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Weverton Gomes – Info 3

1.

Eu diria que minha experiência com o racismo estrutural é estranha, pois apesar de estar
inserido bem no meio de suas ramificações minha vida inteira acabei demorando anos para
compreender suas causas e consequências na sociedade atual. Para que essa afirmação faça
sentido acho importante devagar sobre minha infância e as experiências que tive até entender
que a sociedade discriminava com base em raça.

Meus pais ambos nasceram em Minas Gerais, meu pai veio de uma família com muuuita terra,
todo mundo branquinho, clássica família de latifundiários. A família da minha mãe também
tem terras, porém numa escala menor, e são todos pardos, “puxaram para o lado” da minha
avó, já que meu avô também é branquinho. Dessa união nasci eu, também branquinho, um
pouco depois que meus pais se mudaram para o Espírito Santo.

Desde antes de um ano de vida sempre vivemos num bairro periférico, porém eu não tive
muito contato com o mundo exterior até começar a ir para a escola, antes disso o único
contato fora de casa que eu tinha frequentemente era com a família do irmão do meu pai, que
também havia se mudado para cá e também eram todos branquinhos. Quando comecei a ir
para a escola, pública claro, admito que meu eu de 6 anos ficou meio surpreso por que todo
mundo era tão diferente, e haviam poucas crianças brancas como eu, porém essa dúvida não
durou nem um dia já que fiquei focado em fazer amiguinhos.

Essa experiência basicamente condiz com o resto, e a medida que fui progredindo pelo
fundamental, até o 8 ano, sempre houveram poucas crianças brancas. Meus amigos
costumavam gostar de me beliscar e apertar para ver minha pele mudar de cor, ou me deixar
com vergonha ou irritado para que eu ficasse vermelho, não entendia o porquê, mas hoje
compreendo que eles provavelmente não estavam acostumados com essas mudanças. Nos
anos mais superiores do fundamental eu ouvia meus amigos falarem sobre parentes sendo
parados pela polícia, sobre levarem olhares estranhos dos policiais nas ruas, ou sobre como
pessoas atravessavam a rua para evitar seus pais/irmãos e coisas assim. Eu sabia o que era
racismo, claro, porém não tinha experiência alguma com isso, só sabia da palavra mesmo,
então nunca consegui compreender essas coisas, nem conecta-las ao racismo.

Eu diria que nessa época eu vivia dentro de uma bolha, além de, é claro, ser uma criança
inocente. Depois de tantos anos assim eu já havia me acostumado a ser uma das 5-6 (as vezes
mais, as vezes menos) crianças brancas de minhas classes, e nem questionava mais o porquê
de esse ser o caso, simplesmente aceitava. Quando cheguei no 9 ano, porém, as coisas
mudaram muito. Um amigo, que por sinal era branco, comentou que estava fazendo um curso
preparatório para entrar no IFES e, assim como o resto da turma toda, eu nunca tinha ouvido
falar nisso. Após uma breve explicação me interessei, e decidi começar o curso também. Essa
foi a primeira vez que eu comecei a sair do meu bairro com frequência, e ao conhecer a classe
eu percebi que a realidade havia se invertido. Ao contrário da escola, 95% da sala era branca, e
a vivência dessas pessoas era completamente diferente. Nesse um ano de curso eu expandi
meus horizontes muito, e comecei a questionar e compreender por que as coisas eram tão
diferentes ali.

Após isso veio o IFES, e foi aí que eu realmente encarei a realidade, já que agora era impossível
de não conectar os pontos. Foi a primeira vez que tive um espaço onde haviam conversas
dedicadas a discutir questões sociais e problemas como o racismo, e por isso comecei a olhar
para o passado e pensar. Lembrando das coisas que vi e ouvi fica claro que, mesmo que eu não
soubesse, o racismo sempre esteve a minha volta. Todos aqueles relatos dos meus amigos de
infância, as experiências deles, suas vivências, por que eu não entendia nada daquilo? Por que
ninguém da minha família nunca tinha sido parado pela polícia? Por que nunca nem batiam o
olho em mim? Por que não atravessavam a rua para me evitar? Por que não me encaravam
quando eu ia para algum local mais “nobre”? Por que nunca haviam muitas crianças brancas
em minhas classes do fundamental? Mesmo tendo convivido nesse meio minha vida toda
parecia que eu tinha tido uma experiência completamente diferente do resto. A resposta para
todas essas perguntas era clara, estava na minha frente o tempo todo, e eu nunca tinha
refletido o suficiente para entender isso.

Depois de toda essa elongação desnecessária finalmente chegamos as perguntas.

Se me perguntassem como o racismo estrutural me afeta a uns anos atrás eu responderia que
não me afeta. Claro que eu não saberia nem o que é isso, porém supondo que eu soubesse me
pareceria que isso não teria nada a ver comigo, já que eu nunca sofri racismo. Porém como
hoje sei que tive uma experiência bem diferente da grande maioria das outras crianças
percebo que isso não podia estar mais errado. O fato de que a polícia raramente notava minha
existência já me deixa abismado hoje. Lembro que eu tinha um amigo que morria de medo dos
policiais. Não me recordo exatamente o porquê, porém não entendia isso. Para mim o policial
era sempre bom, me protegia dos bandidos, e todas as vezes que eu interagi com policiais eles
sempre foram legais comigo, então por que alguém teria medo da polícia, não é mesmo?

Se eu decidir que quero caminhar na praia da costa, ninguém vai questionar o fato de eu estar
lá, não vão me evitar e ninguém chamaria a polícia, eu não seria suspeito. O fato de que isso é
considerado uma “vantagem” e que se dá pela cor da minha pele é deprimente, considerando
que todos deviam ser tratados assim. O racismo estrutural me proporcionou uma vivência
diferente de 95% dos meus amigos de infância, e o pior é que isso foi positivo para mim. Nunca
tive de preocupar com brutalidade policial, morava e ainda moro basicamente ao lado de uma
delegacia, nunca fui assaltado e a cor da minha pele nunca foi motivo de desvantagem social. É
inegável que ser branco tornou minha vida mais segura e aproveitável, e apesar disso em si ser
positivo para mim o fato de que isso ocorre mostra que há um problema em nossa sociedade,
um que tem suas raízes em séculos de opressão e discriminação, e que nossa sociedade
precisa urgentemente mudar.

Todas as experiências negativas que eu não vivi milhões de outros jovens e crianças viveram, e
por isso é importante que todos trabalhemos para desmantelar esse aspecto racista do
sistema em que vivemos. A verdade é que as pessoas que são beneficiadas por esse sistema
são justamente as que detém o poder, e que podem, em teoria, mudar isso. Porém é difícil que
uma pessoa numa posição dessas queira abdicar de seus privilégios em nome de uma
sociedade menos violenta e mais segura e igualitária. Por isso é importante que todos
tenhamos isso em mente, para que as gerações futuras tenham em sua mentalidade a vontade
de mudar isso. Mudança é um processo gradual e ela começa com a gente agora, se todos
trabalharmos juntos podemos exterminar essa herança abominável de nosso passado cheio de
sofrimento e exploração, e construímos um futuro melhor, um futuro onde agentes do estado
não praticam discriminação e violência, um futuro onde a maior parte das minorias raciais não
estão confinadas a periferias e locais pobres, um futuro onde a cor de sua pele não influência
como te tratam, um futuro sem racismo estrutural.

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