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em Filosofia
Ricardo Melani
primeiros estudos
Diálogo:
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Ensino Médio
1 o, 2o e 3o anos
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PROFESSOR
MANUAL DO
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Componente curricular: FILOSOFIA
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Ricardo Melani
Bacharel e mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Tem mais de 25 anos de experiência como educador. Durante 18 anos foi professor
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), instituição
na qual ministrou aulas de filosofia para diversos cursos de graduação.
Foi editor de inúmeras revistas científicas e informativas.
É autor do livro paradidático O corpo na filosofia (Moderna, 2012).
Diálogo:
primeiros estudos
em Filosofia
1o, 2o e 3o anos
Ensino Médio
MANUAL DO PROFESSOR
2a edição
São Paulo, 2016
Coordenação editorial: Ana Claudia Fernandes
Edição de texto: Ana Patricia Nicolette, Leonardo Canuto de Barros, Pamela Shizue
Goya, Edmar Ricardo Franco, Bruno Cardoso Silva, José Maurício Ismael Madi Filho,
Cynthia Liz Yosimoto, Audrey Ribas Camargo
Assistência editorial: Rosa Chadu Dalbem
Preparação de texto: Denise Ceron
Gerência de design e produção gráfica: Sandra Botelho de Carvalho Homma
Coordenação de produção: Everson de Paula
Suporte administrativo editorial: Maria de Lourdes Rodrigues (coord.)
Coordenação de design e projetos visuais: Marta Cerqueira Leite
Projeto gráfico: Mariza de Souza Porto, Otávio dos Santos
Capa: Douglas Rodrigues José
Foto: Em órbita, instalação de Tomás Saraceno, em Düsseldorf, Alemanha.
Foto de 2013. © Tomás Saraceno
Coordenação de arte: Rodrigo Carraro Moutinho
Edição de arte: Márcia Cunha do Nascimento
Editoração eletrônica: Setup Bureau Editoração Eletrônica
Coordenação de revisão: Elaine C. del Nero
Revisão: Barbara Arruda, Nancy H. Dias, Renato da Rocha Carlos, Salete Brentan,
Simone Garcia, Viviane T. Mendes
Coordenação de pesquisa iconográfica: Luciano Baneza Gabarron
Pesquisa iconográfica: Vanessa Manna, Aline Chiarelli
Coordenação de bureau: Américo Jesus
Tratamento de imagens: Denise Feitoza Maciel, Marina M. Buzzinaro, Rubens M.
Rodrigues
Pré-impressão: Alexandre Petreca, Everton L. de Oliveira, Fabio N. Precendo, Hélio P.
de Souza Filho, Marcio H. Kamoto, Vitória Sousa
Coordenação de produção industrial: Viviane Pavani
Impressão e acabamento:
Melani, Ricardo
Diálogo : primeiros estudos em filosofia,
volume único / Ricardo Melani. -- 2. ed. --
São Paulo : Moderna, 2016.
16-01033 CDD-107.12
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Todos os direitos reservados
EDITORA MODERNA LTDA.
Rua Padre Adelino, 758 – Belenzinho
São Paulo – SP – Brasil – CEP 03303-904
Vendas e Atendimento: Tel. (0_ _11) 2602-5510
Fax (0_ _11) 2790-1501
www.moderna.com.br
2016
Impresso no Brasil
1 3 5 7 9 10 8 6 4 2
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Apresentação
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p. 232.
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BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Ícone, 2003. p. 212. Platã taria em int im ulo , tam bem de ncia. Po científic No ete a
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propõe questões
lugar do mundo e em qualquer tempo, um triângulo retângulo entre outros princípios, na observação e na experimentação. Hume buscou utilizar, nas ciências humanas, essa
apresentará essas relações de comprimento, assim como um metodologia até então bem‑sucedida nas ciências naturais.
triângulo sempre terá três lados, e a negação dessas afirmações Uma passagem da obra Óptica, na qual Newton trata do método científico, pode
implicará contradição. explicar as características dessa metodologia:
Os Boxes complementares
cArlos cAminhA
adicionais ao texto,
inteligente que qualquer triângulo tem três lados.
Dito de outra forma, não é possível demonstrar, por meio
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da razão, a necessidade da conexão causal entre dois eventos. Limite do entendimento humano
ampliando os
Apenas pela experiência unimos dois eventos distintos e estabelecemos uma Réplica de disco de
relação entre eles. Isso é feito não por alguma razão necessária, mas pela força Se comparada ao pensamento de Locke e de Berkeley, a teoria de Hume apresenta Newton do século XVII.
do hábito. Habituamo‑nos a estabelecer uma relação causal entre dois eventos um empirismo mais rigoroso. O filósofo se opunha a qualquer concepção metafísica ou Esse dispositivo é utilizado
em demonstrações de
que sempre aparecem conjuntamente. ideia que buscasse explicações da realidade além da experiência sensível. Lembremo‑nos composição de cores. Ao ser
conhecimentos sobre
A crítica de Hume abalou princípios centrais de todas as teorias do conheci‑ de que Locke supôs a existência de substâncias materiais que seriam a causa das ideias movimentado rapidamente,
simples, ou seja, admitia em sua argumentação algo que estaria além da experiência ou o disco aparenta ter a cor
mento, o que acabou por gerar certo ceticismo. Afinal, de que se pode ter certeza branca. Em suas pesquisas
sobre o mundo? das ideias. Berkeley negava a existência de qualquer substância material, mas introduziu de ótica, Newton verificou
a existência de substâncias espirituais – que perceberiam as ideias – e de Deus, causa de que a luz branca era formada
cArlos cAminhA
De muito pouco, segundo Hume. O que existe são eventos dos quais se pode
assuntos tratados no
todas as sensações. Esses elementos também ultrapassavam a experiência. Hume não por uma série de cores.
vislumbrar esta ou aquela frequência, uma ou outra relação de constância. A
frequência e a constância, no entanto, não são necessárias, o que significa que os aceitava nenhuma dessas explicações.
acontecimentos ou as conexões entre eventos podem ser diferentes, pois estão Contudo, se na teoria de Hume a causa das impressões sensíveis não eram as coisas
sujeitos ao acaso. Isso está muito distante da regularidade, da imutabilidade e materiais e concretas, como dizia Locke, nem Deus, como afirmava Berkeley, de onde elas
da certeza que se esperava do conhecimento científico.
Para pensar
viriam ou como se manifestariam na mente humana?
gugA bAcAn
públicos como secretário nos governos da Inglaterra e da França. Conhecido como um
Sua explicação é simples: não é possível saber. As impressões das sensações surgiriam
dos principais empiristas da história, Hume orientou seus estudos na leitura das obras
de Locke e Berkeley. na mente, mas sua causa seria desconhecida. A origem das impressões da sensação estaria,
Suas principais obras foram o Tratado da natureza humana, os Ensaios morais, portanto, além da experiência e além do entendimento humano. Locke e Berkeley teriam se
políticos e literários e a primeira moderna História da Grã‑Bretanha. equivocado ao tentar explicar algo que não poderia ser explicado, pois a causa da sensação
não poderia ser conhecida pelo entendimento humano.
187 185
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Atividades
Palavra de filósofo
também é aquele que se faz ser, qualquer que seja um sentido jurídico; só que, neste caso, tal sentido apreciação do espetáculo dos outros; desenca-
deou, ao mesmo tempo, um investimento de 6. Leia o trecho da entrevista de Zygmunt Bau-
a situação em que se encontre, com seu coeficiente não se sustenta, pois de mim dependeu o fato de que man e responda às questões.
si, uma auto-observação estética sem nenhum
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
para-si deve assumi-la com a consciência orgulho- eu decidi que ela existisse. Não houve coerção alguma, precedente. A moda tem ligação com o prazer de “A diferença entre a comunidade e a rede é
sa de ser o seu autor, pois os piores inconvenientes pois a coerção não poderia ter qualquer domínio so- ver, mas também com o prazer de ser visto [...] que você pertence à comunidade, mas a rede per-
ou as piores ameaças que prometem atingir minha bre a liberdade; não tenho desculpa alguma, porque, faz dele uma estrutura constitutiva e permanen- tence a você. [...] nas redes, é tão fácil adicionar e
como dissemos e repetimos nesse livro, o próprio da te dos mundanos, encorajando-os a ocupar-se deletar amigos que as habilidades sociais não são
e competências inerentes
sa situação e sem imprimir nela a minha marca, devo do indivíduo na sociedade contemporânea,
esta guerra é minha guerra, é feita à minha imagem a) Identifique as diferenças entre a comunida-
ser sem remorsos nem pesares, assim como sou sem apontada por Lipovetsky.
e eu a mereço. Mereço-a, primeiro, porque sempre de e as redes sociais.
poderia livrar-me dela [...] pela deserção [...]. Por ter desculpa, pois, desde o instante de meu surgimento 5. Leia o trecho citado, escrito por Lyotard, e ana-
ao ser, carrego o peso do mundo totalmente só, sem b) Por que as redes sociais podem atuar como
deixado de livrar-me dela eu a escolhi; pode ser por
ao filosofar.
lise a reprodução da obra de Eduardo Paolozzi. empecilho ao diálogo?
fraqueza, por covardia frente à opinião pública, por- que nada nem ninguém possa aliviá-lo.” Depois, explique por que, segundo os critérios
que prefiro certos valores ao valor da própria recu- SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia de Lyotard, a obra de Paolozzi pode ser consi- 7. Valendo-se da leitura do trecho a seguir e com
sa de entrar na guerra (a estima de meus parentes, fenomenológica. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 678-680. derada kitsch? base em seus conhecimentos, elabore um tex-
to dissertativo-argumentativo utilizando a es-
Pensando o texto
“O ecletismo é o grau zero da cultura geral crita formal da língua portuguesa sobre o tema
contemporânea: ouve-se reggae, vê-se western
Para-si: o ser da consciência,
“A condição dos refugiados: a perda dos direi-
[...] usa-se perfume parisiense em Tóquio, e rou- tos e da identidade”.
1. Explique a afirmação de Sartre de que o sujeito “carrega nos o sujeito que busca
pa retrô em Hong Kong [...]. Tornando-se kitsch ,
ombros o peso do mundo inteiro”. constituir-se projetando-se
no futuro ou no nada (o que a arte lisonjeia a desordem que reina no ‘gosto’ “A calamidade dos que não têm direitos não
2. Por que um indivíduo poderia ser responsabilizado por uma do amador. [...] faltando critérios estéticos, decorre do fato de terem sido privados da vida,
ainda não é). Difere do em-si:
guerra da qual o Estado o obrigasse a participar?
o que é, as coisas do mundo continua a ser possível e útil medir o valor das da liberdade ou da procura da felicidade, nem
3. Partindo do existencialismo sartriano, em que medida alguém da igualdade perante a lei ou da liberdade de
que aparecem para nós. obras em função do lucro [...].”
é responsável por sua vida? Você concorda com isso? Justifique. opinião [...], mas do fato de já não pertencerem
Carrear: guiar, conduzir. LYOTARD, Jean-François. Resposta à pergunta:
o que é o pós-moderno? In: O pós-moderno explicado
a qualquer comunidade.”
às crianças: correspondência 1982-1985. Lisboa: Dom ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo:
Quixote, 1993. p. 19-20. Companhia das Letras, 1989. p. 327.
271
375
Cinema
ser falado quanto ser visto são índices do desejo
As horas (Estados Unidos, Inglaterra, 2002) de ‘espelhamento’.”
Direção: Stephen Daldry – Duração: 114 min SODRÉ, Muniz. Liberdade de viver no espelho. O Estado
Na seção Ampliando,
de S. Paulo, 20 dez. 2014. Disponível em <http://alias.
A história de três mulheres que viveram em períodos distintos é entrelaçada estadao.com.br/noticias/geral,liberdade-de-viver-no-
RepRodução
pelo livro Mrs. Dalloway. Na década de 1920, Virginia Woolf, a autora do livro, espelho,1610001>. Acesso em 25 maio 2016. (Adaptado)
atravessa uma crise pessoal. Nos anos 1950, Laura Brown, uma dona de casa
grávida, não consegue parar de ler o livro de Woolf enquanto planeja uma festa A crítica contida no texto sobre a sociedade
propostas de
de aniversário para seu marido. Finalmente, no início do século XXI, vive Clarissa contemporânea enfatiza
Vaughn, uma editora de livros. As três enfrentam diferentes questões e espelham a) a prática identitária autorreferente.
a transformação de alguns costumes e a manutenção de outros no que se refere Calendário
medieval do b) a dinâmica política democratizante.
à condição da mulher.
Na seção Enem,
século XV. c) a produção instantânea de notícias.
vestibulares e concursos
personagens.
e textos de diferentes
• Aos diferentes hábitos das personagens, que variam de acordo com o período põem um calendário medieval (1460-1475) e
5. (Enem-MEC/2014)
em que elas vivem. cada uma delas representa um mês, de janeiro
“Parecer CNE/CP n. 3/2004, que instituiu as
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
são apresentadas
1. O que se pode depreender do filme a respeito da condição da mulher? ção das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
gêneros ampliam
Cartaz do filme As horas (2002), a) cíclica, marcada pelo mito arcaico do eterno
dirigido por Stephen Daldry. retorno. de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
2. Qual é o papel da memória na construção da identidade das personagens?
b) humanista, identificada pelo controle das Procura-se oferecer uma resposta, entre
outras, na área da educação, à demanda da
a reflexão sobre os
população afrodescendente, no sentido de polí-
c) escatológica, associada a uma visão religio-
ticas de ações afirmativas. Propõe a divulgação
sa sobre o trabalho.
Livro e a produção de conhecimentos, a formação
d) natural, expressa pelo trabalho realizado de
de atitudes, posturas que eduquem cidadãos
principais vestibulares e
A visita cruel do tempo (Estados Unidos, 2012) acordo com as estações do ano.
temas estudados,
orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial
Autora: Jennifer Egan e romântica, definida por uma visão bucólica – descendentes de africanos, povos indígenas,
RepRodução
desenvolvem a para o outro. São membros de bandas, executivos do mundo musical, auxiliares
de gravadoras e artistas que não tiveram a carreira de sucesso que esperavam. O
livro trata da passagem do tempo e de seu poder avassalador de transformação.
“ Na sociedade contemporânea, onde as
relações sociais tendem a reger-se por imagens
midiáticas, a imagem de um indivíduo, principal-
direitos garantidos.”
BRASIL.Conselho Nacional de Educação. Disponível
em <www.semesp.org.br>. Acesso em 25 maio 2016.
testar conhecimento e
Vamos ficar atentos mente na indústria do espetáculo, pode agregar (Adaptado)
compreensão leitora • Ao procedimento narrativo, que traz pessoas distintas (primeira e terceira pes- valor econômico na medida de seu incremento A orientação adotada por esse parecer funda-
soas) e cujo foco está em diferentes personagens. técnico: amplitude do espelhamento e da aten- menta uma política pública e associa o princí-
• Aos diferentes estilos de escrita, em decorrência das diversas vozes que com- ção pública. Aparecer é então mais do que ser; o pio da inclusão social a
se familiarizar com o
põem o relato. sujeito é famoso porque é falado. Nesse âmbito,
de diversas linguagens
a) práticas de valorização identitária.
• Ao papel do tempo na construção da narrativa. a lógica circulatória do mercado, ao mesmo
b) medidas de compensação econômica.
tempo que acena democraticamente para as
Vamos refletir sobre o livro e buscar responder c) lembrança da antiguidade da cultura local.
massas com supostos ‘ganhos distributivos’ (a
e a leitura filosófica 2. Qual é a influência do tempo na vida dos personagens? Capa do livro A visita cruel do
tempo (2012), de Jennifer Egan.
hierarquias culturais), afeta a velha cultura dis- e) declínio do regime de monarquia absolutista.
de registros não
filosóficos. 394 395
......................................................................................................
......................................................................................................
......................................................................................................
Sumário
Existe só uma verdade? ........................................................ 56
As estranhas coisas familiares 10 A retórica e a verdade, 58 / Relativismo e absolutismo
moral, 59 / É possível construir uma terceira via?, 60
Os direitos humanos universais .......................................... 62
Universalidade e diferença, 64
INTRODUçÃO O que é filosofia?
Sociedade contemporânea: uma fábrica
O pensamento reflexivo e a nossa vida
de problemas éticos .............................................................. 66
O estranhamento diante da realidade ..................................12 Palavra de filósofo: Platão – A justiça e as aparências ..... 68
Nós e a filosofia ......................................................................14
Atividades ............................................................................. 69
Racionalidade: um bem comum, 15 / A centelha da
filosofia é comum a todos, 16 / Múltiplas possibilidades
do viver reflexivo, 17 capíTUlO 3 O que é realidade?
Amor pelo saber ....................................................................18 A descoberta do mundo suprassensível
Atitude crítica ........................................................................19 A escolha de Neo .................................................................... 71
Atitude reflexiva ................................................................... 20 O que existe?...........................................................................72
Investigação conceitual .........................................................21 A aparência e a essência, 73
Investigação rigorosa, 22
O movimento é a essência da natureza ................................74
Problemas e dinâmica da filosofia ........................................22 Logos: a razão que governa o mundo, 75
Filosofia e filosofias ...............................................................23
Há unidade entre as filosofias?, 24 / As áreas de estudo A explicação racional da realidade .......................................75
da filosofia, 24 O ser eterno e imutável de Parmênides, 76
“Se Deus não existe, tudo é permitido” ............................... 131 O corpo e a percepção .......................................................... 178
Locke: a experiência é a base do conhecimento ................. 179
A filosofia do fim da Antiguidade à Idade Média ................132
Qualidades primárias e secundárias, 180 / Ideias
Do cristianismo à filosofia cristã, 132 / Antecedentes
e realidade, 180 / A existência das coisas exteriores, 181
místicos e religiosos da filosofia grega, 134 / O médio
platonismo e o neoplatonismo, 135 Berkeley: ser é ser percebido ..............................................182
Os seres espirituais e a causa das ideias, 183
Patrística: racionalização da fé ...........................................136
O combate à filosofia, 136 Hume: as impressões sensíveis e a natureza humana.......184
Limite do entendimento humano, 185 / Crítica ao
Agostinho: a filosofia e a procura de Deus ......................... 137
princípio de causalidade, 186
Deus, o ser verdadeiro, 138 / Deus criou o mal?, 138 /
Viver segundo a carne ou segundo o espírito?, 139 / O empirismo e a ciência .......................................................188
O logos se fez carne, 140 A observação é fiel à realidade?, 188 / Do particular das
percepções ao universal da ciência: o problema da indução,
Escolástica: a filosofia das escolas cristãs ......................... 141 190 / Raciocínio indutivo e dedutivo, 190 / O caso hipotético
As primeiras universidades, 141 / As traduções e a do Mysterium cattus, 191
redescoberta de Aristóteles, 142
Palavra de filósofo: David Hume – A ciência da natureza
Filosofia tomista: a unidade entre a razão e a fé ................143
humana como fundamento para a
As comprovações da existência de Deus, 144 / A busca do
ciência em geral .................................192
bem e o livre-arbítrio, 145
Atividades............................................................................193
Livre-arbítrio ou determinismo? ........................................146
Deus: uma criação humana ................................................. 147
Teologia é antropologia, 148 / A religião é o ópio do
capítulo 9 Como organizamos o conhecimento?
povo, 149 / Deus está morto, 149 A filosofia crítica ou transcendental
Palavra de filósofo: Agostinho – A luta das vontades....... 151 As condições de nosso conhecimento.................................194
Atividades ............................................................................152 Investigando a razão............................................................195
O despertar do sono dogmático, 196 / Conhecimento
Ampliando ...........................................................................154 a priori e a posteriori, 197 / A experiência é um
Enem, vestibulares e concursos .........................................155 composto, 198 / Possibilidades e limites do conhecimento
humano, 201
unidade Fim da metafísica clássica...................................................201
Razão, autonomia e liberdade............................................ 202
2 O que podemos conhecer? 156 A universalidade do belo .................................................... 204
Críticas à filosofia transcendental ..................................... 206
O problema da coisa em si, 206
capítulo 7 O que conhecemos pela razão? A Vontade além da razão .................................................... 208
A Vontade é irracional, 210
O racionalismo e a busca pelo
conhecimento seguro e verdadeiro Arte como criação ................................................................210
A arte e os impulsos instintivos, 211
A matemática como modelo para a ciência........................158
A razão é a origem do conhecimento ..................................159 Palavra de filósofo: Immanuel Kant – O que é
Descartes e a dúvida metódica............................................160 Esclarecimento? .............................. 213
A substância pensante e a substância extensa .................. 161 Atividades ............................................................................214
A substância infinita e o inatismo, 162 / O mundo é uma
máquina, 163 / O ser humano e o problema corpo-mente, 163 capítulo 10 O que é sociedade moderna?
Espinosa: uma única substância, deus sive natura............164 Os direitos humanos
Necessidade geométrica, 165 / Livre-arbítrio e liberdade, 166
Os direitos dos presos ..........................................................216
Leibniz: as verdades da razão e as verdades de fato .......... 167 A teoria política anterior a Maquiavel ................................ 217
Princípio da razão suficiente, 168 As exigências da política .....................................................218
Críticas às filosofias racionalistas ...................................... 170 Melhor ser temido que amado, 219 / A relação
A ilusão da razão, 170 / Oposição ao inatismo, 172 / entre virtude e destino, 220 / As controvérsias em torno
O tecnicismo cartesiano, 173 de Maquiavel, 220
Sumário
As estranhas
A natureza e o ser humano
coisas familiares
Introdução
O que é filosofia?
O estranhamento diante da realidade; o viver reflexivo
humano; a filosofia e o cotidiano; a filosofia como atitude
crítica, investigação conceitual e investigação rigorosa.
AlAn Wylie/AlAmy/GloW imAGes.
© Anthony d’offAy, london - museu de
Arte modernA de são frAncisco
10
O hiper‑realismo, estilo artístico desenvolvido nos Estados Unidos durante a década de
1960, marcou a retomada do realismo na arte contemporânea. Os seus integrantes retratam
o cotidiano e as cenas que nos são familiares.
Ron Mueck (1958) é um artista australiano hiper‑realista. Suas obras causam admiração
e estranhamento. A admiração é provocada pela perfeição das representações. Cada detalhe
é fielmente reproduzido. Máscara II, por exemplo, é a escultura do rosto de uma pessoa em
grandes dimensões. Os cabelos, os olhos, as sobrancelhas, a boca, a barba por fazer, a expres‑
são, tudo parece tão real que aguardamos o despertar do personagem a qualquer momento.
Essa reprodução perfeita em grandes proporções também nos causa estranhamento,
porque evidencia aspectos de nosso corpo que geralmente passariam despercebidos. É como
se a obra nos fizesse indagar: “Somos assim mesmo?” e “Por que eu não havia percebido
isso?”. Ao contemplar a ampliação hiper‑realista, sentimos que não conhecemos bem as
coisas que nos parecem tão familiares, como nosso corpo, e que nosso entendimento sobre
elas não é tão claro quanto supúnhamos.
Essa falta de conhecimento sobre as formas do corpo humano não é um fenômeno
isolado. Se refletirmos sobre o que conhecemos, o que pensamos, o que afirmamos ou
mesmo o que consideramos óbvio ou certo, poderemos nos surpreender com elementos
fundamentais que passaram despercebidos e elaborar um novo entendimento a respeito
das coisas que investigamos. A filosofia faz precisamente isto: indaga sobre a realidade, a
natureza, as pessoas e a sociedade, investigando o mundo e o entendimento que fazemos
dele. Mas, se a filosofia pergunta sobre tudo o que lhe parece estranho ou admirável, ela
também deve ser alvo de indagação. Afinal, o que é a filosofia? Quais são as suas carac‑
terísticas principais? O que faz um filósofo? O que é filosofar? O que o filosofar tem a ver
com a nossa vida? Algumas dessas questões serão tratadas nesta introdução.
© nGc/GAleriA nAcionAl
do cAnAdá, ottAWA
11
..........................................................................................
..........................................................................................
..........................................................................................
Introdução
O que é filosofia?
O pensamento reflexivo e a nossa vida
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
esculturas de Ron Mueck uma
vez que trata sobre o espanto
diante do cotidiano, do que
é tido como conhecido. Por
fim, a imagem do grafite de
Edgar Mueller propõe uma
reflexão complementar: deve-
mos questionar até mesmo o
que é captado pelos sentidos.
Ver comentários complemen-
tares no Suplemento para o
professor, no final do livro.
12
......................................................................
......................................................................
......................................................................
13
Nós e a filosofia
Com alguma frequência, ouvimos frases como “A filosofia não serve para nada”, “O
filósofo é um gênio ou um louco”, “As preocupações dos filósofos nada têm a ver com a
realidade”. Há até uma afirmação bem‑humorada e bastante conhecida que diz: “A filosofia
é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”.
Todas essas afirmações registram uma suposta separação entre o cotidiano das
Os objetivos das questões pessoas (os não filósofos) e a atividade dos pensadores que em geral conhecemos como
são levantar os conheci-
mentos prévios dos alunos filósofos. Dessa perspectiva, o discurso filosófico, hipoteticamente afastado dos interesses
e despertar neles o interesse
pela reflexão sobre as espe-
humanos, não teria serventia para a maioria das pessoas.
cificidades do pensamento
filosófico. Para tanto, é im- Mas será mesmo assim? Os filósofos ou as indagações filosóficas nada têm a ver com
portante partir da realidade do o nosso cotidiano? O que pensamos e o que fazemos não têm nenhuma relação com a
aluno, de seu entendimento,
e, assim, gradativamente, filosofia? A filosofia seria, então, inútil?
refletir sobre noções, ideias
e preconceitos relacionados
à compreensão do que é filo-
sofia. Vale destacar que este Para pensar
é um momento para levantar
questões para reflexão e não
buscar respostas conclusi- 1. O pensamento filosófico é diferente de outras formas de pensar? Justifique.
vas. Ver comentários comple-
mentares no Suplemento para 2. Considerando a definição de filosofia, que relação a filosofia pode ter com a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o professor no final do livro.
nossa vida?
Em pensamento profundo (1980), pintura de Roy Lichtenstein. A reflexão e a investigação racional mais
profunda das ideias e dos problemas humanos são características centrais da atividade filosófica.
14
Racionalidade: um bem comum
Se a filosofia não tivesse nenhuma ligação com nossa vida, o que explicaria
sua existência após séculos de seu surgimento? Por que os filósofos não foram
esquecidos com o tempo? Se, apesar das críticas e de sua suposta inutilidade,
a filosofia se mantém – mesmo com profundas transformações –, é porque
provavelmente está associada a alguma necessidade essencial do ser humano.
Que necessidade seria essa?
O filósofo grego Aristóteles (c. 384‑322 a.C.) nos dá uma pista sobre isso:
elsA/Getty imAGes
Assim como as plantas, o ser humano se nutre, cresce e se desenvolve.
Assim como os outros animais, ele percebe o ambiente à sua volta por meio
dos órgãos dos sentidos, olhando, tateando e ouvindo. Mas, diferentemente
das plantas e dos outros animais, só o ser humano desenvolve atividades ra‑
cionais. Em outras palavras, faz uso da razão, estabelece relações entre fatos
e coisas, julga, calcula, reflete e extrai conclusões. Só ele, com o auxílio da
razão, busca o verdadeiro conhecimento, procurando entender a realidade.
Por esse motivo, Aristóteles definia o homem como um animal racional.
A razão é um bem humano. Nós a utilizamos em boa parte de nossas ati‑
vidades. Você está fazendo isso agora. Para ler este texto, está reconhecendo
as palavras, reunindo‑as em frases e estabelecendo sentidos. Sem a razão, não
poderíamos criar linguagens complexas, como as partituras musicais e nossos
idiomas. Não poderíamos dialogar, escrever mensagens, resolver problemas e
equações, formular teorias científicas, econômicas, políticas etc. Sem o auxílio do
raciocínio, não desenvolveríamos instrumentos sofisticados, não construiríamos
A jogadora Fabiana recebe cartão
máquinas, carros, trens, barcos, espaçonaves, casas, edifícios e monumentos. amarelo durante partida contra a
Não haveria futebol ou qualquer outro esporte. Também não criaríamos leis e seleção australiana na Copa do Mundo
normas de conduta. Enfim, sem a razão, não haveria o mundo humano. de Futebol Feminino, em Moncton
(Canadá). Foto de 2015. As regras de
Entre as atividades racionais, Aristóteles destacava a filosofia como a mais arbitragem do futebol não existiriam
importante. Ele entendia a filosofia como a ciência cujo objetivo consistia em se não fosse o exercício racional
investigar os princípios mais gerais de tudo o que existe. Os homens filosofariam para determinar o que pode ou não
para se libertar da ignorância, buscando unicamente o conhecimento ou o saber. acontecer em campo.
15
A centelha da filosofia é comum a todos
André dAhmer
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Se ser homem já significa filosofar, o pensar ou o investigar filosófico ne‑
cessariamente se manifesta na realidade dos indivíduos e da sociedade. Se é
assim, se todo ser humano filosofa, duas questões teriam de ser respondidas
para avançarmos em nossa reflexão sobre a filosofia:
• Por que muitos indivíduos não percebem que a filosofia é algo intrínseco
a eles?
• Afinal, o que é filosofar?
A presença em nós da centelha da filosofia talvez explique em parte a
disposição humana para ir além da satisfação das atividades vitais de nutri‑
ção e crescimento, como apontou Aristóteles. Nas mais diversas situações,
buscamos refletir sobre nossa condição, sobre a família, nossa profissão, se
somos felizes ou caminhamos para a felicidade.
Quadrinhos dos anos 10 (2012), tirinha
de André Dahmer. A forma como muitas Como vivemos em sociedade, também buscamos estabelecer normas de
pessoas utilizam as novas tecnologias convivência. Por isso, refletimos sobre o que é justo ou injusto, o que é certo
de comunicação estabelecendo ou errado, sobre nossos deveres e nossas obrigações nas relações interpessoais
relacionamentos superficiais é uma das de uma comunidade. E, num sentido mais amplo, refletimos sobre critérios e
contradições da atualidade, que tem
regras universais para o conjunto da sociedade e sobre a melhor maneira de
provocado inúmeras reflexões e críticas,
como a expressa na tira. organizá-la. Às vezes, ponderamos se a justiça cumpre seu papel com impar‑
cialidade, se nosso modo de vida na sociedade contemporânea é prejudicial
ao planeta e às novas e futuras gerações, se nossa representação política é
adequada e corresponde às nossas expectativas como cidadãos.
A sociedade contemporânea é complexa e contraditória. Está repleta de
questões e impasses que demandam uma abordagem reflexivo -filosófica. Por
exemplo, a profunda intervenção tecnológica tem, por um lado, beneficiado
o ser humano ao aperfeiçoar a medicina, a educação, a comunicação e ao
proporcionar maior conforto. Por outro lado, essa intervenção, caso se subor‑
dine aos interesses da indústria e do mercado, pode reforçar o consumismo,
a massificação e o controle social.
Embora as formas de comunicação tenham sido ampliadas pelo desenvol‑
vimento de produtos tecnológicos como o celular, uns permanecem solitários
em meio à multidão de coisas e pessoas, enquanto outros se acorrentam à
16
necessidade de aprovação de seus hábitos expostos nas redes sociais. Ao mesmo tempo
que há a multiplicação das possibilidades de diversão, há um sentimento disseminado de
angústia e solidão. O que devemos fazer para sermos felizes? A filosofia pode trazer con‑
tribuições para todas essas reflexões relacionadas sobre nosso modo de vida, elucidando
situações que muitas vezes vivemos sem questionar.
17
Amor pelo saber
O termo filosofia significa originariamente “amor ou amizade à sabedoria”. Quer di-
zer, o filósofo seria aquele que deseja a sabedoria, mas sabe que não a tem. Exatamente
porque não é sábio, ele vai ao encontro do saber. Sócrates foi um exemplo dessa busca
incessante pelo saber. Quando julgado em 399 a.C. pelos atenienses, alegou que seu exa-
me filosófico teve início quando foi revelado ao seu amigo Querefonte, em consulta ao
deus de Delfos, que não haveria homem mais sábio do que ele. Platão, discípulo socrático,
relata esse momento na obra Defesa de Sócrates:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos
de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não era. Meti‑me,
então, a explicar‑lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A consequência
foi tornar‑me odiado dele e de muitos dos circunstantes.
Ao retirar‑me, ia concluindo de mim para comigo: ‘Mais sábio do que
esse homem eu sou; bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom,
A morte de Sócrates mas ele supõe saber alguma coisa, enquanto eu, se não sei, tampouco su‑
(1787), pintura de ponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente
Jacques-Louis David. Em em não supor que saiba o que não sei’.”
seus diálogos filosóficos,
Sócrates questionava PLATÃO. Defesa de Sócrates. São Paulo:
as ideias, os valores Abril Cultural, 1972. p. 14‑15. (Coleção Os Pensadores)
tradicionais e muitos
atenienses que eram
tidos como sábios. Suas O estranhamento de Sócrates foi ter sido considerado pelo deus como o mais sábio
reflexões incomodaram dos homens. Justamente ele, que nada supunha saber, que tinha consciência da sua igno-
muita gente, a ponto rância. Qual seria o significado da afirmação divina? E logo o filósofo grego transformou
de o filósofo ser a estranheza em problema: “Afinal, o que é ser sábio?”. E mais importante ainda: “O que
condenado à morte por é sabedoria?”.
envenenamento.
Mas, ao investigar os que se diziam sá-
Jacques‑Louis DaviD ‑ Museu MetropoLitano De arte, nova York
“O que caracteriza o filósofo é o movimento que levaria incessante‑ recurso irônico presente na
conclusão de uma das per-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mente do saber à ignorância, da ignorância ao saber, e um certo repouso sonagens, que, ao responder
“Entendi”, toma a explicação
neste movimento [...].” da colega como racional e
inquestionável, espera-se que
MERLEAU‑PONTY, Maurice. Elogio da filosofia. 4. ed. Lisboa: Guimarães, 1993. p. 11. os alunos percebam que não
é explicitada nenhuma justifi-
cativa razoável para o motivo
de uma das personagens
Esse movimento – do saber à ignorância e da ignorância ao saber – caracteriza uma estar brava, resumido em um
postura questionadora: a busca contínua por esmiuçar a realidade. A filosofia requer, em “Porque sim!”. Nesse caso,
aceitar a resposta como uma
primeiro lugar, essa atitude crítica: por um lado, não aceitar nada (afirmações, ideias, explicação, sem questioná-
teses, teorias) sem uma investigação racional; por outro, investigar detalhadamente o -la, não corresponde a uma
atitude crítica, necessária
que as coisas são, por que são assim e se podem ser diferentes. para o início da investigação
filosófica.
Para pensar
19
Atitude reflexiva
Para o rigor da investigação, o pensamento filosófico deve ser reflexivo, isto é, tem
de voltar‑se para si mesmo. Reflexão origina‑se da palavra flexão, que significa “curvar
ou dobrar”. Quando um atleta faz exercício abdominal, ele se curva sobre si mesmo (daí
chamarmos esse movimento de flexão abdominal); assim também acontece quando do‑
bramos uma folha de caderno ou fechamos uma carteira de dinheiro (objetos flexionáveis).
Pensamento reflexivo, então, é aquele que se dobra sobre si mesmo, isto é, pensa‑se a
si próprio. Refletir é pensar de maneira rigorosa sobre o próprio pensamento. Quer dizer,
o pensamento investiga a si mesmo, avaliando se as ideias estão claras, se as conexões
estão bem‑feitas, se as conclusões são válidas.
Imagine, por exemplo, que você chegou à conclusão de que errou a resposta de um
Concatenação:
problema matemático. Então começa a repassar os procedimentos pelos quais se equivo‑
encadeamento;
ligação. cou. Primeiro relê o problema, para verificar se o entendeu perfeitamente; depois analisa
as etapas, avaliando se o raciocínio em cada caso era adequado; em seguida, observa se as
operações e as conexões entre elas estavam corretas; por último, confere se o resultado
é coerente com todo o processo realizado. Podemos comparar esse procedimento com
a reflexão filosófica. As teses ou afirmações (os pensamentos) são submetidas a rigorosa
avaliação. Cada ideia é investigada, o sentido das frases, a concatenação lógica entre as
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
teses, os argumentos utilizados e a validade das conclusões.
Se a reflexão filosófica é pensamento sobre pensamento, isto é, pensamento que
se dobra sobre si (e podemos pensar sobre vários assuntos), tudo pode ser objeto da
filosofia. Podemos refletir filosoficamente sobre os pensamentos envolvidos naquilo
que dizemos, desejamos ou fazemos. Podemos, por exemplo, refletir sobre as ações
humanas, os desejos, as teses científicas e as teorias sociais. Podemos refletir sobre
a percepção, o tempo, a música, a arte, a vida, a angústia, a felicidade, a maldade, o
trabalho, o conhecimento, a política, a ciência e o prazer, ou até mesmo sobre o que é
pensar ou sobre o próprio refletir.
dPA/AlBum/lAtinstock
A sagração da primavera
(1975), coreografia de
Pina Bausch apresentada
pelo grupo Tanztheater
Wuppertal, em Bochum
(Alemanha), em 2003.
Durante a dança, o corpo
dos bailarinos se flexiona,
fornecendo movimento
à coreografia. O termo
flexão deu origem à palavra
reflexão. O pensamento
reflexivo indica um
movimento não físico, mas
mental, de um pensamento
que se dobra, ou seja, se
volta para si mesmo. É esse
tipo de pensamento que
caracteriza a filosofia.
20
Investigação conceitual
Novamente Sócrates pode nos ajudar a entender algumas características da filosofia.
O filósofo grego investiga o que é conhecimento, como relata Platão:
“Sócrates – Mas o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que
há conhecimento, nem quantos conhecimentos particulares pode haver;
minha pergunta não visava enumerá‑los um por um; o que desejo saber é
o que seja o conhecimento em si mesmo. Será que não me exprimo bem?
Teeteto – Ao contrário; exprimes‑te com muita precisão.
S. – Considera também o seguinte: se alguém nos perguntasse a respei‑
to de alguma coisa vulgar e corriqueira, por exemplo: o que é lama, e lhe
respondêssemos que há a lama dos oleiros, a dos construtores de fornos e
a dos tijoleiros, não nos tornaríamos ridículos?
T. – É provável.
S. – Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreen‑
de o que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos
que se trata da lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro
artesão. Ou achas que alguém entenderá o nome de alguma coisa, se des‑
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de
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AkG-i -
m AG e s/lAtinstock
Investigação rigorosa
A palavra rigor tem vários significados, entre eles, rigidez e inflexibilidade. Esse sen‑
tido nada tem a ver com a filosofia, que deve, como vimos, ser flexível, pois uma de suas
características centrais é o pensamento reflexivo. Mas há outros dois significados que
ajudam a esclarecer um pouco mais sobre a investigação filosófica: rigor também significa
concisão e sentido próprio. Uma pessoa concisa trata do essencial em poucas palavras.
Sentido próprio de algo é sua essência, o que faz esse algo ser como é.
A investigação filosófica é rigorosa porque busca a clareza dos conceitos (sua essência,
seu significado) utilizados em pensamentos e afirmações, como fazia Sócrates. Isto é, na
investigação filosófica, analisam‑se detalhadamente os argumentos, as conclusões e as
afirmações. Só dessa maneira pode‑se obter clareza sobre o que se pensa e afirma.
Além de crítico e reflexivo, o pensamento filosófico é conceitual, rigoroso e radical.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
importante que está presente de opiniões, hábitos e formas de pensamento, assistematicamente
na vida de qualquer pessoa,
inclusive dos filósofos. Mas estruturada e utilizada diariamente pelos seres humanos como for-
trata‑se de um conhecimento
baseado na experiência de
ma de entendimento e como forma de orientação de suas vidas.”
vida, nas tradições, no con‑ LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à filosofia: aprendendo
junto de crenças, hábitos e
opiniões de uma comunidade a pensar. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 36.
ou sociedade, cujas ideias e
pensamentos são tomados Com base nessa definição e no estudo realizado até o momento, debata com os
como verdadeiros sem que
tenham sido examinados
colegas sobre as diferenças entre senso comum e pensamento filosófico.
racionalmente.
O pensamento filosófico, ao
contrário do senso comum, é
um conhecimento adquirido
por meio da investigação
crítica, reflexiva, rigorosa,
Problemas e dinâmica da filosofia
radical e meticulosa sobre
os conceitos, as ideias, os
termos, as concepções e as
Diante do que vimos, podemos concluir que a filosofia é uma atividade racional que
teorias de qualquer área da recusa certezas. É uma ação, um movimento direcionado à sabedoria, que busca clareza
realidade ou do entendimento
humano, como a ciência, a sobre conteúdos pensados ou afirmados e, por esse motivo, é uma atividade crítica, re‑
arte, a religião e o próprio
senso comum.
flexiva e conceitual. Outra característica importante da filosofia é sua dinâmica própria,
que se inicia pelo espanto, estranhamento ou alguma dificuldade, que por sua vez origina
a formulação de um problema filosófico. As filosofias e o filosofar desenvolvem‑se na
busca de formulação dos problemas colocados pela realidade.
No entanto, não se trata de qualquer problema. O problema filosófico não é de‑
corrente de qualquer inquietação ou insatisfação que instigue perguntas, como “O
que faço para ir bem na prova?” ou “Como trocar o pneu do carro se perdi o macaco
hidráulico?”. Também não é da natureza de um problema matemático, que exige solução
exata, ou como o problema de um pintor em busca da melhor maneira de expressar
seus sentimentos na tela. Tampouco é um problema científico que pode ser estudado
empiricamente: “Quais são os componentes de um átomo?”. O problema filosófico tem
de ser construído por meio de reflexão. O estranhamento inicial a respeito de alguma
coisa instiga‑nos a pensar que há algo ali que necessita ser problematizado. Portanto,
é necessária a formulação mais precisa possível do problema para a atividade racional
esclarecedora se desenvolver bem.
Suponha que você, após ter entrado em conflito com um amigo, pensou sobre sua
relação de amizade e fez a si mesmo várias perguntas, entre elas: “Um verdadeiro amigo
faz o que ele fez?”. Entretanto, percebeu que, para responder seriamente a essa pergunta,
teria antes de refletir a respeito da ideia de amizade em geral. Em outras palavras, pensou
22
no significado da palavra ou no do conceito
Olga Maltseva/aFP
amizade e se indagou: “Afinal, o que é amiza
de?”. Repare que essa pergunta é diferente da
anterior: não faz nenhuma referência direta ao
conflito entre vocês, mas ao conceito que se
tem de amizade. Você estaria pensando sobre
o próprio pensamento. Algo assim: quando
se pensa sobre amizade, qual é o significado
desse pensamento? Suponha ainda que, no
processo de investigação sobre a amizade,
você chegasse à conclusão de que as teses,
afirmações ou definições sobre esse conceito
são, por diversos motivos, insatisfatórias. Você
estaria diante de um problema filosófico.
A filosofia e o filosofar desenvolvem
se por meio de teses e teorias que buscam Manifestantes protestam contra os maustratos aos animais, no Dia Mundial
responder a problemas. Compreender uma do Animal, em São Petersburgo (Rússia). Foto de 2015. Em meados de 1970,
filosofia ou um filósofo pressupõe conhecer o filósofo Peter Singer deparouse com uma questão observada na realidade
que o intrigou e a transformou em um problema: tratavase da pergunta
suas teses e a questão que esse filósofo
sobre os direitos dos animais. Tentou responder a essa problemática,
tentou elucidar. Muitas vezes, a tentativa de investigandoa nos livros Libertação animal e Ética prática. Nas décadas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
resolver ou solucionar um problema filosófico seguintes, as mobilizações ao redor do mundo em defesa dos direitos dos
conduz a novos problemas. animais ganharam maior visibilidade.
Filosofia e filosofias
Se a dinâmica do pensamento filosófico é estabelecida pela relação entre problemas e
teses, é razoável admitir que há inúmeras filosofias, porque há inúmeros problemas que foram
objeto da atenção dos filósofos. As teses e teorias filosóficas são diferentes porque tratam
de problemas distintos ou, se tratam do mesmo problema, apontam soluções diferentes.
Isso fica evidente até quando se busca responder à pergunta central: afinal, o que é
filosofia? O filósofo alemão Wilhelm Dilthey (18331911) tratou dessa dificuldade em
seu livro A essência da filosofia:
Não há uma resposta definitiva à pergunta “O que é filosofia?”. Cada filósofo responde
de acordo com sua filosofia, constituída pela relação entre problemas, teses e teorias.
Mas, ao constatar a pluralidade filosófica, Dilthey formula um novo problema: haveria
uma unidade essencial entre as filosofias?
23
Há unidade entre as filosofias?
A pluralidade de filosofias indica então um cenário caótico, no qual cada filósofo diz
o que pensa, reflete aleatoriamente e emite opiniões a seu bel‑prazer?
Se levarmos em conta o que estudamos até aqui, a resposta a essa pergunta certa‑
mente será negativa. A filosofia requer atitude crítica e reflexiva; e as reflexões estão
vinculadas a problemas bem definidos, que delimitam o filosofar. Por sua vez, os problemas
filosóficos não surgem a partir do zero, mas são formulados pelo filósofo ou por aqueles
que estão em contato com as reflexões de outros pensadores e por elas são influenciados,
seja para questioná‑las, seja para confirmá‑las. Assim, a tradição filosófica (as filosofias
e os filósofos) e o filosofar andam lado a lado. O filosofar não é uma atividade isolada, o
filósofo não desperta repentinamente com uma ideia brilhante fixada em seu pensamento.
Apolo de Belvedere Além disso, há problemas evidenciados por um pensador que perpassam o tempo e se
(c. 1015), cópia romana tornam objeto de investigação de vários filósofos, dando lugar a distintas filosofias. Nesses
de escultura grega casos, apesar de todas as diferenças, é possível afirmar que há uma unidade problemática
do século IV a.C. Para comum às filosofias. Por esse lado, pode‑se falar também de filosofia no singular.
Johann Winckelmann,
historiador da arte Entretanto, há filósofos e historiadores que defendem não existir relação entre as
alemão do século XVIII, grandes concepções filosóficas. Para eles, a continuidade histórica da filosofia é apenas
a escultura de Apolo é aparente. Os sistemas filosóficos responderiam a indagações próprias e subjetivas de cada
um exemplo da perfeição filósofo, que não teriam relações entre si.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
alcançada pela arte
Como se vê, a filosofia é uma atividade racional, crítica, reflexiva, cujo olhar investi‑
grega. O historiador
recomendava aos gativo pode incidir sobre tudo, nem mesmo a própria filosofia pode dele escapar.
artistas de seu tempo
que se voltassem a essa
escultura para aprender
As áreas de estudo da filosofia
o que é o belo, pois Vimos que todas as coisas podem ser objeto de pesquisa filosófica. No entanto, na
entendia que o ideal de
beleza grego deveria
história da filosofia, pode‑se observar que os filósofos refletiram sobre assuntos que
nortear as preocupações tradicionalmente são agrupados em algumas áreas de estudo.
estéticas. Por exemplo, a preocupação principal no campo da estética são a arte e o belo. Nessa
área, investigam‑se o entendimento que se tem da arte (O que é arte?) e as manifestações
artísticas ao longo da história.
Na teoria do conhecimento ou epistemologia, são desenvolvidas
reflexões sobre o que é conhecimento, quais suas possibilidades e
limites (O que é conhecimento? É possível obter conhecimento seguro
ou verdadeiro?).
O conhecimento científico adquiriu tamanha importância na sociedade
contemporânea que foi necessário criar uma área filosófica específica sobre
as reflexões relacionadas à ciência (O que é ciência?) e sua prática (Quais
são as características dos métodos científicos?): a filosofia da ciência.
Na lógica, os filósofos estudam os métodos e os princípios para distin‑
guir o raciocínio correto do incorreto, analisando a validade ou invalidade
dos argumentos.
Na ética, as reflexões giram em torno da prática humana, isto é, os prin‑
cípios da conduta humana e os valores morais (O que é bem? O que é mal?
O que devo e por que devo fazer?).
ullstein bild/Getty imaGes ‑ museu
Pio Clementino, Cidade do VatiCano
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Filosofia: origem oriental ou “milagre grego”?
Há muitas controvérsias sobre a origem da filosofia. Ela seria a continuidade de um
passado oriental ou uma invenção puramente grega? Os que defendem a origem oriental
da filosofia afirmam que as elaborações dos gregos na ciência e na filosofia seriam uma
espécie de continuação de doutrinas antigas – hebraica, egípcia, babilônica e indiana. Assim,
por exemplo, a geometria e a aritmética teriam nascido no Egito, e só posteriormente
essas disciplinas teriam sido utilizadas pelos gregos. A mesma coisa teria acontecido com
a filosofia, que, segundo essas teses, teria uma origem exterior à Grécia.
Há outra tendência entre os historiadores que afirma ser a filosofia uma espécie de
“milagre grego”, algo que surgiu única e exclusivamente pela genialidade do povo grego e
em decorrência de determinadas condições histórico‑sociais, como as condições geográficas
e econômicas – a Grécia está cercada por mares, o que teria facilitado o desenvolvimento
do comércio e da navegação – e as condições políticas – o desenvolvimento da democracia.
Existe ainda uma terceira posição, que leva em consideração as contribuições externas
à Grécia e, ao mesmo tempo, destaca os aspectos originais do pensamento grego. Assim,
na especulação grega, teriam sido utilizadas as regras de medida desenvolvidas no Egito,
criadas para demarcar as terras próximas ao Rio Nilo, todo ano inundadas pelas suas
cheias. No entanto, o pensador grego teria transformado o método ainda rudimentar
dos egípcios em uma ciência, a geometria, ao generalizar sua utilização para o cálculo de
áreas de qualquer formato.
O mesmo poderia se dizer das contribuições babilônicas em relação ao movimento
dos planetas. Segundo os babilônios, os acontecimentos humanos e da natureza eram
guiados pelos corpos celestes, o que levou ao desenvolvimento da astrologia. Os gregos
tiveram contato com essas observações sobre os planetas e, despojando‑as do caráter
prático astrológico, desenvolveram a astronomia. De certa forma, os gregos transforma‑
ram o conhecimento prático recebido de outras civilizações em conhecimento científico, Turistas visitam ruínas
ou seja, racional, sistemático e universal. do Partenon, em Atenas
Quanto à filosofia, as elaborações dos gregos não seriam mera continuidade da sa‑ (Grécia), construído
no século V a.C. Foto
bedoria oriental, cujas concepções ou ideias estariam marcadas pela religião. A filosofia
de 2014. A arquitetura
seria uma forma de pensamento que se guia pela investigação racional, e não uma ver‑ foi um dos elementos
dade já estabelecida, seja religiosa, seja mítica. Desse ponto de vista, apesar de todas as em que se evidenciou a
influências, a filosofia teria surgido na Grécia com os pensadores jônios. racionalidade grega.
Ed NortoN/GEtty ImaGEs
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Palavra de filósofo
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adquiri‑lo, e a isto se chama exatamente filosofar, alimento. Estou convencido, também, de que mui‑
cumpre começar pela pesquisa dessas primeiras tos há que não deixariam de o fazer, se albergassem
causas, ou seja, dos princípios. [...] a esperança de o conseguir, e soubessem quanto dis‑
Seguidamente eu faria notar a utilidade dessa so são capazes. Não existe alma, por menos nobre
filosofia e mostraria, tendo em conta que se esten‑ que seja que, embora permanecendo fortemente
de a tudo o que o espírito humano consegue saber, ligada aos objetos dos sentidos, não se afaste algu‑
que se deve crer ser ela apenas que nos distingue mas vezes deles para desejar um outro bem maior,
dos selvagens e bárbaros, e que é cada nação tanto ainda que ignore, com frequência, em que consiste.
mais civilizada e polida quanto melhor aí os homens Aqueles que a fortuna mais favorece, que desfrutam
filosofam, e assim que o maior bem de um Estado plenamente de saúde, honras e riquezas, não estão
é possuir verdadeiros filósofos. E, além disso, que, mais isentos de tal desejo que os outros; pelo con‑
para cada homem em particular, não é útil tão so‑ trário, penso que são estes que suspiram com mais
mente conviver com os que se aplicam a tal estudo, ardor por outro bem, mais soberano do que todos
mas é incomparavelmente melhor aplicar‑se‑lhe o aqueles que já possuem. Ora, este soberano bem,
próprio. Assim é que, sem dúvida, vale muito mais considerado pela razão natural sem luz da fé, não é
servir‑nos dos nossos olhos para nos conduzirmos outra coisa senão o conhecimento da verdade atra‑
e gozar da beleza das cores e da luz, do que mantê‑ vés das suas primeiras causas, isto é, a sajeza, de que
‑los fechados e, desse modo, seguir a alheia conduta. a filosofia é o estudo. E, visto que todas estas coisas
Porém é isso, no entanto, melhor que os manter fe‑ são inteiramente verdadeiras, não seriam difíceis de
chados e, apesar disso, guiar‑se por si próprio. Ora, aprender se fossem bem deduzidas.”
viver sem filosofar equivale, verdadeiramente, a DESCARTES, René. Princípios da filosofia. 4. ed. Lisboa:
ter os olhos fechados, sem nunca procurar abri‑los, Guimarães, 1989. p. 29‑32.
Pensando o texto Ver comentários e orientações no Suplemento para o professor no final do livro.
Sajeza:
1. Para Descartes, o que é filosofia?
sabedoria.
2. De acordo com o autor, qual é a função da filosofia? Localize no texto ele-
mentos que justificam sua resposta. Primacialmente:
primordialmente.
3. Para você, existe alguma função na filosofia? Justifique.
Albergar:
4. Segundo Descartes, “cada nação tanto mais civilizada e polida quanto me- conter; guardar;
lhor aí os homens filosofam, e assim que o maior bem de um Estado é pos- encerrar.
suir verdadeiros filósofos”. Você concorda com essa afirmação? Justifique.
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Atividades
Sistematizando o conhecimento A dúvida e a crítica existiram certamente
antes disso. O que é novo, porém, é que a dúvida
1. Heidegger afirmou que “ser homem já signifi‑ e a crítica tornam‑se agora, por sua vez, parte
ca filosofar”. Isso quer dizer que todos os seres da tradição da escola. Uma tradição de caráter
humanos aprofundam‑se na reflexão filosófi‑ superior substitui a preservação tradicional do
ca? Explique. dogma.”
POPPER, Karl. O balde e o holofote. In: MARCONDES,
2. Identifique as afirmativas como verdadeiras Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré‑socráticos a
(V) ou falsas (F). Wittgenstein. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 27.
a) ( ) O filósofo é aquele que deseja a filosofia Para o autor, a novidade da atitude filosófica
e sabe que a possui. grega consistia
b) ( ) Sócrates era sábio porque tinha cons‑ a) no ceticismo, pois defendia um pensamento
ciência de sua ignorância. em desacordo com a tradição.
c) ( ) Todos os aspectos da vida humana po‑ b) na defesa da transmissão de conhecimentos
dem ser objeto para a reflexão filosófica. aceitos pelo critério dogmático.
d) ( ) A multiplicidade de filosofias gera um c) na atitude crítica e na dúvida como elemen‑
cenário caótico, que impossibilita qualquer tos fundamentais do pensar filosófico.
definição de filosofia. d) no surgimento da dúvida e da crítica, que
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e) ( ) A atitude crítica pode ser aplicada a não existiam nas tradições anteriores.
todas as áreas do conhecimento, exceto e) no caráter absoluto da verdade na doutrina
a filosofia, por ser a crítica própria da sua defendida pelos filósofos, fundamentada
natureza. por critérios racionais.
“[...] as outras civilizações tinham sábios, 5. Analise a imagem para responder às questões:
mas os gregos apresentam esses ‘amigos’ que
não são simplesmente sábios mais modestos.
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Atividades
6. Leia o poema e responda às questões. nos protegemos, com nossos fones de ouvido,
celulares e vídeos, do encontro com o exterior.
“Não basta abrir a janela Agora, o ‘pau de selfie’ nos permite tirar fotos
Para ver os campos e o rio.
sem a incômoda necessidade de interagir com
Não é bastante não ser cego estranhos. [...]
Para ver as árvores e as flores. A máxima ironia do mundo globalizado é a
É preciso também não ter filosofia nenhuma. crescente insularidade do indivíduo. Como o
Com filosofia não há árvores: há ideias exterior é impessoal, nos embrenhamos no in‑
[apenas.” terior; como a comunidade nos debilita, a indivi‑
PESSOA, Fernando. Não basta. In: Poemas inconjuntos. dualidade se torna preponderante [...]. O grande
Disponível em <www.dominiopublico.gov.br/download/ balão da globalização explodiu em milhares de
texto/pe000003.pdf>. Acesso em 5 jan. 2016. bolhas comprimidas, que voam juntas, sem, no
a) Qual é a opinião do eu lírico sobre a filosofia? entanto, se roçarem.”
LEZAMA, Emilio. O que selfies revelam sobre o mundo
b) Você concorda com essa visão? Justifique.
atual. Folha de S.Paulo, 30 ago. 2015. Disponível em
<www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/08/1674877‑
7. Leia a citação do historiador Jean‑Pierre Ver‑ o‑que‑selfies‑revelam‑sobre‑o‑mundo‑atual.shtml>.
nant e responda às questões. Acesso em 5 jan. 2016.
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primeiramente se exprimiu, constituiu‑se e social para o nascimento da filosofia, discu‑
formou‑se. A experiência social pode tornar‑se ta em que medida o comportamento descrito
entre os gregos o objeto de uma reflexão posi‑ pelo autor pode demonstrar uma postura não
tiva, porque se prestava, na cidade, a um debate filosófica.
público de argumentos. O declínio do mito data
do dia em que os primeiros sábios puseram 9. Valendo‑se da leitura dos trechos a seguir e
em discussão a ordem humana, procuraram com base em seus conhecimentos, elabore
defini‑la em si mesma, traduzi‑la em fórmulas um texto dissertativo‑argumentativo usando
acessíveis à sua inteligência, aplicar‑lhe a norma a escrita formal da língua portuguesa sobre o
do número e da medida. Assim se destacou e se tema A filosofia ontem e hoje.
definiu um pensamento propriamente político,
exterior à religião, com seu vocabulário, seus
“Graças às doutrinas filosóficas, que se su‑
cederam ao largo dos séculos, o homem tem os
conceitos, seus princípios, suas vistas teóricas. instrumentos indispensáveis para entender e
Esse pensamento marcou profundamente a interpretar a si mesmo e ao mundo e tomar a ati‑
mentalidade do homem antigo; caracteriza uma tude do verdadeiro filosofar, isto é, do autêntico
civilização que não deixou, enquanto permane‑ existir. Mas as doutrinas são meios e não fins.
ceu viva, de considerar a vida pública como o Oferecem ao homem uma ajuda eficaz, mas não
coroamento da atividade humana. [...] Dentro
são tudo. Em última instância, é o homem que
de seus limites como em suas inovações, [a filo‑
deve decidir, o homem individualmente. A vida
sofia] é filha da cidade.”
apresenta continuamente questões às quais ele
VERNANT, Jean‑Pierre. As origens do pensamento grego.
2. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Difel, 1977. p. 94‑95.
deve responder.”
ABBAGNANO, Nicola. Introducción al existencialismo.
a) Segundo Vernant, qual foi o papel da de‑ Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1997. p. 13.
mocracia para o surgimento da filosofia na (Tradução nossa)
Grécia?
b) O que significa dizer que “a filosofia é filha
“[...] não é possível aprender qualquer filoso‑
fia; [...] só é possível aprender a filosofar, ou seja,
da cidade”? exercitar o talento da razão, fazendo‑a seguir os
seus princípios universais em certas tentativas
8. Ao refletir sobre o comportamento das pessoas
filosóficas já existentes [...].”
na atualidade, o escritor Emilio Lezama afirmou:
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril
“Em nossa época, os sistemas de defesa que Cultural, 1980. p. 407. (Coleção Os Pensadores)
criamos procuram nos isolar de um exterior
que se nega a ceder à tendência individualista
da sociedade. Por isso andamos de um lugar
a outro sem renunciar nunca a nosso mundo Insularidade: caráter de ser ilha. Neste caso, usado com
o sentido de isolamento.
[...]. Sentados entre centenas de passageiros,
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Ampliando
Cinema
RepRodução
Direção: Matteo Garrone – Duração: 116 min.
O filme retrata o cotidiano de Luciano, dono de uma peixaria em Nápoles, na
Itália. Casado e pai de três filhos, o comerciante leva uma vida pacata até o mo‑
mento em que se inscreve para participar de um reality show de muito sucesso.
A obsessão pela fama faz com que o personagem se afaste, aos poucos, da rea‑
lidade.
Ao longo do filme, o espectador é instigado a pensar sobre a superficialidade
da sociedade contemporânea centrada no mundo midiático do espetáculo, que
não prioriza a reflexão. Ao contrário, percebe‑se que as personagens, em vez de
problematizarem a realidade circundante, buscam no sucesso uma fórmula para
a resolução dos impasses sociais e existenciais.
Vamos ficar atentos
• Ao figurino das personagens e à fotografia do filme, recursos que contribuem
para que a obra apresente um tom de espetáculo que satiriza as produções
televisivas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Livro
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Enem, vestibulares e concursos
1. (Enem‑MEC/2015) 2. (Enem‑MEC/2013)
Texto I
MELLO, B.; BRITTO, S. A melhor banda de todos os A charge revela uma crítica aos meios de co-
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tempos da última semana. São Paulo: Abril Music, 2001. municação, em especial à internet, porque
(Fragmento) a) questiona a integração das pessoas nas redes
virtuais de relacionamento.
b) considera as relações sociais como menos
Texto II importantes que as virtuais.
O fetichismo na música e c) enaltece a pretensão do homem em estar
em todos os lugares ao mesmo tempo.
a regressão da audição
d) descreve com precisão as sociedades huma-
“Aldous Huxley levantou em um de seus en‑ nas no mundo globalizado.
e) concebe a rede de computadores como o es-
saios a seguinte pergunta: quem ainda se diverte
paço mais eficaz para a construção de rela-
realmente hoje num lugar de diversão? Com o
ções sociais.
mesmo direito poder‑se‑ia perguntar: para quem
a música de entretenimento serve ainda como 3. (Enem‑MEC/2012)
entretenimento? Ao invés de entreter, parece Texto I
que tal música contribuiu ainda mais para o
emudecimento dos homens, para a morte da “Anaxímenes de Mileto disse que o ar é
o elemento originário de tudo o que existe,
linguagem como expressão, para a incapacidade existiu e existirá, e que outras coisas provêm
de comunicação.” de sua descendência. Quando o ar se dilata,
ADORNO, T. Textos escolhidos. São Paulo: transforma‑se em fogo, ao passo que os ventos
Nova Cultural, 1999. são ar condensado. As nuvens formam‑se a
partir do ar por filtragem e, ainda mais con‑
A aproximação entre a letra da canção e a crí- densadas, transformam‑se em água. A água,
tica de Adorno indica o(a): quando mais condensada, transforma‑se em
a) lado efêmero e restritivo da indústria cul- terra, e quando condensada ao máximo possí‑
tural.
vel, transforma‑se em pedras.”
BURNET, J. A aurora da filosofia grega. Rio de Janeiro:
b) baixa renovação da indústria de entreteni- PUC‑Rio, 2006. (Adaptado)
mento. Texto II
c) influência da música americana na cultura
“Basílio Magno, filósofo medieval, escreveu:
brasileira. ‘Deus, como criador de todas as coisas, está no
d) fusão entre elementos da indústria cultural princípio do mundo e dos tempos. Quão parcas
de conteúdo se nos apresentam, em face desta
e da cultura popular.
concepção, as especulações contraditórias dos
e) declínio da forma musical em prol de outros filósofos, para os quais o mundo se origina, ou
meios de entretenimento. de algum dos quatro elementos, como ensinam
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os Jônios, ou dos átomos, como julga Demócrito. convencer alguns de vocês. Pois se eu disser que
Na verdade, dão a impressão de quererem anco‑ tal conduta seria desobediência ao deus e que por
rar o mundo numa teia de aranha’.” isso não posso ficar quieto, vocês acharão que
GILSON, E.; BOEHNER, P. História da filosofia cristã. São estou zombando e não acreditarão. E se disser
Paulo: Vozes, 1991. (Adaptado) que falar diariamente da virtude e das outras
Filósofos dos diversos tempos históricos de‑
coisas sobre as quais me ouvem falar e questio‑
senvolveram teses para explicar a origem do nar a mim e a outros é o bem maior do homem e
universo, a partir de uma explicação racional. que a vida que não se questiona não vale a pena
As teses de Anaxímenes, filósofo grego antigo, viver, vão me acreditar menos ainda.”
e de Basílio, filósofo medieval, têm em comum PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: MARCONDES, Danilo.
na sua fundamentação teorias que Textos básicos de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007. p. 20.
a) eram baseadas nas ciências da natureza.
A partir do texto citado é CORRETO afirmar que
b) refutavam as teorias de filósofos da religião.
01) Sócrates não aceita a sentença de seus inter‑
c) tinham origem nos mitos das civilizações
antigas. locutores porque a rebeldia e a não aceitação
das ordens são próprias de um filósofo.
d) postulavam um princípio originário para o
mundo. 02) Sócrates defende uma atitude permanente
de questionamento para os homens, sem a
e) defendiam que Deus é o princípio de todas
qual a vida não valeria a pena ser vivida.
as coisas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“Talvez alguém diga: ‘Sócrates, será que você 08) proporciona a paz de espírito.
não pode ir embora, nos deixar em paz e ficar 16) estabelece verdades absolutas.
quieto, calado?’ Ora, eis a coisa mais difícil de Soma: _____________________
02 + 04 = 6
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e
1
id
Un
O que é?
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Capítulo 1 Capítulo 3 Capítulo 5
O que é isso? O que é realidade? O que é felicidade?
Origem da filosofia; investigação da Concepções sobre a realidade; a A ideia de felicidade; a interiorização
natureza; o ser humano e a natureza; teoria platônica; a metafísica e as das filosofias helenísticas; a
problemas ambientais. críticas a ela. intranquilidade na sociedade atual.
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lo
tu
O que é isso?
1
pí
Ca
O ser e a ética
O objetivo desta abertura é sensibilizar o aluno para dois fatores importantes de nossa relação com a natureza: o ato de contemplação ou
admiração e a relação de domínio.
Ver comentários complementares no Suplemento para o professor, no final do livro.
Espanto e domínio
“Diga‑lhes que esta vida não cessou “A dominação universal da natureza volta‑se
de me maravilhar.” contra o próprio sujeito.”
amanaimages/CorBis/latinstoCK
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A grande onda de Kanagawa (c. 1830), gravura de Katsushika Emissão de gases poluentes por fábrica de papel em Fuji (Japão),
Hokusai. A representação grandiosa das ondas e do Monte Fuji 2012. Para alguns ambientalistas, o degelo no Monte Fuji se
ao fundo contrasta com a pequena dimensão dos pescadores, relaciona ao aumento da emissão e da concentração de gases do
ameaçados pela fúria do oceano. efeito estufa, derivados da combustão de carvão e petróleo.
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Descobrindo a tradição
Além disso, de acordo com os versos, as coisas da natureza têm o próprio ritmo, mui‑
tas vezes cíclico. “Enquanto o tempo / Não trouxer teu abacate / Amanhecerá tomate /
E anoitecerá mamão”. Isso significa que a natureza parece ordenada e harmônica. Ao
observá‑la, você percebe essa harmonia? De um ano para o outro, as estações se sucedem
na mesma sequência; no decorrer dos dias, entre o nascer e o pôr do sol, transcorre um
período regular; as flores se tornam vistosas na primavera e os frutos amadurecem em
ciclos repetitivos. Também é possível encontrar padrão em cada espécie animal, que é
gerada e desenvolvida para se perpetuar. Parece haver uma força que guia e dá coesão
aos fenômenos naturais, que se apresentam como unidade ordenada.
Em contrapartida, na natureza há elementos e seres com características bastante dis‑
tintas, como o abacateiro, o pato, o leão, o tomate, o mamão e o ser humano. A natureza
parece ser, ao mesmo tempo, múltipla e una. Mas como isso é possível? Como algo pode
ser simultaneamente uno e múltiplo?
Ao investigar a natureza, os primeiros filósofos enfrentaram esse problema. Afinal, o que
é a natureza? Como explicar sua unidade e sua variabilidade? Por que ela é assim? Haverá
algum motivo ou alguma razão que determine a existência dos fenômenos tais como são?
Essa última pergunta fornece pistas sobre o processo de formação da filosofia. Os
primeiros pensadores, que posteriormente foram chamados de filósofos ou naturalistas,
encantaram‑se com a natureza e quiseram conhecê‑la. Para eles, conhecer era descobrir
as razões ou explicar os motivos que faziam algo ser exatamente como era. Por exemplo,
digamos que você tirou nota baixa em uma prova. Ao investigar os motivos de seu fraco
desempenho, chegou à conclusão de que a causa principal foi o fato de não ter estudado. Eis
aí o motivo ou a razão da nota baixa. Da mesma maneira, os primeiros filósofos observavam a
unidade e a diversidade presentes nos fenômenos naturais e, com base no que constatavam,
investigavam os motivos ou as razões de a natureza ser ao mesmo tempo una e múltipla. Com essa pergunta, busca‑se
Para entender a novidade do pensamento filosófico, vamos analisar a maneira como instigar o aluno a refletir sobre
a problemática enfrentada pe‑
a tradição explicava ou organizava o mundo antes do surgimento da filosofia. los pré‑socráticos e prepará‑lo
para o entendimento das res‑
postas dadas pelos primeiros
filósofos, que serão estudadas
mais à frente. Esses filósofos,
Para pensar monistas ou pluralistas, teo‑
rizaram sobre a presença de
uma ou mais substâncias em
Como você explicaria a unidade e a variabilidade da natureza? todas as coisas existentes, o
que conferiria unidade à diver‑
sidade verificada na natureza.
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Descobrindo a tradição
O pensamento mítico
Teogonia: narrativa do
Os mitos (mýthos) eram narrativas orais apresentadas na forma de poemas musicados.
nascimento dos deuses O poeta‑cantor (aedo) contava histórias tradicionais, ligadas à origem de tudo ou à con‑
e apresentação de sua dição do ser humano no mundo. Por meio dessas narrativas, o indivíduo comum entrava
genealogia. em contato com a memória cultural de seu povo e podia conhecer seus heróis, deuses,
Cosmogonia: narrativa
valores éticos e religiosos, em um período anterior à constituição da pólis e à adoção
das origens e da do alfabeto. Além disso, com os mitos procurava‑se explicar o princípio do mundo e a
formação do mundo. formação do Universo, a origem dos deuses e também os acontecimentos que afetavam
os seres humanos. Assim, os mitos eram narrativas, teogonias ou cosmogonias , que de
alguma forma ordenavam a realidade. Leia a seguir as formulações de Hesíodo e Homero,
que contribuíram para que a tradição mítica existisse e fosse preservada.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
grega, após uma guerra HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2011. p. 109.
malograda contra os
deuses do Olimpo,
Zeus condenou Atlas a “‘Senhor dos raios brilhantes, por que convocaste os deuses para uma
sustentar o firmamento assembleia? Consideras algo a respeito dos troianos e dos aqueus?...’
sobre os ombros por Zeus, o ajuntador de nuvens, respondeu‑lhe dizendo:
toda a eternidade. Daí ‘[...] Permanecerei... sentado aqui num vale do Olimpo, de onde possa
a expressão: “carregar o contemplar a guerra, segundo a vontade de meu próprio coração. Vós ou‑
mundo nas costas”.
tros, ide vos juntar aos troianos e aos aqueus, e dar a vossa ajuda a um ou
a outro, segundo se inclinar o espírito de cada um de vós...’
Assim falou o filho de Cronos e provocou incessante discórdia. Os deu‑
ses partiram para a guerra divergindo de opinião.”
HOMERO. Ilíada (em forma de narrativa). Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. p. 218‑219.
VIII a.C.), há uma narrativa sobre a interferência dos deuses gregos no mundo
humano, no caso, durante a Guerra de Troia.
As histórias míticas de Hesíodo e de Homero atravessaram gerações por
intermédio da tradição oral. Vencendo séculos, chegaram aos dias de hoje, sem
que saibamos exatamente como e quando foram compostas (no caso de Ilíada,
nem sequer estamos seguros de que seu autor realmente tenha existido). Para
os gregos da Antiguidade, os mitos e a oralidade dos aedos tinham a função de
explicar o mundo e justificar a organização da realidade social.
Na Grécia antiga, a forma mítica de explicar o mundo entrou em declínio com o
desenvolvimento econômico e cultural das cidades‑Estados. Com a gradual consoli‑
dação da democracia grega, a intensificação das viagens comerciais e o consequente
contato com outras culturas, o reaparecimento da escrita e a utilização da moeda,
o mundo grego foi se transformando profundamente e o ser humano passou a
ocupar um lugar central na ordem das coisas. Diante dessa situação, foi necessário
desenvolver outra forma de entender e de explicar os fenômenos e a sociedade.
36
Entre todas essas mudanças importantes para a constituição e o desenvolvimento do
pensamento filosófico, destaca‑se a democracia, forma de organização político‑social que
propiciou o debate, o confronto público de ideias entre indivíduos de diferentes camadas
sociais e tribos que disputavam o poder e o questionamento dos princípios que sustenta‑
vam as antigas convenções, os costumes e as tradições. A exposição de argumentos para
defender ideias sobre os rumos da cidade e a elaboração escrita das leis estimularam o
desenvolvimento do logos. Esse termo grego é associado a muitos significados, entre os
quais discurso, cálculo, pensamento, inteligência e razão. A democracia impulsionou o
discurso racional sobre o indivíduo, a cidade e a natureza, ajudando a estabelecer as bases
sobre as quais caminharia a filosofia.
Outro aspecto relevante que contribuiu para a mudança de mentalidade na Grécia an‑
tiga e a instauração do critério da racionalidade entre os cidadãos foi a produção de textos
escritos, que constituíam um novo modo de discurso. A oralidade poética dos aedos era
baseada na tradição e provocava a simpatia ou a emoção do ouvinte. Os textos escritos
estabeleciam outra forma de comunicação: não se tratava mais da narrativa emotiva dos
acontecimentos passados, mas de uma explicação racional que poderia ser questionada por
qualquer um que a analisasse. A possibilidade de voltar ao texto favoreceu a reflexão crítica.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ETRUSCOS
Demócrito 40° N
Protágoras
Leucipo
Zenão Aristóteles
Abdera
Parmênides Estagira
Xenófanes
Eleia ÁSIA
JÔNIA MENOR
MAGNA Anaxágoras Heráclito Tales
GRÉCIA Pirro Clazomena Éfeso Anaximandro
Élida Anaxímenes
Empédocles
Atenas Samos Mileto
Agrigento
M ESPARTA Platão Epicuro Zenão
A Sócrates Pitágoras
Rodes
Cítio
R Panécio
M Posidônio
ED CRETA
ITE
RR
ÂNE
O
250 km
Grécia continental
Grécia peninsular
Grécia insular
Áreas de colonização grega
20° L
Fonte: DUBY, Georges. Atlas historique mondial. Paris: Larousse, 2003. p. 14.
37
Descobrindo a tradição
38
A tentativa de solução racional do
problema do uno e do múltiplo
Voltemos ao problema enfrentado pelos primeiros filósofos, também chamados
de naturalistas ou pré‑socráticos : qual seria a causa de a natureza ser una e múltipla Pré‑socráticos:
filósofos anteriores a
ao mesmo tempo? Qual seria o princípio ( arkhé ) ou a origem da natureza ( physis ) que Sócrates (c. 470‑399
possibilitaria e determinaria essa característica? a.C.). Eles foram assim
Se os naturalistas não recorriam aos deuses para explicar um fenômeno natural, não denominados porque
podiam dizer: “A natureza é assim porque Zeus quis”. Eles procuravam regras e normas uma classificação
posterior da filosofia
na própria natureza. Nesse sentido, o exame filosófico dos naturalistas se assemelhava,
antiga adotou como
em alguns aspectos, ao dos cientistas de hoje, que investigam a natureza e elaboram referência a figura de
normas e leis sobre ela. Sócrates.
Parte dos naturalistas pensou desta maneira: se a natureza é una e também múltipla, Arkhé: fundamento,
é preciso encontrar algum elemento que esteja presente em tudo o que existe, para justi‑ origem ou princípio.
ficar sua unidade. Esse elemento deve estar em quantidades diferentes em cada coisa, para
Physis: natureza, origem,
explicar as diferenças. De acordo com essa ideia, a unidade seria resultado da presença do
desenvolvimento e
mesmo elemento em tudo e a multiplicidade seria resultado da diferença da quantidade regresso de todas as
desse elemento em cada coisa. coisas; movimento
Tales de Mileto formulou a hipótese de que a água ou a umidade seria o princípio de tudo: vital; realidade
estaria presente em todas as coisas e constituiria todos os seres, mas em proporções diferentes. primeira e última de
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Se Tales dizia que o princípio elementar era a água e Anaxímenes (c. 588‑524 a.C.), o
ar, Anaximandro (c. 610‑547 a.C.) afirmava que a matéria primordial era indeterminada
e ilimitada (apeíron). Outros elegeram como substância primordial o fogo, a terra ou a
mistura dos quatro elementos: água, fogo, terra e ar.
39
Descobrindo a tradição
Os filósofos pluralistas
Além dos pensadores Tales e Anaxímenes, que explicavam a realidade elegendo uma
única matéria primordial, existiam os chamados filósofos pluralistas, que defendiam a
existência de vários princípios, e não de apenas um. Entre eles estavam Empédocles,
Anaxágoras e os filósofos atomistas Leucipo e Demócrito.
De acordo com Empédocles (c. 493‑433 a.C.), filósofo da cidade de Agrigento, na
Magna Grécia, atual Sicília, a terra, a água, o fogo e o ar seriam as raízes de todas as coisas.
Essas substâncias não teriam surgido ou nascido; elas sempre teriam existido e seriam,
portanto, fixas e imutáveis. O movimento espacial seria responsável pela mescla dessas
substâncias primárias. As raízes eternas e imutáveis teriam se misturado em proporções
diferentes. Cada coisa da natureza seria formada por uma combinação dessas substâncias
básicas. Mas o que faria essas substâncias perfeitas se moverem? Eis a originalidade de
Empédocles: duas forças cósmicas seriam as causas da mudança e do movimento: a força
de atração (amor ou amizade) e a de repulsão (ódio ou discórdia).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
nunca param de mudar continuamente, ora convergindo num todo graças
ao amor, ora separando‑se de novo por ação do ódio da discórdia. Assim,
tal como elas aprenderam a tornar‑se numa só a partir de muitas, e de
novo, quando uma se separa, geram muitas, assim elas nascem e a sua
vida não é estável; mas, na medida em que jamais cessam o seu contínuo
intercâmbio, assim existem sempre imutáveis no ciclo.”
EMPÉDOCLES. Fragmento 348. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os filósofos
pré‑socráticos. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 301.
Alegoria da água,
obra da série Quatro
elementos (c. 1627),
Anaxágoras (c. 499‑428 a.C.) nasceu em Clazômenas, região da Jônia, e passou grande
do pintor italiano parte da vida em Atenas, onde foi um dos responsáveis por introduzir a especulação da
Francesco Albani. filosofia jônica. Ele atribuía muita importância ao papel do Espírito na formação do mundo.
Inicialmente abordada O Espírito teria conhecimento total do mundo. Dotado do maior poder, governaria tudo
pela filosofia, a teoria o que tivesse vida. No entanto, embora entendesse que o Espírito fosse uma existência à
dos quatro elementos
é constantemente
parte das coisas da natureza, Anaxágoras não o compreendia como um ser imaterial ou
retomada nas e Agostini Pi
incorpóreo. Considerava‑o a mais sutil e pura das coisas.
D ctur
e Li
obras de arte. br
Ar
y/b O Espírito – denominado por Anaxágoras como nous – teria sido o res‑
ri
D ge
m
An ponsável por iniciar o movimento de ordenação do mundo. Com esse
movimento, as coisas, que estavam em um caos original, teriam se
im
Ag
40
“Demócrito... designa o espaço pelos seguintes nomes: ‘o vazio’, ‘o
Assim, esses filósofos buscaram algo que permanecesse sempre igual no constante
processo de mudança da natureza. Deram o nome de átomo a esse ser imutável e eterno.
Além de indivisíveis (átomon = “indivisível”), os átomos seriam partículas compactas, com
tamanhos diferentes e constantes, sem outras características. Por serem muito pequenas,
essas partículas não poderiam ser observadas ou percebidas pelos órgãos dos sentidos.
No entanto, quando se agregavam em número muito grande, compunham as coisas ou
os seres da natureza. Quando um ser ou uma coisa deixava de existir, a composição se
desfazia, mas os átomos se mantinham. Assim, a união e a separação dos átomos expli‑
cavam todos os acontecimentos na natureza.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O sistema elaborado por esses filósofos, que influenciou a ciência durante muito Vulcano forjando os
tempo, ficou conhecido como materialista. O nome deve‑se ao fato de que, segundo raios de Júpiter (c. 1637),
esse sistema, a essência, a realidade última de tudo o que existe é o átomo, a unidade pintura de Peter Paul
mais elementar da matéria. Rubens. Com a filosofia,
a natureza deixa de ser
vista como manifestação
A novidade do pensamento filosófico do sagrado para ser
entendida como algo
que pode ser explicado
Para pensar e conhecido pelo ser
humano.
Depois de ter conhecido algumas ideias dos primeiros filósofos naturalistas, que
resposta você daria à pergunta: quando teve início e o que o pensamento filosófico
trouxe de novo?
Espera ‑se que os alunos,
mesmo que de maneira par‑
Com a filosofia, aos poucos a natureza deixou de ser compreendida como uma exten‑ cial, percebam a mudança na
concepção de natureza ad‑
são emotiva do ser humano ou como consequência da ira ou da benevolência dos deuses. vinda da filosofia – a natureza
teria regras próprias, e não
Ela passou a ser concebida como uma legalidade, isto é, regida por leis ou regras próprias. sobrenaturais – e a prevalên‑
cia das explicações racionais
Embora as regras que regem a natureza sejam independentes do homem, elas podem sobre a realidade.
ser conhecidas pelo ser humano. O instrumento para conhecê‑las é a razão (logos). O
discurso racional pode apreender essas regras e estabelecer sistemas de explicação da
realidade. Ou seja, pela razão o homem pode descortinar a natureza.
Na origem da filosofia, estas três ideias estão presentes: a natureza tem regras próprias;
o ser humano pode conhecer essas regras; o instrumento desse conhecimento é a razão.
Fernando gonsales
41
Outras perspectivas
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riam, mas eles buscavam princípios ou regras gerais que pudessem explicar,
ao mesmo tempo, a harmonia (unidade) e a diversidade (multiplicidade).
Para tanto, lançavam mão de ideias e conceitos, como o de arkhé e o de
logos, que estavam além do que podia ser empiricamente investigado. suas
investigações estavam orientadas principalmente pelo desejo de conhecer.
Os cientistas modernos agem de maneira diferente. Eles buscam as leis
dos fenômenos, que podem ser estabelecidas com base na observação, isto
é, buscam as relações permanentes entre fenômenos, em determinadas
Filósofo e matemático francês, circunstâncias. Por exemplo, uma porção de água potável congela sempre
é considerado “pai” da filosofia
que atinge temperaturas abaixo de 0 °C e, sempre que um metal é aque‑
moderna. Iniciou seus estudos
em colégio jesuíta, cursou di‑ cido a determinado grau, dilata‑se. As descobertas científicas das leis da
reito e, em 1618, alistou‑se no natureza não são investigadas apenas para se adquirir conhecimento, mas
Exército holandês de Maurício também para serem utilizadas em benefício das pessoas. Nesse aspecto, há
de Nassau. Descartes desen‑ uma diferença importante entre o pensamento dos primeiros filósofos e o
volveu a base do pensamento dos cientistas modernos.
racionalista, segundo o qual
todo conhecimento provém
Os textos a seguir têm muito a nos dizer sobre a abordagem da natureza
da razão. Ao proferir a célebre pela ciência moderna e sobre a influência desse pensamento na sociedade
frase “Penso, logo exis to” atual. Neles, os filósofos Francis Bacon (1561‑1626) e René Descartes registra‑
(“Cogito, ergo sum”), o filósofo ram o modo como enxergavam a relação do ser humano com a natureza. suas
fez a distinção entre mente e reflexões influenciaram diversos pensadores, como Johannes Kepler, Galileu
matéria, que é a base do seu Galilei e Isaac Newton, entre muitos outros cientistas que colaboraram para
pensamento dualista. Buscou a constituição da ciência moderna.
consolidar a ciência funda‑
mentada na razão, valendo‑se
da metafísica e da física para
elaborar separadamente os
“Mas, se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e
o domínio do gênero humano sobre o Universo, a sua ambição
princípios do conhecimento (se assim pode ser chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e
humano e das coisas materiais.
a mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre
suas principais obras foram:
O discurso do método, As medi- as coisas se apoia unicamente nas artes e nas ciências. A natu‑
tações metafísicas, O tratado do reza não se domina, senão obedecendo‑a.”
homem, O tratado do mundo e BACON, Francis. Novum organum. São Paulo:
Os princípios de filosofia. Abril Cultural, 1973. p. 94. (Coleção Os Pensadores)
42
“[...] é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida, e que, ao
invés dessa filosofia especulativa ensinada nas escolas, pode‑se encontrar
uma filosofia prática, mediante a qual, conhecendo a força e as ações do
fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que
nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios de
nossos artesãos, poderíamos empregá‑las do mesmo modo em todos os
usos a que são adequadas e assim nos tornarmos como que senhores e
possessores da natureza.”
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 81‑82.
natureza, que estaria a nosso dispor, pronta para nos servir. Para dominá‑la, bastaria
conhecer como ela funciona, as causas e os efeitos dos fenômenos naturais, suas leis.
segundo essa ótica, utilizamos o conhecimento científico para aumentar a produtividade
da agricultura; estudamos o comportamento dos peixes para pescá‑los; investigamos as
propriedades do ferro e do aço para construir casas, edifícios, carros e estradas de ferro;
pesquisamos o espaço sideral para colocar em órbita satélites que ampliam nossa comu‑
nicação; fazemos experiências com roedores, macacos e outros animais para cuidar de
nossa saúde e evitar doenças, e assim por diante. A natureza é considerada, de acordo
com essa visão, uma espécie de reservatório infindável, cujos recursos estão à disposição
de nossos interesses, para nosso prazer e bem‑estar.
Esse tipo de relação que estabelecemos com a natureza nos trouxe muitos benefícios,
mas também nos causou vários problemas. A intervenção humana sobre o ambiente fre‑
quentemente provoca a extinção de espécies de animais e de plantas, prejudica os ecos‑
sistemas ao poluir os rios e o ar, ameaça a vida de todo o planeta e, claro, a própria vida
humana. Esses fatos refletem a necessidade de repensarmos nossa relação com a natureza.
yasuyoshi ChiBa/aFp
Feira de produtos
orgânicos na cidade
do Rio de Janeiro (RJ),
2015. O avanço do
conhecimento humano
sobre a natureza favoreceu
o desenvolvimento da
agricultura; no entanto,
o emprego de certas
técnicas agrícolas
desestabilizou os
ecossistemas. Na tentativa
de evitar esse problema,
cresce a aplicação de
métodos de plantio que
enriquecem o solo, como
a rotação de culturas, e
investe‑se na produção de
alimentos orgânicos, livres
de agrotóxicos.
43
Outras perspectivas
Dominação cega
O pensamento de domínio e de utilização da natureza para o benefício do ser humano
difundiu‑se com o desenvolvimento do capitalismo, sistema alicerçado na produção e na
venda de mercadorias cujas matérias‑primas são retiradas, na maior parte das vezes, da
natureza. Não se trata mais de admirar a natureza ou de perceber sua unidade e conhecer
seus fundamentos, como pretendiam os filósofos naturalistas.
Além disso, quando olhamos a natureza como algo a ser dominado, criamos um es‑
tranhamento em relação a ela, o que significa que não nos reconhecemos nela.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
povo, um país etc.).
Os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer usavam a expressão
razão instrumental para designar um significado para a razão que se teria instituído
plenamente a partir da ciência moderna. Nesse momento, a razão teria se desvinculado
da reflexão sobre os fins mais gerais, que deveriam guiar os procedimentos racionais.
Assim, conceitos e valores como humanidade, liberdade, justiça, verdade, igualdade
e felicidade, que não poderiam ser mensurados nem classificados, teriam deixado de
pertencer ao âmbito da razão.
A razão teria se tornado utilitária, atendendo às exigências dos novos padrões de vida ob‑
servados a partir da modernidade. Com os modos de viver moderno e contemporâneo, todo
pensamento que não servisse aos objetivos da produção industrial ou aos interesses políticos
de grupos hegemônicos seria considerado inútil. Ao se desvincular de um conteúdo humanista,
a razão teria se transformado em apenas um instrumento, uma forma de manipulação que
poderia ser utilizada para qualquer fim. A razão instrumental seria a capacidade de calcular
probabilidades e coordenar os meios adequados para se atingir um fim, mas não seria reflexiva.
Na sociedade ocidental contemporânea, o ser humano indagaria sobre a natureza
por meio da razão instrumental: “Que proveito posso tirar dela?”; “Como posso lucrar
na exploração do petróleo, da água, da madeira ou do metal?”; “Como posso manipular
a natureza para ganhar tempo, produtividade e lucro?”.
Por meio da razão instrumental, o ser humano não refletiria sobre a situação do
planeta, sobre a vida na Terra, nem sobre valores mais gerais. Imporia uma dominação
cega, imediata e rasteira sobre a natureza. Mas tal tipo de dominação teria consequências
adversas para o ser humano e para a própria natureza.
Calvin & Hobbes, bill Watterson © 1989
Watterson/Dist. by Universal UCliCk
44
Pensando sobre os problemas ambientais
Na imagem ao lado, os troncos de árvores choram e
AlmApBBDO/GreenpeAce
demonstram descontentamento diante do destino que
lhes foi imposto pelos seres humanos. O desmatamento
intenso das florestas e suas consequências são, entre
outros exemplos, importantes preocupações ambientais
da atualidade.
A atitude humana de explorar a natureza de maneira
intensa sem refletir sobre as consequências disso, como se
elas não atingissem sua espécie, e a disposição de dominar a
natureza e usar de maneira desmedida seus recursos, subju-
gando os outros seres e devastando suas riquezas, são ações
que têm um preço. A intervenção humana sobre a natureza
tem provocado a poluição atmosférica, o aumento das chu-
vas ácidas, a poluição dos lagos e dos rios, o desmatamento,
a elevação da temperatura da Terra, a degradação do solo,
além de prejuízos à biodiversidade – extinção de espécies
animais e vegetais – e escassez de água potável. Campanha publicitária da organização não governamental
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
45
Outras perspectivas
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enciclica ‑laudato ‑si.html>. degradação do ambiente natural e humano. Nela, o religioso afirmou: “A Terra, nossa
Acesso em 14 jan. 2016.
casa, parece transformar‑se cada vez mais num imenso depósito de lixo”.
De acordo com o filósofo e psicanalista francês Félix Guattari (1930‑1992), as reflexões
contemporâneas não podem se restringir à contemplação da natureza nem dissociar o
meio ambiente da realidade social – constituída de complexas relações culturais, eco‑
nômicas e políticas – sem levar em conta a mentalidade do indivíduo contemporâneo.
Para Guattari, uma mudança profunda e efetiva da nossa sociedade depende de uma
visão e de ações mais amplas – políticas e éticas –, que abarquem três tipos de ecologia:
a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade, esferas que devem estar
articuladas para esclarecer a situação da realidade natural e humana em sua totalidade.
Tecnocrata: estadista
“É evidente que uma responsabilidade e uma gestão mais coletiva se im-
põem para orientar as ciências e as técnicas em direção a finalidades mais
ou alto funcionário
que busca soluções
humanas. Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos
técnicas e racionais aparelhos de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses
para os problemas, domínios, regidos no essencial pelos princípios da economia de lucro. Certa-
sem considerar o mente seria absurdo querer voltar atrás para tentar reconstituir as antigas
aspecto humano. maneiras de viver. Jamais o trabalho humano ou o habitat voltarão a ser o
que eram há poucas décadas, depois das revoluções informáticas, robóticas,
depois do desenvolvimento do gênio genético e depois da mundialização do
conjunto dos mercados. A aceleração das velocidades de transporte e de co-
municação, a interdependência dos centros urbanos [...] constituem igual-
mente um estado de fato irreversível que conviria antes de tudo reorientar.”
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 11. ed.
Campinas: Papirus, 2001. p. 23‑24.
A ciência e a técnica devem ser reorientadas para finalidades mais humanas, segundo
Guattari. Os seres humanos não devem ser guiados cegamente por tecnocratas orientados
por interesses da sociedade capitalista. Claro está que se trata de uma reorientação de
acordo com a qual se leva em conta a situação econômica, cultural e política contempo‑
rânea, e não a volta ao passado, no qual as conquistas humanas, como as revoluções da
informática, da robótica e da genética, entre outras transformações recentes, com seus
benefícios e malefícios, não existiam.
46
No mesmo campo de preocupação, mas com formulações distintas, o filósofo no‑
rueguês Arne Naess (1912‑2009) criou o conceito de ecologia profunda. Ele criticou a
visão sobre a natureza predominante no mundo e propôs mudanças de ordem política,
social e econômica para a existência harmoniosa entre os seres vivos, ideias expostas no
Manifesto da ecologia profunda:
zoltron
Terra e sua diversidade são compreen‑
didas como bens em si, cujo valor está
desatrelado da utilidade que podem ter
para o ser humano. No entanto, para que
a vida terrestre com sua diversidade seja
preservada, o ser humano tem de mudar
drasticamente sua orientação econômica,
tecnológica e ideológica. Isso significa que
a humanidade deve rever sua organização
econômica e sua forma de consumo, reo‑
rientar a utilização da tecnologia, além
de repensar a maneira como entende a
natureza e se relaciona com ela.
47
Outras perspectivas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Bernard pras ‑ Coleção partiCular
A grande onda (2007), instalação do artista plástico francês Bernard Pras. A obra, feita de materiais
encontrados no lixo, é uma releitura da gravura de Hokusai, reproduzida na abertura deste capítulo. se a
obra do japonês simbolizava o espanto humano diante da grandiosidade da natureza, a do francês mostra
a interferência, muitas vezes devastadora, do ser humano em seu ambiente. Entretanto, ao conferir uma
nova utilização para o lixo, o artista propõe uma forma diferente de lidar com a natureza.
48
Palavra de filósofo
“Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão respirar sem esforço e artifício. O mundo – artifício
do homem, foi lançado ao Universo, onde durante humano – separa a existência do homem de todo
algumas semanas girou em torno da Terra segundo ambiente meramente animal; mas a vida, em si,
as mesmas leis de gravitação que governam o movi‑ permanece fora desse mundo artificial, e através da
mento dos corpos celestes – o Sol, a Lua e as estrelas. vida o homem permanece ligado a todos os outros
É verdade que o satélite artificial não era nem Lua organismos vivos. Recentemente, a ciência vem‑se
nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse esforçando por tornar ‘artificial’ a própria vida, por
prosseguir em sua órbita circular por um período de cortar o último laço que faz do próprio homem um
tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão
Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde terrena manifesta‑se na tentativa de criar a vida de
permanecer nos céus durante algum tempo; e lá fi‑ proveta, no desejo de misturar, ‘sob o microscópio,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
cou, movendo‑se no convívio dos astros como se es‑ o plasma seminal congelado de pessoas comprova‑
tes o houvessem provisoriamente admitido em sua damente capazes a fim de produzir seres humanos
sublime companhia. [...] superiores’ e ‘alterar(‑lhes) o tamanho, a forma e a
O curioso, porém, é que essa alegria não foi triun‑ função’; e talvez o desejo de fugir à condição humana
fal; o que encheu o coração dos homens que, agora, esteja presente na esperança de prolongar a duração
ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar da vida humana para além do limite dos cem anos.
uma de suas obras, não foi orgulho nem assombro Esse homem futuro, que segundo os cientistas
ante a enormidade da força e da proficiência huma‑ será produzido em menos de um século, parece moti‑
nas. A reação imediata, expressa espontaneamente, vado por uma rebelião contra a existência humana tal
foi alívio ante o primeiro ‘passo para libertar o ho‑ como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada
mem de sua prisão na Terra’. [...] (secularmente falando), que ele deseja trocar, por as‑
Há já algum tempo este tipo de sentimento vem‑ sim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há
‑se tornando comum; e mostra que, em toda parte, razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar
os homens não tardam a adaptar‑se às descobertas essa troca, tal como não há motivo para duvidar de
da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgâ‑
estão décadas à sua frente. Neste caso, como ou‑ nica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar
tros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que nessa direção nosso novo conhecimento científico e
os homens haviam antecipado em sonhos – sonhos técnico – e esta questão não pode ser resolvida por
que não eram loucos nem ociosos. [...]. meios científicos: é uma questão política de primeira
A Terra é a própria quintessência da condição hu‑ grandeza, e portanto não deve ser decidida por cien‑
mana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser sin‑ tistas profissionais nem por políticos profissionais.”
gular no Universo, a única capaz de oferecer aos seres ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed.
humanos um habitat no qual eles podem mover‑se e Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 9‑10.
Pensando o texto Ver comentários e orientações no Suplemento para o professor no final do livro.
Quintessência:
1. Explique as seguintes afirmações com base no texto. segundo
a) Os humanos estão décadas à frente das descobertas científicas e dos Aristóteles,
feitos técnicos. substância invisível
b) O ser humano deseja fugir da condição humana. e inalterável que
constituiria os
2. A Terra é a prisão do indivíduo ou o fundamento da condição humana? planetas e as
3. Em sua opinião, o desenvolvimento da ciência pode afetar, ou está afe- estrelas.
tando, a natureza humana? Debata com os colegas.
49
...........................................................................................
...........................................................................................
...........................................................................................
...........................................................................................
Atividades
Sistematizando o conhecimento tudo o mais. Que o gênero humano recupere os
seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe
1. O que diferencia o pensamento filosófico do competem por dotação divina. Restitua‑se ao
pensamento mítico? homem esse poder e seja o seu exercício guiado
por uma razão reta [...].”
2. Como a unidade e a variabilidade da nature- BACON, Francis. Novum organum. São Paulo: Abril
za motivaram as investigações dos primeiros Cultural, 1973. p. 94‑95. (Coleção Os Pensadores)
filósofos?
5. Com base nos trechos a seguir e em seus co-
nhecimentos, redija uma dissertação filosófica,
Aprofundando usando a escrita formal da língua portuguesa,
sobre o tema “Desenvolvimento sustentável:
3.
Carlos ruas
uma possibilidade ou uma ilusão?”. Busque
estruturar seu texto com uma pequena intro-
dução sobre o problema ou assunto que será
tratado, um desenvolvimento, com a exposição
de suas principais ideias, e uma conclusão.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
comprometer a possibilidade de as gerações
futuras atenderem as próprias necessidades.”
COMISSÃO Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. p. 46, 49.
50
..........................................................................................
..........................................................................................
..........................................................................................
lo
tu O que são valores?
2
pí
Ca
Com o texto e a imagem da abertura, pretende-se estimular o aluno a refletir sobre a atitude dos humanos em relação a suas criações – no caso,
os robôs. Problematizar o emprego da inteligência artificial significa também refletir sobre as ações humanas, isto é, questionar as criações
humanas, bem como os limites de sua utilização. Trata-se, então, de uma reflexão ética introdutória ao capítulo a fim de sensibilizar o aluno para
o conteúdo que será tratado: alguns aspectos do pensamento ético antigo, moderno e contemporâneo.
Ver orientações complementares no Suplemento para o professor, no final do livro.
superior? Qual?
Runner? Imaginando esse cenário, o escritor de ficção científica Isaac
Asimov elaborou três leis para dirigir o comportamento dessas máquinas. 3. Discuta com os colegas
sobre a necessidade ou não
de normatizar a utilização e
“1 lei: um robô não pode ferir um ser humano [...].
a
o comportamento dos robôs,
2 lei: um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam da-
a
especialmente aqueles para
das por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens fins militares.
contrariem a primeira lei.
3a lei: um robô deve proteger a sua própria existência, des-
de que tal proteção não entre em conflito com a primeira e a
segunda leis.”
ASIMOV, Isaac. Eu, robô. 2. ed. 1969. Disponível em <www.
planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/
clle000024.pdf>. Acesso em 18 jan. 2016.
Warner Brothers/
Getty ImaGes
51
Descobrindo a tradição
O Sol nascerá é uma canção dos compositores Cartola e Elton Medeiros. O argumento
do eu lírico pode ser assim ordenado: como chorando eu perdi a mocidade, pretendo
levar a vida sorrindo. É uma espécie de conselho de como viver melhor. A busca de uma
vida boa parece ser comum a todos os seres humanos. Todos procuram viver bem. Mas
eis o problema: o que é bem? O que é mal? O que é bom? O que é ruim? O que devemos
fazer ou não fazer para viver bem?
Na abertura deste capítulo, refletimos sobre a normatização do uso e do compor-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tamento de robôs. Perguntamos a nós mesmos em que o emprego de robôs militares
prejudicava ou beneficiava o ser humano e se sua utilização não feria princípios ou valores
humanos importantes. Qualquer que tenha sido nosso entendimento sobre o assunto,
realizamos uma reflexão ética. Ética é o campo de reflexão sobre a prática, nossas ações
e o que as motiva, e sobre valores que orientam nosso comportamento: o que é bom ou
ruim, bem ou mal, justo ou injusto etc.
Ao pensar sobre a situação de nossa relação com a natureza e sobre o que devemos
fazer para garantir nosso bem e o das futuras gerações, como fizemos no capítulo 1, por
exemplo, desenvolvemos reflexões éticas.
Calvin e Haroldo (1993), tirinha de Bill Watterson. Nossa vida está repleta de reflexões éticas, como a
contida no dilema vivido por Calvin.
52
O que é o ser humano?
Como vimos, os primeiros filósofos perguntaram sobre a natureza: o
Sofista: palavra derivada do grego
que é a natureza (physis)? Qual é seu princípio? O que é uno? O que é
sophistés, que significa algo como
múltiplo? Qual é a matéria primordial da qual tudo surge e para a qual “professor de sabedoria”. Designa
tudo retorna? Ao investigar a natureza, esses pensadores acreditavam que o filósofo que ensinava os jovens
poderiam compreender melhor o ser humano. Afinal, nós também fazemos da Grécia antiga em troca de
parte da natureza. Mas o homem e as coisas humanas só se tornaram o foco remuneração.
principal da reflexão filosófica durante o período clássico da filosofia grega, Pejar: envergonhar-se.
entre os séculos V e IV a.C., graças aos sofistas e ao filósofo Sócrates. Em
certo sentido, a partir deles as investigações passaram a tentar responder
à pergunta: “O que é o ser humano?”.
RogéRio BoRges
dos os outros bens particulares e públicos.”
PLATÃO. A defesa de Sócrates.
São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 15. (Coleção Os Pensadores)
Para pensar
53
Descobrindo a tradição
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de justiça. O sofista havia afirmado que “o justo é o vantajoso para o mais forte”. Dessa
afirmação decorreram as indagações de Sócrates.
A justiça (1961),
escultura de Alfredo “Sócrates – [...] Explica-me... Não afirmas, entretanto, que também
Ceschiatti, no Supremo obedecer aos governantes é justo?
Tribunal Federal, em Trasímaco – Afirmo.
Brasília. Para Sócrates, Sócrates – São infalíveis, em cada uma das cidades, os governantes ou
não era possível
podem cometer erro?
conhecer a justiça pelos
exemplos de homens Trasímaco – Certamente, disse ele, podem cometer erro.
ou de ações justas, mas Sócrates – Então, quando se põem a fazer leis, umas as fazem de modo
por meio da definição correto, outras, de modo não correto.
conceitual. Trasímaco – É o que penso...
Sócrates – Fazê-las de modo correto é estabelecer vantagens para si
João Prudente/Pulsar Imagens
54
Nesse diálogo, Sócrates levou a afirmação de Trasímaco a uma contradição – “é justo
não só fazer o que é vantajoso para o mais forte, mas também o contrário, o que não é
vantajoso” –, demonstrando que a definição de justiça do sofista não era verdadeira e
abrindo a possibilidade de seu interlocutor pensar mais claramente sobre o conceito de
“justiça” e sobre os outros valores que dizia conhecer. Ao agir dessa maneira, Sócrates
buscava instigar a consciência crítica de quem participava de seus diálogos.
Assim procedia conversando com políticos, sofistas, artistas e qualquer cidadão de
Atenas sobre “amor”, “verdade”, “bem”, “bondade”, “conhecimento” e “sabedoria”, en-
tre outros temas relacionados às virtudes humanas. Segundo o pensamento socrático,
para praticar uma virtude, é preciso conhecê-la. De acordo com esse pensamento, para
praticar a justiça, por exemplo, é preciso saber o que é justiça; para praticar a bondade,
é preciso saber o que é bondade, e assim por diante – é preciso conhecer a essência de
cada conceito. Por isso, o conhecimento é o fundamento da moralidade socrática, isto é,
para agir bem, é preciso conhecer.
Era pela importância do conhecimento dos conceitos que Sócrates buscava investigá-
-los rigorosamente, para que a alma, ao evitar o engano, evoluísse, aperfeiçoando-se. O
ser humano virtuoso seria aquele que dedicasse a vida ao aprimoramento da alma ou da
consciência, procurando conhecer a verdade por meio da atividade racional.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Arte conceitual
Na obra Uma e três cadeiras, de Joseph
Kosuth, é possível fazer analogias entre o
rigor conceitual socrático e o movimento
artístico conhecido como arte conceitual,
que teve início na década de 1960, ques-
FlorenCe - mUseU De arte moDerna, nova york
© kosUth, JosePh/aUtvIs, BrasIl, 2016. sCala,
55
Descobrindo a tradição
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Oriundos de várias cidades gregas, os sofistas convergiram para Atenas no século V a.C.,
acompanhando o desenvolvimento econômico, social, cultural e político da mais importante
cidade-Estado do mundo grego na época. Eles eram professores profissionais – os primeiros
na história do Ocidente – que ensinavam jovens interessados em especializar-se em alguma
técnica ou ofício e em participar dos negócios da pólis. Transmitiam conhecimentos úteis a
todos aqueles que estivessem dispostos a pagar pelos seus ensinamentos.
Muitos sofistas ressaltaram o contraste entre a destinação natural e a destinação
Nomos: convenção
social, acordo humano, social do ser humano. Alguns, seguindo a tradição aristocrática, defendiam o caráter
costume. necessário e imperativo das leis, costumes e valores da sociedade, pois afirmavam que
eram naturais (physis) e não dependiam da vontade humana; outros diziam que as
leis humanas não eram universalmente obrigatórias, pois eram criadas por convenção
( nomos ), não sendo, por esse motivo, absolutas, mas relativas, variando sua conve-
niência de cidade para cidade.
56
A contraposição entre nomos e physis – o que é por natureza e o que é por convenção, Contingente: que
o que não pode mudar e o que é contingente – estendeu-se a diversos assuntos na Atenas pode ou não ocorrer;
daquele período (séculos V e IV a.C.). Por exemplo, discutia-se se os deuses existiam de casual.
fato – isto é, por physis – ou se eram criações humanas por nomos; se as cidades se cons-
tituíram por ordenação natural ou por nomos; se, entre os seres humanos, as distinções
sociais eram naturais ou decorrentes de convenção social; se a escravidão era natural ou
convencional, ou seja, se o indivíduo era escravo por natureza ou não.
As polêmicas também alcançaram os valores ou os conceitos morais, como justiça e
injustiça, verdade e mentira, bem e mal, como ficou claro no trecho de A República, de
Platão, reproduzido na página 54.
A democracia ateniense
As pólis, cidades-Estados gregas da Antiguidade, apesar da língua e de muitos elemen-
tos culturais em comum, eram independentes umas das outras: possuíam instituições
políticas, jurídicas e militares próprias e buscavam ser economicamente autossuficientes.
A pólis representava essencialmente uma comunidade cívica, ou seja, de cidadãos.
Vale lembrar, porém, que a cidadania na Grécia antiga não era estendida às mulheres, às
crianças, aos estrangeiros e aos escravos. Era um direito concedido apenas aos homens
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Carlos Caminha
Sugerimos esclarecer aos alunos a diferença entre democracia direta (praticada em Atenas, na Antiguidade) e democracia indireta (ou representativa). No modo
direto, os cidadãos discutem e votam diretamente sobre os assuntos de governo. No modo indireto, os cidadãos elegem seus representantes, como acontece
no Brasil hoje. Vale destacar o fato de que, na democracia indireta, cabe aos cidadãos acompanhar a atuação dos representantes eleitos. 57
Descobrindo a tradição
A retórica e a verdade
Na cidade-Estado de Atenas, o domínio da palavra tinha muita importância.
tarker/BrIDGeman ImaGes/keystone BrasIl -
mUseU arqUeolóGICo De olímPIa
Máscara teatral grega do “[...] a retórica, por assim dizer, abrange o conjunto das artes, que ela
século IV a.C. Segundo mantém sob sua autoridade. Vou apresentar uma prova eloquente disso
Quintiliano (35-95 d.C.), mesmo. Por várias vezes fui com meu irmão ou com outros médicos à casa
professor de retórica de doentes que se recusavam a ingerir remédios ou a deixar-se amputar
romano, o orador
ou cauterizar; e, não conseguindo o médico persuadi-los, eu o fazia com a
deveria, à semelhança
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de um dramaturgo, ajuda exclusivamente da arte da retórica. Digo mais: se na cidade que qui-
cumprir o papel de ator seres, um médico e um orador se apresentarem a uma assembleia do povo
e identificar-se com seus ou a qualquer outra reunião para argumentar sobre qual dos dois deverá
ouvintes, tornando-os ser escolhido como médico, não contaria o médico com nenhuma proba-
espectadores de sua arte. bilidade para ser eleito, vindo a sê-lo, se assim o desejasse, o que soubesse
falar bem. [...] Tal é a natureza e a força da arte da retórica!”
PLATÃO. Górgias. In: Protágoras, Górgias, Fedão.
2. ed. Belém: EDUFPA, 2002. p. 140-141. (Coleção Platão Diálogos)
Como se pode ver na exposição do sofista Górgias reproduzida por Platão em seu
diálogo, a retórica era considerada a arte das artes, pois, por meio da palavra bem utilizada,
podia-se persuadir qualquer pessoa. Ela era um instrumento poderoso em uma sociedade
na qual os negócios importantes da pólis eram decididos em assembleias.
Tal defesa da retórica foi severamente criticada em diversos momentos por Sócrates
e Platão. Para eles, os sofistas falavam de coisas sobre as quais não tinham conhecimento
e convenciam os ignorantes. Por exemplo, quem realmente tivesse conhecimento sobre
medicina confiaria mais em um médico do que em um hábil orador, capaz de iludir por
palavras. Só os que ignoravam essa ciência seriam convencidos por um discurso. Nesse
sentido, a retórica sofística seria a arte ou o método da ilusão, que se relacionaria à opinião
e à aparência, mas não se comprometeria com o conhecimento nem revelaria a verdade.
Observe como Sócrates, no mesmo diálogo, rebateu Górgias.
58
Relativismo e absolutismo moral
A persuasão pode levar à crença sem conhecimento ou ao conhecimento, mas Sócrates
acusou Górgias, e os sofistas em geral, de só se importar em convencer, e não em conhecer
a verdade. Os sofistas falariam de tudo, sem conhecer nada, lidando apenas com a opinião.
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são,
e das coisas que não são o que não são.”
PROTÁGORAS. In: GUTHRIE, William K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995. p. 173.
Essa declaração é atribuída a Protágoras. Ela resume uma posição relativista sobre as
coisas, pois, se o homem é a medida de todas as coisas, a verdade é algo relativo a cada
indivíduo, isto é, depende de sua interpretação ou percepção; é algo subjetivo, que se
refere a cada sujeito. Por exemplo, o mel pode parecer doce para alguns e amargo para
outros; um indivíduo sente frio ao perceber uma brisa, enquanto outro sente calor, e as-
sim por diante. Então, o que é bom para determinada pessoa pode ser ruim para outra.
Assim também acontecia com o justo e o injusto ou o bem e o mal. Diferentemente do
que defendiam Sócrates e Platão, não existia uma verdade (justiça ou bem) em si, inde-
pendentemente do que cada pessoa pensa, que todos deviam buscar. Na reflexão ética,
essas duas posições são conhecidas como absolutista e relativista. Até hoje, há divisão
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Relativismo
De acordo com os defensores do relativismo, pessoas de culturas e de sociedades
diferentes têm ideias diversas acerca dos valores morais, como o bem e o mal. Em uma
mesma sociedade, os valores também mudam com o tempo. O que antes era considerado
vergonhoso, hoje pode ser aceito como louvável ou vice-versa. Há discordância sobre o
que é o bem e o mal também entre indivíduos de uma mesma sociedade. Assim, não há
juízos morais absolutos; todos são relativos ao indivíduo ou à sociedade.
m.C. esCher’s “relatIvIty” © 2016 the m.C. esCher ComPany-
-hollanD. all rIGhts reserveD.
59
Descobrindo a tradição
Absolutismo
Os que se alinham nessa corrente argumentam que, se não houvesse valores morais
objetivos, isto é, independentes do que pensa cada sujeito e que aspiram à universalidade,
não seria possível criticar qualquer conduta. Um indivíduo poderia cometer as ações mais
degradantes e não poderia ser repreendido. Tais ações, por sua vez, não seriam classificadas
como “degradantes”. Isso inviabilizaria a vida em sociedade.
Além disso, de acordo com os absolutistas, a preocupação ética está presente em todas
as sociedades humanas e é possível dizer que há princípios universais, como “a sociedade
deve cuidar das crianças”, “deve-se proteger a vida humana” ou “é errado mentir”.
Umar QayyUm/XinhUa Press/Corbis/LatinstoCk
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Crianças em Peshawar, Paquistão, durante as comemorações do dia 20 de novembro, reconhecido pela
Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Mundial das Crianças. Foto de 2015. A proteção às
crianças deve ser um princípio ético universal. Apesar disso, elas ficam extremamente vulneráveis em
várias situações desencadeadas por conflitos bélicos e pela desigualdade socioeconômica, entre outras.
60
Para pensar O que evidencia a humaniza-
ção do dinossauro Horácio
é o fato de que, além de
compreender uma lingua-
© Mauricio de SouSa editora Ltda. gem humana expressa pelo
mamute (também humani-
zado), ele se autoindaga a
respeito de um problema
ético: quem tem mais direito
à vida? Só o ser humano re-
flete sobre problemas éticos
como esse.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Se você, por exemplo, dedica mais tempo ao estudo do que ao descanso na rede, tem
a convicção de que isso é melhor para sua vida; se você se preocupa com a situação difícil
de uma amiga, dá valor a ela e à amizade; se chora a perda de um ente, valoriza a vida e o
amor entre as pessoas. Estamos sempre tendo de refletir e decidir sobre as nossas atitudes
e os valores nelas implicados – a mentira, a traição, o engano, a injustiça, a verdade, o
amor... Nesse sentido, é impossível ser amoral, isto é, viver sem entender minimamente
o que os valores significam. Se assim fosse, nós nos aproximaríamos da vida dos outros
animais, quer dizer, abdicaríamos de nossa humanidade.
Além disso, como alertou o filósofo Aristóteles, discípulo de Platão, o ser humano
não é apenas racional; ele também é um ser social ou político. E, para viver em sociedade,
é necessário cumprir regras e normas de convivência, além de observar as leis, escritas
ou não escritas, que regulam as relações entre as pessoas. Novamente somos obrigados
a pensar sobre o que é melhor para a sociedade e para todos os que dela fazem parte.
Estamos de volta às reflexões éticas.
Talvez tenhamos de nos dedicar a construir uma possibilidade intermediária entre
o relativismo e o absolutismo, levando em conta, de alguma maneira, as preocupações
legítimas dos defensores das duas posições. Acreditar de maneira veemente que os
valores humanos são absolutos é, em certa medida, ignorar as diferenças culturais que
estão presentes em todo o mundo. Em contrapartida, o relativismo extremado implica
não só a defesa de que cada sociedade deve ter suas normas e valores, mas também a
de que cada indivíduo tem valores independentemente da sociedade. Isso levaria cada
um a agir como bem entendesse, o que impossibilitaria o convívio social e, por extensão,
inviabilizaria a sociedade.
Cabe à humanidade construir acordos mínimos sobre valores humanos que não sejam
entendidos como absolutos, mas que tendam ao universal; afinal, a condição humana se
expressa também na constante reflexão que o homem faz de sua vida, de suas ações e
da sociedade. Será isso possível?
61
Outras perspectivas
stF/aFP
Abertura da 3a Assembleia
Geral da ONU, em
setembro de 1948. As
discussões realizadas nesse
encontro levaram à criação
da Declaração Universal
dos Direitos Humanos,
proclamada em 10 de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dezembro de 1948.
Artigo 1.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos ou-
tros com espírito de fraternidade.
Artigo 2.
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, ori-
gem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
[...]
Artigo 3.
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo 4.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o trá-
fico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
62
Artigo 5.
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante.
[…]
Artigo 7.
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei. Todos têm igual proteção contra qualquer discriminação que
viole a presente declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
[…]
Artigo 13.
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência
dentro das fronteiras de cada Estado.
[…]
Artigo 18.
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e
religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liber-
dade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo cul-
to e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo 19.
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este
direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Que valores deveriam ser respeitados por toda e qualquer sociedade? E que direitos
deveriam ser garantidos a todos os seres humanos? Justifique.
63
Outras perspectivas
Universalidade e diferença
A Declaração Universal dos Direitos Humanos parte do pressuposto de que existem
valores que todos os indivíduos devem respeitar. O respeito a tais valores, por sua vez,
deve se efetivar em direitos e em leis, para que todos tenham uma vida digna. Se esses
direitos ainda não tiverem sido conquistados plenamente, o Estado e a sociedade devem
atuar para torná-los universais, isto é, comuns a todas as pessoas.
Nessa discussão também incide a problemática do caráter universal dos valores. Se,
por um lado, é louvável a ideia de que todo ser humano deve ter acesso a determinados
valores – como a vida, a liberdade de pensamento, de expressão e de locomoção, a justiça
e a igualdade –, por outro, a implementação desses valores em lei sofre resistências de
diversas ordens. A começar pela definição dos valores, que são entendidos diferentemente
em cada cultura. Para que a declaração se torne lei e esta faça parte da vida das pessoas
de todos os países-membros da ONU, é preciso enfrentar diferenças e interesses políticos,
econômicos, jurídicos, religiosos e culturais.
Nesse aspecto, é esclarecedor o texto do filósofo político italiano Norberto Bobbio
(1909-2004):
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que assina um nitários comuns aos Estados signatários , conciliando as diferenças referen-
documento, no caso, a tes a tradições jurídicas, sistemas políticos e fé religiosa, é muito notável.
Declaração Universal Essas diferenças não existem apenas entre os Estados ocidentais e Estados
dos Direitos Humanos. de ‘democracia popular’, entre mundo cristão e mundo islâmico, entre tra-
Common law: na dições anglo-saxônicas de common law e tradições continentais de ‘direito
tradução, direito comum. civil’. Frequentemente, há diferenças de considerável importância entre
Trata-se de um direito países que têm muito em comum, entre os Estados unidos e grã-Bretanha
que se desenvolveu em e entre os países da Europa Ocidental, do mundo árabe e da América latina.
alguns países nos quais se Não são de menor relevância as diferenças de condição econômica e
adotam as decisões dos
social. A tomada de um compromisso internacional de garantia dos di-
tribunais, e não apenas
a legislação, ou seja, reitos humanos e das liberdades individuais, sobretudo dos direitos em
a decisão de um caso matéria de cultura, e dos direitos econômicos e sociais e ainda dos direitos
depende das decisões de de ordem civil e política, é certamente menos onerosa para os países de
casos anteriores. avançado nível econômico e social do que para os países menos evoluídos
de recente formação, ou limitados em seus recursos naturais ou sacudidos
por fenômenos de ineficiente valorização dos fatores de produção. uma
coisa é empenhar-se internacionalmente em garantir a cada indivíduo o
‘direito ao estudo’ para um Estado economicamente avançado, já dotado
de uma organização escolar adequada, e outra para um Estado novo eco-
nomicamente em baixa, desprovido de tal organização.”
BOBBIO, Norberto e outros. Direitos humanos. In: Dicionário de política.
Brasília: UnB, 1986. p. 356.
As diferenças entre países e culturas engendram problemas éticos. Essas diferenças de-
vem ser respeitadas de maneira absoluta? Por exemplo, organizações internacionais como
a ONU devem ou não interferir em um país em que a escravidão é disseminada? Onde a
mutilação do órgão sexual feminino faz parte de procedimentos culturais? Onde a prática
de apedrejamento por adultério é frequente, ou uma minoria religiosa é massacrada? Será
que isso não é impor um padrão relativo como se fosse universal? Em contrapartida, permitir
a manutenção de situações que ferem a dignidade humana não é algo controverso?
E os países que dirigem a ONU não têm objetivos particulares? Não manipulam essa
organização para que ela atue de acordo com seus interesses? Por trás da neutralidade e
da defesa de valores e de direitos universais não se escondem interesses particulares? A
declaração não reflete uma visão muito ocidental ou capitalista do mundo?
64
Todas essas reflexões são importantes. A reflexão ética é cada vez mais complexa, A problemática dos direitos
humanos será retomada no
porque cada vez mais complexo é o mundo em que vivemos. Não há respostas simples. capítulo 10, no qual serão
tratados alguns aspectos
Isso não deve nos inibir de defender a dignidade humana – isto é, a ideia de que todo da sociedade moderna e
o indivíduo tem um fim em si mesmo –, de lutar para que toda e qualquer pessoa possa contemporânea. Nele será
desenvolvido o estudo do
viver de maneira digna, de defender ideais humanos, de reivindicar o direito de todos jusnaturalismo, que envolve
a ideia de direitos naturais
a condições sociais, econômicas e políticas para se desenvolver e usufruir plenamente do ser humano e direitos
da vida. positivos.
Na primeira foto,
indivíduos da etnia
Bushmen se reúnem em
volta de uma fogueira
no Deserto de Kalahari
(Botsuana). Foto de 2014.
Na segunda imagem,
rua da cidade de Osaka
(Japão). Foto de 2015.
Cada cultura tem sua
forma de existência, sua
organização social, suas
tradições e seus valores.
O desafio da Declaração
Universal dos Direitos
Humanos é instituir valores
que possam conviver
com a multiplicidade das
sociedades humanas.
65
Outras perspectivas
“Entrevistador: Você acha que hoje em dia temos que nos preocupar
com mais questões morais do que no passado? Comer, gastar e economizar
dinheiro, o que e onde comprar, o efeito estufa, usar carro, avião ou bicicleta,
aborto, decidir sobre nossa própria morte, ter filhos (por fertilização in vitro)
se tornaram problemas morais. Estamos criando mais problemas morais?
Singer: Sim, essa é uma observação interessante, porque se nós tivésse-
mos vivido em uma pequena comunidade, não pudéssemos auxiliar pessoas
fora desta comunidade, não soubéssemos nada sobre os problemas dos ga-
ses que causam o efeito estufa ou não tivéssemos a tecnologia em medicina
necessária para salvar recém-nascidos com malformação congênita ou fa-
zer fertilização in vitro, haveria menos problemas do que temos. Podería-
mos viver uma vida mais tradicional e provavelmente uma boa vida, que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quase pudemos ter, mas o mundo mudou tão drasticamente que surgiram
Ciclistas e pedestres durante novas tensões morais. A forma como comemos, especialmente se comemos
o Dia Mundial sem Carro em muita carne, vai contribuir para aumentar as emissões dos gases causado-
Paris (França). Foto de 2015. res do efeito estufa, assim como a energia que consumimos, se dirigimos
A campanha foi organizada ou usamos transporte público, por exemplo. Acho que todos nós devemos
com o objetivo de alertar fazer algo bastante drástico e bem rápido e, se não o fizermos, causaremos
as pessoas quanto ao uso danos irreversíveis ao planeta. Temos de tomar as medidas drásticas que
excessivo do automóvel,
promovendo formas
precisamos neste momento, acho que temos de mudar. As pessoas podem
alternativas de mobilidade. mudar seu estilo de vida, mas nós devemos ser politicamente ativos e dizer
Diante de problemas aos governos que eles têm de fazer algo a respeito disso também.”
como o efeito estufa e Entrevista a Peter Singer. Uma ética para o século 21. In: WOLF, Eduardo (Org.).
o aquecimento global, Pensar a filosofia. Porto Alegre: Arquipélago, 2013. p. 159-160.
discutir novas maneiras de
locomoção se torna uma
questão ética. Tanto a pergunta quanto a resposta da entrevista eviden-
ciam uma característica da sociedade contemporânea: a criação
de problemas éticos. Quanto mais avançam o conhecimento
humano, a ciência e a tecnologia, quanto mais o ser humano
interfere na natureza e a modifica, modificando-se também,
mais decisões morais é necessário tomar. O desenvolvimento
traz novas possibilidades. Cada nova conquista gera conse-
quências positivas e negativas, e o ser humano tem de lidar com
isso, tem de refletir, como constatamos ao discutir o exemplo
da utilização dos robôs na abertura deste capítulo.
Talvez as reflexões éticas hoje tenham um grau de impor-
tância que jamais tiveram. Diante, por exemplo, dos avanços
médicos e genéticos, quais devem ser os limites de intervenção
sobre o homem e sobre a natureza? Como o ser humano deve
usar o poder científico na agricultura e na pecuária? Como deve
Aurelien Meunier/Getty iMAGes
66
As dúvidas e as perguntas sobre a conduta humana não param por aí. O envelhecimen-
to da população e a possibilidade de prolongamento da vida de portadores de doenças
fatais estimulam reflexões sobre a qualidade de vida do idoso e do doente. Afinal, o que
é uma vida digna? Que tipo de conduta a sociedade deve ter com a experiência do enve-
lhecimento? E com a experiência da morte?
Outro aspecto marcante da sociedade contemporânea é a violência disseminada
entre pessoas, grupos sociais e nações. A criação e a utilização da bomba atômica foram
a realização de um ideal belicista que uniu conhecimento e poder. Essa situação implica a
banalização da vida. Qual é o sentido da vida ou qual é o valor da vida humana em nossa
sociedade? Por que há tanta intolerância?
É possível ser livre em uma sociedade na qual predominam o consumismo, a massi-
ficação e o controle? Como é possível ser livre se os padrões de comportamento estão
rigidamente estabelecidos e são cotidianamente divulgados pela mídia? Muita gente pensa,
age e se comporta da mesma maneira. As escolhas são verdadeiras ou apenas aparentes?
Qual é o espaço para a individualidade e a liberdade humanas?
As perguntas são muitas. A vida humana implica a formulação de perguntas e a
tentativa de respondê-las. Implica, ainda, a detecção de problemas e a busca de solução
para eles. Tais perguntas e problemas só são percebidos pela razão humana. A reflexão
sobre nossas ações, independentemente do lugar para onde ela nos leva, é o exercício
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
humano da liberdade.
67
Palavra de filósofo
A justiça e as aparências
O escrito abaixo foi retirado de uma das principais obras de Platão: A República, diálogo extenso em que se
desenvolve a teorização platônica em torno de uma cidade justa ideal ou das maneiras para se chegar a essa
forma de organização social. O trecho reproduzido é uma exposição que Glauco faz a Sócrates a respeito do
pensamento de muitas pessoas sobre a conduta ética e a essência da justiça.
“Segundo dizem, por natureza, cometer injusti- uma grande fenda no local onde Giges pastoreava.
ça é um bem e sofrê-la, um mal, mas o sofrer in- Espantado com o espetáculo, desceu e viu, além de
justiça se destaca mais porque o mal que há nela é outras coisas espantosas que o mito menciona, um
maior que o bem que há em cometê-la. Sendo as- cavalo de bronze que era oco e tinha pequenas por-
sim, quando os homens, uns contra os outros, co- tas. Espiando através delas, viu lá dentro um cadá-
metem injustiça e dela são vítimas, ao sentirem o ver cujo tamanho, ao que parecia, era maior que o
gosto de uma e de outra coisa, se não são capazes de um ser humano e estava nu, mas tinha na mão
de evitar uma e obter a outra, parece-lhes útil esta- um anel de ouro. Ele pegou o anel e foi embora.
belecer um contrato que os proíba de mutuamente Quando houve a assembleia habitual dos pastores
cometer a injustiça e sofrê-la. E foi a partir de então para que dessem ao rei as notícias relativas ao re-
que os homens começaram a estabelecer suas leis e banho, para lá foi ele com seu anel. Então, quando
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
convenções e chamar legal e justo o prescrito pela estava sentado junto com os outros, aconteceu que
lei. Essa é a origem e a essência da justiça que fica ele fez o engaste do anel girar, passando-o do lado
entre o ótimo, cometer injustiça e não ser punido, e de fora para a palma de sua mão. Feito isso, Giges
o péssimo, ser vítima de injustiça e não poder vin- ficou invisível para os que estavam a seu lado e dele
gar-se. A justiça, estando entre esses dois extremos, falavam como se ele não estivesse mais lá. [...] Ten-
é amada não como um bem, mas como algo que é do percebido isso, imediatamente tratou de ser um
honrado por falta de ânimo para cometer injustiça dos mensageiros que iriam até o rei. Lá chegando,
[...]. Então, Sócrates, eis a natureza da justiça e sua seduziu a mulher do rei e junto com ela atacou-o e,
origem, segundo o que se diz. depois de matá-lo, assumiu o governo. Se, portanto,
Perceberíamos melhor que quem pratica a justiça houvesse dois anéis como esse e um deles o homem
só a pratica de má vontade, por incapacidade de co- justo colocasse em seu dedo, e o outro o injusto,
meter injustiça, se imaginássemos algo como isso... não haveria ninguém tão pertinaz que perseverasse
Deixaríamos que aos dois, ao justo e ao injusto, fos- na justiça e tão resistente que se mantivesse longe
se permitido fazer o que quisessem; depois iríamos dos bens alheios e neles não tocasse, estando livre
atrás deles observando para onde a paixão conduzi- para, sem nada temer, conviver com quem quises-
ria cada um. Em flagrante apanharíamos o homem se, matar e livrar dos grilhões quem quisesse e fa-
justo a buscar o mesmo alvo que o injusto [...]. A zer tudo o mais, já que, entre os homens, seria igual
permissão de que falo seria mais ou menos a que a um deus. Agindo assim, nada faria de diferente
teriam, se tivessem o poder que, segundo dizem, do outro, mas ao contrário, ambos percorreriam o
teve um dia Giges [...]. Ele era um pastor que servia mesmo caminho.”
o então governante da Lídia. Tendo havido gran- PLATÃO. A República. Livro II. São Paulo: Martins Fontes,
de chuva e terremoto, o solo rachou e formou-se 2006. p. 49-51.
1. Segundo o pensamento exposto por Glau- crates se oporia à posição descrita por
co, qual é a essência da justiça? Glauco? Por quê? Qual seria o argumento
2. Explique, de acordo com o texto, qual é o con- de Sócrates?
flito entre a natureza humana e as conven- 4. De acordo com o texto, ao usar o anel de
ções em relação ao que é justo ou injusto. Giges, tanto o homem justo quanto o injus-
3. Levando em conta o estudo desenvol- to agiriam da mesma forma. Você concorda
vido neste capítulo, você acha que Só- com essa afirmação? Justifique.
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Atividades
Sistematizando o conhecimento “A justiça [...] consiste em não transgredir
[...] qualquer uma das normas legais (nomos) do
1. Qual é a diferença entre as investigações dos Estado onde se vive como cidadão. É possível,
sofistas e de Sócrates e as teorias dos primei- portanto, praticar a justiça da forma mais van-
ros filósofos gregos? tajosa se se prega o respeito às leis na presença
de testemunhas; na ausência delas, porém, se
2. Para Sócrates, qual é a relação entre o conheci- obedece aos ditames da natureza. [...]
mento e a ação moral?
As leis são criadas por convenção, não pela
3. A contemporaneidade é acompanhada de no- natureza, o que é o contrário do que acontece
vos problemas éticos. Explique essa afirmação com as regras naturais. Pode-se assim transgre-
e justifique-a com exemplos. dir as leis sem vergonha e sem castigo quando
não se está sendo observado [...]. Coisa diferente
4. “Desconheço como vós, homens de Atenas, acontece com a transgressão das regras naturais.
fostes afetados por meus acusadores. Quanto a [...] A injúria que recebemos como penalidade
mim, por pouco não perdi a noção da minha própria pela transgressão não advém apenas de alguma
identidade tal a persuasão com que discursaram. E, opinião, mas de fatos reais.”
no entanto, dificilmente haja uma única palavra ANTÍFONTE. Sobre a natureza. In: BARKER, Ernest. Teoria
de verdade no que disseram. Das muitas mentiras política grega: Platão e seus predecessores. Brasília:
que disseram, uma especialmente surpreendeu-me Editora UnB, 1978. p. 89-90.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
bastante, a saber, que deveis vos acautelar para não a) Segundo o sofista, qual é a diferença entre
serdes ludibriados por mim porque eu era um ora- as leis humanas e os ditames da natureza?
dor extraordinariamente hábil. [...] Se é isso que
b) Por que o ser humano poderia transgredir
querem dizer, concordo que eu seja um orador,
ainda que não no estilo deles, pois, como digo, há as leis sem temor de punição, mas o mesmo
pouco ou nada de verdadeiro no que disseram, en- não ocorreria com as regras da natureza?
quanto de mim tudo que ouvireis será verdade.” 6. No trecho a seguir, o colunista Paulo Germano
PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Platão: relata que praticou bullying na adolescência.
Apologia de Sócrates, O banquete e Fedro. Leia-o e, em seguida, responda às questões.
São Paulo: Folha de S.Paulo, 2010. p. 9.
(Coleção Livros que mudaram o mundo). “Nunca cheguei a te bater. Mas ri, várias
Nesse texto, Sócrates defende-se de seus acu-
vezes, enquanto te batiam. [...] e, agora, escre-
sadores. Sobre esse trecho, é possível dizer que vendo sobre isso, lembro do teu desespero e
sinto uma bola de culpa na garganta. [...]
a) expressa o elogio socrático à oratória de seus
acusadores, capaz de fazê-lo perder a noção Fiz o mesmo contigo porque queria ser como
da própria identidade. eles, os grandes [...]. Aliás, não havia muito
b) expõe o momento em que o filósofo Sócra-
espaço para diferentes, só para iguaizinhos, no
tes assume suas habilidades oratórias, her-
colégio onde estudávamos.”
dadas da retórica dos sofistas. GERMANO, Paulo. O bullying que fiz.
Zero Hora, 17 out. 2015. Disponível em
c) indica a principal característica do diálogo <http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/
socrático, que consiste na fala enigmática colunistas/paulo-germano/noticia/2015/10/
que tenta levar seu interlocutor à aporia . o-bullying-que-fiz-4880739.html>.
Acesso em 17 jan. 2016.
d) manifesta a crítica socrática a um tipo de re-
tórica que consiste em um discurso utilizado, a) Há algum problema moral envolvido no caso
sobretudo, para persuadir os interlocutores. relatado na coluna de jornal? Explique.
e) revela a ironia socrática, pois o filósofo pro- b) Sugira medidas para combater a prática do
cura interpelar os homens de Atenas para, bullying.
por fim, assumir a própria ignorância nos
assuntos de oratória.
Aporia: dúvida; hesitação.
Aprofundando Bullying: termo da língua inglesa que designa atitudes
agressivas – verbais e físicas – manifestadas por um grupo ou
5. Leia o trecho de um texto escrito pelo sofista por um indivíduo, de maneira intencional e repetitiva, contra
Antífonte e responda às questões. uma ou mais pessoas.
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Atividades
Charge (2015) de
Laerte sobre a Lei do
Estatuto da Família.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
possível dizer que as posições de Nietzsche e de Sócrates são semelhantes no
que se refere aos valores morais? Justifique.
“Os direitos do homem, tais como em geral têm sido enunciados a partir do
século XVIII, estipulam condições mínimas do exercício da moralidade. Por certo,
cada um não deixará de aferrar-se à sua moral; deve, entretanto, aprender a conviver
com outras, reconhecer a unilateralidade de seu ponto de vista.”
GIANNOTTI, José Arthur. Moralidade pública e moralidade privada. In: NOVAES, Adauto (Org.).
Ética. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 245.
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lo
tu O que é realidade?
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pí
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Descobrindo a tradição
O que existe?
“Há no céu e na terra [...] bem mais coisas do que sonhou
jamais nossa filosofia.”
SHAKESPEARE, William. Hamlet. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 58.
Talvez você já tenha ouvido a primeira frase em alguma situação. Ela faz
parte da obra Hamlet, do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare
(1564‑1616). Se nessa frase a filosofia fosse compreendida como ciência
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ou razão, Hamlet, personagem que a profere, afirmaria que existem coisas
que não podem ser apreendidas por nossos sentidos, pela ciência ou pelas
especulações racionais. Isto é, existem muitas coisas que estão al