Você está na página 1de 12

OS SAMBAS-ENREDO DA MANGUEIRA E DA VILA ISABEL 2019 COMO

RECURSO PEDAGÓGICO NAS AULAS DE SOCIOLOGIA DO ENSINO MÉDIO

Ana Beatriz Maia Neves1*


Luiz Guilherme Oliveira Santos2**

RESUMO: O trabalho apresenta uma proposta de uso dos sambas enredo História para
Ninar Gente Grande e Em Nome do Pai, do Filho e dos Santos, a Vila Canta a Cidade de
Pedro, apresentados respectivamente nos desfiles da Estação Primeira de Mangueira e da
Unidos de Vila Isabel no carnaval 2019 do Rio de Janeiro, como recurso pedagógico nas aulas
introdutórias de Sociologia com o objetivo de refletir sobre a produção do conhecimento,
identificando que há diferentes perspectivas e discursos sobre uma mesma realidade social.
Fundamentamos a atividade em leituras realizadas durante nossa formação dentro do campo
Ensino de Sociologia e respectivas experiências no magistério. Com a realização de tal
atividade, pretendíamos, dentre outras coisas, contribuir para a problematização de projetos
ligados ao “Programa Escola Sem Partido”, que visam coibir uma suposta doutrinação
política em sala de aula, pois, ao analisar comparativamente os dois sambas mencionados,
procuramos mostrar que nada que é próprio do ser humano é isento de valor: nem a arte, o
carnaval, a ciência, a escola ou a história que “história oficial” conta.

Palavras-chave: Ensino de Sociologia, Escola Sem Partido, recursos pedagógicos.

ABSTRACT: The work presents a proposal to use the samba story Story for Ninar Gente 80
Grande and In the Name of the Father, the Son and the Saints, the Village Sing the City of
Pedro, respectively presented in the parades of the First Station of Mangueira and the United
of Vila Isabel , in the Carnival of Rio de Janeiro, as a pedagogical resource in the introductory
classes of Sociology with the objective of reflecting on the production of knowledge,
identifying that there are different perspectives and discourses about the same social reality.
We base the activity on readings made during our training in the field of Teaching Sociology
and respective experiences in teaching. With the accomplishment of this activity, we wanted,
among other things, to contribute to the problematization of projects linked to the "School
Without a Party Program", which aim to curb a supposed political indoctrination in the
classroom, because, when analyzing comparatively the two sambas mentioned, we try to show
that nothing that is proper to the human being is worthless: neither art, carnival, science,
school or history that "official history" tells.

Keywords: Teaching of Sociology, School without Party, pedagogical resources.

*Mestranda no PROFSOCIO UNESP/Marília, Professora de Sociologia na rede estadual de educação do Rio de


Janeiro - SEEDUC/RJ e Coordenadora de Projetos de Cinema e Educação na Secretaria Municipal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Niterói. E-mail: maianeves@yahoo.com.br
**Especialização em Ensino de Sociologia – CESPEB/UFRJ; Cientista Social (Bacharelado e Licenciatura) –
UFRJ; Professor de Sociologia na rede estadual de educação do Rio de Janeiro - SEEDUC/RJ. E-mail:
luizguilhermesantos1980@yahoo.com.br

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.


Introdução
O presente trabalho consiste na descrição de uma atividade concebida em parceria e
realizada por nós, professora e professor de Sociologia da rede estadual de educação do Rio
de Janeiro – SEEDUC/RJ, em nossas respectivas turmas (de diferentes séries) do Ensino
Médio da educação regular, nos turnos da manhã e da tarde, do Colégio Estadual Antonio
Prado Junior, no bairro da Tijuca. Tal atividade consistiu no uso dos sambas-enredo História
para Ninar Gente Grande3 e Em Nome do Pai, do Filho e dos Santos, a Vila Canta a Cidade
de Pedro4, respectivamente apresentados nos desfiles da Estação Primeira de Mangueira e da
Unidos de Vila Isabel no carnaval 2019 do Rio de Janeiro.
Desenvolvemos a atividade na segunda semana de aula do ano letivo corrente como
recurso pedagógico para introdução à disciplina, com o objetivo de contribuir na reflexão
sobre o processo de produção do conhecimento, numa tentativa de mostrar que há diferentes
perspectivas/discursos/abordagens sobre uma mesma realidade social. É preciso ressaltar que
na aula anterior à atividade estabelecemos um diálogo sobre o processo de desenvolvimento
81
dos conhecimentos provenientes do senso comum, que inclui a formulação de opiniões e o
direito (e limites) de expressá-las e o conhecimento científico, assim como a abordagem
sociológica para os fenômenos sociais. Tal discussão está prevista no Currículo Mínimo5 de
Sociologia apresentado pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro – SEEDUC
RJ para o primeiro bimestre da primeira série do E.M.
Julgamos que seria necessário iniciar o ano de 2019 retomando esta discussão em
todas as nossas turmas e séries, tendo em vista a atual conjuntura de retrocesso político,
social, econômico e ético que assola o país promovido por setores conservadores da sociedade
brasileira que pretendem deslegitimar a democracia e os princípios dos direitos humanos. Tais
grupos utilizam a grande mídia e as redes sociais, as quais as/os estudantes são usuários
frequentes, para disseminar suas ideias e projetos. O retrocesso é nítido quando se constata o

3
Disponível em: https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/, acessado em 26 de março de 2019.
4
Disponível em: https://www.letras.mus.br/sambas/vila-isabel-2019/, acessado em 26 de março de 2019.
5Versão de 2012 que está em vigor: http://www.rj.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=cd755868-376e-4057-a475-
e720955ee64c&groupId=91317, acessado em 10/09/18.
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
crescimento de assassinatos de trabalhadores no campo6 e de jovens de periferia das grandes
cidades7, do feminicídio, da violência contra as mulheres8 e LGBTQIA+9, da desestruturação
de medidas que combatem o trabalho escravo10 e do projeto de desmantelamento da legislação
trabalhista11.
No âmbito da educação, percebemos tal retrocesso quando se efetivam reformas
educacionais sem discussão e na tramitação e aprovação de projetos de lei ligados ao Programa
Escola Sem Partido, que visam coibir uma suposta doutrinação política em sala de aula. Tanto
o PESP quanto as reformas no campo da educação estão diretamente vinculadas à nossa
prática profissional e ao tema do trabalho, sendo assim achamos por bem desenvolver estas
questões é o que apresentamos nos parágrafos a seguir.
A Reforma do Ensino Médio se baseia no Projeto de Lei de Conversão 34/2016
oriunda da Medida Provisória 746/2016 de 22 de setembro de 2016, de autoria do Presidente
Michel Temer, que assumiu a presidência da República após o impeachment da Presidenta
Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016. Ou seja, a MP da Reforma do Ensino Médio foi
assinada menos de um mês após o afastamento da presidenta eleita. Tal reforma apresenta-se

82
6
Relatório Conflitos no Campo Brasil 2018 da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
7
Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
8
Panorama da violência contra as mulheres no Brasil, produzido pelo Observatório da Mulher Contra a
Violência do Senado Federal. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/institucional/datasenado/omv/indicadores/relatorios/BR-2018.pdf Acessado em:
14/05/2019.
9
Fonte: Disque 100, elaborado pela FGV DAPP. Disponível em: http://www.mdh.gov.br/disque100/balanco-
2017-1 Acessado em: 17/05/2018.
10
De acordo com a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, o governo brasileiro promoveu “um
retrocesso histórico” no combate ao trabalho escravo em 2017. A conclusão é de relatório aprovado em
dezembro de 2017. De acordo com o relator, o senador Paulo Rocha (PT-PA), o Poder Executivo “restringiu os
meios para efetiva fiscalização” realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). Criado em 1995,
o órgão é integrado por auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho e policiais federais. Em 2016, o
Plano Plurianual previa uma ampliação de 20% nas ações do GEFM até 2019. O senador Paulo Rocha destaca,
no entanto, que o grupo “foi obstruído de modo sórdido e eficaz” por meio de um corte orçamentário.
Informações obtidas em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/12/15/combate-ao-trabalho-
escravo-sofreu-retrocesso-historico-avalia-cdh Acessado em 29/05/2019.
11
De acordo com Gustavo Filipe Barbosa Garcia, o Substitutivo ao Projeto de Lei 6.787/2016, sobre a reforma
trabalhista, apresentado, em 12 de abril de 2017, pelo Relator da Comissão Especial do Congresso Nacional, é
uma das mais impressionantes afrontas aos direitos sociais dos trabalhadores já vistas na história do mundo
civilizado. O art. 620 da CLT, na redação proposta, por exemplo, passa a dispor que as “condições
estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva
de trabalho” (destaquei). Percebe-se contrariedade à exigência constitucional de melhoria das condições
sociais, a qual impõe a necessidade de ser observada, em princípio, a norma mais favorável ao trabalhador (art.
7º, caput, da Constituição da República). Informações obtidas em:
https://genjuridico.jusbrasil.com.br/artigos/450039001/substitutivo-da-reforma-trabalhista-retrocesso-social-e-
afronta-aos-direitos-dos-trabalhadores Acessado em 29/05/2019.
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
como um conjunto de diretrizes com vistas à alteração da atual estrutura do Ensino Médio,
alterando a Lei nº 9.394 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, e a Lei nº 11.494 de
20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB. Por ter sido apresentada
como medida provisória, a reforma já surge com força de lei. Um primeiro problema já se
apresenta aqui, pois tal medida não foi discutida pela sociedade. Os principais pontos da
Reforma ou “Novo Ensino Médio”, como foi chamado pelo governo federal, são: 1) Aumento
da carga horária; 2) Flexibilização do currículo, que leva as (os) estudantes a terem que
direcionar seus estudos a partir de “itinerários normativos” de cinco diferentes áreas
(Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Sociais aplicadas e a
Formação Técnica e Profissional); 3) Ênfase na preparação para o mercado de trabalho; 4) No
currículo, mantém-se apenas Língua Portuguesa e Matemática como disciplinas obrigatórias,
deixando todas as outras como “estudos e práticas”, sendo sua oferta a serem definidas pela
Base Nacional Curricular Comum - BNCC; 5) No caso do itinerário de formação profissional,
abre a possibilidade para que profissionais com “notório saber” ministrem os conteúdos.
Já a BNCC do Ensino Médio foi enviada para análise do Conselho Nacional de 83
Educação – CNE e, na sequência, submetida à discussão em audiências públicas on line num
único dia (02/08/2018) chamado pelo governo de Michel Temer de “Dia D”. Sancionado em
agosto de 2018, o documento ratifica que somente as disciplinas de Matemática e Língua
Portuguesa serão obrigatórias nas três séries do Ensino Médio e, as demais, apareceriam de
forma “interdisciplinar”, organizadas por “competências” e “habilidades” e divididas em três
áreas de conhecimento: Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Linguagens e suas
tecnologias. Diferente do que era previsto, o documento não detalha o que deverá ser
ensinado nos itinerários formativos antevistos na reforma do ensino médio. Além da falta de
ampla e aprofundada discussão, tanto da Reforma do Ensino Médio, quanto da BNCC, há
outras questões que merecem reflexão:
Para Celso Ferretti, pesquisador aposentado da Fundação Carlos Chagas e ex-
professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a
organização por competências e a ênfase em Português e Matemática apontam
claramente o direcionamento pautado pelos interesses do setor empresarial para a
educação: uma formação voltada para as necessidades do mercado de trabalho. Para
Ferretti, a implementação da BNCC deve significar um empobrecimento da
educação ofertada aos estudantes do ensino médio. (ANTUNES, 2018)

Sem partido?
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
Recentemente temos assistido a onda de aprovação em diversas casas legislativas
municipais, estaduais e no congresso nacional de projetos ligados ao Programa Escola Sem
Partido - PESP. Percebe-se que tais projetos emergem como demonstração de força dos
setores mais conservadores da sociedade no atual momento histórico.
Mantendo tal objetivo, o programa define uma série de diretrizes sobre o papel da
professora e do professor em sala de aula. Dentre as muitas outras questões problemáticas
contidas nos projetos ligados ao PESP, está a suposição de que as/os estudantes são
desprovidas (os) de capacidade de reflexão e discernimento sobre a realidade social e, por
isso, seriam alvo facilmente manipulável por docentes “esquerdistas”. Entretanto, de acordo
com Leite, Neves e Santos (2018) a passividade juvenil pressuposta pelo PESP contestada nas
entrevistas realizadas durante a pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Diferença e
Desigualdade na Educação Escolar da Juventude/DDEEJ, coletivo de pesquisa12 ao qual a
autora e o autor deste texto estiveram vinculados durante os anos de 2014 a 2016. Tal grupo
desenvolvia pesquisa-ação13, num colégio da rede pública estadual, situada na zona norte da
cidade do Rio de Janeiro, acompanhando estudantes e a comunidade escolar na reestruturação
do grêmio estudantil, então desativado. Tinha-se o intuito de investigar a formação e a 84
participação política da juventude no âmbito da escola. Contudo, no decorrer da pesquisa, o
grupo se deparou com o movimento de ocupação de escolas no Rio de Janeiro e decidiu-se
incluir o movimento como objeto de nossa análise. Dessa forma, visitamos colégios ocupados
espalhados por diferentes regiões do Grande Rio para conversarmos com as/os ocupantes. Os
trechos das entrevistas a seguir, citados no artigo de Leite, Neves e Santos (2018), membros
do referido coletivo de pesquisa, confrontam aquela suposição do Programa Escola Sem
Partido:
Acho que isso é até uma ofensa para os alunos, porque você querer dizer que não
pode falar de um certo assunto em um colégio é você querer dizer que o aluno não
tem a capacidade de pensar sozinho... Tipo... O professor tá ali só para me dar uma
base... Pô, cara! Você não tem a capacidade de pensar sozinho? [...] A gente tá
vivendo uma ocupação! Eu tenho a capacidade de desenvolver projetos, posições

12
Coordenado pela professora Miriam Leite, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa Infância, Juventude e Educação.
13
Etapa empírica do projeto Diferença e desigualdade na educação escolar do jovem mais jovem:
desconstruções, denominada O grêmio e outros espaços-tempos de diálogo político na escola: possibilidades
contemporâneas, e desenvolvida com apoio financeiro da FAPERJ (Edital 36/2014 – Melhoria das Escolas
Públicas). Ambos projetos foram submetidos e aprovados pela CONEP-Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa, e os participantes nos colégios pesquisados e/ou seus responsáveis, quando foi o caso, concordaram
com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que apresentamos, também aprovados pela CONEP (parecer
n. 624.354, de 10/4/2014 e n. 993.195, de 19/3/2015, respectivamente).
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
políticas, mesmo sendo novo, entendeu? (Estudante, 16 anos, Niterói Apud. LEITE,
NEVES, SANTOS, 2018, p. 293)

Na verdade essa lei não é pra proteger aluno de... de ser doutrinado não. É pra
proteger o aluno de ser consciente. Quer alienar mesmo. Querem eliminar todas as
formas que a gente teria pra abrir a nossa mente, pra conhecer algo novo. (Estudante,
18 anos, Rio de Janeiro Apud. LEITE, NEVES, SANTOS, 2018, p. 296)

Os relatos destas/destes estudantes que participaram do movimento de ocupação de


escolas no Rio de Janeiro, em 2006, mostram que muitas e muitos estudantes tomam a
identidade juvenil como uma forma de resistência. Neste sentido, a reflexão proposta por
Castells (1999) é apropriada, uma vez que afirma que a “identidade de resistência” é criada
por atores sociais que se encontram em desvantagens e estigmatizados pela lógica de
dominação, criando barreiras para a sua sobrevivência com base em princípios diferentes que
norteiam as instituições sociais. Neste sentido, entendemos que as/os estudantes, usam a
identidade juvenil como elemento de luta contra a opressão e a hostilidade que a escola e, no
caso, o movimento do PESP, querem impor.
Dessa forma, Leite, Neves e Santos (2018), afirmam que para além dos fragmentos
aqui reproduzidos, o conjunto das falas registradas nas entrevistas é conclusivo: “o Programa
Escola Sem Partido é mesmo “uma ofensa para os alunos”, que, quando não se encontram 85

limitados pelas estruturas escolares tradicionais, são capazes até mesmo de reinventar a
própria escola” (LEITE, NEVES, SANTOS, 2018, p. 295). Tal constatação se aproxima das
conclusões a que chega Dayrell (2007). O autor parte da reflexão sobre a condição juvenil
atual, sua cultura, as demandas das/dos jovens e suas próprias necessidades para discutir as
relações entre juventude e escola. O autor busca problematizar o lugar que a escola ocupa na
socialização da juventude contemporânea, em especial dos jovens das camadas populares.
Afirma ele:
(...) a relação da juventude com a escola não se explica em si mesma: o problema
não se reduz nem apenas aos jovens, nem apenas à escola, como as análises lineares
tendem a conceber. Tenho como hipótese que as tensões e os desafios existentes na
relação atual da juventude com a escola são expressões de mutações profundas que
vêm ocorrendo na sociedade ocidental, que afetam diretamente as instituições e os
processos de socialização das novas gerações, interferindo na produção social dos
indivíduos, nos seus tempos e espaços. (DAYRELL, 2007, p. 1106)

Dayrell procura compreender as “práticas e símbolos da juventude como a


manifestação de um novo modo de ser jovem, expressão das mutações ocorridas nos
processos de socialização, que coloca em questão o sistema educativo, suas ofertas e as

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.


posturas pedagógicas que lhes informam” (DAYRELL, 2007, p. 1107). Assim, Dayrell, da
mesma forma que Leite, Neves e Santos, propõe uma mudança do eixo da reflexão, “passando
das instituições educativas para os sujeitos jovens, onde é a escola que tem de ser repensada
para responder aos desafios que a juventude nos coloca” (DAYRELL, 2007, p. 1107). O autor
nos leva a questionar em que medida a escola “faz” a juventude, uma vez que é
imprescindível levar em consideração os conflitos e as contradições experimentadas pela/pelo
jovem, ao se constituir como estudante num dia-a-dia escolar que não leva em conta a sua
condição juvenil.
Ao analisar comparativamente os dois sambas mencionados, pretendíamos, inclusive,
problematizar tal programa procurando mostrar que nada que é humano é isento de valor: a
arte, o carnaval, a ciência, a escola ou a história que a “história oficial” conta.

Mangueira - Samba-Enredo 2019 A liberdade é um dragão no mar de Aracati

História pra Ninar Gente Grande Salve os caboclos de julho 86


Composição: Danilo Firmino / Deivid Domênico / Mamá Quem foi de aço nos anos de chumbo
/ Márcio Bola / Ronie Oliveira / Tomaz Miranda
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles,
Brasil, meu nego
malês
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
Mangueira, tira a poeira dos porões
O avesso do mesmo lugar
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Na luta é que a gente se encontra
Dos Brasil que se faz um país de Lecis,
jamelões
Brasil, meu dengo
São verde e rosa as multidões
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Vila Isabel – Samba-Enredo 2019
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Em Nome do Pai, do Filho e dos Santos, a
Não veio do céu
Vila Canta a Cidade de Pedro
Nem das mãos de Isabel
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
Composição: André Diniz / Dedé Augusto / Evandro Luar do imperador
Bocão / Ivan Ribeiro / Julio Alves / Marcelo Valencia /
Professor Wladimir
Meu olhar lacrimejou
Viva a princesa! Em águas tão cristalinas
E o tambor que se não cala Uma cidade divina
É o canto do povo mais fiel Bordada em nobre metal
Ecoa meu samba no alto da serra A joia imperial
Na passarela com os herdeiros de Isabel
Petrópolis nasce com ar de versalhes
Vila Adorna a imensidão
Te empresto meu nome A luz assentou o dormente
Fonte de tanta nobreza Fez incandescente a imigração
Por Deus e todos os santos No baile de cristal o tom foi redentor
Honre a tua grandeza Em noite imortal
E subindo pertinho do céu Floresceu um novo dia
A névoa formava um véu Liberdade enfim raiou
Lembrei de meu pai, minha fortaleza Não vi a sorte voar ao sabor do cassino
Esculpida em pedras Segundo o dom que teceu o destino
Pedros e coroados Meu sangue azul no branco desse pavilhão
Com os seus guardiões O morro desce em prova de amor
Protetores de raro esplendor Encontro da gratidão

87

Pretendeu-se fundamentar nosso trabalho em leituras realizadas durante nossa


formação e respectivas experiências no magistério e em outros espaços de atuação. Contudo,
adiantamo-nos a esclarecer que a atividade proposta a seguir não pretende esgotar a discussão
da temática, mas apresentar o relato de experiência que, depois de vivida, passou a ser
refletida.
A atividade consistiu em ouvir (com auxílio de caixinha de som portátil),
acompanhada de leitura (em texto impresso) das letras dos dois sambas. A seguir cada turma
foi dividida em dois grandes grupos, nos quais deveriam analisar um dos dois sambas
(previamente sorteados) a partir de questões14 sugeridas15. A etapa seguinte consistiu na

14
1) De que trata o samba? 2) Sob qual ponto de vista foi contato o enredo? 3) Faça uma breve pesquisa sobre as
personalidades e grupos mencionados no samba. 4) Que conclusões chegamos ao comparar o samba da
Mangueira com a da Vila Isabel?
15
Neste ponto é importante fazer um registro: uma das questões exigia o uso da internet mobile para a realização
de pesquisa sobre as personalidades e grupos mencionados nos sambas, contudo, a despeito da ideia disseminada
de que estudantes, de maneira geral, não prestam atenção nas aulas devido ao uso excessivo das redes sociais,
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
socialização das respostas em um grande círculo formado com toda a turma. Ao fim das aulas,
chegamos juntos à conclusão de que, mesmo com a proximidade geográfica das sedes das
escolas de samba, a História do Brasil (no que diz respeito ao período colonial, que inclui a
abolição da escravatura), foi contada sob dois pontos de vista bastante diferentes na Av.
Marquês de Sapucaí: a Mangueira contou a história do ponto de vista dos dominados e a Vila
Isabel do ponto de vista dos dominadores.

Reflexões sobre aprender a ensinar Sociologia


Florestan Fernandes, no Simpósio de Problemas Educacionais realizado no Centro
Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, em setembro de 1959, afirma que o
problema central que se coloca aos cientistas sociais que atuam na análise no campo da
educação incide em encontrar meios para ajustar a capacidade de intervenção, na esfera da
educação, aos recursos fornecidos pelo conhecimento científico e aos requisitos ou às
exigências da vida moderna. Dessa foram, para o autor, o grande dilema da educação
brasileira é que ela está atrelada a um modelo educacional colonial e que seria necessário
romper com esse sistema servil para que houvesse avanço na área. Sendo assim, defende a 88
introdução da ciência numa perspectiva educacional: desde a escola deve-se aprender a fazer
ciência. Em outro trabalho, Florestan Fernandes (1954) assegura que o cientista precisa tomar
consciência da utilidade social e do destino prático reservado às suas descobertas, dessa
forma, sobre a presença da Sociologia na educação básica, afirma:
o ensino da sociologia no curso secundário representa a forma mais construtiva de
divulgação dos conhecimentos sociológicos e um meio ideal, por excelência, para
atingir as funções que a ciência precisa desempenhar na educação dos jovens na vida
moderna. (FERNANDES, 1954, p. 89)

Diz ainda que o objetivo do ensino da Sociologia deve ser,


antes de tudo, munir o estudante de instrumentos de análise objetiva da realidade
social; mas também, complementarmente, o de sugerir-lhes ponto de vista mediante
os quais possa compreender o seu tempo, e normas para construir a sua atividade na
vida social. (FERNANDES, 1954, p. 91)

Contudo, Silva (2007), ao propor a compreensão do ensino de Sociologia como parte


de sistemas simbólicos típicos das sociedades modernas, afirma que não há ligação direta
entre a produção científica e acadêmica e a sala de aula da escola. Diz ainda que:

poucos tinham acesso à internet pelos celulares. Superamos essa dificuldade roteando a internet de nossos
próprios celulares.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.


As reformas políticas do Estado, que ocorrem como fruto das disputas ideológicas,
das classes sociais, dos projetos que contam com a influência dos intelectuais, das
teorias sociais e políticas, levam a uma recomposição do campo acadêmico e do
campo cientifico. Teorias e modelos explicativos da vida, das regras democráticas e
da educação são contextualizadas (elaboradas) nas comunidades cientificas e
recontextualizadas nos órgãos governamentais que simplificam ainda mais as teorias
sociais predominantes. Assim, cria-se uma espécie de comunicação pedagógica,
com um discurso pedagógico, a partir de um regulador do dispositivo que irá
predominar como senso comum nas escolas. É a partir desse dispositivo pedagógico,
regulador da comunicação e da ação educativa que os saberes são reorganizados,
disseminando nas escolas as novas regiões dos conhecimentos. O ensino de
sociologia está inserido nesses processos de formação, elaboração, disseminação do
discurso pedagógico e da organização dos saberes. (SILVA, 2007, p. 405)

Silva traz ainda a reflexão sobre as motivações da inclusão da Sociologia nos


currículos escolares no Brasil. Afirma que tal inclusão está sujeita às concepções hegemônicas
sobre educação, sociedade, Estado e ensino. Segunda a autora, observa-se que dessas visões
depreendem-se modelos de currículos muito diferentes ao longo da história e que o papel da
Sociologia vai se alterando no interior desses modelos em disputa. Mendonça (2011)
contribui nessa discussão quando afirma que:
A escola é o espaço singular para as mediações, que visam à socialização dos
conhecimentos, a partir de atividades pedagógicas organizadas para esse fim, em
cuja condução o professor tem um papel fundamental de fazer a articulação entre
esses conhecimentos (significados sociais) e os conhecimentos dos estudantes 89
(sujeitos que atribuirão sentido pessoal a essas práticas sociais consolidadas). Em
particular, o ensino de Sociologia tem essa tarefa de desenvolver atividades que
lidem com conteúdos/significados relevantes à construção de sentidos
transformadores da subjetividade humana, materializando seu objetivo central de
desnaturalizar as relações sociais, possibilitando aos sujeitos estabelecerem uma
relação consciente com o mundo. Para tanto, a organização da atividade tem de
contemplar, desde o início, sua finalidade, que deve motivar os diretamente nela
envolvidos. O motivo é o elemento-chave nesse processo, já que é ele que leva os
indivíduos a agirem, e sem ação não há produção de sentidos. (MENDONÇA, 2011,
p. 349)

A delimitação do que seja a finalidade da Sociologia na educação básica apresentada


por Florestan Fernandes se conecta ao que outras autoras e autores contemporâneos que atuam
na área pensam, inclusive a autora e o autor deste artigo. Em sua monografia apresentada para
obtenção do título de especialista do Curso de Especialização em Saberes e Práticas na
Educação Básica – CESPEB UFRJ, modalidade Ensino de Sociologia, que depois ganhou
versão publicada em capítulo de livro, Neves (2015) apresentou uma análise de como é criada
uma ou várias identidades da disciplina a partir da percepção de professoras e professores que
atuavam na rede estadual do Rio de Janeiro. Na ocasião a autora criou a tipologia com cinco
tipos ideais de professoras(es) de Sociologia: 1) professora(o) descomprometido(a); 2)

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.


professora(o) revolucionária(o); 3) professora(o) erudita(o); 4) professora(o) cidadania; 5)
professora(o) desnaturalizadora(o). Ao contrastar estes tipos ideais com as falas de
professoras e professores entrevistadas(os) constatou que alguns tipos confirmam-se na
realidade obsevada, outros não, mas, na maioria das vezes, se fundem apresentando
características de todos e/ou quase todos. Vale ressaltar que o quinto tipo ideal, ou seja, a(o)
professora(o) desnaturalizadora(o), é o que mais se aproxima de nossa prática docente e o que
entendemos ser o objetivo do ensino da Sociologia na educação básica, pois acreditamos que
as discussões, teorias, metodologias e recursos didáticos propostos pela disciplina fornecem
às/aos estudantes do ensino médio ferramentas que lhes possibilitem uma compreensão crítica
da realidade na qual estão inseridas(os). O principal objetivo da (o) professora (o)
desnaturalizadora (o) seria levar a/o estudante a estranhar, problematizar e desconstruir o
senso comum.
Ao ser constituída dessa forma, a Sociologia escolar apresenta-se como um
instrumento capaz de despertar e/ou estimular no estudante de ensino médio a “imaginação
sociológica”, ou seja, a possibilidade de se obter uma perspectiva compreensiva do mundo em
que se vive, ampliando o seu horizonte intelectual e contribuindo para que os estudantes 90
consigam superar as explicações tradicionais e religiosas do mundo, assim como amortecer os
efeitos sedativos do discurso midiático sobre a realidade social. Nas palavras de Wright Mills,
a “imaginação sociológica é uma qualidade que parece prometer mais dramaticamente um
entendimento das realidades íntimas de nós mesmos, em ligação com realidades sociais
amplas” (MILLS, 1969, p. 22). Cabe ressaltar que o despertar e/ou o desenvolvimento da
imaginação sociológica contempla o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
– LDB 1996 quanto ao objetivo do ensino médio, explícito em seu artigo 35, que é
justamente:
o aprimoramento do educando como ser humano, sua formação ética,
desenvolvimento de sua autonomia intelectual e de seu pensamento crítico, sua
preparação para o mundo do trabalho e o desenvolvimento de competências para
continuar seu aprendizado. (BRASIL, 1997)

Dessa forma, pensar a realidade social a partir da Sociologia requer rigor e


perspectivas específicas que se expressam na construção de diferentes métodos e recursos
próprios de análise. Portanto, submetemos à discussão e reflexão a presente proposta de uso
dos sambas-enredo como recurso pedagógico às/aos colegas pesquisadoras/es do campo
Ensino de Sociologia, pois acreditamos que nossa prática docente foi, ao mesmo tempo,
Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.
objeto e resultado de análise, que nos orientará para a elaboração de novas práticas e novos
estudos em uma contínua relação dialética.

Referências Bibliográficas
ANTUNES, André. A BNCC e a reforma do ensino médio conduzem a um empobrecimento
da formação. Entrevista: Celso Ferreti. EPSJV/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 06 Abr. 2018,
Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/a-bncc-e-a-reforma-do-ensino-
medio-conduzem-a-um-empobrecimento-da-formacao . Acessado em 16 Jul. 2019.
BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n.
9.394/96, Brasília, 1997.
CASTELLS, M. A construção da identidade. In O poder da identidade. São Paulo: Paz e
Terra, 1999.
DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização
juvenil. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100, Especial Out., 2007, p. 1105-1128. Disponível
em <http://www.cedes.unicamp.br>
FERNANDES, Florestan. A ciência aplicada e a educação como fatores de mudança cultural
provocada. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v. 32, n. 75, jul/ set.
1959, p. 28-78.
_________.O Ensino de Sociologia na Escola Secundária Brasileira. Congresso brasileiro de
Sociologia, 1954. São Paulo: Anais da SBS, 1955, p. 89-106.
LEITE, Miriam S.; NEVES, Ana Beatriz M.; SANTOS, Luiz Guilherme. O. O movimento de
ocupação de escolas, o Projeto de Lei Escola Sem Partido e o ensino de sociologia: 91
desconstruções. In.: Saberes e práticas do Ensino de Sociologia. Org. MAÇAIRA, Julia P.;
FRAGA, Alexandre B. 1ª ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2018, p. 281-303.
MENDONÇA, Sueli G. de L. A crise de sentidos e significados na escola: A contribuição do
olhar sociológico. Cad. Cedes, Campinas, vol. 31, n. 85, set.-dez. 2011, p. 341-357.
NEVES, Ana Beatriz M. Sociologia no ensino médio: com que “roupa” ela vai? In.:
Conhecimento escolar e ensino de Sociologia: instituições, práticas e percepções. Org.
HANDFAS, Anita; MAÇAIRA, Julia P.; FRAGA, Alexandre B. Rio de Janeiro: 7Letras,
2015, p. 87-100.
SILVA, Ileizi F. A sociologia no ensino médio: os desafios institucionais e epistemológicos
para a consolidação da disciplina. Cronos, Natal-RN, v. 8, n. 2, jul./dez. 2007, p. 403-427.

Revista Perspectiva Sociológica, n.º 23, 1º sem. 2019, p. 80-91.

Você também pode gostar