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FOLCLORIZACAO EM PORTUGAL: UMA PERSPECTIVA Saleva El-Shaznan Castelo-Branco¢ Jorge Freitas Branco A folclotizagio é um fenémeno cultural da modemidade. Operando com as ‘nogdes de foictorismoe de folclorizagao, presente obra pretende equacionar 1s parametros de um: processo que conduziu a mobilizagio eintegracio das populagies rurais na nagao, Este efeito integrador estender-se-ia também a didspora lusa. Enguanto 0 foleorismo engloba idelas,atitudes e valores que enalte- cema cultura popular eas manifestagbes nela inspiradias, por folelorizagao entende-se o proceso de construcao e de institucionalizacio de praticas performativas, tidasportradicionais, constituidas por fragmentos retirados + dacuiltura popular, em regea, rural. O objectivo é representartradicao duma Tocalidade, duma regio ou da nagao. Em finais dos anos 30, institucionali- za-se a pritica do foiclore, um campo social no sentido bourdiewano, dotado de mecanismos de 2rodugio e de instrumentos de regulagao orientados para. fabricar exibigbes publicas (msi, danca,traje). Nomesmo period, ‘e depois com a instauragéo da democracia, constituem-se mais universos performativos centrados em representar tradicio. Distinguem-se do folclo- ze pelos contetidos (cante alentejano) ou pela abordagem (grupos urbanos de recriagio, GUR). ‘Uma perspectiva mltipla presidiua organizacio do volume: abordaro folclore como cultura expressiva, avaliar 0 seu papel na sociedade e apresen- tar elementos para facultar uma visio comparada. Os capitulo tratam os se- ‘uintes t6picos: politicas da cultura, eventos, constituicdo de patrimGnios,as- sociativismo, representagio da tradicao, protagonistas, artefactualidade, lu- {gares, turismo, didspora. Aamplitude das abordagens adoptadas nos artigos resulta da filiagSo dsciplinar variada dos seus autores: antropologia, etno- smusicologia, historia, musicologia historia, performance studies, sociologia, Distribuindo cs textos pelos grandes perfodos hist6ricos convencio- rads para o século XX portugues, configura-se 0 panorama seguinte. O pe- odo anterior a Primera Repiiblicaé abordado num tinico artigo. Ao Estado 2 vous n0 010 Novo e ao pés-25 de Abril stio dedicados 14 artigos para cada um clos perio. dos, respectivamente. Juntos perfazem dois tergos da obra. A parte restante composta por estudos que abarcam mais ce um dos periods contemplados; so as continuidades. Ponto de partida deste livro foi o projecto “A revivificacio do patriménio tradicional expressivo em Portugal no século XX", financiado pela FCT e pelo Instituto Camdes no ambito do programa Lusitinia Plus /Cul/ 1163/95), reali- zadono Institutode Etnomusicologia (INET) da Faculdade de Ciéncias Sociaise ‘Humanas da Universidade Nova de Lisboa e orientado por Salwa El-Shawan Castelo-Branco. A presente publicagao articula materiais do projecto, alguns de- Jes ja divulgados (Castelo-Branco, Neves & Lima 2001, Castelo-Branco & Lima 1998, Branco 1999, 199%, 2001), com pesquisas terminadas ou em curso, de ou {ros investigadores. A concretizacao desta tltima etapa contou com oapoio dec sivo do Instituto Portugués das Artes do Especticulo (IPAE, Ministério da Cul ‘ura),a quem os autores exprimemo seu agradecimento, Além disso, os recursos disponibilizadospela unidade de investigagso Dep ANT (SCTE) e por Patrimo- nia Associagio de Projectos Culturais e Formagao Turistica representaram de igual modo um auxilio fundamental para atingit 0 objectivo em vista, Agrade- ce-se ainda a AntGnio Medeiros, Anténio Tilly, Augusto Santos Silva, Bela Feldman-Bianco, Carlos Teixeira, Catarina Alves Costa, Eduardo M. Dias, Femando Jasmins Rodrigues, Graga Indias Cordeiro, Joao Nelson Verissimo, 1A discussao crcunstanciads da nogfo de folltismo deu origem a uma bibligrafa, fbundante. No que espeltaa livros mals recentes, iam, a tla exemplificatv, Mart (980) sobre a Cataluahse debrugando-se sobre plicao da nog, ou Karn ‘ou (1990: 13-172), retratando aspects do fenémeno na Koménia comtemporsnen A problematizarto do foldorisme, visto como fenémeno da modernisade, date do inicio {a década de 1960 fo elt por alemes. Constitvem una referencia cs textos de Hans ‘Moser (1962 «de Hermann fausinger (1961, 1968) Ohistorial prmenorizado desta ‘assim como o papal desempentiad pea deavtentcklade no evolu diciplina (ee fdas olclerieo,estidoseulturas oe) na Alemania e nos EUA ftom vias publ ‘acts dos limos anos, sendo de destacar Regina Bendix (1997 eB, Kirshenblat-Gian- ‘lett (1998). tes dois studos emo merto de preporconas em ingusinges, una Siode conjuntoaprofundada dos debates corridos no context interno ale, re sradesconheidosfora dos plsesda Europa Cena. Aandlise de process de trai ‘allzagio, em geral, muito deve aoe cnceitos de “invengSo da tadisio" de L. Hobe baveme Ranger (1982) ede “objctifieaiocultura” (Horley, 188 lle de Lene Kin 198) Nalteratura ctnomusicoldgicn tense operado, em rep, coma nogio deter vitieagao musical (misc reviva, que se define como mt movimento socal orentado Paraa recuperate deum sistema musical lo por desaprecc para sr desfutado 0 rte. Anda de acordo com T. Livingston revivifeagiocarcteriaa-se por) pre Sancadeindividuos milittes da causa b existéncadeinformantes ou fonteniginls, © ideologiae dscurs revivalist) constisigho dma communidade revivalist, act ‘Vidoes oganzadas,)onganizagto comercial assciada ao mercado evivalsta Living son 1999: 66-6). As das abordagens distinguentsepelamaiorabrangincia da segunds em elagio primeita,na medide em que folcloriamose reportaaelagio dacs po plar com as cuteas camadas ds poptlase, oe et = OACLORIZAGAO MA PORTUGAL IMA PIRSA 3 Joio de Pina-Cabral, Jos Soeiro de Carvalho, Jorge Crespo, Maria de Lour- des Lima dos Santos, Maria Rosette Almeida, Onésimo T. Almeida, Paulo LLeme, Rafael de Menezes Bastos e Walburga Mannemann-Maldonado. Duas imagens Acxibigio de folcore ea sessdo de fado a seguir descritas evocam universos folelorizados, podendbo ser visios como representagées de um lugar e do pais, respectivamente. [Nas noites de verdo, em muitascidades evilas portuguesas, com espe- cial incidencia nas zonas de afluéncia turistica, organizamse programas de animacio 2o ar livre, que cativam residentes, turistas e emigrantes de férias na terra natal, O programa inchui um espectaculo folclérico. Comparado com as outras praticas performativas que, ao longo da noite, se irdo suceder no ppaleo, 0 folclore ocupa menos tempo; a actuago no excede em regra os 20 ‘minutos. A preseria no palco de ranchos folel6ricos faz parte da expectativa daassisténcia, embora nao proporcione o ponto alto da noite. E mera compo- nentenum programa, queculmina coma presenca dum cangonetista ou dum fadista, anunciados como cabesa de carta7, Para além destas ocasites, os gru- pos foleléricos dispdem de um circuito especializado de exibigdes, comagen- da preenchida por festas,festivais, concursos e encontros de folclore, actua- es em restaurantes e hotéis ‘Aesteenquadkamento de localidade pode-se contrapor outro, No seu til- timo romance, intitilado Uma Noite em Lisboa (Die Nacht von Lisbon, 1962), Erich Maria Remarque descrevea angiistia vivida pelos refugiados que duran- tea Segunda Guerra Mundial chegaram a capital portuguesa na esperanca de cembarcar para a América. Hié cenas passadas num dancing, onde o tango e 0 Jax-trotexecutados por uma orquestraalternam coma actuagéo de uma fadista, Este aspecto viria a ser enfatizado na posterior adaptagio do romance a0 cino- ‘ma, No filme (RFA, 1970-71) o fado ¢ interpretado por Amalia Rodrigues. Vis- tos do exterior, aos olhos de estrangeiros, a cidade e o pats amalgamam-se ‘numa massa formada pela ambiéncia de espectéculos nocturnos, ance sia ‘vor masculina ou feminina se faz ouvir acompanhada a guitarra ¢ viola, Da comparacto das duas imagens ressaltam o desfasamento temporal e a diferenga na comosigao da assisténcia, havendo ainda outros aepectos & sublinhar. Nas exibigBes flcl6ricas encena-se a alegria eo colorido da viven- cia rural, enquanto pelo fado se transmite dor e softimento, que exprimem emocdes, personagens, eventos e ambientes urbanos. 4 vomsp0rev0 micas do folclorismo ‘Desde finais do século XIX faz-se notar o empenhamento de grupos de inielectuais em difundir na opinito pablia uma matéria, que designam {Plclore, cultura popular eu tradig6es populares, pugnand pelo sew apro- fundamento entren6s. Paracles,trata-se deumactocivicoem prol doaport guesamento da cultura, Folclorendo seconfinaa tema decincia, nema patriménio rural supos- {oautentico e arcaico, Existem indicasGes muito anteriores sobre exibigoesde Qutra mencao alude a tm espectaculo dos Pauliteitos de Miran, da do Douro, em Lisboa, ne ano de 1888, por ocasifo docentenérioda langada de Vasco da Gama para a India (Mourinho 1983). Os dois eventos mostenn ‘ue especticutos de miisicaedanga popularesinterpretados por componeses io sto um fenémeno do século XX. Os fesultados do inguérito efectuado, gm 1999, aos grupos de mtisica tradicional (GMT) pelo INETem colaboragi com o Observatério das Actividades Culturais (OAC) (Castelo-Branco, Ne. es & Lima 2001) confirmam este dado, ao remeter a formagao dos grupos ‘mais antigos para o dltimo quartel do século XIX. Desde as dltimas décadas de oitocentos que nos meios aristocréticos ¢ burgueses se intensificava 0 gosto em organizar divertimentos, tals come bales de méscaras e serbes musicais, onde o disface eas vestes de inspira, $80 no popular tinham presenga assidiua, A indumentatia foi o dominio an, {efactual visado por exceléncia, Atesta-oa grande difusao de bilhetes pos: tals ilustrados com as jovens retraladas envergando trajes camponesee de Scosises festivas (Medeiros 1995, 1999). Nos guarda-fatos das casas burgute- sas esto pendurados exemplares dessa indumentétia, que as menos uusam pelo Entrudo, O habito vem da corte, onde para o baile de 1865 a rai hase disfarcou de varina da Murtosa (Teixeira 1994: 86-87). Estas mascara dasnada tema ver com os arraiais (Dias 1970, Sanchis 1983), onde popula. so se divert O mundo sural, como fonte de inspiracao criada pelo romantismo, tor- parse modi, tanto em espectéculos teatrais, como na pintura, na arquitectra ou na criagao musical erudita, Os actos puiblicos solenes integra com fre, quéncia crescente, cenas colhidas em contextos subalternos. Fe que’se obec. va ny ciclo comzmoracionalista iniciado em 1880 com o cententario de Cy ‘modes (Catroga 1998: 226-230) ou nas visitas reais (Branco 2001), Acompilagio de cancioneirose romanceiros, de contos ¢lendascom ob. Jpetivos pecagspicos, colhidos da tradigao oral foi outra preocupacio da épo. ‘<2, conforme se verifica em muitas publicagées de Teétilo Braga (1869) ou ce 2 Ver astgo nese volume sobre Caos M. Santos, FOLCLORIAGAD EM FOHTUCAL:IAMAFERSEC TVS 5 B. Adolfo Coelho (1998). De igual modo publicam-se transcrigdes ¢ arranjos dle miisica popular raral e urbana para piano ou canto e piano, destinados a alimentar o citeuite dos sal6es. O primeiro cancioneiro que seconhece foiedi- tado em 1857 por Joio Ant6nio Ribas, que fot director da orquestra do Teatro

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