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O BEBÊ

DE
TARLATANA
ROSA
Roteiro de Coelho De Moraes sobre a obra literária de
João do Rio. Personas: Heitor (senhor de si), barão
Belfort (velho bonachão), Anatólio (gay), Maria
(liberal), O Bebê, Mulher, carnavalescos, criado.
policialmarcoantoniocoelhodemoraes@gmail.com
1.

CENA 1
INT. GABINETE DO BARÃO. NOITE
Finais do século XIX.
O gabinete é pura madeira.

HEITOR
Esticado preguiçosamente no divã.
Fuma, com piteira, um charuto fino.
Heitor, Barão Belfort, Anatólio, Maria, atentos, curiosos.

Oh! uma história de máscaras!


quem não a tem na sua vida?
O carnaval só é interessante porque nos dá
essa sensação de angustioso imprevisto...
Francamente.
Toda a gente tem a sua história de carnaval,
deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de
luxúrias atrozes.
Um carnaval sem aventuras não é carnaval.
Eu mesmo este ano tive uma aventura...

Pausa.
Heitor parece absorto.

MARIA
É uma aventura alegre?

HEITOR
Conforme os temperamentos.
Não... de acordo com o meu.

MARIA
Suja?

HEITOR
Pavorosa ao menos.

MARIA
De dia?

HEITOR
Não.
Coisas desse tipo,
somente pela madrugada.

ANATÓLIO
Suplicante.

Mas, homem de Deus, conta!


Olha que está adoecendo a Maria.
2.

Heitor puxa um largo trago à piteira.

HEITOR
Não há quem não saia no Carnaval disposto no
excesso,
disposto aos transportes da carne
e às maiores extravagâncias.

Levanta-se.
Anda pela sala gesticulando com a piteira.
Fumaça azulada faz desenhos.

O desejo, quase doentio é como incutido,


infiltrado pelo ambiente.
Tudo respira luxúria,
tudo tem da ânsia e do espasmo,
e, nesses quatro dias paranoicos,
de pulos, de guinchos, de confianças
ilimitadas, tudo é possível.
Não há quem se contente com uma...

ANATÓLIO
Nem com um...

HEITOR
Sorri. Olha Anatólio.
Vai à bancada de bebidas.
Serve-se de vinho.

Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam,


as gargalhadas passam como arrepios de
urtiga pelo ar.
É possível que muita gente consiga ser
indiferente.
Eu sinto tudo isso.

HEITOR para o discurso.


Encara Maria.

MARIA
Muito bem dito, meu caro!

HEITOR
Este ano organizei uma saída pela cidade...
quatro ou cinco atrizes...
quatro ou cinco companheiros.
Não me sentia com coragem de ficar só,
como um trapo...
na volúpia e prazer da cidade.
Fomos os bailes.
3.

Íamos beber champanhe aos clubes de jogo que


anunciavam bailes e aos maxixes mais
ordinários.
Era divertidíssimo e...
ao quinto clube...
estávamos de todo excitados.

CENA 2
INT. BAILE. NOITE
Música de carnaval.
Um grupo ladeia Heitor, que entra abraçado a duas mulheres
mascaradas. Falam alto por causa da música. Entram na dança.

MULHER
Olha os bailadores.
Nossa Senhora! Mas são horríveis!
Gente ordinária, marinheiros à paisana,
mulheres ridículas...
Vieram das partes mais ocultas e
dissimuladas da rua de S. Jorge,
fedem demais...

HEITOR
Que foi?
Você diz isso pois é a primeira das estrelas
de revistas.

MULHER
Ora, o que foi...

HEITOR
Que tem isso? Não vamos juntos?
Vamos para a farra mais desprezível.]
Essa é a ideia.

Juntos e fantasiadas as mulheres. Muitas mulheres pretas


dançam pelo estrado da banda, pessoas mal vestidas e
evidentemente pobres. O grupo de Heitor para diante dos
dançarinos. Uma garota fantasiada de bebê, roupa rosa
transparente, se roça em Heitor. Heitor olha as pernas de
meias curtas. Bonitas. Olha os braços, o caído das espáduas
nuas, a curva do seio. Heitor sorri. A garota sorri de volta,
atrevida, olhos perversos, boca polpuda como se ofertando.
Nariz postiço. Heitor observa bem. Passa a mão e dá um
beliscão.

GAROTA
Ai! Assim dói!
4.

Heitor sai com o grupo, dança e pula e olha a garota vestida


de bebê. O grupo se afunda na multidão carnavalesca enquanto
a garota os olha até onde dá.

CENA 3
INT. GABINETE. NOITE

BARÃO BELFORT
Se apoia na bengala e cofia a bigodama.

E o bebê?

HEITOR
Muda de risos para rosto fechado.

O bebê ficou.
Mas no domingo, em plena Avenida,
ia eu caminhando pela praça;
muita gente se divertindo,
senti um beliscão na perna e...
uma voz que dizia: "para pagar o de ontem".
Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo,
com o nariz postiço,
aquele nariz tão perfeito que se ligava a
uma boca tão excitante.

CENA 4
EXT. AVENIDA. DIA

HEITOR
Aonde vai hoje?

GAROTA BEBÊ
A toda parte!

A garota corre pela rua, se perde na multidão.

CENA 5
INT. GABINETE. NOITE
Mesa posta. Os visitantes do gabinete ceiam.
Criado serve um a um enquanto conversam.

MARIA
Ela estava te perseguindo!

ANATÓLIO
Talvez fosse um homem...
Quem dera...
5.

BARÃO BELFORT
Estende a mão.

Não interrompam o Heitor!

Heitor acendeu outra cigarilha,


Piteira ponta de ouro.

HEITOR
Não vi mais a garota-bebê...
nem na segunda-feira.
Na terça desliguei-me do grupo e cai no mar
alto da depravação, só,
com uma roupa leve por cima da pele e todos
os maus instintos fustigados.
De resto a cidade inteira estava assim.
Era o último dia, enfim...

Heitor se levanta e anda e passa por trás de Maria.


Passa as mãos em seus seios, em calma carícia.
Maria bebe lentamente enquanto Heitor fala.

É o momento em que por trás das máscaras as


meninas confessam paixões aos rapazes,
é o instante em que as ligações mais secretas
transparecem,
em que a virgindade é dúbia e todos nós...
todos nós... achamos a virgindade inútil,
a honra uma caceteação,
o bom senso uma fadiga.

Heitor se afasta enquanto Maria arfa.


Traga o charuto.

BARÃO BELFORT
O momento em que tudo é possível,
os maiores absurdos,
os maiores crimes...

ANATÓLIO
... nesse momento há um riso que galvaniza
os sentidos e o beijo se desata naturalmente.

MARIA
Você é muito, poético, Anatólio.
Mas, eu ainda prefiro o tesão.

Suspira.
6.

CENA 6
EXT. AVENIDA. NOITE
Avenida apinhada de gente mascarada e Heitor pula e bebe e
roça nas pessoas. Tenta pegar várias garotas, mas, elas não
querem saber dele. Heitor gruda algumas na parede tentando
beijar, mas, elas se safam. Heitor bebe. Cambaleia. Puxa uma
boceta de rapé-cocaína. Aspira. Cai na gandaia. Porém...
ninguém quer saber de Heitor. Passam-se as horas. Um misto
de luzes, máscaras, fantasias loucas até que a avenida se
esvazia. Sobra Heitor e alguns pingados aqui e ali. Heitor
anda vê poucos casais fazendo sexo nas ruas. Confete e
serpentina por todo lado. Heitor olha demoradamente. O
relógio da igreja bate três horas. Passa um carro aberto com
gente cantando marchinhas, mas desaparece. Heitor vê grupos
fantasiados, cansados, se apoiando.
Nessas andanças Heitor vê parada, a garota-bebê de roupa de
tule rosa, ao longe, encostada num poste, alumiada pelo
poste. Heitor para.

HEITOR
Olha para os lados.

Os bons amigos sempre se encontram.

A garota-bebê sorri.

Está esperando alguém?

A garota-bebê gesticula que não.


A garota-bebê passa o pé pelo chão.
Heitor a enlaça.

Vem comigo?

GAROTA
Onde?

HEITOR
Onde quiser!

Heitor pega-lhe nas mãos.


Detalhe-se as mãos úmidas, bem tratadas.
Heitor procura dar um beijo na boca da garota-bebê.
Ela recua. Heitor toca, apenas, a ponta fria do nariz.

GAROTA
Aqui não!

Heitor passa-lhe o braço pela cintura e andam sem dar


palavra. A garota-bebê se apoia em Heitor, mas, dirige o
passeio, empurra Heitor, norteia o caminho. Não falam. Vão
7.

a um jardim denso. Ela para, hesita, arrasta Heitor,


atravessam a praça, entram pela rua escura e com luz amarela
de poste. Heitor a aperta mais. Ela aconchega-se mais. Param
em frente a um prédio e beijam-se ardentemente. Um amasso
denso e sensual.

HEITOR
Então, vamos?

GAROTA
Para onde?

HEITOR
Para a tua casa.

GAROTA
Ah! não,
em casa não pode...

HEITOR
Então por aí.

GAROTA
Entrar, sair...

HEITOR
Tirar a roupa.

GAROTA
Não sou disso!

HEITOR
Paciente.
O que quer então?
É impossível ficar aqui na rua.
Daqui a minutos passa a guarda.

GAROTA
Que tem?
Está quente...

HEITOR
Não é possível que nos julguem aqui para bom
fim, na madrugada de cinzas.
Depois, às quatro terá que tirar a máscara.

GAROTA
Que máscara?

HEITOR
O nariz.
8.

GAROTA
Ah! sim!

A garota puxou Heitor. Abraçam-se mais.


Heitor beija os braços, beija o colo, beija o pescoço.
Gulosamente as bocas se oferecem.
Comem amorosamente os lábios.
O nariz de Heitor esbarra o nariz postiço da garota.

HEITOR
Tira o nariz!

GAROTA
Segreda. Cicia.

Não! não!
Custa tanto a colocar!

Voltam ao namoro mas o nariz volta a atrapalhar.


Heitor se chateia.

HEITOR
Que diabo!
Não vá agora para casa com isso!
Depois... não te esconde nada.

GAROTA
Esconde sim!

HEITOR
Não!
Vamos tirar isso.

Heitor procura nos cabelos dela o cordão. Ela segura as mãos


de Heitor. Heitor nada encontra. A garota-bebê continua com
os abraços, beijos, uma possessa tendo pressa. Os lábios da
garota aproximam-se da boca de Heitor. Heitor entrega-se aos
arroubos amorosos. O nariz roça sempre. Lentamente, Heitor
aproxima a mão direita, enquanto a esquerda enlaça a cintura
da garota, e de chofre Heitor agarra o nariz, arranca-o. Com
o nariz sai parte do rosto. Presa dos lábios de Heitor, com
olhos coléricos, apavorados, uma cabeça sem nariz, com dois
buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era
parte uma caveira com carne...
Heitor se afasta limpando a boca. Recua num imenso vômito,
horror e nojo. A garota-bebê emborcara no chão com partes do
rosto voltada para Heitor, num choro que lhe arregaçava o
beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os
dentes alvos.
9.

GAROTA
Perdoa! Perdoa! Não me bata.
A culpa não é minha!
Só no Carnaval é que eu posso gozar.
Então, aproveito, ouviu? ... aproveito.
Foi você que quis.

Heitor a pegou e sacudiu com fúria, a levanta num safanão.


Cospe na cara da garota. Esmurra a garota... Mas, um apito
trila. Um guarda está na esquina e olha para a cena da
semitreva. O guarda vai naquela direção. Heitor se afasta.
Enquanto se afasta ouve o guarda gritar.

GUARDA
(voz off)
Completamente desesperado.

Que horror! Que horror!

Heitor continua correndo e ouve dois disparos.


Corre até o largo, corre como um louco se perde nas ruas.
Quando Heitor para à porta para tirar a chave, é que repara
que sua mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta.

CENA 7
INT. GABINETE. MADRUGADA
Vemos que a manhã se coa pela janela.
Heitor está olhando para a alvorada. Reflexivo.
Heitor para, com a piteira entre os dedos, fumaça que sobe.
Maria mostra uma contração de horror na face e Anatólio
parece mal. Na fronte de Heitor algumas gotas de suor. Pausa.
O Barão Belfort ergue-se, toca a campainha. O criado traz
refrigerantes que deixa sobre a mesa.

BARÃO BELFORT
Uma aventura, meus amigos,
uma trágica aventura.
Quem não tem do Carnaval a sua aventura?
Esta é pelo menos empolgante.

O Barão de Belfort senta-se ao piano.


Uma canção de Eric Satie.

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