Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mirian Tavares1
Abstract: Through the analysis of a morphological aspect of the cinematographic device, the
subjective camera, I try to present divergent models of canon use and alternative processes of
projection / identification by the image.The use of the subjective camera is usually associated
with moments of great tension when the viewer is expected to be more closely connected to the
screen: we see through the eyes of the characters and thus increase the sense of involvement
and presence of the film in us and of ourselves within the diegetic space. Rarely is the subjecti-
ve camera used throughout the film, thus erasing the body of the screen characters because it
is known that the world of images is the world of seduction and recognition given by the pro-
jection. We must not forget that the screen image is an ideological construct that is part of the
Western artistic tradition. Artists of the early twentieth century sought to demystify the canon
and demonstrate that everything in art was always the result of a specific idea. This model of
representation, denied by the avant-gardes, has been absorbed by photography and cinema,
and despite the divergent discourses that now cross Western canonical discourse, reproduc-
tions and replications of this model still exist within and outside the European space.
Introdução
Hugo Munsterberg, que escreveu uma obra pioneira sobre o cinema, per-
guntava-se em 1916 se o cinema traria um contributo próprio estético e artístico, dife-
rente daquele que era inerente ao teatro. A resposta a esta inquietação é dada ao longo
do livro:o cinema cria leis próprias, baseadas numa estética particular e de todos os
meios narrativos anteriormente criados pelo homem, é o primeiro que efetivamente
incorpora, na sua conceção, os mesmos mecanismos que regulam a perceção humana.
Ou seja, o cinema resulta porque estruturalmente funciona de maneira semelhante
ao nosso aparelho percetivo: vemos filmes como percebemos o mundo à nossa volta,
usando os mesmos mecanismos mentais.
A gramática griffthiana, que influenciou toda a produção cinematográfica
norte-americana e, em certa medida, a mundial, era baseada no mecanismo de identi-
ficação. A imagem de Lilian Gish, atriz fetiche do realizador, em closeup, fascinou mul-
tidões. O closeup, tema recorrente na teoria feminista do cinema, que analisa assim a
erotização do rosto feminino no cinema clássico de Hollywood, faz parte do dispositivo
cinema desde que Edwin S. Porter, em 1903, nos apresenta um homem a atirar sobre
a plateia no filme The Great Train Robbery, considerado um dos primeiros filmes do
cinema que organiza, de forma consciente, o relato, e que utiliza, mesmo que de ma-
neira primária, os princípios da montagem. No caso do filme de Porter, o closeup era
uma espécie de “extra”, que poderia ser exibido no princípio ou no fim do filme e que,
de facto, não pertencia ao relato. Não é o que ocorre com o closeup de Lilian Gish, no
filme Intolerance, de 1916, que pertencem à diegese e que inauguram uma estética que
vai perdurar no cinema clássico, tornando-se uma marca registada dos filmes produ-
zidos em Hollywood.
O rosto, destacado do fluxo narrativo, provoca stasis e cria uma retórica do
não-movimento, uma espécie de pequena morte, um instante de prazer, que justifica
o impulso à escopofilia e reitera o ponto de vista marcadamente masculino deste tipo
de cinema. Apesar da predominância do modelo hollywoodiano, existe uma cinemato-
grafia divergente, muitas vezes periférica, que seguiu outros caminhos, na tentativa de
converter o cinema num lugar possível da poesia. O confronto entre estes dois modos
de se fazer e de se pensar o dispositivo cinema pode ser desvelado através da proposta
de leitura de dois filmes, produzidos em contextos e tempos diversos, mas que utilizam
como elemento morfológico principal, a câmara subjetiva, que nega ao espectador a
A dama do lago
ouve uma conversa que não deveria ouvir, como alguém que, inopinadamente está no
lugar errado e participa, à distância, do drama que se desenrola, ao mesmo tempo per-
to e distante de nós. O vazio e o tédio da relação entre a mulher e o marido e a paixão
culpada, mas permitida, entre a mulher e o amante, são representados duplamente:
primeiro pelo texto, que nos conta a história através das personagens cujos diálogos
são quase monólogos; e segundo, pelo vazio do próprio ecrã, pelo papel da câmara que,
neste filme, parece estar sempre fora do sítio.
O filme, rapidamente, transformou-se em obra de culto, sobretudo porque
relembrava, anos depois, o clima de O ano passado em Marienbad, obra de Alain Res-
nais, baseado num guião original de Alain Robbe-Grillet. Como Duras, Resnais não
nos oferece um filme de fácil degustação. A narrativa não segue os meandros, nem as
regras, impostas pelo cinema clássico, rompendo o fluxo espácio-temporal criando no
espectador a sensação de desequilíbrio e de insegurança, pois neste caso ele não domi-
na a narrativa, não sabe o que vem a seguir e muito menos consegue prever como será
o final. Ambos os realizadores fizeram parte da Nouvelle Vague, a nova vaga do cinema
francês, que juntamente com o neorrealismo italiano provocou roturas irreparáveis na
ordem do cinema clássico norte-americano.
O filme de Montgomery apesar de profundamente inovador, pertence à ló-
gica de produção dos estúdios e o realizador não pretendia perturbar os seus especta-
dores, a sua intenção era permitir que o lugar do voyeur, que todo espectador ocupa,
fosse substituído pelo papel de participante ativo da ação, de personagem do filme. O
problema é que o filme existe enquanto imagem, mesmo que o seu processo de signifi-
cação seja um processo mental, os espectadores se veem não apenas na narrativa, mas
precipuamente vestem a pele dos atores, habitam, ou desejam fazê-lo, os corpos que
povoam o ecrã.
Da perceção à identificação
O não-discurso do cinema
outro filme que estavam a produzir, motivados por suas próprias descobertas no e do
sertão nordestino e com restos de cenas que gravaram e que acabaram por não utilizar.
José Renato, o geólogo que acompanhamos durante toda a diegese, fala-nos do que
vê, sem que sua fala tenha um caráter reiterativo ou de ratificação do visto; o que ele
faz é dar-nos a ver, através do seu olhar, personagens e lugares que perturbam, e que
enriquecem, a sua viagem. A câmara é subjetiva e nunca vemos, nem mesmo através
de reflexos, a personagem única e principal. O cinema, neste caso, consegue simular
a ideia de documento, o que é exibido é o que o geólogo capta no seu percurso, mas
esquecemo-nos que alguém, que não está na diegese, capta a imagem da personagem e
dá-nos a ver o que ele, aparentemente, vê. Conforme Emile Benveniste, ao falar do ci-
nema em geral, “Os acontecimentos são dispostos como se estivessem se produzindo à
medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui. Os acontecimentos
parecem se narrar a eles próprios.” (1966, p. 241). Neste filme, sentimos de maneira
mais intensa esta presença, ou melhor, esta ausência do “grande narrador” extra-die-
gético que constrói a narrativa. Participamos da construção da própria história, ou
assim o sentimos, desde que a carrinha de José Renato aparece no ecrã e desde que
ouvimos a sua voz.
O filme brasileiro e o norte-americano não são comparáveis. Não só pela
distância espácio-temporal que existe entre ambos, bem como pelas estruturas de pro-
dução e, finalmente, pela intenção dos autores. O filme de Montgomery experimentava
num território minado pela ordem canónica de formas estritas de representação; o fil-
me de Aïnouz e Gomes pertence ao espaço mais plástico e permissivo do cinema expe-
rimental. A história que The Lady in the lake nos conta é convencional na sua estrutura
narrativa, apesar de não o ser na sua forma, por isto o incômodo causado na altura da
sua exibição, e a receção fria do público que já estava acostumado a um modelo esta-
belecido e tinha muita dificuldade em desfrutar perversamente, neste filme, do duplo
vínculo que o cinema propõe, negando e afirmando a realidade daquilo que mostra.
No caso de Viajo porque preciso (…) o público já acompanhou a destruição
e a reinvenção do cânone e também já se adaptou aos novos dispositivos digitais que
permitem uma edição mais sincopada e veloz das imagens; por outro lado, o filme se
apresenta a partida como não convencional, como um quase-documentário, o que per-
mite mais facilmente a adesão à sua forma e ao uso que faz da câmara subjetiva, pois
subsumimos que no cinema documental o autor deve estar presente o mínimo possí-
vel, deixando que a história, que os eventos se narrem a si próprios. Por outro lado,
Referências