutar os esforços de
seus filhos para resolver problemas que haviam perturbado os mais
argutos pensadores do mundo por gerações, se não por séculos. A
partir de então William James adquiriu permanente interesse pela
filosofia, juntando-.se com entusiasmo aos seus amigos em
discussões informais sobre assuntos "metafísicos". Na realidade, o
aspecto pelo qual mais tarde haveria de ter celebridade formou-se
em um desses grupos de discussão, liderado por Charles Sanders
Peirce, por volta de 1870. William James escreveu, durante as
décadas de 1870 e 1880, algumas páginas de conteúdo filosófico,
nas quais estavam disseminados os grãos de sua posição futura.
Mas não foi senão por 1897 que passou a encarar a filosofia com
interesse profissional.
James e seus irmãos foram educados de maneira bem irregular.
O pai tanto se achava em casa na Europa como na América, e seu
caráter deambulatório veio a ser o padrão de vida para a família
toda. William não conseguia se resolver no sentido de que carreira
queria seguir. Pensou que podia tornar-se um artista, mas pendeu
também para urna carreira na ciência. Caracteristicamente, seu pai
deu-lhe a oportunidade para explorar ambas as possibilidades.
Afinal, formou-se em medicina e foi nomeado para a Faculdade de
Harvard, em 1872, para lecionar fisiologia. Quatro anos mais tarde.
ficou responsável pelo estabelecimento de um pequeno e admitida-
mente inadequado laboratório de psicologia em Harvard; ficara
impressionado com a nova disciplina de psicologia fisiológica que
se estava gerando nos laboratórios de psicologia das universidades
alemãs, e esperava construir coisa parecida na América. De maneira
característica, o próprio James fez uso reduzido do laboratório; há
registro de seus estudos experimentais sobre vertigem levados a
cabo aí, mas James não era propriamente um cientista de labora-
tório. A importância do laboratório de Harvard reside no fato de
que, a despeito de suas limitações, alguns dos estudantes que aí
treinaram foram levados a prosseguir mais ainda em seus estudos
posteriores.
James por essa época, estava mais interessado no campo geral
,

da psicologia do que na área especial onde a psicologia e a fisiologia


se sobrepõem. Transferiu-se para o departamento de filosofia, na
primeira oportunidade, a fim de ensinar sua versão de psicologia.
Era amplamente versado em escritores franceses e ingleses tanto,

quanto em alemães, de psicologia, de modo que seu curso e sistema


veio a incluir uma seleção de temas tirados dos estudos típicos dos
sistemas europeus. Em razão dessa largueza de perspectivas, viu-se
em condições de romper o modelo de psicologia, baseado princi-
palmente em referências inglesas, que era, então, dominante nas
faculdades americanas. Formais de um século, a psicologia inglesa
tinha estado encerrada em um abraço de morte com uma teoria do
conhecimento baseada sobre um estrito dualismo espírito-matéria ,

insistindo em que o espírito era o recipiente passivo de simples


impressões advindas do mundo externo. Essas simples impressões
não eram em si impressões de objetos, mas de qualidades não
relacionadas entre si. A fim de formar ideias de objetos, o até aqui
espírito passivo tinha de trazer constelações de qualidades em
relações uma com a outra. A maneira pela qual o espírito procedia
assim era por intermédio da associação de impressões semelhantes .

Em lugar dessa psicologia "associativa", James expôs uma análise


do espírito como uma espécie de comportamento com relação ao
mundo externo. Espírito, para ele, era uma atividade um processo
,

dinâmico; consíderava-o de algum modo à luz da biologia evolu-


análise. Para ele,as emoções e os processos subinconscientes e
inconscientes foram ponto por ponto tão importantes quanto os
processos conscientes e muito mais interessantes do que estes. Sua
discussão mais influente, relativa ao "fluxo de consciência", de-
rivou de sua nova interpretação funcional e comportamental da
psicologia, tendo importantes consequências para sua filosofia,
tanto quanto pajra a literatura do século XX.
Anteriormente a James, a consciência fora tratada, dentro da
tradição do empirismo inglês, como uma sucessão de impressões
mentais separadas e não relacionadas entre si. As vezes dizia ,
.

James, a fim de aperfeiçoar nosso "tratamento conceptual" da


experiência, pode ser útil falar como se houvera percepções sepa-
radas dela e concepções distintas a respeito dessa mesma experiência.
Na realidade, porém, não há tais divisões distintas. Não devemos
presumir que a separação arbitrária que introduzimos para nossa
própria conveniência descreva a realidade da consciência. Ao invés,
insistia, a consciência é uma corrente contínua, um fluxo de idéias,
percepções e relações. Parte desse fluxo acha-se ao centro de nossa
atenção a qualquer momento; mas mesmo quando nosso interesse
está focalizado no centro, há uma certeza de penumbra de sensações
"

e de impressões fugidias. Mais ainda, pensava James, ninguém


jamais teve uma sensação simples por si mesmo. A consciência,
desde nosso dia de nascimento, é de uma prolífica multiplicidade
de objetos e de relações, e o que chamamos sensações simples são
as resultantes da atenção discriminativa, elevadas frequentemente a
"
um grau bem alto Como consequência dessa acentuação, cada
.

pensamento, visto que baliza uma parcela do fluxo contínuo da


"
consciência por meio da atenção seletiva, tende a ser parte de uma
"
consciência pessoal dentro da qual prossegue a seleção. No sentido
,

de acentuar esse ponto mais agudamente, a certeza do eu é uma


consequência da focalização da atenção em estados momentâneos
da corrente de consciência.
Encarado do ponto de vista de sua filosofia posterior, que
" "
chamava de empirismo radical o aspecto mais significativo de
,

sua discussão psicológica do fluxo de consciência foi sua insistência


no fato de que a consciência de relações é parte da corrente, não
"

uma construção do espírito superposta a átomos de sensação. Se


afinal há coisas assim como sentimentos, então seguramente como
existem relações entre objetos na natureza das coisas, assim segu-
ramente e mais ainda seguramente, existem sentimentos aos quais
,
ciente. As definições de Peirce, tanto de verdade quanto de signi-
ficado dependiam de processos públicos. As definições de James
para as mesmas categorias eram bem mais subjetivas e pessoais.
Como Peirce James considerava o significado em termos de
,

consequências de uma proposição, pois em todas as formas de


pragmatismo, o significado e a verdade acham-se localizados no
futuro, de preferência ao passado. As consequências, porém, às
quais James se voltava na busca do significado, eram pessoais
antes de serem sociais particulares antes de serem públicas. O
,

significado de uma proposição, para mim, deve ser encontrado em


suas consequências particulares em minha experiência prática futura,
mesmo que, para você esse mesmo significado desponte em sua
,

experiência futura Poder-se-ia traduzir James nesse passo dizendo


.

que o significado deve ser encontrado no fluxo contínuo da corrente


de consciência de alguém. O significado de um asserto é o uso que
dele posso fazer. Semelhantemente o autor personalizou sua teoria
,

da verdade; uma proposição verdadeira é a que me leva a alcançar,


em minha experiência futura, os resultados que antecipo e que, ,

pois. satisfazem minhas expectativas, ao passo que uma proposição


falsa não me leva aos resultados que antecipo. Investigando a
verdade ou a falsidade de uma proposição a pergunta que estamos
,

fazendo, diz James é: "que diferença concreta, em sendo verdade,


,

fará em qualquer vida atual de alguém?". Se isso é o que a verdade


significa, então é evidente que uma proposição não deve ser tida
como verdadeira no momento em que é feita; somente podemos tê-
la como verdadeira depois que suas consequências particulares
tenham ocorrido na experiência futura de alguém, isso é o que
devemos entender na insistência de James a respeito de que "a
verdade de uma idéia não é uma propriedade estagnada que lhe seja
inerente. A verdade acontece a uma idéia. Toma-se verdadeira, é
feita verdadeira pelos acontecimentos". A verdade é pois, um ,

processo de descoberta.
Tanto quanto as idéias científicas estejam em jogo, não haveria
maior diferença entre Peirce e James visto que, para James, um
,

dos critérios das proposições verdadeiras enquanto guia satisfatório,


,

"
era social. disse, "levam à harmonia intrín-
As idéias verdadeiras" ,

seca. à estabilidade, e ao intercurso humano fluente. Afastam da


excentricidade e do isolamento do pensamento estéril e frustrado".
,

A diferença somente aparece quando se considera o tipo de pro-


rosição que não tenha diretamente consequências verificáveis de
natureza pública. Com respeito a tais proposições James esrava
,

preparado para examinar as consequências da crença no pronun-


ciamento, ao invés das consequências do pronunciamento em si. Se
a crença no asserto faz uma diferença na experiência de vida daqueles
que acreditam, James estava disposto a garantir a proposição do
" "

que chamava de valor da verdade O psicólogo em James foi


.

"

mesmo longe ao ponto de anotar que há alguns exemplos em que a


fé em um fato pode ajudar a criar o fato". Nesses casos, disse James
em seu famoso ensaio intitulado Desejo de Acreditar" nos quais
"

não há uma razão intelectual válida para escolher entre proposições


conflitantes, temos o direito de acreditar na alternativa que terá as
consequências mais satisfatórias em resultado de nossa crença, a
longo prazo e na medida em que podemos prever as consequências.
A verdade e o proveito vieram a tornar-se completamente interli-
gados na teoria de James. Assim, embora a visão de James da
verdade tenha-se desenvolvido a partir da abordagem científica que
satisfez completamente aos realistas de seu tempo, com a introdução
do "desejo de acreditar, preparou o caminho para as necessidades
dos idealistas.
Em seu apanhado final da "noção de verdade", disse James que
" "
a verdadepara falar em poucas palavras, é somente o expediente
,

no caminho de nosso pensamento justamente como "o direito" é


,

somente o expediente no caminho de nosso comportamento. Essa


negativa de verdade absoluta não casou bem com o pensamento do
colega mais moço de James no departamento de filosofia de Harvard ,

Josiah Royce que quis saber se James ficaria satisfeito em pór uma
,

testemunha no banco no tribunal e fazê-la jurar a contar "o expe-


diente nada mais que o expediente e somente o expediente, e assim
,

"

ajudá-la em sua experiência futura E, certamente, até mesmo os


.

membros do clero que apreciavam o préstimo proporcionado pelo


"

desejo de acreditar" à doutrina da existência de Deus, ficaram


desapontados com o tratamento de James dado à "verdade", como
meramente um comportamento de expediente, de preferência à
conformidade a um padrão ético absoluto. James mesmo jamais
negou que pudesse haver um padrão ético; viu, porém, que todas as
tentativas no sentido de estabelecer um modelo dessa natureza
careciam, de aplicabilidade universal. Viu em todas todavia, uma
,

característica comum isso é, que todas são tentativas no sentido de


,

satisfazer os reclamos de algum ser consciente, e formulou daí


como seu padrão moral a satisfação dos reclamos. De modo ideal,
todos os reclamos de cada pessoa interessada poderiam teoricamente
ser satisfeitos pela mesma iniciativa; na prática, entretanto, os
reclamos acham-se sempre em conflito. Ao resolver essa dificuldade ,

James foi levado a uma virtual reformulação do princípio da "su-


"

prema felicidade dos militaristas: que é bom ou é para ser escolhido ,

o curso que satisfaça o maior numero de reclamos do maior número


de pessoas. É ,
em resumo,
"

o expediente no caminho de nosso


"

comportamento .

Muitos filósofos têm ficado profundamente impressionados com


a unidade que descobrem no mundo (ou imposta a ele). James ficou
mais profundamente impressionado com sua variedade seu plura- ,

"

lismo. "A palavra 'ou'" escreveu certa vez, designa uma genuína
,

"
realidade Encarava esse "universo pluralístico" de certo modo
.

baseado no modelo da "corrente de consciência". A constituição


final da realidade não é nem simples unidade nem multiplicidade ,

desligada, mas uma conexão "sem solução de continuidade". "Cada


parte, embora possa não estar em conexão imediata ou real, está,
não obstante em alguma conexão possível ou mediada com toda
,

outra parte, apesar de remota, através do fato de que cada parte


pende junta com os seus vizinhos imediatos em inextricável
"
confusão Reconhecia que esse relato do universo dependia de
.

"
suas discussões anteriores da confluência de cada momento pas-
,

sante de experiência sentida concretamente com os seus vizinhos


imediatamente próximos". Sua visão pluralística foi contrariada,
por um lado, pela idéia dos idealistas, como Royce, para quem toda
diversidade era engolfada pelo Absoluto e, por outro lado, pelo ,

universo fragmentado da versão usual do empirismo, com sua


"

experiência picada a sensações atomísticas incapaz de união com ,

outra qualquer até que um princípio puramente intelectual tivesse


,

se despencado sobre elas vindo do alto, envolvendo-as em suas


"

próprias categorias conjuntivas .

Diferenças de visão como essas eram atribuídas por ele a diferen-


"

ças de temperamento. Uma filosofia é a expressão do caráter íntimo


de um homem c todas as definições do universo não são senão reações
,

de atributos humanos que sobre ele incidem, perfilhadas delibera-


damente". Estamos, pois capacitados a encarar a filosofia do próprio
,

James como evidência da espécie de homem que foi, pois embora


"

Lim filósofo empreste razões impessoais às suas conclusões seu ,

temperamento concede-lhe uma distorção muito mais forte do que


"

qualquer de suas premissas mais estritamente objetivas .


Que espécie de homem foi William James? Foi um homem cujo
treinamento no objetivismo da ciência jamais subjugou completa-
mente sua crença idealística no sentido de que os homens não são
,

meramente uns autómatos, estritamente condicionados por um mun-


do mecânico, mas são, pelo menos até certo grau, os construtores e
formadores de seu mundo. Foi um homem cujo idealismo jamais o
levou ao absurdo de arguir contra a evidência, pois insistia, realisti-
camente que há áreas onde o conhecimento científico exato é
,

possível. Além de que, foi um homem sempre pronto a ser todo


ouvido à mais selvagem das teorias, porquanto não podia convencer-
se de que toda sabedoria fosse académica ou que houvesse somente
um caminho claramente definido no rumo da verdade. Estava inte-
ressado pelo novo, de preferência ao velho; pelo pode-ser-verdade,
de preferência ao foi-verdade; pelo futuro, de preferência ao passado.
O universo em que vivia estava aberto a todos. Talvez o seu mais
característico pronunciamento tenha sido de satisfação em sua casa
de verão com quatorze portas, todas abrindo para o lado de fora.
,

"
Pois como Jerome Nathanson disse muito bem,
, as portas de sua
alma do mesmo modo abriam-se para as experiências múltiplas de
um mundo em movimento, no qual nada estava assente e muito
"

ainda estava para ser feito .

u
Prefácio do autor

s conferências que se seguem foram pronunciadas no Insti-


tuto Lowell, em Boston, em novembro e dezembro de 1906, e
em janeiro de 1907 na Universidade de Colúmbia, em Nova Ior-
,

que. Foram impressas conforme o original, sem desenvolvimentos


ou notas. O movimento pragmático chamado assim - não gosto
,

do nome mas, aparentemente, £ tarúfe demais para mudá-lo -


,

parece ter-se precipitado algo subitamente das alturas. Certo nú-


mero de tendências que sempre existiram na filosofia tornaram-se
,

todas de uma só vez cônscias de si mesmas coletivamente e de sua


,

missão em conjunto; e isso ocorreu em tantos países e de tantos


,

pontos de vista diferentes, que daí resultou muito pronunciamento


desajustado Procurei unificar o quadro conforme se me apresenta
.

aos meus próprios olhos tratando-o em largas pinceladas, e evitan-


,

do as controvérsias miúdas Muita controvérsia fútil poderia ter


.

sido evitada acredito, se nossos críticos estivessem dispostos a


,

aguardar até que tivéssemos dado conta de nossa mensagem.


Se minhas conferências interessam a algum leitor de assunto
geral, sem dúvida que desejará ler mais a respeito. Envio-o, por-
tanto a algumas fontes.
,

Na América, Studies in Logical Theory, de John Dewey, são


fundamentais Ler, também, por Dewy, os artigos em Philosophical
.

Review vol. XV, páginas 113 e 465, em Mind, vol. XV, página 293,
,

e em Journal of Philosophy vol. IV, página 197.


,

Provavelmente os melhores pronunciamentos para se come-


,

çar, entretanto, são os de F.C.S. Schiller, em seus Studies in

23
Humanism, especialmente os ensaios de números I, V, VI, VII, XVIII
e XIX. Seus ensaios anteriores e, em geral, a literatura polemica
sobre o assunto, recebem citação por extenso em suas notas de
rodapé.
Mais ainda, ver J. Milhaud: Le Rationnel, 1898, e os finos
artigos de Le Roy em Revue de Métaphysique, vols. 7, 8 e 9. Ver,
também, os artigos de Blondel e De Sailly em Annales de Philo-
sophie Chrétienne, 4ème Série, vols. 2 e 3. Papini anuncia um livro
a respeito de Pragmatismo, em língua francesa, para ser publicado
em breve.
A fim de evitar pelo menos um mal-entendido, digo que não há
conexão lógica entre o pragmatismo, como eu o compreendo, e
"

uma doutrina que dei a lume recentemente como empirismo ra-


dical Essa última se sustenta por si própria. Pode-se rejeitá-la
por inteiro e ainda assim continuar sendo um pragmatista.

Universidade de Harvard, abril de 1907.

a
Primeira Conferência

O atual dilema da filosofia

o Prefácio à sua admirável coleção de ensaios, intitulada


Heretics, Chesterton escreve essas palavras: "Há algumas
pessoas - e eu sou uma delas - que pensam que a coisa mais
prática e importante relativamente a um homem é ainda sua visão
do universo. Achamos que para uma senhoria que considera o seu
inquilino, o importante é conhecer os seus rendimentos, porém
ainda mais importante é conhecer sua filosofia. Achamos que para
um general prestes a combater um inimigo, o importante é saber o
número de inimigos, porém mais importante ainda é saber a filosofia
do inimigo. Achamos que a questão não é se a teoria do cosmos
afeta os negócios, e sim, porém, se a longo prazo são afetados por
"

alguma coisa .

Afino com Chesterton nesse particular. Sei que vocês, senhores


e senhoras, têm uma filosofia, cada qual e todos vocês, e que a
coisa mais interessante e importante é a maneira pela qual determina
a perspectiva em seus diversos mundos. Vocês sabem o mesmo de
mim. E, não obstante, confesso um certo tremor pela audácia da
tarefa que estou prestes a encetar. Para a filosofia, o que é tão
importante em cada um de nós não é um preparo técnico; é o nosso
mais ou menos senso comum do que a vida honesta e profundamente
significa. É somente em parte obtido nos livros; é a nossa maneira
individual de ver e sentir exatamente a carga total e pressão do
cosmos. Não tenho direito de presumir que muitos de vocês sejam
estudantes do cosmos no sentido escolar, porém aqui estou eu
,

desejoso de interessá-los por uma filosofia que, em não menor

25
extensão, tem de ser tratada tecnicamente. Desejo fazer com que
simpatizem com uma tendência contemporânea, na qual acredito
profundamente, e, entretanto, tenho de falar como um professor a
quem não é estudante. Qualquer que seja o universo em que o
professor acredite, deve ser, de qualquer modo, um universo que se
preste a um discurso prolongado. Um universo definível em duas
palavras é alguma coisa para a qual o intelecto professoral não tem
uso. Nenhuma fé em qualquer coisa de espécie tão barata! Temos
visto amigos e colegas tentarem popularizar a filosofia nesse mesmo
recinto, mas logo se tornam áridos e, então, técnicos, e os resultados
somente em parte foram encorajadores. Desse modo, minha tarefa
é ousada. O próprio fundador do pragmatismo deu recentemente
um curso de conferências no Instituto Lowell, referente ao título
em epígrafe - coriscos de luz brilhante dardejados contra a nossa
ignorância crassa! Nenhum de nós, suponho, compreendeu tudo
quanto ele disse - e, contudo, aqui estou eu, arriscando-me a uma
aventura semelhante.
Corro o risco porque essas mesmas conferências de que falo
arrastaram - atraíram bom auditório. Há, deve-se confessar, uma
curiosidade fascinante em escutar coisas elevadas expostas em
palestras, mesmo que nem nós, nem os expositores, as compreendam.
Somos levados pela emoção da problemática, sentimos a presença
da vastidão. Deixem uma controvérsia tomar pé em um recanto
qualquer, seja sobre livre arbítrio ou a onisciência de Deus, seja
sobre o bem e o mal, e vejam quantos em roda começam a prestar
atenção. Os resultados da filosofia dizem respeito a todos nós de
maneira fundamental, e os mais intrigantes argumentos filosóficos
titilam agradavelmente o nosso senso de sutileza e de inventiva.
Acreditando eu mesmo devotamente na filosofia, e acreditando
também em que uma nova espécie de aurora desponta para nós,
filósofos, sinto-me impelido, por fas ou por nefas, a tentar comuni-
car-lhes algumas novas da situação.
A filosofia é, ao mesmo tempo, a mais sublime e a mais trivial
das empreitadas humanas. Opera nas brechas mais estreitas e se
" "

abre para os mais vastos horizontes. Não enche barriga como já ,

foi dito, mas pode inspirar nossas almas com coragem; e repelente
como suas maneiras, suas dúvidas e desafios, seus sofismas e
dialéticas frequentemente o são para a gente comum, nenhum de
nós pode prosseguir sem a luz longínqua que espraia pelas pers-
pectivas do mundo. Esses clarões, pelo menos, e os efeitos contras-
tantes de mistério e escuridão que os acompanham, emprestam ao
que diz um interesse que é muito mais que profissional.
A história da filosofia é, em grande parte, a de uma certa colisão
de temperamentos humanos. Indigno que possa parecer a alguns de
meus colegas um tal tratamento, terei de levar em conta esses
choques e explicar por seu intermédio grande parte das divergências
filosóficas. Qualquer que seja o temperamento de um filósofo
profissional, trata, quando filosofando, de encobrir o fato de seu
temperamento. O temperamento não é razão convencionalmente
admitida, com o que lança mão das razões impessoais somente para
as conclusões. Seu temperamento, contudo, confere-lhe uma distor-
ção mais forte do que qualquer de suas premissas mais estritamente
objetivas. Sobrecarrega-lhe a evidência desse modo ou de outro,
estabelecendo uma visão mais sentimental ou mais realística do
universo, justo como esse fato ou aquele princípio o fariam. Confia
em seu temperamento. Necessitando de um universo que se lhe
adapte, acredita em qualquer representação de universo que se lhe
adapta. Sente que os homens de temperamento oposto estão fora de
sintonia com o caráter do mundo, e em seu íntimo considera-os
incompetentes e "por fora" do negócio filosófico, embora mesmo
possam excedê-lo a perder de vista em matéria de habilidade dia-
lética.
No tribunal, todavia, não pode reivindicar, na simples base de
seu temperamento por autoridade ou discernimento superiores.
,

Decorre daí , pois, uma certa insinceridade em nossas discussões


filosóficas: a mais poderosa de nossas premissas jamais é mencio-
nada. Estou certo de que contribuiria para a clareza se, nessas
conferências rompêssemos essa regra e a mencionássemos, e eu,
,

de minha parte sinto-me livre para poder agir dessa maneira.


,

Naturalmente que falo aqui de homens positivamente bem marca-


dos homens de idiossincrasia radical, que impuseram sua chancela
,

e feitio à filosofia e figuram em sua história. Platão, Lock, Hegel,


,

Spencer são esses pensadores sentimentais. Muitos de nós, natu-


,

ralmente não têm um temperamento intelectual definido, somos


,

uma mistura de ingredientes contrários cada qual presente em


,

proporções bem moderadas. Conhecemos imperfeitamente nossas


próprias preferências em matéria de assuntos abstratos; alguns de
nós somos facilmente desalojados da conversa, e terminamos por
seguir a moda ou nos harmonizamos com as crenças do filósofo
mais impressionante da vizinhança seja qual for. Uma coisa, porém,
,
que tem pesado até agora na filosofia é que um homem deve ver as
coisas, vê-las diretamente em sua própria maneira peculiar de ver,
e não se satisfazer com qualquer modo contrário de vê-las. Não há
razão em supor que essa forte visão temporamental vá de agora por
diante deixar de contar na história das crenças humanas.
Agora, a diferença particular de temperamento que tenho em
mente ao estabelecer essas observações é a que tem sido levada em
conta em literatura, arte, governo e costumes, tanto quanto em
filosofia. Em maneiras, encontramos pessoas formalistas e desen-
voltas. Em governo, autoritários e anarquistas. Em literatura, puristas
ou académicos, e realistas. Em arte, clássicos e românticos. Reco-
nhecem-se esses contrastes como familiares; bem, em filosofia
temos um contraste bem semelhante expresso pelo par de termos
" "
racionalista e "empírico", este último significando o adepto dos
fatos em toda a sua crua variedade, e "racionalista" traduzindo o
devoto aos princípios eternos e abstratos. Ninguém consegue viver
uma hora sem fatos e princípios, com o que é antes uma diferença
de ênfase; gera, contudo, antipatias do mais pungente caráter entre
os que põem a nota enfática diferentemente; e acharemos extraordi-
nariamente conveniente expressar um certo contraste nos modos
dos homens tomarem seu universo, falando do temperamento "em-
"

pírico e do "racionalista". Esses termos tornam o contraste simples


e sólido.
Mais simples e sólido do que isso, são, usualmente, os homens
de quem os referidos termos são predicados. Pois cada tipo de
permutação e de combinação é possível na natureza humana; e se
agora procedo a definir mais completamente o que tenho em mente
quando falo de racionalistas e empíricos, acrescentado a cada um
desses títulos algumas características qualificativas secundárias,
solicito considerarem minha conduta como arbitrária, até um certo
ponto. Seleciono tipos de combinação que a natureza oferece muito
frequentemente, mas de maneira alguma uniformemente, e os
seleciono somente por sua conveniência em auxiliar-me em meu
propósito posterior de caracterizar o pragmatismo. Historicamente,
"
encontramos os termos intelectualismo" e "sensacionalismo" usa-
dos como sinónimos de "racionalismo". Bem, a natureza parece
combinar mais frequentemente com o intelectualismo uma tendência
idealística e otimista. Os empíricos, por outro lado, são comumente
materialistas, e o seu otimismo é apto a ser decididamente condicio-
nal e trémulo. O racionalismo é sempre monístico. Parte dos con-
juntos e dos universais, e faz muito com a unidade das coisas. O
empirismo parte das partes, e faz do todo uma coleção - não é,
pois, absurdo chamá-lo de pluralístico. O racionalismo usualmente
considera-se mais religioso do que o empirismo, mas há muito que
dizer a respeito dessa pretensão, pelo que meramente faço-lhe
menção. É pretensão verdadeira quando o racionalista individual é
o que é chamado um homem de sentimentos, e quando o empírico
individual jacta-se de ser um racionalista. Nesse caso, o raciona-
lista usualmente também estará a favor do que é chamado livre
arbítrio, e o empírico será um fatalista - faço uso dos termos mais
popularmente correntes. O racionalista, finalmente, será de tempe-
ramento dogmático em suas afirmações, ao passo que o empírico
pode ser mais cético e aberto às discussões.
Escreverei esses traços abaixo em duas colunas. Penso que se
reconhecerá praticamente os dois tipos de construção mental que
tenho em mente se encimo as colunas pelos títulos "espírito terno"
" "
e espírito duro respectivamente.
,

Espírito terno Espírito duro

Racionalista (que Empírico (que


" " "

segue princípios ) segue fatos")


Intelectualista Sensacionalista
Idealista Materialista
Otimista Pessimista
Religioso Irreligioso
Livre arbitrista Fatalista
Monista Pluralista
Dogmático Cético

Peço retardar por um momento a questão que implica se as duas


misturas contrastantes que alinhei são cada qual interiormente coe-
rentes e auto-adaptadas ou não - logo estarei em condições de ter
muito o que dizer a respeito. Basta para nosso propósito imediato
que o espírito terno e o espírito duro como pessoas, caracterizadas
conforme estabeleci, existem ambos. Cada um dos senhores pro-
vavelmente conhece alguns exemplos bem marcantes de cada tipo,
e os senhores sabem o que cada exemplo pensa do exemplo do
outro lado da coluna. Têm uma opinião baixa um do outro. Seu
antagonismo sempre quando como indivíduos seus temperamentos
,
foram fortes , tem formado em todas as idades uma parcela da
atmosfera filosófica da época. Forma parte da atmosfera filosófica
de hoje. O duro considera o terno como sentimentalista e idealista.
O temo acha que o duro não é refinado, e sim bruto ou grosso. Sua
reação mútua é bem parecida com a que sucede quando turistas
sofisticados topam com a população de um lugarejo em caixa-
pregos. Cada tipo acredita que o outro seja inferior; mas o desdém
em um caso vem misturado com distração, no outro tem uma ponta
de medo.
Agora, como já insisti anteriormente, poucos de nós somos
puros e simples turistas sofisticados, e poucos são típicos capiaus
do interior, em filosofia. Muitos de nós têm um anelo pelas boas
coisas em ambos os lados da linha. Os fatos são bons, naturalmente
- queremos fatos aos montes Os princípios são bons - queremos
.

princípios a mancheias. O mundo é indubitavelmente um se você o


olha de certo modo, mas sem dúvida é muito se você o olha de
outra maneira. E tanto um quanto muito - adotemos uma espécie
de monismo pluralístico. Tudo, naturalmente, é necessariamente
determinado e, não obstante, naturalmente nossas vontades são
livres: uma espécie de determinismo livre-arbítrio é a verdadeira
filosofia. O mal das artes é inegável, mas o todo não pode ser mau:
assim, o pessimismo prático pode ser combinado ao otimismo
metafísico. E assim por diante - o leigo comum de tendências
filosóficas não sendo jamais um radical, jamais extravasando de
seu sistema, mas vivendo vagamente em um compartimento plau-
sível de um ou de outro, para se acomodar às tentações das horas
sucessivas.
Alguns de nós, porém somos mais que meros leigos em filo-
,

sofia. Somos dignos do nome de atletas amadores e nos sentimos


,

vexados com tanta incongruência e vacilação em nosso credo. Não


podemos preservar uma consciência intelectual condigna enquanto
nos mantivermos misturando os incompatíveis dos lados opostos
da linha.
E chego agora ao primeiro ponto positivamente importante que
desejo fazer. Nunca houve tantos homens de uma tendência
decididamente empírica em existência como os há hoje em dia.
Nossas crianças, pode-se dizer, nascem quase científicas. Nossa
estima pelos fatos, porém, não nos neutralizou de todo a religiosi-
dade. E ela própria quase religiosa. Nosso temperamento científico
é devoto. Tome-se agora um homem desse tipo e deixe-se que seja
também um amador filosófico, sem disposição para misturar um
sistema de mixórdia conforme o modelo de um leigo comum, e que
situação acha que é a sua, nesse ano sagrado de nosso Senhor,
1906? Quer fatos; quer ciência; quer, também, porém, uma religião.
E sendo um amador e não um criador independente em filosofia,
naturalmente que procura por um guia entre os técnicos e profis-
sionais que depara já no terreno. Grande número dos senhores aqui
presentes, possivelmente a maioria, são amadores justamente desse
tipo.
Agora, que espécie de filosofia encontra você atualmente ofere-
cidas, capazes de atender às suas necessidades? Encontra-se uma
filosofia empírica que não é bastante religiosa, e uma filosofia
religiosa que não é bastante empírica para os seus propósitos. Se
olhar para o sítio onde os fatos são mais considerados, encontra o
"

programa todo dos espíritos duros em operação, e o conflito entre


"

a ciência e a religião em plena efervescência. Ou é aquele bruto


roceiro de um Haeckel com o seu monismo materialista, seu deus
" "

etéreo e sua gozação ao seu Deus como um vertebrado gasoso ;


ou é Spencer tratando a história do mundo como uma redistribuição
somente de matéria e de movimento, e despendido a religião poli-
damente para fora da porta da frente - pode, na verdade, continuar
a existir, mas nunca mais deve mostrar sua face dentro do templo.
Por cento e cinquenta anos passados, o progresso da ciência
pareceu significar o alargamento do universo material e a diminui-
ção da importância do homem. O resultado é o que se pode chamar
o crescimento do sentimento naturalístico ou positivista. O homem
não é legislador para a natureza, é um absorvente. A natureza é que
permanece firme; o homem é que se deve acomodar. Que registre a
verdade embora seja desumana, e se submeta! A espontaneidade e
,

a coragem românticas foram-se, a visão é materialista e deprimente.


Os ideais aparecem como subprodutos inertes da fisiologia; o que é
mais alto é explicado pelo que é mais baixo, e tratado para sempre
" "
como um caso de nada, a não ser - nada a não ser qualquer
,

coisa outra de uma espécie completamente inferior. Tem-se, em


suma, um universo materialista, no qual somente o espírito duro se
encontra agradavelmente em casa.
Se agora, por outro lado, voltarmo-nos para o terreno religioso
da consolação e procurarmos conselho nas filosofias de espírito
,

terno , que encontramos?


A filosofia religiosa em nossos dias e geração, é, entre o povo
,
de língua inglesa, de dois tipos principais. Um desses tipos é mais
radical e agressivo, o outro tem mais o ar de estar combatendo em
retirada lenta. Por ala mais radical de filosofia religiosa quero dizer
o que se chama idealismo transcendental da escola anglo-hegeliana,
a filosofia de homens como Green, os Cairds, Bosanquet e Roy.
Essa filosofia tem influenciado grandemente os membros mais
estudiosos de nossa igreja protestante. É panteísta e, indubitavel-
mente, já embotou à grande o gume do teísmo tradicional no pro-
testantismo.
Esse teísmo, entretanto, permanece. É o descendente linear,
através de um estágio de concessão após o outro, do teísmo esco-
lástico dogmático ainda ensinado rigorosamente nos seminários da
igreja católica. Por longo tempo costumou ser chamada entre nós a
filosofia da escola escocesa. É o que eu quero dizer por filosofia
que tem o ar de combater em retirada lenta. Entre os abusos dos
hegelianos e outros filósofos do "absoluto", por um lado, e os dos
evolucionistas científicos e agnósticos, por outro, os homens que
nos dão essa espécie de filosofia, James Martineau, professor Bowne,
professor Ladd e outros, devem sentir-se algo firmemente constran-
gidos. Imparcial e honesta que seja, essa filosofia não é de tempera-
mento radical. E eclética, um sistema de compromissos, que procura
um modus vivendi acima de todas as coisas. Aceita os fatos do
darwinismo, os fatos da fisiologia cerebral, mas não faz nada ativo
ou entusiástico com eles. Carece da tónica agressiva ou vitoriosa.
Carece de prestígio, em consequência; enquanto o absolutismo tem
um certo prestígio, devido ao seu estilo mais radical.
Esses dois sistemas são o que se tem à escolha, se nos voltamos
para a escola de espírito terno. E se você é o apaixonado pelos fatos
que suponho ser, dá com a trilha da serpente do racionalismo, do
intelectualismo, por sobre tudo que jaz naquele lado da linha. Você
escapa, na verdade, do materialismo que acompanha o empirismo
reinante; mas paga por sua escapada perdendo contato com as
partes concretas da vida. Os filósofos mais absolutistas pairam em
um nível tão alto de abstração, que nem mesmo tentam alguma vez
descer aqui em baixo. O absoluto espiritual que nos oferecem, o
espírito que plasma nosso universo por pensá-lo, podia, pois alguma
coisa nos mostram ao contrário, ter feito qualquer de um milhão de
outros universos, tanto quanto este. Não se pode deduzir dessa
noção nenhum particular simples e real. É compatível com qualquer
estado de coisas, o que quer que seja sendo verdadeiro aqui embaixo.
E o Deus teístico é quase um princípio estéril. Tem-se de ir ao
mundo que criou a fim de ter-se qualquer vislumbre de seu ver-
dadeiro caráter: é a espécie de deus que, de uma vez por todas, fez
aquela espécie de mundo. O Deus dos escritores tefsticos vive em
alturas tão puramente abstratas quanto o Absoluto. O absolutismo
tem um caráter mais de varredura e de arremetida a esse respeito,
ao passo que o teísmo mais usual é mais insípido, porém ambos são
igualmente remotos e vazios. O que se precisa é uma filosofia que
não somente exercite os poderes de abstração intelectual, mas que
estabeleça alguma conexão positiva com o mundo real de vidas
humanas finitas.
Precisa-se de um sistema que combine ambas as coisas, a
lealdade científica aos fatos e disposição em levá-los em conta, o
espírito de adaptação e de acomodação, em suma, mas também a
velha confiança nos valores humanos e na espontaneidade resultante,
seja do tipo religioso ou romântico. E esse é, então, o dilema:
encontramos as duas partes do quesito desesperadamente separadas.
Vê-se empirismo com desumanismo e irreligião; ou então encontra-
mos uma filosofia racionalista que, na verdade, pode chamar-se
religiosa, mas que se mantém fora de toda e qualquer relação com
os fatos concretos e alegrias e tristezas.
Não estou muito certo de quantos dos senhores vivem o bastante
em intimidade com a filosofia para compreender integralmente o
que tenho em mente com essa última reprovação, com o que ficarei
um pouco mais de tempo a repisar sobre essa irrealidade em todos
os sistemas nacionalistas pelos quais o crente sério em fatos se
encontra apto a sentir-se repelido.
Quisera ter poupado as primeiras páginas de uma tese que um
estudante me passou às mãos um ano ou dois atrás Ilustravam meu
.

ponto tão claramente que tenho pena de não poder lê-las agora.
Esse jovem formado por alguma faculdade do oeste, começava
,

dizendo que tinha tido sempre como certo o fato de que quando se
,

entra em uma classe de filosofia tem-se de estreitar relações com


,

um universo inteiramente distinto daquele que se deixou lá atrás na


rua Supunha-se que os dois, disse, tinham tão poucas relações um
.

com o outro que não se podia possivelmente ocupar o espírito com


,

eles ao mesmo tempo O mundo de experiências pessoais concretas


.

ao qual a rua pertence é heterogéneo além da imaginação, enredado,


,

obscuro doloroso e enigmático. O mundo ao qual o professor de


,

filosofia o introduz é simples claro e nobre. As contradições da


,
vida real acham-se ausentes dele. Sua arquitetura é clássica. Os
princípios da razão traçam os seus delineamentos, as necessidades
lógicas cimentam suas partes. A pureza e a dignidade são o que
mais expressa. É uma espécie de templo marmóreo brilhando no
alto de uma colina.
Evidentemente, é bem menos um relato desse mundo real do
que um acréscimo patente erguido sobre ele, um santuário clássico
no qual a imaginação racionalista pode ter refúgio do caráter into-
leravelmente gótico e confuso que os meros fatos apresentam. Não
é uma explanação de nosso universo concreto, é outra coisa
completamente, um substituto, um remédio, uma saída de escape.
O seu temperamento, se posso usar a palavra temperamento
aqui, é completamente diferente do temperamento de existência no
concreto. Refinamento é o que caracteriza nossas filosofias inte-
lectualistas. Satisfazem esplendidamente a ânsia por um objeto
refinado de contemplação, que é um apetite tão poderoso do espírito.
Peço, porém, com toda a seriedade, que olhem em torno desse
universo colossal de fatos concretos, em sua medonha confusão,
suas surpresas e crueldades, na selvageria que mostram, e então
" "

que me contem se refinado é o único e inevitável adjetivo que


vem aos lábios.
O refinamento tem o seu lugar, é bem verdade. Mas uma filosofia
que nada transpira, a não ser refinamento, jamais satisfará o tem-
peramento empírico. Parece antes um monumento de artificialidade.
Assim, encontramos homens de ciência que preferem voltar as
costas à metafísica como a alguma coisa enclausurada e espectral, e
homens práticos espanando o pó da filosofia de suas botas e
atendendo ao apelo da natureza.
Verdadeiramente há algo fantasmagórico na satisfação com
,

que um sistema puro, mas irreal, enche um espírito racionalista.


Leibnitz foi um espírito racionalista, infinitamente mais interessado
em fatos do que muitos espíritos racionalistas podem mostrar. Não
obstante, se quisermos um exemplo de superficialidade encarnada,
há de ler apenas aquele livro encantadoramente escrito, Teodicéia,
no qual procura justificar os caminhos de Deus ao homem, e provar
que o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis.
Citemos um exemplo.
Dentre outros obstáculos a essa filosofia otimista, Leibnitz deixa
de considerar o número dos eternamente em danação. Esses são em
número infinitamente maior, no nosso caso humano, do que os
salvos, o que aceita como premissa dos teólogos, e então prossegue
argumentando nesse sentido. Diz ele:
O mal aparecerá como quase nada em comparação com o bem,
"

se considerarmos a real magnitude da Cidade de Deus. Celius


Secundus Curió escreveu um livro pequeno, De Amplitudine Regni
Celestis, que foi reimpresso não faz muito tempo. Ele falhou,
porém, em alcançar a extensão do reino dos céus. Os antigos
faziam pouca idéia das obras de Deus... Parecia-lhes que somente a
nossa terra tinha habitantes, e até mesmo a noção de antípodas
fazia-os vacilar. O resto do mundo para eles consistia de alguns
globos brilhantes e de algumas esferas cristalinas. Hoje, porém,
quaisquer que sejam os limites que possamos conceder ou recusar
ao universo, devemos reconhecer nele um número incontável de
globos, tão grandes quanto o nosso ou maiores, que têm tanto
direito quanto o nosso de suportarem habitantes racionais, embora
daí não se infira que esses todos tenham de ser homens. Nossa terra
é somente um dentre os seis principais satélites de nosso sol. Como
todas as estrelas fixas são sóis, vê-se quão pequeno é o lugar que
nossa terra ocupa entre as coisas visíveis, visto que é somente um
satélite de uma estrela entre tantas. Ora, todos esses sóis podem ser
habitados e somente por criaturas felizes; e nada nos obriga a
,

acreditar que o número de pessoas em danação seja muito grande;


pois uns poucos exemplos e amostras bastam para a utilidade que
o bem saca do mal. Ainda mais visto que não há razão para supor
,

que há estrelas por toda parte, não pode haver um grande espaço
além da região das estrelas? E esse imenso espaço circundante
,

dessa região toda pode estar repleto com felicidade e glória...


...

Que se pode considerar agora de nossa Terra e de seus habitantes?


Não diminui para alguma coisa incomparavelmente menor do que
um ponto físico visto que nossa Terra não é senão um ponto
,

comparado com a distância das estrelas fixas Assim, a parte do


.

universo que conhecemos estando quase perdida em nada, com-


,

parado com o que é desconhecido para nós, mas que somos, entre-
tanto obrigados a admitir; e todos os males que sabemos existirem
,

nesse quase nada; segue-se que os males podem ser quase nada em
comparação com os bens que o universo contém" .

Leibnitz continua em outra parte:


"

Há uma espécie de justiça que visa não à emenda do cri-


minoso , não à concessão de um exemplo aos outros, não à repara-
ção de uma injúria. Essa justiça fundamenta-se em pura propriedade,
que encontra uma certa satisfação na expiação de uma ação daninha.
Os seguidores de Sozzini e Hobbes objetaram contra essa justiça
punitiva, que é propriamente justiça vindicativa, e que Deus reser-
vou para si em muitas ocasiões... Fundamenta-se sempre na
propriedade das coisas, e satisfaz não somente a parte ofendida,
mas todos os espectadores esclarecidos, do mesmo modo que uma
bela música ou uma fina obra de arquitetura satisfaz um espirito
bem constituído. É assim que os tormentos do danado continuam,
mesmo que não mais sirvam para desviar alguém do pecado, e que
as recompensas do abençoado continuam, mesmo que não confir-
mem ninguém no bom caminho. Aqueles em danação atraem para
si sempre novas penas por seus contínuos pecados, e os abençoados
atraem sempre novas alegrias por seu incessante progresso no bem.
Ambos os fatos fundamentam-se no princípio da retidão... pois
Deus fez todas as coisas harmoniosas em perfeição, como já disse".
A débil pegada da realidade por Leibnitz é evidente demais
para exigir comentários de minha parte. É evidente que nenhuma
imagem realística da experiência de uma alma danada jamais se
aproximara dos portais de seu espírito. Nem lhe havia ocorrido que
" "

quanto menor é o número de exemplos do género "alma-perdida",


a quem Deus lança como um pedaço de pão embebido na eterna
retidão, maior é a glória do bem-aventurado injustamente preso ao
chão. O que nos dá é um frio exercício literário, cuja alegre subs-
tância até mesmo o fogo do inferno não esquenta.
E não venham dizer-me que para mostrar a vacuidade do filosofar
racionalista tive de remontar a uma época ultrapassada. O otimismo
do racionalismo dos dias presentes soa falso ao espírito dedicado
aos fatos. O universo real é um todo escancarado, mas o racionalis-
mo faz sistemas, e os sistemas devem ser fechados. Para os homens
na vida prática, a perfeição é alguma coisa distante e ainda em
processo de consecução. Isso para o racionalismo é apenas a ilusão
do finito e do relativo: o terreno absoluto das coisas é uma perfeição
eternamente completa.
Encontro um fino exemplo de revolta contra o fútil e vazio
otimismo da filosofia religiosa corrente em uma publicação de um
valente escritor anarquista, Morrison I. Swift. O anarquismo de
Swift vai um pouco além do que o meu, mas confesso que simpatizo,
e muito, e alguns dos senhores, eu sei, simpatizarão ardentemente
com o seu desgosto pelos otimismos idealísticos atualmente em
voga. Começa seu panfleto sobre a Submissão Humana com uma
série de itens de reportagens urbanas de jornais (suicídios, mortes
por fome e que tais) como espécimes de nosso regime civilizado.
Por exemplo:
"

Após caminhar com muito custo através da neve, de uma ponta


a outra da cidade, na vã esperança de arranjar emprego, e com sua
esposa e seis filhos sem alimentação e com ordens de abandonar
sua casa em uma cabeça-de-porco da zona mais miserável da
cidade, por causa de atraso no pagamento de aluguel, John Corcoran,
funcionário, acabou hoje com a vida bebendo ácido carbólico.
Corcoran perdera sua posição três semanas antes por motivos de
doença, e durante o período de disponibilidade, suas magras eco-
nomias desapareceram. Ontem obtivera trabalho com uma turma
de limpadores de neve da cidade, mas estava muito fraco em
virtude da doença, e foi forçado a largar o trabalho após o esforço
de uma hora com a pá. Com o que recomeçou de novo a fatigante
tarefa de procurar emprego. Completamente desencorajado, Corco-
ran retornou ao lar a noite passada para encontrar esposa e filhos
sem alimentos e o alvará de despejo pregado à porta. Na manhã
"

seguinte, bebeu o veneno .

"

Os registros de muitos mais casos encontram-se diante de mim


(prossegue Swift); uma enciclopédia poderia facilmente ser
preenchida com casos dessa espécie. Esses poucos eu cito como
'

uma interpretação do universo. Estamos certos da presença de


Deus nesse mundo, diz um escritor em uma revista inglesa re-
,

'
cente. A presença mesmo do mal na ordem temporal é a condição
da perfeição da ordem eterna, escreve o professor Royce {The
,

World and the Individual II, 385). 'O absoluto é mais rico para
,

cada discórdia e para toda a diversidade que abarca' diz F. H. ,

Bradley (Appearance and Reality 204). Quer dizer que esses homens
,

assassinados tornam o universo mais rico e que isso é filosofia.


,

Mas enquanto os professores Royce e Bradley e uma turma toda de


consumados pensadores inocentes estão descobrindo a Realidade e
o Absoluto e explicando o mal e a dor essa é a condição dos únicos
,

seres que conhecemos em qualquer parte do universo com uma ,

consciência desenvolvida do que é o universo O que essas pessoas


.

experimentam é a realidade Dá-nos uma fase absoluta do universo.


.

E a experiência pessoal daqueles mais bem qualificados em nosso


círculo de conhecimento a ter experiência a contar-nos o que é.
,
Agora, que adianta pensar a respeito da experiência que essas
pessoas vieram a ter, comparado ao sentir direta e pessoalmente o
que sentiram? Os filósofos brincam com sombras, enquanto os que
vivem e sentem conhecem a verdade. E o espirito da humanidade
- não porém, o espirito dos filósofos e da classe proprietária -
,

mas o da grande massa de homens que pensam e sentem em


silêncio, está chegando a essa concepção. Estão julgando o universo
da mesma maneira que até agora permitiram que os hierofantes da
"

religião e do conhecimento os julgassem...


"

Esse trabalhador de Cleveland, matando seus filhos e a si


mesmo (outro dos casos citados), é um dos fatos elementares es-
tupendos do mundo moderno e do universo. Não pode ser mi-
nimizado ou justificado por todos os tratados a respeito de Deus do
,

amor e do ser, irremediavelmente existentes em sua monumental


vacuidade. Isso é um dos elementos simples irredutíveis da vida do
mundo, após milhões de anos de oportunidade e de vinte séculos de
Cristo. É no mundo mental o que os átomos ou sub-átomos são no
físico, primários, indestrutíveis. E o que alardeia ao homem é a
impostura de toda filosofia que não vê nesses acontecimentos o
,

fator consumado de toda experiência consciente. Esses fatos provam


irretorquivelmente que a religião é uma nulidade. O homem não
concederá à religião dois mil séculos ou vinte séculos mais para se
pôr à prova e desperdiçar o tempo humano. Esse tempo esgotou-se;
sua provação terminou; o seu próprio registro liquida-a. A humani-
dade não tem anos e eternidades para desperdiçar ensaiando sistemas
,

desacreditados".,
Essa é a reação de um espírito empírico ante o cardápio de um
racionalista. É um absoluto não, muito obrigado A religião", diz
" "
.
"

Swift, "é como um sonâmbulo, para quem as coisas reais são vazias".
E esse, embora menos tensamente carregado com sentimento, é o
veredicto de cada amador que pesquise seriamente em filosofia
hoje em dia, e que se volte para o professor de filosofia para
satisfazer plenamente as necessidades de sua natureza. Os escritores
empíricos oferecem-lhe materialismo, os racionalistas dão-lhe
"

alguma coisa religiosa, mas para essa religião as coisas reais são
"
vazias Torna-se, pois, o juiz dos filósofos. Terno ou duro, descobre
.

"
Morrison I. Swift, Human Submissiony segunda parte, Filadélfia,
Liberty Press, 1905, páginas. 4-10
que também estamos necessitados. Nenhum de nós pode tratar seu
veredicto com desdém, pois, apesar de tudo, ele é o espírito tipica-
mente perfeito, o espírito cuja soma de necessidade é a maior, o
espírito cujos criticismo e desgostos são fatais a longo prazo.
É nesse ponto que a minha própria solução começa a aparecer.
Ofereço a coisa singularmente chamada de pragmatismo como
uma filosofia que pode satisfazer a ambas as espécies de procuras.
Pode permanecer religiosa como os racionalismos, mas, ao mesmo
tempo, como os empirismos, pode preservar a intimidade mais rica
com fatos. Espero que possa estar em condições de deixar em
muitos dos senhores uma opinião tão favorável a seu respeito quanto
a que eu mesmo tenho dela. Como, porém, estou próximo do término
de meu tempo, não farei uma apresentação integral do pragma-
tismo por hora. Começarei com o assunto em uma próxima vez.
Prefiro, no presente momento, retornar um pouco ao que já disse
anteriormente.
Se qualquer dos senhores aqui presente é um filósofo profis-
sional, e alguns dos senhores sei que o são, sem dúvida que terá
sentido que o meu discurso até agora tem sido cru até um ponto
imperdoável, ou, melhor ainda, até um grau quase incrível. Espírito
terno e espírito duro, que desassociação bárbara! E, em geral,
quando a filosofia vem toda recheada de delicadezas intelectuais e
sutilezas e escrupulosidades, e quando se obtém cada tipo possível
de combinação e transição dentro de seus limites, que caricatura
brutal e redução das coisas mais altas a mais baixa expressão
possível é representar o seu campo de conflito como uma espécie
de luta livre entre dois temperamentos hostis! E, de novo, quão
estúpido é tratar a abstração dos sistemas racionalistas como um
crime, e censurá-lo porque se oferecem como santuários e guaridas,
de preferência a prolongamentos do mundo dos fatos. E não são
todas as nossas teorias justamente remédios e abrigos? E, se a
filosofia deve ser religiosa como pode ser outra coisa senão um
,

reduto final na fuga à crassidão da superfície da realidade? Que


melhor pode fazer senão elevar-nos acima dos nossos sentidos
animais e mostrar-nos um outro lar mais nobre para nossos espíritos
na grande estrutura de princípios ideais subjacentes a toda realidade,
que o nosso intelecto adivinha? Como podem princípios e vistas
gerais serem alguma coisa outra e em algum tempo outro senão
esboços abstratos? A catedral de Colónia foi construída sem um
plano ou desenho arquitetônico? E o refinamento em si abominável?
É a rudeza concreta a única coisa que é verdadeira?
Acreditem-me, sinto a força total da acusação. O quadro que
pintei é, na verdade, monstruosamente super simplificado e rude.
Gosto, porém, de todas as abstrações, provam que têm o seu uso.
Se os filósofos podem tratar a vida do universo abstratamente, não
devem queixar-se de um tratamento abstrato da própria vida da
filosofia. De fato, o quadro que dei é, embora bem grosseiro e
simples, verdadeiro, literalmente. Os temperamentos, com seus
anelos e recusas, determinam o homem em suas filosofias, e sempre
o farão. Os detalhes dos sistemas podem ser racionados até as suas
últimas consequências, e quando o estudante lida com um sistema,
pode, com frequência, esquecer a floresta pela árvore. Quando,
porém, o trabalho está encerrado, o espírito sempre realiza o seu
grande ato de síntese, e o sistema em seguida se projeta contra
alguém como uma coisa viva, com a simples nota estranha da
individualidade que ronda nossa memória, como o espectro do
homem, quando um nosso amigo ou inimigo está morto.
Não somente Walt Whitman podia escrever "quem toca este
livro, toca em um homem". Os livros de todos os grandes filósofos
são como muitos homens. O nosso sentido de um aroma pessoal
essencial em cada um deles, típico, mas indescritível, é o fruto mais
apurado de nossa própria educação filosófica realizada. O que o
sistema pretende ser é um quadro do grande universo de Deus. O
que é - e, oh, tão perfumadamente! - é a revelação de quão
intensamente singular é o cheiro pessoal de alguma criatura humana.
Uma vez reduzido a esses termos (e todas as nossas filosofias se
reduzem a eles em espíritos tornados críticos pelo conhecimento),
nosso trato com os sistemas reverte ao informal, à reação humana
instintiva de satisfação ou de desagrado. Manifestamo-nos tão
peremptórios em nossa rejeição ou aceitação como quando uma
pessoa se apresenta candidata ao nosso favor; nossos veredictos
vêm recolhidos como simples adjetivos de louvor ou de reprimenda.
Medimos o caráter total do universo como o sentimos, contra o
sabor da filosofia nos oferecida, e uma palavra é o bastante.
"Statt de lebendigen Natur" dizemos, "da Gott die Mensccem
,

"

schuf hinein - aquela nebulosa cocção aquela coisa grosseira e


,

constrangida, aquela artificialidade impertinente, aquele bolorento


produto da sala de aula, aquele sonho de doente! Fora com isso.
Fora com tudo! Impossível! Impossível!
Nosso trabalho a respeito dos detalhes de seu sistema é, na
verdade, o que nos proporciona nossa impressão resultante do filó-
sofo, mas é à própria impressão resultante que reagimos. A destreza
em filosofia é medida pela precisão de nossas reações finais, pelo
adjetivo de percepção imediata com que o técnico fere o alvo de
assuntos tão complexos. Grande perícia, entretanto, não é necessário
para vir o adjetivo. Poucas pessoas têm articulado definitivamente
filosofias delas próprias. Quase todos, porém, têm o seu próprio
senso peculiar de um certo caráter total no universo, e da insuficiên-
cia completa para casá-lo aos sistemas peculiares que conhecem.
Simplesmente não abarcam o mundo. Um será por demais gentil;
outro, muito pedante; um terceiro, com muito de um cabide de
empregos de opiniões; um quarto, muito mórbido; e um quinto,
muito artificial, e o que mais. De qualquer modo, ele e nós sabemos
de antemão que tais filosofias acham-se fora de prumo e fora de
"
nível e fora de tacada", e que não é de nossa conta pronunciarmo-
nos em nome do universo. Platão, Locke, Spinoza, Mill, Caird,
Hegel - evito prudentemente nomes mais chegados a nós - estou
certo que para muitos dos senhores, meus ouvintes, esses nomes
são pouco mais do que lembranças de muitos modos pessoais
curiosos de ser mal sucedido. Seria um absurdo óbvio se tais
maneiras de captar o universo fossem realmente verdadeiras.
Nós, filósofos, temos de contar com esses sentimentos por parte
dos senhores. Como último recurso, repito, será por intermédio
deles que todas as nossas filosofias serão julgadas em última análise.
A maneira finalmente vitoriosa de olhar as coisas será a maneira
mais completamente impressiva para o pendor normal dos espíritos.
Uma palavra mais - especialmente sobre filosofias, que são
necessariamente contornos abstratos. Há projeções e projeções,
projeções de edifícios que são gordos, concebidos em um volume
cúbico por seu planejador e projeções de edifícios em planta baixa
,

no papel com ajuda de régua e compasso. Esses permanecem ma-


,

gros e macilentos mesmo quando erigidos com pedra e argamassa,


e o esboço já sugere o resultado. Um esboço em si é seco na verdade,
,

mas não sugere necessariamente uma coisa magra. É a magreza


essencial do que é sugerido pelas filosofias racionalistas usuais que
impele os empíricos ao seu gesto de rejeição O caso do sistema de
.

Herbert Spencer exemplifica bem a questão. Os racionalistas sentem


a sua medonha ordem de insuficiências O seu temperamento seco
.

de mestre-escola a sua monotonia de realejo, sua preferência por


,

expedientes baratos na argumentação sua falta de educação mesmo


,
em princípios mecânicos, e em geral a vagueza de todas as suas
idéias fundamentais, o arcabouço geral de seu sistema, como se
fora armado a marretadas com tábuas rachadas - e, todavia, metade
da Inglaterra quer enterrá-lo na abadia de Westminster.
Por quê? Por que Spencer invoca tanta reverência, a despeito de
sua fraqueza aos olhos racionalistas? Por que tantos homens edu-
cados que sentem tal fraqueza, você e eu, talvez, não obstante
desejam vê-lo na abadia? Simplesmente porque sentimos que seu
coração está no lugar certo filosoficamente. Seus princípios podem
ser todos pele e osso, mas, de qualquer modo, seus livros tentam
amoldar-se à configuração particular da carcaça desse mundo parti-
cular. O bulício dos fatos ressoa através de todos os seus capítulos
,

as citações de fatos nunca cessam dá ênfase aos fatos, volta-se para


,

onde estão; e isso é o que basta. Significa a espécie certa de coisa


para o espírito empírico.
A filosofia pragmática, da qual espero começar a falar em
minha próxima conferência, preserva como cordial uma relação
com os fatos, e, diferente da filosofia de Spencer nem começa e
,

nem termina pondo as construções religiosas positivas para fora da


porta - trata-as cordialmente, do mesmo modo.
Espero poder levá-los a achar que essa filosofia é o caminho de
pensamento que procuravam.

tn
Segunda Conferência

O que significa o Pragmatismo

A lguns anos atrás, participando de uma festa campestre nas


montanhas, retornava de uma perambulação solitária quando
encontrei a todos ocupados em uma feroz disputa metafísica. O
corpus da disputa era um esquilo - um esquilo vivo que se supunha
estar agarrado a um lado de uma árvore; enquanto do outro lado
oposto da árvore imaginava-se estar um ser humano. Essa teste-
,

munha humana tenta ver o esquilo movendo-se rapidamente em


torno da árvore mas não importa quão rápida se mova, o esquilo se
,

movimenta também rapidamente na direção oposta, e sempre


mantém a árvore entre si e o homem de maneira que jamais o tem
,

em vista O problema metafísico resultante agora é esse: O homem


.

anda em torno do esquilo ou não? Ele anda em torno da árvore ,

certo e o esquilo está na árvore; ele anda, porém, em torno do


,

esquilo? Na ilimitada ociosidade da vastidão a discussão havia


,

chegado a nenhuma conclusão Todos tinham tomado partido, e


.

obstinadamente; e o número de contendores em cada lado se igua-


lava Cada lado, quando apareci, portanto, apelou para mim para
.

fazer a maioria Atento ao adágio escolástico de que sempre quando


.

se encontra uma contradição deve-se fazer uma distinção imedia-


,

"

tamente procurei e encontrei uma como se segue: o lado que está


,

certo" disse, "vai depender do que se entende praticamente por 'ir


,

em 10010, do esquilo Se se entende passar do norte dele para o


.

leste então para o sul, então para o oeste, e então para o norte dele
,

de novo é óbvio que o homem vai em torno dele, pois ocupa essas
,

posições sucessivas. Se, porém, ao contrário, entende-se que

43
primeiro está em frente a ele, então, à sua direita, então, atrás,
então, à esquerda, e, finalmente, de novo em frente dele, é comple-
tamente óbvio que o homem deixa de ir em torno do esquilo, pois
pelos movimentos compensadores que o esquilo faz, mantém o seu
ventre voltado para o homem todo o tempo e as suas costas voltadas
,

para o lado oposto. Faça-se a distinção, e não haverá ocasião para


qualquer disputa posterior. Os dois lados estão ao mesmo tempo
certos e errados, de acordo com o que se conceba em relação à
locução 4ir em torno,, em um sentido prático ou em outro".
Embora um ou dois dos disputantes mais inflamados dissessem
que minha resposta fora uma evasiva, argumentando que queriam
não subterfúgios ou disputas escolásticas, mas uma definição honesta
da expressão "em torno", a maioria parecia pensar que a distinção
havia decidido o debate.
Narro este episódio banal porque é um exemplo peculiarmente
simples do que desejo agora falar como sendo o método pragmático.
O método pragmático é, primariamente, um método de assentar
disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam intermina-
velmente. E o mundo um ou muito? - predestinado ou livre? -
material ou espiritual? - eis aqui noções quaisquer das quais
,

podem ou não valer verdadeiras para o mundo; e as disputas em


relação a tais noções são intermináveis./O método pragmático
nesses casos é tentar interpretar cada noça(?traçando as suas con-
sequências práticas respectivas. j Que diferença praticamente ha-
veria para alguém se essa noção de preferência àquela outra, fosse
,

verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma diferença prática


qualquer, então as alternativas significam praticamente a mesma
coisa, e toda disputa é vã. Sempre que uma disputa é séria devemos
,

estar em condições de mostrar alguma diferença prática que decorra


necessariamente de um lado, ou o outro está correto.
Uma olhada à história da idéia mostrará ainda melhor o que
significa o pragmatismo. O termo deriva da mesma palavra grega,
7ipáx%a, que significa ação, do qual vêm as nossas palavras
" "

prática e "prático". Foi introduzida pela primeira vez em filoso-


fia por Charles Peirce, em 1878. Em um artigo intitulado "Como
tornar claro nossas idéias", em Popular Science Monthly de janeiro
daquele ano,, Peirce, após salientar que nossas crenças são ,

"
Transcrito em Revue Philosophique de janeiro de 1879 (vol. VII).
realmente, regras de ação, dizia que, para desenvolver o significado
de um pensamento, necessitamos apenas de determinar que conduta
está apto a produzir: aquilo é para nós o seu único significado. E o
fato tangível na raiz de todas as nossas distinções de pensamento,
embora sutil, é que não há nenhuma que seja tão fina ao ponto de
não resultar em alguma coisa que não seja senão uma diferença
possível de prática. Para atingir uma clareza perfeita em nossos
pensamentos em relação a um objeto, pois, precisamos apenas
considerar quais os efeitos concebíveis de natureza prática que o
objeto pode envolver - que sensações devemos esperar daí, e que
reações devemos preparar. Nossa concepção desses efeitos, se imediata
ou remota, é, então, para nós, o todo de nossa concepção do objeto, na
medida em que essa concepção tenha, afinal, uma significação positiva.
Esse é o princípio de Peirce, o princípio do pragmatismo. Per-
maneceu inteiramente despercebido por vinte anos, até que eu, em
uma alocução perante a reunião filosófica do professor Howison na
Universidade da Califórnia, trouxe-o à baila novamente e dei-lhe
uma aplicação especial na religião. Por essa época (1898), o tempo
" "

parecia propício à sua acolhida. A palavra pragmatismo espalhou-


se, e, atualmente, transparece em grau razoável nas páginas das
publicações filosóficas. Em todas as bandas damo-nos conta do
" "

movimento pragmático falando às vezes com respeito, às vezes


,

com contumélia; raramente com perfeito conhecimento de causa. E


evidente que o termo se aplica convenientemente a um número de
"

tendências que até aqui têm carecido de um nome geral e que veio ,

"

para ficar .

Para se ter idéia da importância do princípio de Peirce, deve-se


ir acostumando a aplicá-lo aos casos concretos Descobri a alguns
.

anos atrás que Ostwald o ilustre químico de Leipzig, esteve fazendo


,

uso perfeitamente distinto do princípio do pragmatismo em suas


conferências acerca da filosofia da ciência embora não o tenha
,

chamado por seu nome .

"

Todas as realidades influenciam nossa prática", escreveu-me,


"

e essa influência é o seu significado para nós Estou acostumado a


.

expor problemas às minhas classes nesses termos: sob que aspectos


o mundo seria diferente se essa alternativa ou aquela fosse verda-
deira? Se não posso achar nada que o tornasse diferente , então a
alternativa não tem sentido" .

Isto é , a visão rival significa praticamente a mesma coisa, e não


há para nós nenhum sentido que não o prático . Ostwald, em uma
conferência publicada, dá exemplo do que quer dizer. Os químicos
desde há muito que têm debatido a respeito da constituição interna
de certos corpos chamados "tautômeros". Suas propriedades pare-
ciam igualmente compatíveis com a noção de que um átomo instável
de hidrogénio oscila dentro deles, ou que são misturas instáveis de
dois corpos. A controvérsia lavrou, porém nunca chegou a termos.
"

E nunca teria começado", diz Ostwald, "se os contendores tivessem


perguntado a si próprios que fato experimental particular podia ter
sido tornado diferente por esse ou aquele ponto de vista ser o correio.
Pois, então, teria aparecido que nenhuma diferença de fato podia
provavelmente daí decorrer; e a disputa foi tão irreal como se, teori-
zando nos tempos primitivos a respeito do crescimento da massa
*

pelo fermento, um grupo invocasse um duende,, enquanto outro


insistisse em um 'alfo, como a causa verdadeira do fenómeno".2
É espantoso de ver-se quantas e quantas disputas filosóficas dão
em nada no momento em que a submetemos ao simples teste de
traçar uma consequência concreta. Não pode haver nenhuma dife-
rença em alguma parte que não faça uma diferença em outra parte
- nenhuma diferença em matéria de verdade abstrata que não se
expresse em uma diferença em fato concreto e em conduta
consequente derivada desse fato e imposta sobre alguém, alguma
coisa, em alguma parte e em algum tempo. Toda a função da
filosofia deve ser a de achar que diferença definitiva fará para mim
e você, em instantes definidos de nossa vida se essa fórmula do
,

mundo ou aquela outra seja a verdadeira.


Não há nada de novo absolutamente no método pragmático.
Sócrates foi adepto dele. Aristóteles empregou-o metodicamente.
Locke, Berkeley e Hume fizeram contribuições momentâneas à
verdade por seu intermédio. Shadworth Hodgson insiste em que as
realidades são somente o que sabemos delas. Esses precursores do
pragmatismo, porém, usaram-no de maneira fragmentária: apenas

2 "Theorie und Praxis" Zeitsch. des Oesterreichischen Ingenieur u.


,

Architecten-Vereines, 1905, Nr. 4 u. 6. Encontro um pragmatismo ainda


mais radical do que o de Ostwald em uma palestra pelo professor W. S.
Franklin: "Penso que a noção doentia da física mesmo se um estudante a
,
1

entende, é a de que é a ciência das massas moléculas e do éter


'

, .
E eu
penso que a noção mais saudável, mesmo se um estudante não a compreende
inteiramente é que a física é a ciência dos meios de tomar posse dos
"
corpos e de impulsioná-los ! (Science 2 de janeiro de 1903).
,
o preludiaram. Não foi senão em nossa época que se generalizou,
tomou-se consciente de uma missão universal, aspirou a um destino
conquistador. Acredito nesse destino, e espero poder terminar
transmitindo-lhes toda a minha fé.
O pragmatismo representa uma atitude perfeitamente familiar
em filosofia, a atitude empírica, mas a representa, parece-me, tanto
em uma forma mais radical quanto em uma forma menos contradi-
tória, em relação a que já tenha assumido alguma vez. O pragma-
tista! volta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma
série de hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-
se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más
razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados,
com pretensões ao absoluto e às origens. Volta-se para o concreto e
o adequado, para os fatos, a ação e o poder. O que significa o reinado
do temperamento empírico e o descrédito sem rebuços do tempera-
mento racionalista. O que significa ar livre e possibilidades da
natureza, em contraposição ao dogma, à artificialidade e à pre-
tensão de finalidade na verdadeN
Ao mesmo tempo não pretende quaisquer resultados especiais.
É somente um método. O triunfo geral desse método, porém, signi-
ficaria uma alteração enorme no que chamei, em minha última
"
conferência, de temperamento" da filosofia. Os professores do
tipo ultra-racionalista têm calafrios só de ouvir isso, igual ao tipo
cortesão que fica gelado ao ouvir falar em república, e ao prelado
,

do tipo ultramontano que se arrepia em terras protestantes. A


,

ciência e a metafísica poder-se-iam aproximar mais ainda, poderiam


mesmo, de fato, trabalhar de mãos dadas.
A metafísica tem, comumente, seguido uma trilha muito primi-
tiva de interrogatório Sabe-se quanto os homens têm suspirado por
.

poderes mágicos ilícitos, e se sabe também a grande parte que as


palavras sempre desempenharam na magia. Se temos o nome ou a
fórmula de encantamento que lhe diz respeito pode-se controlar o
,

espírito génio, entidade ou qualquer que seja o poder. Salomão


,

sabia os nomes de todos os espíritos e, tendo os seus nomes,


,

mantinha-os sujeitos à sua vontadeJAssim o universo tem sempre


,

aparecido ao espírito natural como uma espécie de enigma do qual


,

a chave deve ser procurada na configuração de algum nome ou


palavra mágica ou iluminada. Essa palavra designa o princípio do
universo e possuí-la é, de certo modo, possuir o próprio universo,
,

Matéria", "Razão", "Absoluto", "Energia são muitos


"
Deus" ,
"
desses nomes encantados. Podemos repousar quando os temos.
Chegamos ao fim de nossa pesquisa metafísica.
Se, porém, seguimos o método pragmático, não nos podemos
limitar a nenhuma dessas palavras como definitivas. Tem-se de
extrair de cada palavra o seu valor de compra prático, pô-lo a trabalhar
dentro da corrente de nossa experiência. Desdobra-se, então, menos
como uma solução do que como um programa para mais trabalho, e
mais particularmente como uma indicação dos caminhos pelos
quais as realidades existentes podem ser modificadas.
teorias, assim, tornam-se instrumentos, e não respostas aos
enigmas, sobre as quais podemos descansar Não ficamos de costas
para elas, movemo-nos adiante, e, na ocasião, fazemos a natureza
retornar com a sua ajuda. O pragmatismo relaxa todas as nossas
teorias, flexiona-as e põe-nas a trabalhar. Não sendo nada essencial-
mente novo, se harmoniza com muitas tendências filosóficas antigas.
Concorda com o nominalismo, por exemplo, sempre apelando para
os particulares; com o utilitarismo, dando ênfase aos aspectos
práticos; com o positivismo, em seu desdém pelas soluções verbais,
pelas questões inúteis e pelas abstrações metafísicas.
Todas essas, vê-se, são tendências antiintelectuais. Contra o
racionalismo como uma pretensão e um método, o pragmatismo
acha-se completamente armado e militante. Mas, em princípio, pelo
menos, não visa resultados particulares. Não tem dogmas e doutrinas,
salvo o seu método. Como o jovem pragmatista italiano Papini
disse muito bem situa-se no meio de nossas teorias, como um
,

corredor em um hotel. Inúmeros quartos dão para ele. Em um ,

pode-se encontrar um homem escrevendo um volume ateístico; no


próximo, alguém de joelhos rezando por fé e força; em um terceiro,
um químico investigando as propriedades de um corpo. Em um
quarto, um sistema de metafísica idealística está sendo excogitado;
em um quinto, a impossibilidade da metafísica está sendo demons-
trada. Todos, porém abrem para o corredor, e todos devem passar
,

pelo mesmo se quiserem ter um meio prático de entrar e sair de


seus respectivos aposentos.
Até então não há nenhum resultado particular mas somente
,

uma atitude de orientação, que é o que o método pragmático signi-


fica. A atitude de olhar além das primeiras coisas dos princípios,
,

das "categorias das supostas necessidades; e de procurar pelas


últimas coisas, frutos, consequências fatos.
,

Tanta coisa para o método pragmático! Pode-se dizer que o


estive louvando, de preferência a explicá-lo, mas, por agora, darei
muitas explicações a seu respeito, mostrando como opera em relação
a alguns problemas familiares. Nesse meio tempo, a palavra pragma-
tismo tem sido usada em um sentido ainda mais amplo, como
significando também uma certa teoria da verdade. Pretendo fazer
uma conferência sobre essa teoria, após primeiro preparar o terreno,
com o que posso ser breve por ora. A brevidade, porém, é dura de
seguir, com o que peço a atenção dos senhores por algum tempo.
Se permanecer obscuro, espero poder expor o assunto com mais
clareza em palestras posteriores.
Um dos mais cultivados ramos da filosofia em nosso tempo, e
com êxito, é o que se chama de lógica indutiva, o estudo das con-
dições sob as quais as ciências evolveram. Os pesquisadores desse
assunto começaram por mostrar singular unanimidade em relação
ao que significam as leis da natureza e os elementos de fato, quando
formulados por matemáticos, físicos e químicos. Quando as primei-
ras uniformidades matemáticas, lógicas e naturais, as primeiras
leis, foram descobertas, os homens ficaram tão arrebatados pela
clareza beleza e simplicidade daí resultantes, que acreditaram ter
,

decifrado autenticamente os pensamentos eternos do Todo Poderoso.


Seu espírito também faiscou e reverberou em silogismos. Pensou
também em seções cânicas em quadrados e raízes e proporções e
,

geometrizou como Euclides. Fez as leis de Kepler para os planetas


seguirem; fez a velocidade aumentar proporcionalmente ao tempo
na queda dos corpos; fez a lei dos senos para a luz obedecer quando
refratada; estabeleceu as classes as ordens, as famílias e os géneros
,

das plantas e dos animais e fixou as distâncias entre eles. Formulou


,

os arquétipos de todas as coisas e ideou suas variações; e quando


redescobrimos qualquer dessas suas maravilhosas instituições abran-
,

gemos o seu espírito em sua exata intenção literal.


A medida porém, que as ciências se desenvolveram, ganhou
,

corpo a noção de que muitas talvez todas, de nossas leis são somente
,

aproximações As próprias leis, mais ainda, tornaram-se tão nume-


.

rosas que não há como contá-las; e tantas formulações rivais foram


,

propostas em todos os ramos da ciência, que os investigadores


acostumaram-se à noção de que nenhuma teoria é absolutamente
uma transcrição da realidade mas que qualquer delas pode, de certo
,

ponto de vista, ser útil. Seu grande uso é sumariar os velhos fatos e
apontar novos São apenas uma linguagem humana, uma taquigrafia
.

conceptual como se costuma chamá-las, nas quais escrevemos


,
nossos informes sobre a natureza; e as línguas, como é bem conhe-
cido, toleram muita escolha de expressão e muitos dialetos.
Assim, a arbitrariedade humana tem tirado a necessidade divina
da lógica científica. Se menciono os nomes de Sigwart, Mach,
Ostwald, Pearson, Milhaud, Duhem, Ruyssen, quem dentre os
senhores for estudante, identificará facilmente a tendência a respeito
da qual falo, e pensará em nomes adicionais.
Montados agora na crista dessa onda de lógica científica, Schiller
e Dewey aparecem com o seu relato pragmatista em relação ao que
a verdade significa em qualquer lugar. Em qualquer lugar, dizem
" "

esses professores, a verdade em nossas idéias e crenças significa


a mesma coisa que em ciência. Significa, dizem, nada mais que as d

idéias (que, elas próprias, não são senão partes de nossa experiên-
cia) tornam-se verdadeiras na medida em que nos ajudam a manter
relações satisfatórias com outras partes de nossa experiência, para
sumariá-las e destacá-las por meio de instantâneos conceptuais, ao
invés de seguir a sucessão interminável de um fenómeno particular.
Qualquer idéia sobre a qual podemos montar, por assim falar;
qualquer idéia que nos transporte prosperamente de qualquer parte
de nossa experiência para qualquer outra parte, ligando as coisas
satisfatoriamente, trabalhando seguramente, simplificando, economi-
zando trabalho; é verdadeira por tudo isso, verdadeira em toda a
"

extensão, verdadeira instrumentalmente. Essa é a visão instru-


"
mental da verdade, ensinada com tanto êxito em Chicago, a visão
de que a verdade em nossas idéias significa seu poder de "trabalhar",
promulgada tão brilhantemente em Oxford.
Dewey, Schiller e seus aliados, alcançando essa concepção
geral de toda a verdade, seguiram apenas o exemplo dos geólogos,
biólogos e filólogos. Na formação dessas outras ciências, o golpe
de êxito foi sempre o de tomar algum processo simples realmente
observável em operação - como as alterações introduzidas pelo
fator atmosférico digamos, ou as variações a partir de um tipo
,

genético, ou as modificações dialetais por incorporação de novas


palavras e quebras de pronunciação - e então generalizá-lo, fa-
zendo-o aplicável em todos os tempos capaz de produzir grandes
,

resultados pelo somatório de seus efeitos através de várias épocas.


O processo observável que Schiller e Dewey isolaram parti-
cularmente para generalização é o bem familiar, pelo qual qual-
,

quer indivíduo estabelece novas opiniões. O processo é sempre o


mesmo. O indivíduo já tem um estoque de velhas opiniões, mas
depara uma nova experiência que as põe em processo de triagem.
Alguém as contradiz; ou então, em um momento de reflexão, des-
cobre que elas é que se contradizem umas com as outras; ou toma
conhecimento de fatos com as quais são incompatíveis; ou surgem
desejos que elas deixam de satisfazer. O resultado é uma perturbação
íntima, à qual até então o seu espírito tinha sido estranho, e da qual
procura escapar modificando a sua massa prévia de opiniões. Salva
o máximo que pode, pois nesse assunto de crença somos ao extremo
conservadores. Assim, tenta primeiro trocar essa opinião, e depois
aquela (pois resistem à mudança com muita variedade), até que,
por último, algumas idéias novas surgem, as quais pode enxertar no
estoque velho com o mínimo de distúrbio para esse último, algumas
idéias que mediam entre o estoque e a nova experiência e cjue as
conduzem umas às outras, com facilidade e expeditamente.
Essa idéia nova é, então, adotada como sendo a verdadeira. Pre-
serva o estoque mais antigo de verdades com um mínimo de modi-
ficação, estendendo-as o bastante para fazê-las admitir a novidade,
mas concebendo tudo em caminhos tão familiares quanto o caso
permite ser possível. Uma explanação outrée, violando todas as nossas
pré-concepções, jamais passaria como relato verdadeiro de uma
novidade. Devemos perquirir em torno diligentemente até encontrar-
mos algo menos exótico. As revoluções mais violentas nas crenças
de um indivíduo deixam intacta a maior parte de sua antiga ordem.
Tempo e espaço, causa e efeito, natureza e história, e a própria
biografia de alguém, permanecem inalteráveis. A nova verdade é
sempre um intermediário, um amaciador de transições. Casa a velha
opinião ao novo fato, quase sempre para apresentar um mínimo de
choque um máximo de continuidade. Temos uma teoria como ver-
,

dadeira exatamente em proporção à capacidade em solver esse


" "

problema de máxima e mínima Mas o êxito em resolver esse


.

problema é eminentemente um caso de aproximação. Dizemos que


essa teoria dá solução no todo mais satisfatoriamente do que aquela
outra teoria; essa, porém, tem um significado mais satisfatório para
nós mesmos, e os indivíduos darão ênfase a seus pontos de satisfação
diferentemente. Em um certo grau, portanto tudo aqui é plástico.
,

10 pojito que agora faço questão que observem particularmente


é o que cjiz respeito à parte desempenhada pelas verdades mais
antigas. O fracasso em levar em conta essa situação é que é a fonte
de muitas das críticas injustas assestadas contra o pragmatismo.
Sua influência é absolutamente controlável. A lealdade que se lhes
deve é o primeiro princípio - em muito casos é o único princípio;
pois desde há muito que a maneira mais usual de tratar os novos
fenómenos que implicariam em sério reajustamento de nossas pré-
concepções é ignorá-los completamente, ou desrespeitar os que
lhes dão testemunho. A
Sem dúvida que os senhores desejam exemplos do processo do
crescimento da verdade, e o único problema é a abundância de
exemplos. O caso mais simples de verdade nova é, naturalmente, a
mera adição numérica de novas espécies de fatos, ou de fatos novos
isolados de velhas espécies, à nossa experiência - uma adição que
não envolve nenhuma alteração em nossas velhas crenças. Dia após
dia, e os seus conteúdos são simplesmente acrescentados. Os novos
conteúdos em si não são verdadeiros, simplesmente aparecem e
são. A verdade é o que dizemos a respeito deles, e, quando dizemos
que aparecem, a verdade é satisfeita pela simples fórmula aditiva.
Frequentemente, porém, os conteúdos do dia obrigam a um
reagrupamento. Se eu agora começasse a dar gritos agudos e a agir
como um maluco nesta plataforma, o caso levaria muitos dos
senhores a rever suas idéias quanto ao valor provável de minha
filosofia. O "rádio" apareceu outro dia como parte do conteúdo do
dia, e pareceu por um momento contradizer nossas idéias quanto à
ordem total da natureza, ordem essa que veio a ser identificada com
o que é chamado conservação da energia. A própria vista do rádio
dissipando energia indefinidamente, e por meio de suas próprias
fontes internas, parecia violar o princípio de conservação. Que pen-
sar? Se as radiações não eram nada, a não ser uma fuga de energia
" "

potencial insuspeita, preexistente dentro dos átomos, o princípio


de conservação estaria salvo. A descoberta do hélio como resultado
da radiação, descortinou novo caminho a essa crença. Assim, a
observação de Ramsay é tida geralmente como verdadeira, porque
causa um mínimo de alterações na natureza de nossas velhas idéias
sobre energia, embora as estenda.
Não necessito multiplicar exemplos. Uma opinião nova conta
" "
como verdadeira na proporção que satisfaz o desejo do indivíduo
no sentido de assimilar a novidade em sua experiência às suas
crenças em estoque. Deve tanto cingir-se à verdade velha quanto
abraçar o fato novo; e seu êxito (como disse a poucos instantes) em
cumprir o programado é matéria para apreciação individual. Quando
a verdade velha cresce, então, por adição de verdade nova, é por razões
subjetivas. Estamos no processo e obedecemos às razões. A idéia nova
que é mais verdadeira é a que perfaz de modo mais feliz sua função de
satisfazer nossa dupla urgência. Faz-se verdadeira, classifica-se como
verdadeira pela maneira como opera; enxerta-se, então, no velho
corpo da verdade, que se desenvolve, assim, de modo semelhante à
árvore que cresce pela atividade de uma nova camada de câmbio.
Agora, Dewey e Schiller agem no sentido de generalizar essa
observação e de aplicá-la às partes mais antigas da verdade. Elas
também em certo tempo foram plásticas. Foram também chamadas
verdadeiras por razões humanas. Mediaram também entre verdades
ainda mais antigas e o que naqueles dias eram observações novas.
Verdade puramente objetiva, verdade em cujo estabelecimento a
função de dar satisfação humana ao casamento de partes prévias da
experiência com partes mais novas não desempenhou papel algum,
está para ser encontrada em parte alguma. As razões por que chama-
mos as coisas de verdadeiras é a razão por que são verdadeiras, pois
" "
ser verdadeiro significa somente realizar essa função de união.
A trilha de serpente humana, pois, está sobre tudo. Verdade
independente; verdade que encontramos meramente; verdade não
mais maleável de acordo com as necessidades humanas; verdade
incorrigível, em uma palavra; essa verdade existe de fato super-
abundantemente - ou se supõe existir, por pensadores de espírito
racionalista; mas, então, significa somente o coração morto da árvore
viva e o estar aí significa apenas que a verdade também tem a sua
,

" "

paleontologia e a sua prescrição e pode crescer rígida, com anos


,

de serviço veterano e petrificada aos olhares humanos por pura


antiguidade. Quão plásticas, porém, até mesmo as verdades mais
velhas realmente o são sem embargo, tem sido mostrado vividamente
,

em nossos dias pela transformação das idéias lógicas e matemáticas,


transformação que parece mesmo estar invadindo a física. As fórmulas
antigas são reinterpretadas como expressões especiais de princípios
muito mais amplos, princípios que nossos antepassados nem de longe
imaginavam poder chegar à formulação presente.
Schiller dá ainda a toda essa concepção da verdade o nome de
"

humanismo", mas, para essa doutrina, também, o nome de pragma-


tismo parece razoavelmente estar em ascensão, com o que eu a
tratarei sob o nome de pragmatismo nessas conferências.
Esse, então, seria o escopo do pragmatismo - primeiramente
um método; em segundo lugar, uma teoria genética do que se enten-
de por verdade. E essas duas coisas devem ser nossos tópicos futuros.
O que disse da teoria da verdade, estou certo, terá aparecido
obscuro e pouco satisfatório à maioria dos senhores, em razão de
sua brevidade. Cuidarei para que isso não mais aconteça. Em uma
"
conferência sobre senso comum
"

tentarei mostrar o que entendo


por verdades que crescem petrificadas pela antiguidade. Em outra
conferência, exporei a idéia de que nossos pensamentos tornam-se
verdadeiros à proporção que exerçam com êxito a sua função de
intermediário. Em uma terceira, mostrarei quão difícil é discriminar
entre os fatores objetivos e subjetivos no processo de desenvolvi-
mento da verdade. Os senhores não podem seguir-me por completo
nessas palestras; e se assim o fizerem, não concordarão comigo
totalmente. Sei, porém, que, pelo menos, terão consideração comigo,
e que olharão para meu esforço com respeito.
Os senhores provavelmente ficarão surpresos em saber, então,
que as teorias de Schiller e Dewey sofreram uma tempestade de
criticas e ataques. O racionalismo todo levantou-se em peso contra
eles. Nos círculos influentes, Schiller, em particular, tem sido tratado
como um garoto de escola atrevido que merece uma boa tunda. Não
devia mencionar isso, a não ser pelo fato que lança muita luz sobre
o temperamento racionalista, ao qual tenho oposto o temperamento
do pragmatismo. O pragmatismo se sente mal longe dos fatos. O
racionalismo fica à vontade somente em presença de abstrações. O
pragmatista fala a respeito de verdades no plural, sobre sua utilidade
"

e caráter de satisfação, a respeito do êxito com que trabalham"


etc., o que sugere ao típico intelectualista uma espécie de artigo de
verdade de segunda mão. Essas verdades não são a verdade real.
Esses testes são meramente subjetivos. Contra isso, a verdade objetiva
deve ser algo não utilitário, elevado, refinado, remoto, augusto, exaltado.
Deve ser uma correspondência absoluta de nossos pensamentos com
uma realidade igualmente absoluta. Deve ser o que devamos pensar
incondicionalmente. Os meios condicionados pelos quais pensamos
são de pouca relevância e interesse para a psicologia. Abaixo com
a psicologia, para cima com a lógica, em toda essa questão!
Vejam o contraste notável entre esses tipos de espírito! O prag-
matista agarra-se aos fatos e coisas concretas, observa como a
verdade opera em casos particulares e generaliza. A verdade, para
,

ele, torna-se uma classificação para todos os tipos de valores defi-


nitivos de trabalho em experiência. Para o racionalista, não passa
de uma pura abstração, de cujo simples nome devemos diferir.
Quando o pragmatista empreende a tarefa de mostrar em detalhes
por que exatamente devemos discordar, o racionalista mostra-se
incapaz de reconhecer os dados concretos dos quais a sua própria
abstração deriva. Acusa-nos de negar a verdade; ao passo que temos
somente procurado traçar exatamente por que as pessoas a seguem
e sempre devem segui-la. O ultra-abstracionista típico dá de ombros
ao concreto: dentre outras coisas iguais prefere positivamente o
pálido e o espectral. Se dois universos lhe fossem oferecidos, decerto
optaria sempre pela configuração transparente, de preferência à rica
substância da realidade. É muito mais puro, mais claro, mais nobre.
Espero que, à medida que essas conferências prosseguirem, o
concretismo e a aproximação aos fatos do pragmatismo, que advo-
gam, possa ser o que se aprova por si mesmo aos senhores, como
sua peculiaridade mais satisfatória. Segue aqui apenas o exemplo
das ciências irmãs, interpretando o não observado pelo observado.
Aproxima harmoniosamente o velho do novo. Converte a noção
" "

absolutamente vazia de uma relação estática de correspondência


(o que isso significa, indagaremos mais tarde) entre nossos espíritos
e a realidade, na de um comércio rico e ativo (o que se pode seguir
em detalhe e compreender) entre os nossos pensamentos peculiares,
e o grande universo das demais experiências, nas quais desempe-
nham seus papéis e têm sua utilidade.
Há bastante disso, porém, presentemente? A justificação do que
disse pode ser adiada. Quero agora acrescentar uma palavra em expla-
nação posterior da tese que firmei em nosso último encontro, de que
o pragmatismo pode ser um harmonizador feliz dos processos empíricos
de pensamento com os reclamos mais religiosos dos seres humanos.
Os homens que são de temperamento fortemente predisposto
aos fatos podem os senhores lembrar-se de que já disse, estão em
,

condições de serem mantidos a distância pela pouca simpatia pelos


fatos que a filosofia do modelo de idealismo dos dias presentes lhes
oferece. É por demais intelectualista. O teísmo da velha guarda foi
bastante ruim, com sua noção de Deus como um monarca exaltado,
" "

constituído de uma porção de atributos ininteligíveis ou prepós-


teros; mas enquanto manteve fortemente o argumento de desígnio,
,

ficou em algum contato com as realidades concretas. Desde que ,

entretanto o darwinismo deslocou de uma vez por todas o desígnio


,

dos espíritos dos "científicos" o teísmo perdeu terreno; e alguma


,

espécie de uma deidade imanente ou panteísta operando nas coisas ,

de preferência a operar por sobre elas é, de qualquer modo, a


,

espécie recomendada para a nossa imaginação contemporânea. Os


aspirantes a uma religião filosófica voltam-se via de regra, mais
,
esperançosos hoje em dia para o panteísmo idealístico do que para
o teísmo dualístico mais antigo, a despeito do fato de ainda contar
esse último com hábeis defensores.
Como, porém, disse em minha primeira conferência, a marca do
panteísmo oferecido é-lhes de difícil assimilação se não apaixona-
dos pelos fatos, ou de mentalidade empírica. É a marca absolutista,
agitando a poeira e desenvolvida com lógica pura. Não mantém
nenhuma conexão com o concreto. Afirmando o Espírito Absoluto,
que é o seu substituto para Deus, como sendo a pressuposição
racional de todas as particularidades de fato, quaisquer que possam
ser, permanece supremamente indiferente ao que os fatos particulares
realmente são em nosso mundo. Sejam o que forem, o Absoluto
zelará por eles como pai. Como o leão machucado na fábula de
Esopo, todas as pegadas conduzem à sua toca, mas mulla vestigia
retrorsum. Não se pode tornar a descer ao mundo dos particulares
com a ajuda do Absoluto, ou deduzir quaisquer consequências
necessárias de detalhe importante para nossa vida a partir da idéia
que temos de sua natureza. Dá-nos, na verdade, a certeza de que
tudo está bem com Ele, e com a sua maneira eterna de pensar; mas
logo em seguida deixa-nos para sermos salvos finitamente por
meio de nossos próprios dispositivos temporais.
Longe de mim negar a majestade dessa concepção, ou a sua capacidade
em conceder conforto religioso a uma classe de espíritos bastante
respeitável. Do ponto de vista humano, porém, ninguém pode negar
que não sofra dos males de afastamento e de abstração. É, eminen-
temente, um produto do que me aventurei a chamar de temperamento
racionalista. Desdenha as necessidades empíricas. Substitui uma
configuração pálida pela riqueza do mundo real. É gentil, é nobre no
mau sentido da palavra, no sentido de que ser nobre é ser inapto para
serviços humildes. Nesse mundo real de suor e sujeira, parece-me que
" "

quando uma visão das coisas é nobre isso deve contar como suspeita
,

contra a sua verdade, e como uma desqualificação filosófica. O


príncipe das trevas pode ser um cavalheiro, como nos dizem que
é, mas, o que quer que o Deus da terra e do céu seja, seguramente
que não pode ser um cavalheiro. Seus serviços domésticos são
necessitados na poeira de nossas trilhas humanas, muito mais até
mesmo do que sua dignidade é necessitada no empíreo.
Agora, o pragmatismo, devotado que seja aos fatos, não tem
essa propensão materialista sob a qual o empirismo ordinário opera.
Mais ainda, não faz qualquer objeção ao sistema de abstrações, na
medida em que se possa percorrer os particulares com sua ajuda, o
que, realmente, pode ser feito. Interessado não em conclusões, mas
naquilo que nossos espíritos e nossas experiências elaboraram juntos,
não tem preconceitos a priori contra a teologia. Se as idéias teológi-
cas provam que têm valor para a vida concreta, são verdadeiras,
pois o pragmatismo as aceita, no sentido de serem boas para tanto.
O quanto serão verdadeiras, dependerá inteiramente de suas relações
com as demais verdades, que têm, também, de ser reconhecidas.
O que acabei de dizer a respeito do Absoluto, do idealismo
transcendente, é um caso a estudar. Primeiramente, chamei-o de
majestoso e disse que concedia conforto a uma classe de espíritos,
e então acusei-o de remoto e estéril. Na medida, porém, em que
proporciona esse conforto, seguramente que não é estéril; tem o seu
valor; realiza uma função concreta. Como bom pragmatista, devo
" "
chamar o Absoluto verdadeiro, então, com a devida reserva ; o
que, sem hesitação, faço agora.
Que, porém, significa, nesse caso, verdadeiro com a devida
reservai Para responder, precisamos apenas aplicar o método prag-
mático. Que querem dizer os crentes no Absoluto quando propalam
que sua crença proporciona-lhes conforto? Querem dizer que, visto
"

o mal já estar dominado" no finito Absoluto, podemos, portanto,


sempre quando desejarmos, tratar o temporal como se fora potencial-
mente o eterno, ficarmos seguros de que podemos confiar em seu
resultado, e, sem pecado, alijar nosso medo e livrar-nos do abor-
recimento de nossa responsabilidade finita. Em suma, querem dizer
que temos o direito, uma vez ou outra, de tomar férias morais, de
deixar que o mundo vá à sua própria sorte, na certeza de que seus
problemas acham-se em melhores mãos do que as nossas, e que não
constituem assunto de nossa alçada.
O universo é um sistema do qual os membros individuais podem
relaxar suas ansiedades ocasionalmente, no qual o ânimo descuidado
é também direito para os homens, e a moral descansa em ordem -
universo esse que, se não estou enganado, é parte, pelo menos, do
" "

que é conhecido como Absoluto; universo esse que é a grande


diferença em nossas experiências particulares com o que, em se
fazendo verdadeiro faz para nós; universo esse que é valor em
,

caixa quando interpretado pragmaticamente. Mais longe do que


isso o leitor ordinário de filosofia, que pensa favoravelmente quanto
,

ao idealismo absoluto não se aventura tendo em vista aguçar suas


,

concepções. Pode usar o Absoluto para tanto, e esse tanto é muito


precioso. Sofre ao ouvir falar incredulamente do Absoluto, portanto,
e menospreza as críticas porque abordam aspectos da concepção
que não consegue compreender.
Se o Absoluto significa isso, e não mais do que isso, quem pode
possivelmente negar a sua verdade? Negá-la seria insistir que os
homens jamais devem relaxar, e que as férias nunca estão em ordem.
Estou bem certo de quão singular deve parecer a alguns dos
presentes escutar-me dizer que uma idéia é verdadeira na medida
em que acreditar nela é proveitoso para nossas vidas. Isso é bom,
pois tanto quanto se aproveita, admite-se de bom grado. Se o que
fazemos com seu auxílio é bom, deixaremos que a idéia em si seja
boa com o que vem, pois estaremos melhor possuindo-a. Não é,
" "

porém, um estranho abuso da palavra verdade dir-se-á, chamar


,

" "
as idéias também de verdadeiras por essa razão?
Responder a essa dificuldade complemente é impossível a essa
altura de minha narrativa. Toca-se aqui no ponto central da doutrina
da verdade de Schiller, Dewey e de mim mesmo, que não posso
discutir em detalhes até chegar a minha sexta conferência. Deixem-
me dizer, por ora, somente isso, que a verdade é uma espécie de
bem, e não, como usualmente se supõe, uma categoria de bem, e
coordenada com este. Verdadeiro é o nome de que quer que prove
ser bom no sentido da crença, e bom, também, por razões funda-
mentadas e definitivas. Certamente deve-se admitir que, se não hou-
vesse bem para a vida em idéias verdadeiras, ou se o conhecimento
delas fosse positivamente desvantajoso e as idéias falsas as únicas
úteis, então a noção corrente de que a verdade é divina e preciosa, e a
sua procura um dever, jamais poderia ter crescido ou se tornado um
dogma. Em um mundo como esse, nosso dever seria o de evitar a
verdade, de preferência. Mas nesse mundo exatamente como certos
,

alimentos não são somente agradáveis ao paladar, porém bons para


os dentes, estômago e tecidos, assim certas idéias não são somente
agradáveis ao pensamento ou agradáveis como suporte de outras idéias
,

que nos são caras, mas são também úteis às lutas práticas da vida. Se
há qualquer vida que seja realmente melhor do que a que devemos
levar, e se há qualquer idéia que, em sendo acreditada, ajudar-nos-ia
a levar tal vida, então seria realmente melhor para nós acreditar
nessa idéia, a não ser que, na verdade a crença que se lhe depositasse
,

colidisse incidentalmente com outros benefícios vitais de maior vulto.


"

Como seria melhor para nós acreditar!". O que soa bem como
uma definição de verdade. É quase como se disséssemos: "
devemos
"
acreditar - e nessa definição ninguém acharia nada de anormal .

Não devemos alguma vez acreditar no que é melhor para nós


acreditar? E podemos, então, manter a noção do que é melhor
para nós, e a do que é verdade para nós, permanentemente apartadas?
O pragmatismo diz não, e concordo inteiramente com ele. Pro-
vavelmente os senhores também concordarão, tanto quanto possa
estender-se o pronunciamento abstrato, com a suspeita, porém, de
que se nós acreditássemos praticamente em tudo que traz bem a
nossas próprias vidas pessoais, acabaríamos por desculpar todas as
espécies de fantasias acerca dos negócios desse mundo, e todas as
espécies de superstições sentimentais a respeito de um mundo
vindouro. A suspeita, nesse caso, indubitavelmente é bem fundada,
e é evidente que alguma coisa acontece quando se passa do abstrato
para o concreto, que complica a situação.
Acabei de dizer que o que é melhor para nós acreditarmos é ver-
dadeiro, a não ser que a crença colida incidentalmente com algum
outro benefício vital. Ora, na vida real, que benefícios vitais estão
mais propensos a entrar em choque com qualquer crença nossa
particular? Quais, na verdade, exceto os benefícios vitais concedi-
dos por outras crenças, quando essas patenteiam-se incompatíveis
com as primeiras? Em outras palavras, o maior inimigo de qualquer
de nossas verdades pode ser o resto de nossas verdades. As verdades
têm, de uma vez por todas o instinto desesperado da autopreservação
,

e do desejo de extinguir o que quer que as contradiz. Minha crença


no Absoluto baseada no bem que me proporciona, deve aceitar o
,

desafio de todas as demais crenças minhas. Garanto que pode ser


verdadeira , dando-me um descanso moral. Não obstante, como a
concebo - e deixem-me dizer agora confidencialmente como se ,

fora e meramente em minha própria pessoa privada - colide com


,

outras verdades minhas cujos benefícios odeio ter de ceder por sua
,

causa Acontece estar associada a uma espécie de lógica da qual sou


.

inimigo e percebo que me enreda em paradoxos metafísicos, que


,

são inaceitáveis etc etc. Como, porém, já tenho muitos problemas


.
,

na vida sem precisar acrescentar a perturbação de levar comigo essas


,

divergências intelectuais pessoalmente largo mão do Absoluto. Tomo


,

justamente minhas férias morais; ou por outra, como um filósofo pro-


fissional tento justificá-las por intermédio de algum outro princípio.
,

Se eu pudesse restringir minha noção do Absoluto ao seu puro


valor de concessor de descanso não colidiria com quaisquer outras
,

verdades Não podemos, porém, assim tão facilmente, restringir


.
nossas hipóteses. Carregam consigo características avantajadas, e
são essas que entram em choque. Minha descrença no Absoluto
significa, pois, descrença naquelas outras características avantajadas,
pois acredito completamente na legitimidade de tomar férias morais.
Vê-se, por aí, o que tenho em mente quando chamei o pragma-
tismo de mediador e reconciliador e disse, tomando de empréstimo
"

a palavra de Papini, que desentesa" nossas teorias. O pragmatismo,


de fato, não tem quaisquer preconceitos, quaisquer dogmas obstru-
tivos, quaisquer cânones rígidos do que contará como prova. É
completamente maleável. Acolherá qualquer hipótese, considerará
qualquer evidência. Segue-se daí que no campo religioso mantém-
se em grande vantagem, tanto sobre o empirismo positivista, com o
seu pendor antiteológico, quanto sobre o racionalismo religioso,
com o seu interesse exclusivo pelo remoto, pelo nobre, pelo simples
e pelo abstrato no sentido da concepção.
Em suma, o pragmatismo alarga o campo de procura de Deus.
O racionalismo apega-se à lógica e ao empíreo. O empirismo
agarra-se aos sentidos externos. O pragmatismo está disposto a
tomar tudo, a seguir ou a lógica ou os sentidos e a contar com as
experiências mais pessoais e mais humildes. Levará em conta as
experiências místicas se tiverem consequências práticas. Acolherá
a um Deus que viva no âmago mesmo do fato privado - se esse
lhe parecer um lugar provável para encontrá-lo.
O seu único teste de verdade provável é o que trabalha melhor
no sentido de conduzir-nos, o que se adapta melhor a cada parte da
vida e combina com a coletividade dos reclamos da experiência ,

nada sendo omitido. Se as idéias teológicas podem fazer isso se a ,

noção de Deus, em particular prova que pode fazer isso, como


,

pode o pragmatismo, em sã consciência, negar a existência de Deus?


O pragmatismo não pode ver sentido em tratar como "não verda-
deira" uma noção que foi tão bem sucedida pragmaticamente. Que
outra espécie de verdade poderia haver para o pragmatismo, do
,

que toda essa concordância com a realidade concreta?


Em minha última conferência voltarei de novo, às relações do
,

pragmatismo com a religião. Vê-se desde já, porém, quão democrá-


tico é. Suas maneiras são tão várias e flexíveis seus recursos tão
,

ricos e intermináveis e suas conclusões tão amigáveis quanto às da


,

natureza mãe. .

u
Terceira Conferência

Alguns problemas metafísicos


considerados pragmaticamente

H stou agora em condições de tornar o método pragmático


mais familiar dando aos senhores algumas ilustrações de sua
aplicação a problemas particulares. Começarei com o mais árido, e
a primeira coisa que tomarei comigo será o problema da substância.
Todos fazem a velha distinção entre substância e atributo, encrustada
que está na própria estrutura da linguagem humana, na diferença
entre sujeito e predicado gramaticais. Temos aqui, por exemplo,
um pedaço de giz de quadro-negro. Seus modos, atributos, proprie-
dades, acidentes ou feições - qualquer que seja o termo que
usemos - são brancura, fragilidade, formato cilíndrico, insolubili-
dade em água etc., etc. Mas o dono desses atributos é apenas o giz,
que tem o nome da substância com aqueles atributos. Assim, os
" "
atributos dessa mesa inerem na substância madeira os do meu
,

"
casaco, na substância lã", e assim por diante. O giz, a madeira e a
lã, mostram de novo, a despeito de suas diferenças, propriedades
comuns, e por extensão, eles mesmos são contados como modos
,

de uma substância ainda mais primitiva, a matéria, cujos atributos


são extensibilidade e impenetrabilidade. De modo semelhante, nos-
sos pensamentos e sentimentos são feições ou propriedades de
nossas diversas almas, que são substâncias, mas de novo não comple-
tamente a seu próprio modo, pois são modos da substância ainda
" "

mais profunda espírito .

Agora, logo se viu que o que todos nós conhecemos do giz é a


brancura fragilidade etc., que o que todos nós conhecemos da
,

madeira é a combustibilidade e a estrutura fibrosa. Um grupo de

61
atributos é o que cada substância aqui tem para ser reconhecida, e
formam o seu único valor em caixa para a nossa experiência real. A
substância, em cada caso, é revelada através dos atributos; se fôs-
semos separados deles, jamais suspeitaríamos de sua existência; e
se Deus se mantivesse mandando-os a nós em ordem inalterável,
aniquilando milagrosamente em um determinado momento a subs-
tância que os suportava, jamais poderíamos perceber o momento,
pois as nossas próprias experiências manter-se-iam inalteradas. Os
nominalistas, consequentemente, adotam a opinião de que a substân-
cia é uma idéia espúria, devido ao nosso inveterado vezo humano
de transformar os nomes em coisas. Os fenómenos vêm em grupos
- o grupo-giz o grupo-madeira, etc. - e cada grupo adquire o seu
,

nome. O nome nós então tratamos como suportando, em certo


sentido, o grupo de fenómenos. O termómetro comum de nossos
dias, por exemplo, é suposto originar-se de alguma coisa chamado
" "
clima O clima é realmente apenas o nome para um certo grupo
.

de dias, mas é tratado como se permanecesse por detrás do dia, e


em geral colocamos o nome, como se fora um ser, atrás dos fatos
que designadas as propriedades fenomenais das coisas, dizem os
nominalistas, certamente que não se tornam inerentes de fato aos
nomes, e se, então, não se tornam inerentes aos nomes, não se
tornam inerentes a coisa alguma. Aderem, ou se unem, antes, entre si,
e a noção de uma substância inacessível a nós, que pensamos que
explica essa coesão suportando-a, como o cimento pode suportar
peças de mosaico, deve ser abandonada. O fato da pura coesão em si
é tudo que a noção de substância significa. Atrás do fato nada existe.
A escolástica tomou a noção de substância do senso comum,
tornando-a técnica e articulada. Poucas coisas pareceriam ter conse-
quências pragmáticas menores para nós do que as substâncias,
apartados como estamos de cada contato com elas. Contudo, em
um caso, a escolástica provou a importância da idéia substância
tratando-a pragmaticamente. Refiro-me a certas disputas acerca do
mistério da Eucaristia. A substância aqui parecia ter um valor
pragmático momentâneo. Visto que os acidentes da hóstia não se
alteram na ceia do Senhor, e que, todavia, ela se torna o próprio
corpo do Cristo, deve ser que a mudança se verifica somente na
substância. A substância pão deve ter sido retirada, e a substância
divina substituída milagrosamente, sem alterar as propriedades
sensíveis imediatas. Mas embora essas não se tenham alterado,
processou-se uma diferença tremenda, nada menos do que isso, que
nós, que tomamos o sacramento, alimentamo-nos agora com a pró-
pria substância da divindade. A noção substância transforma-se em
vida, então, com tremendo efeito, se, por uma vez, permitimos que
as substâncias possam separar-se de seus acidentes, e trocá-los mais
tarde.
Essa é a única aplicação pragmática da idéia de substância de
que tenho notícia; e é óbvio que ela somente será tratada seriamente
" "

por aqueles que já acreditam na presença real em bases indepen-


dentes.
JA substância material foi criticada por Berkeley com tal efeito
que seu nome tem brilhado ao longo de toda a filosofia subse-
quente. O tratamento que Berkeley dispensa à noção de matéria é
tão bem conhecido que exige pouco mais do que uma simples
menção. Longe de negar o mundo externo que conhecemos, Berkeley
endossa-o. Foi a noção escolástica de uma substância material
inacessível a nós, por detrás do mundo externo, mais profunda e
mais real do que ele, e necessária para apoiá-lo, que Berkeley
sustentava ser o mais efetivo de todos os redutores do mundo
externo à irrealidade. Neguemos essa substância, disse ele, acredite-
mos que Deus, a quem podemos compreender e de quem podemos
aproximar-nos, envia-nos o mundo sensível diretamente, e confirma-
remos esse último e o apoiaremos por sua divina autoridade. A
" "

crítica de Berkeley à matéria foi, por conseguinte, absolutamente


pragmática. A matéria é conhecida como nossas sensações de cor,
forma, dureza e que mais. Constituem o valor em caixa do termo. A
diferença que a matéria tem para nós, em sendo verdadeira, é que
nós, então, temos tais sensações; em não sendo, é que não as temos.
Essas sensações, então, constituem o seu único sentido. Berkeley
não nega a matéria, pois simplesmente diz-nos de que consiste. É
um nome verdadeiro para tanto no sentido das sensações.
Locke, e mais tarde Hume, aplicaram uma crítica pragmática
semelhante à noção de substância espiritual. Mencionarei somente
"

o tratamento que Locke dispensou à nossa identidade pessoal".


Ele reduz imediatamente essa noção ao seu valor pragmático em
termos de experiência. Significa diz ele, a "consciência", isto é, o
,

fato de que em um determinado momento da vida, lembramo-nos


,

de outros momentos e sentimo-os todos como partes de uma e uma


,

só mesma história pessoal O racionalismo havia explicado essa


.

continuidade prática em nossa vida pela unidade de nossa substância


alma . Locke diz, entretanto: suponhamos que Deus houvesse-nos
arrebatado a consciência; ficaríamos bem, de qualquer modo, por
termos ainda o princípio da alma? Suponhamos que anexamos a
mesma consciência a diferentes almas; ficaríamos pior, quando nos
compreendemos, por esse fato? Nos dias de Locke, a alma era
principalmente uma coisa para ser recompensada ou punida. Veja-
mos como Locke, discutindo-a desse ponto de vista, mantém a
questão pragmática:
"

Suponhamos", diz ele, "que alguém pense ser a mesma alma


que outrora foi Nestor ou Térsitas. Pode ele julgar como suas as
ações deles, de qualquer modo mais do que as ações de qualquer
outro homem que tenha alguma vez existido? Deixemo-lo, porém,
encontrar-se uma vez cônscio de qualquer das ações de Nestor, e
ele então descobre que é a mesma pessoa com Nestor... Nessa
identidade pessoal fundamenta-se todo o direito e justiça de recom-
pensa e punição. Pode ser razoável pensar que ninguém será levado
a responder pelo que ignora, mas que receberá seu castigo, sua
consciência acusando ou desculpando. Supondo-se um homem
punido agora pelo que fizera em outra vida, com o que não teria
consciência de nada, que diferença faz entre essa punição e ser
"
criado miserável?
Nossa identidade pessoal, então, consiste, para Locke, somente
em particulares definíveis pragmaticamente. Se, à parte desses fatos
verificáveis, ela se insere também em um princípio espiritual, eis aí
uma especulação meramente curiosa. Locke, transigente como foi,
tolerou passivamente a crença em uma alma substancial por detrás
de nossa consciência. Seu sucessor, porém, Hume, e muitos psicó-
logos empíricos depois dele, negaram a alma, salvo como nome para
as coesões verificáveis em nossa vida interior. Essas descem pela
corrente de experiência com a alma, e descontam-na por um valor
"
elevado em troco miúdo no sentido de idéias" e de suas conexões
peculiares entre si. Como disse da matéria de Berkeley, a alma é boa
" "
ou verdadeira exatamente nessa medida, não mais do que isso.
menção de substância material sugere naturalmente a dou-
trina do "materialismo", mas o materialismo filosófico não está
" "

necessariamente ligado à crença na matéria como um princípio


,

metafísico. Pode-se negar a matéria naquele sentido, tão veemente-


mente como Berkeley o fez, pode-se ser um fenomenalista como
Huxley, e, todavia, pode-se ainda ser um materialista no amplo
sentido da palavra, de explicar os fenómenos mais elevados pelos
mais baixos, e deixar os destinos do mundo à mercê de suas partes
mais cegas e de suas forças mais obscuras. É nesse sentido mais
amplo da palavra que o materialismo se opõe ao espiritualismo ou
ao teísmo. As leis da natureza física são as que regem as coisas, diz
o materialismo. As produções mais elevadas do génio humano
podem ser calculadas por quem tenha completo conhecimento dos
fatos, fora de suas condições filosógicas, não se cuidando se a
natureza existe somente por nossos espíritos, como os idealistas
propugnam, ou não. Nossos espíritos, de qualquer modo, têm de
registrar o tipo que a natureza é, e explicá-la como operando
através de leis cegas da física. Esse é o caráter do materialismo de
hoje em dia, que pode ser chamado com mais propriedade de
"

naturalismo. Opondo-se-lhe, ergue-se o teísmo", ou o que, em


" "

amplo sentido, pode ser chamado de espiritualismo O espiritualis-


.

mo diz que o espírito não somente testemunha e registra as coisas,


como também as opera e comanda: sendo o mundo assim guiado
não pelo seu mais baixo, mas por seu mais alto elemento. _

Tratada como frequentemente o é, essa questão tornasse pouco


mais do que um conflito entre preferências estéticas. A matéria é
grossa, áspera, crassa, turva; o espírito é puro, elevado, nobre; e
visto que está mais em consonância com a dignidade do universo
dar primazia ao que aparece como superior, o espírito deve ser
confirmado como o princípio guia. Tratar os princípios abstratos
como finalidades, diante das quais nossos intelectos podem vir
repousar em um estado de contemplação admirada, é a grande falha
do racionalismo. O espiritualismo, como frequentemente se apresen-
ta, pode ser apenas um estado de admiração por uma espécie, ou de
desgosto por outra espécie de abstração. Lembra-me um professor
,

espiritualista muito digno que sempre se referia ao materialismo


,

cojmo "filosofia suja" e com isso tinha-o já como refutado.


,

f A um espiritualismo como esse há uma resposta fácil e Spencer ,

dá-la efetivamente. Em algumas páginas bem escritas, ao fim do


" "

primeiro volume de sua Psicologia, mostra-nos que uma matéria


tão infinitamente sutil e que realiza movimentos tão inconcebivel-
,

mente lestos e finos como os que a ciência moderna postula em


suas explanações não tem nenhum traço de grossura em si. Mostra
,

que a concepção do espírito, como nós, mortais, temos até aqui


arquitetado é em si demasiado grosseira para abarcar a delicada
,

tenuidade dos fatos da natureza Ambos os termos, diz ele, nada


.

mais são do que símbolos dando ênfase àquela imperceptível


,

realidade na qual cessam as oposições / f .


,
Para uma objeção abstrata basta uma réplica abstrata; e na medi-
da em que a oposição ao materialismo deriva do desdém pela matéria
" "

como alguma coisa crassa Spencer solapa as bases de uma tese


,

tão infundada. A matéria, na verdade é infinita e incrivelmente


,

refinada. A quem quer que tenha alguma vez olhado a face de um


filho morto, ou a de um ente querido sem vida, o mero fato de ter
podido a matéria tomar por algum tempo aquela forma preciosa,
basta para torná-la sagrada desde então. Não faz diferença qual possa
ser o princípio de vida, material ou imaterial, pois a matéria de
qualquer modo coopera, prestando-se a todos os propósitos da vida.
Aquela amada incarnação fez parte das possibilidades da matéria.
Agora, porém, ao invés de demorar em princípios, de maneira
intelectualmente estagnante, vamos aplicar o método pragmático
aos problemas seguintes. Que entendemos por matéria? Que dife-
rença prática faz agora que o mundo seja comandado pela matéria
ou pelo espirito? Penso que nos damos conta de que, com isso, o
problema toma outra feição, algo diferente.
Antes de mais nada, chamo a atenção para um fato curioso. Não
faz a menor diferença, na medida em que o passado do mundo
tenha passado, se o julgamos como tendo sido o trabalho da matéria
ou se pensamos que um espírito divino foi o seu autor.
Imagine-se, de fato, que todos os componentes do mundo foram
de uma vez por todas irrevogavelmente providos. Imagine-se que
acaba nesse exato momento, e que não tenha mais futuro; deixemos,
então, que um teísta e um materialista apliquem suas explicações
rivais à história do mundo. O teísta mostra como um Deus o fez; o
materialista mostra, e suporemos com igual êxito, como resultou de
forças físicas cegas. Que o pragmatista, então, seja solicitado a
escolher entre suas teorias. Como pode aplicar seu teste se o mundo
já está completado Os conceitos, para ele, são coisas que retornam
com a experiência, coisas que nos fazem distinguir as diferenças.
Por hipótese, porém, não pode haver mais experiência, e não podem
mais, por agora, serem distinguidas possíveis diferenças. Ambas as
teorias mostraram todas as suas consequências, e, pela hipótese que
adotamos, essas são idênticas O pragmatista deve, consequentemen-
te, dizer que as duas teorias, a despeito de seus nomes com diferen-
tes conotações, significam exatamente a mesma coisa, e que a disputa
é puramente verbal. (Estou supondo, naturalmente que as teorias
,

foram igualmente bem sucedidas nas suas explicações do que é).


Considere-se o caso sinceramente, e diga-se qual seria o valor
de um Deus se estivesse ali, com sua obra realizada e seu mundo
destruído. Não valeria mais nem menos do que aquele mundo valia.
Àquela quantidade de resultados, com seus méritos e defeitos
mesclados, o seu poder criador poderia atingir, mas não ultrapassar.
E visto não haver futuro; visto o valor e significado totais do mundo
já terem sido pagos e atualizados nos sentimentos que o acompa-
nharam no transcurso das coisas, e que agora o acompanham no
fim das coisas; visto não implicar nenhuma significação suplemen-
tar (tal como nosso mundo real implica) derivada de sua função de
preparar alguma coisa ainda para vir; eis por que, então, por ele
tomamos a medida de Deus, como fora. Temos o Ser que pode, de
vez por todas, fazer aquilo; e por tudo isso somos-lhe gratos, mas
não por nada mais. Agora, porém, na hipótese contrária, a saber,
que os fragmentos de matéria que seguem suas leis poderiam fazer
o mundo, e menos não fizeram, não devemos ser, do mesmo modo,
gratos a eles? Em que sofreríamos perda, então, se abandonássemos
Deus como uma hipótese e tornássemos só a matéria responsável?
De onde adviria qualquer malefício especial, ou prejuízo? E como,
sendo a experiência o que é de uma vez por todas, poderia a presença
de Deus no mundo torná-lo ainda mais vivo ou mais rico?
Sinceramente, é impossível dar qualquer resposta a essa per-
gunta. O mundo realmente experimentado é suposto ser o mesmo
"

em seus detalhes em qualquer hipótese, o mesmo, para nosso


louvor ou culpa" como Browning disse. Mantém-se indestru-
,

tivelmente: uma prenda que não pode ser tomada de volta. De-
nominar de matéria a sua causa não retira nenhum só dos itens que
o edificaram, e nem dar o nome de Deus à causa fá-los aumentar.
São o Deus ou os átomos, respectivamente, desse mundo mesmo, e
não de nenhum outro. Deus, se existe, tem feito justamente o que os
átomos podiam fazer - aparecer na figura de átomos, para falar
assim - e ser credor da gratidão que é devida aos átomos, e nada
mais. Se sua presença não empresta cor ou caráter diferentes à
função seguramente que não pode emprestar aumento de dignidade.
,

Nem a indignidade se manifestaria, estivesse Deus ausente, e per-


manecessem apenas os átomos como atores no palco. Quando uma
peça acaba e a cortina desce, não a tornamos melhor reclamando
um génio ilustre para o seu autor do mesmo modo que não a
,

tornamos pior por chamá-lo de escrevinhador vulgar .

Assim, se nenhum detalhe futuro de experiência ou de conduta


pode ser deduzido de nossa hipótese, o debate entre materialismo e
teísmo torna-se completamente frívolo e insignificante. A matéria
e Deus nesse caso significam exatamente a mesma coisa - o
poder, a saber, nem mais nem menos, que podia fazer justamente
completo esse mundo - e sábio é quem, em situações dessas, volta
as costas à discussão supérflua. Do mesmo modo, muitos homens
instintivamente, e positivistas e cientistas deliberadamente, voltam
as costas às disputas filosóficas das quais nada pode ser visto
seguir-se na linha de consequências futuras definitivas. O caráter
verbal e vazio da filosofia é certamente uma reprovação com a qual
não estamos senão bastante familiarizados.' Se o pragmatismo é
verdadeiro, é uma censura perfeitamente segura, a não ser que as
teorias em jogo possam ser demonstradas como tendo resultados
práticos alternados, embora delicados e distantes que possam ser.
O homem comum e o cientista dizem que não descobrem tais
resultados, e se o metafísico pode discernir coisa alguma também,
os outros certamente estão no direito de ir a favor, como contra ele.
Sua ciência não é, então, senão bagatela pomposa; e a dotação
destinada a um professorado dessa espécie seria patetice.
Consequentemente, em cada genuíno debate metafísico, algum
problema prático, conquanto conjectural e remoto, está envolvido.
Para compreender essa situação, retornem comigo ao nosso esquema
e se coloquem, dessa vez, no mundo em que vivemos, no mundo que
tem um futuro, mas que, todavia, está incompleto enquanto falamos.
Nesse mundo inacabado, a alternativa de "materialismo ou ateísmo?"
é intensamente prática; e vale a pena para nós despender alguns
minutos de uma hora, a observar que a situação é essa mesma.
Como, na verdade, pode o programa diferir para nós, conforme
consideramos que os fatos da experiência até agora são configura-
ções despropositadas de átomos cegos que se movem de acordo
com leis eternas, ou que, por outro lado, devem-se à providência
divina? Na medida em que os fatos passados passaram, na verdade,
não há diferença. São fatos enquadrados, arrumados, capturados; e
o bem que encerram não está perdido, sejam os átomos ou seja
Deus a causa do mesmo. Há, consequentemente, muitos materialistas
por aí em torno de nós hoje em dia, que, ignorando completamente
os aspectos práticos e futuros da questão, procuram eliminar a
carga de ódio consubstanciada na palavra materialismo, e buscam
até mesmo eliminar a própria palavra, mostrando que, se a matéria
pôde dar origem a todos esses ganhos, pelo que, então, a matéria,
considerada funcionalmente, é justamente uma entidade tão divina
quanto Deus, de fato se aglutina com Deus, é o que se entende por
Deus. Deixe-se, advertem-nos essas pessoas, de usar qualquer desses
termos, com seu antagonismo superado. Use-se um termo despojado
de conotações clericais, por um lado; das sugestões de grossura,
aspereza, ignobilidade, por outro. Fale-se do mistério primitivo, da
energia desconhecida, do primeiro e único poder, ao invés de dizer-
se Deus ou matéria. Esse é o caminho ao qual Spencer nos impele;
e se a filosofia fosse puramente retrospectiva, por todos os títulos
ele se intitularia um excelente pragmatista.
A filosofia, porém, é também prospectiva, e, após achar o que o
"

mundo tem sido e feito e cedido, ainda pergunta de quebra: que


"

promete o mundo? Dêem-nos uma matéria que prometa êxito, que


.

esteja destinada por suas leis a conduzir nosso mundo, cada vez mais
perto, à perfeição, e qualquer homem racional adorará essa matéria
tão prontamente quanto Spencer adorou o seu próprio poder desco-
nhecido. Não só tem favorecido a retidão até agora, como a favore-
cerá para sempre; e isso é tudo que precisamos. Fazendo praticamen-
te tudo que um Deus pode fazer, é equivalente a Deus, sua função é
a de um Deus, e em um mundo em que um Deus fosse supérfluo; de
um mundo assim, um Deus jamais poderia ser legalmente omitido.
"

Emoção cósmica" seria o nome certo para religião.


A matéria, porém, com a qual o processo de evolução cósmica
de Spencer se desenvolve dentro do princípio de perfeição interminá-
vel é essa de que falamos? Na verdade não é, pois o fim futuro de
,

cada coisa ou sistema de coisas envolvidas cosmicamente está


previsto pela ciência ser uma tragédia mortal; e Spencer, confinando-
se ao estético e ignorando o lado prático da controvérsia, não
contribuiu realmente com nada sério para amenizar a situação.
Aplique-se porém, agora, nosso princípio de resultados práticos, e
,

veja-se que significação vital a questão do materialismo ou ateísmo


adquire imediatamente.
O teísmo e o materialismo, tão indiferentes quando tomados
retrospectivamente assinalam, quando tomados prospectivamente,
,

perspectivas totalmente diferentes de experiência. Pois, de acordo


com a teoria da evolução mecânica as leis de redistribuição da
,

matéria e do movimento embora certamente se lhes deva agradecer


,

por todas as boas horas que nossos organismos tenham alguma vez
nos proporcionado e por todos os ideais que nossos espíritos agora
sustentam ,
contam-se, não obstante, como fatalmente certas no
sentido de desfazer sua obra de novo e de desagregar tudo o que
,
alguma vez tenham concentrado. Todos conhecem o quadro do
estágio final do universo, que a ciência evolucionária prevê. Não
"

posso expor melhor o quadro que não nas palavras de Balfour: As


energias de nosso sistema decairão a glória do sol murchará, e a
,

terra, sem marés e inerte, não mais tolerará a raça que por um
momento perturbou sua solidão. O homem entrará pelo buraco, e
todos os seus pensamentos perecerão. A inquieta consciência que,
nesse canto obscuro, por um breve espaço quebrou o silêncio satis-
feito do universo, ficará em repouso. A matéria não mais se reco-
,
nhecerá. iMonumentos imperecíveis e 'feitos imortais,, a própria
morte, e o amor mais forte que a morte, ficarão como se não
tivessem existido. Nada existirá, o melhor ou o pior de tudo quê o
trabalho, o génio, a devoção e o sofrimento do homem penaram
através de idades sem conta para efetuar. .
"

O triste da estória é que nas vastas correntes do tempo cósmico,


embora apareçam muitas praias enfeitadas, e flutuem à solta muitos
bancos de nuvens encantadas, em permanência por longo tempo
antes de serem dissolvidos - mesmo como nosso mundo agora
permanece, para nossa alegria - quando, porém, esses produtos
transitórios se dissipam, nada, absolutamente nada resta para re-
,

presentar as qualidades particulares, os elementos de preciosidade


que possam ter recolhido. Mortos e desaparecidos estão, desapareci-
dos completamente da própria esfera e espaço do ser. Sem um eco;
sem uma lembrança; sem uma influência sobre nada que possa vir
depois, para fazê-lo ter cuidados por ideais semelhantes. Esse de-
sastre final, irremediável tragédia, é da essência do materialismo
cientifico, conforme compreendido presentemente. As forças mais
baixas e não mais altas é que são as forças eternas, ou as últimas
forças sobreviventes dentro do único ciclo de evolução que podemos
definitivamente ver. Spencer acredita nisso tanto quanto qualquer
outro; assim, por que deve ele discutir conosco como se estivéssemos
fazendo objeções estéticas imbecis à "grosseria" da "matéria e do
"
movimento os princípios de sua filosofia, quando o que realmente
,

nos apavora é o desconsolo de seus resultados práticos posteriores?


Não, a verdadeira objeção ao materialismo não é positiva mas
,

negativa. Seria grotesco nesse momento, queixar-se dele naquilo


,

" "

que é, por grosseria Grosseria é o que a grosseria/cz - sabemos


.

,
The Foundation of Belief página 30.
,
agora o quê. Queixamo-nos dele, ao contrário, pelo que não é -
uma garantia permanente para os nossos interesses mais ideais, e
não um provedor de nossas mais remotas esperanças.
A noção de Deus, por outro lado, conquanto inferior possa ser
em clareza às noções matemáticas correntes em filosofia, me-
cânica, tem, pelo menos, uma superioridade prática sobre as mesmas,
a de que garante uma ordem ideal que será permanentemente
preservada. Um mundo com um Deus nele para dar a palavra final,
pode, na verdade, queimar ou gelar, mas então consideramo-lo
como ainda atento aos velhos ideais e certo de trazê-los em outra
parte à fruição; de modo que, onde estiver, a tragédia é somente
provisória e parcial, e o afundamento e a dissolução não são abso-
lutamente as coisas finais. Essa necessidade de uma ordem eterna
moral é das mais profundas em nosso peito. E os poetas como Dante
e Wordsworth, que vivem da convicção de uma tal ordem, devem a
esse fato a extraordinária tónica e o poder consolador de seu verso.
Nisso, pois, nesses diferentes apelos emocionais e práticos, nos ajus-
tamentos de nossas atitudes concretas de esperança e de expectativa,
e em todas as consequências delicadas que suas diferenças gravam,
reside o significado positivo do materialismo e do espiritualismo
- e não em abstrações bizantinas a respeito da essência interna da
matéria ou a respeito dos atributos metafísicos de Deus. O materia-
,

lismo significa simplesmente a negação de que a ordem moral é


eterna e a eliminação das últimas esperanças; o espiritualismo signi-
,

fica a afirmação de uma ordem moral eterna e a permanência da


esperança. Certamente que se trata de um problema bastante espi-
nhoso para quem quer que o sinta; e, enquanto os homens forem
,

homens dará assunto para um debate filosófico sério.


,

Possivelmente, porém, alguns podem ainda reunir-se em sua


defesa Mesmo embora admitindo que o espiritualismo e o materia-
.

lismo fazem diferentes profecias quanto ao futuro do mundo pode-


,

se desprezar a diferença como alguma coisa tão infinitamente remota


para poder significar algo de concreto para um espírito normal. A
essência de um espírito normal pode-se dizer, é olhar para mais
,

perto e não dar nenhuma importância para quimeras tais como o


fim do mundo Bem, só posso dizer que, se é isso que se diz, faz-se
.

injustiça à natureza humana Não se dispõe da melancolia religiosa


.

por um simples florescer da insanidade mundial. As coisas absolutas,


as últimas coisas às coisas sobrepostas, são os interesses verdadei-
,

ramente filosóficos; todos os espíritos superiores pensam seriamente


a esse respeito, e o espírito de vistas mais curtas é simplesmente o
espírito do homem mais superficial.
As questões de fato em jogo no debate são, naturalmente, con-
cebidas bastante vagamente por nós nos dias presentes. Mas a fé
espiritualista, em todas as suas formas, lida com um mundo de
promessa, ao passo que o sol do materialismo põe-se em um mar de
desapontamento. Lembrem-se do que eu disse do Absoluto: garante-
nos férias morais. Qualquer visão religiosa faz isso. Não somente
incita os nossos momentos mais tenazes, como também proporciona
os nossos momentos alegres, descuidados, confiantes, e os justifica.
Configura as bases da justificação vagamente, para ser exato. As
características precisas dos fatos futuros poupados que nossa crença
em Deus assegura, terão de ser calculadas pelos intermináveis méto-
dos da ciência: podemos estudar nosso Deus estudando somente
sua Criação. Podemos desfrutar de nosso Deus, porém, se tivermos
um, adiantadamente a todo esse trabalho. Eu mesmo acredito que a
evidência de Deus reside, antes de mais nada, em experiências
pessoais internas. Uma vez que nos tenha sido dado o nosso Deus,
seu nome significa, pelo menos, o benefício do descanso. Lembrem-
se do que eu disse da vez passada a respeito da maneira pela qual as
"
verdades se chocam e tratam de derrubar-se" umas às outras. A
"
verdade de Deus" tem de aceitar o desafio de todas as outras nossas
verdades. Está sendo julgada por todas e julga a todas. Nossa
opinião final a respeito de Deus só pode ser assentada depois que
todas as verdades tiverem passado juntas por um processo de
triagem. Esperemos que encontrem um modus vivendi.
Deixem-me passar a um problema filosófico bem relacionado
com esse, a questão do desígnio na natureza. A existência de Deus
tem sido, desde tempos imemoriais, tida como podendo ser demons-
trada por certos fatos naturais. Muitos fatos aparecem como se
expressamente designados em vista um do outro. Assim, o bico do
pica-pau, sua língua, seus pés, sua cauda etc., adaptam-no maravilho-
samente a um mundo arbóreo, com larvas ocultas por detrás das
cascas das árvores, prontas para servirem de pasto à voracidade da
ave. As partes de nosso olho acomodam-se às leis ópticas com
perfeição, levando os raios luminosos a reproduzirem com agudeza
a imagem do objeto em nossa retina. Essa adaptação mútua de
coisas diversas quanto à origem dava a entender um desígnio.
,

conforme foi sustentado; e o planejador foi sempre tratado como


uma deidade amiga dos homens.
O primeiro passo nesses argumentos foi o de provar que o de-
sígnio existia. A natureza foi esquadrinhada em busca de resultados
obtidos através de coisas separadas que se co-adaptavam. Nossos
olhos, por exemplo, têm origem na escuridão intra-uterina, e a luz
tem origem no sol, e contudo veja-se como se adaptam um ao outro.
Evidentemente são feitos um para o outro. A visão é o fim colimado,
e a luz e os olhos os meios distintos delineados para a sua con-
secução.
É estranho, considerando quão unanimemente nossos antepas-
sados sentiram a força desse argumento, é estranho ver quão pouco
conta desde o triunfo da teoria darwiniana. Darwin abriu-nos os
olhos ao poder que os acontecimentos aleatórios têm no sentido de
" "
concluir resultados apropriados se somente houver tempo para
que possam combinar-se entre si. Mostrou o desperdício enorme da
natureza no sentido de apresentar resultados que davam em nada,
em consequência de sua impropriedade. Salientou, também, o
número de adaptações que, se designadas, argumentariam mais a
favor de um mau designador do que um bom. Aqui, tudo depende
do ponto de vista. Para o verme debaixo da casca de árvore, o
caráter maravilhosamente apropriado do organismo do pica-pau ,

no sentido de arrancá-lo de lá, seria certamente um argumento


favorável a um diabólico designador.
Os teólogos, por esse tempo, já prepararam seus espíritos de modo
a abraçar os fatos darwinianos e, contudo, a interpretá-los como
,

mostrando ainda um propósito divino. Costumava ser uma questão


de propósito contra o mecanismo de um ou do outro. Era como se
,

alguém dissesse: "Meus sapatos foram evidentemente fabricados


para sê adaptarem aos meus pés, por conseguinte é impossível que
tenham sido produzidos por máquinas" Sabemos que não é bem
.

assim: foram feitos por máquinas cujo propósito é servir aos pés
com sapatos A teologia necessita apenas de estender semelhante-
.

mente os desígnios de Deus Do mesmo modo que o fim de uma equipe


.

de futebol não é meramente o de colocar a bola em um determinado


,

ponto do campo para lavrar um tento (se assim o fora, teriam sim-
plesmente de ir lá em uma noite escura e depositar a bola na boca
da meta) mas o de chegar à cidadela do adversário por intermédio
,

de uma maquinaria de condições estabelecidas - as regras do jogo


e °S jogadores contrários assim o objetivo de Deus não é meramente,
,

digamos o de fazer homens e salvá-los, mas antes o de ter isso feito


,

por intermédio de um único agente, a vasta máquina da natureza.


Sem as estupendas leis e forças opostas da natureza, a criação e
perfeição do homem, podemos supor, seriam feitos demasiadamente
insípidos para que Deus a isso se tivesse proposto.
O que salva a forma do argumento desígnio à custa do seu velho
e fácil conteúdo humano. O designador, há muito que deixou de ser
a deidade do tipo velhinho. Seus desígnios estenderam-se tanto ao
ponto de se tornarem incompreensíveis aos humanos. O sentido
dos mesmos angustia-nos tanto, que fixar a mera configuração do
designador torna-se tarefa de muito menor consequência em com-
paração. Só com dificuldade podemos compreender o caráter de
um espírito cósmico cujos propósitos são revelados por inteiro pela
estranha mistura de bens e males que encontramos no mundo. Ou
melhor, não podemos de jeito algum compreender. A simples palavra
"

desígnio" em si não tem consequências e não explica nada. É o


mais estéril dos princípios. A velha questão de saber-se se há um
desígnio é ociosa. A questão real é o que que é o mundo, se tem ou
não um designador - e isso só pode ser revelado pelo estudo de
todos os particulares da natureza.
Lembrem-se de que não importa o que a natureza possa ter
produzido ou possa estar produzindo, os meios devem necessaria-
mente ter sido adequados, devem ter sido adaptados àquela pro-
dução. O argumento de propriedade do desígnio, consequente-
mente, sempre se aplicaria, qualquer que fosse o caráter do pro-
duto. A recente erupção do Monte Pelado, por exemplo, exigiu
toda a história passada para produzir aquela exata combinação de
casas arruinadas, cadáveres de seres humanos e de animais, navios
afundados, cinzas vulcânicas etc. justamente naquela hedionda
,

configuração de posições. A França tinha de ser uma nação e


colonizar a Martinica. Nosso país tinha de existir e enviar para
lá nossos navios. Se Deus visava de fato aquele resultado os meios
,

pelos quais os séculos curvaram suas influências nesse sentido


revelaram uma inteligência primorosa. E o mesmo em qualquer
estado de coisas, tanto na natureza quanto na história que possamos
,

encontrar já realizadas. Pois as partes das coisas devem sempre ter


alguma resultante definida seja caótica ou harmoniosa. Quando
,

olhamos ao que realmente tem sucedido as condições devem sempre


,

aparecer perfeitamente designadas para assegurar o que se passou.


,

Podemos dizer portanto, em qualquer mundo concebível, de qualquer


,

caráter concebível que toda a máquina cósmica pode ter sido de-
,

signada para apresentar tal e tal resultado.


Pragmaticamente, então, a palavra abstrata "desígnio" é um
cartucho sem bala. Não produz consequências, não acarreta exe-
cução. Que desígnio? E que designador? São as únicas questões
sérias, e o estudo dos fatos é o único meio de termos respostas
aproximadas. Nesse meio tempo, na dependência da lenta resposta
dos fatos, quem quer que insista na idéia de que há um designador e
quem esteja certo de que este é divino, partilha de um certo benefício
pragmático provido pelo termo - o mesmo, de fato, que vemos
"

provido pelos termos Deus, Espírito ou Absoluto. Desígnio", em-


bora desprovido de valor que é, como um mero princípio raciona-
lista posto acima ou detrás das coisas para nossa admiração, torna-
se, se nossa fé objetiva-o, em alguma coisa teística, um termo de
promessa. Retornando com ele à experiência, ganhamos uma pers-
pectiva mais confiante no futuro. Se não é uma força cega, mas
uma força vidente a que comanda as coisas, podemos, com certa
razão, esperar melhores resultados. Essa confiança vaga no futuro é
o único significado pragmático discernível presentemente dos termos
desígnio e designador. Se, porém, a confiança cósmica está certa e
não errada, se é melhor e não pior, isso tem um significado mais
importante. Que muito, pelo menos, de possível "verdade" os termos,
então conterão.
,

Tomemos agora outra controvérsia bem surrada, o problema


do livre-arbítrio. Muitas pessoas que acreditam no que é chamado
seu livre-arbítrio assim procedem conforme o modelo racionalista.
,

E um princípio uma faculdade positiva ou virtude acrescentada ao


,

homem pela qual sua dignidade é enigmaticamente sobrelevada.


,

Deve acreditar por essa razão. Os deterministas que negam o livre-


,

arbítrio que dizem que o homem individual não origina coisa algu-
,

ma, mas meramente transmite ao futuro o empuxo total dos aconteci-


mentos cósmicos passados dos quais é uma expressão sumamente
,

diminuta reduzem o homem. E menos admirável, despido desse


,

princípio criador. Imagino que mais da metade dos senhores com-


partilham dessa crença instintiva no livre-arbítrio, e que a admiração
que se lhe dedica como um princípio de dignidade tem muito a que
ver com a fidelidade dos senhores .

O livre-arbítrio porém, tem também sido discutido pragmatica-


,

mente , e, por estranho que pareça, a mesma interpretação pragmática


tem-lhe sido conferida pelas duas classes de disputantes Sabe-se o .

grande papel que as questões de responsabilidade tem desempenhado


na controvérsia ética . Considerando-se algumas opiniões, supõe-se
que tudo o pretendido pela ética é um código de méritos e deméritos.
Assim faz o velho fermento legal e teológico; os ónus do crime e do
"

pecado e da punição cabem a nós. Quem deve ser acusado? A


"

quem puniremos? A quem Deus punirá? - essas preocupações perdu-


ram como um pesadelo ao longo da história religiosa do homem.
Desse modo, o livre-arbítrio e o determinismo têm-se invec-
tivado mutuamente, tachando-se um ao outro de absurdo, porquan-
to cada qual, aos olhos de seus inimigos, tem parecido eliminar a
"

imputabilidade" de boas ou más ações aos seus autores. Que


singular antinomia! O livre-arbítrio significa novidade, o enxerto
no passado de alguma coisa não envolvida nisso. Se nossos atos
estavam predeterminados, se meramente transmitimos o impulso
de todo um passado, dizem os partidários do livre-arbítrio, como
podemos ser louvados ou censurados por alguma coisa? Somos
" "

agentes apenas, não "principais", e onde, então, estaria a nossa


preciosa imputabilidade e responsabilidade?
Onde estaria, porém, se tivéssemos livre-arbítrio? Replicam os
deterministas. Se um ato "livre" pode ser pura novidade, não decorre
de mim, o eu prévio, mas ex nihilo, e que simplesmente adere a
mim, como posso eu, o eu prévio, ser responsável? Como posso ter
eu qualquer caráter permanente, que permanecerá o bastante para
o louvor ou a censura, para ser recompensado? O rosário de meus
dias tombam em um punhado de contas soltas tão logo o fio da
necessidade interna seja arrancado pela prepóstera doutrina indeter-
minista. Fullerton e McTaggart recentemente surgiram desafiantes
com esse argumento.
Pode ser bom ad hominem, mas de outro modo é lamentável.
Pois pergunto, completamente à parte de quaisquer outras razões,
se qualquer homem, mulher ou criança, com o senso da realidade,
não deve ficar envergonhado de litigar por tais princípios como
dignidade ou imputabilidade. O instinto e a utilidade entre eles
podem, com segurança, serem tidos em boa conta no sentido de
levar a cabo as funções sociais de punição e de louvor. Se um
homem pratica boas ações, nós o louvaremos; se pratica más ações,
nós o puniremos - de qualquer maneira e completamente à parte
de teorias, como se os atos resultam do que lhe era prévio ou são
novidades, no sentido estrito da palavra. Fazer a ética humana
" "

revolver em torno da questão de mérito é lamentável irrealidade


- só Deus pode saber de nossos méritos se temos algum. A base
,

real para supor livre o arbítrio é na verdade, pragmática, mas não


,
tem nada a ver com o desprezível direito de punir, que já fez muito
barulho em discussões passadas em torno do assunto.
Pragmaticamente, livre-arbítrio significa novidades no mundo,
o direito de esperar que em seus elementos mais profundos, como
em seus fenómenos superficiais, o futuro não possa repetir-se iden-
ticamente e imitar o passado. Há imitação en masse, quem pode
" "

negar? A uniformidade da natureza geral é um pressuposto de


todas as leis, por menores que sejam. A natureza, porém, pode ser
apenas aproximadamente uniforme; e as pessoas nas quais o
conhecimento do passado do mundo tenha gerado pessimismo (ou
dúvidas quanto ao bom caráter do mundo, que se tornam certezas
se esse caráter é suposto eternamente fixo) podem naturalmente
saudar o livre-arbítrio como uma doutrina melioristic. Assegura
como sendo possível, pelo menos, o aperfeiçoamento; ao passo que
o determinismo assegura-nos que toda a nossa noção de possibilidade
nasce da ignorância humana, e que a necessidade e a impossibilidade
regem os destinos do mundo.
O livre-arbítrio é, pois, uma teoria geral cosmológica de pro-
messa, do mesmo modo que o Absoluto, Deus, Espírito ou Desígnio.
Tomados abstratamente, nenhum desses termos tem qualquer
conteúdo interior nenhum deles dá-nos qualquer quadro, e nenhum
,

deles reteria o menor valor pragmático em um mundo cujo caráter


fosse obviamente perfeito desde o início. Exaltação ante a mera
existência, pura emoção e delícia cósmicas, abafariam todo interesse
por essas especulações, parece-me, se o mundo não fora senão já
uma terra bruta de felicidade. Nosso interesse por metafísicas reli-
giosas decorre do fato de nosso futuro empírico mostrar-se inseguro
para nós, necessitando de alguma garantia mais elevada. Se o
passado e o presente fossem puramente bons, quem desejaria que o
futuro não se lhes assemelhassem? Quem desejaria o livre-arbítrio?
Quem não diria, com Huxley, "deixem-me dar corda a cada dia
"

como a um relógio para andar direito, e não peço melhor liberdade


,
.

''

Liberdade" em um mundo já perfeito poderia apenas significar


liberdade para ser pior e quem poderia ser tão louco a ponto de
,

desejar isso? Para ser necessariamente o que é ser impossivelmente


,

alguma coisa outra daria o toque final de perfeição ao universo do


,

otimismo Certamente, a única possibilidade que se pode reivindicar


.

racionalmente é a possibilidade de que as coisas possam ser melho-


res Essa possibilidade, nem preciso dizer, é a que, no jeito em que
.

o mundo vai , temos ampla base para desejar.


O livre-arbítrio, pois, não faz sentido, a não ser como uma doutrina
de alívio. Como tal ,ocupa o seu lugar ao lado de outras doutrinas
religiosas. Entre essas constroem-se com os velhos despojos e repa-
,

ram-se as primitivas desolações. Nosso espírito fechado dentro ,

desse pátio de sentido-experiência está sempre dizendo ao inte-


,

lecto lá na torre: "Esculca, diga-nos de dentro da noite, se alguma


"

coisa promissora aí vem e o intelecto dá-nos, então, palavra de


,

consolo.
Outro que não esse significado prático, as palavras Deus, livre-
arbítrio, desígnio etc., não têm mais. Conquanto sejam obscuras em
si mesmas, ou intelectualmente tomadas, quando as levamos para
dentro da vida conosco, a escuridão transforma-se em luz. Se para-
mos, lidando com essas palavras com sua definição, pensando
,

estar nisso uma finalidade intelectual onde estamos? Olhando estu-


,

"

pidamente a uma impostura pretensiosa! Deus est Ens, a se, extra


et supra omne genus, necessarium, unum, infinite perfectum, sim-
"

plex, immutabile, immensum, aeternum, inteligens etc. - em que


é essa definição realmente instrutiva? Significa pouco menos do
que nada, em sua pomposa roupagem de adjetivos. Só o pragmatis-
mo pode ler aí um significado positivo e, para isso, vira as costas
,

"

completamente ao ponto de vista intelectualista. Deus está no céu;


tudo está certo com o mundo!". Esse é que é o núcleo central de
nossa teologia, e para isso não precisamos de definições racionalistas.
Por que não devíamos todos nós, racionalistas como pragmatis-
tas, confessar tal coisa? O pragmatismo longe de conservar os
,

olhos baixados para o terreno imediato da prática como o acusam ,

de fazer, lança-se tanto quanto possível às mais remotas perspectivas


do mundo.
Veja-se, então como todas essas questões finais giram, como
,

se fora o caso, sobre seus gonzos; e longe de olhar para trás por ,

sobre princípios, sobre um erkenntnisstheoretische Ich um Deus, ,

Kausalitàtsprinzip, um desígnio um livre-arbítrio, tomados em si


,

mesmos, como alguma coisa augusta e exaltada acima dos fatos -


veja-se, digo como o pragmatismo transfere a ênfase e olha para
,

diante, para os próprios fatos. A questão realmente vital para todos


nós é: Que vai ser desse mundo? Que vai a vida afinal, fazer de si
,

mesma? O centro de gravidade da filosofia deve portanto, alterar o


,

seu lugar. A terra das coisas há muito lançada nas sombras pelas
,

glórias dos mundos celestiais, deve reassumir direitos. Deslocar a


tónica dessa maneira significa que as questões filosóficas falharão
no sentido de serem tratadas por espíritos de um tipo menos abs-
tracionista do que até aqui, espíritos mais científicos e individualis-
tas em seu comportamento, e sem embargo não irreligioso também.
Será uma alteração "no assento da autoridade", que nos faz quase
lembrar da reforma protestante. E como, para os espíritos papais, o
protestantismo tem frequentemente parecido uma mera massa de
anarquia e confusão, tal, sem dúvida, frequentemente aparecerá o
pragmatismo aos espíritos ultra-racionalistas em filosofia. Parecerá
não menos que lixo puro, filosoficamente. A vida, porém, não pára,
do mesmo modo, e abarca seus fins, em terras protestantes. Aven-
turo-me a pensar que o protestantismo filosófico abarcará uma
prosperidade não diferente.

a
Quarta Conferência

Singular e plural

\/ imos na última conferência que o método pragmático, em


suas relações com determinados conceitos, ao invés de
terminar com a contemplação admirativa, mergulha no rio da
experiência junto com os mesmos e prolonga a perspectiva por seu
intermédio. Desígnio, livre-arbítrio, espirito absoluto, espírito ao
invés de matéria, tudo tem como significado único uma promessa
melhor quanto ao futuro do mundo. Sejam falsos ou verdadeiros, o
seu sentido é meliorismo. Tenho, às vezes, pensado sobre o fenó-
" "
meno chamado reflexão total em óptica, como um bom símbolo
,

da relação entre idéias abstratas e realidades concretas, como o


pragmatismo o concebe. Pegue-se uma taça com água um pouco
acima dos olhos e olhe-se através da água na linha de sua superfície
- ou melhor ainda, olhe-se de modo parecido através das paredes
,

de um aquário. Ver-se-á, então, uma imagem refletida extraordi-


nariamente brilhante, digamos, da chama de uma vela, ou de qual-
quer outro objeto claro, situado no lado oposto do vaso. Nenhum
raio, nessas circunstâncias, vai além da superfície da água: cada
raio é totalmente refletido de novo de volta às profundezas. Supo-
nhamos que a água represente o mundo dos fatos sensíveis, e que o
ar represente o mundo das idéias abstratas. Ambos os mundos são
reais, naturalmente, e interagem; interagem, porém, somente nos
seus limites, e o locus de tudo que vive e que nos acontece, na
medida em que tem prosseguimento a experiência plena, é a água.
Somos como peixes nadando no mar dos sentidos, limitados acima
pelo elemento superior, mas incapazes de respirá-lo ou de penetrá-
lo. Obtemos nosso oxigénio dele, todavia, tocamo-lo incessante-

80
mente, ora aqui, ora ali, e a cada vez que o tocamos, tornamos de
volta, à água com o nosso curso reformulado e recomposto. As
idéias abstratas, das quais consiste o ar, são indispensáveis à vida,
mas irrespiráveis por si, como se assim o foram, e unicamente
ativas em sua função de recomposição. Todos os símiles claudicam,
mas esse fala algo à minha imaginação. Mostra como alguma coisa,
não suficiente para a vida em si, pode, não obstante, ser um deter-
minante efetivo da vida algures.
Por ora, desejo ilustrar o método pragmático com mais uma
"

aplicação. Desejo lançar luzes sobre o antigo problema de singu-


lar e plural". Acredito que esse problema tenha ocasionado noites
insones a pouco dos senhores, e não ficaria nada espantado se
alguns dos senhores me dissessem que, na verdade, nunca tiveram
qualquer aborrecimento que fosse com o mesmo. Eu mesmo já che-
guei, após longo meditar a respeito, a considerá-lo o mais central
de todos os problemas filosóficos, central porque prenhe de con-
sequências. Quero dizer com isso que, se sabemos que um homem
é um monista decidido ou um pluralista firmado, sabemos mais a
respeito do resto de suas opiniões do que se lhe pespegarmos qual-
quer outra classificação terminada em ista. Acreditar em um ou em
muitos, essa é a classificação com o número máximo de conse-
quências. Portanto, suportem-me por uma hora enquanto tento inspi-
rá-los com o meu próprio interesse pelo problema.
A filosofia tem sido frequentemente definida como a averiguação
ou a visão da unidade do mundo. Poucas pessoas jamais se insurgi-
ram contra essa definição, que é verdadeira na medida do seu alcan-
ce, pois a filosofia tem, na verdade, manifestado acima de todas as
coisas o seu interesse pela unidade. Que dizer, porém, da variedade
de coisas? É esse um assunto irrelevante? Se, ao invés de usar o
termo filosofia, falarmos em geral de nosso intelecto, e de suas
necessidades, rapidamente vemos que unidade é somente uma delas.
Familiaridade com os detalhes do fato é sempre contado, juntamente
com sua redução a sistema, como marca indispensável de grandeza
mental. O espírito universitário, do tipo filológico, enciclopédico, o
homem essencialmente estudioso, nunca regateou aplausos ao
filósofo. O que o nosso intelecto realmente visa não é variedade
nem unidade tomada singularmente,. mas a totalidade} Nisso,

,
Comparar A. Bellanger: Les concepts de Cause, et 1,activité tionelle
de VEsprit. Paris, Alcan, 1905 página 79 e seguintes.
familiaridade com as diversidades da realidade é tão importante
quanto o conhecimento de suas conexões. A curiosidade vai pari
passu com a paixão sistematizadora.
A despeito desse fato óbvio, a unidade de coisas tem sido
sempre considerada mais ilustre, como se fora, do que a variedade.
Quando um jovem concebe pela primeira vez a noção de que o
mundo todo forma um grande fato, com todas as suas partes mo-
vendo-se lado a lado, como se fora, e interligadas, sente-se como
estivesse desfrutando de uma grande visão, e olha arrogantemente
para tudo que ainda não se enquadra nessa sublime concepção.
Tomada assim abstratamente, como se apresenta pela primeira vez,
a concepção monista é tão vaga como dificilmente parece valer a
pena ser defendida intelectualmente. Provavelmente, porém, cada
qual dentre os senhores de certo modo preza essa concepção. Um
certo monismo abstrato, uma certa reação emocional ao caráter de
singularidade, como se fora uma característica do mundo não coor-
denada com sua pluralidade, porém em grau muito mais vasto,
excelente e eminente, prevalece tanto nos círculos educados que
podíamos quase chamá-la de uma parte do senso comum filosófico.
Naturalmente o mundo é um, dizemos. De que outro modo poderia
ser um mundo, afinal? Os empíricos, via de regra, são tão valentes
monistas dessa espécie abstrata quanto os racionalistas o são.
A diferença é que os empíricos são menos sujeitos à ofuscação.
A unidade não os cega para tudo o mais, não sacia sua curiosidade
por fatos especiais, ao passo que há uma espécie de racionalista
seguro de interpretar a unidade abstrata misticamente e de esquecer
tudo o mais, de tratá-la como a um princípio; de admirá-la e de
adorá-la; e, por conseguinte, de chegar a um ponto final intelectual.
"

O mundo é um" - a fórmula pode tornar-se uma espécie de


"

número mágico. Três" e "sete", é verdade, têm sido contados


como números sagrados; porém, tomado abstratamente, por que
" "
será o um mais importante que "quarenta e três" ou "dois milhões
"
e dez ? Na primeira convicção nebulosa da unidade do mundo, há
tão pouco para ter como firme, que dificilmente sabemos o que
entendemos por aquilo.
A única maneira de ir adiante com a nossa noção é tratá-la
pragmaticamente. Tendo-se como certo existir a singularidade, que
fatos serão diferentes em consequência? Como será conhecida a
unidade? O mundo é um - sim, mas como um? Qual é o valor
prático da singularidade para nós?
Fazendo essas perguntas, passamos do vago para o definido ,

do abstrato para o concreto. Muitos caminhos distintos, pelos quais


um predicado de singularidade do universo poderia fazer diferença,
vieram à tona. Assinalarei, sucessivamente, os mais evidentes desses
caminhos.
1 Primeiro, o mundo é, pelo menos, um sujeito de discurso. Se
.

sua pluralidade fosse tão irremediável ao ponto de não permitir


nenhuma união qualquer de suas partes, nem mesmo nossos espíritos
" "

poderiam entender o seu conteúdo de uma vez: seriam como olhos


tentando olhar em direção oposta. Mas, na realidade, temos em vista
" "

cobri-lo todo por meio de nossa palavra abstrata, mundo ou "uni-


"
verso que pretende expressamente não deixar de fora nenhuma
,

parte. Essa unidade de discurso não implica evidentemente em ne-


" "

nhuma especificação monista posterior. O caos outrora assim


,

chamado, tem tanta unidade de discurso quanto o cosmo. É fato


singular que muitos monistas consideram uma grande vitória contada
"

para o seu lado quando os pluralistas dizem que o universo é múlti-


plo "O universo! mofam - sua fala traiu-o. "É réu confesso de
" "
.

"

monismo por sua própria boca Bem, deixemos que as coisas sejam
.

uma daqui por diante! Pode-se, então, lançar uma palavra como
universo à coleção toda deles, mas que importa? Ainda está para ser
averiguado se são um em qualquer sentido mais valioso ou posterior.
2 São, por exemplo, contínuos? Pode-se passar de um para o
.

outro, conservando-se sempre em um universo, sem o perigo de


cair fora? Em outras palavras, as partes de nosso universo pendem
juntas, ao invés de serem como grãos de areia soltos?
Até mesmo os grãos de areia pendem juntos através do espaço
em que estão depositados, e se for possível, de qualquer modo,
mover-se através desse espaço, pode-se passar continuamente do
número um deles para o número dois. O espaço e o tempo, pois, são
veículos de continuidade, pelos quais as partes do mundo pendem
juntas. A diferença prática para nós, resultante dessas formas de
união, é imensa. Nossa vida motora, por inteiro, baseia-se neles.
3 Há inúmeras outras vias de continuidade prática entre as
.

coisas. As linhas de influência podem ser traçadas de modo a pen-


derem juntas. Seguindo-se qualquer dessas linhas, passa-se de uma
coisa para outra até que se possa ter coberto uma boa parte da
,

extensão do universo. A gravidade e a condução de calor são essas


influências gerais de união na medida do alcance do mundo físico.
,

As influências químicas, luminosas e elétricas seguem linhas de


influência semelhantes. Os corpos inertes e opacos, porém, inter-
rompem aqui a continuidade, de modo que se tem de contorná-los,
ou alterar a maneira de progredir se for o caso de querer-se ir mais
adiante naquele dia. Praticamente, tem-se perdida a unidade do
universo, então na medida em que foi constituído por aquelas
primeiras linhas de influência.
Há inumeráveis espécies de conexão que as coisas especiais têm
com outras coisas especiais; e o conjunto de qualquer dessas conexões
forma um tipo de sistema pelo qual as coisas são agregadas. Assim,
os homens são combinados em uma vasta rede de conhecimento.
Fulano conhece sicrano, sicrano conhece beltrano etc.; e escolhendo-
se os intermediários mais distantes corretamente, pode-se levar uma
mensagem de fulano à China, ou ao chefe dos pigmeus africanos, ou
a outrem qualquer no mundo habitado. Cedo, porém, é-se inter-
rompida como se por um não condutor, quando se escolhe o homem
errado nesse experimento. O que pode ser chamado de sistemas de
amor são enxertados no sistema de conhecimento. A ama (ou odeia)
B; B ama (ou odeia) C etc. Esses sistemas, porém, são menores do
que o grande sistema de conhecimento que pressupõe.
Os esforços humanos estão diariamente unificando mais e mais
o mundo em caminhos sistemáticos definidos. Encontramos sistemas
comerciais, consulares, postais, coloniais, cujas partes por inteiro
obedecem a influências definidas que se propagam dentro do sistema,
mas não a fatos externos. O resultado são inúmeros cachos pequenos
das partes do mundo dentro dos cachos maiores, pequenos mundos,
não somente de discurso, mas de operação, dentro do universo
maior. Cada sistema exemplifica um tipo ou grau de união, estando
suas partes ligadas àquele tipo peculiar de relação, e a mesma parte
pode figurar em muitos sistemas diferentes, como um homem pode
ter várias profissões e pertencer a diversos clubes. Desse ponto de
"

vista sistemático portanto, o valor pragmático da unidade do


1'

mundo é que todas essas redes definidas existem real e praticamente.


Algumas são mais envolventes e extensivas; outras, menos, super-
põem-se umas às outras; e entre elas todas, não permitem que
nenhuma parte elementar individual do universo escape. Enorme
como é a quantidade de desconexão entre as coisas (pois essas
influências sistemáticas e conjunções seguem rigidamente vias
exclusivas), tudo que existe é influenciado, de certa maneira, por
alguma outra coisa, se podemos seguir a trilha corretamente. Falando
despreocupadamente e em termos gerais, pode ser dito que todas as
coisas coerem e aderem entre si de algum modo, e que o universo
existe praticamente em formas reticuladas ou concatenadas, que
fazem dele uma função continua ou "integrada".
Qualquer tipo de influência ajuda a tornar singular o mundo,
tanto quanto pode-se segui-lo de passo a passo. Pode-se, então,
dizer que o mundo é um, considerado sob esses aspectos, nomea-
damente, e tanto quanto possa ser obtido. Justamente, porém, como
definitivamente não é um, outro tanto quanto não pode ser obtido;
e não há espécies de conexão com as quais não falhe, se, ao invés
de escolher-se condutores, escolhem-se não condutores. É-se, então,
interrompido bem no primeiro passo e tem-se de registrar o mundo
como uma pura pluralidade, desse ponto de vista particular. Se
nosso intelecto tivesse sido levado a interessar-se por relações
disjuntivas tanto quanto o foi por relações conjuntivas, a filosofia
teria igualmente celebrado com sucesso a desunião do mundo.
O ponto principal é notar-se que a singularidade e a pluridade
acham-se absolutamente coordenadas aqui. Uma não é mais
essencial ou primordial ou excelente que a outra. Do mesmo modo
que em relação ao espaço, cuja separação das coisas parece exata-
mente coincidir com a unificação destas, sendo que algumas vezes
uma função e, às vezes, a outra, é que mais se nos aproxima, assim,
em nossas relações gerais com o mundo das influências, ora neces-
sitamos de condutores, ora de não condutores, e a sabedoria está em
saber-se qual é qual no momento apropriado.
4 Todos esses sistemas de influência ou não influência podem
.

ser classificados sob o título geral de problema da unidade causal


do mundo. Se as influências causais menores entre as coisas devem
convergir para uma origem causal comum no passado, que é uma
grande primeira causa para tudo, pode-se, então, falar da absoluta
unidade causal do mundo. O fiat de Deus no dia da criação tem figurado
na filosofia tradicional na qualidade de causa e origem absolutas. O
idealismo transcendental, convertendo "criação" em "pensamento"
(ou "vontade de pensar") classifica o ato divino de "eterno", de
" "

preferência a primeiro mas a união do múltiplo aqui é absoluta,


,

exatamente a mesma - o múltiplo não seria, salvo para o Um.


Contra essa noção da unidade de origem de todas as coisas, tem-se
sempre levantado a noção pluralística de uma multiplicidade eterna
auto-existente sob a forma de átomos ou mesmo de unidades espiri-
tuais da mesma espécie. A alternativa tem, sem dúvida um signifi-
,

cado pragmático mas talvez, tanto quanto se estendam essas confe-


,
rências, faríamos melhor deixar a questão da unidade por liquidar.
5 A mais importante forma de união que se obtém entre as coisas,
.

falando pragmaticamente, é a unidade genérica. As coisas existem


"

em espécies, e há muitas espécies em cada tipo, e o que o tipo"


implica para uma espécie, implica também para uma espécie, implica
também para cada outra espécie daquele tipo. Podemos facilmente
conceber que cada fato no mundo podia ser singular, isto é, diferente
de qualquer outro fato e o único de seu tipo. Nesse mundo de singu-
lares, nossa lógica seria imprestável, pois a lógica trabalha afirmando
de primeira instância o que é verdadeiro de todos de seu tipo. Sem
duas coisas que sejam iguais no mundo, somos incapazes de racio-
cinar de nossas experiências passadas para as futuras. A existência
de tanta unidade genérica nas coisas é, assim, talvez, a especificação
"

pragmática mais momentosa do que pode querer dizer o mundo é


Um". A unidade genérica absoluta poderia ser obtida se houvesse
um summum genus sob o qual todas as coisas, sem exceção, pudes-
"

sem ser, por fim, submetidas. Seres", "pensamentos", "experiên-


"
cias seriam candidatos a essa posição. Se as alternativas expressas
,

por essas palavras têm qualquer significação pragmática ou não, é


uma outra questão, que prefiro deixar pendente por agora.
6 Outra especificação a respeito de que a frase "o mundo é
.

Um" possa significar é unidade de propósito. Uma enorme quan-


tidade de coisas no mundo servem a um propósito comum. Todos
os sistemas humanos, administrativos, industriais, militares ou o
que mais, existem cada qual para o seu propósito controlador. Cada
ser vivo persegue os seus próprios propósitos peculiares. Cooperam,
de acordo com o grau de seu desenvolvimento, em propósitos
tribais ou coletivos, os fins mais amplos envolvendo os menores,
até que um propósito final e critico, absolutamente simples, visado
por todas as coisas sem exceção, pudesse concebivelmente ser
alcançado. É desnecessário dizer que as aparências entram em
conflito com essa concepção. Qualquer resultante, como disse em
minha terceira conferência, pode ter projetado de antemão, mas
nenhum dos resultados que realmente conhecemos nesse mundo
tem, de fato, sido projetado de antemão em todos os seus detalhes.
Os homens e os países começam com uma vaga noção de serem
ricos, ou poderosos ou bons. Cada passo que dão acarreta oportu-
nidades imprevistas à frente, e desfaz velhas perspectivas, e as
especificações de propósito geral têm de ser revisadas diariamen-
te. O que é alcançado ao fim pode ser melhor ou pior em
relação ao que se propôs, mas é sempre mais complexo e diferente.
Nossos diferentes propósitos acham-se também em guerra um
com o outro. Onde um não pode esmagar o outro firma-se um
,

compromisso; e o resultado é de novo diferente em relação a qual-


quer outro projetado distinta e previamente. Vaga e generalizada-
mente, muito do que foi projetado pode ser obtido; tudo, porém,
concorre impetuosamente para a concepção de que o nosso mundo
é incompletamente unificado, do ponto de vista teleológico, e que
está ainda ensaiando conseguir sua unificação de maneira mais
bem organizada.
Quem quer que reclame uma unidade teleológica absoluta, di-
zendo que há um propósito observado por todos e cada um dos
detalhes do universo, dogmatiza por sua própria conta e risco. Os
teólogos que assim dogmatizam, descobrem que se torna cada vez
mais impossível, à medida que o nosso conhecimento dos interesses
conflitantes das çl/versas partes do mundo tornam-se mais concretos,
imaginar com o que possivelmente se pareça um propósito crítico.
Vemos, na verdade, que certos males propiciam bens ulteriores,
"

que o bitter" torna o coquetel mais saboroso, e que uma ponta de


perigo ou de dificuldade torna mais excitante nossos trunfos.
Podemos vagamente generalizar esse conceito na doutrina de que
todo o mal no universo não é senão instrumento para sua maior
perfeição. Mas a escala de mal realmente em vista desafia toda e
qualquer tolerância humana; e o idealismo transcendental, nas pá-
ginas de um Bradley ou de um Royce, leva-nos a não mais adiante
do que o livro de Job fez - os caminhos de Deus não são os nossos;
tapemos, pois, a boca com as mãos. Um Deus que se compraz com
essas superfluidades de horror não é um Deus para quem os seres
humanos possam apelar. Suas disposições animais são demasiado
"

altas. Em outras palavras, o Absoluto" com esse propósito não é o


Deus humano da gente comum.
7 A união estética entre as coisas também voga, e é bem análoga
.

à união teleológica. As coisas contam uma estória. Suas partes


pendem juntas de modo a elaborar um clímax. Operam umas nas
outras expressivamente. Retrospectivamente podemos ver que, em-
,

bora nenhum propósito definido tenha presidido uma cadeia de


eventos contudo os eventos desenvolvem-se segundo uma linha
,

dramática com início, meio e fim. De fato, todas as estórias acabam;


,

e de novo aqui o ponto de vista da pluralidade é o mais natural para


,

se adotar O mundo está cheio de estórias parciais que correm empa-


.
relhadas, começando e terminando em horas desencontradas. En-
trelaçam-se e interferem mutuamente em vários pontos, mas não as
podemos unificar completamente em nossos espíritos. Acompa-
nhando a história de sua vida, devo temporariamente desviar a
atenção da minha própria história. Até mesmo um biógrafo de gé-
meos teria de impô-los alternadamente à atenção de seus leitores.
Segue-se que quem quer que diga que o mundo todo conta uma
estória, expõe outro desses dogmas monísticos, que se acredita por
conta própria e risco. E fácil ver a história do mundo pluralistica-
mente, como uma corda da qual cada fibra conta uma estória se-
parada; conceber, porém, cada seção da corda como um fato abso-
lutamente singular, e somar todas as séries longitudinais em um ser
que viva uma vida indivisível, é mais difícil. Temos, na verdade, a
analogia da embriologia para ajudar-nos. O microscopista faz uma
centena de cortes transversais de um dado embrião, e mentalmente
os une em um todo sólido. Mas os ingredientes importantes do
mundo, na medida em que são seres, parecem, como as fibras da
corda, ser descontínuos, oblíquos, e aderirem somente na direção
longitudinal. Seguindo-se nessa direção, há uma pluralidade. Até
mesmo o embriologista, quando segue o desenvolvimento de seu
objeto, tem de tratar da história de cada órgão de per si. A união
estética absoluta é, pois, outro ideal simplesmente abstrato. O mundo
aparece como algo mais épico que dramático.
Até agora, pois, vemos como o mundo é unificado por seus
múltiplos sistemas, tipos, propósitos e dramas. Que há mais união
em todos esses caminhos do que aparece ostensivamente é decerto
verdadeiro. Que possa haver uma estória, um tipo, um sistema, um
propósito soberano, é uma hipótese legítima. Tudo que posso dizer
aqui é que é temerário afirmar tal coisa dogmaticamente, sem
melhor evidência da que possuímos presentemente.
8 O grande denkmittel monístico tem sido por uma centena de
.

anos passados a noção de o conhecedor. A pluralidade existe somente


como objetos para o seu pensamento - existe em seu sonho, como
se assim o fora; e como nós os conhecemos, têm um propósito,
formam um sistema, contam-lhe uma estória. Essa noção de uma
unidade intelectual que a tudo envolve em coisas é a realização
mais sublime da filosofia intelectualista. Os que acreditam no
Absoluto, como o que tudo sabe é chamado, usualmente dizem que
agem assim por razões coercivas, das quais os livre-pensadores não
podem fugir. O Absoluto tem consequências práticas de longo
alcance, para algumas das quais chamei a atenção em minha segunda
conferência. Muitos tipos de diferença, importantes para nós ,

adviriam certamente se isso tudo fosse verdadeiro. Não posso entrar


aqui em todas as provas lógicas de existência de um Ser assim, a
não ser para dizer que nenhuma delas me parece consistente. Devo,
portanto, tratar a noção de um Sabedor de Tudo simplesmente
como uma hipótese, exatamente em nível lógico com a noção
pluralista de que não há ponto de vista, nenhum foco de informação
existente, de onde o conteúdo integral do universo seja visível ao
mesmo tempo. A consciência de Deus", diz o professor Royce2,
"

"
forma em sua inteireza um momento consciente luminosamente
transparente" - esse é o tipo de unidade intelectual sobre o qual o
racionalismo insiste. O empirismo, por outro lado, satisfaz-se com
o tipo de unidade intelectual que é humanamente familiar. Tudo se
torna conhecido por algum sabedor junto com alguma coisa outra;
mas os sabedores podem, no fim, ser uma pluralidade irredutível, e
o maior sabedor de todos pode, todavia, não saber tudo de tudo, ou
mesmo saber o que sabe de uma só assentada - pode estar sujeito
a esquecer. Qualquer que seja o tipo obtido, o mundo seria ainda
um universo intelectual. Suas partes seriam combinadas pelo conhe-
cimento, mas em um caso o conhecimento seria absolutamente
unificado, no outro seria estirado e sobreposto.
A noção de um Sabedor eterno ou instantâneo - qualquer adje-
tivo nesse caso significa a mesma coisa - é, como disse, a grande
realização intelectual de nosso tempo. Afastou praticamente a con-
"

cepção de Substância" que os primeiros filósofos haviam formu-


lado, e por meio da qual muito trabalho de unificação pôde ser feito
- substância universal que sozinha tem estado em si e sido de si
mesma, e da qual todas as particularidades de experiência não são
senão formas às quais dá apoio. A substância sucumbiu à crítica
pragmática da escola inglesa. Aparece agora somente como outro
nome para o fato de que os fenómenos, como se apresentam, estão
atualmente agrupados e dados em formas coerentes, as formas exatas
pelas quais nós, sabedores finitos, experimentamo-los ou pensamo-
los juntos. Essas formas de conjunção são tanto partes do tecido de
experiência como são os termos que ligam; e é uma grande realização
pragmática para o idealismo recente ter feito o mundo pender junto

2 The Conception ofGod, Nova Iorque, 1897, página 292.


nesses caminhos diretamente representáveis, ao invés de sacar sua
"
unidade da inerência" de suas partes - seja o que for que isso
possa significar - em um princípio incrível por detrás dos cenários.
"

O mundo é Um", portanto, tanto quanto experimentamo-lo ser


concatenado, um pelas muitas conjunções definidas que aparecem.
Porém, então, também não um, pelas muitas disjunções definidas
que deparamos. A singularidade e a pluralidade, assim, estabelecem-
se em particularidades que podem ser nomeadas separadamente.
Não é nem um universo puro e simples, nem é um multiuniverso
puro e simples. E suas várias maneiras de ser Um sugerem, para
certeza acurada, grande número de programas distintos de trabalho
"

científico. Assim, a questão pragmática: Com que se parece a


"

singularidade? Que diferença prática isso faz? poupa-nos de todo


,

o excitamento febril a seu respeito como um princípio de sublimi-


dade, e leva-nos adiante pela corrente da experiência com a cabeça
fria. A corrente pode, na verdade, revelar muito mais conexão e
união do que agora suspeitamos, mas não estamos encastelados em
princípios pragmáticos para clamar por singularidade absoluta a
qualquer respeito adiantadamente.
É tão difícil ver definitivamente o que a singularidade absoluta
pode significar, que provavelmente a maioria dos senhores estão
satisfeitos com a atitude sóbria a que chegamos. Sem embargo, há
possivelmente algumas almas radicalmente monísticas, entre os
senhores, que não estão satisfeitas em deixar a unidade e a plura-
lidade no mesmo nível. União de vários graus, união de diversos
tipos, união que se detém com não condutores, união que meramente
vai de passo a passo e significa, em muitos casos, somente proxi-
midades exteriores, e não mais um laço interno, união de concate-
nação, em suma; toda essa espécie de coisas parece-nos um estádio
de pensamento a meio caminho. A unidade das coisas, superior a
sua pluralidade, pensamos ser também mais profundamente
verdadeira, que deve ser o aspecto mais real do mundo. A concepção
pragmática, estamos certos, dá-nos um universo imperfeitamente
racional. O universo real deve formar uma unidade de ser incondi-
cional, algo consolidado, com suas partes co-implicadas mais e
mais através das coisas. Somente então podemos considerar nosso
estado completamente racional.
Não há nenhuma dúvida de que essa maneira ultramontana de
"

pensar significa uma grande quantidade de espíritos. Uma vida,


"

uma verdade, um amor, um princípio, um bem, um Deus - cito


de um folheto de Ciência Cristã que o correio me traz às mãos -
sem dúvida que uma tal confissão de fé tem pragmaticamente um
" "

valor emocional, e sem dúvida que a palavra um contribui para o


valor tanto quanto as outras palavras. Se, porém, tentamos com-
preender intelectualmente o que podemos possivelmente com-
preender por uma tal fartura de unidade, somos lançados diretamente
atrás de novo, de volta às nossas determinações pragmáticas. Signi-
fica o mero nome Um, o universo do discurso; ou significa a soma
total de todas as conjunções e concatenações particulares averiguá-
veis; ou, finalmente, significa algum veículo de conjunção tratado
como todo-inclusive, como uma origem, um propósito, ou um sabe-
dor. De fato, significa sempre um sabedor para aqueles que tomam
a coisa hoje em dia intelectualmente. O sabedor envolve, acredi-
tam, as outras formas de conjunção. Seu mundo deve ter todas as
suas partes co-implicadas na representação unitária lógico-estética-
teleológica que é o seu drama eterno.
O caráter do quadro do conhecedor absoluto é, todavia, tão
impossível para nós representá-lo claramente, que podemos razoa-
velmente supor que a autoridade que o monismo absoluto sem
dúvida possui, e que provavelmente possuirá sobre algumas pessoas,
retira sua força muito menos de bases intelectuais do que de místicas.
Para interpretar condignamente o monismo absoluto, há de ser um
místico. Os estados de espírito místicos, em todos os graus, são
mostrados pela história, usualmente embora não sempre, como
conduzindo à concepção monística. Essa não é a ocasião propícia
para entrar no terreno geral do misticismo, mas citarei um pronun-
ciamento místico para mostrar exatamente o que tenho em mente.
O modelo de todos os sistemas monísticos é a filosofia védica do
Hindustão, e o modelo dos missionários védicos foi o falecido
Swami Vivekananda, que nos visitou há alguns anos passados. O
método do vedismo é o místico. Não se raciocina, mas após seguir-
se certa disciplina, começa-se a ver, e, tendo-se visto, pode-se re-
portar a verdade. Vivekananda, assim, reporta a verdade:
"

Onde há mais miséria qualquer para aquele que vê a Unidade


no universo, a Unidade da vida, a Unidade de tudo?... Essa separação
entre homem e homem, homem e mulher, homem e criança nação ,

e nação Terra e Lua, Lua e Sol, essa separação entre átomo e


,

átomo é a causa realmente de toda miséria, e os Vedas dizem que


essa separação não existe, que não é real. É meramente aparente ,

superficial. No coração das coisas há ainda unidade. Se penetrarmos


no interior, encontramos a unidade entre homem e homem, mulheres
e crianças, raças e raças, alto e baixo, rico e pobre, deuses e homens:
tudo é Um, e os animais também, se penetrarmos mais fundo ainda,
e quem tiver chegado a esse ponto não terá mais desilusão... Onde
há mais desilusão para ele? Quem pode enganá-lo? Conhece a rea-
lidade de tudo, o segredo de tudo. Onde há mais miséria para ele?
Que desista? Traçou a realidade de tudo ao Senhor, o centro, a
Unidade àe tudo, e isso é a Eterna Bem-Aventurança, o Conheci-
mento Eterno, a Existência Eterna. Nem morte nem doença nem
aflição nem miséria e nem descontentamento existem... No Centro,
a realidade, não há nada que possa ser lamentado, nem ninguém
que possa ser digno de pena. Penetrou em tudo, o Puro Um, o
Amorfo, o Incorpóreo, o Inalterável, o Conhecedor, o grande Poeta,
"

o Auto-Existente, quem dá a cada um o que merece .

Observe-se quão radical é o caráter do monismo nessa pas-


sagem. A separação não é simplesmente sobrepujada pelo Um,
nega-se-lhe a existência. Não há pluralidade. Não somos partes do
Um; o Um não tem partes; e desde que, em certo sentido, somos
inegavelmente, segue-se que cada um de nós é o Um, indivisivel-
mente e totalmente. O Um Absoluto, e eu esse Um - certamente
temos aqui uma religião que, emocionalmente considerada, tem
alto valor pragmático; comunica uma perfeita suntuosidade de
segurança. Como diz Swami em outro trecho:
"

Quando o homem vê-se como Um com o infinito Ser do


universo, quando toda a separação cessa, quando todos os homens,
todas as mujheres, todos os anjos, todos os deuses, todos os animais,
todas as plantas, o universo todo tiver-se integrado nessa unidade,
então todos os temores desaparecem. A quem temer? Posso eu
mesmo ferir-me? Posso eu mesmo matar-me? Posso eu mesmo
injuriar-me? Pode você mesmo temer-se? Então toda a tristeza
desaparecerá. Que pode causar-me aflição? Eu sou a Existência única
do universo. Então todos os ciúmes desaparecerão; de quem ter
ciúmes? De mim mesmo? Então todos os meus sentimentos de-
saparecerão. Contra quem terei maus sentimentos? Contra mim
mesmo? Não há ninguém no universo, senão eu... mate-se essa
diferenciação, mate-se essa superstição, que há muito de muito.
Quem, nesse mundo de variedades, vê o Um; quem, nessa massa de
insensibilidade, vê Um Ser Sensível; quem, nesse mundo de sombras,
apreende essa Realidade, a esse pertence a paz eterna, e a ninguém
"

mais, e a ninguém mais .


Todos nós deixamo-nos levar de certo modo por essa cantilena
monística: eleva e consola. Todos temos, pelo menos, o germe do
misticismo em nós. E quando os nossos idealistas recitam seus
argumentos a favor do Absoluto, dizendo que a mais leve união
admitida algures implica logicamente em absoluta unidade com
ela, e que a menor separação admitida alhures implica em irreme-
diável e completa desunião, nem de longe suspeito que os palpáveis
pontos fracos dos raciocínios intelectuais que empregam acham-se
protegidos de sua própria crítica pelo sentimento místico que,
lógico ou ilógico, a Unidade absoluta deve, de algum modo e de
qualquer maneira, ser verdadeira. A unidade suplanta a separação
moral a qualquer preço. Na paixão do amor temos o germe místico
do que pode significar uma união total de toda vida sensível. Esse
germe místico desperta em nós ao escutar os pronunciamentos
monísticos, reconhece-lhes a autoridade, e consigna um lugar secun-
dário às considerações intelectuais.
Não me demorarei por mais tempo nos aspectos morais e reli-
giosos da questão nessa conferência. Quando chegar à minha con-
ferência final, haverá alguma coisa mais que dizer.
Deixe-se fora de consideração, por momentos, a autoridade que
as visões místicas possam, por conjectura, possuir; trate-se o pro-
blema do singular e do plural em nível puramente intelectual; e
veremos bem claramente onde se situa o pragmatismo. Com o seu
critério das diferenças práticas que as teorias estabelecem, vemos
que deve igualmente abjurar o monismo absoluto e o pluralismo
absoluto. O mundo é Um somente na medida em que suas partes se
entrelacem por intermédio de uma conexão definida. E múltiplo
somente na medida em que qualquer conexão definida deixe de
prevalecer. E finalmente cresce mais e mais unificado pelos sistemas
de conexão, pelo menos, que a energia humana vai estruturando, à
medida que o tempo passa.
É possível imaginar universos alternados em relação ao que
conhecemos, nos quais os mais variados graus e tipos de união
podem ser incorporados. Assim, o grau mais baixo de universo
seria um mundo de mera relação, cujas partes fossem somente
ligadas pela conjunção "e". Um universo assim é mesmo agora a
coleção de nossas diversas vidas internas. Os espaços e tempos de
nossa imaginação os objetos e acontecimentos de nossos devaneios
,

não são somente mais ou menos incoerentes entre si, mas estão
totalmente fora de relação definida com os conteúdos semelhantes
de qualquer outro espírito. Nossas diversas fantasias, como nesse
momento em que estamos aqui, interpenetram-se debalde, sem
influência ou interferência. Coexistem, mas não em ordem e em
nenhum receptáculo, sendo a mais próxima aproximação a uma
"

multiplicidade absoluta que possamos conceber. Não podemos


"

nem mesmo imaginar qualquer razão por que devam ser conhecidos
todos juntos, e podemos imaginar menos ainda, se fossem conhe-
cidos juntos, como poderiam ser conhecidos como um todo siste-
mático.
Somem-se, porém, nossas sensações e ações corporais, e a união
monta a um grau muito mais alto. Nosso audita et visa e nossos
atos caem nos receptáculos de tempo e espaço em que cada evento
" "

encontra sua data e lugar. Formam coisas e são de "tipos" também,


e podem ser classificadas. Contudo, podemos imaginar um mundo
de coisas e de tipos no qual as interações causais com as quais
estamos tão familiarizados não existam. Tudo será inerte em rela-
ção a tudo o mais, recusando-se a propagar sua influência. Ou
então as influências mecânicas pesadas passam, mas não a ação
química. Esses mundos seriam bem menos unificados que o nosso.
De novo, poderia haver completa interação físico-química, mas
não espíritos; ou espíritos, mas completamente privados, sem vida
social; ou vida social limitada ao conhecimento, mas não amor; ou
amor, mas não costumes ou instituições para sistematizá-lo. Nenhum
desses graus de universo seria absolutamente irracional ou desinte-
grado, inferior embora pudesse parecer quando olhado de graus
mais elevados. Por exemplo, se nossos espíritos alguma vez se
tornassem ligados "telepaticamente", de modo que soubéssemos
imediatamente, ou pudéssemos, sob certas condições, saber imedia-
tamente o que cada qual estivesse pensando, o mundo em que
vivemos agora pareceria aos pensadores daquele mundo ter sido de
grau inferior.
Com toda a eternidade passada aberta às nossas conjecturas
para ser ordenada, pode ser lícito querer saber se os vários tipos de
união que agora se realizam no universo em que habitamos não
possam possivelmente ter evolvido sucessivamente de acordo com
o estilo em que agora vemos os sistemas humanos evolvendo em
consequência das necessidades humanas. Se uma tal hipótese fosse
legítima, a unidade total apareceria ao fim das coisas, de preferência
à sua origem. Em outras palavras, a noção de "Absoluto" teria de
"

ser substituída pela de Derradeiro". As duas noções teriam o


mesmo conteúdo - o conteúdo unificado de fato ao máximo , a
saber - mas suas relações temporais teriam de ser positivamente
invertidas.3
Após discutir a unidade do universo da maneira pragmática ,

vemos ver por que eu disse, em minha segunda conferência, recor-


rendo à palavra de meu amigo G. Papini, que o pragmatismo tende
a desentesar todas as nossas teorias. A unidade do mundo tem
geralmente sido afirmada apenas abstratamente, como se qualquer
que a questionasse fosse um idiota. O temperamento dos monistas
tem sido veemente, para ser, às vezes, convulsivo; e essa maneira
de sustentar uma doutrina não condiz facilmente com discussão
razoável e o delineamento de distinções. A teoria do Absoluto, em
particular, tem sido um artigo de fé, afirmado dogmaticamente e
exclusivamente. O Um e o Todo, primeiro na ordem do ser e do
conhecimento, logicamente necessário em si, e unindo todas as
coisas menores pelos laços da necessidade mútua, como poderia
consentir em qualquer diminuição de sua rigidez interna? A menor
suspeita de pluralismo, o mais leve esboço de independência de
qualquer de suas partes ao controle da totalidade arruiná-lo-ia. A
unidade absoluta não tolera graus, tanto quanto pode-se exigir
pureza absoluta para um copo com água porque contém apenas um
insignificante germe de cólera. A independência, embora infinitesi-
mal, de uma parte, conquanto pequena, seria para o Absoluto tão
fatal quanto um germe de cólera.
O pluralismo, por outro lado, não necessita desse temperamento
rigorista dogmático. Sob a condição de que se garanta alguma
separação entre as coisas, alguma agitação de independência, algum
jogo frouxo das partes entre si, alguma novidade ou oportunidade
real, se bem que diminuta, o pluralismo mostra-se amplamente
satisfeito, e dará permissão a qualquer quantidade, conquanto grande,
de união real.
Quão muito de união pode haver é uma questão que o pluralis-
mo acha que só pode ser decidido empiricamente. A quantidade
pode ser enorme, colossal; mas o monismo absoluto fica abalado
se, junto com toda a união, há margem para a mais ligeira quantidade ,

i Comparar o ensaio de Schiller, Activity and Substance"


"

, em seu
livro intitulado Humanism página 204.
,
a mais incipiente nascença ou mais residual dos traços de uma
" "

separação que não está suplantada .

O pragmatismo, dependendo da certeza empírica final de quanto


o balanço de união e desunião entre as coisas possa ser, deve,
obviamente, colocar-se do lado pluralista. Algum dia, admite-se,
até mesmo a união total, com um sabedor, uma origem, e um uni-
verso consolidado a cada aspecto concebível, pode vir a ser a mais
aceitável de todas as hipóteses. Nesse ínterim, a hipótese oposta, de
um mundo imperfeitamente unificado ainda, e talvez destinado
para sempre a permanecer assim, deve ser sinceramente levada em
consideração. Essa última hipótese é a doutrina do pluralismo.
Visto que o monismo absoluto proíbe-nos de considerá-lo seria-
mente, portando-se como irracional desde o começo, é claro que o
pragmatismo deve voltar as costas ao monismo absoluto, e seguir o
caminho mais empírico do pluralismo.
Isso deixa-nos com o mundo do senso comum, no qual encon-
tramos coisas em parte juntas e em parte afastadas. As "coisas" ,

" "

então, e suas conjunções - que significam essas palavras mane-


,

jadas pragmaticamente? Em minha próxima conferência, aplicarei


o método pragmático ao estádio de filosofia conhecido como senso
comum.
Quinta Conferência

Pragmatismo e senso comum

a última conferência, desviamo-nos da maneira usual de


falar da unidade do universo como um princípio, sublime em
toda a sua vacuidade, para tomar a direção do estudo dos tipos
especiais de união que o universo engloba. Vimos que muitos desses
"

coexistem com tipos de separação igualmente reais. O quanto fui


"
verificado? , é a questão que cada tipo de união e cada tipo de
separação pergunta-nos aqui, pois, como bons pragmatistas, temos
de voltar a face em direção à experiência, em direção aos "fatos".
Fica a unidade absoluta, mas somente como hipótese, e essa
mesmo é reduzida hoje em dia a de um sabedor onisciente, que vê
todas as coisas sem exceção como formando um único fato siste-
mático. Mas o conhecedor em questão pode ainda ser concebido
como um Absoluto ou como um Derradeiro; e contra a hipótese de
assumir qualquer forma, a hipótese contrária de que o mais vasto
campo de conhecimento que jamais houve ou ainda haverá sempre
contém traços de ignorância, pode ser legitimamente considerada.
Alguns dados de informação sempre podem escapar.
Essa é a hipótese do pluralismo intelectual, que os monistas
consideram absurda. Visto que estamos propensos a tratá-lo tão
respeitosamente quanto o monismo intelectual até que os fatos
,

tenham deslocado os braços da balança vemos que o pragmatismo,


,

embora originalmente nada fosse senão um método tem-nos forçado


,

a ser condescendentes com a tese pluralista Pode ser que algumas


.

partes do mundo estejam ligadas tão frouxamente com algumas


outras partes que não sejam senão mantidas correlacionadas pela
,

97
conjunção aproximativa e. Podem mesmo ir e vir sem que as outras
partes sofram qualquer modificação interna. Essa visão pluralista,
de um mundo de constituição aditiva, é uma que o pragmatismo
está incapacitado para rejeitar, não a considerando seriamente.
Essa tese, porém, leva à hipótese mais avançada de que o mundo
" "

real, em vez de ser completo eternamente como os monistas nos


,

asseguram, pode ser eternamente incompleto, e em todos os tempos


sujeito à adição ou capaz de perda.
De qualquer modo, está incompleto sob um aspecto, e flagran-
temente. O próprio fato de debatermos essa questão mostra que
nosso conhecimento é incompleto presentemente e sujeito a acrés-
cimo. A respeito do conhecimento que contém, o mundo genuina-
mente modifica-se e cresce. Algumas observações gerais a respeito
da maneira pela qual o nosso conhecimento se completa - quando
se completa - levar-nos-á convenientemente ao nosso assunto em
"

pauta, que é Senso comum".


Para começar, nosso conhecimento cresce por pontos. Os pontos
podem ser pequenos ou grandes, mas o conhecimento jamais cresce
por inteiro: algum conhecimento antigo sempre permanece o que
foi. O seu conhecimento do pragmatismo, suponhamos, está crescen-
do agora. Mais tarde, o seu crescimento pode envolver considerável
modificação de opiniões que, previamente, tinham-se como certas.
Essas modificações, porém, estão aptas a ser graduais. Para tomar o
exemplo mais próximo possível, considerem-se as minhas conferên-
cias. O que se ganha primeiramente é, com toda probabilidade,
uma diminuta quantidade de novas informações, umas poucas
definições novas, ou distinções, ou novos pontos de vista. Enquanto,
porém, essas idéias especiais estão sendo acrescentadas, o resto de
nosso conhecimento permanece quieto, e somente gradualmente
" "
alinharemos nossas opiniões prévias às novidades que estou
tentando inculcar e modificaremos em grau insignificante sua massa.
Os senhores me escutam agora, suponho, com certa impressão
favorável quanto a minha competência, e isso afeta a recepção do
que digo, mas interrompesse eu subitamente a conferência, e come-
"

çasse a cantar Não iremos para casa senão pela manhã" com uma
rica voz de barítono, e não somente o novo fato seria acrescentado
ao estoque dos senhores mas os obrigaria a definir-me diferentemen-
te, e isso poderia alterar a opinião dos senhores quanto à filosofia
pragmática, e, em geral, acarretaria uma nova disposição de certo
número de idéias. O espírito, nesse lance, fica como que esticado,
e, às vezes, dolorosamente, entre suas crenças antigas e as novidades
trazidas pela experiência.
Nossos espíritos, assim desenvolvem-se por pontos; e como os
salpicos de graxa, os pontos se espalham. Mas nós os deixamos
espalharem-se tão pouco quanto possível; mantemos inalterado, o
mais que podemos, o nosso velho conhecimento, os nossos velhos
preconceitos e as nossas velhas crenças. Remendamos e concertamos
mais do que renovamos. A novidade se infiltra; tinge a massa
antiga; mas é também tingida pelo que a absorve. Nosso passado
percebe e coopera; e no novo equilíbrio em que termina cada passo
dado adiante no processo de aprendizagem, acontece relativamente
raro que o novo fato seja acrescentado como que cru. As mais das
vezes deposita-se cozinhado, como se poderia dizer, ou guisado no
molho dos fatos antigos.
Novas verdades, assim, resultam de novas experiências e de
velhas verdades combinadas, e que se modificam entre si. E visto
que esse é o caso nas mudanças de opinião que ocorrem hoje em
dia, não há razão para supor que não tenha sido assim por todas as
épocas. Segue-se que modos de pensar muito antigos podem ter
sobrevivido através de todas as ulteriores mudanças nas opiniões
dos homens. Os mais primitivos meios de pensamento não podem
ser, todavia, completamente expurgados. Como nossos cinco dedos,
os ossinhos do ouvido, o apêndice caudal rudimentar, ou outras
" "

peculiaridades vestígio podem permanecer como indícios indelé-


,

veis de acontecimentos na história da espécie humana. Nossos


ancestrais podem, em certos momentos, ter topado com modos de
pensar que podiam muito bem não ter jamais descoberto. Uma vez,
porém, isso acontecido, e após o fato, a herança prossegue. Quando
se começa uma peça musical em certo tom, deve-se manter o tom
até o fim. Pode-se alterar a casa ad libitum, mas o plano básico do
primeiro arquiteto persiste - pode-se fazer grandes mudanças,
mas não se pode converter uma catedral gótica em um templo
dórico. Pode-se enxaguar e enxugar a garrafa, mas não se pode tirar
de uma vez para sempre o gosto do remédio ou da bebida que
primeiro nela estiveram contidos.
Minha tese agora é essa, que as nossas maneiras fundamentais
de pensar a respeito das coisas são descobertas de ancestrais
incrivelmente remotos que foram capazes de preservar-se ao longo
,

da experiência dos tempos subsequentes Formam um grande estádio


.

de equilíbrio no desenvolvimento do espírito humano a fase do


,
senso comum. Outros períodos enxertaram-se nesse estádio, não
logrando, porém, jamais deslocá-lo. Consideremos primeiro o está-
dio do senso comum, como se pudesse ser final.
Em termos práticos, o senso comum de um homem significa o
seu bom julgamento, a sua liberdade em relação à excentricidade,
sua perspicácia, para usar o termo vernáculo. Em filosofia, significa
algo inteiramente diferente, significa o uso que faz de certas formas
intelectuais ou categorias de pensamento. Fôssemos lagostas ou
abelhas, e podia ser que nossa organização levasse-nos a empregar
modos completamente diferentes no processo de apreender nossas
experiências. Podia ser também (não podemos negar isso dogmatica-
mente) que essas categorias, inimagináveis para nós hoje em dia,
teriam provado ser, no todo, tão prestimosas ao manejo de nossas
experiências mentalmente quanto essas que atualmente empregamos.
Se isso soa paradoxal, considere-se a geometria analítica. As
figuras idênticas, que Euclides definiu por suas relações intrínse-
cas, foram definidas por Descartes pelas relações de seus pontos
com coordenadas adventícias, sendo o resultado uma maneira
absolutamente diferente e enormemente mais potente de estudar as
curvas. Todas as nossas concepções são o que os alemães chamam
de denkmittel, meios pelos quais lidamos com os fatos pensando
neles. Experiência meramente como essa não vem etiquetada e
rotulada; temos primeiro de descobrir o que é. Kant refere-se a ela
como sendo em sua primeira intenção gewiihl der arscheinungen,
rhapsodie der wahrnehmungen, uma simples variedade que temos
de unificar por meio de nossos espíritos. O que fazemos usualmente,
logo de início, é estruturar algum sistema de conceitos mentalmente
classificados, seriados ou ligados de alguma maneira intelectual, e
" "

então usá-lo como uma agenda onde mantemos em dia as im-


pressões que se nos apresentam. Quando cada impressão é referida
a algum lugar possível no sistema conceptual, é, consequentemente,
" "

compreendida Essa noção de "múltiplos" paralelos, com seus


.

" "

elementos reciprocamente em relações de um-para-um provou ,

ser tão conveniente hoje em dia na matemática e na lógica, a ponto


de suplantar mais e mais as concepções classificatórias mais antigas.
Há muitos sistemas conceptuais desse género; e o senso múltiplo é
também um desses sistemas. Encontre-se uma relação de um-para-
um para as impressões-senso em alguma parte dentre os conceitos,
e logo se racionalizam as impressões. Obviamente, porém, pode-se
racionalizá-las usando-se vários sistemas conceptuais.
A velha maneira pelo senso comum de racionalizar é feita por
uma série de conceitos, dos quais os mais importantes são os seguintes:

Coisa
O mesmo ou diferente
Tipos
Espíritos
Corpos
Tempo
Espaço
Sujeitos e atributos
Influências causais
O imaginado
O real

Estamos agora tão familiarizados com a ordem que essas noções


teceram para nós a partir da permanente mudança de nossas per-
cepções, que achamos difícil compreender quão pouco de uma rotina
fixa as percepções seguem quando tomadas por si mesmas. A pala-
vra tempo (atmosférico) é muito boa para estudo, e vem a calhar.
Em Boston, por exemplo, o tempo quase não tem rotina, a única lei
sendo a de que se houve qualquer tempo por dois dias, provavel-
mente, mas não certamente, haverá outro tempo no terceiro. A
experiência atmosférica que assim Boston pode ter é descontínua e
caótica. Em matéria de temperatura, de vento, chuva ou calor, o
tempo pode mudar três vezes ao dia. Mas o serviço de meteorologia
de Washington intelectualiza essa desordem tornando episódica
cada fase sucessiva do tempo de Boston. Fá-la referir-se ao seu
lugar e momento em um ciclone continental, na história da qual as
mudanças locais de toda parte são esticadas como as contas são
esticadas em um cordão.
Agora, parece quase certo que as crianças e os animais infe-
riores recebem suas experiências todas exatamente como a gente
inculta de Boston recebe seu tempo Eles não sabem mais de tempo,
.

ou espaço como receptáculos de mundo, ou de sujeitos permanentes


,

e predicados instáveis ou de causas, ou tipos, ou pensamentos, ou


,

coisas do que nossa gente comum sabe de ciclones continentais. O


,

chocalho de uma criança cai de suas mãos mas a criança não o


,

procura. O brinquedo, para ela, "foi embora", como a chama de uma


vela vai-se; e o brinquedo retorna quando o repomos em suas mãos,
,
como a chama retorna quando reacendemos a vela. A idéia de ser
"
uma coisa cuja existência permanente por si ela poderia interpolar
"

entre suas sucessivas aparições, evidentemente que não lhe ocorreu.


Dá-se o mesmo com os cães. Com estes, fora da vista, fora do
espirito. É bem evidente que não têm tendência geral para interpolar
" "
coisasDeixem-me citar aqui uma passagem de Santayana:
.

"

Se um cão, enquanto fareja em torno contentemente, vê seu


dono que chega após uma longa ausência... o pobre bicho pergunta
sem nenhuma razão por que seu dono foi embora, por que voltou de
novo, por que deve ser amado, ou por que presentemente, enquanto
jaz a seus pés, esquece-o e começa a rosnar e a sonhar com a caça
- tudo isso é um mistério total totalmente inconsiderado. Essa
,

experiência tem variedade, cenário e um certo ritmo vital; sua estória


poderia ser contada em verso ditirâmbico. Move-se completamente
por inspiração; cada evento é providencial, cada ato improvisado.
Liberdade absoluta e desamparo absoluto encontraram-se: você
depende totalmente do favor divino, e contudo aquela insondável
intervenção não se distingue de sua própria vida... (Mas) as figuras
até mesmo daquele drama desordenado têm suas entradas e saídas;
e suas deixas podem ser descobertas gradualmente por um ser
capaz de fixar sua atenção e reter a ordem dos acontecimentos... À
proporção que tal conhecimento prossegue, cada momento de expe-
riência torna-se consequente e profético do resto. Os trechos cal-
mos da vida são preenchidos com poder e seus espasmos com
recurso. Nenhuma emoção pode oprimir o espírito, pois de nada é a
base ou saída totalmente oculta; nenhum evento pode desconcertá-
lo completamente, porque vê além. Meios podem ser procurados
para fugir do pior dilema; e embora cada momento tivesse sido
preenchido anteriormente com nada, exceto suas próprias aventuras
e surpreendida emoção, cada momento agora abre espaço para a
lição do que foi antes e conjectura qual possa ser o enredo do
todo".,
Mesmo até hoje, a ciência e a filosofia ainda estão tentando
laboriosamente separar as fantasias das realidades em nossa ex-
periência; e nos tempos primitivos fizeram somente as mais inci-
pientes distinções nessa linha. Os homens acreditavam em qual-
quer coisa que pensassem com vivacidade, e misturavam seus

,
The Life of Reason: Reason in Common Sense, 1905, página 59.
"

sonhos com a realidade inextricavelmente. As categorias de pen-


"
samento e "coisas" são indispensáveis aqui - em vez de serem
"

realidades, chamamos agora certas experiências somente de pen-


"
samentos Não há uma categoria, dentre as enumeradas, das quais
.

não possamos imaginar o uso para ter-se assim originado historica-


mente e se espalhado apenas gradualmente.
O Tempo no qual todos acreditamos e no qual cada evento tem
sua data definida, o Espaço no qual cada coisa tem sua posição,
essas noções abstratas unificam o mundo incomparavelmente; mas
em sua forma final como conceitos, quão diferentes são das frouxas
e desordenadas experiências tempo-e-espaço do homem natural!
Tudo que nos acontece traz sua própria duração e extensão, e
" "

ambas são vagamente cercadas por um mais marginal, que corre


para a duração e a extensão da próxima coisa que vem. Cedo, porém,
perdemos nossos rumos definidos todos; e não somente nossos
filhos não fazem distinção entre ontem e o dia de anteontem, o
passado todo sendo remexido, como nós, adultos, fazemos assim,
sempre quando as épocas são distantes. Dá-se o mesmo com os
espaços. Em um mapa, posso ver distintamente a relação de Londres,
Constantinopla e Pequim com o lugar onde estou; na realidade, falho
completamente no sentido de sentir os fatos que o mapa simboliza.
As direções e as distâncias são vagas, confusas e misturadas. O
espaço cósmico e o tempo cósmico, longe de serem as intuições
que Kant disse que eram, são construções tão patentemente artificiais
quanto quaisquer outras que a ciência possa apresentar. A grande
maioria da raça humana jamais faz uso dessas noções, mas vive em
tempos e espaços plurais, interpenetrantes e durcheinander.
"

Coisas" permanentes de novo; a "mesma" coisa e suas várias


" "

aparências e "alterações", os diferentes "tipos" de coisas; com a


" "
coisa usada finalmente como um "predicado", do qual a coisa
" "

permanece como sujeito - que estreitamento do emaranhado de


fluxo imediato e variedade sensível de nossa experiência essa lista
de termos sugere! E é somente a parte menor do seu fluxo de
experiência o que alguém realmente endireita aplicando-lhe esses
instrumentos conceituais. Deles todos os nossos mais antigos
,

ancestrais provavelmente usaram somente e então muito vaga e,

incorretamente a noção de o mesmo de novo Mas mesmo então,


,
" "
.

se lhes tivéssemos perguntado se o mesmo era uma "coisa" que


tinha suportado completamente o intervalo oculto eles provavel- ,

mente teriam ficado em apuros e teriam dito que jamais fizeram


,
aquela pergunta, ou consideraram o assunto sob aquele prisma.
Tipos e semelhança de tipo - que grandemente útil denkmittel
para descobrir nosso caminho entre a multiplicidade! A variedade
poderia concebivelmente ter sido absoluta. As experiências podiam
ter sido todas singulares, nenhuma delas ocorrendo duas vezes.
Nesse mundo, a lógica não teria tido aplicação; pois tipo e seme-
lhança de tipo são apenas instrumentos da lógica. Uma vez que saiba-
mos que o que quer que seja de um tipo é também daquele tipo do
tipo, podemos viajar através do universo como se estivéssemos com
botas de sete léguas. Os brutos decerto jamais usam essas abstrações,
e os homens civilizados usam-nas em muitas e diversas quantidades.
De novo, a influência causal! Isso, se é alguma coisa, parece ter
sido uma concepção antediluviana; pois encontramos homens
primitivos pensando que quase tudo é significativo e pode exercer
alguma sorte de influência. A busca pelas influências mais definidas
"

parece ter começado com a pergunta: Quem, ou o quê, deve ser


"
censurado? - por qualquer doença a saber, ou desastre ou coisa
,

aziaga. A busca pelas influências causais tem-se espalhado a partir


desse centro. Hume e a "ciência" juntos tentaram eliminar a noção
geral de influência, substituindo o inteiramente diferente denkmittel
da "lei". Mas a lei é uma invenção comparativamente recente, e
influencia os reinos supremos no reino mais antigo do senso comum.
O "possível", como alguma coisa menos que o real e mais que o
completamente irreal, é outra dessas noções magistrais de senso
comum. Critiquemo-las como possamos, elas persistem; e voltamos
"

a elas no momento em que a pressão crítica é relaxada. Eu",


" "

corpo no sentido substancial ou metafísico - ninguém escapa à


,

sujeição a essas formas de pensamento. Na prática, os denkmittel


de senso comum são uniformemente vitoriosos. Todos, embora
instruídos, ainda pensam a respeito de uma "coisa" pela maneira do
" "

senso comum, como um sujeito-unidade permanente que suporta


seus atributos reciprocamente. Ninguém, firme ou sinceramente,
usa a noção mais crítica, a de um grupo de qualidades-senso unido
por uma lei. Com essas categorias em mão, fazemos nossos planos
e trama juntos, e ligamos todas as partes remotas da experiência
com o que jaz diante de nossos olhos. Nossas filosofias posteriores
e mais críticas são meras manias e fantasias comparadas com essa
língua materna natural do pensamento.
O senso comum aparece, pois, como um estádio perfeitamente
definido em nosso conhecimento das coisas, um estádio que satisfaz
de uma maneira extraordinariamente feliz os propósitos pelos quais
" "

pensamos. As coisas existem, mesmo quando não as vemos.


Seus "tipos" também existem. Suas "qualidades" são aquelas pelas
quais agem e são aquelas pelas quais agimos nelas; e essas também
existem. As velas derramam sua qualidade de luz sobre cada objeto
nesse quarto. Nós a interceptamos no seu caminho sempre quando
antepomos uma tela opaca. Está bem assentado que meus lábios
emitem sons que vão ter em ouvidos alheios. É o calor direto do
fogo que passa pela água na qual fervemos um ovo; e podemos
passar do calor ao frio jogando na água uma pedra de gelo. Todos
os homens não europeus, sem exceção, permaneceram nesse estádio
de filosofia. Basta para todos os objetivos práticos e necessários de
vida; e, entre mesmo os de nossa gente, são somente os espécimes
altamente sofisticados, os espíritos corrompidos pela cultura, como
Berkeley os chama, que jamais suspeitaram de não ser o senso
comum absolutamente verdadeiro.
Quando olhamos para trás, porém, e especulamos como podem
as categorias do senso comum ter atingido essa maravilhosa su-
premacia, não se nos apresentam razões por que não pode ter sido
por um processo justamente igual àquele pelo qual as concepções
devidas a Demócrito, Berkeley ou Darwin conseguiram triunfos
semelhantes em tempos mais recentes. Em outras palavras, podem
ter sido descobertas com êxito por génios pré-históricos, cujos nomes
a noite da antiguidade cobriu; podem ter sido verificadas pelos fatos
imediatos da experiência, aos quais primeiro se adaptaram; e então,
de fato para fato e de homem para homem, podem ter-se espraiado,
até que toda linguagem se lhes conformou, e somos agora incapazes
de pensar naturalmente em quaisquer outros termos. Essa concepção
seguiria somente a regra que tem provado alhures ser tão fértil, de
supor-se que o vasto e o remoto conformam-se às leis de formação
que podemos observar em função no pequeno e no próximo.
Essas concepções bastam amplamente para todos os propósitos
práticos utilitários; mas que tenham começado em pontos especiais
de descoberta e hajam apenas se difundido gradualmente de uma
coisa para outra parece provado pelos limites excessivamente dúbios
,

de sua aplicação hoje em dia. Pressupomos um "objetivo" tempo


para certos propósitos, que aequabiliter fluit, mas não acreditamos
vivamente em qualquer tempo assim fluindo igualmente ou o com-
,

"

preendemos. "Espaço é uma noção menos vaga; e as "coisas" ,

porém, que são? Uma constelação é propriamente uma coisa? E um


exército? Ou um ens rationis, tal como espaço ou justiça, é uma
" "

coisa? Uma faca cujo cabo e lâmina foram trocados, é a mesma ?


É a "criança trocada por ocasião do parto", o que Locke discute
com tanta seriedade, dotipo" humano? É a telepatia uma "fantasia"
"

"
ou um fato"? No momento em que se passa além do uso prático
dessas categorias (um uso geralmente sugerido suficientemente
pelas circunstâncias do caso especial) para uma maneira de pensar
meramente curiosa ou especulativa, vê-se que é impossível dizer
dentro justamente de que limites de fato qualquer delas se aplicarão.
A filosofia peripatética, obedecendo propensões racionalistas,
tentou eternizar as categorias do senso comum tratando-as bem
tecnicamente e articuladamente. Uma "coisa", por exemplo, é um
ser, ou ens. Um ens é um sujeito no qual estão inerentes certas
qualidades. Um sujeito é uma substância. As substâncias são de
tipos, e os tipos são definidos em número, e distintos. Essas dis-
tribuições são fundamentais e eternas. Como termos do discurso,
são, na verdade, magnificamente úteis, mas o que significam, à
parte, o seu uso na direção de nosso discurso para problemas
proveitáveis, não se revela. Se perguntarmos a um filósofo esco-
lástico o que uma substância pode ser em si, à parte de ser o suporte
de atributos, ele simplesmente diz que o intelecto sabe perfeitamente
o que a palavra significa.
Mas o que o intelecto conhece claramente é apenas a palavra
em si e sua função diretora. Assim, tem-se que os intelectos sibi
permissi, os intelectos apenas curiosos e inativos, abandonaram o
nível de senso comum pelo que, em termos gerais, pode ser chamado
" "
o nível crítico do pensamento. Não somente estes intelectos -
os Humes e Berkeleys e Hegels - mas os observadores práticos de
fatos, os Galileus, os Daltons, os Faradays, viram que é impossível
tratar os ingénuos termos-senso do senso comum como positiva-
" "

mente reais. Como o senso comum interpola as suas coisas cons-


tantes entre nossas sensações intermitentes, assim a ciência extrapola
" "

o seu mundo de qualidades primárias seus átomos, seu éter, seus


,

campos magnéticos e quejandos, além do mundo do senso comum.


As "coisas" são agora invisíveis e impalpáveis; e as coisas visíveis
do velho senso comum são consideradas como resultando da mistura
das invisíveis. Ou então toda a concepção ingénua de coisa fica
invalidada, e o nome de uma coisa é interpretado como denotando
somente a lei ou regei der verbindung pela qual certas sensações
nossas habitualmente se sucedem ou coexistem.
Dessa maneira, a ciência e a filosofia crítica rompem os limites
do senso comum. Com a ciência, o realismo ingénuo cessa: as quali-
dades "secundárias" tornam-se irreais; só as primárias é que ficam.
Com a filosofia critica, a devastação é feita de tudo. As categorias
do senso comum cessam, de uma vez por todas, de representar
alguma coisa no caminho de ser; não são senão truques sublimes
do pensamento humano, maneiras nossas de escapar à confusão no
meio do fluxo irremediável das sensações.
A tendência científica, porém, no pensamento crítico, embora
inspirada a princípio por motivos puramente intelectuais, desdobrou
um leque inteiramente inesperado de utilidades práticas diante de
nossa estupefação. Galileu deu-nos relógios de precisão e armas de
artilharia precisas; os químicos inundaram-nos com novos remédios
e novas tintas; Ampère e Faraday dotaram-nos com os confortos
dos trens elétricos e as facilidades da telegrafia sem fio. As coisas
hipotéticas que esses homens inventaram, definidas como as defi-
niram, estão mostrando uma fertilidade extraordinária em conse-
quências verificáveis pelo senso. Nossa lógica pode deduzir daí
uma consequência devida sob certas condições; podemos, então,
criar as condições, e... pronto, temos a consequência, bem diante de
nós. O escopo do controle prático da natureza, recentemente posto
em nossas mãos pelos processos científicos de pensamento, excede
de muito o escopo do velho controle baseado no senso comum. Sua
taxa de aumento se acelera, de modo que ninguém pode traçar os
limites; pode-se mesmo temer que o ser humano possa vir a ser
esmagado pelos seus próprios poderes, que sua natureza fixa como
organismo possa provar não ser adequada a suportar o esforço das
tremendas funções em contínuo alargamento, funções criadoras
quase divinas, que seu intelecto cada vez mais lhe irá facultando usar.
O homem pode afogar-se em sua riqueza como uma criança em uma
banheira, que tenha aberto a torneira e não possa fechá-la depois.
O estádio filosófico da crítica, muito mais completo em suas
negações que o estádio científico, até agora não nos deu uma nova
faixa de poder prático. Locke, Hume, Berkeley, Kant, Hegel, foram
todos completamente estéreis na medida do não esclarecimento
,

quanto aos detalhes da natureza em marcha, e com base em seus


pensamentos peculiares, pois nem com a infusão de pez de Berkeley,
nem com a hipótese nebular de Kant tinham os seus respectivos
dogmas filosóficos alguma coisa que ver. A satisfação que proporcio-
naram aos seus discípulos é intelectual não prática; e mesmo então
,
temos de confessar que existe um largo saldo negativo para ser
descontado.
Há, pois, pelo menos três níveis bem caracterizados, três es-
tádios ou tipos de pensamento a respeito do mundo em que vivemos,
e as noções de um estádio têm um tipo de mérito, as de outro, outro
tipo. É impossível, todavia, dizer que qualquer estádio por acaso à
vista seja absolutamente mais verdadeiro que qualquer outro. O
senso comum é o estádio mais consolidado, porque preponderou
primeiro e fez de todas as línguas um aliado. Se este ou a ciência é
o estádio mais nobre, é coisa que pode ser deixada para um julga-
mento particular. Nem a consolidação, porém, nem a nobreza, são
índices decisivos de verdade. Se o senso comum fosse verdadeiro,
por que deveria a ciência ferretear as qualidades secundárias, às quais
nosso mundo deve todo o seu interesse vivo, tachando-as de falsas,
e tratar de inventar um mundo invisível de pontos e curvas, e equa-
ções matemáticas? Por que teve necessidade de transformar causas
" "
e atividades em leis de variação funcional ? Em vão a escolástica,
irmã caçula do senso comum, com formação universitária, procurou
estereotipar as formas com as quais a família humana sempre se
manifestara, a fim de torná-las definidas e fixá-las para a eternida-
de. As formas substanciais (em outras palavras, as qualidades secun-
dárias) quase não foram além do ano 1600. O povo, por essa época,
já estava saturado delas; e Galileu e Descartes, com sua "nova filo-
"
sofia deram-lhe somente um pouco mais tarde o seu coup de grâce.
,

Mas agora, se os novos tipos de "coisa" científica, o mundo


" "

corpuscular e etéreo, fosse essencialmente mais verdadeiro por ,

que provocaram tanta polémica dentro do próprio organismo cientí-


fico? Os lógicos científicos dizem a cada passo que essas entidades
e sua determinação, conquanto definitivamente concebida, não devem
ser tomadas como literalmente reais. É como se existissem; mas, na
realidade, são como coordenadas ou logaritmos, apenas atalhos
artificiais para levar-nos de uma parte à outra do fluxo de experiên-
cia. Podemos calcular proveitosamente com esses elementos;
servem-nos às mil maravilhas; mas não devemos ser suas vítimas.
Não há conclusão possível concludente quando comparamos
esses tipos de pensamento, tendo em vista descobrir qual é o mais
absolutamente verdadeiro. Sua naturalidade, sua economia inte-
lectual, seu rendimento prático, tudo conta como teste distinto de
sua veracidade, e o resultado é que ficamos mais confusos ainda. O
senso comum é melhor para uma esfera de vida; a ciência, para
outra; a crítica filosófica, para uma terceira; mas se qualquer deles
é absolutamente mais verdadeiro, só Deus sabe. Ainda agora, se
entendo bem o que se está passando, estamos testemunhando uma
curiosa reversão à maneira de encarar pelo senso comum a natureza
física, na filosofia da ciência favorecida por homens como Mach,
Ostwald e Duhem. De acordo com esses professores, nenhuma
hipótese é mais verdadeira do que qualquer outra, no sentido de ser
uma cópia mais literal da realidade. São apenas maneiras de falar,
comparáveis somente do ponto de vista de seu uso. A única coisa
literalmente verdadeira é a realidade; e a única realidade que
conhecemos é, para esses lógicos, a realidade sensível, o fluxo de
"

nossas sensações e emoções à medida que passam. Energia" é o


nome coletivo (de acordo com Ostwald) para as sensações na hora
mesmo em que se apresentam (movimento, calor, atração magnética,
ou luz, ou o que quer que possa ser) quando são medidas em certos
sentidos. Assim, medindo-as, ficamos capacitados a descrever as
mudanças correlatas que nos apresentam, em fórmulas ímpares
pela simplicidade e fecundidade para o uso humano. São triunfos
soberanos de economia de pensamento.
Ninguém pode deixar de admirar a filosofia "enérgica". As
entidades hipersensíveis, porém, os corpúsculos e vibrações, retêm
a sua própria energia com muitos físicos e químicos, a despeito de
seu apelo. Parece bastante económico ser auto-suficiente. A profu-
são, e não a economia, pode, depois de tudo, ser a chave mestra da
realidade.
Estou tratando aqui com assuntos altamente técnicos, dificil-
mente adequados a uma conferência popular, e nos quais minha
própria competência é pequena. É bem melhor para minha conclusão,
entretanto, que nesse ponto seja assim. A noção total de verdade,
que naturalmente e sem reflexão pressupomos significar a simples
duplicação pelo espírito de uma dada realidade já feita, mostra-se
difícil de ser entendida claramente. Não há nenhum teste simples
em disponibilidade para reconhecer-se de repente entre os diversos
tipos de pensamento que fazem alarde de possuí-la. Senso comum ,

ciência comum ou filosofia corpuscular, ciência ultracrítica ou


filosofia idealística ou crítica ou calorosa, tudo parece insuficiente-
mente verdadeiro sob certos aspectos, e deixa alguma insatisfação.
,

E evidente que o conflito desses sistemas tão largamente diferentes


obriga-nos a rever a idéia mesmo de verdade pois presentemente
,

não temos nenhuma noção definida quanto ao que a palavra possa


significar. Enfrentarei essa tarefa em minha próxima conferência, e
acrescentarei apenas mais algumas palavras, finalizando esta.
Há somente dois pontos que desejo reter da minha presente
conferência. O primeiro diz respeito ao senso comum. Temos tido
motivos para suspeitar dele, para suspeitar que, a despeito de serem
tão vulneráveis, de serem tão universalmente usados e inerentes à
própria estrutura da língua, suas categorias podem, apesar de tudo,
ser somente uma coleção de hipóteses extraordinariamente bem-
sucedidas (descobertas historicamente ou inventadas por indivíduos,
mas comunicadas gradualmente e usadas por todos), pelas quais
nossos antepassados têm, desde tempos imemoriais, unificado e
regulado a descontinuidade de suas experiências imediatas, pondo-
se em equilíbrio (com a superfície da natureza) tão satisfatório para
propósitos práticos ordinários, que certamente teria durado para
sempre, a não ser pela excessiva vivacidade intelectual de Demócrito,
Arquimedes, Galileu, Berkeley, e de outros génios excêntricos, a
quem o exemplo desses homens inflamou. Retenha-se, imploro,
essa suspeita relativamente ao senso comum.
O outro ponto é o seguinte. Não devia a existência dos vários
tipos de pensamento que passamos em revista, cada qual tão esplên-
dido para certos propósitos, e, não obstante, todos conflitantes, e
nenhum deles capaz de suportar uma reivindicação de absoluta
veracidade, acordar uma presunção favorável à tese pragmatista de,

que todas as nossas teorias são instrumental, são modos mentais de


adaptação à realidade, de preferência a revelações ou respostas
agnósticas a alguma charada mundial divinamente instituída? Ex-
pressei essa tese tão claramente quanto pude na segunda das minhas
conferências. Certamente que a inquietude da atual situação teoré-
tica, o valor, para alguns propósitos, de cada nível de pensamento ,

e a inabilidade de um para expelir o outro decisivamente, sugerem


a tese pragmática, que espero poder tornar inteiramente convincente
logo em minhas próximas conferências. Não pode haver, afinal,
uma possível ambiguidade na verdade?

H
Sexta Conferência

Concepção da verdade
no Pragmatismo

Q uando Clerk-Maxwell era criança, diz-se que tinha a mania


de querer tudo bem explicadinho, e que, quando as pessoas
desconversavam, dando uma vaga explicação verbal a respeito de
qualquer fenómeno, costumava interrompê-las impacientemente,
dizendo: "Muito bem; o que eu quero, porém, é que me digam qual
é a linha particular disso!". Tivesse sido sua pergunta a respeito da
verdade, e somente um pragmatista poderia dizer-lhe a linha parti-
cular da verdade. Acredito que os pragmatistas contemporâneos,
especialmente Schiller e Dewey, apresentaram a única apreciação
sustentável sobre o assunto. É um tema muito espinhoso, que manda
raízes sutis a todas as espécies de crânios, difícil de tratar no estilo
ligeiro imposto por uma palestra pública. Mas a tese Schiller-
Dewey sobre a verdade foi atacada tão ferozmente pelos filósofos
racionalistas, e tão abominavelmente mal compreendida, que se
impõe um pronunciamento claro e simples nesse caso.
Espero ver a concepção da verdade pragmatista passar pelos
estádios clássicos de uma carreira de teoria. Primeiramente, sabe-
se, uma teoria é atacada como absurdo; em seguida, admite-se ser
verdadeira porém óbvia e insignificante; finalmente, é vista como
,

tão importante, que seus adversários reivindicam-na para si como,

tendo sido eles que a formularam. Nossa doutrina da verdade acha-


se presentemente na primeira dessas três fases com sintomas do
,

segundo estádio tendo já aparecido em certos quadrantes. Espero


que essa conferência possa ajudar a doutrina a ir além do primeiro
estádio aos olhos de muitos dos senhores.
,

111
A verdade, como qualquer dicionário pode mostrar, é uma
" "

propriedade de certas idéias nossas. Significa o seu acordo como ,

" "

a falsidade significa o seu desacordo, com a realidade .

Tanto os pragmatistas quanto os intelectualistas aceitam essa


definição como ponto pacifico. Só começam a discordar quando é
levantada a questão relativa ao que se pode precisamente entender
" "

pelo termo acordo e pelo termo "realidade", quando a realidade é


tomada como alguma coisa com a qual nossas idéias devem concordar.
Ao responder a essas questões, os pragmatistas são mais analí-
ticos e meticulosos, e os intelectualistas mais imediatos e irrefle-
tivos. A noção popular é a de que uma idéia verdadeira deve copiar
a sua realidade. Como outras concepções populares, segue esta a
analogia com as experiências mais usuais. Nossas idéias verdadeiras
de coisas sensíveis copiam-nas, na verdade. Fechem-se os olhos e
pense-se no relógio de parede, pendurado logo ali, e tem-se um quadro
verdadeiro ou cópia de seu mostrador. Mas a sua idéia de suas
" "

peças (a não ser que você seja um relojoeiro) é muito menos de


uma cópia, e contudo passa pelo exame, pois de modo algum colide
" "

com a realidade. Mesmo embora se limitasse a mera palavra peças ,

"

essa palavra ainda serve verdadeiramente; e quando se fala de fun-


"

ção de marcação de tempo do relógio, ou da "elasticidade" de suas


molas, é difícil ver exatamente o que suas idéias podem copiar.
Percebe-se que há nisso um problema. Onde nossas idéias não
podem copiar definidamente o seu objeto, que significa a concor-
dância com aquele objeto? Alguns idealistas parecem dizer que
elas são verdadeiras sempre quando são o que Deus tem em mente
que se deva pensar a respeito desse assunto. Outros se limitam única
e exclusivamente à concepção de cópia, e falam como se nossas
idéias possuíssem verdade na proporção que se aproximassem do
estado de serem cópias do eterno processo de pensar do Absoluto.
Essas concepções, vê-se, convidam à discussão pragmatista. A
grande suposição dos intelectualistas, entretanto, é que a verdade
significa essencialmente uma relação estática inerte. Quando se
chega à idéia verdadeira de alguma coisa, chega-se ao fim da ques-
tão. Está-se em posse; sabe-se\ preencheu-se um destino de medi-
tação. Está-se onde se deve estar mentalmente; obedeceu-se a um
imperativo categórico; e nada mais precisa seguir-se ao clímax de um
destino racional. Epistemologicamente, está-se em equilíbrio estável.
O pragmatismo, por outro lado, faz a sua pergunta habitual.
"

Supondo-se que uma idéia ou crença seja verdadeira", diz, "que


diferença concreta, em sendo verdadeira, fará na vida real de al-
guém? Como será compreendida a verdade? Que experiências
serão diferentes daquelas que prevaleceriam se a crença fosse falsa?
Qual, em suma, é o valor em caixa da verdade, em termos experi-
"
mentais?
No momento em que o pragmatista faz essa pergunta, já tem a
resposta: as idéias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar,
validar, corroborar e verificar. As idéias falsas são aquelas com as
quais não podemos agir assim. Essa é a diferença prática que nos
faz ter idéias verdadeiras; esse, portanto, é o significado da verdade,
pois é tudo como pode ser conhecida a verdade.
Essa é a tese que tenho de defender. A verdade de uma idéia não
é uma propriedade estagnada nessa idéia. Acontece ser a verdade
uma idéia. Esta torna-se verdadeira, é feita verdadeira pelos aconteci-
mentos. Sua verdade é, de fato, um evento, um processo: o processo,
a saber, de verificar-se, sua verificação. Sua validade é o processo
de sua validação.
O que, porém, significam as palavras verificação e validação,
pragmaticamente falando? Elas, de novo, significam certas conse-
quências práticas da idéia verificada e validada. E difícil verificar
qualquer frase que caracterize melhor essas consequências do que a
fórmula ordinária de concordância - essas consequências são justa-
mente o que temos em mente sempre quando dizemos que nossas
idéias concordam com a realidade. Elas nos levam, a saber, através
dos atos e outras idéias que instigam, em direção de outras partes
da experiência com as quais nós sentimos durante todo esse tempo
- estando esse sentimento entre nossas potencialidades - que as
idéias originais permanecem em acordo. As conexões e transições
vêm a nós passo a passo, em caráter progressivo, harmonioso,
satisfatório. Essa função de direção agradável é o que entendemos
por verificação de uma idéia. Essa explanação é vaga e soa a princí-
pio completamente trivial, mas tem resultados que tomarão o resto
de meu tempo para explicar.
Comecemos por lembrar que a posse de pensamentos verda-
deiros significa a posse de valiosos instrumentos de ação; e que o
nosso dever no sentido de inteirarmo-nos da verdade, longe de ser
" "

uma ordem fria partida do além, ou uma proeza auto-imposta por


nosso intelecto, pode contar-se por excelentes razões práticas.
A importância para a vida humana no sentido de ter-se crenças
verdadeiras a respeito de assuntos de fato, é algo por demais
notório. Vivemos em um mundo de realidades que podem ser infini-
tamente úteis ou infinitamente danosas. As idéias que nos dizem
com quais delas podemos contar, contam como as idéias verdadeiras