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rural

dossiê
brasil

28 REVISTA USP, São Paulo, n.64, p. 28-49, dezembro/fevereiro 2004-2005


N
Cultura e

educação na roça,
encontros e
JOSÉ DE SOUZA MARTINS

desencontros
No Brasil continuamos a pensar as popu-
lações que vivem no campo e as populações que
vivem na cidade como duas humanidades divi-
didas por um intransponível abismo. Ignora-
mos completamente a extensa e profunda pre-
JOSÉ DE SOUZA
sença da cultura camponesa e rural mesmo em MARTINS é professor
aposentado do
metrópoles presumidas como modernas e com- Departamento de
Sociologia da FFLCH-USP e
autor de, entre outros, A
pletamente urbanas, como São Paulo. Eu me Sociedade Vista do Abismo
(Vozes).
arriscaria a dizer que, pela numerosa e densa
concentração populacional, a cidade de São Pau-
lo é culturalmente o maior aglomerado caipira

N e sertanejo do Brasil. Com a diferença de que


são pessoas culturalmente agrícolas emprega-
das em atividades não-agrícolas.

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Do mesmo modo, muitos imaginam que especialmente os educadores. São elas, no
o campo ainda é o mundo rústico do passa- entanto, herdeiras de complexas tradições,
do. Desconhecem que o campo é profunda- de uma cultura rica e abrangente, de valo-
mente ligado às grandes cidades pelo elo res centrados fortemente na concepção de
vivo e ativo das migrações temporárias. E pessoa. Continuamos confundindo analfa-
também das visitas recíprocas de membros betismo com ignorância e desdenhamos sá-
das mesmas famílias distribuídas entre es- bios de grande envergadura unicamente
ses dois espaços. Como desconhecem, porque não sabem ler e escrever. Esta so-
igualmente, que o campo é hoje cotidiana- ciedade, de fato, há muito declarou uma
mente alcançado pelo rádio e pela mentali- guerra contra a cultura das populações do
dade urbana que por ele se difunde. campo a pretexto de educá-las, de libertá-
Neste texto reúno uma entrevista quase las da ignorância e de trazê-las à força para
que inteiramente inédita sobre a questão da a chamada civilização urbano-industrial.
educação rural e cinco crônicas e comentá- Neste texto questiono as boas intenções
rios, em parte inéditos, sobre temas da cul- desses propósitos ao tratar do que não é
tura, especialmente os da língua e da lin- geralmente tratado por aqueles que, ao re-
guagem. Questiono a concepção corrente presentar, legitimamente ou não, a suposta
da suposta ignorância das nossas popula- superioridade cultural da cidade em rela-
ções do campo e originárias do campo. Em ção ao campo, formal ou informalmente,
conseqüência, questiono também o caráter desempenham funções destrutivas que
e a concepção corretiva da educação rural comprometem a própria idéia de educação.
e de outras modalidades de intervenção
cultural. A ignorância das populações do

1. EDUCAÇÃO RURAL
campo só o é numa perspectiva reducionista
e pobre. Justamente a dos setores da socie-

E O DESENRAIZAMENTO DO
dade investidos da tarefa missionária do
enquadramento cultural dessas populações,

EDUCADOR (1)
No Brasil ainda há um grande movi-
mento de migração da zona rural para
as cidades?
No Brasil, é necessário ter cautela na
definição de cidade como lugar de destino
de populações originárias do campo. Co-
nheci, na Amazônia, na época mais intensa
e crítica da expansão da fronteira agrícola,
povoados com mais de dez mil habitantes,
casas de adobe ou pau-a-pique, sem nenhu-
ma característica propriamente urbana, nem
instituições urbanas, cuja população se
dedicava, na quase totalidade, à agricultu-
ra. E normalmente se considera um aglo-
merado humano de cinco mil pessoas como
localidade urbana e seus moradores como
1 Versão integral de entrevista pu-
blicada, com reduções, cortes
migrantes que se deslocaram do campo para
e reordenações, em: Fundes- a “cidade”.
cola, Boletim Técnico 53, Ano
VI, Ministério da Educação/ Os especialistas brasileiros estão cada
Fundo de Fortalecimento da vez mais em dúvida a respeito do que já foi
Escola, Brasília, novembro de
2001, pp. 9-11. quase que uma verdade oficial: um vertigi-

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noso crescimento das cidades em conse- A reforma agrária, portanto, é também,
qüência de maciças migrações oriundas da numa certa medida, uma reforma urbana,
zona rural e da agricultura. Recentemente, no sentido de que abre e amplia a alterna-
pesquisadores que estão trabalhando criti- tiva de uma vida rural urbanizada e moder-
camente sobre os dados censitários, como na para populações que há gerações foram
José Eli da Veiga e José Graziano da Silva, confinadas nos espaços residuais do atraso
vêm constatando que é preciso rever essas econômico e social. Ao mesmo tempo em
interpretações. Aparentemente, o rural se que livra a cidade da condição de depósito
transforma e se revigora ao mesmo tempo. de excedentes populacionais sem destino e
É evidente que as migrações rural-ur- atenua as tendências patológicas da nossa
banas continuam ocorrendo, mas ultima- tumultuada urbanização.
mente tem se observado também o movi- Certamente, a reforma não tem por ob-
mento contrário. Nas últimas décadas, di- jetivo impedir ou cercear as migrações,
fundiu-se uma poderosa ideologia agrarista, embora essa possa ser uma das suas conse-
de revalorização do campo e de quem vive qüências.
no campo, sobretudo a partir das ações e
interpretações da Igreja Católica e da Igre- A escola, ou a falta dela, é um fator
ja Luterana, por meio da Pastoral da Terra, para as pessoas não permanecerem na
e também a partir das ações e dos projetos zona rural?
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Nas últimas décadas, observou-se, es-
Sem Terra (MST). Ao mesmo tempo, a pecialmente no que seria, tendencialmente,
partir de outras fontes, em especial da mí- uma baixa classe média rural, que muitas
dia, difundiu-se forte desprestígio da cida- pessoas optavam por mudar para a cidade
de como lugar para viver. Portanto, esta- para assegurar aos filhos o acesso à escola
mos em face de um imaginário que já não e para escapar, também, da escola rural
favorece nem valoriza as migrações para a cheia de limitações e de improvisos, mais
cidade como projeto de vida para quem vive uma escola para alfabetizar do que para
no campo. educar. Portanto, tanto a falta quanto a pre-
Isso não quer dizer que a migração do sença desse tipo de escola na zona rural
campo para a cidade não continue sendo têm aparecido, com freqüência, como um
um movimento demográfico importante e fator de migrações. Isso nos põe diante do
que não predomine sobre o movimento fato de que as populações rurais deman-
contrário, que também existe, que é o do dam uma escola rural diversa da que co-
retorno ao campo, sobretudo em função de nhecemos, menos para permanecer no cam-
políticas sociais que vão nesse sentido. po do que para integrar-se de modo apro-
priado nas promessas da sociedade moder-
A reforma agrária é suficiente para na e desenvolvida.
fixar o homem no campo?
A preocupação em fixar o homem no O ensino na zona rural deve ser dife-
campo é uma preocupação antiquada e su- rente do da cidade?
perada. Não é hoje a preocupação do Esta- O ensino deveria ser mais flexível e
do, como já foi no passado. Essa não é, culturalmente adaptado do que é, tanto no
portanto, a função da reforma agrária. O campo quanto na cidade. A educação bási-
objetivo da reforma é fazer da agricultura ca na cidade é quase que apenas projeção
familiar um meio de vida e um instrumento da ideologia de classe média do educador.
de criação de emprego que assegure o bem- O mesmo acontece no campo. Prevalece
estar e eleve o nível de vida de populações ainda entre nós a concepção de que o edu-
que, sem a reforma, estariam condenadas à cador não precisa ser educado, não precisa
miséria e à indigência na cidade. A reforma ser ressocializado para a sua missão de
tem, como um de seus objetivos, trazer os educar. Houve muitas mudanças na socie-
pobres do campo para o mundo moderno. dade brasileira nas últimas décadas, no

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campo e na cidade, que exigem uma referência, a que pertencem os alunos. Para
ressocialização do educador. Não só o cam- isso é necessário voltar ao professor de tem-
po de algum modo vem se urbanizando, po integral na mesma escola, que inclua
como a cidade vem, surpreendentemente, entre os seus deveres o dever de conhecer
se ruralizando. os saberes daqueles que procura ensinar,
Não são poucos os moradores das cida- aos quais procura transmitir e, não raro, até
des, especialmente nas periferias pobres, impor o seu próprio saber.
que têm uma relação tensa com a confusa No Brasil, o educador, sobretudo no
cultura urbana que temos, mais produto da ensino básico, legitima unilateralmente sua
degradação da cidade do que, propriamen- própria cultura de classe e usa a autoridade
te, do desenvolvimento urbano. Em conse- da função pedagógica para impor sua dita-
qüência, transformam, adaptam e reafir- dura cultural, não raro uma tirania desso-
mam sua cultura rural de origem. Essa é cializadora, que mais destrói do que cons-
uma técnica social autoprotetiva, autode- trói. Com isso, o educador se fecha à pos-
fensiva, que grupos culturalmente amea- sibilidade e à necessidade de sua própria
çados costumam adotar. Nos últimos anos, ressocialização a partir do processo intera-
em cidades como São Paulo, ganham vida tivo com seus alunos.
grupos folclóricos como bumbas-meu-boi, Fui aluno na roça. Na roça, uma criança
grupos de samba-lenço, folias-do-divino e sabe geralmente mais do que o seu profes-
folias-de-reis, grupos de violeiros, etc. sor urbano a respeito do mundo em que
Nesse sentido, quase que se pode consi- vive: as matas, os animais, as plantas, as
derar a escola urbana, inadaptada, como um falas, o imaginário. É claro que o professor
campo de concentração onde se realiza o tem o que ensinar e é justamente isso que
trabalho forçado da aculturação compulsó- esperam tanto os alunos como suas famí-
ria dos educandos, tendo por referência uma lias: ensinar aquilo que ainda não é sabido.
cultura urbana em grande parte postiça, mais Um professor que só fala e é culturalmente
ficção do ideário urbano do professor e da surdo é de fato um deficiente, como é defi-
política educacional do que expressão da ciente a escola em que ele ensina.
realidade urbana em que o aluno vive. Essa escola em geral se baseia no am-
O mesmo acontece no campo e, talvez, plamente falso pressuposto de que uma
de modo agravado em conseqüência de uma pessoa analfabeta é também ignorante.
ideologia educacional que desvaloriza o Conheço pessoalmente sábios analfabetos,
mundo rural e o trabalho rural. A ideologia muitos dos quais, no campo, e mesmo na
do educador, no campo, é via de regra a cidade, têm na cabeça uma verdadeira bi-
ideologia que considera a cultura, os costu- blioteca de livros transmitidos através das
mes, o saber da população que ele quer gerações pela tradição oral.
educar como cultura primitiva de povos Mário de Andrade e outros pesquisado-
ignorantes, formas incivilizadas de conhe- res do folclore recolheram de pessoas as-
cer a vida e interpretar o mundo. Não raro, sim literatura da Idade Média que sobrevi-
o educador é o grande responsável por abrir veu graças a esses analfabetos. A fascinan-
um amplo abismo cultural entre as gera- te e complicada fala literária que atravessa
ções do mundo rural. toda a obra de Guimarães Rosa é, com pou-
Por tudo isso, prefiro dizer que o ensino cas variações, a própria fala do povo do
que atualmente se ministra tanto na zona sertão, não raro analfabetos. Não por aca-
rural quanto na cidade deveria ser diferen- so, fez ele pesquisa de campo para recolher
te. A escola deveria ser uma instituição do evidências e identificar as matrizes, o códi-
diálogo cultural com sua clientela, com os go, de uma fala ancestral forte e dramática.
circunstantes, e deveria considerar cliente- Além disso, há analfabetos que escre-
la não só o aluno burocraticamente matri- vem livros, ditando-os. O camponês Ma-
culado, como preferem os educadores bu- nuel da Conceição “escreveu”, isto é, ditou
rocratas, mas também a comunidade de um belo livro autobiográfico, Essa Terra é

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Nossa, um precioso documento sobre os
seres humanos do mundo sertanejo. Ou-
tros, na cidade, não tão analfabetos, escre-
veram livros que se tornaram best-sellers,
como é o caso de Quarto de Despejo, da
favelada negra Carolina Maria de Jesus,
traduzido em vários países. Muitos profes-
sores, muitos de nós, não teriam condições
de escrever livros assim.

Que tipo de qualificação e de forma-


ção escolar deve ter o trabalhador rural?
A categoria “trabalhador rural” dessa
pergunta provavelmente esconde a pressu-
posição, também antiquada, de que quem
vive no campo ou trabalha na agricultura é
apenas trabalhador e mais nada. Raramen-
te se pensa no homem do campo como
preservador e criador de cultura, como
agente dinâmico do processo social e cul-
tural. É quase sempre concebido como um também, social, cultural e politicamente, e
passivo à espera do messias cultural que até economicamente, a sociedade da dife-
vai educá-lo, “civilizá-lo”. rença, da diversidade. O campo deixou de
Ninguém faz essa pergunta em relação ser o passado para ser o contemporâneo e
a quem vive na cidade. Ninguém pergunta sua diferença deixou de ser o atraso para
“que tipo de qualificação e de formação ser o singular e diferente num mundo de
escolar deve ter o trabalhador urbano?”. E diferentes e do direito à diferença, direito
não o faz porque essa pergunta perdeu o proclamado pelo sociólogo e filósofo fran-
sentido há muito tempo na cidade e está cês Henri Lefebvre.
rapidamente perdendo sentido no campo.
Na zona rural, como constataram pesqui- Como combater o trabalho infantil no
sadores de nossas universidades, que men- campo se muitas crianças evadem da es-
cionei, o trabalho já não é necessariamente cola para ajudar os pais na agricultura?
agrícola. E o próprio trabalho agrícola se Combater o trabalho infantil no campo,
desdobra e se complica num conjunto de e na cidade, é obsessão da classe média e da
atividades correlatas que dizem respeito à elite cheias de privilégios e de culpas. Tra-
ampla modernização que vem tendo o pro- balho desde criança, e trabalhei na roça e
cesso de trabalho na agricultura. na fábrica. Desde criança já preferia ir à
De certo modo, as demandas de educa- escola a ir ao trabalho. Mas, ao mesmo tem-
ção no campo são culturalmente mais com- po, gostava muito do meu trabalho. Eu me
plexas do que na cidade, o que se choca civilizei numa fábrica, foi lá que aprendi as
com a ideologia educacional que considera regras do comer, por exemplo, e foi lá que
simples o mundo rural, quando de fato não aprendi a valorizar a educação como meio
o é e será cada vez menos. De modo que a de emancipação da pessoa. Creio que mui-
educação rural deveria perder o qualifica- tas crianças que trabalham podem ter pre-
tivo rural para ser apenas educação e edu- ferência pela escola sem desgostar do tra-
cação do diálogo com a diversidade cultu- balho e do que o trabalho ensina. Para as
ral, as peculiaridades sociais, e não só do classes sociais que “não trabalham”, o tra-
trabalho. A educação deveria ser pensada balho é, equivocadamente, apenas sofri-
como ponte de acesso à complexidade da mento e privação. Negam o trabalho, sua
sociedade moderna, que vem se tornando, importância e até sua beleza porque, socio-

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logicamente falando, vivem às custas de um trabalhador adulto, ao fim da jornada,
quem de fato trabalha. Muitos grupos polí- cumprir as tarefas necessárias à formação
ticos, que se dizem socialistas e de esquer- do salário. Os pais levavam os filhos pe-
da, estão nessa. quenos para os auxiliarem no corte da cana
Nós reduzimos o trabalho à sua concep- e, como diziam, “completar o salário”. Ou,
ção fabril e teórica. No campo, em particu- em outros termos, um trabalhador inteiro,
lar, mas também em não poucas atividades pelas leis do mercado, era um ser humano
econômicas da cidade, o trabalho, mesmo incompleto e mutilado porque incapaz de
do adulto, é muito mais do que isso. Tem cortar num dia toda a cana que lhe permitis-
remota tradição o estar junto no trabalho se a miserável reprodução, sua e de sua fa-
como modo de trabalhar que reúne pais e mília. Cabia à criança pagar o preço da ex-
filhos em diversas funções de uma mesma ploração que o capital cobra de quem traba-
atividade. Pode-se ver isso celebrado em lha. Era o filho criança que completava o
famosa escultura de barro do Mestre Vita- braço economicamente mutilado de seu pai.
lino, de Pernambuco: Casa de Farinha. Ali O problema da criança que trabalha
há uma divisão do trabalho que reúne adul- deveria ser encarado do ponto de vista do
tos na maturidade, mas também velhos e conjunto de privações que ela sofre, não só
crianças. Simbolicamente, estes últimos como privações materiais, mas também
estão no centro de uma seqüência de traba- como privação de acesso ao saber que po-
lho, numa espécie de círculo imaginário, deria lhe chegar através da escola, mas tam-
participando mais do que trabalhando. Essa bém através da família e dos vários agentes
é a forma como se educa e protege a criança educadores da comunidade. O trabalho que
no campo, ainda hoje. socializa e educa deveria ser considerado à
Descobri que em áreas assim, como vi parte no conjunto das preocupações da so-
em diferentes regiões do país, ir à escola é ciedade com a criança.
considerado pelos pais como trabalho e a Portanto, se quisermos falar de soluções,
condição de estudante como profissão, sim- temos que falar de soluções práticas e ime-
plesmente porque a criança se distancia da diatas, sem desdenhar as de longo prazo.
casa e da família no momento de aprender. No curto prazo, o correto seria uma subs-
Porque para essas populações só o trabalho tancial melhora nos ganhos dos trabalha-
transforma – a semente em planta e fruto dores rurais, no oferecimento à população
ou a ignorância em saber. Para elas, educar de uma rede significativa de escolas e na
é fazer o trabalho de transformar, coisas e instituição de estímulos que assegurem a
pessoas. E isso não é atributo exclusivo da ida das crianças à escola e que façam da
chamada escola. No campo, e nas classes escola um objetivo de vida convincente.
subalternas em geral, o educar não está Na situação literalmente de emergência em
separado, nem pode estar, do viver. A es- que nos encontramos, a política de bolsas
cola burocrática, não raro odiada pelas cri- compensatórias para as famílias que man-
anças e pelos jovens, é a escola que abre na tiverem seus filhos na escola é uma boa
vida o abismo entre aprender e viver. opção. O governo de Fernando Henrique
Esse familismo protetivo e educativo Cardoso, quanto Raul Jungmann estava no
se deteriora também onde entra o grande Ministério do Desenvolvimento Agrário,
capital, o trabalho se converte em trabalho também introduziu em seu programa de re-
assalariado, precário e ocasional, exigindo forma agrária um prêmio aos pais que
que se mobilize toda a família em funções mantivessem seus filhos na escola. Para
estritamente econômicas para assegurar o cada filho na escola, até três filhos, havia
sustento de todos. Conviver já não educa, uma proporcional e substancial redução no
a família já não é uma escola. que devia ser pago pela terra recebida do
Há alguns anos, quando se mudou o programa. A própria escola tinha que ates-
critério de remuneração do trabalho no tar a freqüência de cada criança junto à au-
corte de cana-de-açúcar, era impossível a toridade fundiária para que o abatimento

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fosse feito nas parcelas a serem pagas. De Esse é um preconceito histórico que
certo modo, estudando, a criança pagava, herdamos do trabalho rural na escravidão.
com seu estudo e sua freqüência à escola, O trabalho na roça, no tempo do cativeiro,
parte da terra de trabalho de sua família. foi amplamente depreciado porque asso-
ciado à pessoa do cativo. O trabalho agrí-
Em sua opinião, quais as principais cola se tornou uma marca de inferioridade
dificuldades para melhorar a qualidade social. Os educadores incorporaram esse
do ensino na zona rural? estereótipo. Mas essa mentalidade está mu-
Creio que em minhas respostas anterio- dando em função da revalorização do cam-
res já mencionei quais as dificuldades que po e da natureza, como nos movimentos
vejo. A resistência cultural do educador (e ecológicos, nos grupos que propugnam
do sistema educacional) ao educando é formas alternativas de vida rural e de traba-
certamente uma das grandes dificuldades. lho agrícola.
Mas também o é o caráter postiço das esco-
las na zona rural. É um equívoco imaginar A formação do professor da zona
que colocar vídeos e computadores nas rural deve ser a mesma dos que atuam
escolas, rurais ou urbanas, melhora o seu na zona urbana?
desempenho. Porque só os seres vivos po- Eu não dividiria o mundo em rural e
dem dialogar culturalmente. Máquinas, urbano. Pois, seguindo essa lógica, eu po-
apesar da ideologia que as cerca, não dialo- deria perguntar se a formação do professor
gam nem interagem, são apenas mediações da periferia urbana deteriorada deveria ser
técnicas. São invasores culturais, instru- a mesma do professor que vai trabalhar nas
mentos de dominação, a menos que pos- regiões mais afluentes das cidades. Pesso-
sam ser integrados nesse universo de diálo- almente, acho que todos os professores do
go e troca cultural que menciono. Mas a ensino básico, sem distinções, deveriam
dificuldade maior é a falta de uma mística receber uma formação sociológica e antro-
da educação entre os educadores, uma uto- pológica. De modo que eles próprios tives-
pia, ou aquilo que Ecléa Bosi chama de sem condições de se reciclar e ajustar em
comunidade de destino. Sem ela, tudo o face das situações cambiantes de trabalho
mais é inútil. E ela não nasce nem na se- educativo que encontram pela frente, na
menteira do sindicalismo nem na semen- cidade e no campo.
teira do burocratismo oficial.
As escolas dos assentamentos rurais
Para melhorar as condições de aten- devem oferecer uma educação diferen-
dimento ao aluno as escolas do campo ciada como acontece, por exemplo, em
deveriam ser nucleadas? alguns assentamentos do MST?
Isso depende muito do lugar, das dis- Para evitar equívocos, lembro-lhe que
tâncias, do modo de vida das famílias e das não há assentamentos do MST. Só o Esta-
crianças. A priori seria um absurdo indicar do tem condições de fazer assentamentos
uma coisa ou outra. Certamente, sendo pos- no Brasil. E aí a responsabilidade pela edu-
sível, os moradores do campo, até porque cação é do governo. Talvez você esteja
suas exigências educacionais mudaram e falando em acampamentos. É verdade que
se ampliaram, preferem uma escola mais ativistas do MST podem continuar e têm
completa, com uma sociabilidade escolar continuado a atuar nos assentamentos, em
mais definida do que nas escolas isoladas. áreas como a da educação. Mas, do que
conheço da proposta pedagógica do MST,
Por que existe o preconceito, por par- e do que já ouvi de educadores nela envol-
te de muitas pessoas, de que quem vive vidos, sua pedagogia é tão invasiva cultu-
no campo é atrasado, quando nos gran- ralmente quanto a da oposta proposta pe-
des centros urbanos a existência de anal- dagógica do Estado.
fabetos também é grande? Se elas forem a escola do diálogo e da

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troca cultural que mencionei antes, certa- e escolar, a língua de uma classe média que,
mente oferecerão uma educação diferen- através das escolas, investiu-se de um po-
çada, não porque devem, mas porque po- der lingüístico, se é que se pode chamá-lo
dem. E é isso que conta. assim, que é parte de uma permanente ân-
sia de poder em outros âmbitos e é parte,
também, de um sistema de dominação. Não

2. A MISÉRIA DE IDÉIAS NA
se trata aqui de fazer apologia do popular,
como muitos demagogicamente fazem nos

FARTURA DE PALAVRAS
dias de hoje, não raro, até, pensando num
suposto poder popular, que seria muito mais

(ERROS DE PORTUGUÊS E
o poder de manipular o popular do que
aquilo que o popular é.

INGENUIDADES NUMA PROVA


Essa língua portuguesa oficial constitui
uma língua que não é necessariamente a

DO ENEM)
língua do povo brasileiro. Certamente, não
é a língua das versões regionais de nossa
língua, tão maravilhosamente diferente nos
Repassou-me um amigo uma assusta- sons, nas palavras e na construção das sen-
dora lista de frases que teriam sido colhidas tenças entre o interior do Maranhão (onde
numa prova recente do Enem (Exame Na- se fala o melhor e o mais belo português do
cional do Ensino Médio). A lista, que trans- Brasil) e o interior do Rio Grande do Sul. Ou
crevo abaixo, vinha originalmente acom- entre o áspero português dos cariocas, pro-
panhada de comentários curtos e agressi- vavelmente resíduo do forte sotaque lusita-
vos. Esses comentários foram, provavel- no da Corte, e o doce e lento dialeto caipira
mente, feitos pela pessoa que teve acesso do interior de São Paulo, de algumas regiões
às provas e resolveu preparar e difundir a de Minas, de Goiás e do Mato Grosso, o
lista. Não é a primeira vez que educadores dialeto de meus tios e primos, trabalhadores
fazem isso. São comentários que lembram rurais lá na região da Bragantina.
muito um tipo de professor, infelizmente, Tenho feito pesquisas sociológicas em
ainda comum em nossas salas de aula, mis- quase todo o Brasil, em remotas regiões
to de burocrata e polícia, bem distante do rurais, verdadeiras ilhas do que os cientis-
docente de sacerdócio que todos nós gosta- tas sociais de uma certa época definiam
ríamos de encontrar em nossas escolas e como atraso, atraso que esteve no centro
que muitos de nós chegaram a conhecer. das preocupações emancipadoras das eli-
Certamente, não só os erros de redação, tes brasileiras ao longo de toda a história
mas também as concepções, ali revelados republicana do país. As inquietações das
são mais que lamentáveis do ponto de vista pessoas que se presumem cultas, com erros
da classe média que gostaria de impor ao como os encontrados nas provas do Enem,
país e ao povo a sua própria língua pasteu- são provavelmente sobrevivência dessa
rizada e pobre. Por outro lado, já li decla- época e dessa mentalidade.
rações de pessoas responsáveis tentando Não se trata de fazer a apologia dos erros
amenizar esses erros e até tentando justificá- e concepções ingênuas contidos nos resulta-
los, como expressões de uma cultura au- dos das provas do Enem. Trata-se de distin-
tenticamente popular. guir, no simplismo acabrunhante da estrei-
Não vou por aí. Para mim, os erros são teza e da pobreza das idéias que foram pas-
reveladores de coisas bem mais interessan- sadas aos alunos pela escola e pelos profes-
tes e bem mais complicadas do que o que sores, o que há de singular e válido na língua
pode ser contido no rótulo de “ignorância” e na linguagem dos escolares.
ou, para os mais agressivos, de “burrice”. No final dos anos 70, como parte de um
Em primeiro lugar, os erros são erros do grande projeto pessoal de pesquisa sobre a
ponto de vista da língua portuguesa oficial situação dos trabalhadores rurais e as lutas

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sociais na região amazônica, desenvolvido pouco de arroz e de farinha. Na mesinha de
na Universidade de São Paulo, pesquisa que caixote de um desses professores, uma si-
se estendeu por vinte anos, fiz com crian- suda palmatória dizia a todos quem era o
ças, em diferentes lugares do Maranhão, mestre e quem era o aluno, como no tempo
do Pará e do Mato Grosso, boa parte do dos escravos a palmatória dizia ao cativo
meu trabalho. Pedi-lhes que escrevessem a quem mandava.
história da migração de suas famílias para Os escritos destas últimas crianças são
a fronteira na região amazônica. Muitas das dramáticos, reticentes, marcados por pala-
famílias migravam do Nordeste em dire- vras e expressões da nossa língua portu-
ção à Amazônia, numa longa peregrinação, guesa que o povo da cidade já não conhece,
de gerações. Outras haviam migrado do Sul que só podem ser encontradas em dicioná-
em direção à frente pioneira para expandir rio. Aliás, nas muitas páginas de meu ca-
ali, em bases modernas, sua agricultura derno de campo há registros de palavras e
familiar. No meu livro Fronteira – A De- expressões que ouvi por esse Brasilzão afora
gradação do Outro nos Confins do Huma- ao longo de muitos anos, as quais eu não
no, há um capítulo baseado nesses depoi- conhecia.
mentos, no qual procuro desvendar a lógi- Nos escritos dessas crianças um deta-
ca que articula o pensamento infantil numa lhe óbvio: elas escrevem como falam. Elas
situação em que a própria condição huma- não querem se exibir. Elas querem dizer o
na está ameaçada, a visão de mundo aí que pensam. Vivem mergulhadas na cultu-
contida. ra da fala e não na cultura da escrita. Vivem
Colhi, também, entrevistas faladas das num mundo de processos interativos regu-
crianças. As de origem sulista eram mais lados pela palavra falada, pelo relaciona-
precisas na linguagem escrita e mais conti- mento direto e face a face e não por recur-
das na fala. As de origem nordestina ou do sos mediadores que nos distanciam uns dos
Centro-Oeste eram mais eloqüentes, tanto outros cada vez mais: o telefone, o rádio, a
no escrever quanto no falar. Falavam com televisão, os jornais. Seu mundo é ainda
mais desenvoltura, uma língua precisa, um mundo de pessoas e não um mundo de
demarcada por adornos e floreios, uma lín- coisas, de pessoas dominadas pelas coisas,
gua barroca que se ouve com admiração e pelas letras, por uma fala precedida por um
reverência. Às vezes, tinha a impressão de código que diz que as pessoas devem falar
estar ouvindo ecos dos maravilhosos ser- como escrevem e não escrever como fa-
mões do Padre Vieira, pronunciados lá lon- lam. Essa concepção pequeno-burguesa da
ge, no século XVII. fala e dos relacionamentos emudece os sim-
As escritas das primeiras eram utilitá- ples, cassa-lhes a palavra autêntica, põe em
rias e práticas. Freqüentavam escolas bem sua boca a fala postiça dos que a arrogância
organizadas e bem instaladas no respecti- política transformou em voz dos que não
vo núcleo de colonização. Já as segundas têm voz, uma típica manifestação de auto-
freqüentavam as aulas de um mestre-esco- ritarismo da classe média e dos presumi-
la, essa heróica figura de educador leigo, velmente cultos. O país está cheio disso,
sem preparação pedagógica, mera diferen- dessa pretensão autoritária.
ciação dos próprios trabalhadores rurais, Há uma velha condenação política de
empenhado em repartir até mesmo o pouco esquerda do que é o espontaneísmo popu-
que sabe. As escolas eram de pau-a-pique, lar e sobretudo camponês, baseada na su-
chão de terra batida, cada criança levando posição (do próprio Marx, aliás) de que os
na cabeça o tamborete para sentar, os joe- camponeses representam a barbárie, a in-
lhos servindo como carteira para escrever. competência política. E quem os tutela, ao
Os professores de algumas dessas escolas tutelar e dirigir, em nossos dias e em nosso
eram pagos com sacrifício pelos pais das país, vai nessa mesma direção intolerante,
crianças, gente simples e pobre, trabalha- ainda que se diga de esquerda, em comu-
deira como se diz na roça, não raro com um nhão com os pobres, empenhado numa

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revolução social que mudaria tudo. Como vinham da exploração da mais-valia e do
poderão mudar alguma coisa se eles pró- modo de produção capitalista. Um propa-
prios estão encerrados hermeticamente nas gandista de esquerda, com o truque dos con-
certezas discutíveis de sua cápsula corpo- ceitos, conseguira pespegar-lhe na testa um
rativa e fechados à pedagogia democráti- rótulo de certezas definitivas, em grave con-
ca de que quem verdadeiramente ensina tradição, porém, com as incertezas da vida e
também aprende? Como podem libertar o da prática. Conseguira gestar um alienado,
outro, que é o que pretendem, se não se como a honesta professora do Sul consegui-
deixam libertar pelo outro, se não enten- ra gestar muitos.
dem que a libertação dos cativeiros é uma Nos escritos das crianças originárias
construção de todos ou então nada é? do Nordeste e do Centro-Oeste, como eu
Marx, aliás, se perguntava: quem educa- disse, escreviam elas como falavam e como
rá o educador? ouviam, como dialogavam, como intera-
Maior revolução do que essas revolu- giam, como conviviam, como comparti-
ções supostas e palavrosas, revoluções dis- lhavam a vida e a palavra. A população
cursivas sem revolução no discurso, é a do das grandes cidades, por falar pensando
educador na sala de aula. Não falo do na palavra escrita, imagina que o que fala
ideólogo picareta que faz da sala de aula é o que está escrito. Mas as sonoridades da
tribuna de partido e faz do ensino doutrina- fala sugerem ao ouvinte “iletrado”, que
ção partidária, como se a história desta vive no mundo do falar e não no mundo do
sociedade e o nosso destino histórico se escrever, organizações silábicas bem di-
esgotassem na próxima eleição e, de prefe- versas das presumidas pelo falante “cul-
rência, no seu próprio candidato. Falo do to”. Como aparece na prova do Enem, ao
educador que educa, que semeia a semente escrever juntam sílabas em função do que
da palavra, que oferece aos simples, que ouvem, já que não incorporaram o código
são as crianças, a ponte de acesso à univer- da escrita como requisito da fala: “seru-
salidade da grande cultura, a cultura que mano” (ser humano), “cerrevelam” (se re-
emancipa e não a cultura que escraviza aos velam), “ensi” (em se), “anonser” (a não
horizontes limitados e pobres de uma an- ser), “ser mano” (ser humano), “Euninho”
siedade partidária de ocasião.
Lembro de uma professora no Sul, de
expressão honesta e feliz, narrando sua
experiência, numa escola do MST, de ter
conseguido ensinar às crianças, numa re-
gião historicamente camponesa, o que é
modo de produção capitalista e o que é mais-
valia! Justo para filhos de camponeses! Nem
o próprio Marx conseguiu definir, em rela-
ção ao campesinato, o que é modo de pro-
dução e, sobretudo, os mecanismos de pro-
dução e extração da mais-valia!
Mas a honesta professora, com seu
manualzinho de certezas de ocasião, havia
conseguido desviar seus alunos das incerte-
zas (e possibilidades) da vida para as certe-
zas do conceito. Encontrei uma vítima dessa
pedagogia das certezas políticas no sul de
Goiás, há muitos anos. O jovem trabalhador
rural me explicava que as dificuldades eco-
nômicas suas (que não eram muitas, aliás:
ele vivia razoavelmente bem) e de seus iguais

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(El Niño), “Diozônio” (de ozônio), “os (“contá” ao invés de “contar”) e os profes-
zoutros” (os outros). sores corrigem os alunos cobrando-lhes
Certamente, um professor que não ouve esses erres nas palavras, os escolares en-
não pode encontrar nesses escritos de cri- tendem que toda palavra oxítona, para ser
anças e adolescentes aquilo que para ele é grafada corretamente, deve ter um erre fi-
apenas escrita. Nem mesmo consegue ima- nal, independente de ser verbo e de estar no
ginar que o aluno que assim escreve não infinitivo. Isto é, erre não é letra, é acento
lhe está escrevendo, mas lhe está falando. agudo. O código lingüístico do português
Se os textos tivessem sido escritos por Gui- oficial é assimilado obedientemente, mas
marães Rosa ou por Mário de Andrade, dois de conformidade com o código sonoro do
maravilhosos autores que trouxeram para a português popular, código de quem ouve e
nossa literatura esses recursos de expres- fala e não de quem escreve. Um arranjo que
são, então tudo bem. Ninguém riria. nos fala de um conflito social entre podero-
Tenho, também, familiaridade com a sos e frágeis, conflito que os frágeis que-
documentação histórica brasileira, sobre- rem evitar sem se render.
tudo paulista, dos séculos XVI, XVII e Na verdade, não se trata de escrever
XVIII. Só no século XVIII de fato se firma errado, mas de fazer corretamente o que
um padrão generalizado de escrita da lín- faziam nossos antepassados no longo e belo
gua portuguesa no Brasil. Até então, sisu- parto da nossa versão brasileira da língua
das atas oficiais das câmaras eram escritas portuguesa. Essas crianças são documen-
praticamente do mesmo modo como o são tos vivos da dinâmica de nossa língua, pois
os escritos das crianças com as quais traba- elas dominam o código que a gestou, coisa
lhei. No geral, era quase tudo escrito com que nem mesmo a maioria dos professores
letras minúsculas, início de frases, nomes cultos de nossas escolas domina. Aliás, elas
próprios, sem dizer de várias palavras jun- atestam vivamente o nosso bilingüismo, de
tas como se fossem uma só palavra. As que ninguém escapa: nossas duas línguas
maiúsculas tinham outras funções, que não portuguesas se necessitam reciprocamen-
as atuais dos nossos escritos. O esse maiús- te, o português falado e o português escrito,
culo fazia a vez do duplo esse ou mesmo do o português que carrega nas vogais (“nega
cê-cedilha e o zê fazia a função do esse fulô”, quatro consoantes) e o que carrega
aspirado: “eSa caza”. O esse e o zê eram, de nas consoantes (“negra flor”, seis consoan-
fato, a mesma “letra”, porém cumprindo tes). O caipira, o caiçara e o tabaréu, mes-
funções opostas: num caso o esse soprado tiços, sobretudo de índios tupis, de índios e
e no outro o esse aspirado. brancos, reduziam em sua fala as consoan-
As letras tinham funções sonoras. Não tes e ampliavam a presença das vogais. E
raro uma sentença ou uma palavra isolada não pronunciavam consoantes finais das
podia começar pelo cê-cedilha: çapato ou palavras: “falá”, em vez de “falar”. Tinham
mesmo Çapato. Naquela época não se usa- dificuldade para falar palavras com conso-
vam acentos (aliás, naquela época os po- antes dobradas, como em “trabalhar”, que
bres nem mesmo usavam sapatos, por isso transformaram em “trabaiá” (seis conso-
eram socialmente classificados como “pe- antes reduzidas a três).
ões”, os que se deslocam a pé e diretamente No encontro e no confronto da língua
sobre os próprios pés, os que não são car- tupi com a língua portuguesa nasceu o dia-
regados). Os recursos sonoros tinham que leto caipira, como já observaram Amadeu
ser indicados pelo próprio modo de escre- Amaral e Paulo Duarte. Não só sonorida-
ver. Encontrei nas crianças do sertão essa des tupi impregnam nossa língua portugue-
prática. É o caso do uso do erre como letra sa. Palavras tupi se alternam com palavras
final para indicar uma palavra oxítona: de origem latina e grega. Muitos professo-
“ater” para “até”. res que corrigem severamente a “pronún-
Como no dialeto popular se suprimem cia errada” de seus alunos, que assim fa-
os erres finais dos verbos no infinitivo lam, mal sabem que estão dando continui-

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dade à repressão lingüística determinada de pensar, “modos corretos” de falar e de
pelo rei de Portugal no século XVIII, con- escrever, “modos corretos” de crer, “modos
tra nossos índios, caipiras e camponeses. O corretos” de comer, de trajar, de viver.
intuito era forçá-los a tornarem-se portu- Nunca este país teve um momento de
gueses, era o de dar o golpe de misericórdia tolerância democrática tão ampla como
nas culturas nativas e no hibridismo cultu- hoje. E nunca a sociedade brasileira foi tão
ral nativo, no risco do nativismo e na pos- autoritária quanto hoje, autoritarismo que
sibilidade de uma consciência nacional bra- se manifesta nessa miríade de imposições
sileira. Matar-lhes a língua e o dialeto era cotidianas, censuras, satanizações, as pal-
forma de matar-lhes o principal instrumen- matórias simbólicas da estupidez autoritá-
to de consciência. ria que, em nosso caso, tem suas claras raí-
Nossos estudantes não sabem, e seus zes na escravidão. Esse autoritarismo todo
professores não lhes dizem, que sua fala procura se esconder até atrás de bandeiras
errada é um dialeto, que eles de certo modo vermelhas, mas nada mais é do que doloro-
falam palavras e resquícios sonoros do tupi. sa sobrevivência do poder da casa-grande
Uma língua dialetal legítima como outra sobre a fragilidade da senzala. Joga-se cisco
qualquer, uma língua que só tem sentido no olho do povo questionando o Estado (e
falada e quase nenhum sentido escrita, é bom questioná-lo) e desqualificando po-
porque é a língua do diálogo, só inteligível líticas públicas do maior interesse social.
no mundo da reciprocidade. Ninguém fala Poupamos a sociedade civil, que se derrete
sozinho, só os insanos. É a língua que se na meleca de que muitos programas de te-
nega às formas e formalidades do poder e levisão e de rádio são bem o retrato. A
mesmo do poder professoral dos que na apologia da burrice, das meias palavras, das
direita e na esquerda querem ensinar para idéias meramente insinuadas está em toda
mandar. O questionamento dessa língua parte. Por que não nos incomodamos com
continua sendo feito em nome do autorita- isso ao invés de fazer ironia sobre o modo
rismo da língua única, a língua que pode como adolescentes escrevem? Não seria
ser manipulada como língua dos que man- melhor educar ao invés de ironizar? Aliás,
dam, a língua que nega o pluralismo, a di- educador não é pra isso mesmo?
ferença, as diversidades regionais, a iden- Na prova do Enem há ainda outras ques-
tidade dos que não se curvam. tões. São as palavras e imagens postiças no
A prova do Enem nos fala de adolescen- mundo social do povo, na cultura em que
tes e jovens vitimados por processos efetivamente as pessoas vivem, em casa,
interativos, sobretudo na escola, em que os na rua, no trabalho e na própria escola, que
próprios educadores não manejam, senão não é a cultura da sala de aula. Tomo esta
defeituosamente, a língua oficial que estão idéia como referência: “O nosso ambiente.
obrigados a ensinar: uma língua portuguesa Ele estava muito estragado e muito poluido
falada, porém sob domínio dos códigos da por causa que, os outros não zelam pelo ar
língua portuguesa escrita. De certo modo, as puro”. Aí, como em outras frases e senten-
provas do Enem nos mostram que a língua ças da prova, pode-se distinguir duas cultu-
portuguesa das escolas é uma língua estran- ras (prefiro não falar em subculturas)
geira, não é a língua do povo nem interage acopladas de modo postiço e indicadas ho-
com ela criativamente. A língua escolar ofi- nesta e corretamente pelo estudante: “estra-
cial está na mesma linha das violências pe- gado” (que tem sentido na cultura popular e
dagógicas freqüentíssimas hoje no Brasil, cotidiana) e “poluído” (um neologismo que
envolvidas nos agressivos esforços de um tem sentido unicamente em certos círculos,
sem-número de agentes de transformação especialmente na mídia); “ambiente” (outro
social, dos professores aos militantes políti- neologismo de circulação restrita) e “ar puro”
cos e religiosos, que se sentem no direito, (que é da linguagem de todos). Esse cuidado
até sagrado, de impor aos simples e aos do estudante nos fala de uma pessoa bilín-
pobres seus modos “politicamente corretos” güe, que ainda tem necessidade de traduzir

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cessários preciosismos das questões ambi-
entais e com a sorte do mico-leão, mas es-
quecemos de que essas são preocupações
secundárias para populações que têm ou-
tras urgências e não estão vendo suas ur-
gências contempladas em provas do Enem.
Uma das urgências, aliás, é a de ter boas
escolas em tempo integral, de preferência
escolas públicas e gratuitas, com bons e
competentes educadores. Porque essas ima-
gens e idéias foram ouvidas em algum lu-
gar. Certamente, não o foram em casa, coi-
sa de que a prova é prova. Foram ouvidas
na televisão, no rádio e na própria escola,
supostas agências de educação.
Em países como este, em que a socieda-
de tradicional continua existindo, embora
já tenha sido destroçada e liqüidada no
imaginário dos educadores, dos partidos po-
líticos, dos agentes de transformação so-
cial (religiosos ou políticos), é compreen-
o português legítimo no código do portu- sível que as palavras e expressões, distri-
guês “legal”, isto é, escolar. buídas gratuitamente, circulem mais de-
Em relação com essa realidade, há ou- pressa do que os objetos reais que desig-
tra frase: “Não preserve apenas o meio nam ou dos meios que os difundem, como
ambiente e sim todo ele”. O neologismo os livros, cuja circulação não raro depende
“meio ambiente” foi amplamente difundi- de dinheiro. A sociedade de consumo, quan-
do no mundo da classe média e dos do se apossa do mundo dos que ficaram à
presumivelmente cultos, constantemente margem, é generosa na distribuição de pa-
usado pela mídia. Mas essa justa e humani- lavras e conceitos, mas avara na distribui-
tária preocupação do jovem estudante não ção de conhecimento fundamentado. Dis-
depõe contra ele e sim contra todos: aos tribui ilusões, mas não distribui certezas.
simples, aos que estão no limite do abismo, Promove a fartura de palavras e conceitos
aos pobres, chegam as palavras, mas não junto com a miséria de idéias e não raro
chegam os conteúdos. Na verdade, numa fartura de idéias miseráveis.
certa esquerda e na direita o que se quer é
que os pobres se fartem apenas com pala-

Apêndice
vras, algo muito próprio de uma cultura de
sermão e de palanque.
Encontro o mesmo problema em outra
frase: “Tudo isso colaborou com a estinção Esta relação me foi enviada por um
do micro-leão dourado”. A palavra “micro” amigo, com a informação de que se trata de
chegou bem mais longe do que o próprio textos colhidos numa prova do Enem:
microcomputador. E, provavelmente, o
único mico-leão-dourado que esse jovem “O nosso ambiente. Ele estava muito estra-
viu foi na televisão. O necessário discurso gado e muito poluido por causa que, os
sobre o risco de extinção do mico-leão-dou- outros não zelam pelo ar puro.”
rado também chegou mais longe do que o
próprio belo animal, habitante de espaços “O serumano no mesmo tempo que cons-
restritos e regiões determinadas. Queremos trói também destrói, pois nos temos que
que todos estejam preocupados com os ne- nos unir para realizarmos parcerias juntos.”

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“Na verdade, nem todo desmatamento é tão mos sem bandeira.”
ruim. Por exemplo, o do Aeds Egipte seria
um bom benefício para o Brasil”. “Ultimamente não se fala em outro assunto
anonser sobre […].”
“Vamos mostrar que somos semelhante-
mente iguais uns aos outros.” “O araras azuls ficavam sob voando as
matas.”
“[…] eles matam não somente os animais
mas também os matança de aves e peixes “[…] são formados pelas bacias esferográ-
também precisam acabar.” ficas.”

“[…] os pequenos animalzinhos morrem “Os animais acabam sem água para beber
queimados e asfixados.” e para tomar banho.”

“Hoje endia a natureza […].” “O direito humano para mim tinha que ser
igual para todos.”
“No paíz enque vivemos, os problemas
cerrevelam […].” “Eu concordo em gênero e número igual.”

“[…] menos desmatamentos, mais flores- “Na época de Cristo não havia indústrias
tas arborizadas.” para poluir e assim mesmo havia proble-
mas sociais entre os povos.”
“[…] provocando assim a desolação de
grandes expécies raras.” “As vezes penso comigo mesmo e chego a
mesma conclusão que chegou Renato Rus-
“O desenvolvimento trás um grande lado so: Que país é esse?”
positivo e um grande lado negativo para o
meio ambiente.” “Os homens brasileiros, estão acabando
com tudo, as árvores para desmartar para
“Nesta terra ensi plantando tudo dá.” fazer tauba e outra coisa.”

“Isso tudo é devido ao raios ultra-violentos “O homem não está mais valorizando a sua
que recebemos todo dia.” pátria ambiental.”

“Existem dois tipos de animais: os que vi- “Precisa-se começar uma reciclagem
vem em cativeiro e os que não vivem. Ul- mental dos humanos, fazer uma verda-
timamente, surgiram um terceiro tipo que deira lavagem celebral em relação ao
corresponde aqueles os que são presos pela desmatamento, poluição e depredação de
polícia federal.” si próprio.”

“Todos os fiscais são subordinados. É a “O seringueiro tira borracha das árvores,


propina.” mas não nunca derubam as seringas.”

“Tudo isso colaborou com a estinção do “Já está muito de difícil de achar os pandas
micro-leão dourado.” na Amazônia.”

“Imaginem a bandeira do Brasil. O azul “A concentização é um fato esperançoso


representa o céu, o verde representa as ma- para todo o território mundial.”
tas, e o amarelo o ouro. O ouro já foi rou-
bado e as matas estão quase se indo. No “Espero que isso mude aqui no Paraná, que
dia em que roubarem nosso céu, ficare- não seja como os outros países.”

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“Vamos deixar de sermos egoístas e pen-
sarmos um pouco mais em nós mesmos.”

“O sero mano tem uma missão […].”

“O Euninho já provocar secas e enchentes


calamitosas […].”

“Até a Xuxa hoje em dia se prelcupa com


a situação dos animais.”

“Na Amazonas está sendo a maior derru-


bagem e extração de madeira do Brasil.”

“O problema ainda é maior se tratando da


camada Diozônio!”

“Há muito tempo atrás, meu avô matou


várias onças na fazenda dele.”

“Por isso eu luto para atingir todos os meus


obstáculos.”

“Enquanto isso os zoutros […].”

“[…] tudo baixo nive […].”

“A situação tende a piorar: o madereiros da


Amazônia destróem a Mata Atlântica da
região.”

“O que é de interesse coletivo de todos


nem sempre interessa a ninguém indivi-
dualmente.”

“A natureza brasileira só tem 500 anos e já


está quase se acabando.”

“A única solução para este problemas to-


dos é alugar o Brasil para os outros.”

“Não preserve apenas o meio ambiente e


sim todo ele.”

“Nos dias atuais a educação está muito


precoce.”

“O grande problema da Rio Amazonas é o


pesca dos peixes.”

“É um problema de muita gravidez.”

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3. VIOLAS E VIOLEIROS
havia acontecido algo semelhante. Disse-
me que gosta muito de viola caipira, do
som da viola. É fiel ouvinte do Viola Mi-
Acabo de ver e percorrer atentamente nha Viola, de Inezita Barroso, na TV Cul-
a fotografia de agora há pouco do globo tura. Mora em Cotia e achou por lá um dos
terrestre, feita por um satélite. Essa foto é raros professores desse instrumento de
atualizada durante as 24 horas do dia. preciosa sonoridade. Tentou comprar uma
Pode-se ver a noite avançando em direção viola, mas teve dificuldades, pois queria
ao oeste e o dia amanhecendo no leste. uma verdadeira viola caipira, aquelas de
Cliquei o zoom para ver melhor São Paulo cintura fina. A que mais se aproximava de
à noite. Um brilho intenso ao lado de ou- seus desejos era uma viola elétrica, que
tro, que é o Rio de Janeiro, e um rastro de acabou comprando. Mas um tanto infeliz
luzes acesas que vai em direção ao inte- por não ter achado o preciso instrumento
rior de São Paulo, a Goiás e ao Mato Gros- que buscava.
so do Sul. Um dia, na Av. Faria Lima, no Jardim
Esse imenso foco de luz, soma de mi- Europa, um dos bairros mais chiques e mais
lhões de lâmpadas acesas, milhões de ca- urbanos de São Paulo, perto do local onde
sas, milhões de pessoas concentradas num faz ponto, viu um desses puxadores de car-
espaço determinado. É o urbano. É estra- rinhos que catam coisas reaproveitáveis nas
nho que até hoje ninguém tenha definido o latas de lixo: cadeiras, pedaços de metal,
urbano como o lugar de um intenso brilho móveis quebrados. Do monturo sobressaía
numa fotografia de satélite. O rural é a es- o que parecia ser o braço de um violão. Ele
curidão, o que não se vê. também tem um violão, que estava com
Mas essa luz do urbano, é claro, ofusca. algumas cravelhas quebradas (tem aula de
Quanta coisa acontecendo lá! Até eu aqui violão uma vez por semana e uma de viola
no meu micro olhando-me naquele brilho também uma vez por semana). E viu que
sem me ver. Quanta coisa que não se vê e aquela seria a oportunidade de obter as cra-
quanta coisa que não se sabe! velhas por quase nada. Desceu do táxi e
Poucas horas antes, num ponto do que perguntou ao homem que puxava a
seria dali a pouco um enorme brilho, pe- carrocinha quanto queria por aquilo. “Dez
guei um táxi no Shopping Iguatemi, aqui contos!” respondeu o outro. “Te dou cin-
em São Paulo, para voltar para casa. Moto- co”, disse o taxista. O sujeito cedeu e pu-
rista um pouco arredio, vim sentado ao seu xou o braço do instrumento musical que
lado, tentando puxar conversa. Tenho pro- era na verdade uma viola caipira inteira, de
curado fazer de minhas ocasionais viagens cintura fina, com as cordas e tudo, cujo braço
de táxi um instante pedagógico, em que descolara. Tão feliz ficou o meu compa-
aprendo e ensino. Puxo um assunto que nheiro de viagem que deu logo os dez “con-
possa interessar e vou desdobrando-o, ten- tos”, isto é, dez reais, para o catador de lixo.
tando fazer meu ouvinte falar. Geralmente Mandou consertar o instrumento, que é hoje
dá certo. Com isso me livro ou daquele si- aquele com que aprende a tocar a divina
lêncio servil que me incomoda ou de uma violinha de São Gonçalo.
seqüência de anedotas grosseiras, cheias Falei-lhe da Missa do Violeiro, que é
de palavrões, numa conversa geralmente tocada e cantada por mais de cem violeiros
incômoda para a minha idade e a minha de Osasco, no subúrbio de São Paulo, na
paciência. Catedral de Santo Antônio, todo dia 13 de
A conversa de hoje acabou na viola junho. Falei-lhe, também, dos violeiros de
caipira. Puxei o assunto dos males que vêm Mauá, algumas dezenas, que se apresen-
para bem, para justificar o bairro em que tam em conjunto. Dos de Taubaté, dos de
moro, onde não tinha a intenção de morar. Campinas. Se pra cada viola caipira da re-
Meu colega de viagem disse que entendia gião metropolitana de São Paulo houvesse
muito bem o que eu dizia, pois com ele uma lâmpada azul bem acesa, tenho certe-

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za de que ia mudar a cor do brilho paulistano Nessa viagem de táxi o urbano revelou
na foto do satélite! a sua ruralidade. Viola caipira num bairro
Contei-lhe, então, a história de São da elite? Tem muita escuridão e muito cai-
Gonçalo. E, ao chegar em casa, dei-lhe um pira enrustido nessa São Paulo de Pirati-
CD de Fernando Deghi e outro de Ivan ninga! Quem teria se desfeito daquela vio-
Vilela, dois abençoados descendentes do la? Foi uma prosa roceira e boa, dessas
santinho farrista e violeiro de Amarante, prosas ao pé do fogo, café de chaleira, ci-
pura viola caipira. garrinho de palha.

4. A PROIBIÇÃO DA LÍNGUA
BRASILEIRA (2)
Matéria publicada na Folha Ilustrada
(18 de junho de 2003) dava conta de que
uma nota da Anatel (Agência Nacional de
Telecomunicações), de agosto de 2002,
sobre um programa radiofônico da FM
Educativa, de Campo Grande (MS), trans-
mitido na língua nheengatu, levantava a
questão da sua legalidade em face de uma
lei de 1963 que proíbe veiculações radiofô-
nicas em língua estrangeira. A dúvida da
Anatel põe em questão a legalidade da lín-
gua ainda falada por brasileiros de várias
regiões do país e em suas variantes residu-
ais ainda falada por milhões de brasileiros,
especialmente crianças e iletrados, que só
aparentemente falam o português oficial dos
decretos.
O nheengatu, também conhecido como
língua geral, a língua que se quer proibir,
é a verdadeira língua nacional brasileira. O
nheengatu foi língua desenvolvida pelos
jesuítas nos séculos XVI e XVII, com base
no vocabulário e na pronúncia tupi, que era
a língua das tribos da costa, tendo como
referência a gramática da língua portugue-
sa, enriquecida com palavras portuguesas
e espanholas.
A língua geral foi usada correntemente
pelos brasileiros de origem ibérica, como
língua de conversação cotidiana, até o sé-
culo XVIII, quando foi proibida pelo rei de
Portugal. Mesmo assim continuou sendo
falada.
Da língua geral ficou como remanes- 2 Publicado originalmente em:
cente o dialeto caipira, tema de dicionário Folha de S. Paulo, Tendência &
Debates, 20 de julho de 2003,
e objeto de estudos lingüísticos até recen- p. 3.

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tes. Sobraram pronúncias da língua tupi, sem achar que estou falando uma língua
reduções e adaptações da língua portugue- estrangeira, que ela não é.
sa. Um jesuíta, no século XVI, já observara Em escolas rurais de povoados do Mato
que os índios da costa tinham grande difi- Grosso, do Pará e do Maranhão, observei
culdade para pronunciar letras como o ele um fato curioso. Uma vez que as crianças
e o erre. Especialmente, na finalização de escrevem como falam, não é raro que acres-
palavras, como “quintal”, “animal”, “em- centem de preferência um erre às palavras
bornal”; ou verbos como “falar”, “dizer”, oxítonas, a letra usada como acento agudo:
“fugir”, “pôr”. Essas letras foram simples-
mente suprimidas e as palavras transfor-
madas em “quintá”, “animá”, “borná” (em
que o erre tem um som quase de vogal,
próximo do ele e do “u”), “falá”, “dizê”,
“fugi”, “pô”.
Dificuldades também havia para pro-
nunciar as consoantes dobradas. Daí que
no dialeto caipira “orelha” tenha se torna-
do “orêia” (uma consoante no lugar de três;
quatro vogais no lugar de três), “coalho”
seja “coaio”, “colher” tenha virado “cuié”,
“mulher” seja “muié”, “os olhos” sejam “o
zóio”, “homem” seja “óme”. E no Nordes-
te ainda se ouve a suave “fulô” no lugar da
menos suave “flor”. Uma abundância de
vogais em detrimento das consoantes, até
mesmo com a introdução de vogais onde
não existiam. Exatamente o contrário da
evolução da sonoridade da língua em Por-
tugal, em que predominam os ásperos sons
das consoantes, às vezes dificultando que
um brasileiro compreenda o que ali se diz.
No Brasil, a língua portuguesa ficou mais
doce e mais lenta, mais descansada, justa-
mente pela enorme influência das sonori-
dades da língua geral, do nheengatu.
Nossa língua cotidiana está algo distan-
ciada da língua portuguesa, que é a oficial
e, num certo sentido, é uma língua impor-
tada. Não raro viajamos entre toponímicos
tupis. Na cidade de São Paulo, transito re-
gularmente entre o Butantã, onde fica a Ci-
dade Universitária, e Carapicuíba e o Embu,
onde costumo levar meus alunos, periodi-
camente, para uma aula de rua. Sem contar
o cemitério do Araçá, onde também os levo
para aulas abertas. Ou os levo ao Museu
Paulista, no Ipiranga, para outra aula, ou à
Mooca, para observações etnográficas so-
bre uma festa italiana. Faço tudo isso por
dentro da língua tupi. Como posso ir do Rio
Guaíba à Paraíba ou ao Pará ou ao Piauí

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“ater”, em vez de “até”; “Joser”, em vez de desenvolve numa época em que o Brasil,
“José”. Algo que tem sua curiosa legitimi- sendo colônia de Portugal, era-o da Espa-
dade no modo como se escrevia oficial- nha, em virtude da unificação das coroas
mente o português até meados do século desses dois países, de 1580 a 1640. Sobre
XIX, letras fazendo as vezes de acentos e o nheengatu, o padre Anchieta escreveu
sinais. Nesse então, nos documentos ofici- uma gramática e deixou várias orações e
ais se escrevia “aSim” para dizer “assim”. textos traduzidos. Do século XVII, há o
A própria língua falada, no confronto com dicionário de Pero de Castilho. Já o dialeto
a escrita, oferece às crianças inteligentes a caipira é língua dialetal derivada da intera-
chave de adaptação de uma a outra: se elas ção entre o português e o nheengatu. Estu-
dizem “falá” e vêem que a palavra escrita dos pioneiros a respeito foram os de Ama-
é “falar”, logo entendem que o erre é aí deu Amaral. Mais recentemente Ada Natal
acento e não letra para ser pronunciada. Rodrigues fez acurado estudo lingüístico
É comovente a reação dos jovens quan- sobre o dialeto caipira na região de Piraci-
do descobrem que são falantes do que resta caba. Aliás, na Universidade de São Paulo
de uma língua que já foi a língua do povo há um curso regular de língua tupi, minis-
brasileiro, e que conhecem um grande nú- trado por um competente especialista.
mero de sons e palavras tupis. O que lhes O dialeto caipira decorreu, no meu modo
dizem que é erro e ignorância, na verdade de ver, da predominância do português fa-
é história social, valorosa sobrevivência da lado sobre o português escrito, num uni-
nossa verdadeira língua brasileira. Se não verso de fala em que a população também
fosse assim, seria impossível rir daquela falava nheengatu cotidianamente, mais do
história de dois amigos mineiros que resol- que o português. Minha impressão é a de
veram temperar a prosa com café. E foram que o dialeto caipira resulta das dificulda-
para a cozinha. Água fervida, coador pre- des de nheengatu-falantes para falar o por-
parado, um pergunta para o outro: “Pó pô o tuguês, sobretudo a partir de quando a lín-
pó?”. E o outro responde, firme: “Pó pô!”. gua geral foi proibida. É nesse sentido que
De fato, somos um povo bilíngüe e o reco- afirmo que o dialeto caipira é uma deriva-
nhecimento desse bilingüismo seria funda- ção ou um desdobramento do nheengatu.
mental no trabalho dos educadores, em Ou seja, estamos falando de populações
particular para enriquecer a compreensão bilíngües. Há algum tempo a Câmara de
da língua portuguesa, última flor do Lácio, São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas,
inculta e bela, mais bela ainda porque inva- bem na fronteira, aprovou lei que reconhe-
dida por esse outro lado da nossa identida- ce o nheengatu como língua oficial, junto
de social, que teimamos em desconhecer. com o português, pois sua população fala
essas duas línguas. Presumo que haja casos
desse tipo na região fronteiriça do Mato

5. NHEENGATU E DIALETO CAIPIRA (3)


Grosso do Sul.
É claro que o dialeto caipira, como qual-
quer língua, também é dinâmico e evolui.
O considerado “falar errado”, no caso do Nota-se isso na facilidade de incorporação de
caipira, de fato não é “errado”. Trata-se de palavras novas na língua portuguesa, neolo-
um dialeto. No caso do falar caipira, trata-se gismos, mas também estrangeirismos, devi-
do dialeto caipira, uma variação dialetal da damente adaptados à pronúncia dialetal.
língua portuguesa fortemente influenciada As dificuldades de pronúncia de certos
pelo nheengatu ou língua geral. O dialeto sons da língua portuguesa pelos índios dos
caipira não foi criado pelos jesuítas. séculos XVI a XVIII e também pelos mes-
Foi-o o nheengatu, que de fato é tupi tiços, seus descendentes, os chamados cai- 3 Mensagem enviada a Benedi-
to Carneiro, leitor de meu arti-
regulado pela gramática da língua portu- piras, marcaram fundo as sonoridades do go sobre “A Proibição da Lín-
guesa, com inclusão de palavras espanho- dialeto caipira. Algo parecido com as difi- gua Brasileira”, em resposta a
um pedido de esclarecimento
las e portuguesas. A língua nheengatu se culdades que nós temos para línguas es- que me fez.

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6. LAÇOS INVISÍVEIS (4)
trangeiras e povos de outros países têm para
falar línguas diferentes das suas. Um dos
professores de inglês que tive na vida era
escocês. Confessou-me ele que, apesar de Sobretudo nas manhãs de maio e junho,
ter sido educado em língua inglesa, conti- e ainda nos primeiros dias de agosto, após
nuava sentindo dores no rosto quando fala- as férias de julho, os pés doíam muito nos
va inglês (continuava falando o escocês) oito longos quilômetros de caminhos e es-
porque tinha que forçar a musculatura da trada de terra que separavam minha casa de
face para falar a língua inglesa. Ou seja, há pau-a-pique e tábuas, chão de terra batida,
certos sons impossíveis de se pronunciar do Grupo Escolar “Pedro Taques”, na esta-
corretamente numa boca estrangeira. ção de Guaianases, na Estrada de Ferro
Os jesuítas utilizaram o tupi como refe- Central do Brasil. Naquela encosta de morro
rência para elaboração do nheengatu apa- em que minha família vivia, nessa época
rentemente porque foi a primeira língua com do ano as geadas castigavam sem dó. Des-
a qual tiveram contato no Brasil, falada calço, calça curta, camisa de manga curta,
pelas tribos da costa brasileira. Mas disse- desjejum de café preto com farinha de mi-
minaram o nheengatu em todo o Brasil, no lho, aquele longo caminho era um sofri-
trabalho missionário, até mesmo entre po- mento cotidiano para estar na escola às oito
vos de outros troncos lingüísticos, como o da manhã. Chegava na escola com os pés
jê, povos, aliás, inimigos crônicos dos po- encardidos e roxos de frio, para um turno
vos tupis (caçadores, uns, e agricultores, de quatro horas que terminaria no sol quen-
outros). O nheengatu foi na verdade um te e bem-vindo do meio-dia, sem merenda,
modo de unificar lingüisticamente tribos sem nada.
que falavam variações da língua tupi. Foi, Guaianases era um povoado rural de
sobretudo, uma forma de ter, além de uma umas quatro ruas, iluminadas à noite por
fala, uma escrita. lampiões a querosene. O Grupo Escolar, na
Na verdade, o dialeto caipira, resíduo Rua da Estação, tinha quatro salas de aula.
de uma proibição do rei de Portugal, se Levei seis meses para conseguir uma vaga
refugiou no interior do Brasil, onde era na sala do terceiro ano, transferido de mi-
menor o alcance da repressão lingüística nha escola de origem em São Caetano,
determinada pelo monarca no século XVIII. quando meu padrasto, analfabeto, resolveu
Por outro lado, as cidades da costa, especi- sair da fábrica onde trabalhava para voltar
almente as cidades portuárias, estiveram à roça, num pequeno sítio em formação.
sempre voltadas “para fora”, de costas “para Ficava num canto da antiga Fazenda Santa
dentro”, como dizia frei Vicente do Salva- Etelvina, dos tempos da escravidão, cujos
dor, primeiro historiador brasileiro, baiano velhos moradores ainda falavam de almas
do século XVII. A maior influência dos de escravos falecidos no cativeiro e de li-
portugueses legítimos nessa área da colô- bras esterlinas enterradas por um senhor de
nia e, depois, do país, firmou-se, sobretu- escravos sovina e mau. Quando finalmente
do, a partir do século XVIII, quando a ca- consegui a vaga, era numa sala de carteiras
pital da colônia foi transferida da Bahia para para dois alunos em que sentavam três, meio
o Rio de Janeiro. Além disso, a fortíssima atravessados para não dar cotoveladas no
presença do negro escravizado nessa cos- peito do vizinho.
ta atenuou a importância do dialeto caipi- Nisso tudo, não havia nenhum encanto.
ra e introduziu sonoridades de línguas afri- A não ser nas tardes de neblina, já de volta
canas, o que é bem claro na Bahia e em da escola, depois de duas horas de cami-
Pernambuco, mas também no Rio. Aliás, nhada no meio de pastos, roças e fazendas,
4 Publicado originalmente em: In- a USP também tem um curso de língua e do almoço de arroz, feijão e repolho,
forme, Informativo da Faculda-
de de Filosofia, Letras e Ciên- yorubá, a mais falada das línguas africa- quando o primeiro silêncio do fim da tarde
cias Humanas – USP, Nova nas no Brasil e a mais presente em ritos e era quebrado pelo último canto do sabiá-
Série, n o 36, dezembro de
2002, p. 3. práticas religiosas. laranjeira. Ouço-o até hoje, gravado no meu

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ouvido. Um canto profundo e triste, demo- parentes do lado materno, lá na Bragantina.
rado, lindíssimo, que se perdia por entre as Abandonei o emprego que, bem ou mal,
plantas do pomar de encosta que mal se via garantia meu sustento e ajudava a família e
do terreiro naquelas horas do dia. E parecia fui viver de bicos para poder freqüentar o
um cântico de adeus ao dia na mata próxi- Curso Normal matutino no excelente Insti-
ma, que na Quaresma ficava festivamente tuto de Educação “Américo Brasiliense”,
colorida pelas flores das quaresmeiras e dos de Santo André. Boa parte dos professores
manacás. vinha da USP. Lá dividi-me entre a socio-
O outro encanto, gravado na memória, logia e a história, motivado pelas respecti-
eram as aulas de um homem simples, bon- vas professoras, de grande competência e
doso e dedicado, hoje nome de rua no po- erudição. Acabei optando por fazer o ves-
voado que se transformou em periferia: tibular para ciências sociais na Faculdade
Professor Cosme Deodato Tadeu. Tinha de Filosofia, Ciências e Letras da USP e
sempre no rosto redondo um sorriso leve e entrei na turma de 1961, no curso noturno.
acolhedor, que mal escondia uma tristeza Naquele tempo, o mundo já era muito
profunda por um casamento desfeito, de grande. Mas a Faculdade de Filosofia era
que herdara um filho e o duplo papel de pai bem maior. Nossa faculdade tinha um gran-
e mãe. O encanto de suas aulas pacientes de projeto para o mundo, centrado na mis-
àquele amontoado de crianças estava tam- são do educador, projeto saído da cabeça
bém num maravilhoso livro didático: Uma de gente como o professor Fernando de
História e… Depois Outras, de Raphael Azevedo, os professores da Missão Euro-
Grisi, com pê e agá. péia, os primeiros alunos que se tornariam
De certo modo, aquele livro que eu lia docentes, como Antonio Candido, Florestan
e relia atava a vida à escola. Era como se Fernandes e outros muitos. De vários mo-
cada aluno fosse personagem de suas his- dos, em livros como o de Raphael Grisi e
tórias, uma seqüência de episódios distri- em aulas dos docentes por ela formados, a
buídos pelos quatro volumes, correspon- Faculdade de Filosofia chegava lá longe,
dentes às quatro séries, que contavam his- formava uma corrente tão eficaz quanto a
tórias de roça que se desenrolavam ao re- corrente de Santo Antônio. O projeto se
dor da crônica da família de um pequeno materializava no subúrbio e na roça, muito
fazendeiro de café, também professor, viú- além dos bairros chiques em que ainda se
vo, e seu casal de filhos, Lalau e Lili, e do falava francês em certas ocasiões, como
cachorro, Lobo. Eram já os tempos em que francês se falara em nossas salas de aula
só se falava na crise do café. Amigo dos dos primeiros tempos.
filhos do professor, Pascoalzinho, filho de Já no fim do bacharelado, fiz também a
colonos, personificava os sonhos e trajetó- licenciatura, que não era obrigatória e era
rias de milhões de pessoas, descendentes parte dos cursos que a faculdade oferecia.
de imigrantes com o destino atado à agri- O olho ainda continuava no magistério. No
cultura de exportação, ao eito, às leiras do dia da primeira aula de Didática Especial,
cafezal, às geadas adversas. Pascoalzinho entra na sala, no térreo lá da Rua Maria
cresceria e se tornaria administrador da Antônia, o professor da disciplina, já de
fazenda. cabelos grisalhos, e se apresenta: Raphael
Depois do término do primário, em Grisi, com pê e agá. Era também docente
1949, voltamos a São Caetano: a roça não no Instituto de Educação “Caetano de Cam-
dera certo. Em pouco tempo, eu estava na pos”, a escola da Praça. Esperei o fim da
fábrica, como aprendiz. Trabalhava de dia aula e fui procurá-lo. E perguntei: “E o
e estudava à noite. Num certo dia, decidi Pascoalzinho?”. Ele me olhou entre espan-
que queria ser professor primário na roça, tado e sorridente: “Ué, você também o co-
onde ainda estava a maior parte dos meus nheceu?!”.

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