Você está na página 1de 35
Contra a miséria neoliberal Rubens Casara aoa | nistas, assistencialistas e planificadoras que reduziam as possibilidades de lucros dos mais fortes economicamente. Nao se pode estra- nhar, entao, o apoio financeiro recebido para EMAC KIA Tecemc CMC TAa LCM Lage Rame-telcelg ploy instituicdes de prestigio (como o Instituto Universitario de Altos Estudos Internacionais, a London School of Economics e a Universi- dade de Chicago) quanto por centenas de think tanks encarregadas de difundir os mantras ne- Cte tie 1.7. Onascimento do neoliberalismo Ha certa divergéncia sobre o marco histérico que representaria o nascimento do neolibe- ralismo, o momento em que foi apresentado como um projeto a sociedade. Para alguns, esse momento seria a criagdo da Sociedade Mont-Pélerin, em 1947. Todavia, foi com a re- alizacao do Coléquio Walter Lippmann,® em 1938, que pela primeira vez se tentou a for- mulacdo de uma teoria do intervencionismo estatal propriamente liberal. Foi, ainda, nesse evento que se deram os primeiros passos para a tentativa de criacdo de uma espécie de “In- ternacional Neoliberal”.© A premissa dos “pais fundadores” do neolibe- ralismo era a de que a manutencio do libera- lismo necessitava de uma refundagao tedérica da doutrina liberal para que fosse possivel dela deduzir uma politica ativa verdadeira- Pagina 72 de 275 oh) aoa | mente liberal. Em que pese certa divergéncia, em especial causada pelo conservadorismo de tedricos como Von Mises e Hayek (que atri- buiam a derrocada do modelo liberal as trai- g6es dos principios do liberalismo classico, em especial as intervengées politicas), tornou-se hegeménica a tese de que nao poderiam exis- tir liberdades sem intervencdo estatal. Assim, o liberalismo deveria ser visto nado mais como uma justificacao do status quo, mas como uma “légica de reajustamento”2 do Estado e da eco- Beloyaab ccs O neoliberalismo, entao, passou a se distan- ciar da tese do laissez-faire. Diante dos efei- tos danosos produzidos pela inércia do Estado, a ideia de uma radical oposicao as politicas intervencionistas passou a figurar no plano imaginario como uma negatividade. Também ganhou corpo, durante as discussdes que fun- daram as bases do modelo neoliberal, a tese de que o proprio regime liberal e a vida econémica eram construgées que nasciam e se desenvolviam a partir de um quadro legal e, portanto, do intervencionismo do Estado. Pas- sou-se, portanto, a negar a espontaneidade do mercado. Ha na inovacéo do neoliberalismo o reco- nhecimento da necessidade de mudangas de ordem epistemoldgica (por exemplo, a rejei- cao da metafisica naturalista) bem como da importancia do Direito na instauragio e na Pagina 72 de 275 ye 14:12 manutengao da economia de mercado (0 pré- prio direito de propriedade é uma criacdo da lei). Ha também na aceitacao das propostas neoliberais a vitoria da tese de que o mercado, por si sd, nao é capaz de assegurar a integracgao de todos, razdo pela qual precisa da sustenta- cdo do Estado. Percebe-se, pois, que apesar do discurso de retorno ao liberalismo, os neolibe- rais produziram uma nova base tedrica e uma nova politica. O neoliberalismo sedimenta-se, entéo, como um modelo marcado pelo ati- vismo, através do qual se busca a construcao das condigées ideais para que a iniciativa pri- vada possa se desenvolver livremente. Do ponto de vista tedrico, assumia-se que 0 dogmatismo liberal classico foi o responsavel pelos fenémenos da planificacéo econédmica e do dirigismo de viés keynesiano. Isso porque a Seclob at Whol acl Role Tr (ere N Ro eCel- Eon elabtotg dir as regras para o funcionamento de um sis- tema social com as leis naturais imodificaveis (que serviriam para justificar o laissez-faire) e ao ignorar a dimensiao politica da economia. A partir da hegemonia desse novo modo de ver e atuar tipicamente neoliberal, passou-se a ad- mitir que a ordem econémica e o mercado s construgées historicas e, portanto, passiveis de serem alteradas pela agao humana. Existi- riam, entao, condicées para o estabelecimento de um programa estatal (uma agenda) visando conservar e potencializar o funcionamento do 0 Pagina 73 de 275 ye 14:12 mercado e, em consequéncia, potencializar e conservar os lucros dos detentores do poder econémico. Reconhecia-se, enfim, a dimensao institucional da organizacdo econémica e so- fore O neoliberalismo cooptou o Direito e pas- sou a fazer uso do “império da lei”. A cha- mada “colonizacdo do Direito pela economia” é uma das leituras possiveis do fenémeno do uso do Direito e das instituig6es juridicas para a potencializacado e conservacgao do mer- cado, e também para a realizagao dos desejos dos detentores do poder econémico. Tornou- se comum que, em atencado a um determinado sistema econdmico, as leis e as decisdes judi- ciais passassem a ser modificadas sempre que os detentores do poder econédmico julgassem necessario. E, de fato, a partir da racionali- dade neoliberal as leis e as decisdes judici- ais passaram a ser direcionadas a potenciali- zacao dos mercados e nao mais vistas como obstaculos a sua eficiéncia (entendida como possibilidade de geracdo ilimitada de lucro). Por isso a simpatia dos neoliberais (Lippman, Hayek e outros) pelo sistema da Common Law, que, com seus precedentes judiciais, mostra- se muito mais flexivel do que os modelos da Civil Law e da rigidez constitucional. A racio- nalidade neoliberal, como se vé, leva também atendéncia a flexibilizacdo dos direitos funda- mentais, tanto os de dimensao social quanto Pagina 73 de 275 ye 14:12 os de origem liberais, vistos como potenciais obstaculos ao desejo de lucro. Para os neoliberais, caberia ao sistema juri- dico assegurar o que um homem pode espe- rar dos outros, bem como garantir a realizacao dessa expectativa.2 Contam, portanto, com uma espécie de “governamentalidade do tipo judicial’: um governo da economia a partir da criacao de normas que se adaptam as ne- cessidades mutantes dos detentores do poder econémico. Aposta-se, assim, na dimensdo hermenéutica dos comportamentos, ou seja, na criagdo em cada caso concreto, por cada go- vernante e por cada governado, de normas de conduta que seriam condicionadas pela racio- nalidade neoliberal. Vale lembrar que ha uma diferenca ontold- gica entre o texto legal (dispositivo abstrato e genérico) e a norma (dispositivo concreto), esta sempre o produto da agdo do intérprete. Ao atuar no mundo-da-vida sempre se esta a interpretar (e a julgar) e, portanto, a criar nor- mas (mandamentos de conduta) para situa- Ges concretas, o que se daa partir da tradi¢gao em que o intérprete esta inserido, de suas pré- compreens6es e também de seus preconceitos. Os neoliberais contam e sé consideram legit: mas as normas que se revelam adequadas a ra- cionalidade neoliberal. Com a lei a servico do mercado, e 0 conse- quente declinio do império da lei diante dos Pagina 74 de 275 Pah) 14:12 cdlculos de interesses, retorna-se 4 busca de harmonia pelo calculo e pela analise de nume- ros (0 que se reforca com a chamada “revolu- cao numérica e digital”), o que permite “pen- sar a normatividade nao mais em termos de legislagdo, mas em termos de programacao”.4 Com isso, se busca reduzir a dimensdo hu- mana no processo de criacao e aplicacao da lei, pretendendo que as pessoas cumpram 0 pro- grama estabelecido, ou, mais precisamente, se limitem a reagir em tempo real aos multiplos sinais que levam ao atendimento dos objetivos que lhe sao atribuidos.2= Uma normatividade, portanto, que exclui e tende a degenerar a ca- pacidade humana de pensar e agir segundo as FICE Tg ob ao) set CB (elo cTe Desde sua origem, o significante “neolibe- ralismo” se tornou uma espécie de conceito guarda-chuva, abrangendo uma vasta gama de objetos e significados. E importante ter em mente que essa palavra tem servido para no- mear fendmenos (ou dimensées de um mesmo fenédmeno) bem diferentes. Muitas vezes, a cri- tica ao neoliberalismo se perde nessa diferenca de objetos e de dimensdes nomeadas pela mesma palavra. Em apertada sintese, pode- se apontar que o neoliberalismo surge como uma teoria econdmica construida entre ten- sdes doutrinarias para, em seguida, se trans- formar em politica(s) econdmica(s) e, mais tarde, em uma racionalidade governamental. Pagina 74 de 275 Pah) arse) A ideia neoliberal, desenvolvida a partir do Co- loquio Lippmann, levou a uma teoria, a uma politica e a um modo de governar. Mas nao so. Hoje a ideia de racionalidade governamental nao é suficiente para explicar o que produz o neoliberalismo e, mais precisamente, a relacao entre a racionalidade neoliberal e os limites ao exercicio do poder. Isso porque o neolibera- lismo, mais do que uma nova arte de governo, tornou-se uma “nova razao do mundo”, uma normatividade e um imaginario que ultrapas- sam os limites do mercado e do Estado. Por ne- oliberalismo, deve-se entender um fendmeno conglobante, um modo de ver e atuar sobre tudo e todos. [elSenlekrolt-reo see Gebel ieee eV IES atoecs Dardot, o neoliberalismo deve ser entendido nao como ] o conjunto de doutrinas, correntes ou auto- res os mais diversos e, em determinados pontos, opostos, que a histéria politica e econémica gosta de arrumar sob esse muito vasto chapéu. Tam- bém nao como politicas econédmicas que proce- Porch Centone acne cite ertcccas) Estado em proveito do mercado. Mas, sobretudo Conte OCR nee eC Moe temt tc} “yazao-mundo” que tem por caracteristica esten- der e impor a légica do capital a todas as relaces sociais para torna-la a forma de nossas vidas. E possivel afirmar, entdo, que o neoliberalismo se apresentou como uma teoria econémica Pagina 75 de 275 Pah) 14:16 (variante do liberalismo que comecou a surgir a partir dos anos 1sY- e \4¥-), um novo modelo econémico que representaria uma espécie de ajuste em relacgdo aos problemas que levaram a crise da forma anterior de liberalismo. Mas a tentativa de novamente atualizar o libera- lismo deu lugar a algo novo. A grande questao nao era mais discutir se o governo podia inter- vir ou nao no mercado, e sim identificar quais bet sa(oeleol oe eo (ene mol ta an alo) exercicio do poder politico para obter os efei- tos desejados pelo mercado. Em um certo sentido, pode-se afirmar que o neoliberalismo surge em um contexto de risco ao liberalismo representado pelo movi- mento comunista, mas elege um outro ad- versario principal: o dirigismo de Keynes, que tinha repercussao direta na luta contra a pobreza, a discriminagao e a desigualdade com reflexos na educagéo, no emprego, da satide e na habitacdo. Aos olhos dos deten- tores do poder econémico, as propostas de Keynes representariam a promessa de redu- gao de suas margens de lucro. Os neoliberais, em sentido contrario, voltavam a defender a primazia do mercado, que deveria ser “o ob- jetivo, o principio e a forma do Estado”.78 neoliberalismo, o mercado passa a ser tratado como fundamento, mas também como efeito e responsabilidade do Estado, razao pela qual a acdo governamental deve assegurar um qua- Pagina 76 de 275 Pah) 14:16 dro juridico-politico estavel que permita 0 seu bom funcionamento, garantindo-lhe ainda as condigdes monetarias e orgamentarias para permitir a circulacdo e a acumulagao do capi- 1 A coeréncia politica neoliberal é um sintoma que permite afirmar a existéncia de uma raci- onalidade: um modo de ver e atuar no mundo proprio do idedrio neoliberal. O ordolibera- lismo da Escola de Fribourg e o neoliberalismo americano da Escola de Chicago, que sdo as mais conhecidas e influentes manifestagdes tedricas do neoliberalismo, apesar das dife- rencas, tém muito mais pontos de contato do que divergéncias. Ambas as correntes neolibe- rais defendem tanto a critica da ado politica voltada a reducado da desigualdade quanto a crenca em um poder que age sobre os indivi- duos a partir do meio em que vivem. E 0 meio de vida do homem neoliberal é, e para sempre deveria ser, o mercado. Com 0 ordoliberalismo, pode-se falar em uma nova racionalidade governamental na qual as decisées politicas devem ser tomadas a partir da premissa de que a liberdade econédmica do mercado é a condi¢ado de prosperidade da po- pulagao e, portanto, deve exercer a funcao de legitimar as agées governamentais. Segundo Michel Foucault, 0 ordoliberalismo implica na necessidade de uma Gesellschaftspolitik, isto é, de uma politica de sociedade e de um inter- Pagina 76 de 275 Pah) 14:16 vencionismo estatal “ativo, multiplo, vigilante e onipresente”:“ uma espécie de intervengao social que nao é voltada nem 4 compensa- cao dos efeitos desestruturantes e perversos eventualmente gerados pela liberdade econé- mica, nem a reducdo dos danos produzidos no interior das “regras do jogo” da sociedade de mercado, mas que deve se dar “a titulo de uma condicao histérica e social de possibili- dade de uma sociedade de mercado, a titulo de condicao para que funcione 0 mecanismo sievenrtVRcE Maer eto s< loc We jo se trata apenas de uma governabilidade econédmica, mas de uma quase identificagaéo entre os fins do Es- tado eos fins do mercado, entre a prosperidade econémica e a legitimidade politica. Segundo a leitura foucaultiana®! dos ordoliberais, exis- tem dois eixos que caracterizam essa corrente de pensamento: de um lado, a formalizagao da sociedade ao modelo da empresa e, do outro, a redefinicgdo da instituigdo juridica e das regras do direito, “que sao necessarias em uma socie- dade regulada a partir e em fungao da econo- mia concorrencial de mercado” £2 No esquema liberal classico, buscava-se de- senvolver e facilitar o funcionamento dos me- canismos autossuficientes do mercado no in- terior de um espaco politico estruturado pelo principio da soberania, cabendo ao principio da utilidade se impor como um limite gover- namental diante da tendéncia a ilimita¢gao do Pagina 77 de 275 26% 14:16 exercicio do poder, oriundo da ideia de sobera- nia. O ordoliberalismo produz uma inversao: 0 mercado, percebido como fonte do bem-estar, é que funda e torna legitima a soberania do Es- tado. Os limites e os objetivos do Estado, para o ordoliberalismo, sdo os limites e os objeti- vos do mercado. O Estado, dentro dessa leitura neoliberal, passa a ter o dever de assegurar o sucesso do mercado. A sociedade também se itoger- Meroe Ks (oe Nee e tele tlee LE (eel tatais: produz-se uma politica para a sociedade NM ENe EM Wot corertoler tole (oer oceCleMe EM sle) Hated direcionada 4 sociedade que funciona como regulador do Estado. Em teoria, o Estado pas- saria a desenvolver e a incentivar uma ldgica concorrencial, mas, ao mesmo tempo, deveria proteger os individuos da tendéncia 4 anomia inerente 4 pratica concorrencial (que se tra- duz em uma espécie de vale-tudo pelo sucesso) através do apoio as estruturas de supervisdo comunitaria ou as atividades que visam esti- mular a responsabilidade individual, como o incentivo 4 abertura de pequenas empresas. A proposta ordoliberal, como se vé, é um governo liberal ativo, e, por essa razao, Fou- cault identifica no ordoliberalismo uma racio- nalidade governamental inédita: “um governo pelo mercado mais do que um governo por causa do mercado”.2 Para o ordoliberalismo, a economia de mer- cado passa a definir quais agdes governamen- Pagina 77 de 275 26% 14:17 tais levaraéo ao sucesso e quais estado desti- nadas ao fracasso, Surge uma normatividade, primeiramente, voltada as agdes governamen- tais e, em seguida, direcionada a todos os in- dividuos. O conceito central para se entender o funcionamento do mercado a partir da ra- cionalidade neoliberal é o da concorréncia: a forma concorréncia é 0 que caracteriza o mer- cado. No neoliberalismo, a concorréncia é 0 eidos do mercado. Para a corrente ordoliberal, o mercado é o produto de um contexto e o efeito de uma determinada politica, por isso a intervengao estatal é encorajada sempre que a acdo governamental for direcionada a per- mitir o funcionamento livre dos mecanismos concorrenciais na economia, sempre que a in- tervencdo produzida pelo exercicio do poder politico criar ou otimizar as condicdes funda- mentais 4 concorréncia. Aconstitucionalizacao dos principios da eco- nomia do mercado é desejada pelos ordoli- berais. O enquadramento constitucional das condicées fundamentais 4 concorréncia e ao livre mercado, que produz limitacgdes tanto a vontade popular quanto aos atos dos agen- tes estatais, leva 4 estabilidade necessdria a sociedade de mercado. Para os ordoliberais, o ordenamento legal nao é encarado como uma superestrutura, mas como uma dimen- sdo imanente ao funcionamento econémico e social. O econémico determinaria 0 contetido Pagina 78 de 275 26% 14:17 ea finalidade do direito publico (inclusive do direito penal, sempre destinado ao con- trole social) e constitucional, e, em seguida, o juridico, condicionado (e, com o tempo, co- lonizado) pela economia, informaria as agées governamentais. Por sua vez, o neoliberalismo americano, tes- tado no Chile apds o golpe de Estado que der- rubou o presidente democraticamente eleito Salvador Allende em 1973, apresenta algumas diferencas, mas muitos pontos de contato com CXoseclo belie Be Collette vetset cano que surge a ideia de uma politica social privatizada, o que acabou por levar a op¢ao po- litica por medidas de privatizagéo dos meca- nismos de seguridade social. O neoliberalismo americano aparece assim como uma corrente de pensamento que radicaliza as propostas ne- oliberais de favorecer a iniciativa privada, os planos privados de previdéncia e as técnicas de capitalizacao em detrimento dos mecanismos de redistribuigdo entre os grupos sociais.“As acées governamentais condicionadas pela 1d6- gica da concorréncia seriam destinadas 4 oti- mizagao do funcionamento do mercado, com 0 objetivo de alcangar 0 maximo crescimento das negociagées e o aumento do lucro dos de- tentores do poder econémico. Esse “sucesso” econémico representaria a unica verdade pos- sivel sob a égide da racionalidade neoliberal. Em outras palavras, trata-se de um regime de Pagina 78 de 275 26% aC Sars} verdade em que o crescimento do mercado, a livre concorréncia e o lucro ocupam papel cen- tral. O verdadeiro, a luz da racionalidade neoli- beral, é a necessidade de satisfazer o mercadoe a obtencdo de lucros. Nao por acaso, o mercado se transforma no modelo para todas as rela- (ool SR Sola Ge As ac6des sobre a sociedade e sobre os individuos tém por objetivo desenvolver a con- corréncia, adaptar os individuos a ela e do- mesticar as condutas. Para os neoliberais ame- ricanos, todos os dominios do mundo-da-vida remetem a ideia de empresa, isso porque toda atividade é assimilavel a uma produgao e é re- gida por um calculo de rentabilidade. Para eles, entdo, deveria ser possivel aplicar uma analise econémica, baseada em calculos de interesse, a toda uma série de objetos que tradicional- mente se encontram desvinculados da ldgica empresarial e de mercado, tais como a familia, os casamentos, a educacao dos filhos, a justia, a criminalidade.®= As acGes passariam a ser calculadas a partir da figura do homem econé- mico: aquele ente abstrato que representaria o individuo capaz de decidir de uma maneira previsivel a partir de seus prdprios interesses. Da-se, a partir da teorizacao dos neoliberais americanos, a extensio da abstracao Homo zeconomicus a andlise de decisées em domi- nios nao diretamente econédmicos. Todas as condutas passam a ser potencialmente objeto Pagina 79 de 275 26% aC Sars} dessa andlise econémica: primeiro, aquelas condutas que implicam a alocacdo de recur- sos que sdo raros no mundo-da-vida, depois, todas as condutas que se dirigem a utilizagao de meios limitados para alcancar um fim de- terminado dentre outros possiveis, e por fim, aanalise econémica abrangeria também todas as condutas que podem ser tidas como raci- onais, ou seja, condutas finalisticamente diri- gidas, que impliquem a escolha estratégica de Em meios, de instrumentos e de caminhos. autores como Gary Becker, por exemplo, a ana- lise econémica é apresentada como legitima para abarcar inclusive condutas ndo racionais, isto é, ag¢des humanas em que inexiste o obje- tivo de angariar alguma vantagem ou otimizar o resultado: Toda conduta que “aceita a _ realida- de” (Becker), que busca responder de modo sistematico as modificagées das variaveis do meio, torna-se potencialmente objeto da ana- lise econémica, inclusive 0 modo de gover- nar. Como Michel Foucault tornou explicito, o homem econémico seria aquele que aceita a realidade.% Passa-se a considerar racional a conduta que responde previsivelmente (ou seja, de modo nao aleatério) as modificacées das variaveis do meio (“que aceita a reali- dade”). Agir racionalmente no mundo-da-vida seria o equivalente 4 busca de uma vantagem ou lucro. Por isso, para os tedricos neoliberais Pagina 79 de 275 26% aC Sars} americanos, a sociedade precisava ser enten- dida a partir dos conceitos de entrepreneurship (como faculdade do género humano) e capital ea ead Em suma, para os neoliberais americanos, todos os comportamentos humanos podem ser resumidos pelo resultado da escolha entre fins rivais, como fica claro na obra de Gary Becker, o que alarga o campo da economia politica e ressalta a importancia tanto dos sujeitos econdmicos quanto da racionalidade de suas condutas. O trabalhador, por exem- plo, deixa de figurar como uma espécie de objeto, submetido a lei da oferta e da procura, para se tornar um sujeito ativo, capaz de es- colhas racionais entre alternativas que podem ser mensuradas em termos de satisfagao. A subjetividade humana, para essa corrente de polseteeel soln ie vee Moree eee loco sy ldgica de acumulagio capitalista: o trabalha- dor passa a se identificar como um capital de competéncias (abilities) a gerir. Em outras palavras, o trabalhador nao é mais percebido como uma forga de trabalho que tem um preco no mercado, mas como uma empresa que pre- cisa ser gerida segundo uma racionalidade es- pecifica. E o mais impressionante é que, sob a racionalidade neoliberal, o individuo, ainda que permaneca explorado, passa a acreditar que é um empresdrio-de-si, 0 que faz com que os outros trabalhadores sejam percebidos Pagina 80 de 275 Pah aC Sars} como concorrentes ou inimigos (inviabiliza- se, assim, a ideia de consciéncia de classe), e ele passe a se comportar segundo os imperativos de maximizacao dos investimentos dentro de todos os dominios de sua existéncia (a educa- cao, a saude, a familia, a criminalidade, a imi- gracao etc.). Para os neoliberais americanos, também as instituigdes e todas as atividades deveriam seguir a logica das empresas: passar a com- binar inputs e custos com o objetivo de pro- duzir outputs especificos. Todas as atividades, mesmo aquelas que historicamente nunca ti- nham sido relacionadas a obtencao de lucros, passariam a ser percebidas e geridas como ati- vidades econdmicas que exigem calculos tipi- cos das atividades empresariais. Comecgou-se a pensar e trabalhar a partir da premissa de que a racionalidade da conduta é universal e que os calculos dos individuos sao sempre cdlculos de investimento que podem, inclusive, exigir a escolha entre ganhos imediatos menores ou satisfagdes futuras (com maiores ganhos), 0 que faz com que aquilo que, em um primeiro momento, parece ser uma decisao irracional revele-se no futuro a decisao acertada para au- mentar o respectivo capital. Oneoliberalismo promete uma sociedade em que as pessoas espontaneamente seguiriam s “regras do jogo” com o objetivo de lucrar e levar vantagens. A ideia dessa sociedade, Pagina 80 de 275 Pah 14:19 apontada pelo discurso neoliberal como con- sequéncia da racionalidade neoliberal, passa a integrar o respectivo imaginario. Formam-se imagens e ideias associadas a esse modelo de sociedade. Ao mesmo tempo, instaura-se todo um sistema simbolico, uma normatividade, que enuncia mandamentos destinados a esta- belecer a conduta “normal”, esperada, de cada individuo. Busca-se no neoliberalismo formatar o in- dividuo 4 imagem e semelhanga do homem econémico, aquele que sempre obedece ao pré- prio interesse, mesmo que para isso seja ne- cessario integrar técnicas e dispositivos com- portamentais 4 economia, tais como jogos de estimulo e mecanismos de reforco, bem como introduzir ou reforgar outras varidveis con- dicionantes do comportamento,” em especial ligadas 4 propaganda, a industria cultural% e a repeticao (a exclusio da expectativa do novo). Com o neoliberalismo, contudo, o Homo ceconomicus adquire uma forma histdérica particular. Como explica Wendy Brown, “a di- ferenga da criatura de Adam Smith, movida por uma propensao natural ao ‘trafego, a troca e aos negécios’, o Homo ceconomicus atual é uma unidade de capital humano essen- cialmente construido e intensamente gover- nado”.22 Um individuo formatado para aten- der ao mercado, maximizar a competitividade e aumentar o seu valor em todos os dominios Pagina 81 de 275 Pah

Você também pode gostar