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O chão começou a tremer.

A pressão se acumulava na cabeça de Nobambo,


ameaçando explodir-lhe os ouvidos. A eletricidade estalava no ar, os pelos do
corpo de Nobambo se arrepiaram e, por um breve e enlouquecedor instante,
parecia que a própria realidade estava se desfazendo.

Enquanto Nobambo assistia ao terrível espetáculo, por um breve segundo os


degradados reunidos se separaram em várias imagens espelhadas: algumas mais
velhas, outras mais jovens, algumas não degradadas, mas sim bastante saudáveis
e não afetadas. E, então, a ilusão se foi. O chão se moveu como se Nobambo
estivesse sobre um carro que, de repente, começara a se mover. Ele e os demais
foram lançados à lama e ali ficaram enquanto o tremor continuava.

Após alguns momentos, o tremou diminuiu gradualmente até finalmente parar.


Korin estava com os olhos arregalados e fixos na fenda, que agora se fechava, e
só conseguiu sussurrar:

– Nosso mundo está chegando ao fim.

O mundo deles não acabou. Mas chegou perto disso.

Quando, no dia seguinte, Nobambo retornou ao seu lugar de costume no alto das
montanhas, avistou um horizonte enlouquecido. Fumaça se espalhava pelo céu,
lançando uma nuvem negra sobre a terra. O ar queimava-lhe os pulmões. Na base
do penhasco, uma fissura gigante se abrira e emanava vapor. Nobambo se
inclinou e viu um brilho fraco no fundo da fissura.

Grandes pedaços de terra foram arrancados do solo desértico e flutuavam


inexplicavelmente no ar. Partes do céu pareciam como que janelas para... algo.
Nobambo tinha a impressão de conseguir vislumbrar outros mundos através das
aberturas, alguns distantes, outros próximos, mas não sabia dizer se eram reais
ou alguma ilusão provocada pela catástrofe.

E, por todo canto, em todo lugar, imperava um silêncio quase absoluto, como se
as criaturas da região tivessem morrido ou fugido para algum esconderijo remoto.
Mesmo assim, Nobambo sentia que não estava só. Por um breve instante, pensou
ter apanhado um movimento furtivo com o canto do olho. Olhou ao redor, em parte
esperando encontrar Korin.

Nada. Apenas um truque da sua mente perturbada.

Nobambo olhou mais uma vez para a paisagem horrenda à frente e se perguntou
se o futuro próximo traria o fim de tudo que ele conhecia.

Mas o tempo passou e a vida, tal como estava, seguiu adiante. Relatórios
chegavam ao acampamento sobre regiões inteiramente destruídas. Mas o mundo
sobrevivera.

Sofrido, deformado e atormentado... Assim o mundo sobrevivera, como os


degradados. Eles comiam nozes e raízes e os poucos peixes que conseguiam
encontrar no pântano. Ferviam a água e se abrigavam de tempestades diferentes
de todas já vistas, mas sobreviveram. À medida que as estações passaram, os
animais retornaram. Alguns de espécies que não existiam antes. Mas, sim, a
fauna retornou. Quando os degradados tinham a sorte de uma caçada
bem-sucedida, comiam carne. Eles sobreviveram.

Ao menos, a maioria deles. Há alguns dias, Herac desaparecera. Ele andava


distante e confuso havia muitos meses e, apesar de Korin não comentar o
assunto, tanto ela quanto Nobambo sabiam que ele estava perto de se juntar aos
perdidos. Herac era o último dos protetores de Korin em Shattrath, e Nobambo
lamentava a perda por que ela passara.

E, apesar de não falar a respeito, Nobambo se perguntava se também poderia


perder o controle da própria sanidade e partir pelo desconhecido para nunca
voltar, tornando-se pouco mais do que uma memória, se tanto.

O krokul continuou a vigília diária, peregrinando ao remoto topo da montanha, de


alguma forma mantendo a esperança de que, um dia, se ele cumprisse o castigo e
fizesse por merecer tal graça, a Luz voltaria a brilhar sobre seu espírito.

Todos os dias, Nobambo voltava decepcionado ao acampamento.

E, todas as noites, ele sofria com o mesmo pesadelo terrível.

Nobambo via-se em frente a Shattrath, batendo os punhos contra os portões


fechados enquanto os gritos dos moribundos se estilhaçavam na atmosfera da
noite. Sua mente consciente sabia que isso não passava de mais um sonho, outro
pesadelo, e se perguntava se, desta vez, tudo se passaria igual a todas as outras.

O krokul batia repetidamente contra a madeira até as mãos machucadas


começarem a sangrar. Lá dentro, crianças e mulheres morriam de forma lenta e
horrível. Um a um, os gritos cessavam até restar apenas um último lamento
atormentado. Ele reconhecia aquele choro: era a voz que ecoara pela Mata
Terokkar quando ele escapou da cidade.

Mas esse lamento logo cessava também, e nada restava além do silêncio.
Nobambo se afastava dos portões, olhando para o próprio corpo frágil, deformado
e imprestável. Ele tremia e chorava, aguardando o inevitável despertar.
Um rangido ecoou enquanto os portões se abriam lentamente. Nobambo olhou
para cima com os olhos arregalados. Isso nunca acontecera antes. Isso era novo.
Qual seria o significado disso?

As enormes portas revelaram um Bairro Inferior vazio, as paredes e as muralhas


internas iluminadas por uma única e grande fogueira.

Nobambo entrou, atraído pelo calor das chamas. Olhou ao redor, mas não havia
corpos, nenhum sinal da carnificina além de algumas armas abandonadas em
torno da fogueira.

Um trovão soou levemente e Nobambo sentiu uma gota de chuva no braço. Deu
mais um passo à frente e os portões gigantes se fecharam atrás dele.

Então, ouviu ruídos, algo se arrastando do outro lado da fogueira,


aproximando-se. Ele não carregava arma alguma, nem sequer a bengala, e saber
que se tratava de um sonho em nada aliviou-lhe a sensação de perigo.
Preparou-se para agarrar um tição da fogueira quando viu uma draenaia se
aproximar da luz.

A chuva persistia.

Nobambo sorriu de início, feliz em ver que um deles havia sobrevivido, mas o
sorriso logo se foi quando viu que ela ostentava um corte sangrento na garganta e
hematomas pelo corpo. O braço esquerdo dela estava dependurado e inútil. Ela o
encarava com olhos vazios, mas havia algo mais no semblante dela... algo de
acusação. À medida que a draenaia se aproximava, Nobambo percebeu que se
tratava de Shaka. Logo, outras se juntaram a ela, multidões delas, cambaleando
adiante, pelos dois lados, com os olhos vitrificados e os corpos terrivelmente
mutilados.

O vento se intensificou, atiçando o fogo. A chuva se tornou um temporal. Uma a


uma, as mulheres se abaixavam para pegar as várias armas dispostas pelo chão
de terra e avançavam. Nobambo agarrou uma tocha da fogueira.

“Eu queria ter salvado vocês! Não havia nada que eu pudesse fazer”, ele queria
gritar, mas as palavras não saíam. Sentia os movimentos lentos e restritos.

O vento tornou a soprar forte e apagou a tocha que Nobambo carregava. As


mulheres chacinadas se aproximavam com as armas erguidas enquanto o vento
lambia as chamas da fogueira até ela também se apagar, deixando Nobambo na
escuridão total.

Ele esperou, ouvindo... tentando escutar os sons da aproximação delas em meio à


tempestade.

Subitamente, uma mão gélida se fechou em torno do pulso de Nobambo, que


gritou...

E despertou, sentindo-se exausto, mais cansado do que ao deitar. Esses sonhos


lhe eram custosos.

Nobambo decidiu que o ar da manhã haveria de lhe fazer algum bem. Talvez
Korin estivesse acordada e eles pudessem conversar.

Nobambo saiu e foi até onde alguns dos demais estavam reunidos para a refeição
matinal. Perguntou se algum dos novos membros sabia onde estava Korin.

– Ela partiu.

– Partiu? Para onde? Quando?

– Há alguns instantes. Ela não disse para onde. Ela estava estranha... disse que
ia... Qual é mesmo a palavra?

O degradado parou momentaneamente, pensou e, então, fez que sim com a


cabeça ao lembrar.

– É isso. Ela disse que ia flutuar.

Nobambo correu o mais rápido que as pernas permitiam. Mas, quando conseguiu
chegar nos picos, seus pulmões estavam em chamas. Ele tossia e expelia muco
verde e espesso, e suas pernas tremiam descontroladamente.

No platô que levava ao penhasco, Nobambo viu Korin de pé perante o abismo,


olhando para baixo.

– Korin! Pare!

Ela olhou para trás, esboçou o mais sutil dos sorrisos e, então, olhou para a frente
e deu um passo silencioso ao vazio, desaparecendo em meio a uma densa nuvem
de vapor.

Nobambo aproximou-se do abismo e olhou para baixo, mas viu nada além
daquele brilho fraco muito distante.

“Você chegou tarde demais.”

Mais uma vez, ele falhara, assim como falhou em salvar as mulheres de Shattrath.
Nobambo cerrou os olhos com firmeza e chamou a Luz com a mente: “Por quê?
Por que você me abandonou? Por que você continua a me atormentar? Não fui
seu servo fiel?”

Ainda nenhuma resposta. Apenas uma brisa gentil enxugando-lhe as lágrimas do


rosto.

Talvez Korin estivesse certa. Nobambo sabia, no fundo, exatamente por que ela
fez o que fez: não queria acabar como os perdidos. Talvez ela tenha encontrado a
única saída.

Este mundo não tinha mais coisa alguma para ele. Parecia tão fácil dar esses
últimos passos, lançar-se abismo adentro e dar um basta ao sofrimento.

Perto dali, uma figura saiu de trás de um monte de pedras e se preparou para
chamar...

Mas, mesmo agora, renegado pelo próprio povo, ignorado pela Luz, atormentado
pelas almas daqueles que não conseguira salvar... Nobambo percebeu que
desistir não era uma opção.

A brisa, então, virou ventania, espalhando nuvens de vapor e soprando com tanta
força que Nobambo foi afastado do precipício. Em meio a isso, ele ouviu
claramente uma única palavra:

– Tudo...

Nobambo se esforçou para ouvir. Por certo sua sanidade chegara ao fim. Por
certo isso era uma ilusão da sua mente.

A figura próxima às pedras tornou a se esconder, continuando a observar


silenciosamente.

O vento se intensificou cada vez mais. – Tudo que é...

Mais palavras. Que loucura era essa? Isso não era coisa da Luz. A Luz não
“falava”: ela era um calor que permeava o corpo. Isso era algo novo, algo
diferente. Uma rajada de vento atravessou o platô, forçando Nobambo a se sentar.

– Tudo que existe... tem vida.

Depois de implorar por todos esses anos, Nobambo finalmente recebera uma
resposta, uma resposta que não viera da Luz...

Mas do vento.

Nobambo já ouvira falar de práticas órquicas que lidavam com os elementos: terra,
vento, fogo e água. O povo dele testemunhara alguns dos poderes desses
“xamãs” antes da campanha assassina dos orcs, mas tais coisas eram totalmente
estranhas para os draeneis.

Ao longo dos vários dias seguintes, Nobambo retornou ao pico onde ouvira o
vento sussurrando garantias de que não estava só, promessas e a irresistível
sugestão de que uma fartura de conhecimento o aguardava. Por vezes, a voz do
vento era calma e apaziguadora; outras, era insistente e invasora. Enquanto isso,
uma dúvida persistia na mente de Nobambo: talvez ele estivesse enlouquecendo,
afinal de contas.

No quinto dia, ao sentar-se novamente à beira do penhasco, Nobambo escutou


um estrondo que pareceu-lhe um trovão, embora o céu estivesse limpo. O krokul
abriu os olhos e percebeu uma enorme coluna de fogo brotando da fissura no solo
e elevando-se para além do cume da montanha. As chamas se espalharam, e
naquele bruxulear de fogo Nobambo enxergou formas nebulosas
metamorfoseando-se contra a luz. O fogo falou, ribombante como uma
tempestade:

– Vá às montanhas de Nagrand. Por entre os picos você encontrará o lugar...


onde sua verdadeira jornada se iniciará.

Nobambo pensou alguns instantes antes de responder:

– Para chegar lá, terei que atravessar as terras dos incólumes, por onde não
posso passar.

O krokul sentiu o rosto afogueado, conforme as chamas inflamavam-se ainda


mais:

– Não questione a oportunidade que lhe está sendo dada!

O fogo arrefeceu e continuou:

– Caminhe com a cabeça erguida, pois você não mais está sozinho.

Não muito longe dali, o observador agachou-se atrás de um esconderijo. Embora


não fosse possível escutar os elementos, as labaredas e as imagens bruxuleantes
eram claramente visíveis. Se Nobambo pudesse olhar nos olhos do vigia naquele
instante, teria visto puro assombro.

Nos dias seguintes, Nobambo cumpriu a árdua travessia sentindo o vento


soprando-lhe às costas e sussurrando-lhe o tempo todo. Descobriu que os xamãs
órquicos comungavam com os elementos, mas que tal união rompeu-se quando
os orcs voltaram-se para a magia negra. O krokul poderia ter aprendido mais,
contudo nem sempre conseguia entender a mensagem por inteiro, como se a
comunicação estivesse filtrada ou restrita.

Por diversas vezes Nobambo pensou ouvir passos atrás de si, e sempre que
procurava a origem do ruído tinha a impressão de que alguém ou alguma coisa
escondia-se. Perguntava-se se seriam os elementos ou mero fruto de sua
imaginação.

Ao chegar ao acampamento dos incólumes, o sol já havia se posto há tempos. No


entanto, a aproximação certamente fora percebida, pois dois guardas o
aguardavam nos limites do território.

– O que queres aqui? – indagou o guarda mais forte.

– Meu propósito é apenas chegar às montanhas.

Outros membros do acampamento surgiram, observando Nobambo com


desconfiança.

– Nossas ordens são claras: é proibida a presença de krokuls nos campos. Terás
de ir a outro lugar.

– Não quero permanecer no seu acampamento, apenas atravessá-lo – Nobambo


retrucou dando um passo à frente.

O guarda empurrou Nobambo:

– Eu avisei que...

Um ensurdecedor trovão interrompeu-o, e nuvens negras tomaram o céu claro,


despejando um dilúvio. O vento gentil que impulsionou Nobambo agora soprava
com fantástica violência, empurrando os guardas para trás. Surpreendentemente,
o vento e a chuva desviavam-se de Nobambo e açoitavam apenas os guardas,
que caíram na lama.

O krokul observou tudo com os olhos arregalados de espanto:

– Então isso é o que acontece – refletiu em voz alta, sorrindo – quando se tem os
elementos como aliados.

Os membros do acampamento correram para as cavernas. Os guardas


paralisaram-se de medo. Nobambo prosseguiu lentamente apoiando-se no cajado,
atravessou o acampamento e, por fim, chegou ao sopé das montanhas, deixando
para trás draeneis estarrecidos, amedrontados e confusos.

A criatura que vinha seguindo Nobambo saiu do esconderijo atrás de um


cogumelo gigante. Não ousaria avançar pois, afinal de contas, era um krokul.

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