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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO


RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO

Analisaremos aq u i os traba lhos mais importantes de autores que fi -


ze ram abo rdagens s ig n ificativas no estudo do sinc retismo religioso afro-
brasileiro. Sem a pretensão de esgotar o assunto, faremos um balanço críti co
da produção acad ê mica sob re este tema. Tal a nálise é importante pa ra os
objctivos de nosso trabalho, pois p ermiti rá uma aval iação crítica elos estu-
dos sobre sincreti s mo c nos ajuda rá a realizar um levantamento dos princi-
pais modelos ou tipos de si nc rct ismos encontrados na li tcra tura, par a
e ntender me lhor este fe nômeno . Existe, ev iden temente, vasta bibliografia
sobre o negro c as re li g iões afro- brasileiras que se ap rox ima deste tema c
que não será discutida aqui, pois nos limitaremos a autores que se ocupam do
sincretismo nas reli g iões afro-brasileiras. Estuda remos o assunto, reunindo os
autores na med ida do possível, na escola teórica a que estão mais vinculados.

EVOLUCIONISMO

Nina Rodrigues

Nina Rodri g ues é o fu ndador do campo de co nhec ime ntos científicos


afro-brasi leiros. A pa lavra si ncre tismo , relacio nada a seus escritos, j á era
utili zada na época por Marcel Mauss ( 190 I , p. 224) na resen ha no L 'Ann ée
Sociologique, elogiando a "elega nte monog rafia do médico baiano". Nilo
chegamos entretanto a localiza r a palav ra s inc reti smo cm seus traba lhos.
Nina Rod rigues, entretanto, discorre mui tas ve zes so bre o fenômeno, uti-
lizando expressões equivalentes, tai s como: fu~ão c dua lida de de c renças,
justaposição ele exterioridades c de idéias re lig iosas, associação, adaptação
c equiva lência de divindades, ilusão da catequese c outras.
42 REPENSANDO O SINCRETISMO

Rodrigues (1935, p. 13) estava convencido, de acordo com a pers­


pectiva evolucionista dominante na época, da incapacidade física "das raças
inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo", e procurava demons­
trar que o fetichismo africano dominava na Bahia como expressão religiosa
do negro e do mestiço. No capítulo em que discute a conversão dos afro­
baianos ao catolicismo (1935, pp. 168 e ss.), faz distinção prévia entre os
negros africanos, que ainda existiam na Bahia, e seus descendentes e, de
outro lado, os negros crioulos e mestiços. Constata que os primeiros com­
preendiam mal o culto católico e para eles a conversão era apenas uma
"justaposição de exterioridades", enquanto para o negro crioulo e para o
mestiço, as práticas fetichistas e a mitologia africana vão degenerando de
sua pureza primitiva (l 935, p. 170). Considera, porém, que nesta fase de
transição curiosa, mesmo quando tiver desaparecido com os últimos africanos
a prática de seu culto, será difícil demonstrar que o cuito dos negros aos
santos católicos é fetichista, termo que ele próprio (1935, p. 27) afirma se
prestar mal para qualificar as crenças africanas.
Nina Rodrigues (l 935, p. 171) faz também distinção entre candomblés
africanos - terreiros de gente da Costa - e os candomblés nacionais - de
gente da terra, crioulos e mulatos. Posteriorn1ente (] 977, pp. 253-254) apre­
senta outra distinção entre duas formas de adaptação fetichista do culto
católico. Uma interna ou subjetiva, que prevalece quando a direção do culto
é confiada a um sacerdócio mais ou menos esclarecido e o fenômeno tem a
feição que ele descreveu no trabalho anterior (1935). A outra seria externa
ou cultuai, ocorrendo quando os negros assumem livremente a direção do
culto. Documenta e exemplifica ( l 977, pp. 254-260) estas asserções, citando

1
uma cerimônia dos Metodistas Uivadores nos EUA e a cabula, des_crita..110
�stado do Espírito Santo pelo bi_spo católico Q._João_C�rreia _Nery/ La_men-
tamos entret�1to que, tendo deixado sua obra 1nacabacl-a;-N111a odngues \
não tenha detalhado melhor a distinção que fez entre a adaptação interna ou
subjetiva que lhe parece ocorrer no candomblé da Bahia (1977, p.255) e a
adaptação externa ou cultuai, identificada por ele no que posteriormente
será chamado de macumba e mais tarde de umbanda (Silva, 1987, pp. 65-'
85). O sincretismo ou a ;'adaptação fetichista ao catolicismo", no dizer de
Nina Rodrigues, no candomblé e na umbanda, parece hoje mais claramente
distinto do que em fins do século passado, ao tempo de suas pesquisas_ : ----...
:
Para Nina Rodrigues, é a equivalência das divindades que dá a ilusão
da conversão católica, pois, "sem renunciar aos seus deuses ou orixás, o
negro baiano tem pelos santos católicos profunda devoção" (1935, p.182).
Cita casos comprovando esta dualidade do fervor religioso, demonstrando
REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO. ..

ser freqüente a prática dos dois cultos pela mesma pessoa (1935, p.184),
pois tanto na Bahia como na África, "todas as classes, mesmo a dita supe- .. � "�
rior, estão aptas a se tornarem negras" (1935, p.186). Afirma ser consi- L--­
derável o número de brancos, mulatos e indivíduos de todas as cores que,
em caso de necessidade, vão consultar os negros feiticeiros, mesmo quando

,----
em público zombam deles, e por isso não será para muito cedo a extinção
dos cultos africanos n.a Bahia. Diz que não só o culto católico, como tam-
bém as práticas espíritas e a cartomancia receberam na Bahia influências
do fetichismo negro (1935, p. 194). Assinala (1977, p. 245) a extraordinária
resistência e a vitalidade das crenças da r�ça negra apesar dos preconceito�,
1 ct.;is perseguições e da repressão policial. Para ele, o cultojeje-nagô é uma
1 verdadeira religião, e por isso deve merecer as garantias de liberdade cons­
titucional (1977, p. 246)."Também constata (1977, p. 230) que, na Bahia,
prevale�e esta mitoiogia, cuja fosão íntima acredita, segundo Ellis, ser de­
vido a estes povos provirem de um tronco ancestral comum.
Aceita sem discutir a perspectiva evolucionista e racista da época,
empregando conceitos e pontos de vistas hoje superados, como o de inferio­
ridade cultural e racial. Verificamos entretanto que Nina Rodrigues possuía
visão penetrante dos fenômenos que estudava. Embora evite usar a palavra
sincretismo, como muitos até hoje, e enfatize a idéia da ilusão da catequese,
constatamos que Nina Rodrigues foi de fato o pioneiro entre nós dos estu­
dos sobre sincretismo. Fazia distinção entre negros mestiços e africanos e
seus descendentes, importante na época para caracterizar formas diferentes
ele conversão ao catolicismo. A distinção que fez entre a adaptação subie l ...
J ,:,\1--.Y) •'
iva ou 1�0 cato 1cismo, que localiza no candomblé, e a cultuai oJ
'externa, que exemplifica na cabula, infelizmente não foi mais elaborada por
ele, mas parece igualmente interessante na caracterização do fenômeno cuj�
, bservação_±:cta tão bc�m�1tou5

CULTURALISMO

Arthur Ramos

Cerca de trinta anos após a morte de Nina Rodrigues e durante duas


décadas, Arthur Ramos foi seu divulgador e continuador. Teve rápida ascen­
são acadêmica e também vida curta. Médico nordestino, como Nina, dedi­
cou-se igualmente à medicina legal e tornou-se o primeiro professor de
44 REPENSANDO O SINCRETISMO

antropoiogia na Universidade do Brasii, onde fundou e dirigiu a Sociedade


Brasileira de Antropologia e Etnologia. Ajudou a organizar e publicar tra­
balhos de Nina Rodrigues. Publicou muitas obras, inclusive uma volumosa
JntroduçZio à Antropologia Brasileira cm 2 volumes (1943-1947). Sobre o
negro publicou vários livros; entre os mais importantes podemos apontar:
O Negro Brasileiro (1934), Aculturaçüo Negra 110 Brasil (1942) e As
Culturas Negras (1943). Em sua época a teoria culturalisra, dcsenvoivida
na antropologia norte-americana, encontrava-se no apogeu, e Ramos a ado­
tou, embora lhe fizesse algumas críticas, como vcri ficamos adiante.
Realiza, cm diversos trabalhos, apreciação crítica das obras de Nina
Rodrigues, de quem se considerava continuador. Afirma ( 1942, pp. 5-7) que
o mestre Nina foi o pioneiro no estudo do mecanismo que os modernos
antropólogos passaram a denominar de aculturação cm capítulo onde exami­
na "o essencial do que dcriois retomaríamos com o nome de 'sincretismo
religioso' entre os negros brasileiros".
Ramos (1942) foi de fato o primeiro estudioso brasileiro a analisar o
sincretismo sob o ponto de vista da teoria culturalisra, difundida largamente
desde a década de 1930. A este respeito diz: 'O que Nina Rotfrigucs julgou
rcomoscnê o""umã J��lla fusão 110 crioulo C mui ato,
não são mais do que etapas do processo de acuituração, graus <le sincretismo,

- --
pela maior ou menor percentagem de nccitaçâo, por um grupo rcl igioso, dos
-
traços culturais de outro grupo" (1942, p. 9).
----- - ,

------- - - ------
Prefere chamar de sincretismo o que Nina Rodrigues chnrnou de
-. � -
"i I usãÕ da catequese" e Fcniãnclo Ortiz de "a a rente cato] ização dos negros".
�..
Lembra ( 1942, p. 34) que o termo aculturação ja era empregado pelos ingle-
ses, americanos e alemães desde 1880, e somente cm 1936 pode ser definido
cm sua exata significação, embora os europeus prefiram a expressão con­
tatos de culturas.
Estudando os processos de contatos sociais e culturais e constatando
que os conceitos de adaptação, acomodação, ajustamento e acuituração, etc.,
variam de acordo com os pontos de vista das várias e ·colas Ramos adota a
definição de aculturação apresentada cm 1936 por Linton, Rcdficld e
Hcrskovits.
Procurando conciliar métodos de estudo da aculturação com a psi­
canálise, Ramos (1942, p. 41) inclui, entre os rcsultn lo· culturais da acul­
turação, aceitação, sincretismo, reação. Diz preferir chamar ele sincretismo
o que os norte-americanos chamam de adaptação, expressão que possui sig­
nificado biológico aceito nas ciências e cujo emprego com outro significado
pode acarretar confusões. Ampiiando o significado de sincretismo, diz:
IIEVJS,iO DA LITERATURA SOBRE S!NCRE71SM0...

Ser:í preferível chamarmos ao resultado harmonioso, ao mosaico cultural sem 1 ,


conflito, com participação igual de duas ou mais culturas cm contato, cic si11crc1ismo. r
Ampliamos assim o significado de um termo que já havíamos empregado com rcfc- ,, �.-
rência :i cultura espiritual, especialmente religiosa. Parece-nos que o signficacio de
sincretismo deva ser estendido a todos aqueles casos de resultados harmoniosos de
contatos culturais, não só espirituais como materiais, ou todos aqueles casos que os
norte-americanos chamam de adaprnção ( 1942, pp. 41-42).

Assim, para Arthur Ramos, o sincretismo não se restringe exclusiva­


mente ao domínio religioso, embora seja este o domínio mais típico e o que
ele mais se dedicou a estudar. Na definição de sincretismo apresentada por
Arthur Ramos, enfatiza-se o aspecto de processo harmonioso, sem confli­
tos, de culturas em contato. Poste ri ormentc o próprio Ramos irá constatar
que este processo não é sempre tão harmonioso e pouco conílitivo espe­
cialmente nos casos de colonização, de dominação e ele escravização.
Em um de seus últimos trabalhos, ao discutir o problema geral da acul­
turação (1947, pp. 475-483), Ramos relaciona a europeização do mundo
�_imper�alisnw, a dominação, a colonização, a destruição c_tiltu�l, o
preconceito racial, as luta�ontra a dõiilinação européia e ós processos de
1:'Jª
-----
contra-aculturação. d_écada de 1940 tais associações não eram comuns,
como p., saram a ser LO ou 15 ano mais tarde. Também não era freqüente,
cm autores que abordam a acullL1ração, relacioná-la com o imperialismo, a
colonização e a dominação cultural. Ramos já constatava, assim, que o
processo de nculturação não 6 sempre tão harmonioso e sem conflitos como
prevê a teoria culturalista. -
t}·
'Em diversos trabalhos Arthur Ramos apresenta quadros e csq-uemas de -?'4-,.;!"7:._­
sincrclismo que são comuns cm ourros autores da época vinculados ao cu!-
turalismo. Referindo-se à avalanche de sincretismos, apresenta esquemas
com · ·cjc-na.g§.-1!.1�5�2.1 i_-banto-catql ico-espí ri ta-caboclo ( 194],, p. 146). 1

--
Arthur Ramos infelizmente morreu cedo, com apenas 46 anos, co;,o (..
Nina Rodrigues. De fato não foi um grande !eórico, nem grande pesquisador·�
- .,,-
ç!_CJ;l)mp_o. A respeito de sincretismo e de aculturação, apresentou uma sín- �
..---- -'

tese cio que os outros escreveram, acrescentando detalhes, sugcstõcs_e_algu­


�Õs esquemas e classificações sobre sincrclismo-;eligioso qu'
utiliza parecem hoje demasiadamente formais, mccanic�,-9... ucmáticos.
•·� de reduzido valor explicativo.l
L---_Para �o é, portanto, um dos resultados do processo
de acuituração. Corno era comum na época, não distingue sincretismo de
aculturação e não entende sincretismo corno forma de resistência cultural,
como será encarado posteriormente. Adotando visão esquemática e con-
46 REPENSANDO O SINCRETISMO

ceitual, parece-nos que Ramos não conseguiu chegar a uma teorização mais
abrangente e objetiva sobre a real idade que estudava.

Gonçalves Fernandes

Em inícios das décadas de 1940 e de 1950, surgem dois trabalhos sobre


sincretismo religioso, puplicados por médicos da Escola de Recife de estu­
dos afro-brasileiros fundada por Ulysses Pernambucano e Gilberto Freyrc.
Ao que nos consta, são os primeiros livros com título sobre sincretismo,
entre nós.
Gonçalves Fernandes publicou vários trabalhos sobre o tema. Seu livro
sobre sincretismo rei igioso no Brasil (1941) é uma coletânea de artigos que
contém diversas observações sobre mudanças nas religiões populares.
Apresenta fotos, inclui cânticos, orações, mitos, invocações, lendas, relatos
de curas e comenta alterações decorrentes de perseguições policiais aos ter­
reiros. Descreve aspectos do xangô, do catimbó e de vários outros cultos
exóticos no Nordeste, cm Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Aponta ainda
aspectos do surrealismo da religiosidade popular, cm que se misturam ele­
mentos negros com outros de procedências variadas, com a presença de imi­
- - - --
grantes japoneses, libaneses e itaiianos.'Comcnta o aparecimcn1o, nãcÍ6ca a

----
-
! de 1930, da macumba para se ganhar jogo de futebol e da macumba para
1 turistas.l�asos de curaüorcs e beatos que constroem tem.pi.os bizarros
� ----------
e organizam seitas estranhas. O trabalhó apresenta informações interes-.
santes,cl· umen a-dâsdefÕrn1a quase jornaiística, assemelhando-se aos
,
'
escritos de João do Rio, de inícios do século, incorrendo cm prcconceitos1
ainda comuns em trabalhos da época. • -

Waldemar Valente

Doze anos após a publicação de Fernandes, outro médico do Recife,


Waldcmar Valente (1976), publica o segundo trabalho entre nós com o título
Sincretismo Religioso, dedicado às religiões afro-brasileiras. Propõe-se dar
continuidade, ampliar e/ou adaptar os estudos de Nina Rodrigues, Arthur
Ramos e Herskovits.
Adotando a perspectiva da teoria culturalista, Valente ( 1976, p. 1 O)
define sincretismo como: "um processo que se propõe a resolver uma situa­
ção de conflito cultural". Para ele sincretismo se distingue de aculturação,
de assimilação e de amalgamação, caracterizando-se por ser uma intermis-
REVISÃO IJA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO... 47

mra de elementos culturais, uma imerfusão, urna simbiose entre compo­


nentes de culturas cm contato.
Considera que o sincretismo, como processo de interação cultural,
abrange duas fases. A primeira, de acomodação, de ajustamento e de redução
de conflitos. A segunda, de assimilação, implicando modificações ou fusão,
num processo lenro e inconsciente em que o tempo exerce sua ação.
Referindo-se diversas vezes à incapacidade mental do negro, parece­
nos que Valente adota a visão da mentalidade primitiva de Lévy-Bruhl, que,
segundo o próprio Valente (1976, p. 16), teria pe�dido a razão de ser. Sobre
sincretismo afirma (1976, p. 68): 'Nos candomblés de caboclo processa-se· td
um sincretismo complexo, no qual se entrosam elementos de procedência
nagô, jeje, banto, mina, malê, tupi, católica e kardecista. Misturados ainda

--�
com possíveis vestígios esotéricos, teosóficos e maçônicos. E também com
-,�-- ----...____
ráticas de quiromancia e cartomancia". r-
Assim Valente amplia os quadros do sincretismo, acrescentando novos
,.

dados aos elementos coietados por Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Adota,
porém, a mesma visão de Arthur Ramos que nos parece automática, mecânica
e pouco esclarecedora.rcJóvis Moura (1981l-;-p-:-39, criticando Valente, re­
f�à "neccssidad�e se analisar a influência do conceito de sincretismo
criticamente, pois ele inclui um julgamento de valor entre as religiões infe­
riores e superiores que, pelo menos no Brasil, reproduz a situação da estru­
tura social de dominadores e dominados".
Vemos que Valente, embora incorrendo cm preconceitos, procura
ampliar a noção de sincretismo, distinguindo-a do conceito de acuíturação
e caracterizando suas ernpas. Apesar de deficiências, os trabalhos cic
Don alves Fernandes e Walde1�1ar. V:1-lcntc sobre sincretismo foram pio­
neiros em sua época._'Posteriormeme não encontramos novas tentativas de
< análise do si ncretisl}10 com tais a111�ições general izadoras.1

Herskovits e a teoria cu/tu ralis ta

Melville Herskovits foi um dos principais estudiosos da corrente cul­


tura lista narre-americana. Co-autor do Memorandum pelo Estudo da
Aculturação de l 936, realizou numerosas pesquisas sobre o negro na África
e em vários países das Américas. Foi o principal teórico do culturalismo
nos estudos sobre negros e religiões afro-americanas. Desenvolveu suus
análises principalmente em torno dos conceitos de foco cultural, província
cultural do Velho Mundo, aculturação, dinâmica da cultura e mudança cul­
tural. Deixou vasta produção com quase 500 títulos, conforme apreciação
48 REPENSANDO O SINCRETISMO

de Rcné Ribeiro (1963, pp. 377-429). Em 1948, de forma clid�tica, expõe a


' teona da cultura cm obra hoje dâssica (1969).
-
Considera que foco culturnl consiste na instituição de uma cultura que
apresenta maior complexidade, maior variação e onde ocorrem as maiores
mudanças ou onde o conservantismo aparece com maior intensidade (1969,
pp. 363-375). Para Hcrskovits, nas culturas da África Ocidental e cm suas
derivadas no Novo Mundo, a cuitura é o elemento focal ( 1969, p. 374).
Como nestas regiões su;is crenças não continham dogmas rígidos, os deuses
dos vencidos e dos vencedores foram livremente tomados de empréstimo
(1969, p. 375).
Define reinterpretação como --o processo pelo qual antigos significa-
1
dos se adscrevem a novos elementos ou através do qual valores novos
mudam a significação cultural de velhas formas" (pp. 375-376).!CÕnside�
·'-õ
l
siTicrcfisrilo como forma de reinterprctação dos e eme os-de :i,,a cultura.[
·� sim, para ele, sincretismo e reinterpretação constituem c omponcntcs_ci<?J
� _
d1;ilogo
r entre o velho e o novo Constata que o processo de s1ncrct1smo tam-
------��
.,-
'iiém ocorreu entre entidades dos Haussás da Nigéria, que foram maome-
wnizadas com elementos do Alcorão (1969, p. 376).
Utiliza o conceito de província cultural do Velho Mundo (_ 1941,
p. 18), reconhecendo que, apesar da autonomia entre civilizações, há
tradições e instituições similares, especialmente no foiclorc, na rciigião e
cm outros aspectos ela cultura ele povos ela Europa, Ásia e Africa. Elementos
culturais distribuídos cm todo o Velho Mundo podem se manifestar, por
exemplo, cm sobrevivências de afiicanismos no Novo Mundo, que emergem
de contatos entre povos de procedência européia e africana.
No trabalho que apresentou cm Co1:!_gresso na B_ahia 1 sobre dcusc
africanos e santos católicos (1940, p. 21), considera que é a influência cio
catolicismo, "juntamente com vestígios hodiernos do medo de que os cul­
tos africanos sejam focos de revolta popular - medo constantemente pre­
sente no entendimento dos europeus durante a cscravidifo - que explica a
inferior posição social mantida por estes 'cultos fetichistas' onde quer que
seja". Apresenta também correspondências entre deuses africanos e santos
católicos no Brasil, cm Cuba e no Haiti, constatanclo que as divergências

1. Em rclnção no 13rnsil, l lcrskovils deixou diversos trabalhos importantes. Realizou observnções


dircws entre 1941 e 1942 cm Rccifo, Salvador, Rio de Janeiro, S5o Paulo e Porto Alegre. Oriemou
trabnlhos de pesquisadores brasileiros, publicou numerosos artigos e encaminhou trabalhos aos
jil5 il

congressos afro;brasilciros de Recife cm 1934, de Salvador.5111 1937 e de amcncanisias em São


Paulo em 1954. Como mencionam 13astide e outros, l lcrskovils parece que ao chegou a publicar
todo o material que coletou no 13rnsii.
REVISÃO DA LITERATURA SOBIIE SINCRETISMO ... 49

nas identificações c m difere ntes iocais deve- se ao fato de o si ncretismo ter-


se desenvol vido independentemente cm cada região. ./ ,
En~rJcrên ciãnâ13âhi a (1943, pp . 23 -26), analisa a possessão no
cando m blé, q ue fora até então explicada cm te rmos de a norma l e p sicopa- \
tológica, cm g rand e parte porque as obse rvações foram feitas p rinc ipa l-
me nte por médi cos. P assa a anal isar a possessão cm termos cu lturais: não)
como fe nô meno ano rm ~ -- - -
S'cgrrhdo Ribe iro t 1963, p. 385), esta conferênc ia, que fo i repetida em
várias capitais, exe rceu influênc ia conside rável entre os q ue se dedicavam
a os estudos do negro e ntre nós. Hcrskov its co nh ecia bem o fenômeno do
tran se c d a possessão rel igiosa a partir de suas observações na África c nas
A mérica s. Tal vez s uas pesq ui sas no Brasil te nham- no levado a dar maior
ê nfase a este compo ne nte fund amc nral da rel igião dos orixás.
Em sua obra teórica ( 1969, t.I, pp. 89-90), ana lisa a possessão na pers-
pectiva do_____________.
re lativismo cultural, constatando que o tra nse é mode lado c u! -
tu ral mcntc c induzido por ap rendi zagem e di sciplina. Sem dúvida s ua visão
deste fe nômeno fo i pio ne ira, c sua in fl uênc ia, decisiva pa ra a s uperação ele
preconceitos, se ndo atua l a inda h oje.
Hcrskovits ( 1969, pp . 34 7-348) lemb ra q ue o c ientista social cubano
Fernando Ortiz cri ou o neologismo " transcultura ção" para substitui r a palavra
acult uração. Co nsidera q ue poderia se r ace ito pa ra exp rimi r o co nceito, se
a palavra aculturação não estivesse tão fixada na litcra tura 2 .
Di scuti ndo o conceito de aculturação ( 1969, pp. 341 -362), Hcrskovits
acen tu a a importância da te rm ino logia c do uso de conceitos o mais c lnros
possí ve l como fe rra me nta da pesq uisa (p . 343). Considera q ue a acultu ra-
ção nunca teve qu ali dade crn ocên trica (p. 348) c que o termo não impl ica
q ue as c ulturas c m contato se d ist inga m um a da outra c m ·'superio ridade".
Também faz di sti nção entre co ntatos am istosos c hostis, afirmand o qu e e m
ambos se processa a acuituração. Refere-se ainda a mov imentos contra-ac ul-
tu rativos c ao aba nd o no da busca de c ultu ras '·puras" ( 1969, p . 362) .
A lunos de Hcrskovits realizaram também importantes estudos no Brasil
na pe rspectiva ela re01·ia culru rali sra. Octávio da Costa Eduardo ( 1948) reali-
zou pesqu isa no Maran hão, q ue d i sê~ir~ll OS no p róx imo capítul o. Renê
"-...... _.

2. Fernando Ortiz ( 1983, p. 90 ) ass11n explica sua proposta: "'Entendemos que o vocábulo transcul-
:u:-açào expressa melhor as difcrcmcs fa ses ôo processo transi tivo de uma cu llura noutra, porque
nfi o consiste somente c m adqu irir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica a palavra anglo-
amcricana aculluraçfio , mas que o processo implica necessa ri amente a perda ou o dcscnrniza·
mcnto de uma cultura precedente, o que poderia ser dito como sendo uma parcial tlesculturação.
e, além disso, si g nifica a conseqüente criação ue novos fenômenos cu lturai s , que pod eria ser
dcnom!t~ad ~ de ncocuiluíação':. '
50 REPENSANDO O SINCRETISMO

-
Ribeiro desenvolve até hoje estudos sobre o negro, religiões afro-brasil eiras
-
c outros assuntos, especialmente em Pernambuco.
Em vário s trabalhos René Ribeiro di scute aspectos do sincretismo.
Num deles ( 1955, pp. 473-491), anali sa o si ncretis mo na persp ect iva do
processo de reinteprctação, documenta ndo a inco rporação nos cultos afro-
brasileiros óe práticas do foiciore derivadas do rc isado, das congad as e dé
padrões de conduta sexual africana. Ribeiro, co mo ve remo s adiante, fa z
várias críticas aos tra balhos de Bastide.

Tullio Seppilli

O antropólogo italiano Tullio Scppill i ( J955a; b; c), na década de 1950,


publicou em Roma dois artigos e um anexo, num total de umas cem páginas,
sobre sincretismo afro-brasileiro c aculturação. Os a rtigos foram traduzidos
pelo Instituto de Estudos Bra sileiros da US P, na década de 1970, m as não
estão publicados no Brasil, sendo difícil localizá-los. Trata -se de estudos
bem documentados c criteriosos, com referências bibliográficas numerosas.
Po s icionando- se a favor do materialismo hi stó rico e utilizando a
me tod ol ogia da aculturação, Scppilli se interessa por estud ar religião c sin-
c retismo afro-brasileiro. Bastide ( 197 1) o cita me ia dúzia de vezes, co n-
cordando co m suas idéias ou di scordando delas. Parece qu e seus trabalhos
não tive ram muita divulgação no Brasil, embora sejam citados por alguns
autores. O professor João Batista Borges Pereira nos di sse que, na época, o
sincretismo e a teoria da aculturação foram considerado s temas ultrapassa-
dos, suplantados por outros assuntos c nov as teorias, sobretudo pelos estu-
dos de cl asses soc iais e pelos trabalhos de Lé vi- Strau ss.
Considera (Scppill i, 1955a, p. 15) que o si ncretismo com a reli g ião
católica foi mai or na liturgia elo que na mitologia. Diz que na liturgia encon-
tram os a presença africana nos cânticos, nos instrumentos, no ri tm o, na
melodia, nas danças, nas co midas sacras, e que o alta r c santos catól icos são
englobados como influências secundárias pela liturg ia afro-brasileira. Afirma
(id. ib.) que "dessa man e ira o estudo da liturgia le va a uma m aior co m-
preensão[ ... ] do sincretismo".
Mostra preocupação metodológica em realizar uma interpretação cien-
tífi ca do sincre ti smo para co mpreender as religiões afro-brasileiras. Afirma
ainda não ter enco ntrado sol ução orgânica que permita uma aval iação crítica
e a sistem ati zação elo fenômen o cm seu conjunto. Refere-se (1955a, p. 14)
à necessidade ele estudar o sincretismo na perspecti va histó rica.
REVISÃO DA l/TERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 5/

.-,--.J Seppilli aceitapreconceitos comuns na época, como a referência à


, superioridade cultural dos iorubás e dos escravos islamizados ou a prcocu­
' pação com a pureza africana. Prevê o desaparecimento fatal e progressivo
dos cultos afro-brasileiro� (1955a, p. 26t_ Bastide ( 1971, p. 334) o critica,
a nosso ver injustificadamente,-por utilizar livros e artigos que diz serem
ultrapassados e incorrer no erro de dizer que os mitos estão perdidos. Seu
trabalho, entretanto, apresenta preocupações científicas bastante avançadas
cm relação aos padrões da época.

Críticas à teoria culturalista

Como demonstram diversos autores (Cardoso de Oliveira, 1978, pp.


83-84), a leoria culturalista não leva devidamente em conta o caráter de
sistema da cultura de uma sociedade e sua estrutura, daí insuficiências e
inadequações desta abordagem, sobretudo em regiões subdesenvolvidas
onde se considera que existem verdadeiras colônias internas. Estudando
sociedades indígenas e suas relações com a sociedade nacional, Cardoso de
Oliveira (1979) propõe que a noção de aculturação seja substituída pela de
"fricção interétn ica".
A teoria funciona lista e os estudos de contatos de culturas com eia
vinculados foram criticados por Balandicr (1971, pp. 22-28) e por Leclerc
(1973, pp. 69-80), entre outros. Balandicr, a partir de análises anteriores de
Max Gluckman, critica a concepção de dinâmica da cultura de Malinowski,
desenvolvendo a noção de "situação de contato".
Como mostra Balandier, entre o; povos dependentes, as situações que
foram denominadas de choques ou contatos de civilizações ocorreram em
condições específicas que têm o nome de situação colonial, definindo-se
pela "dominação imposta por uma minoria estrangeira 'racialmentc' e cul­
turalmente diferente, em nome de uma superioridade racial (ou étnica) e
,cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctone materialmente
1 inferior" (197 i, pp. 34-35). 1 Na perspectiva de "fenômeno social total" de
Mauss, Balandicr consi era a situação colonial em seu conjunto como um
sistema totalizante e conclui propondo uma antropologia e uma sociologia
dinâmicas.
No campo dos estudos afro-brasileiros, Renato Ortiz (1978, pp. 10-
13) critica também idéias da escola culturalista. Assinala a importância de
Arthur Ramos como seu principal representante no Brasil. Para Renato Ortiz,
a idéia central da noção de aculturação valoriza a "cultura" em detrimento
da "sociedade". Diz que as críticas de Balandier ao culturalismo combatem
52 REPENSANDO O SINCRf;t/SMO

o erro de se considerar a cuitura como um sistema autônomo (i978, p. 12).


ropõc-sc discutir a integração da-umbanda na sociedade urbano-in lusrri:il\
e de classes do Brasil e não exatamente como fenômeno de sincretismo reli­
gioso, utilizando o conceito de reinterpretação de Hcrskovits ara fazer uma
anúlisc d:i entidade Exu no candomblé e na umbanda.
Entre os estudiosos do negro no Brasil, Clóvis Moura (1988, pp. 34-
36) critica os conceitos de sincretismo, assimilação, acomodação e acul­
turação, "tão caros a uma ciência social colonizadora". Considera que "certos
conceitos ela antropologia revelam de forma transparente [ ... ] sua função de
ciência auxili�r de uma estrutura ncocolonizadora" (1988, p. 38)� Mostra
que muitas análises cio sincretismo inciuernjulgamento ele valor, pois con-;

----
sideram inferior
- a religião cios dominados.
Para Moura (1988, p. 45), o conceito de aculturação "tem limitações
científicas enormes". Tem como conseqüência a diluição da "dominação
estrutural - çconômico, social e político de uma das culturas sobre a outra.
[... ] O cultmalismo exclui a historicidade do contato" (1988, pp. 45-46). "A
aculturação não modifica as relações sociais e conseqüentemente as insti­
tuições fundamentais de urna estrutura social. Não modifica as relações de
produção" ( 1988, p. 47). Parece-lhe que o processo aculturativo desemboca
no conceito de "democracia racial" e a aculturação não é um processo de
dinâmica social.
Analisando estudos sobre o negro no Brasil, Borges Pereira ( 1981, pp.
l 98-199), embora reconhecendo o padrão científico dos trabalhos dcsra es­
cola entre nós, destaca com muita propriedade que, enfatizando a cultura e
fareligião,-a antropologia negligenciou os aspectos "normais" ou triviais da
�o, contribuindo para construir a imagem de ''o negro espetáculo"._
Como vimos, a reoria culturalista tem sido criticada por muitos, mas
foi aplicada a inúmeras áreas. No campo dos estudos sobre o negro e das
religiões afro-americanas, Hcrskovits foi s-:u principal autor. Foi nela que
se fizeram primeiro, e com maior ênfase, tentativas de abordagem mais teóri­
cas do fenômeno do sincretismo.
O conceito de reinterpretação foi uma das principais noções dcscn­
voi vidas por Hcrskovits na anú I i se do sincretismo. Para Bastidc ( 197 l,
p. 531), embora este conceito permaneça muito próximo do que ele própio
denomina de aculturação material, foi o mais importante desenvolvido pela
antropologia no estudo dos encontros de civilizações. Bastidc (1973, p. 147)
lembra que Hcrskovits foi criticado sobretudo por sociólogos negros como
Franklin Frazier, que o acusa de preconceito branco.
REV!S.10 DA LITERATURA SOJJRI:.' SINCRETISMO... 53

Apesar das críticas, a conrribuiçâo de Hcrskovits e do cuíturalismo


foram importantes, realizando avanços inegáveis no campo dos csrudos afro­
americanos. Entre outros aspecrns, fez-se a análise do rranse como fato social
normal e pela primeira vez se realizou abordagem teórica mais ampla do
sincretismo religioso.

CONTRIBUIÇÕES DE ROGER BASTIDE

Nos últimos cinqüenta anos, o auror mais publicado e mais conhecido


no campo dos estudos afro-brasileiros foi Roger Bastidc. Sua obra até hoje
exerce larga influência, desperta vocações e permanece um ponto de par­
tida para pesquisas posteriores, como se ele fosse um novo fundador deste
campo. Orientou trabalhos de alunos que hoje são estudiosos conhecidos,
como Binon-Cossard, Renato Ortiz, Juana Elbein e outros. 1
Três anos após seu falecimento, duas teses foram defendidas cm Paris
(Bcylier, 1977 e Ravclct, 1977) sobre ele. O total de sua obra foi avaliado
cm 1335 textos (Raveict, i978). É, portanto, muito complexa uma síntese
de seu pensamento sob qualquer aspecto. Interessa-nos, aqui, a contribuição
de Bastide a respeito de sincretismo afro-brasileiro, assunto sobre o qual
foi dos autores que mais escreveram e teorizaram, adotando a perspectiva
da sociologia em profundidade de Gurvitch.
Desde seus primeiros livros no Brasil, Bastide (1945) refere-se diver-
sas vezes ao sincretismo. Discutindo, por exemplo, a origem do candomblé
de caboclo ( 1945, p. 196), considera que o indigenismo após a independência
foi um dos motivos da inclusão do índio no candomblé. Pergunta se esta
1

/inciusão cfotaria de� como lhe afirmaram,ou se teria sido difundida


com o espiritismo, que cm outro iugar (Bastide, 1971, p.432) informa ter
- .,,.. ----._-
sido introduzido com sucesso imediato no Brasil, desde .L8.6J.
-
Data de 1946 um dos primeiros e importantes estudos de Bastidc (1973,
pp. 159-191) sobre sincretismo. Considera aí que não existe uma religião
afro-brasileira, mas várias. Procurando entender o sincretismo dos orixás
com os santos, parece-lhe que há inicialme!!_te uma interpretação socioló­
gica - o cat0licism�é tJJ!l meio de disfarce - é a ilusão da catequese de que
- - - ---- -- -- -
<--------
fala Nina Rodrigues.
A segunda interpretação seria psicanalítica - trata-se da projeção de
um complexo de inferioridade desenvolvido no negro pela escravidão, pois
a religião do branco faz parte de uma cultura considerada superior. Após
54 REPENSANDO O SINCRETISMO

analisar respostas de devotos a perguntas que fom1Ulou sobre santos e orixás,


Bastide vai procurar outras explicações mais profundas para o fenômeno.
Em diversos trabalhos, Bastide critica e procura ultrapassar o conceito
de aculturação. Considera (1971, p.29) que não são as civilizações que
entram cm contato, mas os l1omens. Não se pode estudar os contatos entre
as civilizações separando-os das situações de contatos, daí a necessidade
de encarar o encontro de civilizações ultrapassando a sociologia colonial,
através de uma socioiogia em profundidade. Afirma (1971, pp. 38-39) que
os estudos sobre acuituração eram feitos na perspectiva de pequenas comu­
nidades e sob a ótica exclusiva do funcionalismo.
Considera (1974) que o conceito de reinterpretação proposto por
Herskovits não cobre todos os aspectos da vida afro-americana. Em 1948
(Trindade, 1985, p. 430), o conceito de convergência lhe parece mais indi­
cado. Em sua tese ( 1971, p. 531 ), diz que o conceito de reinterpretação é
impott@t_e, pois retorna ao pensamento de Durkheim. Para o afro-brasileiro
(há duas espécies de reinterpretação possíveis: aci;;"s traços culturais oci-
l:
dentais em termos africanos (culto dos santos, concubinagem) e a reinter-
eração dos traços culturais africanos em termos de cultura ameríndia ou
-
rtu.g11esa (culto dos mortos, transe).·
/
Para entencler esses movirríentos em direções divergentes, localiza,
além da reinterpretação, uma dupla aculturação: a material, relacionada com
o conteúdo das culturas em conrato 3 , e a aculturação formal, que se rela­
ciona com o espírito, a mentalidade, o inconsciente, sendo mais lógica e
afetiva. Estuda também ( 1973) a aculturação jurídica, folclórica, cu 1 i nária,
literária e religiosa.
Aproximando-se de Durkhcim, Mauss e Lévy-Bruhl, passa a racioci­
nar sobre o que irá chamar de princípio de ciscio para compreender o sin­
cretismo afro-brasileiro. Como informa (1973, p. 182), fora "a própria palavra
sincretismo que me induzira ao erro. Eu procurava um fenômeno de fusão
ou pelo menos de penetração de crenç"ãs, de simbiose cultural, uma espécie
dCquímica dos sentimentos místicos. Mas o pensamento do negro se move
num outro plano, o das participações, das analogias, das correspondências".
Diz que passou para o que Durkheim e Mauss chamaram de "classi­
ficações primitivas", constatando que o que a sociologia norte-americana
chamava de aculturação era insuficiente.
• Pereira de Queiroz (1983, pp. 27-37), analisando a obra de Bastide,
diz que ele se voltou para a análise das religiões afro-brasileiras com duas

3. Para Bnstide (1974, pp. 193-194), o conceito de reinterpretação de Herskovits parece mais pró­
ximo da aculturação material.
REVISÁ.O DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO... 55

bteó�de um lado, inspirado em Nina Rodrigues, Euclides da Cunha


e outr�nsiderava a existência de uma dualidade em nossa sociedade
(brancos X negros; cidades X campo; sobrevivências africanas X valores
�de outro lado, "àpoiav'a-se na teoria defendi d-; por Lévy-Bruhl �
cm voga na década de 1930, sobre o pensamento primitivo. \
Para Lévy-Bruhl, as representações coletivas dos povos primitivos
teriam a especificidade da participação. Os primitivos raciocinariam segundo
a lei de associação de idéias, por contigüidade e por similaridade. A lei de
participação constituiria para Lévy-Bruhl a base da lógica primitiva, orien­
tando suas classificações 4 •
Pereira de Queiroz (1983, pp. 33-34) mostra que a teoria de Lévy­
Bruhl foi sendo abandonada por Roger Bastide ao aprofundar suas análises
sobre as religiões afro-brasileiras, verificando que não existiam categorias
primeiras do espírito humano, e sim sistemas mitológicos diferentes, con­
forme as sociedades. No mencionado artigo (1973, p. 184), Bastide vê o
sincretismo como um sistema de equivalências funcionais, de analogias e
de participações. --.._
__; Como aparece formalizado em artigo de 1955 e em outros trabalhos,
�astide elaborou a partir destas idéias o princípio de cisão ou de cortc 5 •
1
Diversas vezes (f 971, pp. 529-530), emprega-o como solução do problema
da aculturação, parecendo-lhe possuir valor geral característico dos fenô­
menos aculturativos.
"b princípio de cisão é uma das idéias-cha�es incluídas �11 sua tese de\
�orad?JÉ'--ali parcialmente comentado na introdução e nas conclusões
(Bastide, 1971, pp. 17-24, 37-42, 523-5 35), embora tenha sido intuído e

4. Lucien Lévy-Bruhl, faieci<lo em 1939, exerceu grnnde inlluéncia teórica na antropologia em


começos do século. Nos seus Carnets, publicados postumamente ern 1949, abandona a idéia do
caráter pré-lógico do pensmncmo primitivo e a lei de parlicipação para entender sua lógica (Lévy­
I3ruhl, 1949, pp. 60-62, 77-80). Bastide, em vários trabalhos ( 1955, p. 493; 1973, p. XIII), reco­
nhece que Lévy-Bruhl havia abandonado a tese Uo pensamento pré-lógico, mas �'isto não quer
dizer que a lei de participaçflo nflo existe, somente, que ele havia dado uma interpretação errônea".
Para Bastide (1973, p. XIII), em seus Carnet.1·, Lévy-Bruhljarnais renegou a noção de partici­
pação. Evans-Pritchar<l (1978b, pp. 111-138) faz revisão crítica, analisando os principais con­
ceitos utilizados por Lévy-J3ruhl.
5. Pereira de Queiroz (1983, p. 32) afirma em nota: "Roger Bastide utilizou o termo francês coupure,
que significa aio de cortar. Julgamos que o termo correspondente em português seja 'cisão"'.
Constatamos que al g umas vezes este tern10 aparece traduzido por ''corte" (como em Ba.s.tidc,
l 971, pp. 238, 517). É traduzido também por princípio de "ruptura" (in Trindade, 1983, p. 643).
Coup11re é as vezes denominado pelo autor de brisure, rupture, hiatus (Ravclct, 1978, pp. 322-
323). Em português, pode ser traduzido como rompimento, separação, fissura, cisura ou cisão.
Parece-nos porém que a tradução cisão proposta por Pereira de Queiroz é a mais adequada e a
que deveria ser utilizada unifonnernente em novas edições ou traduções da obra <le Bastide, bem
como nas refeiências que ]he forem feitas.
56 REPENSANDO O SINCRETISMO

apresentado, cm etapas, cm dive rsos trabalhos, pelo menos desde 1946


(Bastide, 1973, 1955). Excelente resu mo foi elaborado por Pere ira de Q uei roz
( 1983, pp. 3 1-3 7) e por Ra vclct ( 1978, pp. 28 I -289, 32 I -3 24). A síntese
que estamos apresentando base ia-se nestes t rabalhos.
Partind o de es tudo s sobre no ssa rea li dade, Bastidc preocupa-se cm
compreender, na perspectiva denominada por Gu rvitch, de u ma socioiogia
em profimdidade, o e ncon tro ou conta to entre civil izaçõcs diferentes. Procura
construir o que denomina de sociologia das interpenetrações de c ivilizações,
s ubtítulo de sua tese c expressão que prefere uti lizar, cm vez do termo acu l~
turação, mais cmpregã'd~ pela antropolog ia culturalista norte-ameri cana .
Analisa ndo razões últimas das interpenetrações de civlizações, diz que ultra-
pa ssa o funcion al ism o, procurando chegar a uma análise soc iológica da
sociedade brasilcir~ (1971, p p. 39-40).
- Segundo Bastide (1973 , p. 182), para Lévy-Bruhl o pe nsamento pri-
mitivo é analóg ico : vai do se melhante ao semelhante. O universo para o
p rimitivo estaria dividido cm certo núme ro de compartim entos estanques c
as participações se fa ri am no inte rior de ssas divisões c não de uma di visão
a outra. O sincretismo deixa tra nsparecer resíduos desta maneira de pensar.
Não se trata de mistura ou ide nti ficações, o que seria um verdade iro sin -
cretismo, mas de semelha nças, equi valências c não identificações (por exem-
plo, entre o ri xás e sa ntos). Trata-se de um jogo de anal ogias.
Bastide (1955, p . 494) lemb ra tamb ém que, segundo Durkhei m c
P iagct, as classificações dos primitivos são compa rá veis às nossas, po is
di v idem o real num certo número de compartimentos. Mas, segundo Piagct,
estes esquemas intelectuais primitivos não constituem verdade iramente sis-
te matizações lógicas, pois não formam, como no sso pensa mento oc idental ,
classes dcsjunras c e ncaixo táv eis umas nas ou tras. Assim como o s com-
partimentos do real não são encaixáveis un s nos o utros, Bastide não fa la,
como Durkhcim, em classificações, mas c m um princ ípio de cisão que,
segu ndo e le, com plementaria o p rincípio de pa rticipação de Lévy-Bruhl.
Parece-lhe aind a que a expressão é mais adequada do qu e a de Durkhc im.
Apoiado cm Griaule, acresce nta o princípio de correspondê nci as . Diz
que não há parti c ipação de um domínio do real a outro, mas h á a nalogias
ou correspondências.
Para Basti de, as g randes interpretações da cosmologia primitiva, a de
L6vy-B ruh l, a de Du rkheim c a de Griaulc, longe de se opo rem, consti tu em
pontos de vista complementares. Parece-lhe, pois, que os princípios de cor-
respondência, o de participação c o de cisão constituem a melho r im agem
que se pode fazer da cosmologia primi tiva. Destes, o mais importante é o
REVISÃO DA LITERATURA SOB RE SINCRETISMO... 57

princípio de cisão, pois dentro das cisões é que se realizam as participações


c as correspondências místicas.
No mesmo traba lho, Bas tide (1955, p. 498) constata que é preciso
rever a teoria do "homem marginal" , do homem dividido entre dois mun-
dos que se defrontam dentro dele. Parece-lhe que, pelo pri ncípio de cisão,
o afro-brasileiro escapa à desgraça da marginalidade. Impressiona-l he a ale-
gria de viver c o equi líbrio psicológico dos adeptos do candomblé. Q.n~gro
~o é tfío fe rvoroso patriota quanto está li gado à ,sua cultura anccs-
~ Age como os outros brasi lei ros no mundo cconômico, c enquanto mem-
bro do candomblé, faz parte ele um mundo onde predominam outros valores.
Esta característica não é puramente brasileira. Na África também se
diz: "É verdadeiro para os negros". O negro considera nam ral que um sort i-
légio, uma magia, um rito ajam quando se trata de africano, mas não tenham
eficácia quando aplicado, aos bra ncos. Quando um membro do candomblé
afirma seu catolicismo, não mente, poi s é ao mesmo tempo católico c "fe-
tichista". ~s_duas coisas não são opostas, mas separadas- é a lei de analo-
gias que a~c_. Assim, o corte ou cisão é constatado ao se-ve rificar que nos
te mplos de candomblé há um altar católico c um pcji africano, que se podem
corresponder, mas não se idcnti ficam, pois desempenham papéis diferentes.
Um informante lhe diz que "rezando ladainhas não mistura nada de africano
c que cm outros momentos celebra fe stas africanas c não mi stura nad a de
católico".
Tra ta-se, cm sua visão. de um mundo compartimcntado c cujos com-
partimentos não são encaixáveis uns nos outros. O princípio de cisão parece-
lhe como uma característica dos fenômenos aculturativos, agindo sobretudo
nas famí lias ligadas ao candomblé, nas classes ba ixas da sociedade, onde a
in fluência da escola permanece confinada a alguns anos da primeira infân-
cia c nas comunidades onde os preconceitos de cor são mínimos (Bastidc,
1955 , pp. 493-503; 197 1, pp. 17-29, 523-531 e 1973, pp . 182-191).
Enco ntram os por parte de pais-de-santo como pô i Balbi no da Bahia,
ou de intelectuais radicados cm nosso meio, como Pierre Ve rgc r, declara-
ções de que .. candomblé c catolicismo são como úgua e óleo- podem ficar
no mesmo copo, mas não se misturam" (Vcrgcr, 1983 , p. 45). Segundo
Verg cr ( 198 i , p. 28), ''com o passar do tempo,[ ... ] tornaram-se eles tão sin-
ceramente católicos quando vão à igrej a, como ligados às tradições africanas,
quando participam, zelosamente, das cerimôni as do candomblé". Declarações
como estas, a nosso ver, complementam a opini ão de Bastide.
Atualmcntc, o sin cretismo afro-católico passa a ser rej eitado publi -
camente, por diversos pais c mães-de-santos, como mãe Stela de Oxóssi,
REPENSANDO O SINCRETISMO

zeladora do Axé Opô Afonjá de Salvador, ao declarar publicamente que os


pais-de-santo devem ser contrários ao sincretismo (Fry, 19 84, p. 3 8).
Encontramos atitude idêntica de rejeição do sincretismo por parte de pais­
de-santo que se pretendem reafricanizados (Prandi, 1989), como men­
cionaremos adiante.

Críticas às análises de Bastide

O curioso artigo de Bastide "Macunaíma cm Paris", datado de 1946,


(Pereira de Queiroz, 1983, pp. 78-80), despena-nos o interesse em traçar
paraielismos entre ele e Mário de Andrade. O intelectual paulista foi sobre­
rndo literato, musicólogo e folclorista. Através de suas diversas ati vidadcs
na área de cultura, Mário de Andrade tinha em mente o projeto da construção
de nossa nacionalidade. Um dos marcos desse projeto foi sua rapsódia
Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter (Andrade, 1988), cm que procura
recriar, a partir do herói mítico, a figura do protótipo do brasileiro. Este
origina-se do índio e do negro, vira branco, é esperto e sempre encontra saí­
das, dando um jeito brasileiro para resolver problemas. É bastante hábil,
embora seja preguiçoso e tenha muitos outros defeitos. Macunaíma não é
igual nem melhor do que os elementos que concribuíram para sua formação,
mas é um ser novo e diferente.
No capítulo Vil ele Macunaíma, Mário de Andrade dcsqeve um ritual
de macumba na casa de tia Ciata, onde tinha m1:!_ita gente, ·"gente direita,
gente pobre, advogados, garçons, pedreiros meia-colheres, deputados,
gatunos, vendedores, bibliófilos pés-rapados, acadêmicos, banqueiros,
ladrões, senadores, jecas, negros, senhoras, futeboleres ... " .A descrição de

-
Mário de Andrade assemelha-se às que eram comuns na imprensa brasileira
nas primeiras décadas do século, como as de João do Kio '{l 976), ou artigos
-•..)do surrealista! Benjamim Peret, ·dos anos 30 (in Ginway, 1983). Mário de
Andrade distingue-se, entretanto, por não acentuar uma visão negativista,
pejorativa e preconceituosa, como as que encontramos normalmente na
imprensa. Em vários trabalhos, constata-se seu interesse pela macumba,
p
_ ela pajelança, pelo catimbó e outras formas de religiosidade popular6 .

6. Artistas e intelectuais de vanguarda na década de 1920, que eram iambém nacionalistas, regis­
tram visõe "surrealistas" da religião e da cultura popular, como comenta co111 acuidade Alcjo
Carpentier no prólogo da edição brasileira do livro "Écuc-Yamba-Ó". Entre outros temas do povo,
Carpenticr descreve rituais de iniciação i1 sociedade dos nanigos de Cuba, que qualifica de uma
espécie de ';mnconnria popuJar':.
REV/S,W DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO... 59

Corno Mário de Andrade, Roger Bastide se preocupava em entender


nossa realidade, adotando uma perspectiva essencialmente sociológica. Não
elaborou um projeto do brasileiro, mas procurava analisar em profundidade
aspectos do nosso comportamento. O princípio de cisão de Bastide é um
elemento fundamental que diferencia sua visão da de Mário de Andrade,
mais preocupado em formular uma síntese do homem brasileiro.
Interessado no problema da interpenetração de civilizações, Bastide
procura contornar situações de anomia decorrentes dos sincretismos e das
misturas resultantes dos contatos entre culturas diferentes. Por isso dá ênfase
à cisão, à separação, à preservação relativamente pura, no candomblé, de
elementos originais da construção de nossa cultura, criticando a desinte­
gração que encontrava na macumba, em oposição à integração que discernia
- --
no candomblé.
. - Mário de Andrade, por outro lado, constrói em Macunaíma
seu modelo de brasileiro, apoiado numa síntese original, sui generis, apre-
ciando a macumba, sem receios de sincretismos ou de anomias.
Enquanto Mário de Andrade se colocava favorávei à mistura, ao sin­
cretismo e à macumba, Bastide se colocava ao lado da pureza do candomblé,
separado do sincretismo e da mistura, fenômeno que explicava pelo princí­
pio de cisão. Como afirma Peter Fry (19846, p.4�enso então que o
debate sobre o sincretismo religioso remete a toda urna discussão mais
ampla sobre o pensamento brasileiro como um todo. Há uma forte tensão
entre uma ênfase numa cultura nacional homogênea ('sincretismo,
mestiçagem') e uma outra nas especificidades culturais com vistas a um
pluralismo cultural".
René Ribeiro(! 982, pp. 72-78) critica o princípio de cisão de Bastide,
"autor por muitos títulos merecedor do acatamento, mas nesse, como em
vários outros pontos, lamentavelmente mal informado e equivocado" (1982,
p. 74). Ribeiro critica a tese de Bastide (1971, pp. 157-180) da existência
de dois catolicismos� a religião do senhor e a do escravo, em que o catoli­
cismo aparece corno subcultura de classe ( 1971, p. 162), com confrarias de
brancos e de negros. Considera que esta abordagem sociológica minimiza
o princípio de reinterpretação, acentuando o duali�� na estrutura da
sociedade. -----· ---
Ribeiro também critica a perspectiva marxista de Bastide, que a seu
ver enfatiza o fator econômico. Critica o princípio de cisão dizendo que
toda sociedade impõe uma padronização de grande número de papéis. Critica
a metodologia de Bastide, que considera estruturalista, por desprezar a
natureza valorativa da cultura. Suas críticas a nosso ver procedem em parte,
pois o marxismo de Bastide não o faz incorrer num determinismo
60 REPENSANDO O S/NCflETISA/O

econômico. Segundo Douglas Monteiro ( 1978, p. 15), em Bastide, nem sem­


pre ''o sagrado degrada-se cm instrumento de dominação e de luta".
Bustide estava demasiado imbuído de princípios lógico-filosóficos,
vendo dois mundos se defrontarem dentro do homem que pratica o can­
domblé. Por isso se espantava de que o negro fosse ao mesmo tempo patrio­
ta, agisse como outros brasi!eiros e continua se ligado à sua cuitura ancestral,
cm que predominam outros valores. Daí a importância que dava ao princí­
pio de cisão, cm suas análises do sincretismo, dos contatos culturais e da
aculturação.
É conveniente indagar: até que ponto este princípio de cisão funciona
de fato na mente dos participantes das religiões afro-brasileiras? Será que
para os adeptos do candomblé o universo estaria dividido cm comparti­
mentos inconciliáveis, corno via Bastidc? O participante do candomblé con­
segue construir o mundo como um rodo coercnre e harmonioso e vive suas
crenças sem nelas encontrar contradições, corno Bastide mesmo constatou.
Consegue conciliar coisas que a outros parecem inconciliáveis. O catoli­
cismo e a religião de origem africana funcionam para os devotos, a nosso
ver, como se fossem camadas de um bolo recheado, que eles saboreiam e
J
digerem indistintamente.
As religiões de origem africana, ao menos cm ·cus redutos mais anti­
gos, preservam suas características paralelas aos elementos do catolicismo,
como unidades que se justapõem e não se confundem, como reconheceu
Basticlc. O princípio de cisão foi um instrumento teórico-metodológico de
anúlisc que ele criou para entender a interpenetração de civilizações e o sin­
cretismo, considerando fundamental separar coisas distintas e opostas, que
logicamente não poderiam estar misturadas. Para outros, tal procedimento
nfío é tão importante.
Entre as críticas a Bastidc, destacamos a de sua aluna Juana Elbcin
dos Santos ( 1977, pp. 107- 108), a respeito da expressão "religiões em con­
serva", que ela considera "uma denominação pouco feliz".

A religião foi o mais poderoso transmissor de valores[ ... ] que de nenhum


' modo permaneceram congelados [... ] é absolutamente enganador intcrprct:.ir a fidc_­
' !idade /is raízes africanas como cópia, como algo imutúvcl e congelado[ ... ] Sustentar
' a premissa do congclamcnro revela, por um lado, desconhecimento do dinamismo
próprio do sistema africano herdado e de sua habilidade de renovação[ ... ] incorpo­
rando mudanças; e por outro lado, comete o ctnoccntrismo inconsciente de regis­
tn1r como mud;,rnças só aqucias que visivelmente revclirn1 elementos de procedência
ocidental.
!IEVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCIIEl'ISMO ... 6.1

Concordamos com Elbcin dos Santos. A religião da Casa das Minas


não pode ser rotulada de "religião cm conserva", com faz Bastidc (1974,
pp. 124-130), pois apesar de haver dcciinado cm aíguns aspectos, permanece
viva e dinâmica (Ferrctti, i 985), e esta expressão não é adequada a seu
estudo. Outra crítica a Bastiàc refere-se à utilização do que foi denominado
de "etnografia congeiante". Comentando a revisão da literaiurn afro-brasileira
já realizada por Bastidc em 1939, Jorge de Carvalho (1978, p. 95) afirma:

Este foi o início de uma atividade que ele continuou ao longo de toda a vida:
sumarizar a massiva literatura brasileira[ ... ] Além disso freqüentemente faz uso
destes resultados como suporte para sua próprias interpretações. Fazendo isso ini­
ciou um novo e quase peculiar meio[... ) que posso chamar de "etnografia conge­
lante": a falsa, embora atrativa suposição de que os dados apresentados nos livros
e artigos de escritores brasileiros representam a realidade da vida do culto, de tal
forma que podem ser aceitos como válidos inclusive na época atual, não importando
quão velhos eles sejam. Esta "'etnografia congelante" aceita a descrição do que acon~
teceu num grupo ele culto nos tempos ele Nina Rodrigues como sendo ainda um retrato
válido do que está acontecendo nos grupos de culto da Bahia na própri:.i época da
pesquisa de Rogcr Bastidc. Sem dúvida ele não foi o primeiro autor a adotar uma
"ctnogrnfia atemporal", mas a grande ênfase que sempre pôs nas referências biblio­
)ti"aflC'âstÕriiâ este procedimento técnico muito aparente na maioria de seus livros,
pois ele não era somente um erudito, mas freqüentemente a utiliza cm muitas ocasiões
como fonte de dados.

Concordamos com estas críticas a Bastidc, especial mente cm relação


ao Maranhào, corno já dissemos cm outra oportunidade (Fcrrctti, S. 1985,
p. 26). Na década de 19S0, Basiide esteve cm São Luís por poucos dias, e 1
a maior pane de suas referências àquela região decorre de informações de /j '"
outros autores, colhidas cm meados da década anterior, que continua a uti- 1 " .';
íizarZiiscus escritos dos anos 60.
Também faz afirmações apressadas, imprecisas ou erradas, como por
exemplo: que na mitologia os voduns não vivem na cidade, mas nos cam­
pos (1973, p. 170); diferenciando o estado de tr:.insc das tobossi (transe infan­
til), dos toqucnos (que diz ser de transição) e dos deuses propri:.uncntc ditos
( 1971, p. 5 16); identificando tobossi e crê com ibcji ( 1978, p. 222); dizendo
que a possessão pelos toqucnos ocorre somente após ú dos voduns (! 978,
p. 218); afirmando que Vcrgcr mostrou que a Casa das Minas de São Luís
teria sido provavelmente fundada cm 1796 ([971, p. 70). Estas c outras
imprecisões comprovam cm pane críticas que hoje lhe são feitas.
Em palestra na USP cm 1987, analisando contribuições de Bastidc ao
estudo dos cultos afro-brnsileiros, Lísi:.is Negrão comentou que Bastidc
rejeitava o conceito de sincretismo, marcado pela perspectiva culturalista
62 REPENSANDO 0 SINCRETISMO

(ve r Bastide, 1973, pp. VII-XX), preferindo o conceito de interpe ne tração


de civilizações. Lísias destaca a extensão da obra, sua qualidade, coe rên-
cia, profundidade teórica c sensibilidade sociológi ca para com os proble-
mas do negro.
Lísias não concorda com os que levantam contra Bastide uma visão
crítica impertinente, ap ressada e leviana, com intui tos de demolir o trabalho
cu idadosamente elaborado de um et nógrafo paciente, identifi cado com o
sujeito c apaixonado pelo objcto de estudo, que adotou uma pe rspecti va
co mpreensi va na análise da religião. Com essas ressalvas, Lísias, segui ndo
rumos de Douglas Monteiro (1978) , tamb ém apresenta c ríticas teórico-
metodológicas a Bastide (Negrão, 1979).
Reconhecemos a contribuição de Roger Bastide aos estudos do negro
c das rel igiões afro-brasileiras. Ele escrevia bem e escrevia muito, daí deriva
cm parte a enorme in fluênc ia que exerce até hoje no est ud o da s rel igiões
afro-americanas. Além de informações elaboradas, apresenta reflexões teóri -
cas de grande interesse. Algumas vezes impacientam-nos certas falhas, como
se qui séssemos que seu trabalho fosse perfeito. Não podemos entretanto
concordar com tudo o que escreveu. Parte das críticas que hoje lhe são fei tas
dirigem-se também à perspectiva teórico-filosófi ca da sociologia em pro-
fundidade, qu e adotou.

ALGUNS DISCÍPULOS DE BASTJDE

Na década ele 1970 o est udo das reli giões afro-brasile iras vo ltou a
receber novo impulso, que parecia declinado nos anos 60, quando quase só
ocorreu a tradução de alguns traba lhos de Bastide. Sua obra principal, As
Religiões Afro-Brasileiras, de 196 1, somente cm 197 1 foi lançada no B rasil.
Nos anos 60, além de trabalhos de Bastidc c das publicações de Edison
Ca rn e iro, de stacam-se os estudos de Procópio Cama rg o ( 1961), sobre
espiritismo c um banda, tema ao qual foi dos prime iros a se dedicar com
exclusividade, conforme Carvalho ( 1978, p. 105). Pouco antes do fa leci -
mento de Bastide, em 1974, concluem-se teses de pesquisadores que foram
seus oricntandos .
Renato Ortiz ( 1978) estudou o cmbranquccimento das tradições afro-
brasileiras c o cmpretccimento do espiritismo kardecista, relacion ados com
transformações na soc iedade, pois "o cosmos rei igi oso umband ista repro-
duz as contradições da sociedade brasileira" ( 1978, p. 112). Para Ortiz, na
sociedade urbano-industrial , a umbanda é mais funcional elo que o can-
REVISA-O DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO... 63

domblé, cujo culto é demasiadamente dispendioso, antevendo uma expan­


são da umbanda em detrimento do candomblé e considerando suas práticas
mais adequadas à sociedade atual. Outros como veremos adiante, mostram
hoje que a evolução foi oposta (Prandi, 1989).
Ortiz (1980, pp. 91-108) discute sincretismo em artigo de 1975, numa
coletânea sobre religião e cultura popular, afirmando que "se distancia em
muito da noção de mistura e de incoerência" ( 1980, p. 97). Com Bastide,
relaciona-o às noções de memória coletiva e de "bricolagem", discutindo
esquecimentos e vazios da memória. O sincretismo consiste em "unir
pedaços das histórias míticas de duas tradições diferentes em um rodo que
permanece ordenado por um mesmo sistema" ( 1980, p. 100).
Analisa ambigüidades no sincretismo, parecendo-lhe que não se deve
pensar a umbanda como síntese química, mas como síntese social, uma
prática sui generis, "um Macunaíma religioso (todos os caracteres, seja,
nenhum deles) que procura se integrar a todo preço no seio da moderna
sociedade brasileira" (1980, p. 108).
Juana Elbein dos Santos (1976) também concluiu rese, sob orientação
de Bastide, que obteve grande receptividade. É uma das defensoras da orto­
doxia nagô, da cultura africana tradicionaí e de sua permanência em alguns
candomblés da Bahia. Uma de suas contribuições foi destacar a necessidade
de abordagem "de dentro para fora", nos estudos de religião.
Com Dcoscorcdes dos Santos, Juana Elbein tem publicado artigos com
reflexões sobre sincretismo (Santos, 1977, pp. 103-128), afirmando que: "a
religião foi o mais poderoso transmissor de valores essenciais dessa negri­
tude afro-americana". Para eles os cultos se acomodaram sem se embran­
quecer, pela capacidade negra de "digerir ou africanizar" as contribuições.
Classificam as expressões da religião negro-americana entre as variá­
veis homogêneas: os complexos jeje-nagô do Brasil lucumi e nanigo de
Cuba, radá do Haiti, xangô de Trinidad e Granada_./Entre as variáveis he-
terogêneas incluem os cultos de influência banto - Congo-Angola - com
ramificações em toda América Latina, como o petro no Haiti, umbanda,
' caboclo e pajelança no Brasil, Maria Lionza na Venezuela, as formas myal,
cunfa e poco no Caribe e outros (l 977, p. 109). ·Ks variáveis homogêneas
são as fortemente centradas em reelaborações africanas, e as heterogêneas
continuam pluralistas. O sincretismo foi acontecendo com a contribuição
do cristianismo e dos vários grupos étnicos de origem africana.
Afirmam que quase todos os negros da América são cristãos e tam­
bém praticam uma variável da religião negro-americana, embora ambas
mantenham separadas suas estruturas básicas (1977, p. 113). Parece-lhes
REPENSANDO O SINCRETISMO

que as diversas categorias de sincretismos devem ser reexam inadas como


formas de resistência. "A religião e suas co munid ades constituem o balu-
arte da dignidade ps íquica c cultural do negro" ( 1977a, p. 115).
Elbcin dos Santos ( 1977) resu me colocações anteriores, de modo explí-
cito. Defende uma reformula ção conceptual c term inológica de designações
que têm como conseqüência negar o carátcr de religião ao s istema mí stico
legado pelos africa no s c ree laborado por seus descendentes. Considera que
os termos fctich ismo, anim ismo c até s incretismo são conseqüências da he-
rança evol ucio nista, que se continua até hoje. Termos co mo bruxaria, magia
c superstições são utili zados para encobrir o papel da religião, já que a -indc-
_./

pendência espiritual foi por longo tempo a única liberdade do negro. Neste
c c m outros traba lhos, Elbcin dos Santos enfatiza aspectos africanos da c ul-
tu ra negra nas Américas. Como inte lectua is c part icipantes do candomblé,
Juana c Dcoscorcdcs contribuem também para construir uma teologia do can-
domblé no B rasil, e nfati za ndo a importância das trad ições africanas.

O MITO DA PUREZA AFRICANA

O trabalho inovador d e Lapa ssadc e Luz ( 1972) é o primeiro , e ntre


nós, favo rú vc l ú macu mba c à quimbanda, v istos como conrracu ltura domi-
nada que se opõe à cultura branca dominante. Mostra que desde os tempos
de Nina Rodri gues, o candomblé, considerado mai s puro, foi valo ri zado
pelos pesquisadores, cm detrime nto da macumba, tida co mo mistu rada.
Consta ta que estes c ul tos são diferentes de sde as origens, embo ra haj a
empréstimos de um a outro. Critica a idéia de pureza africana ( 1972, p. XIV),
identificando quimbanda como contracultura negra no Brasil ( 1972, p. XXI I),
comparando-a ao tro pical is mo c ao Manifesto Antropo fág ico de 1928. Toma
o partido da quimbanda libertadora co ntra a umbanda c utiliza cicmcntos
da sociologia marx ista c da psica náli se freud iana, relacionando a ma cu mba
a revoltas c fugas de esc ravos . O texto te m características ma is jornalísti-
cas do que de análise sóc io-anr ropol ógica . Em algu ns momentos ass um e ar
sensac ional ista, d ize ndo preferir ficar ao lado do d c mô nio. T rata-se con-
tudo de trabalho inegavelmente pioneiro.
Posteriormen te, Luz ( 1983) publica livro cm sentido oposto, d efen-
dendo a ortodoxia do candomblé nagô. Critica seu trabalho anterio r, desta-
cando o candomblé das casas mais tradi c io na is. Considera que por trás do
si ncretismo o negro manteve sua reli g ião c diz que incxistc fusão ou sin-
REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 65

cretismo ao nível da cosmogonia. Acha que não se deve perceber a cultu ra


negra como mestiça, mas como negra, para não ca racterizá-la sob noções
de sobrevivência c sincretismo ( 1983, p. 61 ) .
Desta forma, em 1983, Luz desdiz quase tudo o que havia dito cm 1972.
Esta posição foi constatada por Fry ( l984a, pp. 23-24) c criticada (Giacomini,
1988, pp. 55-71 ), por apresentar abordagens divergentes do mesmo objeto,
dez anos depois, valorizando m ais o negro africano do que o negro brasileiro.
Giacomini ( 1988, p. 65) critica Luz por abandonar as análises de classe e de
ideologia para se referir "de maneira pouco precisa a relações interétn icas",
enfatizando aspectos teológicos c metafísicas. C ritica a supervalorização da
cultura nagô e mostra que Luz inic ialmente proclamava a ruptura com a África
c, poste ri ormente passa a se preocupar com origens africanas e a defender
estudos comparativos entre religiões negro-brasi leiras e negro-africanas.
Atualmente, desenvolveu-se nos estudos afro-brasileiros tendência a
não mais valorizar a pesquisa em grupos reiigiosos considerados tradicionais
ou "puros". C rí ticas a Bastide são identificadas com críticas ao estudo desses
grupos. Critica-se a perspectiva, que foi corrente entre os antropólogos, de
estudar quase que exclusivamente os grupos tradic ionais, com o objctivo
de descobrir uma "pureza africana". Desde inícios dos anos 70, começa a
crítica ao estudo de grupos tradicionai s e a discussão do mito da pureza
africana, embora a idéia j á seja encontrada nos trabalhos de Nina Rodrigues,
mostrando que o problema é muito antigo.
Outro trabalho que levantou esta questão foi o de Yvonnc Velho
(1975), analisando a evolução de um terrei ro de umbanda no Rio de Janeiro.
A autora cri tica a ideologia subjacente na literatura sobre religiões afro-
brasileiras, semp re vistas como fenômeno de sincreti smo religi oso entre
"traços" africanos, católicos e outros, mas não estava interessada em refle-
tir sobre s incretismo. Também critica a expressão estudos afro-brasileiros.
Em vá rios trabalhos Peter Fry aborda estes problemas. Em relação à
umbanda c ao candomblé, afirma, por exemplo:

Tive dificuldades estéticas também, pois me foi extremamente probl emático


compartilhar o senso estético dos meus amigos umbandistas. O que para eles era
lindo para mim era kitsh [.. .]Talvez seja por isso que o candomblé é mais estudado
c mais apreciado pelos intelectuais cm geral" (Fry: 1982, p. 14 ).

Adiante afirma:

Agora não é mais perigoso entrar para o candomblé- é chique. O que parece
ter acontecido é que alguns dos mais conhecidos c tradicionais terreiros foram absor-
vidos, não apenas pelos produtores da "cultura de massa", mas pelos intelectuais,
f,6 REPENSANDO O SINCRETISMO

especialmente pelos anrropólogos, que foram responsáveis, em grande pane, pela


glorificação dos cultos de origem iorubana, cm detrimento dos c.le procedência "banto"
e daqueles que adoraram práticas rituais da umbanda em expansão. Desde o início
do estudo científico sobre os candomblés, os antropólogos com tendência a expli­
cações cm termos ele genética cultural classificaram os terreiros de suposta origem
ioruba como sendo de algum modo mais "puros" que os de origem banto (aliás, a
própria categoria banto não tem nenhum sentido neste contexto, pois refere-se a um
rupo lingüístico e não cultural). Os que tinham absorvido práticas n5o-iorubanas
�foram classificados como "impuros ou deturpados" (Fry, ! 986, pp. 41-42).

Fry discute o assunto cm outros trabalhos (1984a; 1984b). Considera


que o conceito ele pureza aparece em situações de disputa de poder e critica
a perspectiva que denomina de filogenética, que privilegia genealogias e
procura as origens, cm detrimento das condições históricas.
Parece-nos que esta perspectiva pode acarretar o perigo de "se jogar
fora a criança com a água da bacia". Deve-se ressaltar ranto a "caipiridadc"
quanto a "africanidadc" (expressões usadas por Fry) das religiões afro­
brasilciras. Estas características não podem ser descartadas sem prejuízo
do estudo, mesmo olhando-se mais para o Brasil do que para a África, como
preconiza.muito bem Fry.
Estudando dimensões ideológicas de práticas umbandistas, Patrícia
Birman (1980) afirma que se criou entre nós um saber sobre o africano, que
se repete desde Nina Rodrigues, passando por Arthur Ramos, Gilberto
Frcyre, Waldcmar Valente, Donald Picrson, RogcrBastidc, Edson Carneiro,
Procópio Camargo, Renato Ottiz e outros. Para estes, como para os umban­
clisras, africano significa primitivo e inferior. Há um sistema de represen­
tações sobre o africano, vigente no meio acadêmico e difundido no senso
comum (1980, p.7), e os umbanclistas se aceitam como religião inferior, o
que contribui para a manutenção da ordem social, numa visão ideológica
que legitima a ordem vigente. Para Birman (1980, p. 28), os africanismos
;nos terreiros são construção ele intelectuais para encobrir a dominação.
/ A nosso ver, com esta afirmação, Birman exagera e incorre no mo-
dismo de atacar autores clássicos e modernos, independentemente do valor
e importância de sua contribuição. Assume posição ideológica que com­
promete a objetividade de sua análise. Não concordamos com a generali­
zação de que os afr icanismos nos terreiros são construções de intelectuais
para encobrir a dominação.
Este não é absolutamente o ponto de vista de autores como Bastidc,
Carneiro, Elbcin dos Santos e outros, que acentuam exatamente uma visão
oposta, e não consideram o africano como primitivo ou inferior. L�da às
últimas conseqüências, esta visão retiraria aos participanres destas religiões
REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO__ _ 67
/
a possibilidade de elaborar c manter suas próprias tradições, o que, no Brasil,
vem sendo feito há ccrc~ de um século e meio por antigas comunidades reli-
giosas, independentemente da colabo ração de intelectuais, como se cons-
tata nos terreiros .
Esta perspectiva se rá retomada por B eatriz Dantas (1982, 1987, 1988),
ao repensar a questão da pu reza nagô. Beatriz afirma que avança cm pistas
propostas por Yvon nc Maggic, Pcter Fry c Patrícia Birman. Vai estudar um
terreiro reconhecido pela população como único "puro" de La ranj eiras cm
Sergipe, c diz:

A decantada ·· pureza nagô" tem contornos diferentes na Bahia e em Sergipe.


[ ... ]Como a etni c idadc , a pureza é uma retórica que tem muito a ver com a estru-
tura de poder da sociedade. [ ... ] A atuação dos intelectuais, na medida em que
discriminava os cultos segundo os graus de "pureza" c fide lidade à África, poderá
ser vista como acirradora de ri validades dentro do segmento popular e como tenta-
tiva de controle desses cultos[ ... ) Nessa perspectiva, pode-se pensar que a valo-
rização da África, que cm outros contextos tem sido usada pelos negros para
questionar a dominação, também tem sido uma forma de domesticação dos cultos,
mais su til que a exercida pelos aparelhos repressivos, na medida cm que não altera
as relações entre as classes c os grupos, constituindo ass im uma idcoiogização da
pu reza africana pa ra encobri r a dom inação (Dantas, 1982, p. 19).

D iscordamos de Beatriz Da mas, embora reconheçamos a seriedade de


seus trabalhos i. Eia próp ri a co nstata que pureza c etnicidadc são categorias
na tivas. Parece-nos que ela também foi atraída pela idéia de pureza, pois
em s ua monografia (1988) traba lha mais com o terreiro n agô "puro" de
Bil inda do que com outras casas. De fato, a idéia de pureza se encontra na
real idade dos terreiros, justamente naqueles em que os a ntropó logos tende-
ra m a pesqu isar mais. Isto talvez se deva c m parte a razões ele ordem esté-
~i ca, como constatou Fry (1982, p. 14). A riv alid ade dentro do segmento
yopui ar, que para Beatriz é acirrada pela atuação dos in telectuais, é uma
:::onstan te entre os terreiros, como te m sido constatado, c indcpcnde dos
;resqu isadorcs.
Em arrigo mais rece nte (pois sua monog ra fia foi defendida em 1982),
D:lnras { 1987) retorna ao problema da pureza africana, a nosso ver, de forma
'"'"":::!ÍS equilib rada . Define pu reza, com Mary Dougl as, como a qualidade que
-:.o se alte ra e decorre da mistura com formas tidas como socialmente infe-
--:ores, a rticulando-se com a idé ia de pode r. A dicotomia pu roi misturado é
_-;-;a forma de marcar um lugar para si e para os outros no esquema de fo rças

- ::: . ~ = or,bmos com 1\lcjandro !'ri geri o que, em correspondência de I 988. nos dizia ser o trabalho
. : ::>:~ rriz Damas ( I 988) '·um dos trabalhos mais importantes nos últ1mos tempos sobre o tema".
68 REPENSANDO O SINCRETISMO

da sociedade. No caso dos cultos afro-bras iie iros, é um elemento na busca


da legitimidade c na luta pela hegemonia.
Segundo Beatriz, os intelectuais desempenham papei significativo na
construção dessa hegemonia. Os antropólogos tornam-se aval is tas da orto-
doxia e personagens na construção da hegemonia nagô. A herança africana
mais autêntica, representada pelos nagôs "puros" da Bahia, é apresentada
como verdadeira religião, contrastando com a magia/feitiçaria dos bantos.
Os antropólogos fortalecem os terreiros mais "puros", às custas dos mais
"misturados". A repressão policial passa a incidir então sobre os que fazem
feitiçaria, os "impuros". Constata também (1987, p . 126) que a cruzada con-
tra o sincretismo anunciada cm Salvador, após a II Conferência Mund ial da
Tradição dos O ri xás c Cultura ( 1983), se inscreve nessa linha de busca de
hegemonia e disputa pelo poder.
As opiniões de Fry, Birmane Damas foram criticadas entre outros por
Ari Araújo, Renato Silveira e Muniz Sodré. Renato Silveira (1988, p. 91)
afirma que "o afro-brasileiro não é um mero objeto (ele c iência), mas um
suj eito (histórico), c, enquanto tal, capaz de man ipular o pesqu isador". Para
Sodré (1988, p . 64): "Uma interpretação desse gênero recalca a possibil i-
dade de elaboração autônoma de uma estratégia político-cultural por parte
do grupo negro" . A ri Araújo ( 1986, pp. 69-70) diz:

A crítica- por vezes extremamente ácida- ao modelo "puro"[ ... ] não justi-
fica sua extensão à co mponen te de res istência presente na cultura negro-brasileira.
[ ... ]Também não justifica o não - reconhecimento de passos fundamenta is dados
por esta vertente da pesquisa, como, por cxcmpio, o da constatação de que os ter-
reiros constitue hisroricamcntc a mais imponante fo rma de organização social para-
lela à da sociedade abrangente; de que o terrei ro implica[ ... ] um impulso de
resistência à ideologia dom inante [... ]

Como criticam Yvonne Velho, Peter Fry, Birman, Dantas e outros, os


terreiros considerados mai s próxi mo s elas tradições africanas foram ele fato
quase que os únicos procu rados pelos antropólogos, pelo menos até a década
ele 1970. Mas esses terreiros são realidades empíricas, ex istem e foram
pesquisados. O intelec tual atua como reflexo do que encontra, que pode
reforçar, m as sua função legitimadora tem lim ites. O êxito ou fracasso de
um terreiro depende principalmente da eficácia de s ua l ide rança, como da
,; autentic idade de suas tradições .
E ntre as décadas de 1930 e 1950, as religiões afro-brasileiras come-
çavam a se tornar conhecidas. Havia, porém, muitos preconceitos, acusações
de charlatanismo e perseguições policiais. Os antropólogos procuraram jus-
REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 69

ta mente os terreiros de maior prestígi o no meio, cujos líderes eram mais


estimados e cont ribuíram com seu trabalho para o conhecimento desse
campo, combatendo o ctnocentrismo. No Maranhão, na década ele 1940, os
primeiros pesquisadores encontraram na Casa das Minas uma tradição de
origem africana mais que centenária. Não foram absolutamente os
pesquisadores que criaram esta tradição.
Como mostra Beatriz Dantas (1988), no caso de Bilinda, foi ela pró- '
pria, com sua sabedoria c as alianças que conseguiu formar, que construiu
o p rest ígio de sua casa. O mesmo ocorreu cm outras partes com grande nú-
mero ele pais c mães-de-santo, como Aninha, Senhora ou Menininha na
Bahia, como Anclrcsa no Maranhão, com tantos outros líderes no passado
c até hoj e. Geralmente eles são procurados por pesquisadores em função do
prestígio de que já desfrutam . O intelectual pode con tribuir para ampliar
esse prestígio, mas não é quem o forja, ao menos entre os líderes mais au-
tênticos. A tradição afro-brasi leira não é portanto uma invenção de intelec-
tuaisH, como querem alguns. Os intelectuais, de fato, contribuem, entretanto,
para o se u reforço.
Co m Pcrcr Fry, Patrícia Birman c Beatriz Dantas supervalorizam o
papel do intelectual nos terreiros. Sua função mediadora é importante e tem
sido reconhecida. Roberto Motta ( 1986, pp. 80-81) comenta casos de
antropólogos que agem como teólogos e como fator de mudança nos ter-

--
re iros. Muitas casas incluem intelectuais em sua estrutura como ogans ou
cm outros cargos, o que também é um costume consagrado. Embora não se
neg ue esta influência, sua função é limitada e condicionada pela atuação
dos líderes, que mantêm c renovam as tradições dos terreiros, manipul a n-
do-as e m função de seus interesses.
Beatriz Dantas (1988, p. 147) consta ra que a ''decantada pureza nagô"
tem contornos diferentes na Bahia, cm Sergipe c cm Pernambuco. As seme-
lhanças c diferenças entre as religiões afro-brasileiras ela Bahia, Pernambuco,
Sergipe, Rio Grande do Sul, Pará, Maranhão, etc., não se devem a "repre-
se ntações de africani smos construídas nos meios acadêmicos". Há de fato
diferenças incontestáveis entre as práticas religiosas nestas c em outras
regiões. Dantas (1988, p. 147) descarta rápido demais a hipótese de que se
devam "a diferenças étnicas nos grupos negros originários, c ujas tradições

8. Segundo I lobsbawm (llobsbawm & Ranger, 1984, p. 9), ''muitas vezes 'tradições' que parecem
ou s5o consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inve ntadas". llobsbawm ana-
lisa a invenção de tradições como processo de rituali zação. Estudando casos na Inglaterra do
século XVIII ao XX, mostra que tradições que são consideradas como tendo vários séculos fo ram
invenções relativamente recentes fei tas por intelectuais, como o saiote irlandês, estabelecido cm
inícios do século XIX.
70 REPENSANDO O SINCRETISMO

culturais eram diversificadas já na própria Áfri ca". Afirma estar compa-


rando terreiros que se autodcfincm como nagô, c o que é considerado sinal
de pureza num lugar, noutro é sinal de mistura. Estas diferenças certamente
se devem a vários fatores, como a diversidades nos grupos originários, nos
processos de adaptação a cada ambiente, ao isolamento geográfico que gerou
estruturas di fercnciadas c outros .
Ãtualmentc a problemática da pureza africana assume Olllras dimen -
sões. Furuya ( 1986), estudando o tambor de mina do Pará, fala do processo
de "nagoização". Outros falam em ""nagocracia" ou ''quctocracia", referindo-
se ao predomínio do padrão de ca ndomblé nagô qucto sobre as trad ições de
origens africanas no Brasil.
Outro ângulo deste tem a, que tem sido analisado em São Paulo c ocorre
também cm d iversos lu gares, é o processo denominado de "africanização ou
rcafricanização" destas religiões. Prandi c Silva ( 1989, p. 221) c Prandi ( 1989)
mostram que hoje, em São Paulo, o c an domblé não é mai s uma religião de
preservação de um patrimônio cultural do negro, uma religião étnica, tendo-
se transformado numa religião universal, aberta a todos, independentemente
de cor, origem c classe, competindo no mercado rel igioso com outras religiões.
Eles estudam em São Paulo o fenômeno recente da transformação de
terreiros de um banda em candomblé nagô queto. Segundo Prandi ( 1989, p.
142), tal fato se acentuou em fins da década de 1970. Trata-se de "um pro-
cesso intencional de dessi ncrctização, afastando-se do calendá ri o litú rg ico
católico e eliminando símbolos c práticas do catolicismo umbandizado".
Para Prandi ( 1989, pp. 143- 154), rcafricanização não significa ser negro nem
desejar sê-lo; significa intelectual ização c acesso a uma literatura sagrada
que co ntém poemas oraculares, a reorganização do culto conforme modc-
ios trazidos da África contemporânea; é uma bricolagcm c não uma volta ao
primitivo original. Atinge principalmente pais c mães-de-santo de São Paulo
"que vêm passando por um p rocesso de mobilidade social ascendente".
Repetindo cm escala mais reduzida a saga de pai Adão do Recife c de
Martiniano do Bonfim da Bahia, g randes líderes reli giosos do inicio do
sécul o que estiveram na África, o processo de rcafricanização implica hoje
a ida por algumas se manas à África, ou a vinda de um pai-de-sa nto africano
ao Brasil , ao qual se prestam obrigações. Implica o aprendizado da língua
iorubana moderna cm cursos de extensão oferecidos por estudantes africanos
c m Universidades como a USP ou a UFBA. Inclui a introdução de inovações
aprend idas c m li vros sobre religiões africanas, de autore s como Ycrge r,
Maupoil, Bascon, Ab im bo la , Gleazon c outros . A afr icanização ou a
rcafricanização, como o pro cesso análogo de nago ização, consti tu em uma
REVISlO DA LITERATUR;I SOBRE SINCRETISMO... 71

negação do sincretismo, um a ''dcssincrctização" (Prandi e Silva, 1989, p.


234), afastando influências católicas c ameríndias do cuito dos o ri xás.
Este processo recente de dessincrctização começa a se r anal isado por
cientistas sociais. Evidencia que atualmcntc os líderes dos cultos afros procu-
ram justamente uma pureza afri cana que os pesquisadores acentuaram no
passado c que hoje renegam. Os intelect ua is en tretanto nã o constituem a
maioria dos seguidores destas religiões, c veri fica-se que não h á unanimi-
dade entre os pais-de-santo na a titude de ataque ao s incre tismo (Jocéli o
Santos, 1989 , p. 51).
A respeito do tema da pure za africana, podemos dizer do candomblé,
como Leonardo Boff ( 1977 , p. 54), cm relação ao ca tolic ismo oficial : "Este
é tão sinc rético como qualquer outra reli gião[ ... ] o cristian ismo puro não
existe, nunca exi stiu nem pode exis tir.[ ... ] O s incretismo, portanto, não
co nstitui um mai necessário nem representa uma patologia da religião pu ra.
É sua normali dade".
A idéia de pureza religiosa como vemos é um mito que alguns adeptos
procuram vivcnciar no candomblé c que estudiosos procu raram evidenciar.
Este ideal de pureza é de fato mais um mito que influc!1~ia a ~a i idade reli-
giosa. No passado , foi acentu ado por inte lectuais, c apesa r das críticas que
recebe, retorna hoje no processo de reafricanização c de dcssincre tização.
É conveniente disting uir a idé ia de pureza, que muitas vezes fo i idea -
lizada pelos pesquisadores, da noção ele tradição, relacionada c om a história
de cada grupo e com a prese rvação ele costumes c vaíorcs dos antepass ados.
A crítica à pureza não pode igno rar a tradição prese rvada c m muitos g ru -
pos, como fazem aíguns autores qu e a considera m uma invenção de intc- .V
icct uais . Sem d ú vida , c ntrctanro, es te é u m problema e min e ntemente t<

ideológico, que tem a ve r co m disputas de poder c prestígio entre os te r-


reiros c ent re os próprios inte lectuais . A idéia de pureza transformou-se
como vimos num mito. Para as ciências sociais, entretanto, o mi to possui
se mpre um fundo de verdade . Achamos que a ve rd ade do mi to da pureza
enco ntra-se nas tradi ções mais antigas, não inventadas recentemente.
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PESQ UISAS A TUA IS

Sem a pretensão de esgotar o tema, é oportu no apreciar contribu ições


rece ntes a respeito de sincreti smo, que têm sido formuladas cm a rtigos, teses
J U livros divulgados a partir da década ele 1980, que ainda não me ncionamos.
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Apoiado na idéia de Durkheim de que nenhuma instituição social pode


repousar sobre o erro c a mentira, c que por isso não há religiões que sejam
sociologicamente falsas, Roberto Motta (1982) indaga se "simples disfarces
durariam através de mais de 150 anos de história dos cultos afro-brasileiros".
Critica a idéia do sincretismo como disfarce e considera que "o povo-de-santo
do Recife vive o sincretismo com todas as suas contradições. [... ]O sincretismo
não representa apenas concessão de escravos a senhores ou de senhores a
escravos, disfarce ele negros amed rontados. Ao contrário, possui um apccto
de legítima apropriação dos bens do opressor pelo oprimido" ( 1982, p. 7).
No Rio de Janeiro, na perspectiva da psicologia religiosa, Monique
Augras realiza pesquisas sobre religiões afro-brasi leiras. Em seu livro mais
conhecido sobre o tema, encontramos entre outras as seguintes observações
sobre sincreti smo (Augras, 1983, pp. 27-32):

Desconfiamos no entanto que o sincretismo seja mais aparente que real, e,


sobretudo, não seja vivido do mesmo modo pelas diversas religiões de origem
africana. [... ] Acreditamos que seja possível falar de sincretismo no caso da umbanda.
Nela, as divindades e os ritos não se juswpõem apenas. Fundem-se. [... ]a doutrina
incorpora os diversos valores das demais religiões.[ .. .] Nas regiões onde a religião
nagô tradicional pôde subsistir[ ... ] é mais difícil falar cm sincretismo. Todas as
definições que encontramos da palavra "sincretismo" dão como essencial a fusão
de vúrios elementos. No caso do candomblé de rito nagô, parece tratar-se de
justaposição mais do que fusão. [.. .)Nossa opinião é que houve fusão real ao nível
das divindades africanas [... ] Nossa avaliação é mais reservada cm relação ao propa-
lado sincretismo com o catolicismo. [ ... ] Ao nível do candomblé tradicional, não hú
fusão, nem síntese entre a ideologia cristã e o sistema nagô.

O antropólogo argentino Alcjancl ro Frigcrio ( 1983), que realiza


pesquisas sobre religiões de origem africana cm Salvador e em Buenos Aires,
impressiona-se com a recente expansão desta religião cm seu país. Afirma
que o crescimento do sincretismo é um dos temas pouco abordados na lite-
ratura sobre as rciigiões afro-brasileiras, pois o preconceito africano fez
com que cm Salvador somente fossem estudadas as casas mais ortodoxas-
quinze a vinte dos cerca de 3000 terreiros existentes. Como os terreiros estu-
dados cm geral são de tradição nagô quero, conclui que os estudos não são
representativos da situação da maio ria das casas de culto ele Salvador.
Frigcrio analisa diversos estudiosos elas religiões afro-bras il eiras .
Critica Bastidc por ver o candomblé como um enquistamcnto cu ltural c
encontrar contrad ições entre seus participantes serem ao mesmo tempo bons
brasi leiros c bons africanos. Não concorda que haja contradições entre valo-
res do candomblé e da sociedade brasi leira. Em Juana Elbcin, critica a pro-
REVISiO DA LITERATURA SOBRE S INCRETISMO ... 73

priedadc da uti lização de matcriai africano na análi se de dados brasil eiros


e do termo nagô do Bras il, como equivalente ao qu e a etnologia moderna
de nomin a de ioruba da N igé ria.
Em tese de doutorado sobre tipos de personalidade c representação
simbólica no Xangô do Recife, Rita Scgato ( 1984, pp. 284-287) anali sa tam-
bém o papel do sincretismo. Verifica que o povo-de-santo considera incom-
p leta a mitologia dos orixás. Indepe nde ntemente das razões de suas origens,
pa ra e la, o s in c reti smo d esem penha a função de co mpl e me ntar aspectos
f ragm en tários da mito logia. Segund o Rita, para escla recer a imagem dos
orixás ou p reencher falha s de informações, os filho s-de-santo utili zam-se
do sincretismo com os santos catól icos correspo ndentes. Por exemplo, para
dar idéia da postura de Ogum util iza-se a figura de São Jorge cavaleiro; a
superioridade distante e o carátcr m e lancól ico ele le ma njá são exp ressos
através da imagem de N. Sra. da Conceição emergi ndo elo mar. Para Scgato,
o sincretismo, como os sonhos, contribui para se te r uma visão mai s clara
dos orixás que são incorporados nos devotos no estado ele transe.
Estudando a iconografia atual do Exu afro-bra sileiro e m artigo sob re
arte africana c s incretis mo no Brasil , Ka benge ie Munanga (1989, pp . 99-
128) uti liza o conceito ele sincretis mo afirmando qu e houve uma verdade ira
s íntese. "Às fu nções orig inais (africanas) acrescentaram-se no vas (afro-
b ra sileiras), co mo as de con testação, de revolta c de liberação dos negros
d e suas condições de esc ravos" (1 989, p. 126).
Para Mu nanga, se no Brasil a situação de co ntato tivesse sido de igual-
dade de tro cas recíprocas, teria hav ido um processo de aculturação entre
negros escravos e brancos colonizadores. Mu nanga diz que os pesquisadores
das re li g iõcss afro- brasi leiras div idem-se cm dois g rupos: uns crêem que
ho uve realmen te sincretismo entre reli gião cató li ca e religiões africanas c
util izam o co nceito, outros nega m o sincret ismo e evitam a utili zação do
termo. Conside ra que ambos cometem o erro de pa rt ir do co nceito para a
realidade, não anal isand o adequadamente o conceito ne m a realidade.
Atualm e ntc começam a se alterar as relações c o interesse ela Ig rej a
Católica pci o negro, rel igiões afro-brasileiras e sincretismo. Tal fato pode
se r constatado na experiência vivida cm Salvador durante alguns anos pelo
sacerdote fra ncês padre François de I' Espinay (19 89) . Fa lecido cm dezem-
bro de 1985, c não deixando ele ser padre, François assu miu cargos como
min ist ro ele Xa ngô n o te rreiro do Opô Aga nju, c de ixou alguns artigos
(Espina y, 1987a; 1987-b) co m reflexões sobre cristian ismo c cand omblé.
Relações entre o negro e a Igreja são anali sadas na tese de doutoramento de
Ana Lúcia Valente ( 1989). Após apresentar uma visão sintéti ca da presença
74 REPENSANDO O SINCRETISMO

do negro na história da igreja no B ra sil. Ana Valente estuda a Irmandade


de N. Sra. do Ro sá rio dos Preros de São Paulo c discute verte ntes atuais da
presença do negro na Igreja após o Vaticano II. Acompanha o G rupo ele
Agentes de Pastoral do Negro de São Paulo, analisando seus co nflitos com
a Igreja c com o movimento negro.
Valente ( 1989, pp. 190-215) di scute a proposta de inclusão de valores
afro-brasileiros nas celebrações li túrgicas com reinterpretação de símbolos,
de gestos corporais, de objctos e a inclusão na m issa de a limentos como
pipoca, farofa, pinga, etc. Comenta o risco da folclorização, da manipulação
do exótico pelo exótico c de de svalorização ele formas de resistência do negro.
R iscos que diz que o próprio negro combate nesta tentativa ele "enegreci-
mento" da igreja, procurando criar uma liturgia ·'do c para o negro".
Valente também discute a Campa nha da Fraternidade de 1988, comen-
tando sua pouca divulgação na imprensa escrita c tclcvisionada 9 . Segundo
Ana Valente ( 1989, p. 68):

Seja qual for o ânguio que se anal ise a questão do sincretismo rciigioso, é
importante re ssaltar que o negro não permaneceu passivo ante este processo, ape-
sar da imposição, da obri gatoriedade c do papel desempenhado pela reiigião catól ica
como sustcntácui o do projeto colonia l. Tudo leva a crer que a partir da rea lidade
v ivida naquela época, considerando as dificuidadcs. o negro recriou c reinterpretou
a c ultura dominante, adequando-a à sua maneira de ser.
5
Constatamos que os auto res mais preocupados em estudar o catoli -
cismo popula r ou as religiões populares, cm geral, dedicam pouca atenção

ao fenômeno do sincretismo religioso, considerado tema vi nculado aos estu- I
dos afro-brasil eiros. Surpreendem-nos as tentativas de inclusão ele elementos
destes c ulto s cm celebrações litúrgicas católicas, num tipo de sincretismo
do dom inado para o dominante, qu e pode ser precursor de mudanças.
Em decorrência de pesquisas recentes, as rel igiões afro-brasileiras
tornaram-se mais conhecidas cm sua diversidad e. Ampliam-se hoje as obser-

(
vações do fenômeno do sincreti smo, que no passado foi visto ele modo mais
restrito. Vejamos os resultados destes est udos no Norte do país, onde reali-
zamos nossas pesquisas de campo.
d
9. An~ Valclllc ( 1989, p. 253) refere· se ao fato oe que a 1mprensa de Siio Pau i o praticamente tam-
bém 1gnorou o Congresso lmernacional do Cemenário da Abolição, promovido pela USP cm maio
de !988. Es:c desinteresse é comu m cm todo o pais. Em junho de 1985 a UNESCO organizou no
Maranhiio um colóqu 1o internacional para discutir Sobrevivência das Tradições Religiosas Africanas
d
na América Latina c Co1ribc. reunindo mais de quarenta especialistas de diversos países. Os meios
de comunicaçflo nadonais não t1 veram interesse cmnoticinr o evento. apesar do empenho dos ri
Organizadores. Tal ntitudc reflete preconceitos raciais contra o negro e as religiões afro· brasilciras.
!.!UC se constnta na imprensa c em outros sctorcs da sociedade cm várias regiões do pa ís.

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