Você está na página 1de 9

O PHÁRMAKON

de JACQUES DERRIDA
Elzahra Osman1

“Antecipemos. Desde já a escritura, o phármakon, o descaminho”


“o rastro cortante, a decisão de cada leitura”
Jacques Derrida, A farmácia de Platão.

Resumo: Este artigo investiga o mote filosófico que levou Jacques Derrida a desenvolver
a sua Filosofia, qual seja, a escritura e desconstrução vistos como os indecidíveis últimos
na análise do texto, e das instituições lingüísticas. Para tanto, além de percorrer algumas
destas formulações, este artigo procura deslindar as chaves da escritura derridiana com fim
à análise de como o modus operandi de sua filosofia opera para a não objetivação do texto.

Palavras-chave: Escritura. Jacques Derrida. Metafísica. Retórica.

Assim que comecei a formular o texto deste também pelo seu caráter sedicioso; e este só
artigo tive sempre a certeza de que queria se compreende pela recepção da irredutível
escriturá-lo aos mais próximos, próximos à escritura.
literatura, próximos à filosofia, aos amigos Com o pensador franco-argelino, Jacques
próximos, antropólogos, artistas e teóricos Derrida, designou-se este processo de revisão
de modo geral. A pergunta que subsidia este da leitura e da escritura de desconstrução
desejo é - por que a revisão, realizada pela porque ainda há que se ler o que ficou de fora
Teoria Francesa, dos processos metodológicos da história da filosofia quando entra em cena
em ciências humanas, e, principalmente, da a mal falada, mas bem fadada metafísica. Em
práxis política, passa por uma proposta de “Carta a um amigo japonês” (1998), Derrida
leitura e escritura divergente do modo como a alude à desconstrução como sendo um gesto
tradição da crítica literária, filosófica e política estruturalista, mas também anti-estruturalista:
engendrou a persecução do sentido último
do texto? Responder a esta pergunta é uma Tratava-se de desfazer, descompor, desse-
responsabilidade ética exigida ao intelectual; dimentar as estruturas (todas as espécies de
afinal, para além da máxima ‘o pessoal é político’, estruturas, lingüísticas, ‘logocêntricas’, ‘fono-
é preciso justificar o exercício de gabinete cêntricas’ – o estruturalismo sendo então do-

ConTextura, Belo Horizonte, no 8, jun. 2016, p. 11-19.


12 Contextura 2016 | Elzahra Osman

minado, sobretudo, por modelos lingüísticos, da tal como ele é, mas contribui para fazer com
lingüística dita estrutural que se dizia também que ele seja por meio de seu dizer: sua palavra
saussuriana, socioinstitucionais, políticos, cul- “realiza”, e por isso é cercada de desejo e temor
turais e, sobretudo, e antes de tudo, filosóficos). e protegida da linguagem ordinária por seu
(...) Mais que destruir, era preciso também cerimonial (WOLFF, 1996, p. 70).
compreender como um ‘conjunto’ tinha se cons-
truído e, para isso, reconstruí-lo (DERRIDA, A oposição que estabelece Wolff entre um
1998, p. 21). saber corporificado no detentor do poder da
palavra - o adivinho, o poeta, - e outro que
E assim o fará, pois a principal fonte da des- floresce na democracia e compõe a noção de
construção derridiana será os textos que com- igualdade entre os seres humanos, e, portanto,
põe uma específica tradição de pensamento, referente à noção relativista, ou sofística da
a tradição metafísica da filosofia, do discurso verdade, permite que encaminhemos nossa
mimético, por fim, da significação. O discur- problemática sobre o uso do texto para duas
so racional, cavalo alado apto à condução em investigações fundamentais para a compreensão
direção à verdade - que sacralizado com o sur- da desconstrução derridiana: a primeira diz
gimento da filosofia, e por isso mesmo, fonte respeito à revisão da ideia de apreensão de um
da eterna busca do discurso - será legatário do objeto de conhecimento pela via especulativa,
pensamento dialético, do uso clássico da cadeia antes que mágica, poética, literária ou religiosa,
argumentativa, coerente e coesa. Francis Wolff portanto fundamentada no princípio de
(1996), ao fazer a revisão das origens do pen- razão universal; e a segunda concernente ao
samento ocidental, delineia o estatuto sagrado modo como a linguagem é utilizada neste
da linguagem e da verdade como anterior ao empreendimento. A acepção de produção de
surgimento da filosofia, e anterior à lingüísti- pensamento em Derrida impossibilita que
ca saussuriana da prevalência do significante o conteúdo seja sobrevalorizado em relação
sobre o significado. Nesta passagem poética, à forma, pois a forma prediz o conteúdo.
porque talvez inspirada neste não-lugar da A linguagem que transforma a metafísica
verdade, ele nos diz: em técnica (Derrida, 1999), não serve à
desconstrução. Essa é acusada, por vezes, de
Cabe ao poeta dizer o que verdadeiramente ser o discurso de uma retórica vazia, quando
foi: sem sua palavra, os altos feitos dos homens na verdade o uso retórico da linguagem é que
mergulham no não-ser; através dela eles são, impossibilita a redução do objeto impossível,
tendo sempre sido. Ao contrário do que fará anulando toda e qualquer possibilidade de
o historiador clássico, o poeta arcaico não diferença como concebida pela metafísica, ou
busca dizer o que foi tal como pôde estabelecê- seja, anulando também a tradicional concepção
lo consultando e criticando as fontes, mas o de identidade. Daí a diferença ou différance em
estabelece pela escansão repetida e captadora Derrida não poder ser acusada de representar
de seu dizer, eco de todos os ditos, cuja beleza mais uma vez a concepção de alteridade em
sublinha a verdade. O adivinho, outro mestre da metafísica: não existe diferenças, quando não
verdade, diz de maneira uniforme o que foi, é existe identidade; apenas a radical constatação
ou será. Mas, contrariamente ao físico da época da diferença como rastro. A différance, então,
clássica, que do mesmo modo diz a natureza nas linhas derridianas:
sob a forma do eterno, ele não busca dizer o ser
O Phármakon de Jacques Derrida | Contextura 2016 13

Trata-se de produzir um novo conceito de não se empreende pela constatação da falsidade


escrita. Pode-se chamá-lo gramma ou diffé- da metafísica, mas pela sua sobrevolarização, e
rance. O jogo das diferenças supõe, de fato, isto o texto o diz. A desconstrução se faz pela
sínteses e remessas que impedem que, em algum escritura, a escritura pela desconstrução.
momento, em algum sentido, um elemento
simples esteja presente em si mesmo e remeta A palavra ‘desconstrução’, como qualquer
apenas a si mesmo. Seja na ordem do discur- outra, não extrai seu valor senão de sua inscri-
so falado, seja na ordem do discurso escrito, ção em uma cadeia de substituições possíveis,
nenhum elemento pode funcionar como signo naquilo que se chama, tão tranquilamente, de
sem remeter a um outro elemento, o qual, ele um “contexto”. Para mim, por tudo que já tentei
próprio, não está simplesmente presente. Esse ou tento ainda escrever, não há interesse senão
encadeamento faz com que cada “elemento”- em um certo contexto em que ela substitui ou
fonema ou grafema- constitua-se a partir do se deixa determinar por tantas outras palavras,
rastro, que existe nele, dos outros elementos da por exemplo: ‘escritura’, ‘traço’, ‘différance’,
cadeia ou do sistema. Esse encadeamento, esse ‘suplemento’, ‘hímen’, ‘phármakon’, ‘margem’,
tecido, é o texto que não se produz a não ser na ‘encetamento’, ‘parergon’ etc. (DERRIDA,
transformação de um outro texto. Nada, nem 1998, p. 24).
nos elementos nem no sistema, está, jamais,
em qualquer lugar, simplesmente presente ou A desconstrução, ou a differánce, traz à ex-
simplesmente ausente. Não existe, em toda periência sua facticidade linguageira, e ao texto
parte, a não ser diferenças e rastros de rastros sua facticidade experimental, mas nem por
(DERRIDA, 2001, p. 32). isso dizível; a escrituralidade da experiência
nos deixa mudos à ‘prudência metodológica’,
Do que falamos aqui se não da impossibi- ‘às normas de objetividade’, ‘e aos baluartes do
lidade de circunscrição da verdade dentro de saber’.
um sistema de pensamento? Isto se diz, mas
como se diz dentro da vastidão linguageira, A desconstrução tem lugar, é um aconteci-
isso é a escritura. Julian Wolfreys (2009), autor mento que não espera deliberação, a consciên-
de Derrida, a guide for the perplexed, escreve cia ou a organização do sujeito, nem mesmo da
que o filósofo nos convida a observar mais de modernidade. Isso se desconstrói (DERRIDA,
perto os mecanismos pelos quais o referente 1998, p. 23).
se dissipa e o conteúdo é sempre diferido pela
própria escrita (WOLFREYS, 2009, p. 110), e Derrida não pode nos dar uma fórmula do
também a desmistificar a desconstrução. bem fazer a filosofia, o pensamento ou a teo-
ria porque ele não pode dizer a priori como o
Ele não procura desestabilizar a ordem do “objeto” se comportará: esse está presente ou
mundo (...), mas chegar à desordem do texto, ausente, é passivo ou ativo? Antes que pro-
à sua impossibilidade primeira, ao impossível curar substituir um discurso de verdade por
do qual emerge (WOLFREYS, 2009, p. 112). outro, sacralizado ou legitimado pelos insti-
tutos democráticos e/ou acadêmicos, Derrida
O referente deixa a primazia que teve no pretenderá, em sua leitura e escritura, que as
pensamento metafísico, se transformando no fendas dos textos possam se mostrar. A fenda
rastro do rastro significado. Movimento que ou o rastro nada mais é do que a construção
14 Contextura 2016 | Elzahra Osman

de um pensamento que se faz junto ao obje- uma das acepções de logos além daquela
to, mas também para além dele, visto que a tradicional traduzida em razão, palavra,
transcendentalidade ou o idealismo ainda nos discurso) a predominância do discurso
obriga a procurar os limites, os significados, e de verdade frente à escritura, a sociedade
a finalidade do signo petrificado e isolado em ocidental se construiu pela letra, talvez não a
um significante ou mesmo em um discurso. despeito do logos, mas devido a ele; e por este
investimento no texto ser tão importante é
O que permanece não lido, portanto, não é que os pesquisadores das instituições sociais,
aquilo que o futuro sustenta como a promessa políticas, culturais, identitárias ou diferentes,
final de fechamento da leitura. É aquilo que não podem se imiscuir do texto. Claro,
está sempre por vir, sempre vindo a qualquer texto não é apenas o texto escriturado, mas
momento dado de leitura (WOLFREYS, 2009, também todos os institutos de linguagem,
p. 59). constituídos dos traços que serão deslindados
para constituírem outros traços.
A différance talvez seja um irredutível Aqui, me permitirei uma breve divagação.
inapreensível, e como irredutível, esta é a sua Meu interesse pelo texto surgiu quando do
função, não se deixar objetivar. Exatamente estudo das teses de teóricos políticos brasilei-
porque não o podemos inserir dentro dos ros do início do século XX deparei-me com
conceitos de identidade, unidade, diferença, sugestões explícitas e recorrentes de críticos
mesmo e outro, engendrados pela metafísica, desta referida literatura que alegavam ter o
torna-se difícil para o pensamento represen- texto escrito (as teorias políticas) dado ensejo
tacional compreender isto. Isto, pronome que a todos os regimes ditatoriais vividos no Brasil
Heidegger utiliza quando pretende escapar à nesse último século. Para além das próprias
metafísica, enquanto isto continua se inscre- instituições políticas criadas pelas cartas au-
vendo na relação a outros istos, e diz o espectro toritárias, estes teóricos teriam instituído uma
da tradição, escapa de vir a ser um isso: ele não república, um povo, uma nação, uma cultura,
representa um objeto real ou um nome porque pelo texto. Quase esses críticos negam uma re-
só pode dizer o seu rastro, ele é antes o pró- alidade além texto que dialogaria com os assim
prio rastro linguageiro, pronto a riscar outros chamados autoritários da república: esses nada
traços. Daí isto não ser ainda a única revisão, deviam à realidade quando a escrituravam.
de forma e conteúdo, que faz a política-poética Onde na letra ou fora da letra poderíamos ler
(ou o pensamento contemporâneo) do como isso? Como não querer saber do texto mais do
vamos nos ver com os vários discursos de ver- que ele pretende nos dar? Então, novamente,
dade, sejam esses científico, psicanalíticos ou deparei-me com outra crença, a do poder
filosóficos: o recuo da metafísica ainda é preci- perturbador da escritura e da linguagem; em
so ser compreendido pela revisão engendrada tempo de suspeitas, por vezes desmesuradas, é
no modus operandi do texto escritural, ou do bom que nos sobre alguma coisa, porque, afi-
por que ele passa pela revisão da concepção nal, dizem, diz Derrida, mesmo os escombros
clássica do signo. Isto, ainda se quer pensar, são matéria para o porvir.
mas com a linguagem. Quero citar excertos de Roland Barthes,
Ora, a primeira resposta, e mais óbvia, é retirados de seu ensaio “O Prazer do Texto”
que embora o logocentrismo, como nos diz (2006) que subsidiam esse outro texto sendo
Derrida, tenha relegado à fala (que é também agora escriturado:
O Phármakon de Jacques Derrida | Contextura 2016 15

Por fim, o texto pode, se tiver gana, inves- do inaudito, barthesianamente, talvez seja a
tir contra as estruturas canônicas da própria que mais se aproxime do que Derrida chama
língua, o léxico (neologismos exuberantes, de os pontos cegos do texto: os deslocamentos
palavras-gavetas, transliterações), a sintaxe que a textualidade oferece através da leitura
(acaba a célula lógica, acaba a frase). Trata-se, desconstrutivista. Cito novamente Barthes:
por transmutação (e não mais somente por
transformação), de fazer surgir um novo estado Seria bom imaginar uma nova ciência
filosofal da matéria linguageira; esse estado lingüística; ela estudaria não mais a origem
inaudito, esse metal incandescente, fora de das palavras, ou etimologia, nem sequer sua
origem e fora de comunicação, é então coisa difusão, ou lexicologia, mas os progressos de
de linguagem e não uma linguagem, fosse esta sua solidificação, seu espessamento ao longo
desligada, imitada, ironizada (BARTHES, do discurso histórico; esta ciência seria sem
2006, p. 39). dúvida subversiva, manifestando muito mais
que a origem histórica da verdade: sua natureza
O texto que investe contra as estruturas retórica, linguageira (BARTHES, 2006, p. 52).
canônicas da própria língua, ou em outras
palavras, que subverte a ordem no nível da lin- E Derrida:
guagem, é o texto cuja retórica lexical, sintática,
se apresenta como sendo seu elemento estético A linguagem risca, traça e inscreve uma
de escritura, antes que pela premente função narrativa por vezes oculta; a lei de um texto
de comunicação. Esse inaudito faz “surgir um se escreve sob a espectralidade da tradição, lá
novo estado filosofal da matéria linguageira” atrás algumas de suas teias foram tecidas; o
porque a própria linguagem diz sua matéria movimento produzido a cada nova leitura do
filosofal, porque ela pode revelá-la repetidas signo em sua cadeia significante,é a presença
vezes, porque só a linguagem tem o poder de do texto (e a ausência do autor?), a sua
desdizer a própria linguagem, porque a diz de différance. O pensamento da diferença não
modo diferente a cada vez que pretende dizer, e recorre aos institutos metafísicos da defesa de
a isso chamam literatura, mas também filosofia, um mesmo e de um outro, de uma identidade
mas também poesia, mas também escritura. e de uma diferença, de um fora e um dentro e,
Recorrer à desconstrução é procurar escapar finalmente, de uma unidade onde todos estes
aos efeitos perversos do significado totalizante institutos comporiam uma só e mesma coisa;
de um texto, portanto; sem deixar de conside- outrossim, o pensamento da diferença realiza
rar a potencialidade da linguagem, ‘sua matéria de modo radical a impossibilidade de sua
incandescente’, porém. Já que a desconstrução própria representação. A identidade só pode
não pode ser reduzida a um programa ou a um nomear a sua própria diferença, o phármakon
instrumento metodológico, o texto deverá su- é o mesmo porque é tanto remédio quanto
gerir onde encontrar o não-dito da linguagem, veneno. Esse Phármakon, esse filtro, ao mesmo
pois que é lá onde se encontram as suas fendas; tempo remédio e veneno, já se introduz no
a retórica é, assim, tanto um artifício quanto corpo do discurso com toda sua ambivalência –
inerente à essência linguageira, remete-se a si substância de virtudes ocultas, de profundidade
mesma, heideggerianamente. Aludir a uma críptica, recusando sua ambivalência à análise,
retórica do não-dito é já uma retórica, pois essa “o que resiste a todo filosofema, excedendo-o
categoria, que chamamos aqui de uma estética indefinidamente como não-identidade, não-
16 Contextura 2016 | Elzahra Osman

essência, não substância, e fornecendo-lhe, por do desvelamento da verdade da palavra velada


isso mesmo, a inesgotável adversidade de seu em sua origem, e está menos ainda preocupada
fundo e de sua ausência de fundo” (DERRIDA, com a prevalência do significante sobre o sig-
2005, p. 14). nificado. Ou também do que poderíamos vir a
chamar de o medo da escritura que a tradição
Só há repetição possível no gráfico da suple- de pensamento possui desde Sócrates, pois que
mentaridade, acrescentando, na falta de uma se a fala viva é a mais apropriada à dialética,
unidade plena, uma outra unidade que vem a escrita não virá mais a interrogar seu autor:
supri-la” (DERRIDA, 2005, p. 122).
A desconstrução do signo pôde se afirmar
E Filosofia também pode ser isto, mas isto insistindo nisto que a metafísica pensa como
não é tudo: ainda, isto se faz de dentro do texto. uma certa materialidade ou exterioridade do
Ler um texto ao modo do texto é ser fiel a sua significante. Mais genericamente, a descons-
tessitura, ao rastro, que como a escritura, não trução se esboça esforçando-se por apresentar
pode ser definido por uma categoria conceitu- como primário aquilo que a metafísica diz ser
al, mas é compreendido dentro dos limites da secundário. Se a metafísica constrói o signo em
experiência do traço que diz a presença, em seu geral como secundário, ela pensa a escritura
caráter espacial e temporal, e traz subjacente como ainda mais secundária, como o signo
em seu dizer já o não-dito. A pergunta que desse signo ou, mais precisamente, como o
parece fazer e desfazer a própria desconstrução significante (gráfico) do significante (fônico)
é: pode-se além da linguagem ler lá onde essa (BENNINGTON E DERRIDA, 1996, p. 38).
não mais está?
O “espessamento das palavras ao longo do
A escritura parece constituída para dizer discurso”, isto importa porque apenas nisto
algo, mas ela só é feita para dizer ela mesma. está qualquer possibilidade de compreensão,
(...) Assim sendo, a escritura inaugura uma não de uma verdade originária que vem sendo
ambigüidade, pois mesmo quando ela afirma, deslindada ao longo dos séculos pelo discurso
não faz mais do que interrogar. Sua verdade racional, mas daquela que nos permite ler hoje
não é uma adequação a um referente exterior, o texto de hoje, e escriturá-lo ao modo do tex-
mas o fruto de sua própria organização, resposta to. Dito de outro modo, os filosofemas cedem
provisória da linguagem a uma pergunta sem- lugar ao seu outro, à escritura. “A desaparição
pre aberta (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 33). da verdade como presença, o se furtar da ori-
gem presente da presença é a condição de toda
Assim, este novo estado “filosofal da maté- (manifestação de) verdade. A não verdade é a
ria linguageira”, esse estado inaudito, fora de verdade. A não presença é a presença. A dife-
origem e de comunicação de que nos fala Bar- rência, desaparição da presença originária, é,
thes não está inscrito na busca de um horizonte ao mesmo tempo, a condição de possibilidade
de sentido, que se configuraria novamente e a condição de impossibilidade da verdade”
numa metafísica, mas no movimento em que (DERRIDA, 2005 p. 121). A desconstrução,
a linguagem abre a possibilidade do reconhe- como leitura e como texto, é permitir que a
cimento do inaudito como sua principal cate- linguagem chegue aos ouvidos, para além do
goria de análise. Ora, sua nova lingüística não sentido hermenêutico atribuído ao texto, mas
pretende nem fazer o percurso heideggeriano ainda rastreada – só o suplemento prediz a
O Phármakon de Jacques Derrida | Contextura 2016 17

repetição - está interessada assim na semea- O jogo de Derrida em seu ensaio “A far-
ção (de significados) a serem desvelados sob mácia de Platão” é a sua escritura, o seu phár-
o auspício retórico da linguagem, sob os es- makon. A lei de um texto não é nunca a preme-
paços vazios deixados por sua inscrição, que ditação do texto, até... Derrida. Sua escritura é
propriamente, e finalmente, pela pergunta que também, tese que quero defender, uma retórica
não deixa calar a Filosofia: Mas, finalmente, o sobre e com a escritura; e são exatamente estes
que o texto quer dizer? os rastros estéticos e/ou retóricos que ele nos
Como o inaudito os outros indecidíveis oferece pela sua leitura do diálogo platônico
derridianos que demonstram a operação retó- Fedro. As aporias, fendas e impasses de dentro
rica da linguagem perfazem a única encenação da estrutura do texto derridiano parecem ser
possível no texto: o jogo. O jogo encenado de algum modo proposital, pois que é está a
pela escritura é que subverte as certezas de característica do texto escritural: ter as teias
significado do texto até a radical constatação sempre abertas; não após leituras e leituras
da identidade como diferença. O texto perpas- pacientes, mas desde a primeira leitura. Roland
sado por traços e rasuras não exclui a tradição Barthes, em O grau zero da Escritura, aponta
imposta a menos de um segundo, que é esta da em seu ensaio algumas das características que
presença que se inscreve na leitura de um texto, pensa estar presente na linguagem poemática
e que se dá no jogo escritural. O jogo é o signo moderna, e que pode ser estendida para o
ao qual é preciso outorgar o sistema de todos indecidível escritural – como não para o texto
os seus poderes. Ainda, a crítica pensa dominar derridiano? Pois,
o jogo sem se arriscar a lhe acrescentar algum
novo fio. Acrescentar não é aqui senão dar a essa linguagem institui um discurso cheio
ler (DERRIDA, 2005, p. 7). Daí uma de suas de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências
primeiras frases em “A Farmácia de Platão” e de signos supernutritivos, sem previsão nem
(2005) não deixar de ser uma profissão de fé permanência de intenção e por isso mesmo tão
na escritura, pois que “é possível dizer tudo oposto à função social da linguagem, que o
em apenas uma página”, mas prosseguir ainda simples recurso a uma palavra descontínua abre
“por força do jogo”. E Barthes o reafirma na a via de todas as Sobrenaturezas (BARTHES,
figura do escritor: 2006, p. 45).

Como criatura de linguagem, o escritor O jogo do phármakon derridiano nos con-


está sempre envolvido na guerra de ficções (dos duz a conhecer aquilo que pensa abrir para a
falares), mas nunca é mais do que um joguete, escritura, transversalmente à desconstrução
porque a linguagem que o constitui (a escritu- do texto platônico, antes que por qualquer
ra) está sempre fora de lugar (atópica); pelo definição conceitual. Senão porque Derrida
simples efeito da polissemia (estádio rudimen- conduziria o leitor por páginas em que os
tar da escritura), o engajamento guerreiro de efeitos nefastos da escritura são descritos
uma fala literária é duvidoso desde a origem. por Sócrates, aqueles mesmos efeitos que só
(...) E é bem isto o intertexto: a impossibilidade a representação de uma representação pode
de viver fora do texto infinito – quer esse texto causar, para finalmente compreendermos que
seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de as atribuições pejorativas que ele desvela pela
televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a boca do filósofo grego são, para Derrida, an-
vida (BARTHES, 2006, pg. 44-45). tes, a potencialidade da linguagem? A isto que
18 Contextura 2016 | Elzahra Osman

Derrida chama “a dissimulação da textura, o escritura de Platão: “numa organização mais


pano envolvendo o pano”, permite que com- secreta dos termos, dos nomes e das palavras
preendamos os motivos socrático-platônicos – mas também dos discursos, do texto e de sua
de sua desconfiança: a escritura dissemina o tessitura” se tecendo, mas se imiscuindo em ser
que a fala cala, pois para Platão o discurso é até a última página.
uma entidade vívida, filha dileta do logos, en-
quanto a escritura deixará sempre aberta suas A ‘metáfora’ escritural intervém, pois, cada
teias de apreensão e reconstrução. No entanto, vez que a diferença e a relação são irredutíveis,
segundo Derrida, cada vez que a alteridade introduz a determi-
nação e põe um sistema em circulação. O jogo
por um lado, Platão tende a apresentar a do outro no ser, Platão é obrigado a designá-lo
escritura como uma potência oculta e, por con- como escritura, num discurso que se queria fa-
seguinte, suspeita. (...) Confirma-se em seguida lado em sua essência, em sua verdade, e que, no
que a conclusão do Fedro é menos uma conde- entanto, se escreve (Derrida, 2005, p. 118).
nação da escritura em nome da fala presente
que a preferência de uma escritura a outra, de Então aqui estamos falando de duas retóricas
um rastro fecundo a um rastro estéril, de uma adjacentes ao texto derridiano, àquela que se
semente geradora, porque depositada no dentro, refere ao próprio texto escritural, Fedro, e que
a uma semente gasta no fora em pura perda: no Derrida deslinda com grande vigor e àquela re-
risco da disseminação (DERRIDA, 2005, p. 101). ferente aos encaminhamentos a que ele mesmo
dá a sua escritura, e que alude a transformá-la
Claro, tanto Platão quanto Derrida ob- no mais fiel possível espelho do phármakon.
servam o phármakon em seus malefícios e A descrição do texto platônico realizada por
benesses, tão comensuráveis quanto na fala. Derrida:
Ambos estão a serviço da linguagem; mesmo a
fala está a serviço de uma escritura: que pensa Simplesmente, suposto que as articulações
rastros de rastros. É isto que acaba por salvar sejam rigorosas e prudentemente reconhecidas,
a escritura, já que ela não terá mais lugar em deve-se poder liberar forças de atração ocultas
nome da verdade: ligando uma palavra presente e uma palavra
ausente no texto de Platão. Uma tal força, sendo
Em poucas palavras, ‘escritura’ implica re- dado o sistema da língua, não pode deixar de
petição, ausência, risco de perda, morte; mas pesar sobre a escritura e sobre a leitura desse texto
fala alguma seria possível sem esses valores; (DERRIDA, 2005, p. 79).
aliás, se ‘escritura’ sempre quis dizer significan-
te, que remete aos outros significantes, então É este o peso no sistema da língua que se
‘escritura’ nomeará propriamente o funciona- aplica ao seu próprio phármakon. Não há remé-
mento da língua em geral (BENNINGTON & dio inofensivo. O phármakon não pode jamais
DERRIDA, 1996, p. 38). ser simplesmente benéfico, como remédio ele
também possui suas vicissitudes, mas se pudés-
A escritura de Derrida é assim o jogo que semos neutralizá-los, os malefícios, estaríamos
se dá ao longo do texto A farmácia de Platão neutralizando o jogo escritural. E haveria vida
e que, por isso, parece camuflar a importân- pós-escritura?
cia de sua própria escritura em benefício da ConTextura
O Phármakon de Jacques Derrida | Contextura 2016 19

NOTAS
1. Graduada em Ciência Política e Filosofia, mestranda em Bioética pela Universidade de Brasília.
Pesquisadora-tecnologista em Informações e Avaliações Educacionais do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Inep.

Referências
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CUSSET, François. French Theory: Foucault, Derrida, Deleuze & cie et les mutations e la vie
intellectuelle aux Étas-Unis. Paris: Découverte, 2005.

DERRIDA, Jacques. Semiologia e gramatologia (entrevista a Julia Kristeva). In:  Posições. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.

DERRIDA, Jacques. Che cos’è la poesia? Trad. Piero Eyben. Mimeo, 2006.

DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.

 DERRIDA, Jacques. Carta a um Amigo Japonês. In: OTTONI, Paulo (org,). Tradução: a prática da
diferença. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

DERRIDA, Jacques. As Pupilas da Universidade: o Princípio da Razão e a Ideia da Universidade.


In: O olho da universidade. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Crítica e escritura. In: Texto, crítica , escritura . 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Pós-estruturalismo e Desconstrução nas Américas. In: ______ (org.). 


Do Positivismo à Desconstrução: Ideias Francesas na América. São Paulo: EdUSP, 2004.

PLATÃO. Fedro. In: Diálogos: Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. 2. ed. rev. Trad. Carlos Alberto
Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.

WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise. In: NOVAES, Adauto (org). A crise da razão.
Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 67–82.

WOLFREYS, J. Compreender Derrida. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

Você também pode gostar