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CENTRO DE HUMANIDADES
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
FORTALEZA – CE
2020
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FORTALEZA – CE
2020
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BANCA EXAMINADORA
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 08
2 PERCEPÇÕES E SENTIDOS DOS PROFISSONAIS DE SAÚDE NOS
SERVIÇOS ASSISTENCIAIS ESPECIALIZADOS EM HIV/AIDS......... 42
3 CRONOGRAMA.............................................................................................. 80
4 REFERÊNCIAS................................................................................................ 81
INTRODUÇÃO
Construção do pesquisador e do objeto de pesquisa. Apresentação do cenário
contemporâneo do campo da aids. Apresentação da caixa de ferramentas conceitual e
metodologia do estudo.
CAPÍTULO 1
Apresentação dos dois serviços onde a pesquisa se dará com o histórico, percepções e
sentidos dos profissionais de saúde de ensino superior sobre a contemporaneidade da
epidemia de aids e o incremento da epidemia entre adolescentes e jovens.
CAPÍTULO 2.
Apresentação do cenário macropolítico da aids no Brasil, Ceará e principalmente em
Fortaleza. Utilizando o marco teórico e encontros com os gestores municipais e
estaduais.
CAPÍTULO 3.
Construção do cenário micropolítico da aids em Fortaleza a partir do contato com os
atores que atuam no território. Quem são os adolescentes e jovens na faixa etária de 15 a
24 anos que vivem com HIV atendidos nos dois SAE e quais as malhas por eles
construídas.
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CAPÍTULO 4
Construção e apresentação das malhas por meio das itinerações em busca de cuidado
dos adolescentes e jovens vivendo com HIV.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Avaliação do processo da pesquisa. Alcance dos objetivos propostos e identificação de
lacunas que precisam ser investidas.
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1. INTRODUÇÃO
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O termo HSH é oriundo de denominação inglesa men who have sex with men (MSM) para definir
homens gays e bissexuais e aqueles com práticas homoeróticas e identidade heterossexual (BRIGNOL et
al, 2015).
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A sigla que significa “lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros” já foi atualizada com a
adição de conceitos representados por outras letras. Opto, no entanto, pela utilização da sigla LGBT
simplificada e submeto à apreciação da banca a necessidade de atualizar a sigla.
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com o HIV. Esta possível incapacidade oferece elementos para a reflexão do aumento
de casos entre adolescentes e jovens (GRANGEIRO, 2018).
O sociólogo busca compreender as linhas que estão atuando no cenário atual da
epidemia de aids. Relata, ainda, o silêncio institucional de grupos conservadores no
trato com as sexualidades, desejos, práticas sexuais, a interdição de políticas públicas e
serviços que acessavam grupos de alta vulnerabilidade minando, assim, os laços de
solidariedade e respeito às diferenças que conferiam dignidade e respeito às pessoas e
grupos sociais mais afetados pela epidemia. Uma vida que se orienta pelo receio do
estigma e a culpabilização por uma orientação diferente da heteronormativa é
constituidora de potencial isolamento afetivo e social, promovendo terreno fértil para o
crescimento da epidemia (GRANGEIRO, 2018).
Movimentos sociais, como os vinculados aos grupos LGBT, que historicamente
tinham como pauta central o enfrentamento do HIV paulatinamente desde os anos 2000
tem feito movimento de afastamento do tema. Parte devido a necessidade de criar um
espaço político próprio das questões dos direitos LGBT, mas parte em razão do desejo
de se afastar do preconceito que a aids traz a tiracolo. Esta medida, segundo Grangeiro
(2018), contribui sub-repticiamente com o advento de uma “aidsfobia” no âmbito das
ações do movimento social.
A “aidsfobia” reproduz certo silêncio em relação à aids na comunidade LGBT,
talvez como reflexo do esgotamento diante do HIV. A questão é que este grupo não
deixou de ser afetado pela epidemia, ao contrário, os dados epidemiológicos apontam
que os homossexuais, por exemplo, estão sendo mais afetados do que em qualquer outro
momento da epidemia. Assim, a “aidsfobia” silencia as vozes dos grupos mais afetados
pela epidemia rompendo com um dos sustentáculos da resposta brasileira ao HIV.
Oliveira Neto e Camargo Junior (2019) compreendem que está havendo uma
banalização da aids em razão desta nova geração não ter vivido o drama dos primeiros
anos da epidemia e que setores mais pauperizados estão sendo infectados pelo HIV. Tal
reflexão foi oriunda de uma etnografia digital de um grupo secreto de pessoas vivendo
com HIV/aids (PVHA) no Facebook®. As PVHA recorrem aos grupos digitais para
preencher uma lacuna dos serviços formais de atendimento especializado de aids, nestes
espaços virtuais sentem-se mais à vontade para expor suas questões em relação ao HIV.
A tendência epidemiológica da pauperização da epidemia de aids já era
observada na virada do século, o avanço das novas infecções sobre uma camada da
população economicamente mais frágil ainda é um fator evidente da contemporaneidade
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A sigla IST se refere às infecções sexualmente transmissíveis e foi adotada recentemente substituindo
a sigla DST que correspondia às doenças sexualmente transmissíveis.
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A transmissão vertical consiste na infecção que se dá da mulher para o bebê na gestação ou no parto.
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dos preservativos não foram suficientes para deter o avanço da epidemia. Assim,
convém diversificar a oferta de recursos para uma renovada forma de prevenção que
atente para as singularidades dos contextos e dos sujeitos.
O avanço nas pesquisas identificou que uma pessoa que vive com HIV e possui
o marcador indeterminado para a contagem do vírus no sangue tem quase 100% de
chance de não transmitir o vírus. A carga viral, como é popularmente chamada, alcança
o patamar indetectável quando da adesão ao Tratamento Antirretroviral (TARV).
Assim, uma pessoa que vive com HIV/aids e adere aos medicamentos de forma
sistemática, alcança a carga viral indetectável e quebra a cadeia de transmissão do vírus.
O Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente
Transmissíveis (DCCI) do Ministério da Saúde (MS), então, buscou disseminar o
diagnóstico por meio dos Testes Rápidos (TR) para HIV com punção digital (furo no
dedo, semelhante ao exame de glicemia) e testes de fluido oral nos Serviços
Assistenciais Especializado (SAE), em outras unidades de saúde e em parcerias com as
Organizações da Sociedade Civil (OSC) que atuam com populações chaves para a
epidemia de aids. Estes exames possuem diagnóstico seguro em menos de vinte
minutos. Almejava-se o diagnóstico oportuno, ou seja, uma infecção pelo HIV que não
agrediu o sistema imunológico a ponto de desenvolver uma doença oportunista,
consequentemente, a aids. A proposta da política pública é “testar e tratar” (termo que
se tornou palavra de ordem pela gestão pública e por alguns movimentos sociais), em
outas palavras, ampliar o diagnóstico oportuno e disponibilizar prontamente os
medicamentos para barrar a cadeia de transmissão.
Em paralelo, também se disseminava as testagens convencionais em laboratório,
o tratamento para outras IST e as hepatites virais, pois estes agravos podem
potencializar a possibilidade de infecção pelo HIV, produzindo portas de entrada para o
vírus. O herpes simples, por exemplo, pode aumentar em 18 vezes a possibilidade de
infecção pelo HIV. O vírus do papiloma humano (HPV), clamídia, gonorreia, sífilis
entre outros também facilitam a infecção quando estão em suas fases mais agudas.
A utilização da TARV e a variedade de fármacos que estão disponíveis para as
pessoas que vivem com HIV são utilizados como medicamentos para a prevenção.
Observou-se que diante da situação de iminência de infecção pelo HIV em relação ao
comportamento de risco, a administração de um combinado destes fármacos pode evitar
a infecção. A profilaxia pós-exposição (PEP) já é utilizada há algum tempo e iniciou
com os profissionais de saúde que se acidentavam com materiais perfurocortantes e
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aplicativos de relacionamentos gays que indicavam as pessoas que se diziam fazer uso
dos medicamentos (THOMAZ, 2018).
Segundo Grangeiro (2018) nunca foi tão grande a possibilidade de métodos
preventivos para o HIV, permitindo adequar as diferentes situações e perfis de pessoas,
desde a utilização do preservativo até a administração de medicamentos. Em
contrapartida, alguns setores da academia denunciam o interesse da indústria
farmacêutica nessa estratégia, outros alimentam o estigma em relação aos usuários da
PrEP tratando o método como estimulador de pessoas promíscuas, descuidadas com a
saúde e incentivadas a se relacionar sexualmente sem proteção.
A PrEP está longe do acesso universal, pesquisas demonstrativas revelam a
utilização do método preventivo por pessoas com maior nível de escolaridade e
melhores condições socioeconômicas. A consequência disso é o conhecimento restrito
sobre o uso da PrEP em homossexuais negros, jovens, pessoas com baixa escolaridade,
trabalhadores do sexo e transexuais. As ações afirmativas demandam tempo, mas o
despreparo dos serviços de saúde no alcance das populações mais vulneráveis é
obstáculo para o alcance do método (GRANGEIRO, 2018; ABIA, 2018).
Um elemento presente na estratégia da prevenção combinada é a redução de
danos. A redução de danos é um paradigma, uma abordagem ou uma perspectiva que
não dispõe de consenso no campo da saúde pública, pois não trata da “abstinência” das
práticas que produzem danos, mas lida com eles com o objetivo de minorá-los. A
redução de danos está no escopo da estratégia da prevenção combinada e a visibilidade
é restrita, afinal diz respeito diretamente ao comportamento, desafio premente no trato
com os profissionais de saúde.
A “agenda de valores” que pauta as narrativas e disputas eleitorais no Brasil
questiona a utilização da abordagem dos direitos humanos, “diversidade sexual” e
“gênero”, conceitos centrais historicamente presentes na prevenção ao HIV no Brasil
(AGOSTINI at al, 2019). As ofertas de prevenção biomédica disponíveis na estratégia
da prevenção combinada sofrem menos resistência apesar da manifestação pública do
atual Presidente da República sobre o fardo que a sociedade carrega ao garantir amplo
acesso aos medicamentos antirretrovirais para as pessoas que vivem com HIV/aids
(COLETTA, 2020). Compreender e lidar com os personagens do sistema de saúde,
considerando a diferença e a singularidade, não é uma tarefa fácil para gestores,
profissionais de saúde e usuários.
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O conceito de “malha” (em oposição ao de “rede”) é composto por uma multiplicidade de linhas em
movimento (trilhas), estas emaranhadas formam uma textura que, por sua vez, emaranhados, compõem a
malha. O conceito cunhado por Tim Ingold (2015) será melhor discutido mais adiante.
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populações chaves e prioritárias, na realização de testes rápidos para HIV e outras IST,
além de trabalhos de prevenção e retenção nos serviços especializados (UNICEF, 2013).
A iniciativa do Unicef em parceria com a SMS contribuirá para a articulação
desta pesquisa com as entidades que atuam diretamente na FSJ, entre elas se destaca a
Rede Nacional de Adolescentes e Jovens vivendo com HIV/aids. Os dados produzidos
ao longo desses seis anos pelo FSJ serão analisados no âmbito desta pesquisa de
doutorado.
De outra parte há características comportamentais que expõem os adolescentes e
jovens às vulnerabilidades em relação à infecção pelo HIV e outras IST: início da vida
sexual antes dos 15 anos, relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo
proporcionalmente maior entre adolescentes e jovens, maior frequência de múltiplos
parceiros no último ano, uso irregular do preservativo (mesmo este público utilizando
mais preservativos em relação aos adultos), utilização de drogas ilícitas, baixo acesso à
testagem anti-HIV entre os homens (BRASIL, 2011b, 2013).
Um estudo transversal de RDS (Respondent Driven Sampling) com 3.738 HSH
com 18 anos ou mais em dez cidades brasileiras identificou que ter a idade menor que
25 anos, a identidade homossexual ou bissexual, ter iniciado a vida sexual antes dos 15
anos, ter realizado sexo apenas com homens nos últimos 12 meses, uso frequente de
álcool e drogas ilícitas e o uso de páginas eletrônicas locais para encontros sexuais no
último mês foram associados de forma independente a escores mais altos de
comportamento de risco. Os autores propõem estratégias específicas de prevenção para
a população HSH (ROCHA et al, 2018).
Adotar o discurso que justifica o avanço da epidemia de aids entre os
adolescentes e jovens somente com o argumento que os mesmos não dispõem de
informações sobre prevenção ou uso correto do preservativo não atende à complexidade
do fenômeno. A persistência de preconceitos e discriminações associada ao discurso
hegemônico da heteronormatividade pode contribuir para a ausência de cuidado
adequado aos jovens homossexuais nos serviços de saúde (CUNHA; GOMES, 2016;
GOMES et al., 2017).
Os adolescentes e jovens HSH associam alguns sentidos quando se reportam às
IST e aids: a sensação que o uso do preservativo pode diminuir a sensibilidade e
consequentemente o prazer; a parada para colocar o preservativo dificulta a ereção e é
preciso dar mostras de potência sexual; os homens seriam mais descontrolados
sexualmente, são caçadores e precisam ser viris; as primeiras relações sexuais são mais
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incessante, marcada pela ligação entre indivíduos que se influenciam mutuamente e pela
determinação recíproca que exercem um sobre os outros. Os indivíduos fazem e sofrem,
as ações, ao mesmo tempo, por isso Simmel propõe o termo sociação. Os indivíduos
são determinados por viver com outros seres humanos. A ideia de movimento e de laços
de associação entre os homens são incessantemente feitos e refeitos e requer do
pesquisador uma forma específica de observar esse fenômeno.
Norbert Elias (2008) reconhece
Também a paciente não está só: amigos, familiares que acompanham seu estado de
saúde ou sua doença, as vicissitudes do transporte que a levará para casa, a
possibilidade de acesso a exames e tantas outras “vozes” humanas e não humanas
(sim, as máquinas “falam”, mesmo que por meio de seus porta-vozes!). Porém essa
“relação” depende ainda de como são posicionados os pacientes (SPINK, 2015,
P.118).
Este poder que se exerce sobre a vida é positivo (no sentido da produção, não de
julgamento de valor), empreende a gestão da vida, sua majoração, sua multiplicação,
medidas de controles precisos e regulações do conjunto. O poder de fazer viver, com o
máximo de otimização, fomentando corpos dóceis e produtivos, vivos, mesmo que para
isso os corpos precisem seguir uma disciplina e uma regulação do conjunto
(FOUCAULT, 2003).
Por seu turno, Marcel Mauss (2017) identifica o corpo como o primeiro e o mais
natural instrumento do homem. O autor observou os movimentos dos corpos no
exército, no esporte, no cotidiano e percebeu que há técnicas que estes corpos utilizam
para serem mais produtivos otimizando movimentos. “As técnicas do corpo são atos
montados, montados no indivíduo não simplesmente por ele, mas estimulados pela
educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que nela ocupa”
(p.428). Os atos, essas montagens do corpo são fisiopsicossociológicas, mais ou menos
habituais e mais ou menos antigas na vida do indivíduo e na história da sociedade.
O corpo está condicionado por uma série de medidas que o perscrutam e o
objetivo, por vezes, é aumentar o rendimento, a eficácia dos atos. Mauss (2017) ainda se
refere de forma muito breve às técnicas corporais das práticas sexuais, elemento
importante para pensar as infecções pelo HIV, haja vista a principal forma de infecção
ser por relações sexuais. O conhecimento das práticas sexuais, como elas se dão no
cotidiano das populações chaves e prioritárias para a epidemia de aids, contribuiria para
a compreensão da proliferação de infecções em grupos específicos e em determinados
contextos sociais.
Foucault (2005) cita a disciplina dos corpos na escola, colégios, fábricas,
casernas, ateliês, mas também das práticas políticas e observações econômicas por meio
da natalidade, longevidade, saúde pública, habitação, uma explosão de técnicas diversas
e numerosas para se obter a sujeição dos corpos e controle das populações. Estas
características são da ordem do biopoder. Insere-se a vida na história, a entrada de
fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e poder no campo das
técnicas políticas. Desde então, a saúde da população, a vida, passou a ser uma demanda
de governos e de empreendimentos econômicos. A biopolítica insere a vida e seus
mecanismos no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de
transformação da vida humana. Proliferou-se uma série de tecnologias políticas que
investem sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar, de morar, as condições de
vida, todo o espaço da existência.
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modos de subjetivação através dos quais os sujeitos atuam sobre si próprios [...] –,
assim como suas múltiplas combinações (RABINOW, ROSE, 2006, p.53).
Por seu turno, Michel de Certeau (2001) interessa-se pela cultura ordinária, em
que há operações dos usuários que supostamente estão entregues à passividade e à
disciplina. O autor posiciona a individualidade como o lugar de uma pluralidade
incoerente constituída nas relações e acompanha o que ele chama de modos de operação
ou esquemas de ação e não diretamente sobre o sujeito ou autor. Atrás dos bastidores
“tecnologias mudas determinam ou curto-circuitam as encenações institucionais” (p.41).
Se a vigilância disciplinar está por toda parte a moldar os corpos ou regular as
populações, Certeau deseja investigar como uma sociedade inteira não se reduz à ela
com procedimentos “minúsculos” e cotidianos que jogam com os mecanismos da
disciplina e não se conformam a não ser para modificar. Quais são as maneiras de fazer
destas práticas ou procedimentos minúsculos e cotidianos que escapam do olhar
macropolítico, mas que estão bem vivas e atuante sub-repticiamente.
Certeau (2001) apresenta dois conceitos distintos para pensar as maneiras de
fazer: estratégia e tática. A estratégia possui um lugar próprio, inscrito no espaço, capaz
de identificar uma exterioridade e definir suas fronteiras de atuação. Na estratégia é
possível fazer cálculos das relações de força a partir de um próprio exercendo o domínio
de um lugar pela vista, pelo poder e saber instituídos. A tática, por seu turno, é uma
ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio, nenhuma delimitação de
fora lhe fornece a condição de autonomia, ela só tem lugar no do outro. Utiliza,
vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário, mobiliza uma parte dos meios para produzir efeito de astúcia, em suma, é a
arte do fraco.
O homem ordinário submetido à disciplina dos corpos e à regulação da
população o qual está inserido, mesmo sem um próprio, aproveita as ocasiões para
resistir no cotidiano. A política pública de aids amparada pelo saber-poder de uma
estratégia advinda de um próprio, bem delimitada por instituições, não submete a vida
aos protocolos. As pessoas mais vulneráveis à infecção, as pessoas que já vivem com
HIV e os profissionais de saúde (para citar alguns atores deste campo) lidam com as
diretrizes e protocolos das políticas públicas de forma muito singular e inventiva. A
previsão do que se produz nesta relação é imprevisível, mas a submissão completa não
se apresenta, há sempre algo que destoa e desvia. A análise moral posicionando
qualquer destes conceitos como algo positivo ou negativo, bom ou mal, não se observa.
Interessa-nos acompanhar a produção dos modos de operação ou esquemas de
ação das táticas e estratégias no cotidiano dos homens comuns (ordinários e
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A violência estrutural pode ser identificada, por exemplo, quando uma pessoa
jovem morre de complicações da aids; os equipamentos que dispomos e a experiência
dos profissionais de saúde poderia ter evitado a morte? Se sim estamos diante de uma
violência estrutural (PARKER, 2013). Assim, o estigma está associado às condições
socioeconômicas, questões de raça e etnia, entre outros elementos, não é um atributo
estático.
O preconceito, o estigma e a discriminação causam danos não apenas por seu efeito
direto, mas nas formas pelas quais sua implantação como parte de processos de
exclusão e de violência estrutural negam o acesso à saúde e corroboram, assim, com
as causas fundamentais da doença (PARKER, 2013, p.44).
O organismo não é limitado pela pele, segundo Ingold (2015), e também vaza porque
não se prende às fronteiras predeterminadas. O organismo, uma textura composta de
várias trilhas, movimenta-se dentro de uma malha de relações. Estes organismos
habitam a Terra, são seres no mundo, e esse habitar em movimento é o modo
fundamental de vida.
François Laplantine (2016) afirma que o médico (ou profissional de saúde) tem
sempre uma compreensão que extrapola o campo biomédico da patologia e da terapia, o
trato cotidiano com as doenças não permitem que eles sejam sempre orientados pela
razão. Os processos de troca entre os que curam e os que são curados não se restringem
apenas à experiência vivida pelo paciente e o saber científico do médico, mas envolve o
saber do doente quanto à sua doença e a experiência vivida pelo médico.
Quando tratamos de etiologia na nossa sociedade considera-se com bastante
frequência a etiologia científica da medicina contemporânea e praticamente não nos
debruçamos sobre a etiologia subjetiva, simultaneamente social, que trata das pessoas
acometidas ou em risco de adquirir alguma doença. Sente-se dificuldade em admitir,
devido a causalidade biomédica, que a doença é um fenômeno social que não é
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que habitam o mundo, não são peças que se movem pela superfície do mundo de um
ponto ao outro, mas casa linha é um caminho através do mundo e não pelo mundo.
Observemos que os entes desse emaranhado que compõem uma malha não são pontos
definidos e independentes que se conectam como a imagem formal de uma rede, tratam-
se de linhas entrelaçadas.
Quando as pessoas se movimentam elas se tornam linhas de uma malha, deixam
rastros. As trilhas que as pessoas deixam atrás de si são o que permite conhecer e
reconhecê-las. Onde quer que haja vida há movimento, mas nem todo movimento tem
vida, pois o movimento da vida é o de tornar-se, e cada uma das pessoas vive de forma
peculiar.
A cena da aids, portanto, é uma malha composta do entrelace de uma
multiplicidade de linhas compostas de movimento, adolescentes e jovens que vivem sua
sexualidade, acadêmicos que refletem sobre as infecções por HIV, profissionais de
saúde que praticam a assistência às pessoas que vivem com o vírus, o gestor público que
demanda recursos financeiros para a pesquisa e a atenção, a escola que evita discutir a
temática da educação sexual, a vivência religiosa que auxilia no acolhimento das
pessoas mais vulneráveis à infecção, os medicamentos antirretrovirais, os equipamentos
de laboratório, a imagem da aids nas mídias de grande massa, ou seja, as linhas que
compõem essa malha são inumeráveis e todas atuam na contemporaneidade da
epidemia.
Cada linha desta malha, produz trilhas do movimento e da relação, mas repito
que não se trata de uma relação com um organismo “aqui” com um ambiente “acolá”, é
antes uma trilha que ao longo da vida é vivida, sem começo nem fim. O organismo não
é limitado pela pele, ele vaza como um nexo de vida e crescimento dentro de uma malha
de relações.
[...] a nossa tarefa não é fazer um balanço do seu conteúdo, mas seguir o que
está acontecendo, rastreando as múltiplas trilhas do devir, aonde quer que
elas conduzam. Rastrear esses caminhos é trazer a antropologia de volta à
vida (INGOLD, 2015, p. 41).
O fato de aceitar ocupar o lugar e deixar ser afetado por ele permite estabelecer
conversações com as pessoas pesquisadas amparadas por uma comunicação não
intencional e sempre involuntária, seja ela verbal ou não. A vivência dessa experiência
permite à etnógrafa assistir e falar coisas que comumente não falariam no contato com
os sujeitos da pesquisa. Ela ainda expõe a limitação da comunicação etnográfica
ordinária que se ampara na comunicação verbal, intencional e voluntária visando a
aprendizagem de um sistema de representações.
Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica
identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência
de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe,
todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se
desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece
nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se
perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível (FAVRET-
SAAD, 2005, p. 160).
O risco de se permitir afetar pela pesquisa pode produzir saberes que o modo
tradicional de fazer não nos proporcionaria. Tim Ingold (2019) propõe uma diferença
entre “etnografia” e a “observação participante”, a primeira está na ordem da descrição
das pessoas, aproxima-se das pessoas para descrevê-las, a segunda se refere a prestar
atenção às pessoas, vendo o que fazem e escutando o que dizem, trata-se de pesquisar
com as pessoas e não sobre elas. O autor propõe unir-se às pessoas na tarefa comum de
encontrar formas de viver.
Para Ingold (2015), o ato de estar vivo é oriundo da atenção para se mover,
conhecer e descrever, estas não são expressas de forma linear e em série, mas operações
paralelas do mesmo processo. A vida é um movimento de abertura, não de
encerramento. O que significa dizer que os seres humanos produzem suas próprias
vidas? Mesmo sabendo que o processo produtivo não está confinado nas finalidades de
qualquer projeto particular, a produção não começa com uma imagem que se torna
objeto, mas continua indefinidamente, sem começo nem fim. O que somos ou o que
podemos ser não vem pronto, estamos perpetuamente nos fazendo a nós mesmos.
sujeitos para acompanhamento. As organizações da sociedade civil que tenha por tema a
aids e mais especificamente a aids em adolescentes e jovens também serão convidadas
para a apresentação e contribuição com a pesquisa. Na ocasião apresentaremos os
resultados da primeira fase da pesquisa. Os critérios de inclusão são: ser homem com
práticas homoerótica com outros homens, estar na faixa etária entre 15 e 24 anos, estar
vinculado a um dos SAE com pelo menos 01 (um) atendimento com infectologista. A
quantidade de sujeitos envolvidos com a pesquisa é indeterminada em razão da nossa
experiência aberta aos fluxos da pesquisa, vamos rastrear as trilhas dos atores
envolvidos com o campo da pesquisa e montar a malha.
O acompanhamento destes adolescentes e jovens utilizando a itineração em
busca do cuidado e a construção da malha extrapolará a realização da entrevista formal.
O encontro fomentará o caminhar da pesquisa por territórios praticados pelos sujeitos
(unidades de saúde, espaços de sociabilidade, comunidade, entre outros), retomada de
conversações com profissionais de saúde e gestores da política pública de aids, pessoas
do convívio do sujeito (familiares e amigos) e outros que eventualmente componham a
malha de uma vida. Lançaremos mão da “observação participante” (para além da
observação de objetos ou coisas a serem interpretadas por representações) preconizada
por Tim Ingold (2019) na tentativa de se permitir ser afetado e vivenciar as trilhas de
uma vida; confecção de caderno de campo; produção de entrevistas em profundidade
com temas sensíveis à epidemia de aids e outros que emerjam do encontro com os
adolescentes e jovens HSH vivendo com HIV.
A pesquisa terá o projeto submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), por
investigar pessoas que vivem com HIV. Estes indivíduos tem o sigilo da sua condição
sorológica e de saúde protegidos por lei, portanto, a pesquisa se esmerará em não expô-
los no processo de produção de dados. O projeto, então, será cadastrado na Plataforma
Brasil e submetido ao CEP da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
A análise dos dados produzidos na pesquisa será realizada com a utilização do
marco teórico referendado na introdução, capitaneado por Tim Ingold na construção das
malhas por meio das linhas, trilhas e tecidos em permanente movimento. O referencial
teórico de Michel Foucault, Gabriel Tarde, Bruno Latour, Erving Goffman são
ferramentas conceituais presentes na pesquisa. No processo da pesquisa a posição do
pesquisador é atuar com e não sobre o objeto de sua observação (DELEUZE, 2004;
INGOLD, 2019). Logo, o pesquisador está implicado na produção do conhecimento,
não a observa em posição de neutralidade, confunde-se e é igualmente sujeito e objeto.
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HISTÓRICO
Saúde (MS) em 2015 finalmente havia incluído a APS para fazer o manejo das pessoas
que vivem com HIV/aids (PVHA). Atualmente o MS reconhece a UAPS não só com
ações de prevenção e diagnóstico, mas também de acompanhamento. Havia uma
discussão internacional no campo da aids sobre o manejo das PVHA na APS e o MS,
afinado com as discussões vigentes, resolve encampar o acompanhamento das PVHA
na APS, desde 2000 algumas iniciativas foram surgindo na APS. Experiências
internacionais já estavam postas.
A cronicidade da aids trouxe esse elemento junto a APS, o acompanhamento de
casos de baixa complexidade. Vislumbrava-se essa possibilidade em virtude da
superlotação dos SAE tradicionais nos hospitais. Em 2008, quando o professor Dr.
Roberto da Justa ingressou na UFC optou por ir a APS em detrimento do hospital, este o
espaço tradicional do infectologista. Desejava abordar as doenças infecciosas na APS.
ainda naquele ano. O MS, por meio destas publicações, reconheceu que pode haver o
manejo das PVHA na APS.
Segundo o Dr. Roberto da Justa, até 2013, os melhores indicadores dos SAE de
Fortaleza era o SAE AM, em termos de retenção de paciente, adesão ao tratamento,
vários parâmetros, hoje, no entanto, o infectologista diz que não acompanha mais estes
indicadores. Na época o infectologista acionou a SMS para replicar o modelo do SAE
AM em outras UAPS do município de Fortaleza. O apoio da Secretaria da Saúde do
Estado do Ceará (SESA) com os cursos de Manejo Clínico na APS para a expansão da
rede ainda era incipiente.
Então na época junto ao estado eu batia para cada policlínica fosse um SAE, então a
gente tinha 25 (vinte e cinco) policlínicas, 25 (vinte e cinco) regionais no estado do
Ceará. Na época o governo Cid Gomes ia fazer um concurso pra operar essas
policlínicas e estavam escolhendo algumas especialidades, cardiologista, endocrino,
hipertensão, diabetes, precisa incluir aí a questão do HIV/aids, se em cada policlínica
tiver um infectologista, uma equipe, um SAE, eu resolvo o problema do HIV/aids no
estado do Ceará. Na época a SMS estava contaminada com as demandas de
hipertensão e diabetes, eu alertava que precisávamos pensar, também, a questão das
doenças infecciosas (Infectologista 1).
O médico do SAE AM ainda lamenta o pouco investimento neste modelo de manejo das
PVHA.
FLUXOGRAMA
a) Diagnóstico reagente (no próprio SAE AM) / encaminhado (HSJ, HU, UAPS da
Regional III, clínicas privadas) – 1ª Consulta enfermagem (acolhimento, responde às
dúvidas, apresenta os SAE disponíveis e o usuário define onde quer ser acompanhado,
caso fique e, for possível, abre o prontuário e faz a consulta de enfermagem, caso não
seja possível fazer no dia, abre no dia da 1ª consulta com a infectologista);
c) Realização dos exames (SAE CR, demora de 25 a 30 dias para ficar prontos);
e) 3ª Consulta farmácia (30 dias depois do início da TARV, avaliar a medicação, caso
necessário também conversa com a infectologista);
f) Realização de exames da carga viral (90 dias depois do início da TARV, caso esteja
bem volta ao serviço de seis em seis meses e repete os exames);
ESTIGMA E PRECONCEITO
[...] mas esses pacientes são encaminhados para tomar essa vacinação no
CRIE (Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais) que é o nosso
outro parceiro, que é lá no Hospital Albert Sabin, só que alguns pacientes
eles não querem tomar lá pela dificuldade, tanto da distância quanto da
necessidade de dizer que é portador do vírus, então pela quebra do sigilo
alguns não querem ir (Farmacêutica).
CUIDADO
acolher a demanda do usuário, mesmo que fuja da alçada prevista no fluxograma. Por
vezes, os usuários se dirigem ao serviço para uma conversa quando apresentam alguma
angústia ou alguma intercorrência com alguns sintomas de infecções oportunistas.
Importa frisar que não se realiza consulta pelo aplicativo de conversa, apenas a
articulação para uma consulta presencial.
A oferta da testagem rápida (TR) para o HIV no SAE AM é de fundamental
importância, parte significativa dos usuários do serviço acessam o SAE por essa via.
Um turno na semana, as profissionais, enfermeira e farmacêutica, ofertam a testagem
para uma demanda livre ou encaminhada da própria UAPS. Os exames que apresentam
sorologia não reagente para o HIV são tratados com atenção quando da entrega aos
usuários, pois, a oportunidade de orientar a pessoa que se encontra em vulnerabilidade
para a infecção pelo vírus é fundamental.
Em relação ao cuidado que o serviço oferta, o tempo do diagnóstico reagente
para HIV e os primeiros atendimentos com a enfermagem, farmácia e infectologistas é
de alguns dias, nestes atendimentos há uma avaliação da condição do usuário para
saber, também, se se trata de usuários com perfil para o SAE AM. Em comparação com
o Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ), o tradicional e principal serviço de
saúde terciário de HIV/aids do estado do Ceará, uma primeira consulta ambulatorial, por
exemplo, pode demorar algo em torno de 06 (seis) meses.
Os profissionais de saúde do SAE AM se ressentem do tempo de escuta para os
jovens presentes no serviço, as demandas não permitem que possam observar mais
atentamente como estes jovens estão conduzindo suas vidas, quais as redes que estão
construindo. Esta limitação impede que os profissionais de saúde conheçam mais
profundamente as práticas destes jovens no cotidiano e a produção do cuidado não
considera alguns elementos importantes. Os jovens desacompanhados que se
apresentam ao serviço e se refiram à condição de isolamento são orientados a dividir as
suas angústias com alguém de sua extrema confiança, para lidar melhor com a nova
condição. Os profissionais de saúde se colocam a disposição para auxiliar nesta tarefa,
inclusive para uma conversa com esta pessoa de confiança do usuário caso ele deseje.
O contato com os familiares e amigos fica restrito às consultas formais quando
os próprios usuários demandam, não há a possibilidade de envolver os familiares mais
diretamente em encontros sistemáticos que poderia ser importante no auxílio ao
tratamento e da superação do isolamento.
50
O contato com familiares e amigos não são muito comuns, mas há quando
eles desejam que façamos algum esclarecimento. Percebo ausência de apoio
familiar e desarranjo familiar, o que favorece a vulnerabilidade. Tenho
dificuldade de abordar a questão da prostituição entre eles (Infectologista 2).
REDES
51
As fontes utilizadas pelos jovens para pesquisar a aids são as mais diversas, mas
a pesquisa facilitada pela internet é a mais comum. A veracidade das informações
contidas na rede de computadores é questionável, há muitas fontes que dissertam sobre
o HIV/aids. Alguns jovens se apropriam da nomenclatura do campo da aids e
conversam sobre seus tratamentos com os profissionais de saúde. Mesmo com o acesso
aberto na rede de computadores, o conhecimento sobre a profilaxia pré-exposição
(PrEP) e a profilaxia pós-exposição (PEP), técnicas da prevenção combinada que está
na dianteira das políticas públicas de HIV/aids na contemporaneidade, ainda é restrita.
A enfermeira cogita a possibilidade dos pais destes jovens não terem o conhecimento
adequado sobre a contemporaneidade da epidemia por não ter vivenciado o tempo mais
rude das três décadas da epidemia de aids.
54
Percebo que os jovens tem o HIV muito distante da vida deles, acham que
nunca vai acontecer com eles. Quando acontece eles querem esconder a
sorologia, pois a possibilidade de transar entre eles fica restrita. Esses jovens
possuem, em sua maioria, situação socioeconômica mas precária, apesar de
termos alguns em pós-graduações, outra característica do SAE AM
(Farmacêutica).
e das festas que frequentam e isso facilita a intervenção dos profissionais de saúde na
produção do cuidado. A participação destes jovens junto ao movimento social é restrita
devido o receio da exposição, eles desejam manter a sigilo da condição sorológica a
todo custo.
Estrutura muito precária. Temos duas salas, uma de frente para a outra. Uma
que era utilizava o teto caiu, as paredes estão mofadas, ainda não foi
consertado o teto, não há armários suficientes, não tem pastas suficientes,
adquirimos os materiais com os recursos próprios. Falta rolo de maca,
também adquirido com recursos próprios (Farmacêutica).
estabelece com as seleções realizadas pela SMS de duração de 02 (dois) anos. A cada
mudança de ciclo pode haver o rodízio de profissionais de saúde que já haviam
estabelecido um vínculo com os usuários e é necessário recomeçar todo o processo,
fragilizando o manejo das PVHA. As contratações são realizadas como RPA (Recibo de
pagamento a autônomo) sem garantias mínimas aos trabalhadores. Quando os
profissionais de saúde alcançam trabalhos com algumas garantias eles migram, o SAE
AM, então, passa a ser um local de passagem.
responsável por essa sensação, o fato é que a procura ao serviço aumentou. Não há
clareza sobre o fenômeno atual que se apresenta por virtualidades, sabe-se que algo está
ocorrendo, mas ainda não está atualizado para que se compreenda com mais
complexidade. A palavra de ordem “use preservativo” e “faça sexo seguro” não está
funcionando.
A gente tende a ser conservador, achar que o pessoal não quer nada, só
querem saber de farra, mas não podemos nos apegar a esse discurso, há
elementos sociológicos e antropológicos para avaliar isso, soluções simplistas
não dão conta disso. Há jovens de todos os extratos sociais, é um jovem novo
que precisamos estudar (Infectologista 1)
Então, você precisa atrair os que ainda não sabem que tem, os que sabem que
tem e não estão em tratamento e estão de alguma forma transmitindo a
doença. Então, o que falta pra atrair essas pessoas, para se diagnosticarem e
se tratarem, porque eu acho que esse é um grupo que tem que ser visto com
prioridade, e eu acho que esse sujeito que desconfia que tem o vírus ou sabe e
não se trata, ele olha hoje pra um SAE e ele não se sente com privacidade,
com segurança, com tranquilidade e acolhido para aceitar o diagnóstico e se
tratar (Infectologista 1).
58
Porque o que mais me preocupa era prevenir esse jovem para ele não chegar
no meu serviço com HIV, como eu to resolvendo jovens de 15 anos, 17 anos,
18 anos, praticamente toda a semana. No início da sua vida, no início da vida
adulta e alguns que estão iniciando graduação, outros que nem iniciaram
ainda, que não sabe como é que vai ser seu futuro e aí, o que fazer? O que
fazer para evitar com que esses jovens tenham a infecção pelo HIV? Eu acho
que tem que ter uma articulação entre a universidade, de gestão e tem que ser
uma política mesmo institucionalizada de prevenção (Farmacêutica 1)
HISTÓRICO
FLUXOGRAMA
c) 2ª consulta com infectologista 30 (trinta) dias depois da última para avaliar a situação
de saúde depois do início dos antirretrovirais.
ESTIGMA E PRECONCEITO
[...] por exemplo, tem paciente que entra na consulta e pede pra não sair com
o prontuário que é a prática normal ele levar e fazer a marcação, mas ele
pede: "Não, eu marco depois" e deixa o prontuário pra não ter que sair pra
onde estão os outros que estão fazendo a testagem, porque a testagem tem um
grau de aceitação maior, isso é incentivado na mídia etc., Então todo mundo
62
testa HIV, não tem nenhum problema, agora você entrar naquela primeira
salinha há um certo registro de que ali é o atendimento do infectologista, e
isso já tentei fazer uma narrativa de que é infectologia geral, mas é difícil, o
registro já é bem conhecido e acaba que se sabe mesmo (Infectologista 3).
Diante deste cenário há pacientes que não querem acessar o serviço, por
exemplo, em um caso, a mãe é que apresenta os exames aos profissionais de saúde, a
usuária não tem frequentado o serviço por medo e ser identificada. A situação, claro,
não é a ideal, mas se compreende e se realiza porque mesmo desta forma precária a
usuária está minimamente sendo acompanhada. A discriminação e o estigma são
bastante frequentes, há relatos de expulsões de casa, separação dos utensílios
domésticos, fim de relacionamentos quando se socializa a sorologia, entre outros casos.
A prática da vacina, por exemplo, se apresenta como um problema, a aplicação não
ocorre na estrutura específica do SAE CR, assim, os usuários são encaminhados para
salas na UAPS ou em outros serviços. A dosagem da vacina para as PVHA muitas
vezes é específica, assim, eles precisam se identificar como alguém que vive com
HIV/aids, esta situação pode ser bastante constrangedora porque nem sempre existe uma
privacidade da sala da vacina.
Outro caso emblemático é de uma usuária que ainda vivencia o processo de
negação, bem comum entre os recém-diagnosticados. A mãe desta usuária é que
acompanha o fluxo de assistência, ela passa sozinha por todo o processo do tratamento
porque a filha tem pavor à ideia de ser identificada como alguém que vive com HIV, a
usuária somente acessa o serviço ao final do expediente quando não há mais pessoas nas
dependências. Inclusive, a usuária, mesmo observando os critérios para os benefícios do
bilhete único (transporte público gratuito para PVHA) e das cestas básica, não se
desloca à sede da RNP+ por receio de ser identificada por alguém e afirma que lá “só
tem gente que vive com HIV”, ela também não procura trabalho temendo que solicitem
o teste de HIV para admissão (prática proibida por lei) e não acessa os outros serviços
de saúde que o SAE referencia.
O caso desta usuária é um caso limite, mas não é pontual. O estigma e o
preconceito são obstáculos para a retenção ao serviço, consequentemente, barreira para
uma boa adesão à terapia antirretroviral (TARV). O vínculo fica comprometido e a
assistência às demandas que emergem no usuário fragiliza o controle do HIV/aids.
63
CUIDADO
prevenção só na razão e o sexo mexe com outras emoções que vão além da
razão, então é muito difícil essa questão da prevenção nesse momento de
muito prazer [...] (Assistente Social 1)
[...] então eu acho que é muito desafiador isso, é desejo, é tesão, é viver
intensamente o prazer que é uma coisa nova, que é uma fase de descobertas,
que você tá saindo da infância para descobrir dessas outras possibilidades, e
aí a pessoa pensa que com ela isso não vai acontecer [...] (Assistente Social
1)
Então por fim o paciente chega pra mim já com todos esses exames, a gente
já pode fazer uma abordagem montada em cima do que a gente chama da
Propedêutica armada, que é com o conjunto de exames laboratoriais. Essa
nova forma de abordar o paciente, a aceitação maior dessa medicação
facilitou isso no serviço, é um dado de realidade, realmente a gente nota essa
diferença (Infectologista 3).
possam pensar junto um projeto terapêutico que atente para a singularidade de cada
usuário. Quando é possível, o infectologista 3 verifica com as assistentes sociais as
informações que ele não consegue captar na consulta, tais como, uso de drogas (os
usuários falam com tranquilidade), em um caso, já escapou, por exemplo, um caso de
um paciente que havia estado preso.
O trabalho multidisciplinar é bastante enfatizado no SAE CR como uma
potência do serviço. A complexidade de uma infecção pelo HIV com vários elementos
clínicos e sociais requer o envolvimento de uma multiplicidade de disciplinas para uma
resposta efetiva.
Eu acho que o trabalho multidisciplinar pra mim lá é a coisa que mais deva
ser enfatizada, então o que é conquistado por essa ação de múltiplas mãos, de
múltiplas percepções, de múltiplas profissões pra mim é o que tem sido o
grande diferencial (Infectologista 3).
Os serviços têm muitas coisas, muitas saídas, tanto relacionadas aos pacientes
como ao processo de formação multiprofissional (Infectologista 3).
Aqui é uma caixinha de surpresas, quando a gente acha que viu de tudo no
outro dia vem uma surpresa nova, e você assim, cada resultado é uma forma
diferente, resultado diferente, conduta diferente, por que a gente trabalha
muito a realidade de vida de cada pessoa (Enfermeira 3).
REDES
Um dos papéis primordiais do serviço é se articular, pois a capacidade instalada
do SAE não tem autonomia para resolver tudo. A integralidade do cuidado é alcançada
pela articulação em rede entre os serviços. As demandas que se apresentam aos
profissionais de saúde dos SAE extrapolam as ferramentas que estão disponíveis no
serviço, por isso, a necessidade de estabelecer relações com outros serviços de saúde,
assistência social e articulação com o movimento social de HIV/aids.
As articulações mais referidas são com outros SAE, tais como o Núcleo de
Atendimento Médico Integrado (NAMI) da Universidade de Fortaleza (Unifor),
Hospital Nossa Senhora da Conceição, Hospital Gonzaguinha do Zé Walter, o próprio
CEMJA (que no mesmo espaço físico da UAPS Carlos Ribeiro são serviços
completamente diferentes) e o Centro de Saúde do Meireles com tratamento de IST.
O Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ) é o único que oferta a
profilaxia pós-exposição (PEP) no município de Fortaleza e é a referência terciária para
a necessidade de emergência e de acompanhamento dos casos que ficam mais
complexos.
A Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/aids (RNP+), uma organização
não governamental (ONG) atuante no campo do HIV/aids, é uma articulação importante
para o acesso às cestas básicas nos casos de vulnerabilidade social e atendimento
jurídico às quintas-feiras à tarde.
68
A articulação com a Área Técnica de IST, aids e hepatites virais da SMS também
acontece capitaneada pela coordenador do SAE CR. Quanto às articulações com os
organizações da sociedade civil, infectologistas não se envolvem diretamente, esta
atividade fica a cargo de outras categorias. As gestantes já possuem o encaminhamento
para o Gonzaguinha de Messejana, HU ou Hospital César Cals de forma mais dinâmica
sem passar pelo infectologista e considerando a residência das mulheres, a facilidade do
acesso.
A segunda coisa que me faz lembrar de algo que a gente já gostava da ideia e
quando a gente conversa parece fortalecer, a ideia de matriciamento, essa
ideia de matriciamento bilateral. Eu infectologista fazendo matriciamento por
acompanhamento dos médicos da atenção primária e vice-versa, eu
recebendo o matriciamento de uma endocrinologista com as novas
medicações do diabetes que eu não estou atualizado, enfim, então com outros
profissionais também a gente receber esse matriciamento, isso me veio e me
parece uma coisa que na economia da saúde tem um papel que poderia ser
mais explorado (Infectologista 3).
acima. A depressão também se apresenta entre estes jovens, casos de ideações suicidas
em virtude de rompimento de relacionamentos ou descontentamentos produzidos pelo
estigma de viver com HIV/aids.
Os usuários mais jovens, ativos, têm receio de se ausentar do trabalho para ir às
consultas no serviço, também não gostam de se ausentar da faculdade. Os profissionais
de saúde, por sua vez, tentam sensibilizar os jovens para a adesão ao tratamento, a
frequência correta às primeiras consultas com o objetivo de controlar o HIV o mais
rápido possível e limitar às idas ao serviço para consultas semestrais. A maioria dos
jovens adere ao serviço e rapidamente se observa uma resposta em relação ao controle
do HIV, no entanto, ainda há aqueles que precisam da busca ativa pelo serviço.
Para auxiliar no cuidado, os profissionais de saúde orientam que os jovens
possam compartilhar a sua condição de saúde com alguém que ele confie. Esta atitude
pode auxiliar estes jovens na condução do seu cuidado e dará mais confiança para lidar
com situações limites de estigma e discriminação. Os jovens dificilmente se engajam
em grupos de apoio, pois receiam que alguém saiba sua condição sorológica. A vida de
conquistas e flertes pode ficar comprometida caso a sua condição sorológica seja
exposta para o agrupamento social que o jovem pratica, assim, o receio que as pessoas
não queiram se relacionar com ele é presente.
Há os jovens mais esclarecidos que já estão no ensino superior, outros que leem
com frequência as informações sobre HIV/aids e aqueles que não compreendem bem
como tomar o medicamento, estes provavelmente não têm o apoio familiar (há casos até
de expulsão de casa). A maioria dos atendimentos no serviço, os jovens vão sozinhos,
em alguns casos, todavia, mães e amigos acompanham estes jovens.
Os jovens que vivem com HIV/aids em sua maioria trabalham e estudam e a faixa etária
de 18 a 24 está se tornando mais frequente segundo a percepção dos profissionais de
saúde. Os jovens perguntam tudo sobre medicação, sobre trabalho, mas alguns não
possuem projeto de vida quando estão diante de uma sorologia reagente. Outros já
possuem projetos de estudo, viagens, trabalho, mas há os jovens que ficam apáticos.
Outro comportamento presente entre os jovens é de valorização da vida depois do
73
A estrutura física requer uma reforma imediata para que as atividades sejam
exercidas com condições mínimas. A organização social (OS) que gerencia a Unidade
de Atendimento Primário à Saúde (UAPS) disponibiliza apenas material hospitalar,
mesmo assim é recorrente o desabastecimento de luvas e máscaras. O material de
escritório, por exemplo, não está sendo disponibilizado. A parceria com faculdades
privadas de ensino para receber acadêmicos da área da saúde no serviço por vezes tem
como contrapartida a doação de materiais básicos para o SAE CR, no entanto, ainda
faltam insumos de forma regular. O serviço não dispõe de prontuário eletrônico, apenas
o convencional de papel, já não há espaço adequado para acomodar os papeis que se
avolumam. Apenas um computador funciona com acesso à internet no serviço e de
75
A gente lida com conflitos, usuários que chegam sob efeito de substâncias
psicoativas, tratamos de sexualidades e por vezes se sente acuada, há apenas
o infectologista de homem às terças e quintas. O trabalho segue até às 18h, no
entanto, fica bem deserto, a entrega dos exames extrapola às 17h (Enfermeira
1).
77
As atualizações sobre a infecção por HIV que ocorrem com relativa velocidade
não são ofertadas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), os profissionais de saúde
que se mobilizam para realizar alguma formação ou fomentar entre os pares.
(...) recentemente isso tem ficado mais frequente, pacientes com menos de 18
anos ou pertinho de 18 anos, antes era 20, 22 anos, então tem ficado mais
claro a chegada de pacientes mais jovens e um maior número tanto mais
jovens mesmo quanto maior número de pacientes nessa faixa etária em torno
dos 20 anos (Infectologista 3).
(...) bom, eu acho muito desafiador, tudo isso. É assustador o aumento dos
casos que quando eu comecei a trabalhar aquilo, a demanda era menor mas a
gente entregava 03 (três) exames por mês positivos, eu não sei deste mês,
mas teve um mês que só em setembro nós entregamos 40 (quarenta) em um
mês, 40 (quarenta) reagentes. Eu sei porque foram 40 (quarenta) resultados
reagentes em setembro, sem ter campanha (Assistente Social 1).
Além do aumento dos diagnósticos, estes não se apresentam de forma oportuna com
bom tempo hábil para o prognóstico, mas com características de diagnóstico tardio
percebido pelos resultados dos exames de CD4 e carga viral. É presente, também, o
diagnóstico reagente de HIV junto a outras IST como sífilis e gonorreia.
Os HSH vão fazer exames com mais frequência, por vezes cria uma rotina, algo
em torno de seis em seis meses. Os homens heterossexuais, geralmente, estão realizando
exames pela primeira vez, são mais despreocupados em relação ao risco da infecção. As
mulheres, por sua vez, não se percebem vulneráveis. Os jovens HSH são mais
esclarecidos,
(...) então, geralmente, são os que mais procuram a questão da PEP
(profilaxia pós-exposição), da PREP (profilaxia pré-exposição), que
procuram realizar os testes com maior frequência, que tem o cuidado de
conversar com o parceiro ou parceira para vir fazer os exames, vou iniciar um
relacionamento novo então já convido esse meu novo relacionamento pra vir
fazer o teste, então eu vejo que eles são mais preocupados em relação a isso,
tem um cuidado maior em relação a isso (Enfermeira 2).
3. CRONOGRAMA
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<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/02/pessoa-com-hiv-e-uma-despesa-
para-todos-no-brasil-diz-bolsonaro.shtml>. Acesso em: 18 de fev. de 2020.
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https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/opiniao/segunda-onda-da-aids-no-
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