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lumina

Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação


Universidade Federal de Juiz de Fora / UFJF
e-ISSN 1981-4070

Da câmara subjetiva à falsa objetividade das


imagens no cinema:
apontamentos sobre duas experiências limite

Mirian Tavares1

Resumo: Através da análise de um aspeto morfológico do dispositivo cinematográfico, a câ-


mara subjetiva, procuro apresentar modelos divergentes de utilização do cânone e processos
alternativos de projeção/identificação pela imagem. O recurso à câmara subjetiva está asso-
ciado, geralmente, a momentos de grande tensão quando se espera uma maior aderência do
espectador ao ecrã : vemos através dos olhos das personagens e assim aumenta a sensação de
envolvimento, e de presença, do filme em nós e de nós mesmos dentro do espaço diegético.
Raramente a câmara subjetiva é /foi utilizada durante todo o filme, apagando assim o corpo
das personagens do ecrã, porque se sabe que o mundo das imagens é o mundo da sedução e do
reconhecimento que se dá pelo corpo projetado, e idealizado, que se (im) põe ao nosso olhar.
Não nos podemos esquecer devque a imagem do ecrã é um constructo ideológico que faz parte
da tradição artística ocidental. Os artistas do início do século XX pretenderam desmistificar
o cânon e demonstrar que tudo na arte era sempre fruto de uma construção. Este modelo de
representação, negado pelas vanguardas, foi absorvido pela fotografia e pelo cinema e, apesar
dos discursos divergentes que hoje atravessam o discurso canônico ocidental, ainda perduram
reproduções e replicações deste modelo, dentro e fora do espaço europeu.

Palavras-chave: Imagem; Cânone; Representação; Câmara Subjetiva

Abstract: Through the analysis of a morphological aspect of the cinematographic device, the
subjective camera, I try to present divergent models of canon use and alternative processes of
projection / identification by the image.The use of the subjective camera is usually associated
with moments of great tension when the viewer is expected to be more closely connected to the
screen: we see through the eyes of the characters and thus increase the sense of involvement
and presence of the film in us and of ourselves within the diegetic space. Rarely is the subjecti-
ve camera used throughout the film, thus erasing the body of the screen characters because it
is known that the world of images is the world of seduction and recognition given by the pro-
jection. We must not forget that the screen image is an ideological construct that is part of the
Western artistic tradition. Artists of the early twentieth century sought to demystify the canon
and demonstrate that everything in art was always the result of a specific idea. This model of
representation, denied by the avant-gardes, has been absorbed by photography and cinema,
and despite the divergent discourses that now cross Western canonical discourse, reproduc-
tions and replications of this model still exist within and outside the European space.

Keywords: Image; Canon; Portray; Subjective Camera

1  Professora Associada da Universidade do Algarve. Com formação académica em Ciências da Comunicação,


Semiótica e Estudos Culturais,doutorou-se em Comunicação e Cultura Contemporâneas, na Universidade Federal
da Bahia. E-mail: miriantavar@gmail.com

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Introdução

Hugo Munsterberg, que escreveu uma obra pioneira sobre o cinema, per-
guntava-se em 1916 se o cinema traria um contributo próprio estético e artístico, dife-
rente daquele que era inerente ao teatro. A resposta a esta inquietação é dada ao longo
do livro:o cinema cria leis próprias, baseadas numa estética particular e de todos os
meios narrativos anteriormente criados pelo homem, é o primeiro que efetivamente
incorpora, na sua conceção, os mesmos mecanismos que regulam a perceção humana.
Ou seja, o cinema resulta porque estruturalmente funciona de maneira semelhante
ao nosso aparelho percetivo: vemos filmes como percebemos o mundo à nossa volta,
usando os mesmos mecanismos mentais.
A gramática griffthiana, que influenciou toda a produção cinematográfica
norte-americana e, em certa medida, a mundial, era baseada no mecanismo de identi-
ficação. A imagem de Lilian Gish, atriz fetiche do realizador, em closeup, fascinou mul-
tidões. O closeup, tema recorrente na teoria feminista do cinema, que analisa assim a
erotização do rosto feminino no cinema clássico de Hollywood, faz parte do dispositivo
cinema desde que Edwin S. Porter, em 1903, nos apresenta um homem a atirar sobre
a plateia no filme The Great Train Robbery, considerado um dos primeiros filmes do
cinema que organiza, de forma consciente, o relato, e que utiliza, mesmo que de ma-
neira primária, os princípios da montagem. No caso do filme de Porter, o closeup era
uma espécie de “extra”, que poderia ser exibido no princípio ou no fim do filme e que,
de facto, não pertencia ao relato. Não é o que ocorre com o closeup de Lilian Gish, no
filme Intolerance, de 1916, que pertencem à diegese e que inauguram uma estética que
vai perdurar no cinema clássico, tornando-se uma marca registada dos filmes produ-
zidos em Hollywood.
O rosto, destacado do fluxo narrativo, provoca stasis e cria uma retórica do
não-movimento, uma espécie de pequena morte, um instante de prazer, que justifica
o impulso à escopofilia e reitera o ponto de vista marcadamente masculino deste tipo
de cinema. Apesar da predominância do modelo hollywoodiano, existe uma cinemato-
grafia divergente, muitas vezes periférica, que seguiu outros caminhos, na tentativa de
converter o cinema num lugar possível da poesia. O confronto entre estes dois modos
de se fazer e de se pensar o dispositivo cinema pode ser desvelado através da proposta
de leitura de dois filmes, produzidos em contextos e tempos diversos, mas que utilizam
como elemento morfológico principal, a câmara subjetiva, que nega ao espectador a

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presença no ecrã do rosto dos protagonistas.

A dama do lago

Em 1947, um filme de Robert Montgomery, baseado na obra de Raymond


Chandler, The Lady in the lake, provocou perturbação no universo do cinema clássico,
cuja tónica sempre esteve assente na criação de um discurso da realidade e da proje-
ção. The Lady in the lake é um filme noir e o realizador decidiu transpor a história para
o ecrã utilizando o mesmo estilo da escrita de Chandler: o texto narrado em primeira
pessoa e com uma personagem/narrador omnisciente.
O protagonista do filme, o detetive Philip Marlowe, só nos é mostrado muito
rapidamente no princípio e no final do filme e em breves frames, através de espelhos
ou do reflexo do vidro de uma porta. O filme, como o livro, segue a tendência da lite-
ratura policial hard boiled, herdeira de uma tradição que remonta aos Crimes da Rua
Morgue de Edgar Allan Poe. Essaé a primeira experiência realizada em Hollywood que
leva ao extremo o papel da câmara subjetiva: vemos através dos olhos do detetive e só
vemos o que ele vê. As mãos dele aparecem algumas vezes em cena e a ideia do realiza-
dor era permitir que o espectador sentisse estas mãos como suas. O que não aconteceu.
Aliás, o filme foi um fracasso de bilheteira apesar de toda a promoção que foi feita à sua
volta. Montgomery não percebeu que, para criar a identificação com as personagens
dos ecrãs, é preciso mostrá-las, exibir evidências que, de alguma maneira, elas são de
carne e osso como nós. Jean-Louis Comolli, ao falar do cinema de John Cassavetes
afirma: “El cine es un arte ambicioso. Lo que desea es que el adentro se libre en el afue-
ra. Filmar el exterior para descubrir el interior (…) ” (2007, p. 153). Ora, o processo de
filmagem de The Lady in the lake faz precisamente o contrário: filma o interior para
que se veja o exterior. Ou seja, não vemos a superfície do corpo do ator, só vemos o seu
olhar, a direção que ele toma ou o seu ângulo de visão. Como se estivéssemos dentro da
sua cabeça. Mas, conforme Comolli, para entrar no interior da personagem é preciso
personificá-la, dar corpo ao olhar.
Anos mais tarde, em 1975, a cineasta e escritora Marguerite Duras realiza o
seu IndianSong, cujo argumento provém de uma peça nunca encenada da autora. O fil-
me conta uma história de amor que poderia ser banal, não fosse a opção que Duras faz
de narrar visualmente os diálogos, que se ouvem fora de campo, mas que quase nunca
são mostrados a serem enunciados pelas personagens. Sentimo-nos como alguém que

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ouve uma conversa que não deveria ouvir, como alguém que, inopinadamente está no
lugar errado e participa, à distância, do drama que se desenrola, ao mesmo tempo per-
to e distante de nós. O vazio e o tédio da relação entre a mulher e o marido e a paixão
culpada, mas permitida, entre a mulher e o amante, são representados duplamente:
primeiro pelo texto, que nos conta a história através das personagens cujos diálogos
são quase monólogos; e segundo, pelo vazio do próprio ecrã, pelo papel da câmara que,
neste filme, parece estar sempre fora do sítio.
O filme, rapidamente, transformou-se em obra de culto, sobretudo porque
relembrava, anos depois, o clima de O ano passado em Marienbad, obra de Alain Res-
nais, baseado num guião original de Alain Robbe-Grillet. Como Duras, Resnais não
nos oferece um filme de fácil degustação. A narrativa não segue os meandros, nem as
regras, impostas pelo cinema clássico, rompendo o fluxo espácio-temporal criando no
espectador a sensação de desequilíbrio e de insegurança, pois neste caso ele não domi-
na a narrativa, não sabe o que vem a seguir e muito menos consegue prever como será
o final. Ambos os realizadores fizeram parte da Nouvelle Vague, a nova vaga do cinema
francês, que juntamente com o neorrealismo italiano provocou roturas irreparáveis na
ordem do cinema clássico norte-americano.
O filme de Montgomery apesar de profundamente inovador, pertence à ló-
gica de produção dos estúdios e o realizador não pretendia perturbar os seus especta-
dores, a sua intenção era permitir que o lugar do voyeur, que todo espectador ocupa,
fosse substituído pelo papel de participante ativo da ação, de personagem do filme. O
problema é que o filme existe enquanto imagem, mesmo que o seu processo de signifi-
cação seja um processo mental, os espectadores se veem não apenas na narrativa, mas
precipuamente vestem a pele dos atores, habitam, ou desejam fazê-lo, os corpos que
povoam o ecrã.

Da perceção à identificação

O processo de identificação no cinema dá-se através do reconhecimento de


uma alteridade, o espectador ocupa o lugar do “outro”: “En su parte documental- que
es la marca de su nacimiento y la condición de su invención -,el cine no hace más que
abrir el diafragma de una lente, la sesibilidad de una emulsión (…) a la presencia lu-
minosa del otro, más o menos, es todo el asunto, de ese otro que viene hacia la cámara
tanto como ésta va hacia él.” (COMOLLI, 2007, p. 46). Para Comolli, o outro que vemos

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no ecrã, que é capturado pela câmara, é um corpo que reconhecemos como diverso e
igual. E é na associação entre o que vê e o que é olhado, na crença do milagre efetuado
pela luz que imprime o real no fotograma, que se estabelece uma relação de poder. O
espectador ocupa, normalmente, o lugar do morto, não é ele quem conduz a narrativa
mas é sim conduzido por ela.
O número de espectadores que o cinema norte-americano conseguia atrair
nos seus primórdios foi crescendo, à medida que crescia também a capacidade deste
dispositivo de se tornar mais próximo do real, e paradoxalmente, mais distante. O som
sincrónico e mais tarde o aparecimento da cor, ajudaram o cinema a aproximar-se
do mundo extra-ecrã transformando os seus artifícios paradoxalmente em elementos
de realidade, ou seja, cada novo efeito, ajudava os realizadores a criarem no público
a sensação efetiva de estar diante de uma janela aberta para o mundo. Ao contrário
daquilo que as Vanguardas Históricas preconizaram, ou realizaram com o cinema, os
filmes caminham em direção à normatização e à organização da mise enscène a favor
da duplicação do real e não da criação de novas possibilidades de leitura do mundo.
Os filmes destinados ao grande público (mesmo na era digital, que permite
uma maior plasticidade às imagens e maior versatilidade na montagem, através da
edição) continuam a apostar na narrativa do séc. XIX e na vertente realista do cinema,
entendendo este realismo como a capacidade que o dispositivo tem de dar ao especta-
dor a ilusão de espreitar, através de uma janela, que é o ecrã, um mundo possível, um
duplo da sua própria realidade, ou uma alteridade desejada e desejável.
O antropólogo MassimoCanevacci vai explorar a relação do cinema com a
psique humana empregando não mais as teorias freudianas/lacanianas, optando antes
pela tese do duplo vínculo postulada por Gregory Bateson. “O objeto da teoria do duplo
vínculo estabelece um tecido de mensagens que só têm um significado graças ao con-
texto.” (Canevacci, 1990:41). A mensagem, no cinema, existe dentro de um contexto
que podemos ampliar até chegarmos a um metacontexto que implica o “efeito cinema”,
descrito por Baudry, a estrutura de realização do filme que reproduz mecanismos do
nosso aparelho percetivo, conforme Munsterberg e a associação do cinema, desde os
primórdios, à fotografia que imprimia, nas imagens projetadas, uma ideia de realidade.
No caso do contexto, podemos enumerar o reconhecimento da estrutura dramatúrgica,
que sofreu pequenas variações desde a invenção da gramática do cinema por Griffith,
bem como o embodyment suscitado pela visão dos corpos exibidos no ecrã. Assim, o
espectador reconhece a estrutura mecânica, formal e dramática dos filmes, podendo

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desta forma desenvolver com eles uma relação de duplo vínculo.


De acordo com a teoria desenvolvida por Canevacci, o cinema é o meio per-
feito para se experimentar o modelo do duplo vínculo proposto por Bateson, pois o
espectador vivencia como suas as imagens que aparecem no ecrã, ao mesmo tempo
que está consciente de que aquela não é a sua realidade, mas uma existência que não
lhe pertence e que dificilmente seria concretizável no seu espaço societal. Os estudos
que Bateson desenvolveu com esquizofrénicos e com golfinhos foram, mais tarde, usa-
dos para analisar diversas relações no seio da família, sobretudo no par mãe/filho ou
filha. No fundo a ideia de duplo vínculo necessita de uma “vítima”, o filho (a) e de um
perpetrador, a mãe. A criança percebe muitas vezes que a mãe a manda dormir porque
quer estar sozinha, o que desperta em si um sentimento de rejeição. Ao mesmo tempo,
interpreta a mensagem da mãe literalmente, indo dormir, porque é uma necessidade
e não porque a mãe já não a quer por perto. A criança fica assim vinculada à mãe que
transmite mensagens de “duas ordens, “uma das quais nega a outra”” (CANEVACCI,
idem: 39). Para evitar o sentimento de perda provocado pela primeira interpretação, a
criança escolhe enganar-se, discriminando de forma errada os sinais que a mãe emite.
Em casos extremos, o dos esquizofrénicos, a criança perde a capacidade de “comunicar
sobre a comunicação, pelo que se torna incapaz de determinar o verdadeiro significado
do que os outros dizem e de exprimir o que ela mesma entende (…) ”. (idem: 40).
No cinema, o espectador ocupa o lugar da criança que se engana a si mes-
ma para obter prazer do filme e não se sentir frustrado por perceber que, claramente,
o que tem à sua frente é uma mentira e uma impossibilidade. Assim, reconhecendo o
contexto em que se encontra, responde positivamente ao “efeito-cinema” deixando-se
enredar pelas emoções simuladas no ecrã e vivenciando-as como se fossem dele.

O não-discurso do cinema

No caso do cinema, o modelo canónico é aquele aperfeiçoado por Griffith


e reiterado ao longo da história do séc. XX, através dos closesups das estrelas que po-
voaram, e que ainda povoam, o imaginário mundial, gerando modelos desejosamente
especulares, mas que são frustrados quando confrontados com a realidade de cada
espectador ou do público em geral. O espectador, como a criança de Bateson, sofre por
perceber que o que vê não existe, mas aparentemente está no mundo dos possíveis,
porque parece real, porque reproduz mimeticamente os corpos e porque todo o cine-

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ma, seja documental ou ficção, é sempre um documento de um corpo que foi fotogra-
fado ou gravado, que esteve, em dado momento, na presença da câmara que o captou.
A experiência limite do filme The Lady in the lake foi repetida, diversas
vezes, com algum êxito, no cinema hollywoodiano: o uso da câmara subjetiva, ocupan-
do o lugar do sujeito/personagem, aparece em filmes de terror, aumentando assim a
sensação de imersão e excitando ainda mais a imaginação do espectador, sensações
que este género deseja proporcionar. Nenhuma outra experiência, no entanto, foi tão
longe como o filme de Montgomery porque o cinema da “identificação” percebeu rapi-
damente que precisa de um corpo para que o efeito especular se realize.

Viajo porque preciso

Em 2009, dois cineastas brasileiros repetem a experiência de Montgomery


e realizam um filme cujo personagem é o que vê, é o que narra, é o que conduz a histó-
ria, mas que nunca é visto. O filme, Viajo porque preciso volto porque te amo, é uma
espécie de road movie que se passa no Nordeste do Brasil, dando-nos a ver o interior
quase desconhecido desta parte do país, bem como apresenta uma série de persona-
gens que são, ao mesmo tempo, parte da ficção e habitantes das cidades e vilarejos por
onde passa o protagonista numa viagem que, a princípio, parece ser apenas de trabalho
mas que logo se revela uma viagem simbólica e circular, que reflete uma tentativa im-
possível de fuga que a personagem, primeiro inconscientemente e, mais tarde, bastan-
te consciente, se propõe realizar.
Ao contrário do filme noir, The lady in the lake, inspirado na escrita de Ray-
mond Chandler, Viajo porque preciso (…) é quase um filme documental dado a pouca
qualidade da captação de algumas imagens e do som, que às vezes é feito em tomadas
diretas, o que dificulta ao público a perceção do que se diz, mas que ajuda a amplificar
a impressão de realidade que o filme impõe. José Renato, o protagonista, é geólogo e
foi enviado para realizar uma pesquisa, que o obriga a atravessar todo o sertão nordes-
tino. A sua missão é avaliar o possível percurso de um canal que será feito, desviando
as águas do único rio caudaloso da região. Ouvimos a sua voz a conduzir-nos cada vez
mais para dentro de um espaço desconhecido e quase desabitado, ao mesmo tempo em
que o acompanhamos na sua carrinha, pelas estradas, ouvindo a rádio que ele ouve e
sendo testemunhas das suas reflexões.
Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, os autores, realizaram esta obra a partir de

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outro filme que estavam a produzir, motivados por suas próprias descobertas no e do
sertão nordestino e com restos de cenas que gravaram e que acabaram por não utilizar.
José Renato, o geólogo que acompanhamos durante toda a diegese, fala-nos do que
vê, sem que sua fala tenha um caráter reiterativo ou de ratificação do visto; o que ele
faz é dar-nos a ver, através do seu olhar, personagens e lugares que perturbam, e que
enriquecem, a sua viagem. A câmara é subjetiva e nunca vemos, nem mesmo através
de reflexos, a personagem única e principal. O cinema, neste caso, consegue simular
a ideia de documento, o que é exibido é o que o geólogo capta no seu percurso, mas
esquecemo-nos que alguém, que não está na diegese, capta a imagem da personagem e
dá-nos a ver o que ele, aparentemente, vê. Conforme Emile Benveniste, ao falar do ci-
nema em geral, “Os acontecimentos são dispostos como se estivessem se produzindo à
medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui. Os acontecimentos
parecem se narrar a eles próprios.” (1966, p. 241). Neste filme, sentimos de maneira
mais intensa esta presença, ou melhor, esta ausência do “grande narrador” extra-die-
gético que constrói a narrativa. Participamos da construção da própria história, ou
assim o sentimos, desde que a carrinha de José Renato aparece no ecrã e desde que
ouvimos a sua voz.
O filme brasileiro e o norte-americano não são comparáveis. Não só pela
distância espácio-temporal que existe entre ambos, bem como pelas estruturas de pro-
dução e, finalmente, pela intenção dos autores. O filme de Montgomery experimentava
num território minado pela ordem canónica de formas estritas de representação; o fil-
me de Aïnouz e Gomes pertence ao espaço mais plástico e permissivo do cinema expe-
rimental. A história que The Lady in the lake nos conta é convencional na sua estrutura
narrativa, apesar de não o ser na sua forma, por isto o incômodo causado na altura da
sua exibição, e a receção fria do público que já estava acostumado a um modelo esta-
belecido e tinha muita dificuldade em desfrutar perversamente, neste filme, do duplo
vínculo que o cinema propõe, negando e afirmando a realidade daquilo que mostra.
No caso de Viajo porque preciso (…) o público já acompanhou a destruição
e a reinvenção do cânone e também já se adaptou aos novos dispositivos digitais que
permitem uma edição mais sincopada e veloz das imagens; por outro lado, o filme se
apresenta a partida como não convencional, como um quase-documentário, o que per-
mite mais facilmente a adesão à sua forma e ao uso que faz da câmara subjetiva, pois
subsumimos que no cinema documental o autor deve estar presente o mínimo possí-
vel, deixando que a história, que os eventos se narrem a si próprios. Por outro lado,

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enquanto no filme norte-americano assistimos a uma história fechada, teleológica e
previsível, no filme brasileiro assistimos a um percurso, que se desenrola diante dos
nossos olhos, que nos mostra um ambiente em que a maioria de nós não se revê, mas
consegue que o público se reveja naquilo em que o filme se transforma: uma metáfo-
ra do vazio, dos descaminhos, das histórias de amor com finais infelizes, da errância
humana sobre a terra e, internamente, dentro de si mesma, à procura de respostas e
daquilo que é o fito último de cada um: ir ao encontro de uma felicidade possível.
Viajo porque preciso (…) aproxima-se mais da proposta de Duras que ten-
tou, com IndianSong, ao criar um filme atemporal, que representasse não apenas aque-
la história de amor, mas todos os triângulos amorosos do mundo, todas as situações
de angústia provocadas pela manutenção de uma relação que se sabe, à partida, con-
denada. O processo de identificação nestes filmes ocorre por causa dos princípios que
eles enunciam, e não pelas histórias que contam. Neste caso, o corpo da personagem,
ou das personagens, pode estar ausente porque é preenchido pelo corpo do espectador
que sente como e através do filme.
Assim temos que a relação de identificação com o cinema não se dá apenas
através da (falsa) especularidade dos corpos, mas também ocorre quando um filme
apela a sentimentos arquetípicos, propondo ao espectador um lugar ativo na história.
O que só ocorre, verdadeiramente, no cinema que podemos chamar de “divergente”,
de não canónico. Mas este tipo de cinema ainda atinge um público pequeno diante dos
muitos milhões que consomem o modelo norte-americano e que, como tal, continu-
am a desfrutar do gozo perverso do duplo vínculo, do saber-se não representado mas
continuar acreditando que se vê no ecrã, replicando comportamentos e modelos que
ocultam uma ideologia específica e que suscita, paulatinamente, a normatização dos
comportamentos e cria uma sensação real, embora distorcida, de pertença.

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