Esse material foi elaborado com ajuda da Doutora Mariana Prado, bacharel em Ciências
Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre em Botânica pela mesma
universidade e doutora em Botânica pela Universidade Federal de São Carlos.
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Facebook: Eduardo Marques Moreira
Nota preliminar: sempre que você ler sobre uso de água no tutorial abaixo descrito, é
água sem cloro.
Esse é um pequeno manual escrito pelo presente autor com o objetivo de guiar
homebrewers que desejam se aventurar no universo homemalting. Homemalting, por
sua vez, significa literalmente, malteação caseira. Mas, por que produzir o próprio
malte, com tantos maltes disponíveis no mercado e com boa qualidade?
A resposta pra essa pergunta pode ser dividida em três partes: primeiro, porque
faz tanto sentido maltear em casa como fazer cerveja em casa. Sabendo que existem
tantas boas cervejas no mercado, por que então faríamos nossa própria cerveja? Ora, é
um hobby, é paixão, é a vontade de superar as dificuldades caseiras para criarmos a
cerveja perfeita. De forma análoga, maltear os próprios grãos também é um hobby, uma
busca para a criação de novos maltes que nos agradem. Em segundo lugar, não
encontramos todos os grãos do mundo em sua forma malteada. No geral, as maltearias
produzem maltes de cereais como trigo, centeio, aveia e cevada. Em último caso, a
maltearia Maltes Catarinense lançou recentemente o malte de arroz no mercado
brasileiro, e francamente por um preço bem alto quando comparado com outros maltes.
Cereais sem glúten, por sua vez, permanecem praticamente inexplorados, sendo que nas
Américas temos o milho, cereal nativo daqui, com excelentes propriedades e que
poderia, sem nenhum problema, ser comercializado na forma de malte se não fosse o
desfavor prestado pela grande mídia aos brasileiros, fazendo-os acreditar que o
problema da cerveja nacional é ter milho. Mesmo tendo em mente que o milho presente
nas cervejas nacionais não é milho, e sim uma espécie de xarope de milho, e tendo em
mente ainda que nem forma malteada de milho isto é, quebrar o preconceito criado pela
imprensa é difícil, o que justifica a ausência de venda de maltes de tal cereal por aqui.
Nos Estados Unidos, por outro lado, a malteação de cereais sem glúten é não só comum
e difundida entre os homebrewers, como também se usa malte de milho para a
fabricação do famoso Bourbon, o whisky de milho americano. E por falar em malteação
de cereais sem glúten, chegamos ao terceiro ponto: não podemos nos esquecer dos
celíacos, que permanecem afastadas do universo homebrew devido à ausência de maltes
sem glúten com alto poder diastático no mercado.
Pensando em tudo isso, e na falta quase absoluta de materiais que ensinem a
produzir maltes sem glúten em língua portuguesa, esse material foi elaborado baseado
em estudos e experiências de seu autor.
Homebrewer há mais de 2 anos, com várias levas de cerveja produzidas, o autor
teve a curiosidade de saber se era possível produzir o próprio malte, especificamente
malte de milho. Descobriu que não só era possível, como também que maltes sem
glúten oferecem várias características peculiares às cervejas com eles produzidas.
Amigo de um indivíduo celíaco e de um casal que, embora não seja celíaco, diz que o
glúten faz mal à saúde qualquer um, decidiu então criar maltes sem glúten e ensinar a
eles, bem como a outros, o caminho das pedras de como tal procedimento (de malteação
caseira) deve ser conduzido.
Ao longo do texto serão apresentadas figuras de improvisações feitas para
malteação caseira. É certo que o método de malteação pode ser significativamente
melhorado, mas isso foge do escopo desse trabalho, que visa apresentar a abordagem
mais simples possível para produção do próprio malte. A quem possa interessar,
modelos de verdadeiras máquinas improvisadas para malteação caseira não faltam na
internet, basta ter um pouco de boa vontade para procurar e mais um pouco de boa
vontade para fazer suas próprias máquinas, que vão desde estufas de germinação até a
secagem/torra de grãos. Boa leitura a todos!
PARTE I – CURIOSIDADES E ASPECTOS TEÓRICOS:
A definição de cerveja passa muitas vezes mais por uma arbitrariedade de uma
determinada escola do que por uma definição formal propriamente dita. De maneira
geral, pode-se dizer que cerveja é a bebida fermentada feita a partir da fermentação de
mosto de grãos ricos em carboidratos complexos, como o amido e os beta-glucanos.
Em todo o mundo ao longo da história foram registradas bebidas nesses moldes.
No Japão e parte da China, o Sakê, feito com arroz não-malteado (chamado às vezes de
cerveja de arroz). No Oriente Médio, as cervejas de trigo, cevada, centeio e aveia
malteados (o que se expandiu para a Europa também, há cerca de 3000 anos atrás). Na
África Subsaariana há também uma cerveja feita com grãos de milheto e sorgo, muito
tradicional na região e de idade milenar. Nos países das Américas, grãos como milho e
quinoa não-malteados também eram usados para a produção de bebidas fermentadas.
No caso da “cerveja de milho” feita nas Américas, seu nome é Chicha.
A malteação, todavia, foi um processo acidentalmente descoberto na Suméria
(atual Irã) por volta do ano 5500 a.C. Provavelmente algum camponês descuidado
colheu a cevada, que ocorre em sua forma selvagem na região, e esquecendo-se dela,
encontrou-a muito tempo depois malteada e com um mosto fermentado no mesmo
recipiente onde estava estocada. O registro histórico mais seguro, todavia, é de uma
placa de barro encontrada também na região da Suméria contendo inscrições sobre algo
similar à cerveja.
Qual é então o conceito de malteação? Tradicionalmente, o conceito de
malteação está intimamente ligado ao conceito de cereal. Cereal é, no linguajar popular,
qualquer semente comestível oriunda de plantas da família das gramíneas. Cereal vem
do latim cerealis, que se refere a grãos farináceos. São exemplos de cereais: a cevada, o
trigo, o centeio, a aveia, o milho, o arroz, o sorgo e o triticale. O milheto é considerado
uma semente comestível, apesar de ser uma gramínea. O trigo sarraceno, por sua vez, é
um pseudo-cereal, que não é da família das gramíneas. Cereais se diferem de grãos
como soja e girassol por terem alto teor de amido e teor relativamente baixo de óleos
vegetais. Os cereais são compostos por vários tecidos e organelas diferentes, mas apenas
dois são particularmente interessantes para a malteação: o gérmen, fração do cereal que
de fato germina, onde estão concentrados o embrião e a maioria dos óleos do grão, e o
endosperma, fração energética do grão, onde se concentram carboidratos complexos
como o amido e os beta-glucanos.
A malteação ocorre quando um cereal germina e tem o processo de germinação
interrompido. Durante a germinação, o grão é hidratado, quebrando a dormência do
gérmen. Algumas horas após a hidratação, o grão passa a sofrer mudanças físicas e
bioquímicas significativas. Cadeias proteicas geram enzimas, como amilases, beta-
glucanases e proteases. Por outro lado, a raiz começa a crescer. À medida que a raiz
cresce, o teor de enzimas no grão vai aumentando.
As proteases, beta-glucanases e amilases começam a hidrolisar proteínas, beta-
glucanos e amido, respectivamente. Das proteínas hidrolisadas saem aminoácidos,
usados para confecção de outras proteínas e novas enzimas. Da hidrólise dos beta-
glucanos e do amido saem carboidratos de baixo peso molecular, usados para suprirem a
demanda energética do embrião.
A concentração de enzimas no grão atinge seu ápice algumas horas após a saída
do broto. Nesse momento, é ideal parar a germinação para que haja enzimas suficientes
para a produção de cerveja e restem ainda carboidratos e proteínas em grandes
quantidades. A interrupção da germinação deve ocorrer antes do rompimento do
endosperma, tecido onde estão armazenados os carboidratos complexos do grão. Após
esse rompimento, a concentração de amido e beta-glucanos cai drasticamente, o que faz
com que aquele cereal que “passou do ponto” não seja bom para a confecção de um
malte base.
No caso de bebidas como o sakê e a chicha, como os grãos não são malteados, é
necessária a atuação de uma fonte externa de amilase. Ambas bebidas eram feitas
mediante o uso de saliva humana. Pessoas mastigavam os grãos e os cuspiam em uma
talha. As amilases da saliva humana promoviam a quebra do amido e a fermentação
ocorria espontaneamente. Nos dias atuais, a produção caseira de sakê é proibida no
Japão e para fabricar a bebida não se usa mais a saliva, mas sim uma cepa de fungos que
hidrolisam o amido.
Voltando às questões históricas, cervejas de sorgo e trigo são mais antigas que as
cervejas de cevada. Muitos hoje sustentam que, para ser cerveja, deve haver alguma
cevada. Isso pode ser verdadeiro para algumas escolas cervejeiras, mas não para todas.
Na verdade, essa sustentação é um repeteco da Reinheitsgebot, a famosa lei da
pureza cervejeira alemã, implantada por Guilherme IV da Baviera em 23 de abril de
1516. Muita gente repete o jargão alemão sem se dar conta de várias coisas:
Primeiro: a lei da pureza era uma lei local na Alemanha, e não uma lei válida
para todo o mundo.
Segundo: a lei da pureza nunca foi sobre pureza e não era válida para todas as
pessoas da Alemanha. Essa lei surgiu, na verdade, em um contexto no qual a cevada era
abundante e havia escassez de outros cereais. Também consta que o próprio Guilherme
da Baviera possuía grandes campos de cevada e pouca coisa pra fazer com tudo aquilo.
Resolveu ele então restringir a produção de cerveja usando como grão-base apenas a
cevada, excluindo outros grãos que seriam então usados para panificação e outros fins.
Além disso, era mais fácil taxar a matéria prima que o produto final, por isso era uma
boa ideia diminuir ao máximo a quantidade de insumos permitidos.
Terceiro: a lei da pureza não valia para todas as camadas sociais alemãs. Os
nobres em seus palácios podiam continuar consumindo seus fermentados de trigo e
centeio, sem que alguém pudesse fazer algo contra. Há inclusive um provérbio alemão
que diz: se os homens soubessem como são feitas as linguiças e as leis, não comeriam
as primeiras e não obedeceriam as segundas. Não é de hoje que leis são feitas por
pessoas poderosas para defender pessoas poderosas. Não é à toa que a legislação
cervejeira brasileira permite uso de até 45% de cereais não-malteados nas cervejas, mas
não permite o uso de mel (nem nada de origem animal), e restringe o uso de maltes que
não sejam de cevada para a produção de bebida chamada de cerveja no mercado.
Assim sendo, para ser cerveja, não precisa ser 100% cevada, ou melhor dizendo,
nem precisa ter cevada, a menos que essa formalidade muitas vezes inventada por quem
entende de burocracia, mas não de cerveja, valha também para você. Penso que a maior
vantagem em ser um homebrewer é chutar o balde e quebrar esses tabus, inventando
coisas novas, cheias de sabor e ousadia. Mesmo o Beer Judge Certification Program
possui uma categoria especial de cervejas, chamadas de Historical Beers, que não só
não precisam levar cevada, como não precisam levar lúpulo também.
http://www.apcv.pt/cervejacultura.php
www.germanbeerinstitute.com/
PARTE II - MALTEAÇÃO:
Uma parcela significativa dos cereais possui uma proteína de alto peso
molecular chamada de glúten. Essa proteína é nociva a alguns indivíduos que possuem a
chamada “doença celíaca”, uma alergia alimentar ao glúten. São exemplos de cereais
com glúten: o trigo, a cevada, o centeio e a aveia. Existem, entretanto, vários outros
cereais que não possuem glúten. São exemplos deles: o pseudo-cereal chamado trigo
mourisco, o milheto (que é uma semente, e não um cereal), o arroz, o milho e o sorgo.
Evidentemente, cervejas para indivíduos celíacos devem ser feitas com cereais sem
glúten ou através da digestão enzimática do glúten em cervejas comuns.
Cereais sem glúten apresentam significativas diferenças em relação à brassagem
quando comparados com cereais com glúten, especialmente porque dependem da
decocção e do uso de uma grain bag (BIAB) ou palha de arroz. Essas regras valem para
brassagens usando apenas grãos sem glúten, mas isso será apresentado detalhadamente
em outro tópico (Parte III desse trabalho).
Quanto à malteação, o processo é dividido em 7 ou 8 passos, a depender do tipo
de malte a ser feito. Os passos são:
Lavagem;
Hidratação;
Brotação;
Desidratação;
Desbrota;
Maturação;
Torra.
Antes de falar sobre os passos da malteação caseira, vamos falar sobre a escolha
dos grãos. O ideal é que sejam usados grãos recém colhidos, secos naturalmente. Isso
possibilita uma germinação uniforme, que gerará um malte de melhor qualidade.
Qualquer cereal pode ser malteado, seja ele com ou sem glúten. Algumas sementes,
gramíneas ou não, também podem ser malteadas. São os casos da quinoa, do milheto e
do trigo mourisco.
Caso não seja possível adquirir grãos recém colhidos, procure grãos para
semente de plantio, mas SEM agrotóxicos ou tratamento químico. Procure se informar
com o fornecedor se os grãos passaram por algum processo de tratamento que
impossibilite o uso direto para alimentação humana, isto é, se há algo que lhe fará mal
caso você resolva comer a semente ao invés de plantá-la. Normalmente, sementes de
plantio vem “tingidas” com agrotóxicos e nutrientes, usados para proteger os grãos do
ataque de pragas e para impulsionar a germinação. Nunca malteie essas sementes. Se o
fizer, você estará correndo risco de morte ou, no mínimo, uma grave intoxicação.
Sementes orgânicas podem não possuir nenhum tipo de defensivo ou tratamento, mas
devem apresentar taxa de germinação de até 98%. Vale ressaltar que isso deve ser
verificado com o produtor, porque muitos defensivos são enquadrados como orgânicos,
e nem por isso deixam de ser nocivos ao ser humano.
Se nenhuma das alternativas anteriores for viável, compre grãos integrais para
fins alimentícios, humano ou animal. No caso do sorgo e do milheto é difícil encontra-
los para consumo humano. O arroz deve ser adquirido com palha. Arroz sem palha não
germina.
Lavagem: essa etapa é muitas vezes desnecessária quando o grão é para consumo
humano. É o caso do trigo mourisco para consumo humano, por exemplo. Em todo
caso, o ideal é lavar as sementes, só por segurança. Antes e lavar, procure eliminar
materiais não granosos do meio. Restos de palha da planta, sabugo, espiga, talos da
planta, grãos de outros cereais, enfim, qualquer coisa que não seja o grão a ser
germinado.
Mergulhe os grãos em um recipiente com volume suficiente para que os grãos
ocupem apenas metade do volume. Se necessário, fracione a quantidade de grãos que
você tem. Adicione água até dobrar o volume. Revolva os grãos várias vezes e retire
tudo o que boiar com auxílio de uma peneira de cozinha pequena. Descarte a fração que
boiou (normalmente composta por grãos defeituosos, cascas e outros materiais
estranhos).
Em uma bacia de tanque apoie uma peneira usada para peneirar areia e cereais.
Escorra a água do recipiente e repita todo o processo até que a água de lavagem esteja
limpa. Disponha os grãos sobre a peneira e lave com água em abundância.
ATENÇÃO: toda água usada na malteação deve ser sem cloro, do início ao fim.
Instrumentos:
Figura 01: bacia que pode ser usada para lavar e hidratar os grãos.
Figura 02: modelos de peneira de cozinha, úteis para retirada de palhas, grãos
defeituosos e tudo mais que boiar.
Figura 03: peneira de areia, usada para escoar a água dos grãos e para outros fins.
Figura 05: disposição dos grãos de sorgo para a malteação. Lona (amarela) embaixo,
camada de sorgo no meio e lençol novo de algodão por cima. Mantenha sempre
hidratado.
Figura 06: grãos de milho germinando. Observe a pequena raiz e o pequeno broto no
grão da mão.
Figura 07: grãos de sorgo brotando. Nessa imagem é possível ver o broto crescendo
paralelamente ao grão e a raiz projetando-se para baixo. Além disso, é possível ver o
tamanho do broto. Quando os brotos estiverem nessa proporção de tamanho (até ¾ do
tamanho do grão), é hora de iniciar o próximo passo. O mesmo vale para o milho.
Maturação: após limpar todos os grãos, coloque-os nos sacos de pano usados no
desbrote, desde que os sacos estejam limpos e secos. Dê um nó na boca do saco ou
costure-a de forma que insetos e carunchos não consigam entrar. Armazene em local
fresco e ao abrigo de luz por um mês. Acompanhe o processo de maturação. A cada
semana cheire o malte e veja o cheiro de pão doce e rapadura surgindo naturalmente.
Use o malte o quanto antes, ou armazene em geladeira após a maturação.
É perfeitamente natural que os maltes se tornem mais pálidos, esbranquiçados
em relação ao cereal de origem. O malte de milho, por exemplo, possui coloração que
vai do amarelo-palha ao amarelo-alaranjada, ao passo que o milho não malteado possui
coloração amarelo-alaranjada.
Torra: se você conseguiu chegar até aqui, meus parabéns! Você criou seu próprio malte
base caseiro, chamado em inglês de Pale Malt. Seria algo como um malte Pilsen, mas de
outro cereal, distinto da cevada. A diferença é que o malte Pilsen passa por rampas de
temperatura de secagem, ao passo que os maltes aqui descritos são secos naturalmente
ou em rampa única. Dessa forma, o presente guia ensina como fazer os chamados
maltes crus.
Embora esses maltes sejam excelentes para se fazer cerveja, não oferecem eles
bom corpo, tão boa formação e retenção de espuma e nem características sensoriais
especiais na boca e no nariz, além de produzirem apenas cervejas pálidas. Algumas
dessas características, como corpo, sabor e formação de espuma, podem ser melhoradas
com rampas de temperatura e com a adição de frações de maltes torrados. Vamos falar
então sobre como criar maltes especiais.
É importante lembrar duas coisas aqui: primeiro, essa parte sobre torra carece de
testes. Tudo aqui descrito, na seção de torra, é apenas estudo, nada comprovado na
prática pelo autor desse guia. Além disso, temperaturas e procedimentos aqui descritos
foram tirados de um guia para torra de malte de milheto, ou seja, não implica que
funcionará para o milho, o sorgo ou qualquer outra semente. Fica a critério do leitor
tentar reproduzir isso em um malte distinto do de milheto.
Segundo: embora haja nomes familiares aqui, como Vienna e Munich, esses
maltes torrados em casa não apresentam o mesmo poder diastático dos maltes de cevada
correspondentes. Não tente fazer uma cerveja usando, por exemplo, 100% malte Vienna
de milho porque provavelmente não dará certo.
Abaixo são descritos procedimentos de torra seca para maltes base, igual ao que
criamos, com a finalidade de gerar maltes especiais. Nesse tipo de torra, os maltes são
colocados em recipientes parecidos com assadeiras, mas feitos de malha metálica para
baixa granulometria, de forma que os grãos não passem pela malha. O ideal seriam
formas similares àquelas usadas para escorrer batata frita em fast foods. Outra coisa
importantíssima: se você não tem forno elétrico, nem tente fazer esses processos. Será
muito difícil acertar a mão no controle de temperatura usando fogão a gás. Pode
funcionar para criar maltes como o malte chocolate ou outros maltes mais torrados, mas
para a maioria dos maltes especiais, que dependem de temperaturas muito específicas,
será difícil.
Mesmo usando forno elétrico, não confie no termostato do forno como
controlador de temperatura. Faça uma calibração do forno antes. Uma boa forma de se
fazer isso é colocar a temperatura do forno a cerca de 90 graus e observar se isso fará
ferver água nele. Aumente a temperatura a cada 15 minutos até chegar aos 100 graus. Se
a água ferver próximo aos 100 graus, o termostato está confiável. Se não, procure ver
qual é a temperatura que a sonda do termômetro de seu controlador de temperatura
suporta. Se ela suportar a temperatura necessária, use seu controlador de temperatura
para fazer a torra.
Vamos aos aspectos teóricos da torra seca antes de falar sobre como ela deve ser
feita. Torra seca é o processo no qual a água residual é eliminada dos maltes já secos.
Mesmo no malte seco há uma quantidade considerável de água, podendo chegar a 15%.
Isso é chamado de umidade do malte e a menos que o grão passe pela torra seca, essa
umidade não será eliminada. Aliás, mesmo depois de torrado, total ou parcialmente, o
malte volta a absorver umidade do ar. Malte totalmente seco não existe, sempre haverá
um pouco de água, ainda que seja insignificante.
A malteação que foi ensinada até agora é para a geração de maltes base. Mas o
que vem a ser isso? Malte base é um malte feito a partir de cereais não malteados e que
tem seu processo de germinação interrompido precocemente. Esses maltes possuem
altos teores de carboidratos complexos passíveis de serem hidrolisados e sofrerem
atenuação no mosto, ou seja, possuem altos teores de amido e beta-glucanos que são
convertidos em açúcares menores durante a brassagem. Além disso, os maltes base
possuem grande capacidade de converter carboidratos complexos em açúcares
fermentáveis, o que é o chamado poder diastático.
Tanto o amido quanto os beta-glucanos são carboidratos ditos complexos, não
passíveis de serem fermentados pelas leveduras comuns, da família das Saccharomyces.
Outras leveduras, da família das Brettanomyces conseguem fermentar amido, mas
levam muito tempo pra fazerem isso. Usualmente, homebrewers não usam
Brettanomyces, mesmo porque as cervejas produzidas por elas são cervejas azedas e
possuem aromas exóticos, como suor de cavalo e couro molhado. Não é o tipo que
agrada a todos.
O amido chega a ter cerca de 6000 unidades de glicose. Quando fazemos a
mostura, carboidratos complexos como o amido e os beta-glucanos são quebrados pelas
amilases e beta-glucanases, gerando açúcares menores. Dentre os açúcares temos a
glicose (uma única unidade molecular de açúcar), maltose (duas unidades de glicose),
maltotriose (três unidades de glicose) e várias dextrinas com número variável de
unidades de glicose. As leveduras normalmente utilizadas conseguem “comer” a
glicose, a maltose, a maltotriose e também açúcares de fontes não maltosas, como
sacarose (açúcar de cana) e frutose (açúcar de frutas).
Para a quebra do amido, conforme já dito, são necessárias as amilases. São elas a
β-amilase e a α-amilase. A primeira opera melhor em temperaturas mais baixas, entre 55
e 65 graus. Abaixo de 55 graus, a β-amilase apresenta atividade insignificante. Acima de
65 graus, a β-amilase diminui a atividade e acima de 70 graus, a β-amilase sofre um
processo irreversível chamado desnaturação. Se ela se desnatura, ela não mais pode
operar. A β-amilase produz apenas maltose e por isso, cervejas feitas com rampas de até
65 graus tendem a ser mais secas, mais alcoólicas e menos encorpadas.
A α-amilase, por sua vez, é uma enzima com menor seletividade que a β-
amilase. Ela quebra a molécula de amido aleatoriamente produzindo carboidratos de
todos os tamanhos. Sua temperatura ótima de atuação está entre 69 e 72 graus. Acima de
75 graus, a α-amilase sofre a desnaturação e passa a não mais conseguir converter o
amido em açúcares menores. A α-amilase produz cervejas mais encorpadas, devido à
alta formação de dextrinas proporcionada por ela, mais adocicadas e menos alcoólicas
que a β-amilase. A bibliografia relata, porém, que se uma cerveja é feita com uma rampa
longa na faixa de trabalho da α-amilase, o resultado é idêntico ou ao menos muito
parecido com o de uma cerveja feita utilizando-se apenas a β-amilase. O problema é que
quanto mais contato o mosto tem com o malte, principalmente com o malte de cevada,
mais DMS ele carrega (DMS é um off-flavor com aroma/sabor similar ao de vegetais
cozidos).
Para uma cerveja com bom equilíbrio entre dulçor, corpo e teor alcoólico, o ideal
é fazer uma rampa de 90 minutos a 68 graus ou, ainda, fazer uma rampa de 50 minutos a
65 graus e mais uma de 40 minutos a 72 graus. Todavia, isso depende muito do estilo
que se pretende fazer.
A beta-glucanase, por sua vez, atua entre 45 e 55 graus, sendo ela essencial para
maltes como os de centeio e aveia, assim como para os maltes feitos em casa. Ela
converte os beta-glucanos em açúcares fermentáveis e evita a formação de uma “liga”
gerada pela colagem de grãos através das moléculas de beta-glucanos. Isso ajuda a
previnir o entupimento do equipamento na hora da filtragem.
Um termo muito usado para os maltes é o chamado “poder diastático”. Os
maltes base possuem alto poder diastático, que está relacionado à quantidade de
enzimas que quebram carboidratos complexos em açúcares menores. Quanto mais alto o
poder diastático, maior a quantidade dessas enzimas no malte.
Aí é que está o problema: quanto mais alta a temperatura de secagem, mais
enzimas se desnaturam, fazendo com que o malte perca seu poder diastático. De forma
análoga, quanto maior o tempo de exposição às altas temperaturas, menos enzimas
restarão no meio.
É exatamente por isso que o malte Pilsen possui alto poder diastático, seguido
pelo Vienna, seguido pelo Munich que, por sua vez, é seguido por maltes especiais.
Para a cevada, os maltes base sempre tem bom poder diastático. É o caso dos
maltes Pilsen, Vienna, Red X, Munich inglês, Maris Otter, Pale Ale e do malte
Diastático. Para cereais sem glúten malteados em casa, apenas os chamados Pale Malts
(malte cru) possuem bom poder diastático.
Isso ocorre muitas vezes porque o próprio malte base, sem torra, feito com
cereais sem glúten, apresenta uma quantidade baixa de enzimas pela própria genética do
grão. A torra piora ainda mais essa característica. O malte de sorgo, por exemplo, possui
3 vezes menos β-amilase que o malte de cevada. Em compensação, o mesmo malte
possui 5 vezes mais α-amilase que o malte de cevada.
Além dos maltes base, existem também os maltes especiais. Esses maltes
possuem pouco ou nenhum poder diastático. Alguns maltes são chamados de especiais
não pelo seu poder diastático, que pode ser alto, mas pelo grão com o qual foram feitos.
É o caso do malte de centeio alemão, que possui excelente poder diastático, mas
raramente é usado como 100% da mistura de grãos. Algumas vezes maltes base são
usados como maltes especiais para ajuste de cor, conferir complexidade e outras
finalidades. É o que acontece quando se combina os maltes Pilsen e Munich para
simular o malte Pale Ale ou quando se adiciona o malte Red X a uma mistura para gerar
colorações que vão do cobre ao vermelho em uma cerveja.
Em geral, maltes especiais apresentam pouco ou nenhum poder diastático. A
maioria dos maltes de trigo apresenta baixo poder diastático. Todos os maltes Munich
alemães são o mesmo caso. Existem também aqueles que não apresentam nenhum poder
diastático, como os maltes CaraClair, a série de maltes chamada de Crystal, o malte
CaraRuby e todos os maltes torrados. Outros são classificados como maltes especiais
devido à sua alta composição proteica e lipídica, como o malte de aveia, que mesmo se
possuísse alto poder diastático, produziria cervejas excessivamente espumantes e com
exagerado aroma/sabor “biscuit”, descrito também como aveludado, e isso seria
enjoativo em demasia.
Para produzir maltes especiais via torra, existem dois processos distintos: a torra
úmida e a torra seca. A torra úmida cria a caramelização dos maltes, através de reações
químicas entre carboidratos pequenos e aminoácidos ou proteínas (reação de Maillard).
A torra seca elimina água e carboniza a matéria orgânica do malte lentamente, dando
aromas e sabores de castanha, nozes, toffee, chocolate, café e outros, conferindo
também adstringência e alta coloração.
Abaixo, uma tabela mostrando temperaturas e tempos de torra seca necessários
para se produzir maltes especiais (informações retiradas de um guia de torra de malte de
milheto):
A torra úmida difere da torra seca por ocorrer na forma úmida, evidentemente.
Para realizar esse tipo de torra, os grãos devem absorver água e posteriormente devem
ser cozidos, como em uma brassagem, para depois serem caramelizados. O processo
não é o de produção do malte Crystal propriamente dito, mas sim de um malte similar
ao Crystal devido às particularidades dos maltes sem glúten.
O procedimento consiste nos seguintes passos :
O melhor malte sem glúten para se fazer o malte Crystal é o malte de milheto.
Outro tipo de torra úmida que pode ser feita obedece os seguintes passos:
Com os passos acima você obterá um malte escuro com intensas notas de tofee,
bom incremento de cor, corpo e espuma. O procedimento descrito acima funciona
melhor para o malte de milho.
Sorgo: o malte base apresenta aromas e sabores frutados evidentes e marcantes, caráter
maltoso distintivo. Apresenta bom poder diastático, podendo converter até 20% de
adjuntos. Se não for feita uma parada proteica corretamente, pode apresentar aspecto
aguado, com pouco corpo. Cervejas de sorgo costumam ser cristalinamente límpidas.
Uma ligeira acidez sempre será evidente.
Trigo mourisco: o sabor de malte é forte, remetendo a torta e trigo. Possui bom poder
diastático, embora sem informações acerca da carga de adjuntos que suporta. A torra
acrescenta de forma mais significativa as características de castanha e nozes nesse
malte. Malte altamente proteico, fornecendo colarinho rico e abundante, com boa
retenção. Absorve grandes quantidades de água, sendo imprescindível a lavagem de
grãos. É difícil separar a solução de enzimas dos grãos (necessário apenas para
brassagem usando 100% grãos desse tipo de cereal, isso será comentado detalhadamente
na parte III do presente trabalho).
http://www.glutenfreehomebrewing.org/advanced_malting_tutorial.php
http://www.maltose.com.br/malte-catarinense-arroz
https://www.youtube.com/watch?v=bDTTHxqwQDw
https://www.youtube.com/watch?v=eg59ZheSWus
https://www.youtube.com/watch?v=mNYa4LZEhjw
https://www.youtube.com/watch?v=Y2UjCY4N-7M
Milho roxo: variedade de milho muito antiga, oriunda da América do Sul. Não é
transgênico e dentre todas as variedades de milho é a que possui maior poder diastático.
Sua cor é roxa escura, quase preta.
Sorgo branco: de todas as variedades de sorgo, é a que fornece o malte com melhor
poder diastático. É uma variedade branca do sorgo, como o próprio nome diz, mais
difícil de ser encontrada que o chamado sorgo híbrido (ou sorgo vermelho). Há outra
variedade híbrida de sorgo chamada de “sorgo sacarino”. Recebeu esse nome devido ao
alto teor de sacarose em seu caule, o que é uma alternativa para produção
sucroalcooleira na época da entressafra. Dentre todas as variedades de sorgo, o sacarino
é o que possui maior teor de amido (mas não maior poder diastático).
Arroz agulhinha: arroz muito usado e consumido no Brasil, sendo a variedade mais
comum de arroz por aqui. É um grão propício para germinação e malteação, mas
produzirá cervejas com aspecto aguado e de baixa coloração.
Tenha em mente uma coisa: uma coisa é fazer malte de cereais sem glúten, outra
é fazer cerveja sem glúten. Para que uma cerveja seja sem glúten, todo o processo de
produção deve ser sem glúten. Não pode haver, por exemplo, contaminação cruzada dos
grãos que você adquiriu para maltear com grãos que possuem glúten. Não pode ser
usado o mesmo equipamento que você usa para fazer cerveja comum na produção de
cerveja sem glúten. A levedura, muitas vezes, é cultivada em meio que contém glúten, o
que é um problema para quem é celíaco. Portanto, antes de se dispor a fazer cerveja sem
glúten, certifique-se de que todo o seu processo é sem glúten, da colheita dos grãos na
lavoura até o envase. Lembre-se: alergia alimentar não é brincadeira.
Maltes sem glúten podem ser combinados com maltes com glúten para produzir
cervejas especiais. Caso não queira fazer cerveja sem glúten, elabore uma receita
seguindo o tutorial de brassagem, descrito a seguir.
Vamos à brassagem?
O método usado para brassar cervejas usando maltes sem glúten é parecido com
o método de decocção. Apesar de ser uma técnica avançada para homebrewers
iniciantes, a decocção se faz necessária em maltes sem glúten. Acostume-se com ela.
Com o tempo, tudo fica fácil. Essa técnica é oriunda da escola alemã, muito presente em
diversos estilos de cerveja alemães, como as Weizen (cervejas de trigo).
A decocção deve ser usada por causa da alta temperatura de gelatinização dos
maltes sem glúten. Enquanto a cevada se gelatiniza pouco acima de 60 ºC, a bibliografia
relata um intervalo de 70 a 85 ºC para maltes sem glúten.
Mas o que é gelatinização? É a fase da brassagem na qual o amido se hidrata,
formando uma espécie de gelatina na panela de mostura, o que facilita sua conversão
em açúcares fermentáveis. Ela é crucial para se fazer cerveja. Sem a gelatinização, a
conversão do amido em fermentáveis se torna inviável em termos de tempo e gasto
energético.
Para fazer uma cerveja usando apenas maltes sem glúten, a primeira coisa
necessária é uma moagem adequada dos maltes. Os homebrewers celíacos americanos
garantem 95% de eficiência com essa moagem, mas isso parece ser meio exagerado.
Para brassagens convencionais, utilizando cevada, a eficiência dificilmente chega a 75-
80%. Lembrando ainda que homebrewers brasileiros relatam que para cada kg de malte
de milho, dois litros de cerveja são produzidos. Para a cevada, o volume de cerveja
dobra usando-se a mesma quantidade de malte. Para o sorgo, em condições
experimentais laboratoriais, que nunca serão alcançadas por nenhum homebrewer, o
rendimento é igual ao obtido para a cevada.
A moagem dos grãos deve ser fina, formando quase uma farinha com os maltes.
Para evitar que haja entupimento do fundo falso ou da bazooka deve ser usado um grain
bag ou de 10 a 20% de casca de arroz em peso. Ou seja, se você fizer uma brassagem
com 5 kg de malte, use de 500 a 1000 g de palha de arroz específica para cerveja para
facilitar a filtragem. Sugestão: utilize o grain bag e 20% de palha de arroz, só pra
garantir. Na bibliografia consultada os homebrewers americanos garantem que com uma
moagem mais grosseira o equipamento não entope. Novamente, difícil de acreditar, haja
vista que cervejas feitas com maltes pequenos, como de aveia e centeio, entopem com
facilidade. Em todo caso, a eficiência cai de 95% (segundo eles) para 75%. É um risco
grande a se correr e certamente há perda de eficiência, além de tudo. Pior será se o
equipamento entupir de tal forma que seja impossível continuar a brassagem.
Observação: toda água usada na brassagem também deve ser sem cloro.
Caso não use apenas o malte sem glúten, faça a adição do restante dos maltes
após a temperatura cair para 65 graus, descrito na primeira parte do tópico 11,
juntamente com água suficiente para a quantidade de grãos utilizada. Prossiga a
brassagem normalmente.
Caso notar que os grãos sem glúten gelatinizaram, não chegue a temperatura ao
ponto de ebulição. Isso trará uma cerveja de melhor qualidade a você devido à menor
liberação de taninos. A literatura descreve temperaturas de gelatinização entre 70 e 85
graus para maltes sem glúten, então vale a pena chegar aos 75 graus e manter por 15
minutos para ver se os grãos serão gelatinizados.
Uma coisa que pode ajudar na gelatinização é hidratar os grãos moídos antes da
brassagem. Moa os maltes em tamanho compatível com seu equipamento. Transfira
esses maltes moídos para um balde ou panela e adicione água até cobrir os maltes.
Comece o procedimento pela tarde. Se perceber que os maltes absorveram toda a água,
adicione mais, até que não mais ocorra absorção. Deixe descansar por uma noite e use
os maltes hidratados no dia seguinte para não correr o risco de azedar.