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de JACQUES DERRIDA
Elzahra Osman1
Resumo: Este artigo investiga o mote filosófico que levou Jacques Derrida a desenvolver
a sua Filosofia, qual seja, a escritura e desconstrução vistos como os indecidíveis últimos
na análise do texto, e das instituições lingüísticas. Para tanto, além de percorrer algumas
destas formulações, este artigo procura deslindar as chaves da escritura derridiana com fim
à análise de como o modus operandi de sua filosofia opera para a não objetivação do texto.
Assim que comecei a formular o texto deste também pelo seu caráter sedicioso; e este só
artigo tive sempre a certeza de que queria se compreende pela recepção da irredutível
escriturá-lo aos mais próximos, próximos à escritura.
literatura, próximos à filosofia, aos amigos Com o pensador franco-argelino, Jacques
próximos, antropólogos, artistas e teóricos Derrida, designou-se este processo de revisão
de modo geral. A pergunta que subsidia este da leitura e da escritura de desconstrução
desejo é - por que a revisão, realizada pela porque ainda há que se ler o que ficou de fora
Teoria Francesa, dos processos metodológicos da história da filosofia quando entra em cena
em ciências humanas, e, principalmente, da a mal falada, mas bem fadada metafísica. Em
práxis política, passa por uma proposta de “Carta a um amigo japonês” (1998), Derrida
leitura e escritura divergente do modo como a alude à desconstrução como sendo um gesto
tradição da crítica literária, filosófica e política estruturalista, mas também anti-estruturalista:
engendrou a persecução do sentido último
do texto? Responder a esta pergunta é uma Tratava-se de desfazer, descompor, desse-
responsabilidade ética exigida ao intelectual; dimentar as estruturas (todas as espécies de
afinal, para além da máxima ‘o pessoal é político’, estruturas, lingüísticas, ‘logocêntricas’, ‘fono-
é preciso justificar o exercício de gabinete cêntricas’ – o estruturalismo sendo então do-
minado, sobretudo, por modelos lingüísticos, da tal como ele é, mas contribui para fazer com
lingüística dita estrutural que se dizia também que ele seja por meio de seu dizer: sua palavra
saussuriana, socioinstitucionais, políticos, cul- “realiza”, e por isso é cercada de desejo e temor
turais e, sobretudo, e antes de tudo, filosóficos). e protegida da linguagem ordinária por seu
(...) Mais que destruir, era preciso também cerimonial (WOLFF, 1996, p. 70).
compreender como um ‘conjunto’ tinha se cons-
truído e, para isso, reconstruí-lo (DERRIDA, A oposição que estabelece Wolff entre um
1998, p. 21). saber corporificado no detentor do poder da
palavra - o adivinho, o poeta, - e outro que
E assim o fará, pois a principal fonte da des- floresce na democracia e compõe a noção de
construção derridiana será os textos que com- igualdade entre os seres humanos, e, portanto,
põe uma específica tradição de pensamento, referente à noção relativista, ou sofística da
a tradição metafísica da filosofia, do discurso verdade, permite que encaminhemos nossa
mimético, por fim, da significação. O discur- problemática sobre o uso do texto para duas
so racional, cavalo alado apto à condução em investigações fundamentais para a compreensão
direção à verdade - que sacralizado com o sur- da desconstrução derridiana: a primeira diz
gimento da filosofia, e por isso mesmo, fonte respeito à revisão da ideia de apreensão de um
da eterna busca do discurso - será legatário do objeto de conhecimento pela via especulativa,
pensamento dialético, do uso clássico da cadeia antes que mágica, poética, literária ou religiosa,
argumentativa, coerente e coesa. Francis Wolff portanto fundamentada no princípio de
(1996), ao fazer a revisão das origens do pen- razão universal; e a segunda concernente ao
samento ocidental, delineia o estatuto sagrado modo como a linguagem é utilizada neste
da linguagem e da verdade como anterior ao empreendimento. A acepção de produção de
surgimento da filosofia, e anterior à lingüísti- pensamento em Derrida impossibilita que
ca saussuriana da prevalência do significante o conteúdo seja sobrevalorizado em relação
sobre o significado. Nesta passagem poética, à forma, pois a forma prediz o conteúdo.
porque talvez inspirada neste não-lugar da A linguagem que transforma a metafísica
verdade, ele nos diz: em técnica (Derrida, 1999), não serve à
desconstrução. Essa é acusada, por vezes, de
Cabe ao poeta dizer o que verdadeiramente ser o discurso de uma retórica vazia, quando
foi: sem sua palavra, os altos feitos dos homens na verdade o uso retórico da linguagem é que
mergulham no não-ser; através dela eles são, impossibilita a redução do objeto impossível,
tendo sempre sido. Ao contrário do que fará anulando toda e qualquer possibilidade de
o historiador clássico, o poeta arcaico não diferença como concebida pela metafísica, ou
busca dizer o que foi tal como pôde estabelecê- seja, anulando também a tradicional concepção
lo consultando e criticando as fontes, mas o de identidade. Daí a diferença ou différance em
estabelece pela escansão repetida e captadora Derrida não poder ser acusada de representar
de seu dizer, eco de todos os ditos, cuja beleza mais uma vez a concepção de alteridade em
sublinha a verdade. O adivinho, outro mestre da metafísica: não existe diferenças, quando não
verdade, diz de maneira uniforme o que foi, é existe identidade; apenas a radical constatação
ou será. Mas, contrariamente ao físico da época da diferença como rastro. A différance, então,
clássica, que do mesmo modo diz a natureza nas linhas derridianas:
sob a forma do eterno, ele não busca dizer o ser
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de um pensamento que se faz junto ao obje- uma das acepções de logos além daquela
to, mas também para além dele, visto que a tradicional traduzida em razão, palavra,
transcendentalidade ou o idealismo ainda nos discurso) a predominância do discurso
obriga a procurar os limites, os significados, e de verdade frente à escritura, a sociedade
a finalidade do signo petrificado e isolado em ocidental se construiu pela letra, talvez não a
um significante ou mesmo em um discurso. despeito do logos, mas devido a ele; e por este
investimento no texto ser tão importante é
O que permanece não lido, portanto, não é que os pesquisadores das instituições sociais,
aquilo que o futuro sustenta como a promessa políticas, culturais, identitárias ou diferentes,
final de fechamento da leitura. É aquilo que não podem se imiscuir do texto. Claro,
está sempre por vir, sempre vindo a qualquer texto não é apenas o texto escriturado, mas
momento dado de leitura (WOLFREYS, 2009, também todos os institutos de linguagem,
p. 59). constituídos dos traços que serão deslindados
para constituírem outros traços.
A différance talvez seja um irredutível Aqui, me permitirei uma breve divagação.
inapreensível, e como irredutível, esta é a sua Meu interesse pelo texto surgiu quando do
função, não se deixar objetivar. Exatamente estudo das teses de teóricos políticos brasilei-
porque não o podemos inserir dentro dos ros do início do século XX deparei-me com
conceitos de identidade, unidade, diferença, sugestões explícitas e recorrentes de críticos
mesmo e outro, engendrados pela metafísica, desta referida literatura que alegavam ter o
torna-se difícil para o pensamento represen- texto escrito (as teorias políticas) dado ensejo
tacional compreender isto. Isto, pronome que a todos os regimes ditatoriais vividos no Brasil
Heidegger utiliza quando pretende escapar à nesse último século. Para além das próprias
metafísica, enquanto isto continua se inscre- instituições políticas criadas pelas cartas au-
vendo na relação a outros istos, e diz o espectro toritárias, estes teóricos teriam instituído uma
da tradição, escapa de vir a ser um isso: ele não república, um povo, uma nação, uma cultura,
representa um objeto real ou um nome porque pelo texto. Quase esses críticos negam uma re-
só pode dizer o seu rastro, ele é antes o pró- alidade além texto que dialogaria com os assim
prio rastro linguageiro, pronto a riscar outros chamados autoritários da república: esses nada
traços. Daí isto não ser ainda a única revisão, deviam à realidade quando a escrituravam.
de forma e conteúdo, que faz a política-poética Onde na letra ou fora da letra poderíamos ler
(ou o pensamento contemporâneo) do como isso? Como não querer saber do texto mais do
vamos nos ver com os vários discursos de ver- que ele pretende nos dar? Então, novamente,
dade, sejam esses científico, psicanalíticos ou deparei-me com outra crença, a do poder
filosóficos: o recuo da metafísica ainda é preci- perturbador da escritura e da linguagem; em
so ser compreendido pela revisão engendrada tempo de suspeitas, por vezes desmesuradas, é
no modus operandi do texto escritural, ou do bom que nos sobre alguma coisa, porque, afi-
por que ele passa pela revisão da concepção nal, dizem, diz Derrida, mesmo os escombros
clássica do signo. Isto, ainda se quer pensar, são matéria para o porvir.
mas com a linguagem. Quero citar excertos de Roland Barthes,
Ora, a primeira resposta, e mais óbvia, é retirados de seu ensaio “O Prazer do Texto”
que embora o logocentrismo, como nos diz (2006) que subsidiam esse outro texto sendo
Derrida, tenha relegado à fala (que é também agora escriturado:
O Phármakon de Jacques Derrida | Contextura 2016 15
Por fim, o texto pode, se tiver gana, inves- do inaudito, barthesianamente, talvez seja a
tir contra as estruturas canônicas da própria que mais se aproxime do que Derrida chama
língua, o léxico (neologismos exuberantes, de os pontos cegos do texto: os deslocamentos
palavras-gavetas, transliterações), a sintaxe que a textualidade oferece através da leitura
(acaba a célula lógica, acaba a frase). Trata-se, desconstrutivista. Cito novamente Barthes:
por transmutação (e não mais somente por
transformação), de fazer surgir um novo estado Seria bom imaginar uma nova ciência
filosofal da matéria linguageira; esse estado lingüística; ela estudaria não mais a origem
inaudito, esse metal incandescente, fora de das palavras, ou etimologia, nem sequer sua
origem e fora de comunicação, é então coisa difusão, ou lexicologia, mas os progressos de
de linguagem e não uma linguagem, fosse esta sua solidificação, seu espessamento ao longo
desligada, imitada, ironizada (BARTHES, do discurso histórico; esta ciência seria sem
2006, p. 39). dúvida subversiva, manifestando muito mais
que a origem histórica da verdade: sua natureza
O texto que investe contra as estruturas retórica, linguageira (BARTHES, 2006, p. 52).
canônicas da própria língua, ou em outras
palavras, que subverte a ordem no nível da lin- E Derrida:
guagem, é o texto cuja retórica lexical, sintática,
se apresenta como sendo seu elemento estético A linguagem risca, traça e inscreve uma
de escritura, antes que pela premente função narrativa por vezes oculta; a lei de um texto
de comunicação. Esse inaudito faz “surgir um se escreve sob a espectralidade da tradição, lá
novo estado filosofal da matéria linguageira” atrás algumas de suas teias foram tecidas; o
porque a própria linguagem diz sua matéria movimento produzido a cada nova leitura do
filosofal, porque ela pode revelá-la repetidas signo em sua cadeia significante,é a presença
vezes, porque só a linguagem tem o poder de do texto (e a ausência do autor?), a sua
desdizer a própria linguagem, porque a diz de différance. O pensamento da diferença não
modo diferente a cada vez que pretende dizer, e recorre aos institutos metafísicos da defesa de
a isso chamam literatura, mas também filosofia, um mesmo e de um outro, de uma identidade
mas também poesia, mas também escritura. e de uma diferença, de um fora e um dentro e,
Recorrer à desconstrução é procurar escapar finalmente, de uma unidade onde todos estes
aos efeitos perversos do significado totalizante institutos comporiam uma só e mesma coisa;
de um texto, portanto; sem deixar de conside- outrossim, o pensamento da diferença realiza
rar a potencialidade da linguagem, ‘sua matéria de modo radical a impossibilidade de sua
incandescente’, porém. Já que a desconstrução própria representação. A identidade só pode
não pode ser reduzida a um programa ou a um nomear a sua própria diferença, o phármakon
instrumento metodológico, o texto deverá su- é o mesmo porque é tanto remédio quanto
gerir onde encontrar o não-dito da linguagem, veneno. Esse Phármakon, esse filtro, ao mesmo
pois que é lá onde se encontram as suas fendas; tempo remédio e veneno, já se introduz no
a retórica é, assim, tanto um artifício quanto corpo do discurso com toda sua ambivalência –
inerente à essência linguageira, remete-se a si substância de virtudes ocultas, de profundidade
mesma, heideggerianamente. Aludir a uma críptica, recusando sua ambivalência à análise,
retórica do não-dito é já uma retórica, pois essa “o que resiste a todo filosofema, excedendo-o
categoria, que chamamos aqui de uma estética indefinidamente como não-identidade, não-
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repetição - está interessada assim na semea- O jogo de Derrida em seu ensaio “A far-
ção (de significados) a serem desvelados sob mácia de Platão” é a sua escritura, o seu phár-
o auspício retórico da linguagem, sob os es- makon. A lei de um texto não é nunca a preme-
paços vazios deixados por sua inscrição, que ditação do texto, até... Derrida. Sua escritura é
propriamente, e finalmente, pela pergunta que também, tese que quero defender, uma retórica
não deixa calar a Filosofia: Mas, finalmente, o sobre e com a escritura; e são exatamente estes
que o texto quer dizer? os rastros estéticos e/ou retóricos que ele nos
Como o inaudito os outros indecidíveis oferece pela sua leitura do diálogo platônico
derridianos que demonstram a operação retó- Fedro. As aporias, fendas e impasses de dentro
rica da linguagem perfazem a única encenação da estrutura do texto derridiano parecem ser
possível no texto: o jogo. O jogo encenado de algum modo proposital, pois que é está a
pela escritura é que subverte as certezas de característica do texto escritural: ter as teias
significado do texto até a radical constatação sempre abertas; não após leituras e leituras
da identidade como diferença. O texto perpas- pacientes, mas desde a primeira leitura. Roland
sado por traços e rasuras não exclui a tradição Barthes, em O grau zero da Escritura, aponta
imposta a menos de um segundo, que é esta da em seu ensaio algumas das características que
presença que se inscreve na leitura de um texto, pensa estar presente na linguagem poemática
e que se dá no jogo escritural. O jogo é o signo moderna, e que pode ser estendida para o
ao qual é preciso outorgar o sistema de todos indecidível escritural – como não para o texto
os seus poderes. Ainda, a crítica pensa dominar derridiano? Pois,
o jogo sem se arriscar a lhe acrescentar algum
novo fio. Acrescentar não é aqui senão dar a essa linguagem institui um discurso cheio
ler (DERRIDA, 2005, p. 7). Daí uma de suas de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências
primeiras frases em “A Farmácia de Platão” e de signos supernutritivos, sem previsão nem
(2005) não deixar de ser uma profissão de fé permanência de intenção e por isso mesmo tão
na escritura, pois que “é possível dizer tudo oposto à função social da linguagem, que o
em apenas uma página”, mas prosseguir ainda simples recurso a uma palavra descontínua abre
“por força do jogo”. E Barthes o reafirma na a via de todas as Sobrenaturezas (BARTHES,
figura do escritor: 2006, p. 45).
NOTAS
1. Graduada em Ciência Política e Filosofia, mestranda em Bioética pela Universidade de Brasília.
Pesquisadora-tecnologista em Informações e Avaliações Educacionais do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Inep.
Referências
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CUSSET, François. French Theory: Foucault, Derrida, Deleuze & cie et les mutations e la vie
intellectuelle aux Étas-Unis. Paris: Découverte, 2005.
DERRIDA, Jacques. Semiologia e gramatologia (entrevista a Julia Kristeva). In: Posições. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
DERRIDA, Jacques. Che cos’è la poesia? Trad. Piero Eyben. Mimeo, 2006.
DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.
DERRIDA, Jacques. Carta a um Amigo Japonês. In: OTTONI, Paulo (org,). Tradução: a prática da
diferença. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Crítica e escritura. In: Texto, crítica , escritura . 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos: Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. 2. ed. rev. Trad. Carlos Alberto
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WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise. In: NOVAES, Adauto (org). A crise da razão.
Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 67–82.