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dossiê
brasil
educação na roça,
encontros e
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
desencontros
No Brasil continuamos a pensar as popu-
lações que vivem no campo e as populações que
vivem na cidade como duas humanidades divi-
didas por um intransponível abismo. Ignora-
mos completamente a extensa e profunda pre-
JOSÉ DE SOUZA
sença da cultura camponesa e rural mesmo em MARTINS é professor
aposentado do
metrópoles presumidas como modernas e com- Departamento de
Sociologia da FFLCH-USP e
autor de, entre outros, A
pletamente urbanas, como São Paulo. Eu me Sociedade Vista do Abismo
(Vozes).
arriscaria a dizer que, pela numerosa e densa
concentração populacional, a cidade de São Pau-
lo é culturalmente o maior aglomerado caipira
1. EDUCAÇÃO RURAL
campo só o é numa perspectiva reducionista
e pobre. Justamente a dos setores da socie-
E O DESENRAIZAMENTO DO
dade investidos da tarefa missionária do
enquadramento cultural dessas populações,
EDUCADOR (1)
No Brasil ainda há um grande movi-
mento de migração da zona rural para
as cidades?
No Brasil, é necessário ter cautela na
definição de cidade como lugar de destino
de populações originárias do campo. Co-
nheci, na Amazônia, na época mais intensa
e crítica da expansão da fronteira agrícola,
povoados com mais de dez mil habitantes,
casas de adobe ou pau-a-pique, sem nenhu-
ma característica propriamente urbana, nem
instituições urbanas, cuja população se
dedicava, na quase totalidade, à agricultu-
ra. E normalmente se considera um aglo-
merado humano de cinco mil pessoas como
localidade urbana e seus moradores como
1 Versão integral de entrevista pu-
blicada, com reduções, cortes
migrantes que se deslocaram do campo para
e reordenações, em: Fundes- a “cidade”.
cola, Boletim Técnico 53, Ano
VI, Ministério da Educação/ Os especialistas brasileiros estão cada
Fundo de Fortalecimento da vez mais em dúvida a respeito do que já foi
Escola, Brasília, novembro de
2001, pp. 9-11. quase que uma verdade oficial: um vertigi-
2. A MISÉRIA DE IDÉIAS NA
se trata aqui de fazer apologia do popular,
como muitos demagogicamente fazem nos
FARTURA DE PALAVRAS
dias de hoje, não raro, até, pensando num
suposto poder popular, que seria muito mais
(ERROS DE PORTUGUÊS E
o poder de manipular o popular do que
aquilo que o popular é.
DO ENEM)
língua do povo brasileiro. Certamente, não
é a língua das versões regionais de nossa
língua, tão maravilhosamente diferente nos
Repassou-me um amigo uma assusta- sons, nas palavras e na construção das sen-
dora lista de frases que teriam sido colhidas tenças entre o interior do Maranhão (onde
numa prova recente do Enem (Exame Na- se fala o melhor e o mais belo português do
cional do Ensino Médio). A lista, que trans- Brasil) e o interior do Rio Grande do Sul. Ou
crevo abaixo, vinha originalmente acom- entre o áspero português dos cariocas, pro-
panhada de comentários curtos e agressi- vavelmente resíduo do forte sotaque lusita-
vos. Esses comentários foram, provavel- no da Corte, e o doce e lento dialeto caipira
mente, feitos pela pessoa que teve acesso do interior de São Paulo, de algumas regiões
às provas e resolveu preparar e difundir a de Minas, de Goiás e do Mato Grosso, o
lista. Não é a primeira vez que educadores dialeto de meus tios e primos, trabalhadores
fazem isso. São comentários que lembram rurais lá na região da Bragantina.
muito um tipo de professor, infelizmente, Tenho feito pesquisas sociológicas em
ainda comum em nossas salas de aula, mis- quase todo o Brasil, em remotas regiões
to de burocrata e polícia, bem distante do rurais, verdadeiras ilhas do que os cientis-
docente de sacerdócio que todos nós gosta- tas sociais de uma certa época definiam
ríamos de encontrar em nossas escolas e como atraso, atraso que esteve no centro
que muitos de nós chegaram a conhecer. das preocupações emancipadoras das eli-
Certamente, não só os erros de redação, tes brasileiras ao longo de toda a história
mas também as concepções, ali revelados republicana do país. As inquietações das
são mais que lamentáveis do ponto de vista pessoas que se presumem cultas, com erros
da classe média que gostaria de impor ao como os encontrados nas provas do Enem,
país e ao povo a sua própria língua pasteu- são provavelmente sobrevivência dessa
rizada e pobre. Por outro lado, já li decla- época e dessa mentalidade.
rações de pessoas responsáveis tentando Não se trata de fazer a apologia dos erros
amenizar esses erros e até tentando justificá- e concepções ingênuas contidos nos resulta-
los, como expressões de uma cultura au- dos das provas do Enem. Trata-se de distin-
tenticamente popular. guir, no simplismo acabrunhante da estrei-
Não vou por aí. Para mim, os erros são teza e da pobreza das idéias que foram pas-
reveladores de coisas bem mais interessan- sadas aos alunos pela escola e pelos profes-
tes e bem mais complicadas do que o que sores, o que há de singular e válido na língua
pode ser contido no rótulo de “ignorância” e na linguagem dos escolares.
ou, para os mais agressivos, de “burrice”. No final dos anos 70, como parte de um
Em primeiro lugar, os erros são erros do grande projeto pessoal de pesquisa sobre a
ponto de vista da língua portuguesa oficial situação dos trabalhadores rurais e as lutas
Apêndice
vras, algo muito próprio de uma cultura de
sermão e de palanque.
Encontro o mesmo problema em outra
frase: “Tudo isso colaborou com a estinção Esta relação me foi enviada por um
do micro-leão dourado”. A palavra “micro” amigo, com a informação de que se trata de
chegou bem mais longe do que o próprio textos colhidos numa prova do Enem:
microcomputador. E, provavelmente, o
único mico-leão-dourado que esse jovem “O nosso ambiente. Ele estava muito estra-
viu foi na televisão. O necessário discurso gado e muito poluido por causa que, os
sobre o risco de extinção do mico-leão-dou- outros não zelam pelo ar puro.”
rado também chegou mais longe do que o
próprio belo animal, habitante de espaços “O serumano no mesmo tempo que cons-
restritos e regiões determinadas. Queremos trói também destrói, pois nos temos que
que todos estejam preocupados com os ne- nos unir para realizarmos parcerias juntos.”
“[…] os pequenos animalzinhos morrem “Os animais acabam sem água para beber
queimados e asfixados.” e para tomar banho.”
“Hoje endia a natureza […].” “O direito humano para mim tinha que ser
igual para todos.”
“No paíz enque vivemos, os problemas
cerrevelam […].” “Eu concordo em gênero e número igual.”
“[…] menos desmatamentos, mais flores- “Na época de Cristo não havia indústrias
tas arborizadas.” para poluir e assim mesmo havia proble-
mas sociais entre os povos.”
“[…] provocando assim a desolação de
grandes expécies raras.” “As vezes penso comigo mesmo e chego a
mesma conclusão que chegou Renato Rus-
“O desenvolvimento trás um grande lado so: Que país é esse?”
positivo e um grande lado negativo para o
meio ambiente.” “Os homens brasileiros, estão acabando
com tudo, as árvores para desmartar para
“Nesta terra ensi plantando tudo dá.” fazer tauba e outra coisa.”
“Isso tudo é devido ao raios ultra-violentos “O homem não está mais valorizando a sua
que recebemos todo dia.” pátria ambiental.”
“Existem dois tipos de animais: os que vi- “Precisa-se começar uma reciclagem
vem em cativeiro e os que não vivem. Ul- mental dos humanos, fazer uma verda-
timamente, surgiram um terceiro tipo que deira lavagem celebral em relação ao
corresponde aqueles os que são presos pela desmatamento, poluição e depredação de
polícia federal.” si próprio.”
“Tudo isso colaborou com a estinção do “Já está muito de difícil de achar os pandas
micro-leão dourado.” na Amazônia.”
4. A PROIBIÇÃO DA LÍNGUA
BRASILEIRA (2)
Matéria publicada na Folha Ilustrada
(18 de junho de 2003) dava conta de que
uma nota da Anatel (Agência Nacional de
Telecomunicações), de agosto de 2002,
sobre um programa radiofônico da FM
Educativa, de Campo Grande (MS), trans-
mitido na língua nheengatu, levantava a
questão da sua legalidade em face de uma
lei de 1963 que proíbe veiculações radiofô-
nicas em língua estrangeira. A dúvida da
Anatel põe em questão a legalidade da lín-
gua ainda falada por brasileiros de várias
regiões do país e em suas variantes residu-
ais ainda falada por milhões de brasileiros,
especialmente crianças e iletrados, que só
aparentemente falam o português oficial dos
decretos.
O nheengatu, também conhecido como
língua geral, a língua que se quer proibir,
é a verdadeira língua nacional brasileira. O
nheengatu foi língua desenvolvida pelos
jesuítas nos séculos XVI e XVII, com base
no vocabulário e na pronúncia tupi, que era
a língua das tribos da costa, tendo como
referência a gramática da língua portugue-
sa, enriquecida com palavras portuguesas
e espanholas.
A língua geral foi usada correntemente
pelos brasileiros de origem ibérica, como
língua de conversação cotidiana, até o sé-
culo XVIII, quando foi proibida pelo rei de
Portugal. Mesmo assim continuou sendo
falada.
Da língua geral ficou como remanes- 2 Publicado originalmente em:
cente o dialeto caipira, tema de dicionário Folha de S. Paulo, Tendência &
Debates, 20 de julho de 2003,
e objeto de estudos lingüísticos até recen- p. 3.