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DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS
EM
ESTUDO
ISSN 2237-7247
O presente artigo tem como objetivo refletir, à luz da Análise de Discurso Crítica (ADC), sobre a
construção de identidades étnico-raciais no contexto brasileiro, tendo como base questões
relacionadas à negação da beleza negra pela imposição, por meio dos discursos naturalizados e
midiáticos (em propagandas de produtos para cabelos) de um padrão de beleza que nega o
estereótipo negro e afirma modelos brancos. Com base em estudos de Bauman (2009; 2005; 2001),
Hall (2006), Wodak (1998), Woodward (2000), De La Torre (2002), Fanon (1980) – entre outros –
, verifica ainda a relação dessa negação com a ocorrência de crises de identidades para mostrar
como, nesse cenário, as identidades construídas para negros são perpassadas por discriminações e
preconceitos.
This article aims to reflect, through the Critical Discourse Analysis (CDA), on the construction of
ethnic and racial identities in Brazilian society, based on issues related to the denial of black
beauty by the imposition, by means of naturalized speech and those of the media (in
advertisements for hair products), a beauty standard that denies the stereotype black and reaffirm
the white model. Based on studies of Bauman (2009; 2005; 2001), Hall (2006), Wodak (1998),
Woodward (2000), De La Torre (2002), Fanon (1980) - among others - also notes the relationship
between this negation and the crises of identity to show how, in this scenario, the identities
constructed for blacks are laden with discriminations and prejudices.
1
Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília; membro do Cepadic e Pesquisadora do Instituto de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP); pesquisadora associada do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da UnB (PPGL/UnB). E-mail: cordelia.prof@gmail.com.
125
Identidades étnico-raciais
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Ao tratar das identidades na pós-modernidade, Hall (2006) afirma que a identidade do
sujeito pós-moderno é uma “celebração móvel”, formada e transformada em relação às maneiras
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Falar da
“celebração móvel” e das formas pelas quais somos representados é trazer à tona o jogo político
na questão da identidade e considerar que toda identidade é arquitetada em prol de interesses
socioeconômicos e políticos poderosos e que a mídia tem papel central nesse processo, uma vez
que as identidades sociais construídas por ela assumem grande importância, condicionando e
refletindo a forma como os membros da sociedade categorizam os sujeitos e como a sociedade,
em si mesma, é reproduzida ou modificada.
Nesse primeiro momento, vimos que as identidades constituem conceito fundamental,
mas estão envoltas em inconclusões, uma vez que pensá-las é trabalhar com multiplicidade de
lugares sociais, sua interface e sua efemeridade. Nesse contexto, as classificações binárias
perdem lugar em função da multiplicidade de experiências que perpassa a cultura
contemporânea. Vejamos, então, aspectos do conceito de identidades para entender a construção
identitária étnico-racial no contexto do Brasil do século XXI.
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contrastivo, dialético ou dialógico, relacional e discursivo, em que nasce não das diferenças, mas
da consciência sobre as diferenças (OLIVEIRA, 2006, p. 87).
Wodak (1998, p. 379) trata dos “discursos das diferenças”2, que são constituidores de
práticas racistas por estabelecer práticas sociais, políticas e econômicas que privam grupos de
recursos materiais e simbólicos, tornando-se uma forma de exclusão. A autora assevera que é
necessário entender em que aspectos os “discursos das diferenças” distinguem-se do racismo.
Aponta que o racismo é uma ideologia que consiste na
Os alvos do racismo, por seu turno, podem ser estigmatizados por vários fatores, como:
traços físicos reais ou atribuídos;
traços espirituais ou culturais adquiridos social e historicamente;
traços sociais;
traços econômico ou sociais, como pertencer a grupo próspero ou não;
traços políticos que integram ou excluem o grupo ao sistema de poder;
traços religiosos.
traços de nacionalidade, no sentido de integração a grupo étnico específico e de
pertencer a determinado país (WODAK, 1998, p. 381).
Assim, os “discursos das diferenças” estabelecem distinção entre dois grupos – “nós” e
os “outros” – com base em uma seleção de traços específicos atribuídos a um desses grupos.
2
Ideia inicialmente desenvolvida por Stuart Hall (1989).
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De outro ponto de vista, Chávez (2002, p. 48) acredita que as identidades se constroem e
se fortalecem com base no sentimento de pertença a determinado grupo e se realizam pela
comparação e pela oposição a outro(s) grupo(s). Nesse processo de construção, entram em jogo
as referências sociais positivas e negativas geradas pela identificação. Logo,
perguntar ‘quem você é’ só faz sentido se você acredita que possa ser outra
coisa além de você mesmo; só se há uma escolha, e só se o que você escolhe
depende de você; ou seja, só se você tem de fazer alguma coisa para que a
escolha seja ‘real’ e se sustente” (BAUMAN, 2005, p. 25)3.
Ademais, para Pierucci (1999, p. 106), a diferença convive com um dilema: mostrar-se
ou esconder-se. E esse dilema pode levar a posições aparentemente antagônicas: tratar as pessoas
diferentemente e enfatizar suas diferenças, o que pode estigmatizá-las (e excluí-las em matéria
de emprego, de educação, de benefícios e de outras oportunidades) ou tratar de modo igual os
diferentes, o que pode nos deixar insensíveis às suas diferenças, e isso, uma vez mais, termina
por estigmatizá-las e barrá-las socialmente em um mundo que foi feito para certos grupos e não
para outros. Assim, para o autor, “ser diferente é um risco de qualquer maneira”.
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Aspas do autor.
4
Grifos do autor.
5
Grifo do autor.
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Ainda no âmbito de identidades étnico-raciais e de sua relação com identificação e com
diferença, Pierucci (1999, p. 26) vê o racismo não como a rejeição da diferença, mas como a
obsessão pela diferença, seja ela constatável, suposta, imaginada, atribuída. Assim, a rejeição da
diferença vem da afirmação enfática da diferença. Para tanto, esclarece que
6
Aspas do autor.
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rol de posições pelas quais os sujeitos transitam. Esse movimento é socialmente construído por
práticas e por discursos.
7
Aspas do autor.
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através do parentesco e da linguagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu interior” (HALL,
2006, p. 27).
Analisando o panorama nacional, Martins (2007, p. 97) afirma que a consciência negra
no Brasil se propôs e se afirma pelo modo branco de ver o negro. Para ele, “no fundo, a história
branca desta sociedade negra não deixou ao negro senão a alternativa de ser branco”. Esse fato é
o desencadeador da crise identitária étnico-racial vivida pelo negro no Brasil: ser negro em um
contexto que exige a brancura. Todas as demais crises são decorrentes dessa imposição da
branquidade a um povo que não a possui.
Para ilustrar a crise identitária vivenciada pelo negro brasileiro, alguns aspectos de
nossa realidade podem ser analisados para mostrar a exigência de branquidade ou o apagamento
do sujeito negro de nosso discurso e de nossas práticas. Serão aqui apresentados aspectos
relativos à negação do estereótipo físico e da beleza do negro. A construção de identidades
acontece, desenvolve-se e se fortalece em múltiplos âmbitos, um deles é o estético, por isso é
relevante pensar a beleza negra.
Gomes (2006)8 pesquisou a constituição de identidades negras com base em dois
aspectos: cabelo crespo e corpo, como aspectos culturais que, aliados a outros, resultam em um
dos conflitos que perpassam a formação da identidade do negro no Brasil. Para a autora, esses
fatores são essenciais em um processo de formação identitária que se dá pelo contraste, pela
negociação, pela troca, pelo conflito e pelo diálogo com o outro. Esses elementos participam do
processo de "tornar-se negro". Segundo Gomes (2006, p. 21), para “entender o 'tornar-se negro'
em um contexto de discriminação, é preciso considerar como essa identidade se constrói no
plano simbólico", no qual são considerados valores, crenças, rituais, mitos e linguagem. Gomes
(2006) ressalta a ideia de que as identidades não se constroem em isolamento, é necessária a
participação do outro para intermediar a construção, para negociá-la e, principalmente, para
reconhecê-la.
Pensando a relação entre belo e feio, Novaes (2006, p. 28) vai além e aponta que a
importância do binômio “beleza-feiúra” ultrapassa o aspecto físico e adentra a avaliação moral,
chegando à atribuição de características morais positivas aos considerados mais belos, pois “eles
são vistos como mais amáveis, sensíveis, flexíveis, mais confiantes neles mesmos”. Força,
8
A pesquisa foi realizada em quatro salões de Belo Horizonte, Minas Gerais; dois estão localizados no centro da
cidade e dois em regiões periféricas.
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equilíbrio, sociabilidade, prestígio profissional, vida bem-sucedida e casamento feliz são
predicados associados aos avaliados como belos e negados aos considerados feios.
No Brasil, há conflito com relação ao conceito de beleza, pois há um padrão ideal
(branco) e um padrão real (negro, pardo, mestiço). Nesse contexto conflituoso, vários aspectos
entram em cena: corpo, pele, altura, cabelos... Isso em uma sociedade que, cada vez mais,
valoriza a estética e a beleza. Logo, não pertencer ao padrão pode gerar dois tipos de
comportamento: a autoaceitação (consciência com relação ao próprio corpo) ou a autonegação
(encobrimento dos aspectos que caracterizam o sujeito como não pertencente ao grupo
considerado padrão).
No caso do negro, um dos grandes problemas é o cabelo. Para Gomes (2006, p. 27), ele
pode ser entendido como forma de camuflar o pertencimento étnico-racial ou como modo de
representar o reconhecimento das raízes africanas, servindo como reação, resistência e denúncia
contra o racismo. Pensado nesse sentido, Gomes (2006, p. 22) afirma que "para o negro, a
intervenção no cabelo e no corpo é mais que uma questão de vaidade ou de tratamento estético.
É identitária". Esse aspecto é relevante porque usamos cabelo e cor da pele como critérios para
classificar as pessoas nas várias etnias existentes no País.
Gomes (2006, p. 34) reflete ainda sobre as estratégias individuais desenvolvidas por
negros e negras para construirem suas identidades. Afirma que “o fato de estar integrado ou de se
reconhecer pertencente a um grupo étnico-racial não elimina os conflitos diários e os dramas
pessoais vividos pelos negros na esfera da subjetividade”. Logo,
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O negro vive, ainda de acordo com Gomes (2006, p. 147), um processo de
“negação/aceitação” de sua condição de negro. Para a autora, “o sentimento de negação é um
componente do processo identitário do negro brasileiro ao longo da história”. No entanto, há
também negação do ser negro, que, para ela, é um processo mais danoso e mais complexo, pois
envolve “negar-se a si mesmo e ser totalmente ignorado”. Essa negação produz-se em um
contexto de violência que perpassa a vida do negro “a ponto de se constituir em representações
negativas do negro sobre si mesmo e seu grupo étnico/racial” (GOMES, p. 149). Essa negação é
resultante do processo de escravidão, no qual o negro perde o status humano e é visto como
coisa. Nesse sentido,
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autoridades culturais, pela mídia e pelos meios científicos, promovem a inferiorização do negro e
constituem-se como pano de fundo que leva às lutas por sua identidade (respeito, confiança e
estima) e por recursos econômicos.
De outro ponto de vista, Roger Bastide, em estudo da representação do negro na
literatura brasileira, lista elementos associados à raça negra que auxiliam na construção de
identidades subalternas: o negro (de modo genérico) é feio, ruim, cruel, grotesco, risível,
feiticeiro, mágico, supersticioso; é um animal sensual e sexual; tem caráter infantil ou
excessivamente inocente (que o liga ao primitivismo); relaciona-se à sujeira e à embriaguez; a
negra (a mulher especificamente) é cheia de manhas, tagarela, preguiçosa; ama o prazer e o luxo.
Essas representações são encontradas em obras de vários autores, principalmente nos ligados ao
Romantismo. Da pesquisa empreendida, Bastide apresenta alguns estereótipos (apud CASTRO,
2007, p. 23):
9
Frizz do inglês significa encrespar ou frisar.
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eletrizados10. Logo, a vantagem dos produtos é neutralizar as principais características do cabelo
negro e adequá-lo ao padrão branco.
Para atender ao ideal socialmente estabelecido, os cabelos devem ser tratados para
chegar ao resultado apresentado abaixo.
10
Dados retirados do site <www.unilever.com.br/ourcompany/newanmidia/pressreleases/2006/antifrizz>, em 26 de
junho de 2009.
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Fonte: Revista Corpo a corpo, ano XIX, n. 209, p. 10.
Essas transformações ocorrem nos salões de beleza, entendidos por Santos (2000) como
locais que auxiliam o negro(a) a criar uma estética “alternativa”, elaborando e reelaborando uma
autoimagem, o que vai de encontro ao modelo de representação dominante nas sociedades
ocidentais. Nesses locais, o ideal de beleza é uma unidade por ser oposto ao ocidental, mas é
fragmentado por apresentar traços e detalhes que retomam o modelo branco de estética do
mercado.
Como parte importante para a composição da beleza, os cabelos crespos são submetidos
a tratamentos como ferro quente, pastas alisantes, dread locks, tranças rastafari e outros
processos para atingir o aspecto ideal: lisos e compridos e para refletir o ideal branco de beleza.
Para Santos (2000, p. 56), isso acontece porque “deixar o cabelo crescer naturalmente significa
reconhecer a origem africana”, uma vez que o cabelo negro é diferente do modelo eleito pela
mídia. Logo, ter cabelos que são aparentemente mais secos, que têm pouco brilho, que não são
maleáveis remete à ideia de pouco cuidado com a aparência.
Entretanto, o salão pode ser um local de afirmação da beleza negra, de suas
características e escolhas; podem ser pontos de reflexão para a criação ou a disseminação da
“consciência negra” e da afirmação da identidade negra ou podem “mais que fazer o cabelo,
fazer a cabeça” (SANTOS, 2000, p. 58). Com relação ao modelo de beleza negra, Santos (2000,
p. 51) esclarece que a “beleza negra” teve sua formação nos anos de 1970 e se solidificou na
década de 1980. Nessa época, um dos fatores mais relevantes foi a criação de bonecas negras.
Essa produção é significativa para a formação da identidade de crianças negras, visto que, nas
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brincadeiras, elas podem se identificar com um modelo e se verem representadas de forma
natural, descartando as bonecas tipo Barbie, que reforçam o padrão de beleza branco. De outro
lado, somente no mesmo período (1970–1980), apareceu a preocupação das indústrias em
produzir maquiagens e produtos de beleza para a estética da mulher negra.
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