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RESUMO
1
Simbólico, imaginário e real: eixo epistemológico do ensino de Lacan
Michele Roman Faria
2
rS – rI – iR – iS – sS – SI – SR – rR – rS
3
Com o nó borromeano, Lacan mostrará, de maneira ainda mais clara que
nos esquemas elaborados até então, que é do enodamento dos três que se trata e que, em
tal enodamento, real, simbólico e imaginário devem ser considerados como equivalentes.
A propriedade borromeana, que define que ao soltar-se qualquer um, os três estarão
soltos, será constantemente lembrada para relacionar os nós à teoria e à clínica
psicanalítica.
Os sete últimos anos do ensino de Lacan – do vigésimo-primeiro
seminário, Les non-dupes errent (1973-74/inédito) ao vigésimo-sétimo, Dissolução
(1979-80/inédito) – serão dedicados a uma vigorosa exploração da teoria topológica dos
nós. Sete anos de intenso trabalho que não parecem ter sido suficientes para esgotar o
alcance deste recurso, cujo valor para a clínica psicanalítica ainda está para ser explorado.
Não foi o acaso, portanto, que reuniu simbólico, imaginário e real no
início, em 1953, e no fim, em 1980. Ainda que o caminho percorrido de 1953 a 1980 se
esclareça apenas pela retroação, a teoria dos nós não é senão o ponto de convergência de
um extenso, rigoroso e consistente percurso teórico, traçado ao longo de quase três
décadas de seminários, na conceituação do imaginário, do simbólico e do real.
Lembrando as palavras do próprio Lacan:
É concebível, com efeito, que não seja na entrada, à guisa de
prefácio ou de programa, que se possa elucidar alguma coisa
daquilo que é um fim. É preciso já ter percorrido ao menos um
pedaço do caminho para que a partida se esclareça pela retroação
(Lacan, 1968-69/2006, p.183).
4
1. Imaginário
5
construir seu próprio esquema, no qual situa a função do imaginário na formação do eu
trabalhada na teoria do estádio do espelho (Lacan, 1953-54/1986) – o esquema óptico:
6
Passado este período inicial de intenso trabalho com o imaginário, Lacan
se dedicará então ao simbólico, para mostrar que é a partir de sua função que se pode
situar e definir a descoberta freudiana do inconsciente e a clínica que dela decorre.
2. Simbólico
7
entre significante e significado [6]. É deste conceito que Lacan extrairá os fundamentos
para mostrar que a essência da técnica freudiana da associação livre está na subversão do
lugar do sentido: enquanto o uso da língua o coloca do lado do significado, no tratamento
psicanalítico ele passa a depender do significante e da forma como ele se encadeia a outros
significantes. Destacará, assim, a função do significante e sua primazia sobre o
significado, escrevendo-o em um matema, S/s. E utilizará a fórmula da metáfora para
esclarecer que o efeito de sentido que interessa ao psicanalista é aquele que brota da
relação entre os significantes, na cadeia.
Colocará essa estrutura em um pequeno grafo, mostrando que o sentido
está ligado a uma noção de temporalidade que somente o termo retroação [Nachträglich;
après-coup] permite situar:
8
Depois de ter dado destaque, com a teoria do estádio do espelho, ao papel
do eu e do narcisismo para esclarecer o lugar do imaginário na constituição do sujeito,
Lacan destacará a importância do simbólico nessa constituição, desta vez marcando a
função do desejo inconsciente e sua relação com a estrutura de linguagem que o define.
É na teoria freudiana do complexo de Édipo que encontrará as bases para essa
investigação.
Conceitos como o significante e a metáfora serão fundamentais para
extrair, do complexo de Édipo, sua estrutura simbólica. Inspirado no trabalho de Lévi-
Strauss em Estruturas elementares do parentesco (1949/1982), Lacan mostrará que,
independentemente das configurações particulares de cada família, o que o complexo de
Édipo revela é a função estrutural da interdição. Destacará o papel da castração simbólica
como nodal para situar essa função, lembrando que é ela que define o desejo [Wunsch]
como inconsciente, recalcado, distinto do querer ou da vontade.
O problema temporal da constituição do sujeito, que já estava presente na
teoria do espelho pela noção de antecipação que marca os efeitos da imagem sobre o
domínio motor, terá destaque ainda maior na teoria sobre o complexo de Édipo. Dividirá
o Édipo em três tempos, que definirá como lógicos, distinguindo-os do tempo cronológico
para marcar, mais uma vez, o distanciamento de qualquer noção desenvolvimentista na
concepção de sujeito que interessa à psicanálise. Este será o primeiro passo para afirmar
que o sujeito se constitui como efeito de um corte, aquele que inscreve o ser no campo da
linguagem, e que esse corte define uma operação que é lógica, que só pode ser situada
temporalmente na perspectiva da retroação.
Depois de ter construído um esquema para abordar a teoria do estádio do
espelho – o esquema óptico – escreverá a teoria do complexo de Édipo em uma fórmula
– a fórmula da metáfora paterna – reduzindo a uma escrita a estrutura simbólica que
extrai da teoria freudiana [7].
Insistirá na importância da função do pai como central para compreender
o lugar da interdição no Édipo, definindo-a como uma função simbólica, significante.
Descreverá essa função significante como sendo a de representar o desejo materno, DM,
desejo este introduzido pelo corte que o instaura como enigma, x. Definirá o desejo
enigmático da mãe, como o “primeiro significante introduzido na simbolização” (1957-
58/1999), DM/x, e a função do pai como a de representar esse desejo. Para marcar que a
função simbólica do pai é uma função de nomeação do enigma do desejo materno,
chamará de Nome-do-Pai o significante que, uma vez associado a seu significado,
9
NdP/DM, produz um efeito metafórico. Mostrará assim que, tal como ocorre na metáfora,
o que resulta da articulação entre esses dois significantes – o desejo materno, cujo
significado é um enigma, DM/x, e o Nome-do-Pai, que passa a nomear o significado do
desejo materno, NdP/DM – é um ganho de sentido (+), a partir do qual a significação
fálica passa a comandar o sentido no campo do Outro, A/falo (1958/1998, p.563):
10
que a matemática passará a ter um papel central como suporte para a reflexão de Lacan a
partir do nono seminário, sobre a identificação.
Desta forma, depois de ter abordado, nos seminários iniciais, o eu e sua
função imaginária com o auxílio da etologia e da óptica; tendo passado, em seguida, à
definição do desejo inconsciente e de sua estrutura simbólica amparado pela linguística e
pela antropologia estrutural; terá início um novo período, no qual o lugar e a função do
real no inconsciente e na direção do tratamento psicanalítico passarão ao centro da
investigação de Lacan, que contará com a matemática, em especial a lógica e a topologia,
como seu principal ponto de apoio.
Embora o impossível de ser simbolizado já tivesse lugar na teorização
lacaniana dos anos anteriores, a preocupação deste novo período será mostrar que o que
escapa à linguagem tem uma função lógica, que o que não pode ser simbolizado não deve
reduzido a um resto que ficaria simplesmente fora do alcance da linguagem, mas que esse
resto tem função de causa da própria estrutura que a linguagem empresta ao inconsciente.
3. Real
11
lugar como conceito central para a investigação dos problemas relativos ao real e sua
relação com a linguagem, intensamente trabalhados neste período.
No Seminário 10 (1962-63/2005), Lacan retomará o esquema óptico – no
qual a função do real já estava indicada pela necessidade do segundo espelho – para
acrescentar a ele o objeto a.
Mais que um conceito para abordar os problemas clínicos e teóricos
ligados ao real, o objeto a dará a Lacan condição para mostrar que a estrutura de
linguagem do inconsciente inclui o real como causa – ou seja, que o real enquanto limite
que se impõe à linguagem possui uma função naquilo que a própria linguagem estrutura.
Assim, depois de ter explorado o imaginário com o auxílio da óptica, e o
simbólico com o apoio da linguística estruturalista, ele encontrará na matemática os
recursos para abordar teoricamente esse limite da linguagem que define o real. Ela será
tão importante, que no seminário ...Ou pior (1971-72/2012, p.26) Lacan afirmará que
“não há ensino, senão matemático”.
Lacan observará que os mesmos impasses de formalização acerca do lugar
do impossível que se impunham à abordagem do real pela psicanálise são também objeto
de investigação matemática, e importará algumas das soluções de formalização
matemática para o campo psicanalítico, utilizando-as como recursos para a transmissão
de seu lugar na estrutura de linguagem do inconsciente [11].
Sua investigação deste período o levará a concluir que o real que interessa
à psicanálise “é absolutamente inabordável, a não ser por uma via matemática” (1971-
72/2011, p.64).
Só a matematização alcança um real e é nisso que ela é
compatível com nosso discurso, discurso analítico, um real que
precisamente se evade, que não tem nada a ver com o que o
conhecimento tradicional sustentou, ou seja, não o que ele crê, a
realidade (...) (1972-73/1985, p.258).
12
Quanto à topologia, é justamente enquanto ciência que se ocupa de uma
dimensão do espaço que “escapa ao nosso pensamento e que não nos permite, de nenhuma
maneira, dar-lhe representação satisfatória” (Lacan, 1961-62, p.375), que Lacan a tomará
como um valioso recurso para abordar a própria estrutura com a qual o psicanalista opera,
o inconsciente. Para Lacan, não se trata de tomar a topologia como modelo ou metáfora,
mas como reveladora da própria estrutura do inconsciente e da operação do psicanalista:
Essa topologia, que se inscreve na geometria projetiva e as
superfícies da analysis situs, não deve se conceituar, como
ocorre com os modelos ópticos em Freud, no nível da metáfora,
mas sim para representar a própria estrutura (1965-66/inédito,
lição de 25/05/66).
13
O complexo e inédito trabalho de investigação de Lacan não encontraria,
entretanto, somente a recepção interessada daqueles que o acompanhavam em seus
seminários. Lacan mobilizava também grandes polêmicas, não apenas pelo caráter difícil
e quase incompreensível de sua transmissão, mas também devido à maneira pouco
ortodoxa de condução dos tratamentos psicanalíticos. Em 1963, a resistência a seu
trabalho clínico e teórico terá um trágico desfecho, dividindo os psicanalistas da época.
Um dia antes da primeira lição do seminário daquele ano, que trataria dos Nomes-do-Pai,
Lacan é notificado que a condição imposta pela IPA à aprovação do pedido de filiação da
SFP, era que seu nome fosse retirado da lista dos analistas didatas da instituição. A
resposta de Lacan será a interrupção do seminário [13], a saída da SFP, o rompimento
definitivo com a IPA e a fundação de uma nova Escola, a Escola Freudiana de Paris
(EFP).
Prosseguirá, no início do ano seguinte, com seu projeto de transmissão,
passando a oferecer seu seminário na faculdade de filosofia. Tomará, entretanto, a decisão
de não retomar o tema do seminário interrompido, transformando-o, assim, na marca
constantemente lembrada de ter sido impedido de transmitir a psicanálise – lembrança,
aliás, frequentemente acompanhada da insinuação de que esse impedimento teria alguma
relação com o tema que iria tratar, os Nomes-do-Pai.
Escolherá como tema do seminário de 1964 “os fundamentos da
psicanálise” [14] deixando claro, uma vez mais, que não é em nome do novo, mas da
retomada necessária dos conceitos fundamentais que ele seguirá sustentando seu projeto
de transmissão da psicanálise. Dando prosseguimento ao trabalho de situar o real na
estrutura de linguagem do inconsciente iniciado no Seminário 9 voltará uma vez mais ao
tema da constituição do sujeito, mas desta vez contando com a matemática para destacar
o lugar do real e do objeto a nessa constituição. Mantendo-se fiel à concepção de que o
sujeito se constitui como efeito da inscrição do ser no campo da linguagem – cujas
vertentes imaginária e simbólica ele já havia tratado pelas teorias do espelho e do
complexo de Édipo – será a vez de dar ênfase, com a teoria da alienação, à função do real
na constituição do sujeito.
Utilizará as operações lógicas de conjunção e disjunção para lembrar o que
vinha mostrando desde o seminário sobre a identificação: que a alienação ao campo da
linguagem deixa um resto e que, portanto, a operação de alienação ao sentido, condição
inaugural do sujeito, articula-se logicamente à operação de separação, localizável na
14
função lógica desse resto. Tratará alienação e separação como operações lógicas,
tomando o objeto a como o conceito chave para indicar a função que as articula. A frase
“a bolsa ou a vida” servirá para mostrar a escolha forçada que define a alienação à
linguagem que constitui o sujeito, na qual uma perda é inerente à necessária escolha pela
vida. O objeto a será o conceito que marca o lugar dessa perda, delimitando a articulação
lógica entre o resto da operação de alienação e a função de causa, definida pela operação
de separação.
Assim, com a teoria da alienação do Seminário 11, Lacan não apenas
marcará a importância, o lugar e a função do real na constituição do sujeito, como
também, uma vez mais, tomará distância das concepções desenvolvimentistas sobre a
constituição do sujeito [15].
Mantendo o mesmo estilo de transmissão de suas teorias anteriores sobre
a constituição do sujeito – com sua proposta de um esquema para a transmissão da teoria
do espelho (o esquema óptico) e de uma fórmula para o complexo de Édipo (a metáfora
paterna) – dessa vez será com um diagrama que Lacan apresentará a teoria da alienação:
15
não existe” – como da relação entre os sexos – que ele indicará pelo aforisma “não há
relação sexual”, insistentemente repetido até o final de seu ensino.
O que estigmatiza essa relação, por ela ser profundamente
subvertida na linguagem é, precisamente, que não há meio –
como se fez, no entanto, porém numa dimensão que me parece
ser de miragem – de ela se escrever em termos de essência
masculina e essência feminina (1971-72/2012, p.98).
16
4. Real, simbólico e imaginário
17
No ano seguinte, no Seminário 21 (1973-74), seu interesse pela topologia
dos nós será ainda maior, e ele finalmente se ocupará dela ao longo de toda a extensão do
seminário. O mesmo acontecerá nos seminários seguintes e, assim, do vigésimo-primeiro
até o último seminário, a teoria dos nós passará ao centro da investigação teórica e clínica
de Lacan.
Ao longo de todo esse período, ele insistirá em afirmar que o nó não é um
modelo, lembrando a consistência imaginária dos modelos. Para ele, a consideração do
nó “é constituída por uma geometria que podemos chamar de interdita ao imaginário, pois
só é imaginada através de todos os tipos de resistências, e mesmo de dificuldades” (Lacan,
1975-76/2007, p.31).
Lacan chamará essa tendência ao imaginário de “debilidade mental de
nosso pensamento” e sustentará que a topologia dos nós pode conduzir o psicanalista a
um pensamento que não encontre apoio no imaginário e em suas armadilhas. “Pensar no
nó, coisa que acontece mais comumente com os olhos fechados, podem tentar, é muito
difícil. Não nos encontramos” (1975-76/2007, p.28). Para Lacan, os nós resistem ao
imaginário, inclusive a propriedade borromeana: “que os nós se imaginem mal, vou
imediatamente lhes dar a prova. (...) Bem, é mesmo assim, uma coisa que não vai por si,
que não se imagina imediatamente. (...) Não é evidente que seja suficiente que vocês
desamarrem uma dessas hastes para que as outras duas fiquem livres” (1973-74/inédito,
12/03/74). Sem o apoio no imaginário, o nó exige, portanto, trabalho. “O desejo de
conhecer encontra obstáculos. Para encarnar esse obstáculo, inventei o nó. Com o nó, é
preciso dar duro” (1975-76/2007, p.37).
E Lacan trabalhará realmente duro, mostrando equivalências entre nós e
tranças, fazendo nós com tetraedros, bandas de Moebius e, finalmente, toros. Cortará os
nós, proporá reviramentos, envelopamentos, enganches, enodamentos e desenodamentos,
dará nomes aos pontos de enganche e aos espaços vazios dos nós. E articulará todo este
trabalho a conceitos psicanalíticos, sugerindo que o nó é o “suporte concebível de uma
relação entre o que quer que seja e o que quer que seja” (1975-76/2007, p.37). Dentre
essas articulações, ganhou destaque a que figura no texto “A terceira” (1974/2002):
18
Serão sete anos de intensa pesquisa, cujo marco inicial é o Seminário 21,
ao qual dará o enigmático título Les non-dupes errent indicando, pela homofonia com
Les noms du père [17], a retomada, com uma “pequena mostra de seu estilo”, ao tema ao
qual havia prometido jamais retornar na ocasião da ruptura de 1963: os Nomes-do-Pai
[18]. É recolocando em pauta, sutil e indiretamente, o polêmico e mal interpretado tema
dos Nomes-do-Pai que Lacan dará o primeiro grande passo para enveredar
definitivamente na exploração da teoria dos nós.
Definirá, neste último período de seu ensino, a existência humana como
condicionada pelo enodamento entre real, simbólico e imaginário [19] e a loucura como
um efeito de desatamento do nó. A constituição do sujeito, já abordada nas vertentes
imaginária (estádio do espelho), simbólica (complexo de Édipo) e real (teoria da
alienação), será finalmente articulada aos três ao mesmo tempo, em sua definição do
sujeito como efeito do enodamento:
(...) Parto da tese de que o sujeito é o que é determinado pela
figura em questão [o nó borromeano], determinado, de forma
alguma como sendo-lhe o duplo, mas que é pelos
enganchamentos [coincements] do nó, disso que no nó
determina os pontos triplos, pelo fato do aperto [serrage] do nó,
que o sujeito se condiciona (Lacan, 1974-75/inédito, 18/03/75).
Seu interesse pelo nó será sobretudo clínico, orientado tanto pela pergunta
sobre o que faz com que um nó desate e produza a loucura, como também, inversamente,
sobre o que mantém os aros do nó juntos, impedindo o enlouquecimento.
Ainda no Seminário 21, distinguirá a loucura, na qual “uma das dimensões
se parte por uma razão qualquer” (Lacan, 1973-74/inédito, 11/12/73), do que se passa na
neurose, definindo-a como uma forma de enodamento em que o corte de um dos aros não
resultaria no desatamento do nó: “os dois outros nós se mantém juntos, e é isso que quer
dizer que vocês são neuróticos” (idem).
Antecipando um tema que explorará no Seminário 23, tomará o sintoma
de Hans como um caso de enodamento que define a neurose: “é na medida em que a
19
fobia, a fobia do pequeno Hans, está muito precisamente neste nó triplo no qual as três
argolas se sustentam juntas. É nisso que ele é neurótico. É que, cortem um, e os outros
dois se sustentam sempre” (Lacan, 1973-74/inédito, 11/12/73). O passo seguinte será
passar de uma hipótese inicial não borromeana [20] para o nó borromeano da neurose,
que exigirá, a partir do Seminário 22 (1974-75/inédito) o trabalho com o nó de quatro.
Uma nova premissa dará sustentação ao trabalho com o nó de quatro a
partir deste seminário: tomar como ponto de partida real, simbólico e imaginário como
não enodados. Sua pergunta passará a ser, então: “o que pode unir [unir]esses três,
imaginário, simbólico e real, desunidos [desunis]”? (1974-75/inédito, 11/02/75). É assim
que o quarto aro passará ao centro da investigação clínica de Lacan, a chave para explorar
clínica e teoricamente a função de enodamento.
Fiel a sua referência a Freud, Lacan afirmará que a necessidade de um
quarto aro que enodasse simbólico, imaginário e real, já estava em Freud.
O que fez Freud? Vou contar. Fez o nó com quatro a partir de
seus três, esses três que lhe suponho armadilha [“deixando essa
armadilha, enfim, já manjada do real, do simbólico e do
imaginário, tentemos ver como efetivamente ele se virou”]. Mas
então, eis como procedeu: inventou algo a que chamou realidade
psíquica. (...) É preciso uma realidade psíquica que ate essas três
consistências. (...) Foram necessários em Freud não três, o
mínimo, mas quatro consistências para que isso se sustentasse,
a supô-lo iniciado na consistência do imaginário, do simbólico e
do real (1974-75/inédito, 14/01/74).
20
Assim é que, finalmente, articulará o Édipo e o Nome-do-Pai ao sintoma:
O complexo de Édipo é, como tal, um sintoma. É na medida em
que o Nome-do-Pai é também o Pai do Nome, que tudo se
sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário (1975-
76/2007, p.23).
21
O que se observa portanto nesses últimos seminários, é mais um esforço
de Lacan para encontrar formas de transmissão da descoberta freudiana do inconsciente
que, ao mesmo tempo, permitem a retomada dos conceitos que sempre estiveram na base
de seu ensino, mas também exigem a utilização de novos recursos, muitos deles quase
inexplorados pelo próprio Lacan. Em um de seus últimos seminários, Lacan afirmará:
Uma coisa é certa, foi que eu tive imediatamente a certeza [ao
se deparar com o nó borromeano, no Seminário 19, pelas
anotações do seminário de Guilbaud] de ser aquilo algo
precioso, precioso para mim, para o que tinha a explicar.
Imediatamente relacionei esse nó borromeano com o que, desde
então, se mostrava a mim como rodelas de barbante, algo
provido de uma consistência particular, que faltava ainda ser
sustentada, mas que era para mim reconhecível no que eu
enunciara, desde o início do meu ensino (Lacan, 1974-
75/inédito, 18/03/75).
Assim, o trabalho com seus três não desconsiderará o caminho traçado até
chegar aos nós. Ao contrário, Lacan seguirá, até o fim, retomando aspectos centrais do
simbólico, do real e do imaginário que estiveram em pauta em cada período anterior.
Sua definição, ao final, do real do lado da ex-sistência; do simbólico, como
buraco ou furo [trou]; e do imaginário, pela consistência não poderia ser senão o resultado
da familiaridade com o caminho longamente traçado, mais uma evidência de que não
ignorava seus próprios passos anteriores.
O caráter fundamental dessa utilização do nó é ilustrar a
triplicidade que resulta de uma consistência que só é afetada pelo
imaginário, de um furo como fundamental proveniente do
simbólico, e de uma ex-sistência que, por sua vez, pertence ao
real e é, inclusive, sua característica fundamental (1975-
76/2007, p.36).
22
[22]. E finalmente, do lado do imaginário, retomará uma vez mais o tema da identificação,
relacionando a suposição de um “interior” ao reviramento do toro: “que relação que há
entre isto, que é preciso admitir, que nós temos um interior, que chamamos como
podemos, psiquismo, por exemplo (...) que relação há entre este interior e o que
chamamos correntemente a identificação?” (1976-77/inédito, 16/11/76). Retomará temas
como as três formas de identificação em Freud (histérica, ao pai e ao traço unário) e a
concepção de Balint sobre a identificação ao psicanalista no final da análise, opondo-a à
identificação ao sintoma (idem) e ao “saber fazer com seu sintoma” (idem).
Trabalhando com a teoria dos nós reconhecerá, muitas vezes, seus próprios
limites e dificuldades. No Seminário 23 (1975-76/2007, p.88) admitirá: “parece-me difícil
alguém se interessar pelo que se torna uma busca [recherche]. Quero dizer que começo a
fazer o que a palavra busca implica, ou seja, a girar em círculos”.
Cada vez mais incomodado com os obstáculos e dificuldades – contará
com o auxílio de matemáticos como Vapperreau e Soury, presentes em seus seminários
nesta época – não deixará, entretanto, de lado, sua exigência de rigor. No seminário sobre
Topologia e tempo (1978-79/inédito, 20/02/79), respondendo a uma pergunta sobre o
possível uso metafórico do nó pelos psicanalistas, Lacan afirmará: “o que me inquieta no
nó borromeano é uma questão matemática e é matematicamente que entendo tratá-la”
[23].
Em um de seus últimos seminários, o vigésimo-quinto, Momento de
concluir (1977-78/inédito, 14/03/78), lembrará que se trata de uma pesquisa, de uma
busca, e não de uma teoria acabada:
François Wahl emitiu a meu respeito a imputação de que eu
conseguia fazer meu auditório pesquisar. É bem aí que eu devia
chegar. Enunciei outrora que "eu não procuro, eu acho". Foram
palavras emprestadas a alguém que tinha em seu tempo
notoriedade, ou seja, o pintor Picasso. Atualmente eu não acho,
eu procuro e algumas pessoas querem voluntariamente me
acompanhar nessa pesquisa.
23
Conclusão
Não é por ter rompido com os temas do imaginário que Lacan passa a tratar
do simbólico (o que se observa pela retomada constante da teoria do espelho em seus
seminários, inclusive na década de 1970), assim como não é por ter descartado a
importância do simbólico que ele passa a se interessar pelo real (como mostra sua
insistência na função do significante e de sua estrutura também até os últimos seminários).
Quando finalmente encontra uma teoria capaz de reunir real, simbólico e imaginário,
24
Lacan lembrará frequentemente que não há hierarquia entre eles, que os três são
equivalentes.
Eu parto de uma outra maneira de considerar o espaço; e, ao
qualificar essas três dimensões [dimensions], distinguindo-as
com os termos [termes] mesmos que eu garanti até aqui
justamente diferenciar pelos termos de simbólico, de imaginário
e de real, o que eu estou avançando é que se pode fazê-los
estritamente equivalentes (Lacan, 1973-74/inédito, 13/11/73).
25
Considerar o contexto, entender o conjunto, situar cada seminário a partir
do que o antecede e do que o precede, observando o fio que une uma ponta à outra sua
investigação teórica e clínica é, portanto, seguir a indicação do próprio Lacan também
quando se trata da leitura de sua obra.
De certa forma, um conjunto que revelará uma insistência no mesmo, do
início ao fim. “O que há de bom no que eu digo, é que é sempre a mesma coisa. Isso não
quer dizer, é claro, que eu me repita, não é essa a questão” (1972-73/1985, p.102). Ainda
que o novo tenha marcado presença constante na forma criativa e autêntica de sua
transmissão, Lacan nunca propôs um novo sujeito ou uma nova clínica psicanalítica – em
todo o seu percurso, a única invenção que ele admitiu como sua foi o objeto a (1968-
69/2006). Ao contrário, foi sempre em nome da retomada dos conceitos fundamentais
que Lacan sustentou seus seminários, qualificando, até o fim, como freudiana a
descoberta do inconsciente e remetendo a Freud e ao campo aberto por ele suas próprias
descobertas.
Freud não tinha ideia do simbólico, do imaginário e do real mas
tinha, todavia, uma desconfiança, fato é que pude extrair isso
para vocês, com tempo, sem dúvida, e com paciência, que eu
tenha começado pelo imaginário e, em seguida, precisado um
bocado mastigar essa história de simbólico com toda essa
referência linguística sobre a qual efetivamente não encontrei
tudo aquilo que me teria facilitado. E depois, esse famoso real,
que acabei por lhes apresentar sob a forma mesma do nó” (1974-
75/inédito, 14/01/75).
26
seminário afirmando: “eu recomeço, embora tenha acreditado poder concluir” (1973-
74/inédito, 13/11/73).
Tendo tomado para si a tarefa de dissolver o mal-entendido que imperava
na compreensão da psicanálise pelos próprios psicanalistas, Lacan terá que admitir, ao
final, que sequer sua própria transmissão poderia pretender-se imune ao mal-entendido.
Seu seminário tornava-se, assim, perpetuamente necessário:
Esse seminário, eu o tenho menos do que ele me tem. É por
hábito que ele me tem? Certamente não, é pelo mal-entendido.
E não está pronto para acabar, precisamente porque não me
habituo com esse mal-entendido. Sou um traumatizado pelo
mal-entendido. Como não me acostumo a ele, eu me esforço
para dissolvê-lo. E, de súbito, eu o alimento. Isso é o que se
chama o seminário perpétuo (1979-80/inédito,10/06/80) [25].
Assim, ao mesmo tempo em que sustentava, com a teoria dos nós, sua
última aposta de transmissão, ele também se mostrava cada vez mais incrédulo quanto
aos efeitos de seu próprio ensino sobre aqueles que o acompanhavam. Em seu último
seminário, decidirá dissolver sua própria Escola.
27
E aproveitará tomando, do trabalho com os nós, a solução que, em ato,
dará ao problema de sua Escola: “esse problema se demonstra como tendo uma solução:
é a di-solução” (idem) [26]. Solução borromeana, completamente afinada com sua
investigação dos últimos anos: “basta que um vá embora para que todos fiquem livres, é
no meu nó borromeano, verdade de cada um, e em minha Escola é necessário que seja
eu” (idem) [27].
Justificando seu ato – “decido-me porque se não me intrometesse ela
funcionaria na contramão daquilo para o qual a fundei” (idem) – retomará as razões da
fundação de sua Escola:
Ou seja, por um trabalho – já o disse – que, no campo aberto por
Freud, restaura a lâmina cortante de sua verdade – que traz a
práxis original que ele restituiu sob o nome de psicanálise para
o dever que retorna a ele em nosso mundo – que, por meio de
uma crítica assídua, denuncie os desvios e os compromissos que
amortecem seu progresso, degradando sua utilização (idem).
28
desviantes tomados pelos próprios psicanalistas, resta-lhe a posição de indicar “o que
seria preciso para colocar o analista no passo de sua função ” (1980) [28].
Só dará título ao Seminário 27 em sua oitava lição: “alguém me chamou a
atenção pelo fato de que o seminário deste ano não tinha título. É verdade. Vocês já verão
porquê. O título é: Dissolução” (1979-80/inédito, 10/06/80). Nesta lição, que se revelará
ter sido a última, se despedirá lembrando o convite que aceitara para ir à Venezuela:
“esses latino-americanos, como se diz, que jamais me viram, ao contrário dos que estão
aqui, e nem me escutaram ao vivo, bem, isso não os impede de ser lacanianos” (idem).
Afirmará que seu interesse é saber o que se transmite de seus matemas quando sua própria
pessoa não se faz de obstáculo ao que ensina. “Interessa-me ver o que acontece quando
minha pessoa não opacifica o que ensino. É bem possível que se faça proveito de meu
matema” (idem).
*
29
permite a esses três termos consistir (Lacan, 1976-77/inédito,
16/11/76).
A teoria dos nós foi, assim, o último legado de Lacan aos psicanalistas,
ponto de convergência de um sólido caminho percorrido nos anos anteriores, que tem
início antes mesmo de seu primeiro seminário, no texto de 1953, “O simbólico, o
imaginário e o real”, e termina na conferência de Caracas, em 1980, depois de seu
vigésimo-sétimo seminário, com a afirmação: “Os meus três são o simbólico, o real e o
imaginário (...). Eu dei isso aos meus. Dei-os para que se orientem na prática”. É o que
Laca nos deixa. A indicação de um caminho, uma via por onde tomar a verdade, aquela
que ele pôde extrair do campo aberto por Freud.
Notas:
[2] A busca de recursos em outros campos da ciência será uma das marcas do ensino de
Lacan. Para abordar os problemas relativos ao imaginário, recorrerá especialmente à
óptica e à etologia. Para definir o simbólico, contará com o estruturalismo francês,
particularmente a linguística de Saussure e a antropologia de Lévi-Strauss. E, finalmente,
antes mesmo que a matemática lhe trouxesse a teoria dos nós para abordar a articulação
entre real, simbólico e imaginário, a lógica e a topologia serão os recursos para
fundamentar uma complexa reflexão sobre as questões que envolvem o real.
[3] Sobre a função do imaginário na clínica psicanalítica das psicoses, ver: FARIA, M.R.
“Imaginário, eu e psicose nos primeiros seminários de Lacan”. In: Revista Estilos da
clínica, vol.16, número 01, 1o semestre de 2011, p.132-151. ISSN 1415-7128. Ver
também: FARIA, M. R. “Delírio, linguagem e psicose: contribuições dos primeiros
seminários de Lacan ao tratamento possível das psicoses”. In: Revista Acheronta, n.27,
maio 2012.
[4] Vale lembrar que esse artigo, de grande importância para situar a teoria e a clínica das
psicoses, não apenas reúne as reflexões desenvolvidas ao longo de todo o Seminário 3:
As psicoses (1955-56/1988), como também as articula à teoria da metáfora paterna,
posterior ao seminário sobre as psicoses, elaborada ao longo do quarto e quinto
30
seminários. É dessa articulação que surge a proposta de pensar a estabilização da psicose
do lado da construção de uma metáfora delirante, por exemplo.
[5] Neste texto fundamental, escolhido pelo próprio Lacan em 1966 para abrir a
publicação de seus Escritos, ele tomará como “programa” a investigação da relação entre
sujeito e linguagem: “o programa que se traça para nós, portanto, é saber como uma
linguagem formal determina o sujeito” (1955/1995, p.47).
[6] No Curso de Linguística geral, publicado pelos alunos de Saussure a partir de suas
aulas, consta o seguinte esquema do signo linguístico:
A relação entre significante e significado, que será o foco do interesse de Lacan pela
teoria saussureana, é definida da seguinte forma por Saussure: “propomo-nos a conservar
o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica,
respectivamente, por significado e significante. Estes dois termos têm a vantagem de
assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte”
(1916/2006, p.81).
[7] Sobre o Édipo e a fórmula da metáfora paterna na teoria lacaniana, ver: FARIA, M.R.
Constituição do sujeito e estrutura familiar: o complexo de Édipo, de Freud a Lacan.
Cabral, SP, 4a ed., 2014. Ver também: FARIA, M.R. “Constituição do sujeito e complexo
de Édipo”. In: Stylus. Revista de psicanálise. N.12, abril/2006, p.81-94. E ainda: FARIA,
M.R. “Complexo de Édipo, narcisismo e angústia: o simbólico, o imaginário e o real no
tratamento psicanalítico do pequeno Hans”. In: Revista eletrônica Fort-da. www.fort-
da.org. n.10, novembro/2008. ISSN 1668.3900. Edição especial de 100 anos do
tratamento do pequeno Hans.
[8] Lembremos que o próprio Lacan, no texto “Talvez em Vincennes”, de 1975, vai
propor, uma vez mais, que a linguística é uma das ciências que se deve estudar para ser
psicanalista – ao lado da lógica, da topologia e da anti-filosofia (1975/2003, p.316-318).
[9] Este limite da linguística para abordar os problemas do real aparecerá de forma
bastante evidente ao final do oitavo seminário, sobre a transferência (1960-61/1992), no
qual Lacan se vê às voltas com duas possibilidades distintas de leitura do matema S(Ⱥ).
Por um lado, ele lê S(Ⱥ) como o “significante da falta do Outro”, falta simbólica
articulada ao falo, F, significação que define a posição do sujeito em sua articulação ao
desejo. Trata-se da leitura que o próprio Lacan propõe para S(Ⱥ) desde o grafo do desejo,
no quinto e sexto seminários, onde este matema figura como elemento central ligado à
pergunta sobre o desejo, Che vuoi?. Entretanto, ele também lê o mesmo S(Ⱥ) como a
“falta do significante no Outro”, ou seja, como o limite que o Outro tem para significar.
As duas leituras aparecem na mesma lição de 19/04/61: S(Ⱥ) como o “significante da
falta” (leitura que o articula ao falo em sua função simbólica e à linguística), mas também
como a “falta de significante” (indicação do lugar do real como limite da significação, o
que será abordado pela matemática). Longe de sugerir a superação de uma leitura por
outra, essa “dupla leitura” do matema pode ser tomada como um indício importante da
necessidade do encaminhamento de Lacan em direção à matemática para abordar o limite
31
da linguagem, mas sem desconsiderar, entretanto, o lugar e a função do simbólico
enquanto forma de tratamento desse limite. Sobre esse duplo viés na leitura do matema
S(Ⱥ) ver: FARIA, M.R. Do significante da falta à falta de significante. A dimensão da
causa no fundamento do desejo e do objeto na passagem do Seminário 8 ao Seminário 9.
In: Revista Stylus, SP, n.31, 2015.
[10] É importante lembrar que, a rigor, o objeto a já figurava no ensino de Lacan muito
antes do Seminário 9 (1961-62/inédito). A fórmula do fantasma já era escrita $<>a desde
os anos 1950 e conceitos ligados ao imaginário como o eu, o outro e o ideal de eu já eram
notados a, a’ e i(a) desde os primeiros seminários. Entretanto, é no seminário sobre a
identificação que o objeto a passa a ser definido como objeto causa do desejo, finalmente
articulado ao real. Até este seminário, sua definição como objeto do desejo não permitia
distingui-lo do falo, distinção importante e esclarecedora, fundamental para os próximos
passos da teorização lacaniana sobre o real em sua relação com o simbólico.
[11] A longa lista de referências de Lacan à matemática, com seus inesgotáveis recursos
para a abordagem dos conceitos que se articulam ao real e sua função na clínica e na
teoria psicanalítica, incluirá autores como Frege, Russel, Cantor e Gödel, entre tantos
outros, e teorias matemáticas como o grupo de Klein, a lei de Morgan, a razão áurea, a
série de Fibonacci, entre outras.
[14] O seminário foi publicado oficialmente como Seminário 11: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (1964) mas é, evidentemente, seu décimo-segundo
seminário – conforme sugere a mudança de tema e sua insistência em lembrar, nos anos
que se seguiram, o seminário interrompido sobre os Nomes-do-Pai.
[15] Para Lacan, alienação e separação são duas operações logicamente articuladas e não
uma evolução, no sentido temporal, que teria como ponto de partida uma suposta
alienação primeira e total, em direção à libertação final do sujeito pela separação, como
alguns teóricos preconizam – evidência de que o esforço de transmissão de Lacan não
garante imunidade contra as leituras que insistem em relacionar a constituição do sujeito
à cronologia. Mesmo a insistência de Lacan em mostrar que o sujeito é efeito de uma
operação lógica, não foi suficiente para manter a cronologia em seu devido lugar, como
referência imaginária que dá suporte às teorias do desenvolvimento – o que não cabe nem
para a teoria do estádio do espelho, nem para o complexo de Édipo e muito menos a teoria
da alienação do Seminário 11.
32
[16] Lacan trabalhará com a frase “eu te peço que recuses o que ofereço” chamando-a,
ironicamente, de “carta de a-muro [d’a-mur], destacando seus três verbos, “pedir”,
“recusar” e “oferecer”, tratando-os logicamente, como funções, e colocando-os em um
esquema espacial, uma tétrade, para tentar mostrar como decorre dessa articulação um
impossível, “a impossibilidade que há no oferecer (Lacan, 1971-72/2012, p.87). E isso,
para chegar ao objeto a, que dá o complemento da frase: “porque não é isso”. Para Lacan,
o objeto a é o efeito do “nó” de sentido que articula esses três verbos: “(...) é de um nó de
sentido que surge o objeto, o objeto em si e, para dizer seu nome, já que o denominei
como pude, o objeto pequeno a” (Lacan, 1971-72/2012, p.85) O nó de sentido depende
da articulação dos três verbos: “é da natureza da oferta que, se for retirado o pedido,
recusar já não significará nada” (idem, p.88). Sua conclusão é: “é justamente por isso que
a questão que se coloca para nós não é saber o que vem a ser o não é isso que estaria em
jogo em cada um desses níveis verbais, mas nos darmos conta de que é ao desatar cada
um desses verbos de seu nó com os outros dois que podemos descobrir o que vem a ser
esse efeito de sentido como o que chamo de objeto a” (ibidem). É essa a articulação entre
o nó e o tema de sua lição no Seminário 19. No Seminário 20 lembrará o surgimento do
nó no seminário anterior: “e por que fiz intervir, no ano passado, o nó borromeano? Foi
muito precisamente para traduzir a fórmula: ‘eu te peço’ – o quê? – ‘que me recuses’ – o
quê? – ‘o que te ofereço’ – ou seja, algo em relação àquilo de que se trata, e vocês sabem
o que é, ou seja, o objeto a” (Lacan, 1971-72, p.250). Propõe que o objeto a, o “não é
isso”, funciona como causa, e vai articular aí desejo, demanda e gozo – o gozo que “seria
satisfatório”, a “satisfação suposta”, “aquela onde se inscreveria uma relação que seria
plena”, que ele havia, nesse seminário e no anterior, abordado pelo termo “Um” em sua
função de miragem que sustenta a relação amorosa: “’nós somos apenas um’, é daí que
vem essa ideia do amor, é realmente a maneira mais grosseira de dar a esse termo, a esse
termo que se esquiva, manifestamente, da relação sexual, seu significado” (idem, p.118).
“E fica bem claro que esse Um, que enche a boca de todo mundo é, de início e,
essencialmente, na natureza dessa miragem do Um que se acredita ser” (idem).
[17] Lacan usará o recurso do jogo homofônico de palavras para dar título a quase todos
os seminários deste período, desde Encore (homofônico a en corps, no corpo), que dava
título ao seminário no ano anterior, passando por Les non-dupes errent (que joga com a
homofonia entre “os não tolos erram” e “os Nomes-do-Pai”), RSI (que é seus três, R, S e
I, mas em francês é também homofônico a hérésie, heresia), Le sinthome (ao mesmo
tempo “o sintoma” e le saint homme, o santo homem) e, finalmente, o intraduzível título
do vigésimo-quarto seminário, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, com
homofonias que remetem ao saber, ao equívoco, ao inconsciente, [Unbewusst] ao amor e
suas asas e, finalmente, ao amor como um jogo, o jogo da morra.
33
portanto, de um abandono do complexo de Édipo e do Nome-do-Pai como referências
clínicas e teóricas, mas de um novo esforço para dissipar os equívocos acumulados na
interpretação destes conceitos não apenas depois de Freud, mas também em seu próprio
ensino. A teoria dos nós e a função de enodamento do Nome-do-Pai será, nos últimos
seminários de Lacan, mais um recurso para tentar superar os mesmos equívocos, depois
de tentar esclarecê-los primeiro pela fórmula da metáfora paterna e, depois, pela lógica.
No Seminário 22 (1974-75/inédito, 14/01/75), Lacan afirmará: “(...) do que Freud
enunciou, não é o complexo de Édipo que se deve rejeitar”.
[20] É importante notar que na hipótese inicial da neurose do Seminário 21 está ausente
a propriedade borromeana, que exige que ao cortar-se um dos aros, os outros fiquem
soltos. Daí a neurose de Hans ser articulada ao nó olímpico no Seminário 21, ainda que
ali Lacan já antecipasse o lugar do sintoma como essencial para situar o nó da fobia,
situando o sintoma como “representante” dos três “circuitos” [circuits]: “Eu não sei se
alguns entre vocês se lembram, eu fiz alguma coisa, há algum tempo, sobre a fobia do
pequeno Hans. É muito curioso. Eu nunca vi ninguém ressaltar esse signo (...). Eu me
perguntava, como todo mundo: porque o cavalo, não é? (...) A explicação que eu encontrei
– porque eu a tenho e eu a dei, eu a trabalhei, eu insisti, é que o cavalo era o representante,
posso mesmo dizer, dos três circuitos” (Lacan, 1973-74/inédito, 11/12/73).
[21] Da mesma forma que Freud não foi analista de Schreber, Lacan não foi analista de
Joyce. Lacan o lembrará em seus comentários, marcando que sua leitura de Joyce parte
daquilo que se pode apreender da biografia e da sua obra, com os limites próprios a toda
leitura: “ao ler Joyce, como saber em que ele acreditava? O que há de terrível, com efeito,
é que fico reduzido a lê-lo, posto que não o analisei. Lamento por isso” (1975-76/2007,
p.77).
[22] Dessa articulação entre o não há relação sexual e a teoria dos nós, resultarão também
algumas indicações importantes sobre a psicose. Sobre Joyce, Lacan indagará: “Que é,
portanto, essa relação de Joyce com Nora [sua esposa]? Direi, coisa singular, que é uma
relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual” (1975-76/2007, p.81). E
sobre Schreber, afirmará que ele é um exemplo claro daquilo “que dá a medida da própria
verdade, a saber, o que demonstra, afinal, a paranoia do presidente Schreber, é que só há
relação sexual com Deus” (1974-75, 08/04/75).
34
“Coloco a questão, depois do que você adiantou, não faz muito tempo, há quase dois
seminários, que talvez a metáfora do nó borromeano, quer dizer os três, não convém para
abordar RSI. Então, não sei o que ocorrerá com nossos camaradas a esse respeito, isso
me caiu mal, me pareceu extremamente importante, penso inclusive que se poderia dizer
que há quem não possa dormir mais, o que não seria tão mal, talvez”. E ela questiona: “A
pergunta que queria colocar é essa: é simplesmente um problema de matemática?”. E
conclui: “a questão que coloco a Lacan é: estamos neste momento, todos nós, enredados
com os nós que estão ali adiante, com dificuldades propriamente matemáticas?”.
[25] É o que ocorre em seu último seminário, ao mencionar as mulheres e sua relação
com o gozo fálico: “É preciso que eu termine com o mal-entendido, as mulheres de que
disse, no meu último seminário, não estarem privadas do gozo fálico. Imputaram-me
pensar que são homens” (1979-80/inédito, 11/03/80). A volta, sempre, do mal-entendido
– e então, sua necessidade perpétua de retomar.
[26] Em francês, trata-se do jogo de palavras entre dissolution, dissolução, e “je dis:
solution”, “eu digo: solução”. Em sua alocução de 15/03/80 ele chamará essa “dis-
solution” de “uma interpretação eficaz”, e sua carta de dissolução, de “carta de amor”.
[27] Na lição de 18/03/80, ele lembra que existem “aqueles aos quais a dissolução lhes
dá pânico”. Na lição seguinte, em 15/04/80, ele contará ter recebido uma carta de
Françoise Dolto, sobre a qual faz comentários bastante irônicos: “É uma cartinha ‘para
dissipar o mal-entendido’. Ela me ama tanto, diz-me em resumo, que não pode suportar
que a Escola seja dissolvida. E por que, não adivinham? Porque a Escola sou eu. É seu
axioma. De modo que, forçosamente, dissolver a Escola seria anular a mim mesmo. E
isso é o que ela não quer. Há um detalhe, é que sou eu quem dissolve a Escola. Isso não
a detém, não há nada que a detenha. Ela imagina que eu me auto-destruo. É por isso que,
de acordo com seu princípio filantrópico, vem em meu socorro. Estão vendo como tudo
isso se sustenta. É lógico. Vê-se que não sacrifica nada à verossimilhança”.
[28] Passo cuja ambiguidade a língua francesa acolhe tão bem, indicando o duplo sentido
do pas: ao mesmo tempo indicação do caminho a trilhar, o pas que se traduz por “passo”,
mas também a advertência do risco sempre presente do desvio, em que o pas é também o
“não”.
35
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