Você está na página 1de 16
Linguistica Angélica Furtado da Cunha ‘Marcos Antonio Costa Mério Eduardo Martelorta Conceitua¢do A linguistica € definida, na maioria dos manuais especializados, como a disciplina que estuda cientificamente a linguagem. Essa definicéo, pouco clucidativa por sua simplicidade, nos obriga a fazer algumas consideragées importantes. Primeiramente, precisamos determinar 0 que estamos entendendo pelo termo “linguagem”, que nem sempre € empregado com 0 mesmo sentido. Precisamos também delimitar 0 que significa estudar cientificamente a linguagem. Além disso, nao podemos esquecer que existem outros ramos do conhecimento que, 4 sua mancira, também se interessam pelo estudo da linguagem. Isso nos leva a estabelecer alguns contrastes entre a linguistica ¢ algumas ciéncias ou disciplinas afins, de modo a delimitar seu campo de atuacio. A partir de agora tentaremos desenvolver algumas observagdes sobre os conceitos dellinguagem e de lingua] estabelecendo 0 que ha de cientifico nos estudos elaborados na drea da linguistica. Além disso, buscaremos estabelecer diferengas entre essa dlisciplina e outros ramos do conhecimento que também se interessam em compreender alinguagem, bem como apresentar algumas dreas de aplicacio das teorias linguisticas. Linguagem e lingua O termo “linguagem” apresenta mais de um sentido. Ele é mais comumente empregado para referir-sea qualquer processo de comunicacao, como a linguagem dos animais, a linguagem corporal, a linguagem das artes, a linguagem da sinalizacio, a 16 Manval de linguistica linguagem escrita, entre outras. Nessa acepcao, as linguas naturais, como 0 portugués ou 0 italiano, por exemplo, séo formas de linguagem, j4 que constituem instrumentos que possibilitam o processo de comunicagio entre os membros de uma comunidade, Entretanto, os linguistas — cientistas que se dedicam a linguistica — costumam. estabelecer uma relagao diferente entre os conceitos de linguagem e lingua. Entendendo linguagem como uma habilidade, os linguistas definem 0 termo como a capacidade que apenas os seres humanos possuem de se comunicar por meio de linguas. Por sua ver, 0 termo “lingua” é normalmente definido como um sistema de signos vocais! utilizado como meio de comunicagao entre os membros de um grupo social ou de uma comunidade linguistica. Quando falamos, entao, que os linguistas estudam a linguagem, queremos dizer que, embora observer a estrutura das linguas naturais, eles ndo estio interessados.. apenas nalestrucura particular dessas linguas, mas nos\processos kque esto na base da sua utilizagio como instrumentos de comunicagao. Em outras palavras, o linguista no € necessariamente um poliglota ou um conhecedor do funcionamento especifico de virias linguas, mas um estudioso dos processos através dos quais essas vérias linguas refletem, em sua estrutura, aspectos universais essencialmente humanos. A linguistica, como ocorre com outras ciéncias, apresenta diferentes escolas tedricas que dil uma tentativa de apresentar uma visio mais geral e, sobretudo, imparcial em relacéo rem na sua mancira de compreender o fendmeno da linguagem. Em a essas escolas, propomos que a capacidade da linguagem, eminentemente humana, parece implicar um conjunto de caracteristicas. Vejamos algumas delas: a) Uma técnica articulatéria complexa Quando falamos em técnica articulatéria, nos referimos a um conjunto de movimentos corporais necessdrios para a producéo dos sons que compéem a fala. Esses movimentos envolvem desde a expulsio de ar a partir dos pulmoes ~ através dos brénquios, da traqueia e da laringe — até sua saida pelas cavidades bucal ¢ nasal. A sutileza que caracteriza esses movimentos ¢, sobretudo, a particularidade que distingue os varios sons e sua Fungo no sistema da lingua fazem com que o dominio desse proceso de produgio vocal seja uma tarefa de complexidade tal que apenas a espécie humana parece ser capaz de realizar. No que diz respeito & produco sonora dos elementos fonéticos, vejamos, por exemplo, a distingéo entre /b/ ¢ /p/. Ambos séo oclusivos, bilabiais, orais. A tinica diferenga entreeles € que /b/ ésonoro e /p/ ésurdo. Ou seja, na prontincia do /b/ aglote (espaco entreas cordas vocais) esté semifechada, fazendo com que oar, ao passar, ponhaas cordas vocais em vibracao. No caso de /p/, gloteesté aberta, o que fazcom que oar passe sem dificuldade e sem causar a vibragao das cordas vocais. Essa diferenga articulatéria Linguistica 7 é um trago distintivo no sistema da lingua portuguesa, pois a troca de /p/ por /b/ (c vice-versa) leva a uma mudanga de significado das palavras, como em “bote” e “pote”. A esse fato esta associado 0 dominio que o falante tem sobre complexos fendmenos de ordem fonolégica que caractetizam 0 uso didtio de uma lingua. Nesse sentido, séo interessantes fatos como a troca de /e/ por /i/, por exemplo, que na oposic¢ao entre “pera” ¢ “pira” causa uma modificagio de sentido, mas na oposigo entre /meninol e Imininol ni. Esses fenémenos demonstram que o uso da linguagem implica o dominio de um conjunto de procedimentos bastante complexos, associados nio apenas & producto. € percepgio dos diferentes sons da fala, mas também aos efeitos caracteristicos da distribuigao funcional desses sons pela cadcia sonora. b) Uma base neurobioldgica composta de centros nervosos que sio utilizados na comunicacao verbal Um exemplo que ilustra bem essa relacéo entre a linguagem e nossa estrutura neurobioldgica pode ser visto nas) afasias,/que se caracterizam como distiirbios de linguagem provenientes de acidentes cardiovasculares ou lesdes no cérebro. Desde meados do século xux, a partir dos estudos de cientistas como Paul Broca e Karl Wernicke, ficou estabelecido que lesdes ou traumatismos em determinadas Areas do cérebro provocam problemas de linguagem. > Broca propés que, se as lesGes ocorrem na parte frontal do hemisfério esquerdo do cérebro, elas causam, nas pessoas afetadas, uma articulagdo deficiente e uma séria dificuldade de formar frases sem que, no entanto, sua compreensio daquilo que as outras pessoas falam seja comprometida. Diz-se que os pacientes que apresentam esse problema softem de afisia de Broca._. _—¥Wernicke, por sua vez, percebeu que pacientes com lesio na parte posterior “do Idbulo temporal esquerdo apresentavam problemas de linguagem diferentes dos descobertos por Broca. Embora conseguissem falar luentemente, com boa prontincia € com frases sintaticamente bem formadas, esses pacientes perdiam a capacidade de produzir enunciados com significado, assim como a capacidade de compreender a fala de outras pessoas, Céscuma-se caracterizar essa deficiéncia como afisia de Wernicke.*A partir de entdo vém sendo desenvolvidos estudos acerca da interface entre cérebro/mente/linguagem, caracterizando uma érea de pesquisa normalmente chamada de neurolinguistica ou afasiologia, Descobriu-se, por exemplo, que as dreas de Broca ¢ de Wernicke séo conectadas por um feixe de fibras chamado fasciculus arcuatus, cuja lesio gera um terceiro tipo de afasia chamado de afasia de condugizo. © que queremos demonstrar com essas informagies sobre as relagdes entre linguagem e estrutura neurobioldgica ¢ que o funcionamento da linguagem, tal como ocorte, est relacionado a uma estrutura biolégica que 0 veicula. re 18 Manual de linguistica ©) Uma base cognitiva, que rege as relagdes entre o homem e 0 mundo biossocial e, consequentemente, asimbolizacao ou representacdo desse mundo em termos linguisticos Associado a essa base neurobiolégica esté o que poderfamos chamar, para usar uma expressio simplificada, de funcionamento mental, ow seja, 0s processos associados 2 nossa capacidade de compreender a realidade que nos cerca, armazenar organizadamente na memédria as informagSes consequentes dessa compreensio ¢ transmiti-las aos nossos semelhantes em situac6es reais de comunicagao. Podemos dizer que o termd)cogniedo $e relaciona a esse funcionamento mental que, em linguistica, existem diféréntes teorias que descrevem esse funcionamento. Para formarmos uma ideia bem geral de como a lingufstica trata esses fendmenos, € interessante tragarmos um breve histérico do modo como os linguistas compreenderam a relacio entre o uso da linguagem ¢ funcionamento da mente ao longo da evolucao dos estudos linguisticos. Comecaremos da chamada hipétese do relativismo linguistico, que pode ser vista nas ideias apresentadas no inicio do século xx por Edward Sapir ¢ Benjamin Lee Whorf? Segundo essa hipétese, cada lingua segmenta a realidade de um modo peculiar e impoe tal segmentacdo a todos os que a falam. Isso significa que a linguagem importante no sé para a organizagio do pensamento, como também para a compreensio e categorizacao do mundo que nos cerca. ‘Vejamosum exemplo de comoisso ocorre. Algumas linguasindigenasapresentamo mesmo termo pata designar 0 sol ea lua. Iso significa, segundo essa teoria, que os falantes dessas linguasidentificam esses dois objetos celestes como pertencentesaumamesmacate- goria de coisas. Fm nossa cultura, isso no acontece: temos nomes distintos para design- Jos: sol” e“lua”. Isso sed4 porqueacreditamosse tratar deduas coisasde natureza diferente. ‘Assim, a linguagem determinaria a percepco e 0 pensamento: as pessoas que falam diferentes linguas veem o mundo de modos distintos. Por sua vez, as diferengas de significados existentes numa lingua sao relativas &s diferengas culturais relevantes para o povo que usa essa lingua. Os autores procuram mostrar, portanto, a importancia que a linguagem tem na compreensao e na construgao da realidade. Essa forma de ver a linguagem foi mais tarde severamente criticada por Noam Chomsky e pelos linguistas gerativistas (ver 0 capitulo “Gerativismo”), os quais propdem uma visio de que o pensamento humano apresenta uma espécie de organizagao interna ¢ universal, que, pelo menos em sua esséncia, pouco tem a ver com questées de carter sociocultural. Por sua vez, os linguistas sociocognitivistas (ver © capitulo “Linguistica cognitiva”) retomam a proposta relativista, atribuindo-Ihe argumentos mais modernos: adotam a hipétese de que existem universais conceptuais que apenas motivam os conceitos humanos, mas que nao tém a capacidade de prevé-los de modo definitivo. Segundo essa visio, os universais conceptuais nao determinam 0 pensamento humano, pois sofrem a influéncia de fatores socioculturais. Unguistica i Nao é nosso objetivo, no momento, entrar nos decalhes associados as discussdes sobre a natureza da cstrutura cognitiva humana, ¢ sim registrar o fato de quea capacidade da linguagem implica um tipo de organizag&o mental sem a qual ela nao existiria ou, pelo menos, niio teria as caracteristicas que tem. d) Uma base sociocultural que atribui } linguagem humana os aspectos varidveis que ela apresenta no tempo € no espago A linguagem ¢ um dos ingredientes fundamiencais para a vida em sociedade. Desse modo, ela estd relacionada & maneira como intergitnos com nossos semelhantes, refletindo tendéncias de comportamento delimitadas socialmente. Cada grupo social tem um compottamento que the é peculiar e isso vai se manifestar tambemn namaneira de falar de seus representantes: os cariocas nfo falam como os gatichos ou como os mineiros ¢, do 1-smo modo, individuos pertencentes a um grupo social menos favorecido tém cu icterfsticas de fala distintas dos indivicuos de classes favorecidas. ‘Além disso, um mesmo individuo em situag6es diferentes usa a linguagem de formas diferentes. Quando esté no trabalho, discutindo questies profissionais com seu chefe, por cxemplo, o falante tende a empregar uma linguagem mais formal, mas em - casa, conversando com os familiares, a tendéncia € o falante utilizar uma linguagem. mais simples, com termes mais corriqueiros ¢ populares. E também importante registrar que nossas vidas, em fungéo dacvolugio cultural, mudam com o tempo. Assim, as linguas acabam sofrendo mudancas decorrentes de modificagées nas estruturas sociais ¢ politicas. Podemos perceber isso com facilidade” no vocabuldrio. Palavras referentes a objetos que nao séo mais utilizados desapat 0 caso de “mata-borrao”,* por exemplo. Por outro lado, termos novos aparecem p designar novas atividades ou novos aparelhos surgem com o desenvolvimento cult ou tecnoldgico: é o caso de uma série de termos utilizados na 4rea da comput como impressora, scanner, software, pen drive, entre outros. Desse modo, podemos dizer que as Iinguas variam ¢ mudam ao sabo fenémenos de natureza sociocultural que caracterizam a vida na sociedade. Vz vontade que os individuos ou os grupos tém de se identificar por meio da mudam em fungao da necessidade de se buscar novas expresses para d objetos, novos conceitos ou novas formas de relacao social. ¢) Uma base comunicativa que fornece os dados que regulam a interagdo entreos fal Como a linguagem se manifesta no exere(cio da comunicagao, existem a5} provenientes da interacao entre os individuos que se revelam na estrutura das I Um bom exemplo dissopode ser visto no processo de criacao de formas no fa expressivas para substituir construgGes que perderam sua expressividade em: da alta frequéncia de uso. 20 Manual de linguistica A construgao negativa dupla, como em “Nao quero isso, nao”, ilustra bem esse ponto. No discurso falado no portugués do Brasil, a promincia do “nao” ténico que precede o verbo frequentemente se reduz a um “zum” étono, ou até mesmo a uma simples nasalizagdo. Para reforcar a ideia de negagdo, o falante utiliza um segundo “nao” no fim da oracdo, como uma estratégia para suprir o enfraquecimento fonético do “nao” pré-verbal e o consequente esvaziamento do seu contetido semantico. Assim, 0 acréscimo do segundo “nao” tem motivagio comunicativa. E interessante o fato de que em algumas areas do Brasil, mais especificamente no Nordeste, desenvolveu-se uma tendéncia de utilizar apenas o segundo “nao”: “quero no”, “sei nfo”, € assim por diante. Essa estrucura frasal sé é possivel pela existéncia de um estagio intermedidrio em que, por motivos comunicativos, ocorre a negativa dupla mencionada anteriormente. A linguistica como estudo cientifico Para proceder ao estudo cientifico da linguagem ¢ necessério que se construa uma teoria geral sobre 0 modo como ela se estrutura e/ou funciona. O linguista busca sistematizar suas observac6es sobre a linguagem, relacionando-as a uma teoria linguistica construfda para esse propésito. A partit dessa teoria, criam-se métodos rigorosos para a descrico das linguas. O estatuto cientifico da linguistica deve-se, portanto, & observancia de certos requisicos que caracterizam as ciéncias de um modo geral. Em primeiro lugar, a lingufstica tem um objeto de estudo préprio: a capacidade da linguagem, que € observada a partir dos enunciados falados ¢ escritos. Esses enunciados sao investigados e descritos 4 luz de principios teéticos ¢ de acordo com uma terminologia especifica e apropriada. A universalidade desses principios teéricos ¢ testada através da andlise de enunciados em vérias linguas. Em segundo lugar, a linguistica tende a ser empirica,’ e nfo especulativa ou intuitiva, ou seja, tende a basear suas descobertas em métodos rigidos de observacao. Ou scja, a maioria dos modelos linguisticos contemporineos trabalha com dados publicamente verificdveis por meio de observagées ¢ experiéncias. Estreitamente relacionada ao cardter empirico da linguistica est a atitude no preconceituosa em relacio aos diferentes usos da lingua. Essa atitude tornaa linguistica, primordialmente, uma ciéncia descritiva, analitica ¢, sobretudo, nao prescritiva. Para tanto, examina e analisa as linguas sem preconceitos sociais, culturais e nacionalistas, normalmente ligados a uma visio leiga acerca do funcionamento das linguas. ‘Alingufstica considera, pois, quenenhuma lingua éintrinsecamente melhor ou pior do que outra, uma vez que todo sistema linguistico é capaz. de expressar adequadamente acultura do povo que a fala. Desse modo, uma lingua indfgena, por exemplo, nao € inferior a linguas de povos considerados “mais desenvolvidos’, como o portugués, o inglés ou o francés, Linguistica 27 ‘Além disso, a lingufstica respeita qualquer variagéo que uma lingua apresente, independentemente da regido e do grupo social que a utilize. Isso porque é natural que toda lingua apresente variacées de promtincia (falar ws. fad bicieletas. biciereta), de vocabulirio (aipim/macaxcira; abbora/jerimum) ou de sintaxe (casa de Paulo/casa do Paulo) ~ que manifestam nfveis semelhantes de complexidade estrucural e funcional. Desse modo, a0 observar essas variedades da lingua, os linguistas reconhecem sua relacdo com diferentes regibes do pafs, grupos sociais, etdrios e assim por diante. ‘Appostura metodologica adotada na linguistica, portanto, decorre naturalmente da definicao do seu objeto ¢ considera, sobretudo, que: « todas as inguas e todas as variedades de uma mesma lingua sio igualmente apropriadas ao estudo, uma ver que interessa ao linguistaa conserugto de uma teoria geral sobre a linguagem humana, Cabe a0 pesquisador descrever com abjetividade 0 modo como as pessoas realmente usam a sua lingua, falando ou escrevendo, sem atribuir as formas linguisticas qualquer julgamento de valor, como certo ou errado. Isso significa dizer que a linguistica é nao prescritiva. «a lingua falada, exclufda durante muito tempo como objeto de pesquiss, tem caracteristicas proprias que a distinguem da escrita e constitui foco de snteresse de investigagao. Ou seja alinguistica, apesar de se interessar também pela escita, apresenta interesse especial pela fala, uma ver que é nesse meio que a linguagem se manifesta de modo mais nacural. Como se pode concluira partir do que foi visto até aqui, alingufstica tem como objeto de estudo a linguagem humana através da observagao de sua ‘manifestacéo oral ou escrta (ou gestual, no caso da lingua dos sinais). Seu objetivo final é depreender os principios fundamentais que regem essa capacidade exclusivamente humana de expressio por meio de linguas. Para atingir esse objetivo, os linguistas analisam como as inguas naturals se estrucuram efuncionam. A investigagio de diferentes spectos das diversas linguas do mundo é 0 procedimento seguido para derectar as caracteristicas dda faculdade da linguagem: o que hé de universal ¢ inato, o que hé de cultural ¢ adquirido, entre outras coisas. Povle-se, portanto, dizer quea linguistica executa duas tarefas principais:o estudo dhs Iinguas particulares como um fim em si mesmo, com o propésito de produzir descrigbes adequadas de cada uma delas, ¢o estudo das Iinguas como um meio para obter informagées sobre a natureza da linguagem de um modo geral. Linguistica e sua relacGo com outras ciéncias ‘Uma ver afirmada como ciéncia, delimitando objeto ¢ metodologia préprios, a linguistca reivindica sua autonomia em relagéo as outras éreas do conhecimento, No passado, 0 estudo da linguagem se subordinava, por exemplo, 3s investigasoes da ad Manual de linguistica Filosofia através da Légica. Sobretudo a partir do inicio do século xx, com a publicagio do Curso de linguistica geral (marco inicial da chamada linguistica moderna), obra péstuma do linguista suigo Ferdinand de Saussure, instaura-se uma nova postura, € os estudiosos da linguagem adquirem consciéncia da tarefa que lhes cabe: utilizando- se de uma metodologia adequada, estudar, analisar e descrever as linguas a partir dos elementos formais que lhes sio préprios. Entretanto, isso nao significa dizer quea linguistica encontra-se isoladadas demais ciéncias ¢ de outras dreas de pesquisa. Ao contririo, existem relacées bastante estreitas entre elas, 0 que faz. com que, algumas vezes, seus limites ndo se apresentem nitidamente. Desse modo, a caracterizacao dessas disciplinas€ util na medida em que permite delimitar mais claramente 0 campo de atuagao da linguistica, contrastando-o com o de outras ciéncias. Temos, assim, duas faces da relacao entre linguistica e as demais ciéncias. Por um lado, essa relagao é de interface: ciéncias que nao tém a linguagem como seu objeto de estudo especifico passam a se inveressar por ela, porque a linguagem faz parte de alguns aspectos do seu objeto de estudo. Ou seja, quando falamos em interface, nos referimos a pontos de intersecdo entre a lingufstica ¢ outras ciéncias. A sociologia, por exemplo, se interessa pelo estudo da linguagem, uma vez que a vida em sociedade 6 é possivel em fungio da comunicagio entre os individuos. Outros exemplos podem ser vistos na filosofia, que se ocupa da natureza da relacao entre linguagem e realidade, ¢ na psicologia, que, estudando o funcionamento da mente, interessa-se por essa habilidade essencialmente humana que ¢ a linguagem. Por outro lado, essa relagéo de proximidade ou semelhanca: linguistica, gramdtica tradicional, filologia ¢, em menor grau, semiologia estudam especifica e exclusivamente a linguagem, diferindo na concepgao que possuem da natureza da linguagem, do foco que dio aos seus diferentes aspectos, dos objetivos a que se propoem eda metodologia que adotam. Vejamos, com mais detalhes, essa relagao de proximidade ou semelhanca entre a linguistica outras ciéncias, sem perder de vista o fato de que é extremamente dificil estabelecer uma fronteira clara entre duas dreas de conhecimento. Linguistica e semiologia Comecemos estabelecendo uma distingao entre a linguistica ¢ a semiologia ou semidtica.* E dificil delimitar 0 campo de atuagao da semiologia, mas costuma-se caracterizar esse campo de pesquisa comoa ciéncia geral dos signos. Ouseja, asemiologia _ nao se interessa apenas pela linguagem humana de natureza verbal, mas por qualquer sistema de signos naturais (a fumaca ¢ um sinal de fogo, nuvens negras sf um sinal de chuya, etc.) ou culturais (sinais de transito, gestos, formas de danga, etc.). A semiologia surgiu a partir das ideias do linguista suigo Ferdinand de Saussure, para quem essa disciplina deveria se interessar pela relacdo entre linguagem e realidade ¢ pela natureza da intermediagao que os sistemas de signos fazem entre os individuos. Linguistica 23 Para o linguista suico, a linguistica seria um ramo da semiologia, apresentando um carter mais especifico em funcao de seu particular interesse pela linguagem verbal, Na pritica, entretanto, a semiologia vem se desenvolvendo separadamente da linguistica como consequeéncia do trabalho de nao linguistas, sobretudo na Franga. Independentemente da dificuldade de delimitar 0 campo dessas duas disciplinas, podemos apontar, como fator de diferenciagao, um aspecto que parece estar presente na maioria dos manuais da disciplina: a lingufstica escuda a linguagem verbal, enquanto a semiologia, com seu carter mais geral, interessa-se por todas as formas de linguagem. Linguistica e filologia Quanto & diferenca entre linguistica e filologia, podemos dizer que a ultima € uma ciéncia eminentemente histérica, que por tradicao se ocupa do estudo de civilizagdes passadas através da observacio dos textos escritos que elas nos deixaram, com 0 intuito de interpreté-los, comenté-los, fix4-los ¢ de esclarecer ao leitor 0 processo de transmissao textual. Como ocorre com todas as ciéncias, 0 que é considerado campo de atuacio dos estudos filolégicos pode variar de acordo com diferentes autores. Alguns incluem no campo dessa ciéncia, por exemplo, o estudo da evolucio das Iinguas, observando, entre outras coisas, as transformagées sofridas pelas formas da lingua —as palavras, seu emprego, a construcao da frase — através da verificagao de documentos cronologicamente sucessivos. Um exemplo € 0 estudo da evolucao do latim em direcao as diferentes linguas rominicas, tanto nos seusaspectos histéricos (histéria externa) quanto estruturais (histéria interna). Esse campo de estudo tem sido chamado de filologia romanica e busca descrever, de um lado, 0s aspectos politicos, sociais ¢ histéricos caracteristicos do crescimento do Império Romano que tiveram influéncia na evolugdo da lingua e, de outro, os aspectos \guisticos associados & mudanga fonética, morfossintatica e semantica. Nesse sentido, alguns autores identificam a filologia com a linguistica histérica,” cujo objetivo basico ¢ 0 estudo comparativo entre as linguas a fim de classificé-las de acordo com as semelhangas que elas apresentam. Essa identificacao, entretanto, nao € consensual. Muitos autores vem o surgimento da linguistica histérica como 0 advento da propria linguistica, jé que marca o desenvolvimento de uma andlise voltada para a compreensio da propria estrutura das Iinguas, bem como o aparecimento de teorias mais consistentes acerca da mudanga linguistica. Segundo essa visio, o campo de atuacio da filologia se restringe ao estudo do texto escrito. Esse estudo engloba a exploracio exaustiva dos mais variados aspectos do texto: linguistico, literdrio, critico-textual, sécio-histérico, entre outros. Cabe 3 filologia interpretar ¢ comentar os textos antigos a fim de fornecer as informacées necessérias para sua compreensao: sentidos que, por ventura, as palavras possufam num passado 24 = Manual de linguistica Temoto ou recente, mas que se perderam; formas ¢ usos linguisticos atualmente nio utilizados, mas necessérios para esclarecer-nos eventuais passagens obscuras de um texto, Além disso, a disciplina visa apresentar ao leitor 0 texto que mais se aproxima da tiltima forma materializada pelo seu autor. Assim, quando observa um determinado manuscrito, o filélogo deve saber de que época é a letra, se € texto original ow cépia, se 0 copista foi fiel ou se inseriu modernismos. Deve observar nao apenas aspectos linguisticos, como, por exemplo, as caracterfsticas ortogréficas, mas também aspectos nao linguisticos, como a disposi¢ao da mancha, dos titulos, do uso diferenciado dos caracteres gréficos, do conjunto de ilustragées, entre outros fatores. Nesse sentido, a filologia busca levantar 0 contexto em que o texto foi produzido, 0 que inclui seu autor, sua época exata, suas condigGes de producao ¢ tudo 0 que ajuda a compreender a sua estrutura. ‘Todo esse material desenvolvido pela filologia ¢ muito importante para cientistas de outras reas. Por exemplo, ¢ fundamental para o estudioso da literatura porque fornece as informagées necessérias para a caracterizagao do texto por ele estudado. E fundamental também para o linguista j4 que fornece para andlise um material constituido de textos fidedignos, que refletem, com maior precisio, os diferentes momentos da evolugio histérica de uma lingua. Podemos dizer, entéo, resumindo 0 que foi visto até aqui, que a filologia é uma ciéncia eminentemente histérica, a0 contrério da linguistica, cujo interesse éa compreensio do fendmeno da linguagem através da observagio dos mecanismos universais que esto na base da utilizacao das inguas. Isso significa queo estudo chamado sincrénico,* desde Ferdinand de Saussure, éum procedimentovalido entreoslinguistas. A filologia se interessa pelo estudo do texto escrito, enquanto a linguistica, embora nao despreze a escrita, se volta para a linguagem oral. Essa estratégia se justifica pelo fato de a fala refletir 0 funcionamento da linguagem de modo mais natural ¢ espontineo do que a escrita, que é mais planejada e, muitas vezes, retificada em nome de um texto mais claborado. Isso faz da fala um material mais interessante para que se possa compreender o funcionamento da linguagem humana. No campo da histéria das linguas, a filologia se limita a descrever as formas caracteristicas das diferentes épocas da evolugio histérica das linguas, tendo um caréter ais didético no sentido de que oferece informagGes bisicas para a compreensio dessas formas. A linguistica, por outro lado, ao desenvolver teorias mais consistentes com relagio a0 funcionamento da linguagem, tende a dar conta de alguns aspectos universais da mudanga, transcendendo o nivel meramente descritivo. Os linguistas nfo querem apenas saber como o latim gerou o portugués, o francés ou o italiano, por exemplo. recai sobre os mecanismos universais que regem a mudanga linguistica, procurando saber se a mudanga ocorte, por exemplo, de geracéo para geragio, se os fatores soci eu interesse is ou interativos influenciam o processo. A relacio entre mudanga e variacio demonstrada SE Reha Mae ee Linguistica PEs) pela sociolingui(stica ¢ a teoria da gramati¢ alizagao retomada no final do século xx pelos linguistas funicionalistassio exemplosde propostas mais universais de mudangalingufstica, Linguistica e gramatica tradicional Cabe ayora dierenciar a lingu(stica da chamada gramdtica tradicional. As pessoas frequentemente pensam que a linguls a éa velha gramAtica ensinada nas escolas, avivada com alguns termos novos. Porém, a diferenga entre ambas se manifesta em varios pectos basicos. Em primeiro lugar, devemos registrar que a gramdtica tradicional foi criada e desenvolvida oor fildsofos gregos. Representa uma tradicdo, que se iniciou em Aristételes, de e slecer uma relagdo entr« linguagem ¢ légica, buscando sistematizar, através da observacio das formas linguisticas, as leis de elaboracao do raciocinio. Essa tradicdo tem, portanto, suas rafzes na filosofia e predominou na base dos estudos gramaticais até o século x1x, quando se desenvolveram novas teorias sobre a linguagem que caracterizariam o surgimento de uma nova ciéncia: a lingufstica.? ‘Além disso, essa tradigéo gramatical se caracterizava por uma orientagao normativa, j que, ao tentar impor 0 dialeto dtico como ideal, buscou instituir uma maneira correta de usar a lingua. Vale ressaltar que essa concep¢ao normativa € estranha a linguistica, ciéncia que se prop6e a analisar ¢ descrever a estrutura € 0 funcionamento dos sistemas de lingua, e nao prescrever regras de uso para esses sistemas. Os linguistas, portanto, estao interessados no que é dito, ¢ nao no que alguns acham que deveria ser dito. Eles descrevem a lingua em todos os seus aspectos, mas nao prescrevem regras de corregao. FE um equfvoco comum achar que hd um padrao absoluto de correcao que é dever de linguistas, professores, gramdticos € dicionaristas manter. A nocio de correo absoluta e imutavel é alheia aos linguistas. E verdade que, através da roda do tempo, um tipo de fala pode ser mais prestigiado do que outros, mas isso nao torna a variedade socialmente aceitdvel mais interessante para os linguistas do que as outras. Tomemos como exemplo a variagao na regéncia do verbo “assistir” quando ele significa “ver”. Na lingua falada usa-se comumente “assistir 0 jogo”, e nao “assistir ao jogo”, que representa a forma-padrao utilizada preferencialmente na escrita. E importante observar que os critérios de corregéo que privilegiam a forma-padrao em detrimento da coloquial nao sio estritamente lingu(sticos, mas decorrem de pressGes polfticas /ou socioculturais. Isso significa que, em termos lingufsticos, nao h4 nada em uma forma de falar que a caracterize como correta ou errada. As formas consideradas corretas sio, na realidade, aquelas utilizadas pelos grupos sociais predominantes. Cabe ainda mencionar que essa posigao dos linguistas em relagao 4 no¢ao de correcao é um reflexo de seu trabalho como cientistas da linguagem, que observam, sem preconceitos, todas as formas de expressdo a fim de compreender a natureza da 26 ~~ Manual de linguistica linguagem. Entretanto, é evidente que essa posigio no deve ser estendida para 0 ensino de lingua materna sem um minimo de reflexio. Os linguistas tém plena consciéncia da importincia da norma-padrio para © ensino do portugués € reconhecem que o aprendizado ou nao desse padrio tem implicagdes importantes no desenvolvimento sociocultural dos individuos. Nesse sentido, ¢ valido dizer que para a linguistica nao hé formas de expresso corretas ou erradas, mas adequadas ou nao aos diferentes contextos de uso. E tao inadequado 0 uso de formas nao padronizadas da lingua por parte de um deputado ao discursar na Camara, por exemplo, quanto a utilizaco por parte desse mesmo deputado de uma linguagem formal, marcada pelas regras do padrao culto, quando cle estiver nas ruas pedindo votos para as pessoas humildes. Uma segunda diferenga importante entre a linguistica e a gramatica tradicional éque os linguistas consideram a lingua falada, endo escrita, como priméria. Qualquer atividade de escrita representa um processo mais sofisticado eadquitido mais tardiamente, como comprovamas seguintes observac6es gerais: comecamosafalarantesdeaprendera escrever, falamos maisdo que escrevemos em nossa rotina didria, todasas linguas naturais foram faladas antes deserem escritas. Ao longo dos anos, os gramaticos tém enfatizadoa importincia da lingua escrita, em parte por causa de seu carter permanente reforcado pela padronizacao da ortografia e pelo advento da imprensa. ‘A pritica educativa tradicional insiste em moldar a lingua de acordo com 0 uso dos melhores autores eldssicos, mas os linguistas olham primeiro para a fala, que cronologicamente precedeu a escrita em todas as partes do mundo. Vale notar que, enquanto todas as comunidades humanas existentes, ou que jé existiram, possuem a capacidade de se comunicar através da fala, o sistema de escrita, pelo que se sabe, existe ha scis ou sete mil anos no maximo. Por outro lado, hd ainda hoje linguas desprovidas de tradigao escrita, as chamadas linguas dgrafas, como, por exemplo, algumas linguas indfgenas brasileiras ¢ algumas linguas africanas. Os linguistas, portanto, consideram as formas faladas e escritas pertencentes a sistemas distintos, j4 que exibem diferentes padrdes de gramatica ¢ vocabulirio seguem regras de uso que Ihes sao especificas. Logo, embora sobrepostos, esses sistemas devem ser analisados separadamente: a fala primeiro, depois a escrita. Do que foi exposto, podemos concluir que, em virtude da natureza complexa do objeto de estudo da linguistica, torna-se dificil —se ndo impossivel —tracar com clareza os limites dessa disciplina oumesmoenumerarcom seguranga suas tendéncias deandlise que, como é comum em qualquer ciéncia, variam de acordo com diferentes autores ou escolas. Aplicagdes Allinguistica esta longe de ser uma disciplina homogenea; ao contririo, é um vasto territério com muitas nogGes € orientagGes tedricas em competicao. Assim sendo, ela Linguistica 27 oferece muitas op¢des para a pesquisa aplicada, e muitos ramos ou teorias linguisticas so fortemente orientados paraa resolucao de questées praticas que envolvem a linguagem. Nos tiltimos anos, tem-se registrado o crescimento de uma tendéncia aplicada, comprometida com a utilizagao dos resultados da pesquisa linguistica e de outras dreas do conhecimento com vistas & resolugdo de problemas da vida cotidiana que envolvem © uso da linguagem. Comecemos pela chamada linguistica aplicada. Segundo alguns autores, 0 termo “linguistica aplicada” surgiu na metade da década de 50 do século passado, quase simultaneamente na Inglaterra ¢ nos Estados Unidos, motivado talvez pelo desejo dos professores de lingua de se distinguirem dos professores de literatura e de se associarem a algo mais cientifico e objetivo, como a linguistica. Embora ainda nao haja um consenso quanto ao escopo ¢ critérios definidores dessa 4rea do conhecimento, é evidente que ela esta se tornando uma disciplina reconhecida que vem ampliando seus dominios. Em sua origem, a linguistica aplicada tem sua atuacao voltada para o ensino de linguas, especialmente de linguas estrangeiras, ‘buscando, para isso, subsidios de teorias referentes & linguagem, sejam elas provenientes da linguistica, da filosofia da linguagem ou de qualquer outra drea afim. A literatura especializada frequentemente emprega uma definigao operacional de linguistica aplicada: a linguistica aplicada é umafabordagem multidisciplinar|para a solugio de problemas associados & linguagem. Logo, é uma caracteristica central dessa disciplina o fato de que ela esté relacionada a tarefas, orientada para problemas, centrada em projetos ¢ guiada para a demanda, Para cumprir seus objetivos, ela se fundamenta primeiramente, mas nao exclusivamente, na linguistica, j que esta é a disciplina que fornece informagées que tratam exclusivamente da linguagem. Contudo, a linguistica aplicada nao esta preocupada em descrever a linguagem em si mesma ¢, portanto, busca conhecimento também em uma variedade de outras ciéncias sociais, indo da antropologia, teoriaeducacional, psicologia e sociologiaaté a sociologiadaaprendizagem, asociologiada informagio, a sociologia do conhecimento, etc. E, portanto, um campo interdisciplinar. Para tentar descrever a que tipos de aplicacao a lingutstica se pode prestar, duas questdes amplas devem ser respondidas: primeiro, que parte da linguistica pode ser utilizada nos problemas baseados na linguagem que a linguistica aplicada se propée a mediar? Segundo, que tipos de problemas podem ser resolvidos através da mediagio da linguistica aplicada? Pode-se dizer que virtualmente todas as reas da linguistica contribuem para a linguistica aplicada. Nesse sentido, informasio relevante pode vir da fonologia, sintaxe, semantica, linguistica textual, sociolinguistica e psicolinguistica, por exemplo. Os tipos de problemas com os quais a linguistica aplicada esta envolvida podem ser identificados como problemas de comunicacéo de um modo geral, sejam eles entre individuos, comunidades de individuos ou nagées. J Um exame superficial dos titulos dos artigos publicados nas revistas de linguistica aplicada revela algumas tendéncias. Grande volume desses trabalhos est relacionado, 28 Manual de linguistica de um modo ou de outro{ao ensino aprendizagem de lingua, incluindo aspectos de alfabetizacao, letramento,"” aquisicéo e aprendizagem de linguas estrangeiras, elaboragio de testes ¢ material educacional de Iingua)\A parte remanescente se divide em quatro categorias amplas, que incluem politica ¢ planejamento linguisticos, usos profissionais da linguagem, comportamento linguistico desviante e bilinguismo, multilinguismo ¢ multiculturalismo. Sao essas as dreas em que a linguistica aplicada tem estado ati intervindo nos modelos teéricos € nos praticantes, numa via de mao dupla, ajudando a trazer preocupagées tedricas a situagées concretas ¢, ao mesmo tempo, expandindo a teoria ao trazer essas situacbes problemas ¢ quest6es que nao foram (ou nao foram adequadamente) focalizados pela teoria. A relagao entre linguistica e lingufstica aplicada & pois, simbidtica."* A colaboragio da linguistica aplicada em projetos linguisticos tem contribufdo para disseminar um maior conhecimento na comunidade letrada da natureza da linguagem e do seu papel na sociedade, além de ter despertado uma disposigao entre os linguistas aplicados de examinar conceitos de outras disciplinas ce determinar sua relevancia para a linguistica aplicada. ‘Num contexto em que o ensino de linguas tem sido encarregado da proterdo ou defésa da linguagem correta, a lingufstica tem sido aplicada, em maior ou menor grau, em contextos de aprendizagem de lingua (ver 0 capitulo “Linguistica e ensino”). Os estudiosos da lingua tém usado informagées linguisticas em tarefas educacionais, cos professores de Iingua tém se debrucado sobre as descobertas dos estudiosos para definir tanto 0 que serd ensinado em sala de aula quanto 0 modo como seré ensinado, Nesse sentido, a aplicagao de informagGes linguisticas na resolucio de problemas reais nao pode ser considerada uma orientagao recente. Asaplicagdes da linguistica nao se restringem, porém, ao dominio do ensino de linguas ou ao campo de atuagio da disciplina denominada linguistica aplicada; ouras 4reas utilizam, produtivamente, as descobertas tedricas da pesquisa linguistica para fins priticos, como a afasiologia, a inteligéncia artificial, a tradugao automatica ¢ 0 desenvolvimento de softwares capazes de traduzir a fala humana em escrita e vice-versa. Em questées de natureza clinica, 0 tratamento € reabilitagao de pacientes com problemas de fala, como afasia ou mal de Alzheimer, por exemplo, tem se beneficiado recentemente com a incorporacao de contetidos linguisticos em cursos que formam terapeutas da fala. Psicolinguistas ¢ neurolinguistas tém procurado entender como a linguagem ¢ processada no cérebro ¢ como os varios danos cerebrais afetam tanto a meméria linguistica quanto a produgio linguistica. Em contextos forenses, a linguagem tem se tornado um campo de estudo em ascensao, Analisam-se conversacGes para descobrir conspiracao, ameacas, difamagio € outras questées pertinentes a lei. © uso da linguagem em contextos legais afeta nao apenas como um advogado apresenta seu caso & corte, mas também como se percebe averacidade de um testemunho, a escolha dos membros do juiri, a compreensao das Linguistica 29 inscrugées para os jurados, a transcrigao de registros de julgamentos, a admissao de evidéncias no julgamento ¢ a forca do testemunho de especialistas. Os progressos na drea da tecnologia da comunicacéo também requerem informasao lingu(stica sofisticada. Na area das telecomunicagées, engenheiros cletricos ¢ elecrénicos contam com a colaboragiio de especialistas em fonética para, Por exemplo, aumentar 0 ntimero de conversagées em um tinico circuito de telefone. A participacio da lingufstica aplicada ¢ especialmente notével em projetos que lidam com o reconhecimento automético da fala, a sintese automitica do discurso, tradugao automatica, inteligéncia artificial ¢ campos afins. Em resumo, hd varios dominios em que a linguistica pode ser aplicada Produtivamente, Dependendo do propdsito da aplicacéo, as disciplinas relevantes a esses propésitos vio variar. A relagio entre disciplinas e os dominios da linguistica aplicada é paralela & relacao entre, por exemplo, de um lado, a engenharia, a matemitica, a fsica, a quimica, etc. ¢, de outro lado, os objetivos do engenheiro em determinadas circunstancias praticas. Exercicios 1) Fasa um comentério acerca do conceito de “lingustca’apresentado no inicio do texto: “disciplina que estuda cientificamente a linguagem”, 2) Que argumento(s) poderia(m) ser usados para privilegiar a andlise da lingua falada? 3) Aponte um aspecto que caractrize a relagéo entre a linguagem e nossa estrutura neurobiolégica ¢ comente sua escolha, 4) Que aspectos caracterizam a linguistica como o etudo cientifico da linguagen? 5) Estabelesa uma distingio entre linguistic, filologiae semiologia ©) Cite algamas dreas em que os resultados da pesquisa lingufstica podem ser aplicados. Notas (Gabe registrar aexisténcia da chamada lingua dos sinais,utlizada pelos surdos,em que io ha sgnos vocais, mas Tatas: © sistema de comunicasto dos surdos €considerado uma lingua pela grande maiora dos autor que, ‘embora ndo se constitua de sinais sonoros, apresenta ascaraceristicas bésicas das linguas naturals, * As zonas cerebraisafetadas nas afasias de Broca ¢ de Wemnicke sfo chamadas respectivamente de rea de Broca sirea de Wernicke, qinguistas norte-americanos que, na primeira metade do século xx, ajudaram a criar a tradigio dos estudos linguisticos nos Eva. Papel préprio para absorver a tinta Fresca. © ‘srmo “empirico” deve ser entendido aqui como uma atitude de buscar a comprovagio empirica dos fatos, ou seit» que as hipéteseslevantadas pelos lingustassejam comprovadas através da observasio dos dados, Q termo “semiologia” csté relacionado & tradigio saussuriana,constituindo uma tradugao do francés séniolegie. Hrs semi (de semiotics, em inglés etd asociado ao trabalho, desenvolvido nos Estados Unidos, pele filésofo Charles Sanders Peirce. 30. Manual de linguistica Essa identificasio provavelmente tem sua origem no fato de o linguista Georg Curtius, no século x1x, ter colocado a filologia clissica no campo da linguistica. © Segundo Saussure, o termo “sinerBnico” relaciona-se ao estudo de um lingua em um determinado momento de sua cevolugio histérica, em oposigio ao estudo “diacrOnico”, que se caracteriza pela comparagao entre dois momentos diferentes da evolugao da lingua através do tempo. > Essa concepcio de uma base légica ¢ universal para a linguagem, abandonada pelos primeiros estruturalista, foi retomada por Chomsky em meados da década de 1950 « caracteriza até hoje os estudos gerativistas. Entretanto, «ssa posigio nio se estende a outras escolas linguisticas da atualidade nem predomina em estudos atuais da flosofia da linguagem. © termo “lecramento” referee 20 processo de ensino/aprendizagem de leitura e produgso textual, com vistas & formasio cidads, & insercio social plenamente participativa. “Simbiose” um termo da biologia que designa a asociagao entre dois ou mais seres de espécies diferentes da qual todos tiram vantagem. O exemplo mais citado € 0 liquen, que é constituido pela simbiose de uma alga e de um ‘cogumelo.

Você também pode gostar