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A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA:

antropologia e literatura no século XX

Jam es C lifford

organização e
revisão técnica
de
Jo sé R e g in a l d o S a n t o s G o n ç a lv e s

1* reim pressão
E ditora UFRJ
2002
UFRJ
Reitor José Henrique Vilhena de Paiva
Coordenador do
Forum de Ciência
e Cultura Afonso Carlos Marques dos Santos
EDITORA UFRJ
Diretora Yvonne Maggie
Editora Executiva Maria Teresa Kopschitz de Barros
Coordenadora
de Produção Ana Carreiro
Editora Assistente Cecília Moreira

Conselho Editorial Yvonne Maggie (presidente), Afonso Carlos


Marques dos Santos, Ana Cristina Zahar,
Carlos Lessa, Hermano Vianna, Fernando
Lobo Carneiro, Peter Fry, Silviano Santiago
Copyright © by James Clifford, 1994
Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão
de Processamento Técnico - SIBI/UFRJ

C57e Clifford, James.


A experiência etnográfica: antropologia e literatura no
século XX/ James Clifford; organizado por José Reginaldo
Santos Gonçalves. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
320 p.; 14 X 21cm
1. Gonçalves, José Reginaldo Santos 2. Antropologia
3. Etnografia I. Título
CDD: 305.8

ISBN 85.7108.214.6

1a edição 1998

Capa
Adriana Moreno
Tradução
Patrícia Farias
Revisão da tradução
José Reginaldo Santos Gonçalves
Edição de Texto
Cecília Moreira
Revisão
Ana Paula Mathias de Paiva
Maria Beatriz Guimarães
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Projeto Cráfíco e
Editoração Eletrônica
Janise Duarte

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Forum de Ciência e Cultura
Editora UFRJ
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e-mail: editora@editora.ufrj.br

Apoio’" J "
SUMÁRIO

Apresentação 7

Sobre a autoridade etnográfica 17

Sobre a alegoria etnográfica 63

Sobre a automodelagem etnográfica:


Conrad e Malinowski 100

Sobre o surrealismo etnográfico 132

Poder e diálogo na etnografia:


a iniciação de Mareei Griaule 179

Trabalho de campo, reciprocidade e


elaboração de textos etnográficos:
o caso de Maurice Leenhardt 227

As fronteiras da antropologia,
entrevista com James Clifford 252

Referências bibliográficas 274


SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRÁFICA:
CONRAD E MALINOWSKI

(...) a época em que estamos acampados, como


viajantes perplexos num hotel vistoso e agitado. ’
loseph Conrad, Vitória.

Toda a minha ética está baseada no instinto


fundamental de uma personalidade unificada.
Bronislaw Malinowski,
Diário de campo de Trobriand.

r !. *• 1 - j

Dizer que o indivíduo é culturalmente constituído tomou-


se um truísmo. Estamos acostumados a ouvir que a pessoa em
Bali ou entre os hopi ou na sociedade medieval é diferente - com
experiências diferentes de tempo, espaço, parentesco e identidade
corporal - do indivíduo na Europa burguesa ou na América
moderna. Assumimos, quase sem questionamento, que um “eu”
pertence a um mundo cultural específico, tanto quanto fala uma
língua nativa: um “eu”, uma cultura, uma língua. Não quero
contestar a dose considerável de verdade contida mesmo numa
fórmula tão esquemática; a idéia de que a individualidade está
articulada no interior de mundos de significação que são coletivos
e limitados não está em questão. Quero, contudo, historicizar a
afirmação de que o “eu” é culturalmente constituído, examinando
um momento por volta de 1900, quando esta idéia começou a
assumir o sentido que tem hoje.
Em meados do século XIX, dizer que o indivíduo estava
envolvido pela cultura significava algo bem diferente do que
significa hoje. A “cultura” se referia a um único processo evolucio-
S o b r e a a u t o m o d e ia c e m e t n o g r á f ic a

nário. O ideal da Europa burguesa de uma individualidade


autônoma era amplamente considerado como o resultado natural
de um longo desenvolvimento, um processo que, embora ameaçado
por várias disrupções, era visto como o movimento básico e
progressivo da humanidade. Na virada do século, porém, a
confiança evolucionista começou a ratear, e uma nova concepção
etnográfica de cultura tomou-se possível. A palavra começou a
ser usada no plural, sugerindo um .mundo com modos de vida
separados, distintos e igualmente significativos. O ideal de um
sujeito autônomo e cultivado podia aparecer como um projeto local,
não como um telos para toda a humanidade.2
As causas subjacentes desses desenvolvimentos ideológicos
estão além dos objetivos deste texto.3 Quero apenas chamar a
atenção para o desenvolvimento, no início do século XX, de uma
nova “subjetividade etnográfica”. A antropologia moderna - uma
ciência do homem intimamente relacionada à descrição cultural -
pressupunha uma atitude irônica de observação participante. Ao
profissionalizar o trabalho de campo, a antropologia transformou
uma situação amplamente difundida num método científico. O
conhecimento etnográfico não podia ser propriedade de qualquer
discurso ou disciplina; a condição de descentramento num mundo
de distintos sistemas de significado, uma situação de estar na cultura
e ao mesmo tempo olhar a cultura, permeia a arte e a escrita do
século XX. Nietzsche anunciou claramente a nova atitude em seu
famoso fragmento “on truth and lie in an extra-moral sense”,4 ao
perguntar: “O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de
metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de
relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo
sólidas, canônicas e obrigatórias...” (Edição brasileira, 1974: 56).
Nietzsche, talvez mais do que Tyior, foi o principal inventor da
idéia relativista de cultura: o presente texto bem poderia se chamar
“A verdade e a mentira em um sentido cultural”.

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A E X P ER IÊ N C IA ETN O G R Á FIC A

Ao invés disso, retirei o título deste ensaio do livro de


Stephen Greenblatt, Renaissance self-fashioning, um estudo que
focaliza um sentido emergente, burguês, móvel e cosmopolita do
“eu”. A subjetividade etnográfica que aqui me ocupa pode ser
vista como uma variante recente. Personagens do século XVI,
tais como More, Spenser, Marlowe, Tundale, Wyatt e Shakespeare,
exemplificam, para Greenblatt, “uma intensa autoconsciência em
relação à formação da identidade humana enquanto um processo
manipulável, artisticamente construído” (p. 2). Não posso fazer
justiça às sutis e persuasivas análises que o livro oferece, mas
quero sublinhar a própria posição etnográfica de Greenblatt, a
complexa atitude que ele mantém em relação a “eus” modelados,
incluindo o seu próprio. Ele reconhece em que medida recentes
questões quanto à liberdade, à identidade e à linguagem têm
moldado a versão que ele constrói da cultura do século XVI. Ele
importa uma perspectiva crítica moderna para seu material. Ainda
assim, escreve também como alguém nas malhas de uma tradição
ao mesmo tempo que fiel a ela. Ele expressa, num epílogo
emocionante, sua teimosa adesão à possibilidade de se moldar a
própria identidade, mesmo que isso se refira apenas a “um eu
concebido como uma ficção” (p. 257). Ele é levado ao que Conrad
aprovatimamente chama de “uma crença deliberada”.
Greenblatt' é um analista-participante, construindo e se
engajando numa formação cultural que é ao mesmo tempo
distanciada no século XVI e dialeticamente contínua em relação
ao presente. Sua “tardia”, reflexiva versão da automodelagem (self-
fashioning) renascentista repousa num ponto de vista etnográfico
nitidamente articulado. O eu modelado, ficcional, é sempre situado
com referência à sua cultura e modos codificados de expressão, à
sua linguagem. O estudo de Greenblatt conclui que a automo­
delagem renascentista era tudo, menos a incontida emergência de
uma nova autonomia individualista. A subjetividade que ele
encontra “não é uma epifania da identidade livremente escolhida,
mas um artefato cultural” (p. 256), pois o eu se movimenta dentro

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Sobre a a u t o m o d e l a g e m etno cr A f ic a

de limites e possibilidades que resultam de um conjunto


institucionalizado de práticas e códigos coletivos. Greenblatt
recorre à antropologia simbólico-interpretativa, particularmente
ao trabalho de Geertz (e também Boon, Douglas, Duvignaud,
Rabinow e Tumer); e ele sabe, além disso, que os símbolos e
performances culturais ganham forma em situações de poder e
dominação. Ouvem-se ecos de Foucault na advertência de
Greenblatt: “O poder de impor uma forma sobre si mesmo é um
aspecto do poder mais geral de controlar a identidade - a de outros,
pelo menos tanto quanto a própria” (p. 1). Segue-se que o discurso
etnográfico, incluindo a variante literária de Greenblatt, funciona
dessa dupla forma. Embora ele retrate outros eus como cultural­
mente constituídos, ele também modela uma identidade autorizada
a representar, a interpretar, e mesmo a acreditar - mas sempre
com alguma ironia - nas verdades de mundos discrepantes.
A subjetividade etnográfica é composta pela observação
participante num mundo de “artefatos culturais” ligado (e é esta a
originalidade da formulação de Nietzsche) a uma nova concepção
de linguagem - ou melhor, linguagens - , vista como distintos
sistemas de signos. Juntamente com Nieztsche, os pensadores que
delimitam esse meu campo de explorãção são Boas, Durkheim e
Malinowski (inventores e popularizadores da idéia etnográfica de
cultura) e Saussure. Eles inauguram um conjunto interconectado
de teses que estão agora, no último quarto do século XX, precisa­
mente tomando-se visíveis. Um especialista em história intelectual,
no ano de 2010, se tal pessoa é imaginável, pode mesmo olhar
para os primeiros dois terços de nosso século, e observar que este
foi um tempo no qual os intelectuais ocidentais estavam preo­
cupados com contextos de significado e de identidade que eles
chamavam de “cultura” e “linguagem” (do mesmo modo como
agora olhamos para o século XIX e lá percebemos uma problemática
preocupação com a “história” e o “progresso” no sentido evolu­
cionário). Penso que estamos vendo sinais de que o privilégio
dado às linguagens naturais e, de forma semelhante, às culturas

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1
A E X P ER IÊ N C IA ETN O G R Á FIC A

naturais está se dissolvendo. Estes objetos e contextos episte-


mológicos aparecem agora como construções, ficções adquiridas,
contendo e domesticando a heteroglossia. Num mundo com
demasiadas vozes falando ao mesmo tempo, um mundo ondè o
sincretismo e a invenção paródica estão se tomando a regra, e não
a exceção, um mundo urbano, multinacional, de transitoriedade
institucional - onde roupas americanas feitas na Coréia são usadas
por jovens na Rússia, onde as “raízes” de cada um são em algum
grau cortadas num tal mundo toma-se cada vez mais difícil
atribuir identidade humana e significado a uma “cultura” ou “lin­
guagem” coerentes.
Evoco esta situação sincrética, “pós-cultural”, apenas para
apontar para a posição (embora ela não possa ser tão facilmente
espacializada), para a condição de incerteza a partir da qual escre­
vo. Mas minha preocupação não é com a possível dissolução de
uma subjetividade ancorada na cultura e na linguagem. Ao invés
disso, quero explorar duas poderosas articulações dessa subjeti­
vidade nas obras de Conrad e Malinowski, duas pessoas “deslo­
cadas”, as quais estiveram às voltas, no início do século XX,
com o cosmopolitismo e compuseram suas próprias versões de
“Sobre a verdade e a mentira em um sentido cultural”. Conrad pode
ser visto como mais profundamente comprometido com o tema, pois
ele articulou em sua obra uma visão da natureza construída da
cultura e da linguagem, uma ficcionalidade séria que ele delibera­
damente, quase absurdamente, assumiu. Mas um embate compa­
rável com a cultura e a linguagem pode ser visto na obra de
Malinowski, particularmente na difícil experiência e representa­
ção literária de seu famoso trabalho de campo nas Ilhas Trobriand.
(Esse trabalho de campo serviu como uma espécie de carta funda­
dora da disciplina da antropologia no século XX). Conrad realizou
o feito quase impossível de se tomar um grande escritor (seu mo­
delo era Flaubert) da língua inglesa, uma terceira língua que ele
começou a aprender aos 20 anos de idade. Não é surpresa encon­
trar, ao longo de sua obra, um sentido simultâneo de artifício e neces­
sidade das convenções culturais e lingüísticas. Sua vida dedicada
»•' \S
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So b r e a a u t o m o d e ia g e m e t n o g r á f ic a

a escrever, a tomar-se constantemente um escritor-de-língua-inglesa,


oferece um paradigma para a subjetividade etnográfica; ela encena
uma estrutura de sentimento continuamente envolvida na tradução
entre línguas, uma consciência profundamente ciente da arbitrarie­
dade das convenções, um novo relativismo secular.
Malinowski assinalou: “[W. H. R.] Rivers é o Rider Haggard
da antropologia: eu serei o Conrad!” (para B. Z. Seligman, citado
em Firth 1957:6). Ele provavelmente tinha em mente a diferença
entre a metodologia de survey multicultural de Rivers (coletando
traços e genealogias) e seu próprio intenso estudo de um único
grupo. Para Malinowski, o nome Conrad era um símbolo de pro­
fundidade, complexidade e sutileza. (Ele o invoca neste sentido
no diário de campo). Mas Malinowski não era o Conrad da antro­
pologia. Seu modelo literário mais direto era certamente James
Frazer, e em muito de sua própria escrita ele lembrava Zola -
um naturalista apresentando fatos juntamente com uma intensa
“atmosfera”, suas descrições científico-culturais levando a alegorias
humanistas moralmente carregadas. A antropologia ainda está
esperando por seu Conrad.
Minha comparação entre Malinowski e Conrad focaliza a
difícil ascensão de ambos à expressão profissional inovadora. O
coração das trevas5 (1899) é a mais profunda reflexão de Conrad
sobre o difícil processo de se entregar à Inglaterra e ao inglês.6 O
livro foi escrito em 1898-1899, assim que ele decisivamente adotou
a confinada vida de escritor; nesse texto, Conrad olha para o início
do processo, sua última e mais audaciosa viagem até o “mais
distante ponto de navegação”. Na viagem pelo Congo, uma déca­
da antes, Konrad Korzeniowski havia levado com ele os capítulos
iniciais de seu primeiro romance, Almayer’s Folly, escrito num
desajeitado porém vigoroso inglês. Minha leitura de O coração
das trevas abrange uma complexa década de escolha, os anos
1890, começando com a viagem à Africa e terminando com sua
narração. A escolha envolvia carreira, linguagem e comprometi­
mento cultural. A experiência paralela de Malinowski é demarcada
por duas obras, que podem ser tratadas como um único texto expan­

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A EX PERIÊNCIA e t n o g r á f i c a

dido: Um diário no sentido estrito do texto1 (1967), seu diário


íntimo sobre Trobriand, de 1914 a 1918, e a clássica etnografia
que resultou de seu trabalho de campo, Os argonautas do Pacífico
Ocidental (1922).
Logo de início, é necessária uma palavra de cautela
metodológica. Tratar conjuntamente o Diário e Os Argonautas não
precisa implicar em que o primeiro seja uma verdadeira revelação
sobre o trabalho de campo de Malinowski. (Este foi o modo como
o Diário foi de forma geral entendido quando de sua publicação
em 1967). A experiência de campo em Trobriand não se esgota
nos Argonautas, nem no Diário, nem na combinação de ambos.
Os dois textos são refrações parciais, experimentos específicos com
a escrita. Escrito em grande parte em polonês e com a clara intenção
de não ser publicado, o Diário causou um pequeno escândalo em
relação à imagem pública da antropologia - ainda que pesquisadores
de campo reconheçam muito daquilo como familiar. Um dos
fundadores da disciplina era visto sentindo uma raiva considerável
de seus informantes nativos. Uma experiência de campo que
estabelecera o padrão para a descrição cultural científica estava
atravessada pela ambivalência. Um antropólogo com tanta
autoridade aparece em seu diário íntimo como um hipocondríaco
autocentrado, freqüentemente deprimido, presa constante de
fantasias a respeito das mulheres européias e trobriandesas,
envolvido numa interminável luta para manter sua autoconfiança,
para se manter coerente. Ele era mercurial, experimentando
diferentes vozes e personae. A angústia, a confusão, a exultação
e a raiva do Diário pareciam deixar pouco espaço para a postura
estável e compreensiva da etnografia relativista. Além disso, em
sua crueza e vulnerabilidade, sua inquestionável sinceridade e sua
natureza inconclusa, o Diário parecia expor uma realidade sem
disfarces. Mas esta é apenas uma importante versão de uma
complexa situação intersubjetiva (que também produziu Os Argonau­
tas e outros relatos etnográficos e populares). O Diário é um inventi­
vo texto polifônico. É um documento crucial para a história da
antropologia, não porque revela a realidade da experiência etno­

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Sobre a a u t o m o d e la c e m etno cr A f ic a

gráfica, mas porque nos força a enfrentar as complexidades de


tais encontros e a tratar todos os relatos textuais baseados em
trabalho de campo como construções parciais.8

♦ ♦♦

Malinowski e Conrad se conheciam, e há evidências nos


comentários de Malinowski sobre o escritor, mais velho e já famoso,
de que ele sentia uma profunda afinidade entre seus dilemas. Com
razão: ambos eram poloneses condenados pela contingência
histórica a uma identidade européia cosm opolita; ambos
desenvolviam ambiciosas carreiras como escritores na Inglaterra.
Com base nos excelentes estudos de Zdizlaw Najder sobre Conrad,
pode-se especular que os dois exilados partilhavam uma distância
cultural peculiarmente polonesa, tendo nascido numa nação que
havia existido, desde o século XVIII, apenas como uma ficção -
mas uma ficção intensamente acreditada e séria - de identidade
coletiva. Além disso, a peculiar estrutura social da Polônia, com
sua num erosa pequena nobreza, fez com que os valores
aristocráticos se tomassem incrivelmente evidentes em todos os
níveis da sociedade. Os cultivados exilados da Polônia não pareciam
particularmente atraídos pelos valores burgueses reinantes na
Europa; eles manteriam uma certa reserva. Este ponto de vista
externo à sociedade burguesa (mas mantido com um certo grau de
artifício - mais parecido com a posição de Balzac na França dos
anos 1830) - talvez seja uma posição “etnográfica” particularmente
vantajosa. Seja como for, não há dúvida sobre a forte afinidade de
Malinowski em relação a Conrad (pouco antes da guerra,
Malinowski o presenteou com uma cópia de seu primeiro livro,
Thefamily among the Australian aborígines, com uma dedicatória
em polonês; o que Conrad fez com as noções arunta de paternidade
permanece, felizmente talvez, desconhecido). Embora a relação
entre ambos tenha sido breve, Malinowski freqüentemente
representava sua vida em termos conradianos, e em seu diário ele
parecia às vezes estar reescrevendo temas de O coração das trevas.

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A E X P ER IÊ N C IA ETN O G R Á FIC A

Quase todo comentador do Diário tem comparado o livro,


de forma plausível, ao conto africano de Conrad (ver por exemplo
Stocking, 1974). Tanto O coração das trevas quanto o Diário
parecem retratar a crise de uma identidade - uma luta, nos confins
da civilização ocidental, contra a ameaça de uma dissolução moral.
Na verdade esta luta e a necessidade de se estabelecerem limites
pessoais são um lugar-comum da literatura colonial. Assim, o pa­
ralelo não é particularmente revelador, a não ser por mostrar a vi­
da (o Diário) imitando a “literatura” (O coração das trevas). Além
de mostrar a desintegração moral de Kurtz, no entanto, Conrad
introduz um tema mais profundo e subversivo: a famosa “mentira”
- na verdade uma série de mentiras que em O coração das trevas
tanto solapa quanto de alguma forma fortalece a complexa verdade
da narração de Marlow. A mais proeminente destas verdades é,
claro, a recusa de Marlow em contar à noiva de Kurtz suas últimas
palavras, “O Horror”, substituindo-as por palavras que ela pudesse
aceitar. Esta mentira é então justaposta àquela verdade - também
altamente circunstancial - contada a um restrito grupo de ingleses
no deck da escuna Nellie. O desordenado Diário de Malinowski
parece encenar o tema da desintegração. Mas e o tema da mentira?
O relato inteiramente crível? Minha tese é que a ficção salvadora
de Malinowski é a etnografia clássica Os argonautas do Pací­
fico Ocidental.
O coração das trevas é notoriamente interpretável; mas um
de seus temas inescapáveis é o problema de se falar a verdade, o
jogo de verdade e mentira no discurso de Marlow. A mentira à
noiva de Kurtz já foi exaustivamente debatida. Muito esque­
maticamente, minha posição é de que a mentira é uma mentira
salvadora. Ao poupar a noiva das últimas palavras de Kurtz,
Marlow reconhece e constitui diferentes domínios de verdade -
masculino e feminino, assim como verdades da metrópole e ver­
dades da fronteira. Estas verdades refletem estruturas elementares
na constituição de significados ordenados - conhecimento dividido
por gênero e por um centro e uma periferia culturais. A mentira à

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Sobre a a u t o m o o e la g e m etno g r A f ic a

noiva é justaposta a uma verdade diferente (e ela também é


limitada, contextuai e problemática) contada no deck do Nellie a
ingleses identificados apenas como tipos sociais - o advogado, o
contador, o diretor de companhias. Se Marlow consegue se
comunicar, é dentro desse limitado domínio. Como leitores, no
entanto, nos identificamos com a pessoa não-identificada que
observa as negras verdades e as brancas mentiras de Marlow
encenadas no palco do deck da escuna. Esta segunda estória do
narrador não é ela própria solapada ou limitada. Ela representa,
proponho, a posição etnográfica, uma posição subjetiva e um local
histórico de autoridade narrativa que de forma verdadeira justapõe
diferentes verdades. Embora Marlow inicialmente “abomine uma
mentira”, ele aprende a mentir - isto é, a se comunicar nos limites
das ficções coletivas e parciais da vida cultural. Ele conta histórias
limitadas. O segundo narrador resgata, compara e (ironicamente)
acredita nessas verdades encenadas. Essa é a perspectiva adquirida
por um sério intérprete de culturas, um intérprete de conhecimentos
locais, parciais. A voz do “mais distante” narrador de Conrad é
uma voz estabilizadora, cujas palavras não foram feitas para serem
objetos de suspeita.9
O coração das trevas oferece, então, um paradigma da
subjetividade etnográfica. A seguir explorarei os específicos ecos
e analogias que ligam a situação de liminaridade cultural de Conrad
no Congo com a de Malinowski nas Ilhas Trobriand. A correspon­
dência, contudo, não é exata. Talvez a mais importante diferença
textual seja que Conrad assume uma posição irônica com respeito
à verdade representacional, uma atitude apenas implícita na escrita
de Malinowski. O autor de Os argonautas se dedica a construir
ficções culturais realistas, enquanto Conrad, embora comprome­
tido de forma semelhante com isso, representa a atividade como a
prática contextualmente limitada de contar estórias.10
Ao se compararem as experiências de Malinowski e Conrad,
fica-se espantado com sua sobredeterminação lingüística. Em cada
caso, três línguas estão em ação, produzindo constantes traduções

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A E X P ER IÊ N C IA E T N O G R Á FIC A

e interferências. O dilema de Conrad é extremamente complexo.


Pouco antes de partir para a África, ele havia inadvertidamente
começado a escrever o que viria a ser Almayer 'sfolly. Após compor
os capítulos iniciais, ficou bloqueado. Por volta desse período,
ele veio a conhecer uma prima por afinidade, M arguerite
Poradowska, com quem teve, de um modo significativo, um
envolvimento amoroso. Ela era casada e também uma conhecida
autora francesa; era em grande medida um envolvimento literário.
Conrad escreveu-lhe suas apaixonadas e reveladoras cartas - em
francês. Poradowska, que vivia em Bruxelas, era pessoa estratégica
para arranjar um emprego no Congo para seu parente. Assim, nos
meses imediatamente anteriores à sua partida para a África, Conrad
retomou à Polônia pela primeira vez desde que fugira para o mar,
quinze anos antes. Isto renovou seu polonês, que havia permanecido
bom, e reviveu sua ligação com lugares da infância e sentimentos
ambivalentes. Da Polônia (na verdade a Ucrânia russa) ele foi quase
diretamente assumir seu posto no Congo. Lá ele falava francês, a
língua adquirida em que ele tinha mais fluência, mas manteve um
diário em inglês e pode ter trabalhado nos capítulos de Almayer
(ele afirma isso em sua Biographical note de 1900). Na África,
Conrad estabeleceu amizade com o irlandês Roger Casement e em
geral mantinha a postura de um gentleman inglês associado ao
mar. Suas intensas cartas a Poradowska continuaram, como sempre,
escritas em francês. Sua língua matema acabara de ser reavivada.
A experiência no Congo foi um tempo de máxima complexidade
lingüística. Em que língua Conrad estava pensando de forma mais
consistente? Não é surpreendente que palavras e coisas fre­
qüentemente pareçam descosidas em O coração das trevas, en­
quanto Marlow busca nas trevas sentido e interlocução.
Também Malinowski manteve no campo seu diário íntimo
em polonês e se correspondeu nesta língua com sua mãe, que estava
atrás das linhas inimigas, na Áustria. Ele escreveu em inglês sobre
temas antropológicos a seu professor, C. G. Seligman, em Londres.
À sua noiva, “E. R. M.” (Elsie R. Masson), que estava na Austrália,

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Sobre a a u t o m o d e la g e m e t n o g r á f ic a

ele escrevia freqüentemente, também em inglês. Havia, porém,


pelo menos duas outras mulheres, paixões antigas, em sua mente,
e ao menos uma delas associada à Polônia. Seu amigo polonês
mais íntimo, Stanislas Witkiewicz (“Stás”, no Diário), que logo
se tomaria um grande escritor e artista de vanguarda, também
rondava sua consciência. Os dois haviam viajado juntos ao Pacífico
e haviam se desentendido pouco antes da estadia de Malinowski
em Trobriand. Ele ansiava por restabelecer a relação, mas seu
amigo estava agora na Rússia. Estas poderosas associações inglesas
e polonesas foram interrompidas por um terceiro mundo lin-
güisticamente codificado, o universo de Trobriand, no qual elé
tinha de viver e trabalhar produtivamente. As transações diárias
de Malinowski com os trobriandeses se desenrolaram em
kiriwiniano, e com o tempo suas anotações de campo eram
registradas na maioria das vezes na língua nativa."
Podemos sugerir o esboço de uma estrutura para as três
línguas ativas das experiências exóticas de Conrad e Malinowski.
Entre o polonês, língua materna, e o inglês, a língua da futura
carreira e do casamento, uma terceira intervém, associada com o
erotismo e com a violência. O francês de Conrad está ligado a
Poradowska, um problemático objeto de amor (ela era intimidante
demais e íntima demais); o francês também estava ligado à juventude
descuidada de Conrad em Marselha e ao Congo imperial, que
Conrad abominava por sua violência e rapacidade. A língua
interveniente em Malinowski era o kiriwiniano, associado a uma
certa exuberância e excesso lúdico (que Malinowski apreciava e
retratou simpaticamente em seus relatos dos rituais do kula e dos
costumes sexuais) e também às tentações eróticas das mulheres
trobriandesas. O Diário luta repetidas vezes com esta dimensão
kiriwiniana de desejo.
Assim é possível distinguir em cada caso uma língua materna,
uma língua do excesso e uma língua da restrição (do casamento e
da autoria). Isto é certamente muito esquemático. As línguas ter-
se-iam interpenetrado e interferido mutuamente de maneiras
altamente contingentes; mas o suficiente já foi dito, talvez, para

111
A EXP ER IÊN C IA ETN O G R Á FICA

apresentar o ponto principal. Tanto Conrad no Congo quanto


Malinowski nas Ilhas Trobriand estavam imersos em situações
subjetivas complexas e contraditórias, articuladas nos níveis da
linguagem, do desejo e da filiação cultural.

♦ ♦♦

Tanto em O coração das trevas quanto no Diário vemos a


crise de um “eu” em algum “dos mais distantes pontos de nave­
gação”. Ambos os trabalhos retratam uma experiência de solidão,
mas uma experiência de solidão que é preenchida com outros povos
e com outros sotaques e que não permite um sentimento de cen-
tramento, de diálogo coerente, ou comunhão autêntica. No Congo
de Conrad, seus colegas brancos são ambíguos e incontroláveis.
A selva é cacófona, preenchida por muitas e muitas vozes -
portanto muda, incoerente. Malinowski não estava, claro, isolado
nas Ilhas Trobriand, nem em relação aos nativos e nem aos brancos
do local. Mas o Diário é uma instável confusão de outras vozes e
mundos: mãe, amantes, noiva, amigos diletos, os trobriandeses,
os missionários locais, comerciantes, assim como os universos
escapistas, os romances a que ele nunca pôde resistir. A maioria
dos pesquisadores reconhecerá esta situação multivocal. Mas
Malinowski experimenta (ou pelo menos seu diário retrata) algo
assim como uma verdadeira crise espiritual e emocional: cada
uma das vozes representa uma tentação; ele é pressionado de
muitas maneiras. Assim, tal como Marlow em O coração das
trevas, Malinowski se agarra à sua rotina de trabalho, seus
exercícios e seu diário - no qual confusamente, precariamente,
ele mantém juntos seus mundos e desejos divergentes.
Um trecho do Diário ilustrará esta situação:

7.18.18... Sobre teoria da religião. Minha posição ética


em relação à minha mãe, a Stás, a E. R. M. Dores de
consciência resultantes de ausência de sentimentos
integrados e verdadeiros em relação aos indivíduos. Toda
a minha ética está baseada no instinto fundamental da ,>

112
Sobre a a u t o m o d e la g e m e t n o g r á f ic a

personalidade unificada. A isto se segue a necessidade de


ser o mesmo em diferentes situações (fiel em relação a si
mesmo) e a necessidade, indispensável, da sinceridade:
todo o valor da amizade está baseado na possibilidade de
se expressar, de ser você mesmo com completa franqueza.
A alternativa é entre uma mentira e estragar uma relação
(minha atitude com minha mãe, Stás e todos os meus
amigos era artificial). O amor não deriva da ética, mas sim
a ética do amor. Não é possível deduzir a ética cristã a
partir da minha teoria. Mas tal ética nunca expressou a
verdade real - ame seu vizinho - a um grau realmente
possível. O problema na verdade é: por que você deve sem­
pre se comportar como se Deus o estivesse observando?
(p. 296-297)

A passagem é confusa; mas podemos extrair talvez a questão


central em tomo da qual gravita: a impossibilidade de ser sincero e
portanto de ter um centro ético. Malinowski sente a exigência de
coerência pessoal. Um Deus punitivo está vigiando cada um de
seus (inconsistentes) movimentos. Ele não está, assim, livre para
adotar diferentespersonae em diferentes situações. Ele sofre pelo
fato de que essa regra de sinceridade, uma ética de uma
personalidade unificada, significa que ele terá de ser desagrada­
velmente verdadeiro com seus vários amigos e amantes. E isto
significará - já tendo significado - perder amigos: “A alternativa
entre uma mentira e estragar uma relação”.
Não há saída. Deve haver uma saída. Contar verdades
demais mina os compromissos da vida coletiva. A solução de
Malinowski consiste em construir duas ficções relacionadas - a
de um eu e a de uma cultura. Ainda que minha tarefa aqui não
seja nem psicológica nem biográfica, que me seja permitido sugerir
apenas que o estilo pessoal - extravagante, operístico - que
encantava e irritava os contemporâneos de Malinowski era uma
resposta a esse dilema. Ele se permitia cair no extremismo “esla­
vo”; suas revelações sobre si mesmo e sobre seu trabalho eram
exageradas e ambiguamente parodísticas. Ele assumia poses

113
A E X P ER IÊ N C IA E T N O G R Á FIC A

(afirmou ter inventado sozinho “o método funcional”), desafiando


os que tomam tudo em seu sentido literal a ver que estas verdades
pessoais eram em algum grau ficções. Seu caráter era encenado,
mas também verdadeiro; uma pose, porém autêntica. Uma das
m aneiras pelas quais M alinowski m antinha-se coeso era
escrevendo etnografia. Aqui, as totalidades moldadas de um eu e
de uma cultura parecem ser alegorias de identidade que se reforçam
mutuamente. Um ensaio de Harry Payne, “O estilo de Malinowski”
(1981), sugestivam ente traça a com plexa com binação de
autoridade e ficcionalidade que a forma narrativa de Os argonautas
encena:

Dentro da imensa latitude de [sua] estrutura Malinowski


pode determinar mudanças de foco, de tom e de objeto; a
trama, cíclica, sempre fornecerá um lugar para onde se
retomar. A terapia funcional atua apenas heuristicamente.
Uma vez que tudo adere a tudo, pode-se vagar sem nunca
se desconectar. (p. 438)|:

O problema literário do ponto de vista autoral, o imperativo


jamesiano de que todo romance reflita uma “inteligência contro­
ladora”, era um doloroso problema pessoal para o autor do Diário.
A estrutura ampla, composta de múltiplas perspectivas, sinuosa,
de Os argonautas resolve essa crise de sinceridade. Com efeito,
como o autor científico e convincente dessa ficção, Malinowski
pode ser como o Deus de Flaubert, onipresente no texto, orques­
trando descrições entusiásticas, explicações científicas, encena­
ções de eventos a partir de diferentes posições, confissões pessoais,
e assim por diante.
As descrições culturais no estilo m alinowskiano de
funcionalismo anseiam por uma espécie de personalidade unificada,
mas uma totalização convincente sempre lhes escapava. Malinowski
nunca juntou toda a cultura trobriandesa; ele não produziu nenhum
retrato sintético, apenas monografias densamente contextualizadas
sobre importantes instituições. Além disso, sua obsessiva inclusão
de dados, imponderabilia, e textos vernáculos pode ser vista como

114
Sobre a a u t o m o d e la c e m e t n o g r á f ic a

um desejo de desfazer, assim como de fazer, um todo; tal


empirismo metonímico, aditivo, acaba por sabotar a construção
de representações funcionais, sinedóquicas. As etnografias de
Malinowski - diferentemente dos retratos secos, analíticos e
funcionais de Radcliffe-Brown - eram variadas, frouxas, mas com
formas narrativas retoricamente bem-sucedidas (Payne, 1981:420-
421). Expressões ficcionais de uma cultura e de uma subjetividade,
elas ofereciam uma saída em relação aos vínculos da sinceridade
e da totalidade, a problemática conradiana da mentira em foco no
Diário.
Há mais ecos específicos de O coração das trevas no texto
íntimo de Malinowski em polonês. Falando de seus informantes
trobriandeses, que não cooperarão com sua pesquisa, ele os
amaldiçoa à maneira de Kurtz: “Por vezes eu ficava furioso com
eles, particularmente porque após eu ter dado a eles suas partes de
fumo todos iam embora. No todo, meus sentimentos em relação
aos nativos tendem decididamente para um ‘exterminar todos os
brutos’” (p. 69). Malinowski flertou com vários papéis coloniais
reservados aos brancos - inclusive o excesso, segundo o modelo
de Kurtz. Aqui, a irônica invocação proporciona um vislumbre
ficcional das tensões do trabalho de campo e da vioíência de seus
sentimentos. No Diário, assim como Marlow em sua ambivalente
relação com Kurtz, Malinowski freqüentemente se defronta com
a inseparabilidade entre discurso e poder. Ele deve lutar pelo
controle no encontro etnográfico.
Outro eco não-irônico de O coração das trevas é ouvido na
dolorosa resposta de Malinowski à notícia da morte de sua mãe,
que abala as últimas páginas do Diário: “O terrível mistério que
envolve a morte de alguém querido, próximo a você. A última
palavra que não foi dita - algo que deveria iluminar tudo é enterrado,
o resto da vida repousa meio escondido no escuro” (p. 293).
Malinowski sente que lhe foi negado o resgatado talismã de Marlow,
uma última palavra poderosa e ambiguamente iluminadora
sussurrada no momento da morte.

115
A EXP ER IÊN C IA ETN O G R Á FICA

Além das citações mais ou menos diretas no Diário, notam-


se também mais paralelos temáticos e estruturais gerais com O
coração das trevas. Ambos os livros são registros de homens
brancos na fronteira, em pontos de perigo e desintegração. Em
ambos a sexualidade está em foco: ambos retratam um outro que
é convencionalmente feminizado, ao mesmo tempo um perigo e
uma tentação. Os personagens femininos nos dois textos são
alocados em categorias espirituais (soft) ou sensuais (hard). Há
uma tematização, comum a ambos, do impulso do desejo ou do
excesso precariamente contidos por alguma restrição crucial. Para
Malinowski, essa restrição é representada por sua noiva, associada,
em sua mente, a uma carreira acadêmica na Inglaterra, a um amor
elevado, e ao casamento. “Pensei em E. R. M....” é o censor do
Diário para pensamentos lascivos sobre mulheres, sejam nativas
ou brancas:

Não devo trair em pensamentos E. R. M„ ou seja, recordar


minhas relações anteriores com as mulheres, ou pensar
sobre futuras relações... Preserve-se a personalidade
interna essencial através de todas as dificuldades e
vicissitudes: nunca se deve sacrificar princípios morais
ou trabalho essencial à “exposição” a um Stimmung
convivial, etc. Minha tarefa principal deve ser trabalhar.
Ergo: trabalhe! (p. 268)

Assim como o protagonista de Conrad, o etnógrafo luta


constantemente para manter uma essencial auto-suficiência interior
- sua “own true stuff', como diz Marlow. À atração exercida por
perigosos outros, à fronteira desintegradora, se resiste com trabalho
metódico e disciplinado. Para Marlow, a atenção obsessiva a seu
barco a vapor e sua navegação proporciona a “sabedoria de
superfície” necessária para manter estável sua personalidade. Tal
como invocado no Diário, os labores científicos de Malinowski
servem a um propósito similar. Contida, a personalidade ética é
alcançada incansavelmente através do trabalho. Essa “estrutura
de sentimento” pode ser localizada com alguma precisão na

116
Sobre a a u t o m o d e la c e m etnocr A f ic a

situação histórica da sociedade colonial do final do período


vitoriano, e está intimamente relacionada à emergência da cultura
etnográfica.
Críticos sociais vitorianos discerniam uma crise difusa, para
a qual o título de Mathew Amold, Culture and anarchy, oferecia
um diagnóstico básico: contra a fragmentação da vida moderna
estavam a ordem e a integridade da cultura. Raymond Williams
(1966) ofereceu um relato sutil sobre estas respostas humanistas
às transformações tecnológicas e ideológicas sem precedentes em
processo em meados do século XIX. A estranha afirmação de
George Eliot é típica: dessas três palavras - “Deus”, “imortalidade”
e “dever”- , declarou, “com terrível honestidade, como era incon­
cebível a primeira, como era inacreditável a segunda, e ainda,
como era peremptória e absoluta a terceira!” (citado em Houghton,
1957:43). O dever tomara-se uma crença deliberada, uma desejada
fidelidade a aspectos da convenção e ao trabalho (a solução de
Carlyle). Ian Watt convincentemente associou Conrad a essa
resposta (1979:148-151). Marlow, no meio da África, agarra-se à
vida ocupando-se de seu barco a vapor, das obrigações de rotina
necessárias à sua manutenção e navegação. E a estrutura persiste
no Diário de Malinowski, com suas constantes auto-exortações
para evitar distrações negligentes e voltar ao trabalho. Na
problemática da cultura e anarquia (que persiste nos conceitos
plurais, antropológicos, de cultura que privilegiam a ordem e o
sistema por sobre a desordem e o conflito), as essências pessoais e
coletivas devem ser continuamente mantidas. A posição etnográfica
que nos preocupa aqui fica parcialmente fora desses processos,
observando seus funcionamentos locais, arbitrários, ainda que
indispensáveis.
A cultura, uma ficção coletiva, é a base para a identidade e
a liberdade individuais. O eu, o “own true stuff” de Marlow, é um
produto de trabalho, uma construção ideológica que é no entanto
essencial, o fundamento da ética. Mas, uma vez que a cultura se
toma visível como objeto e base, um sistema de significado entre

117
A E X P ER IÊ N C IA ETN O G R Á FIC A

outros, o eu etnográfico não pode mais se enraizar numa identidade


não mediada. Edward Said afirmou, a respeito de Conrad, que
sua luta principal, que se refletia em sua escrita, era “a conquista
de uma personalidade” (1966:13). Na verdade, ele se reconstruiu
bem cuidadosamente na persona de um autor “inglês”, o
personagem de que fala na “Nota do Autor” que ele posteriormente
acrescentaria a cada uma de suas obras. Essa construção de um eu
era tanto artificial quanto mortalmente séria. (Podemos ver o
processo parodiado pelo contador em O coração das trevas, que
parece literalmente se manter inteiro por sua atitude ridiculamente
formal, mas de algum modo admirável). Tudo isso dá pungência
especial à frase que encerra o Diário publicado: “Realmente, eu
não tenho uma personalidade genuína”.

♦ ♦♦

Malinowski, porém, resgatou um eu da desintegração e da


depressão. Esse eu estava associado, tal como o de Conrad, ao
processo da escrita. Nesse contexto, é importante explorar outra
região de similaridade entre o Diário e O coração das trevas: o
papel de textos incongruentes. A subjetividade fragmentada
manifesta em ambas as obras é aquela de um escritor, e o impulso
de diferentes desejos e línguas é nítido numa série de inscrições
discrepantes. O mais famoso exemplo em O coração das trevas é
o incrível ensaio de Kurtz sobre a supressão dos costumes selva­
gens, abruptamente interrompido por seu próprio comentário rabis­
cado, “exterminar todos os brutos”. Mas outro texto igualmente
significativo perdido na selva de Conrad é um estranho livro que
Marlow descobre em uma das duas perigosas saídas do deck de
seu barco a vapor (na outra ele discute com Kurtz atrás de um
lugar ermo). Numa cabana à margem do rio, ele cai num transe
quase místico:

Ali estava uma tosca mesa - uma tábua em cima de dois


tocos de pau; um monte de lixo repousava num canto

118
Sobre a a u t o m o d e l a g e m etno cr A f ic a

escuro, e perto da porta encontrei um livro. Ele havia


perdido a capa, e as páginas estavam num estado de
extrema fragilidade e sujeira; mas o dorso tinha sido
amorosamente recosturado com fio de algodão branco, e
parecia ainda limpo. Era um achado extraordinário. Seu
título era An inquiry into some points o f seamanship,
escrito por um homem de nome Towser, Towson, ou algo
assim, Mestre da Marinha de Sua Majestade. O material
parecia uma leitura enfadonha, com diagramas ilustrativos
e quadros de figuras repulsivas, e a cópia era de 60 anos
atrás. Eu segurei esta incrível antigüidade com a maior
suavidade possível, pois senão ela se dissolveria em
minhas mãos. Dentro dela, Towson ou Towser discorria
sabiamente sobre o limite das correntes e das cordas dos
navios, e outros assuntos assim. Não era um livro muito
emocionante; mas à primeira vista você podia ver ali a
singeleza de intenção, uma preocupação honesta que
perpassava as páginas empoeiradas, elaboradas tantos
anos atrás, iluminando-as com outra luz que não a
profissional. O simples e velho marinheiro, com sua
conversa sobre correntes e amarras, me fez esquecer a
selva e as peregrinações numa deliciosa sensação de ter
chegado a algo inequivocamente real. O fato de este livro
estar ali era maravilhoso o bastante; mas mais incrível
ainda eram as notas escritas nas margens, e totalmente
ligadas ao texto. Não podia acreditar em meus olhos! Elas
estavam cifradas! Sim, pareciam cifras. Engraçado um
homem trazendo com ele na bagagem um livro com tal
descrição para esse lugar nenhum, e ainda estudá-lo -
em cifras! Era um mistério fora do comum (p. 38-39).13

O trecho tem sobretons religiosos - uma relíquia milagrosa,


um movimento abrupto nas imagens que vão da sujeira e decadência
para a transcendência e para a luz e daí para o mistério, o ingênuo
testemunho de um momento de fé. Devemos ter cuidado para não
interpretar o fascínio que o Inquiry exerce sobre Marlow
simplesmente como uma nostalgia do mar, embora esta seja uma
parte de seu encanto. O “bufao” russo que vem a ser o dono do

119
A EX P ER IÊN C IA ETN O G R Á FIC A

livro parece ler o tratado primeiramente dessa forma; pois el^j


toma cuidadosas notas, presumivelmente sobre o conteúdo dqjj
livro, como se estivesse estudando artes náuticas. Para Marlova
no entanto, a inspiração do livro se realiza de alguma forma
diretamente da própria escrita, de suas páginas, que, transcendendd
as correntes e os navios e as amarras, são “luminosas com uma
luz outra além da profissional”. Marlow tem sua atençãa
despertada não pelo conteúdo, mas pela linguagem. Ele está
interessado na dura artesania do velho marinheiro; seu modo de
fazer o livro e sua “fala” parecem concretos - até mesmo as
abstratas tabelas numéricas.
O que encanta Marlow não é primeiramente a possibilidade
de uma sincera autoria. O velho marinheiro, “Towser ou Towson
ou algo assim - Mestre da Marinha de Sua M ajestade”, é
pessoalmente enganoso; não é seu ser que conta, mas sua linguagem.
O homem parece dissolver-se numa vaga tipicidade; o que importa
é seu inglês simples. Significativamente, porém, o texto falha em
unir seus dois igualmente devotos leitores; pois quando eles final­
mente se encontram, o russo está contentíssimo em saudar um
colega marinheiro, enquanto Marlow está desapontado por não
encontrar um inglês. É a leitura que está em questão. O mesmo
livro, enquanto um objeto material, provoca reações distintas e
igualmente reverentes. Não posso explorar aqui o significado
biográfico dessa disjunção: Conrad acabara de trocar sua cidadania
oficial russa pela nacionalidade britânica, e provavelmente o bufao
está ligado ao jovem viajante, Korzeniowski, o qual estava se
tomando Conrad. É suficiente notar a relatividade radical: a
distância entre duas leituras. O “código” marca isso graficamente,
e se “as anotações escrevinhadas nas margens” vêm a ser depois
reconhecidas como uma língua européia, isto de forma alguma
diminui a imagem gráfica de uma separação. (Lembra a sensação
de estranheza que alguém experimenta ao encontrar estranhas
marcas num livro e depois reconhecer que ele mesmo havia feito
tais marcas - outra pessoa - numa leitura anterior).

120
Sobre a a u t o m o d e la g e m etno cr A f ic a

O que persiste é o próprio texto - precariamente. Manuseado


Kcom as capas soltas - o que pode simbolizar o contexto de sua
publicação original o texto escrito deve resistir à destruição
enquanto viaja através do espaço e do tempo. Após 60 anos - o
Jémpo de uma vida humana - o momento da desintegração chegou,
ifrcriação do autor enfrenta o esquecimento, mas um leitor folheia
novamente as páginas, amorosamente. Depois o livro é abandonado
^própria morte em algum lugar num estranho continente, seu
fèònteúdo náutico flutua na ausência de contexto - e mais uma vez
ium leitor o resgata. Resgate é uma das imagens-chave para a obra
fàe Conrad; o ato de escrever busca sempre o resgate num ato
imaginado de leitura. Significativamente, o texto de maior
significado em O coração das trevas é aquele com o mínimo de
referência à situação à sua volta.
A experiência de trabalho de campo de Malinowski está
cheia de inscrições discrepantes: suas detalhadas anotações de
campo, escritas em inglês e em kiriwiniano; textos vernáculos,
freqüentemente registrados no verso das cartas recebidas do
estrangeiro; seu diário polonês (na verdade, heteroglota); a corres­
pondência multilíngüe; e finalmente um corpus que merece alguma
atenção, os romances aos quais ele não pôde resistir. Estes últimos
contêm mundos narrados em sua totalidade, que parecem por vezes
mais reais (de qualquer modo mais desejáveis) que os afazeres
cotidianos da pesquisa, com suas muitas notas contraditórias,
incompletas, impressões, dados que devem ser submetidos a
alguma coerência. Malinowski se pega “fugindo” da realidade
trobriandesa “para a companhia dos esnobes da Londres de
Thackeray, seguindo-os ansiosamente pelas ruas da grande
cidade”. (A leitura escapista dos etnógrafos no campo mereceria
um ensaio).
Os romances de Malinowski sugerem um paralelo revelador,
ainda que imperfeito, com o Inquiry de Towser - outra ficção
maravilhosamente impositiva no meio de uma confusa experiência.
O livro de Towser mostra a possibilidade de falar pessoal e

121
A E X P ER IÊ N C IA ETN O G R Á FIC A

autenticamente a verdade; e aponta para a escrita (uma miraculosa


presença ausente) como salvação. Mas Towser é também uma
tentação, como os romances de Malinowski, tirando Marlow de
seu trabalho, de seu barco, e levando-o a uma espécie de
vertiginosa rêverie. Tais leituras são comunhões desejadas, lugares
onde um a subjetividade coerente pode ser recuperada numa
identificação ficcional com toda uma voz ou um mundo. Towser
e os romances sugerem um caminho viável, além da fragmentação,
não para o seduzido leitor, mas sim para o escritor construtivo
que trabalha duro. Para Malinowski, o resgate consiste em criar
ficções culturais realistas, das quais Os argonautas é o seu primeiro
plenamente realizado sucesso. Tanto em romances quanto em
etnografias, o eu como autor encena os diversos discursos e cenas
de um mundo acreditável.

♦♦♦

Os frouxos textos de O coração das trevas e do Diário são


retalhos de mundos; como notas de campo, eles são incongruentes.
Eles devem ser transformados num retrato provável. Para unificar
uma confusa cena da escrita é necessário selecionar, combinar,
reescrever (e portanto apagar) estes textos. Para Malinowski as
ficções verdadeiras que daí resultam são Os argonautas e toda a
série de etnografias sobre Trobriand; para Conrad, o Almayer‘s
folly e o longo processo de aprender a escrever livros em inglês,
culminando com sua primeira grande obra, O coração das trevas.
Obviamente, trata-se de diferentes experiências de escritas;
etnografias são ao mesmo tempo semelhantes e distintas em relação
aos romances. Mas, de um modo geral e importante, as duas
experiências encenam o processo de automodelagem ficcional em
sistemas relativos de cultura e linguagem que chamo de etnográ­
ficos. O coração das trevas encena e ironicamente chama a atenção
para esse processo. Os argonautas é menos reflexivo, mas ele
simultaneamente produz uma ficção cultural e anuncia a emer­
gência de uma persona autoral: Bronislaw Malinowski, o novo

122
Sobre a a u t o m o d e la g e m e t n o g r á f ic a

estilo de antropólogo. Esta persona, dotada daquilo que


Malinowski chamava de “a magia do etnógrafo”, uma nova espécie
de insight e experiência, não era, propriamente falando, construída
no campo. A persona não representa, ela racionaliza uma
experiência de pesquisa. O Diário mostra isso claramente, pois o
trabalho de campo, tal como a maioria de pesquisas semelhantes,
era ambivalente e sem controle. A subjetividade confusa que ele
registra é agudamente distinta daquela encenada e recontada em
Os argonautas. Quando o Diário foi publicado pela primeira vez,
em 1967, a discrepância foi chocante, pois o observador-
participante autoral, um locus de compreensão simpática em
relação ao outro, simplesmente não é visível no Diário. Por sua
vez, o que é visível, uma pronunciada ambivalência diante dos
trobriandeses, uma empatia misturada com desejo e aversão, não
está em lugar nenhum de Os argonautas, no qual reinam a
compreensão, o escrúpulo e a generosidade.
Tem-se a tentação de propor que a compreensão etnográfica
(uma posição coerente de simpatia e engajamento hermenêutico) é
melhor entendida como uma criação da escrita etnográfica do que
como uma consistente qualidade da experiência etnográfica. De
qualquer modo, o que Malinowski realizava ao escrever era
simultaneamente 1) a invenção ficcional dos trobriandeses a partir
de uma massa de notas de campo, documentos, memórias, e assim
por diante; e 2) a construção de um novo personagem público, o
antropólogo como pesquisador de campo, uma persona que seria
mais tarde elaborada por Margaret Mead e outros. É importante
notar que a persona do antropólogo observador-participante não
era a imagem profissional a partir da qual Malinowski trabalhava
no Diário (que envolvia ordens de cavalaria, “Sociedades Reais”,
“Novos Humanismos”, e coisas semelhantes). Mas precisamente,
ela era um artefato da versão que ele construiu retrospectivamente
em Os argonautas. Ao fundir antropologia e trabalho de campo,
Malinowski elaborou a maior, a melhor estória sobre o que as
circunstâncias o haviam obrigado a tentar.

123
A EX P ER IÊN C IA ETN O G R Á FIC A

Tais considerações nos levam a um problema ao discutir a


produção etnográfica de Malinowski - e na verdade quase toda
produção etnográfica. Graças ao crescente número de relatos
confessionais e analíticos, sabemos mais e mais sobre as expe-
riências de trabalho de campo e seus constrangimentos. Mas o
real processo de escrita de etnografias permanece obscuro e não-
analisado. Sabemos alguma coisa sobre a pesquisa de Malinowski
nas Trobriand, de 1914 a 1918, mas virtualmente nada sobre o
que ele estava fazendo nas Ilhas Canárias em 1920 e 1921. (Ele
estava escrevendo Os argonautas do Pacífico Ocidental).
O Diário nos deixa em suspenso. Há um repentino hia
escrita que, na medida em que percebemos através de pequenas
revelações que o texto está por terminar, sinaliza a chegada da
notícia de que sua mãe morreu. Então a frase desesperada:
“Realmente, eu não tenho uma personalidade genuína”. Silêncio.
Três anos depois, Malinowski reaparece como o autor de Os
argonautas, o documento fundador do novo antropólogo-pesqui-
sador de campo. O que aconteceu nesse intervalo? Como Conrad
no período entre o fracasso de sua aventura africana e o sucesso
de O coração das trevas, ele aceitou três grandes compromissos:
1) escrever; 2) casar; e 3) para uma limitada audiência, linguagem
e cultura.
As Ilhas Canárias são uma intrigante cena para a cura
literária de Malinowski. Ele vai para lá por motivos de saúde, mas
a escolha é sobredeterminada. É-se tentado a ver este lugar como
um espaço liminar na fronteira externa da Europa, propício para
um deslocado polonês escrever uma etnografia sobre o Pacífico.
Mais importante, no entanto, é o fato de que ele havia, anterior­
mente, passado férias nas Canárias com a mãe. Agora lá está ele
de novo, com sua nova esposa, completando seu primeiro grande
trabalho. Ele está totalmente imerso no domínio da substituição,
às voltas com uma série de compromissos e deslocamentos. Para
Malinowski, assim como para Conrad, três dessas substituições
são cruciais: 1) a família, com a esposa no lugar da mãe; 2) a lín­

124
So b r e a a u t o m o d e ia c e m etnocr A f ic a

gua, com a língua materna trocada pelo inglês; e 3) a escrita,


com inscrições e textos no lugar da experiência oral imediata. O
arbitrário código de uma língua, o inglês, ganha finalmente prece­
dência. A língua materna recua, e (aqui o pessoal e o político
coincidem) o inglês domina - representa e interpreta - o kiriwi-
niano. A adesão cultural é encenada como um casamento. O
anseio por uma interlocução sincera dá lugar a um jogo em que
a escrita desempenha um papel substitutivo. Algumas destas
transições e deslocamentos estavam seguramente em jogo na
escrita bem-sucedida nas ilhas Canárias. O Diário de Malinowski
acaba com a morte de uma mãe; Os Argonautas é um resgate,
a inscrição de uma cultura14.
♦ ♦♦
Algumas reflexões finais sobre o status atual do autor
etnográfico: quando o Diário de Malinowski foi publicado pela
primeira vez, parecia escandaloso. O antropólogo por excelência
de Os Argonautas não mantinha, na verdade, uma atitude sempre
compreensiva e benevolente em relação a seus informantes; seu
estado mental no campo era tudo, menos serenamente objetivo;
a história da pesquisa etnográfica incluída na monografia já acaba­
da era estilizada e seletiva. Esses fatos, uma vez no registro públi­
co da ciência antropológica, abalaram a ficção do relativismo cultu­
ral como uma subjetividade estável, a posição para um eu que com­
preende e representa um outro cultural. Em seguida ao Diário, a
compreensão intercultural aparecia como uma construção retórica,
sua equilibrada compreensão atravessada por ambivalência e poder.
Lembramo-nos do destino da violenta garatuja de Kurtz
em O coração das trevas, “exterminem todos os brutos”. Marlow
arranca o condenável e verdadeiro suplemento, quando entrega a
investigação de Kurtz sobre costumes selvagens à imprensa
belga. É um gesto revelador, e sugere uma perturbadora questão
sobre Malinowski e antropologia: o que está sempre sendo, di­
gamos assim, “arrancado” para se construir um discurso público,

125
A E X P E R IÊ N C IA ETN O G R Á FICA

“acreditável”? Em Os argonautas, o Diário foi excluído,


deslocado, no processo de dar integridade a uma cultura (a
trobriandesa) e a um eu (o etnógrafo científico). Assim, a antropo­
logia baseada no trabalho de campo, ao constituir sua autoridade,
constrói e reconstrói coerentes outros culturais e eus interpre-
tativos. Se esta automodelagem etnográfica pressupõe mentiras
de omissão e de retórica, ela também toma possível o relato de
poderosas verdades. Mas, tal como o relato de Marlow a bordo do
Nellie, as verdades das descrições culturais são significativas para
específicas comunidades interpretativas em determinadas cir­
cunstâncias históricas. Assim, o “arrancar” ou “rasgar”, lembra-
nos Nietzsche, é simultaneamente um ato de censura e de criação
de significado, uma supressão de incoerência e contradição. As
melhores ficções etnográficas são, como a de Malinowski, intri-
cadamente verdadeiras; mas seus fatos, assim como todos os fatos
nas ciências humanas, são classificados, contextualizados, narra­
dos e intensificados.
Nos úítimos anos, novas formas de realismo etnográfico
emergiram, mais dialógicas e abertas em termos de estilo narrativo.
O eu e o outro, a cultura e seus intérpretes, aparecem como entidades
menos confiáveis. Entre aqueles que repensaram a autoridade e a
retórica etnográficas a partir do interior da disciplina, mencionarei
apenas três (as quais Clifford Geertz elegeu para crítica numa série
de conferências provocativas sobre a escrita etnográfica): Paul
Rabinow, Kevin Dwyer e Vincent Crapanzano.15 (Em razão de
seus pecados de auto-exposição, Geertz os chama de “Filhos de
M alinow ski”). Estes três podem representar muitos outros
coerentemente engajados num complexo campo de experimentos
textuais nos limites da etnografia acadêmica.16 Eu disse que a
antropologia ainda espera por seu Conrad. De várias maneiras, os
recentes experimentalistas estão preenchendo esse papel. Eles
hesitam produtivamente, como fez Conrad - e como, mais
ambivalentemente, o próprio Geertz oscila -, entre realismo e
modernismo. Os experimentalistas revelam em seus escritos um

126
Sobre a a u t o m o d e l a g e m e t n o g r á f ic a

agudo senso do status modelado e contingente de todas as des­


crições culturais (e de todos aqueles que descrevem culturas).
Estes escritores auto-reflexivos ocupam posições irônicas
dentro do projeto geral da subjetividade etnográfica e da descrição
cultural. Eles se colocam, como todos nós, em um incerto terre­
no histórico, um lugar a partir do qual podemos começar a ana­
lisar a matriz ideológica que produziu a etnografia, a definição
plural de cultura, e um eu posicionado para mediar discrepantes
mundos de significado. (Dizer que esse terreno histórico é, por
exemplo, pós-colonial ou pós-modemo não é dizer muito, exceto
nomear o que se espera não mais precisar ser nomeado.) Na ver­
dade, a maioria dos autoconscientes etnógrafos hermenêuticos
que escrevem hoje em dia vão tão longe quanto foi Conrad em
0 coração das trevas, ao menos em suas apresentações da auto­
ridade narrativa. Eles agora sinalizam o problemático outro nar­
rador no deck do Nellie quando dizem, como Marlow: “É claro
que nisso vocês, meus caros, vêem mais do que eu via naquele
momento. Vocês me vêem; sou alguém que vocês conhecem”.

Notas

1 Vitória. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1982. Tradução


de Marcos Santarrita (N.Org.)
2 Sobre o desenvolvimento do conceito de cultura, ver Williams,
1966, Stocking, 1968, e Clifford, “On Collecting Art and Culture”
(há uma tradução brasileira na Revista do Patrimônio, n. 23,
1994 (N.Org.)). A novidade e a fragilidade da noção ocidental
de indivíduo foram notadas por Mauss (1938), talvez o primei­
ro panorama etnográfico sobre o tema.
1 Uma análise completa das mudanças na “cultura” pressuporia
aquelas forças consideradas por Raymond Williams (1966) como
determinantes: industrialismo, conflito social, a ascensão da
cultura de massas. A estes fatores seriam acrescentadas ainda
as necessidades das sociedades colonialistas de compreender as

127
A EXPER IÊN CIA ETN O G R Á FIC A

diversidades cada vez mais acessíveis do planeta enquanto uma


totalidade dispersa. O mapeamento dos arranjos humanos pelo
mundo como distintas culturas afirma que as coisas se mantêm
juntas - separadamente.
“Sobre verdade e mentira no sentido extra moral”. Nietzsche,
Col. Os Pensadores, p. 51-56, São Paulo, Abril Cultural, 1974.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho (N.Org.).
O coração das trevas. Tradução de Marcos Santarrita, Ediouro,
1996 (N.Org.).
A interpretação que sugiro deve bastante a outros comentadores,
mais notadamente a Edward Said e a Ian Watt. Em suas dimen­
sões biográficas ela lança mão de trabalhos clássicos: Baines,
1960; Watt, 1979; Karl, 1979; e Najder, 1983. Meu foco em
O coração das trevas como uma alegoria da escrita e do embate
com a língua e a cultura em suas definições emergentes no século
XX é, creio eu, nova, mas utiliza vários pontos já bem estabeleci­
dos em estudos sobre Conrad. Não citei fontes específicas para
os dados biográficos, já que aqueles com que lidei não são, que
eu saiba, refutados na literatura sobre o tema.
A edição brasileira, publicada pela Record, é de 1997. (N.Org.).
Justaponho Os argonautas e o Diário para ressaltar uma crítica
discrepância entre os dois mais famosos relatos do processo de
pesquisa de Malinowski. Algumas vezes eu supersimplifiquei o
processo de pesquisa e da escrita de Malinowski; o Diário na
verdade cobre o trabalho feito nas Ilhas Trobriand e em Mailu.
Concentrando-me nos dois textos, decidi ignorar outros compli-
cadores, mais notadamente certos diários não publicados e atual­
mente não disponíveis, juntamente com “Natives of Mailu
“(1915) e “Baloma: the spirits of the dead in the Trobriand
Islands “ (1916), ambos de Malinowski. Nestes dois últimos
trabalhos, ele pode ser visto elaborando o estilo etnográfico pes­
soal e científico que alcança sua maior expressão em Os argonau­
tas. Um relato biográfico, ou um retrato completo do trabalho de
campo de Malinowski, ou uma descrição da cultura e da história
melanésias, cada um deles comporia um corpus diferente. Além
disso, ao parar no ano de 1922, deixo de lado a reescritura contí­
nua de Malinowski do diálogo com os trobriandeses. Em aspectos

128
S o b r e a a u t o m o d e ia g e m e t n o g r á f ic a

importantes, sua última grande monografia, Coral gardens and


their magic (1935), questiona experimental e autocriticamente
a posição retórica construída em Os argonautas.
Para uma leitura próxima à minha, mas com uma ênfase
diferente, ver J. Hillis Miller, 1965. Ali encontramos fortes
argumentos para ver O coração das trevas não como uma escolha
positiva pela “mentira da cultura “, mas como algo que mina
toda a verdade, um texto mais trágico, escuro e em última análise
niilista. Indubitavelmente, tanto em forma como em conteúdo, o
conto se debate com o niilismo. No entanto, ele dramatiza a
bem-sucedida construção de uma ficção, uma história contin­
gente, minada mas no fim das contas forte, uma economia
significativa de verdades e mentiras. A evidência biográfica
reforça minha sugestão de que O coração das trevas é uma história
de qualificado, embora distinto, sucesso sobre a arte de contar
verdades. Já assinalei que o conto foi escrito bem no momento
em que Conrad finalmente decidiu apostar tudo na sua carreira
como escritor de língua inglesa. No outono de 1898, ele deixou
Essex e o estuário do Tâmisa (o local entre a terra e o mar) para
ir para Kent, morar perto de outros escritores - H. G. Wells,
Stephen Crane, Ford Maddox Ford, Henry James. A mudança,
imediatamente seguida pelo registro de seu úldmo pedido por
um emprego marítimo, inaugurou seus anos mais produtivos de
trabalho literário. Um sério bloqueio em escrever havia sido
rompido; O coração das trevas emergiu com uma rapidez incomum.
A partir dessa posição de decisão o conto retrocede uma década,
até o começo da guinada de Korzeniowski para a escrita, quando,
no Congo, sua bagagem incluía os primeiros capítulos de
Almayer’sfolly. Na leitura que esboço, o tema central de O coração
das trevas é a escrita, o ato de contar a verdade em sua forma
mais alienada e não-dialógica. Conrad consegue se tomar um
escritor de língua inglesa, um limitado contador-de-verdades.
Não é surpresa, assim, que na cacofonia nebulosa da selva Marlow
anseie por palavras inglesas. Kurtz foi parcialmente educado na
Grã-Bretanha, e sua mãe, lembremos, era meio-inglesa. Desde
o início, Marlow procura pela voz íntima e elementar de Kurtz;
e no fim “este iniciado fantasma que volta do fundo de Lugar
Nenhum honrou-me com sua incrível confiança, antes de

129
A E X P ER IÊ N C IA ETN O G R Á FICA

desaparecer completamente. Isto aconteceu porque ele pôde falar


inglês comigo” (p. 50). Não posso aqui discutir as muitas
complexidades na encenação e na valoração das diferentes lfnguas
em O coração das trevas.
Em Readingfor the plot (1984:259-260), Petèr Brooks observa
de maneira precisa que O coração das trevas apresenta sua verdade
mais como uma “transação narrativa” do que como um “resumo”
(como no caso das últimas palavras de Kurtz). O significado na
narrativa não é um conteúdo interno revelado; ele existe fora,
dialogicamente, em transmissões específicas; está “localizado
nos interstícios da história e do enredo, nascido da relação entre
contadores de histórias e seus ouvintes”. Ao enfatizar a “intermi­
nável análise” presente no conto, Brooks minimiza a função esta­
bilizadora do primeiro narrador como um ouvinte especial
(leitor), não nomeado, ou a ele é atribuída uma limitada função
cultural como os outros no deck. A invisibilidade desse ouvinte
garante uma certa autoridade irônica, a possibilidade de ser e
não ser visto, de falar sem contradição sobre verdades relativas,
ou decidir sua indecidibilidade.
O diário “polonês” é extraordinariamente heteroglota. Mario
Bick (1967:299), cuja tarefa era compilar um glossário e, de
maneira geral, “organizar a mistura lingüística”, especifica que
Malinowski escreveu "em polonês, com uso freqüente do inglês,
palavras e frases em alemão, francês, grego, espanhol e latim, e,
claro, termos das línguas nativas (havia quatro: motu, mailu,
kiriwiniano e pidgin)”.
Há um interessante “lapso” entre esta passagem e sua nota de
rodapé: a “terapia” funcionalista se toma “teoria” funcionalista.
As referências de página aqui e em outros pontos são da edição
de 1971 da Norton Editora.
Seria interessante analisar sistematicamente como, a partir dos
encontros heteroglotas do trabalho de campo, os etnógrafos
constroem textos cuja língua predominante passa por cima,
representa ou traduz outras línguas. Aqui a concepção de Talai
Asad de uma estruturada e persistente desigualdade entre as
línguas dá conteúdo político e histórico ao processo aparente­
mente neutro de tradução cultural (Asad, 1986).

130
Sobre a a u t o m o d e l a g e m etno g r A f ic a

As conferências de Geertz (1983), Works and lives: the anthro­


pologist as author, não haviam ainda sido publicadas quando
deste ensaio. Na seção da apresentação oral, ele refere-se princi­
palmente a Rabinow, 1977; Crapanzano, 1980; e Dwyer, 1982.
O campo discursivo não pode, é claro, ser limitado à disciplina
da antropologia e a suas fronteiras; nem é adequadamente captado
em termos como reflexivo ou dialógico. Para resenhas provisórias,
ver Marcus e Cushman, 1982; Clifford, 1986a.

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