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UNIVERSIDADE

Núcleo de Educação a Distância

Sociedade e
Cultura

NÚCLEO COMUM 1
UNIVERSIDADE
Núcleo de Educação a Distância

Créditos e Copyright

TOJI, Simone.

Teoria Antropológica Contemporânea.  Simone Toji.


Santos: Núcleo de Educação a Distância da UNIMES,
2015. 96p. (Material didático. Curso de ciências
sociais).

Modo de acesso: www.unimes.br

1. Ensino a distância.  2. Ciências Sociais.   3.


Antropologia

CDD 657

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UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS, COMERCIAIS,


CONTÁBEIS E ECONÔMICA

PLANO DE ENSINO

CURSO: Bacharelados em Administração e Ciências Contábeis


COMPONENTE CURRICULAR: Sociedade e Cultura
SEMESTRE: 3º
CARGA HORÁRIA TOTAL: 80 horas

EMENTA
Os conceitos de sociedade e cultura segundo a sociologia e antropologia.
Diversidade cultural e direitos humanos. Diversidade religiosa, gênero, raça e etnia
na sociedade contemporânea. Questões culturais, identidade cultural e conflitos na
sociedade contemporânea.

OBJETIVO GERAL
Apresentar e discutir as principais correntes e autores antropológicos
contemporâneos.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

UNIDADE I
Apresentar alguns conceitos fundamentais que auxiliam a compreensão da
sociabilidade humana. Discutir e relacionar temas sobre a especificidade humana

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que envolvem as ciências naturais e as ciências humanas. Abordar o surgimento da


antropologia como campo do conhecimento das ciências humanas e apresentar
suas principais áreas.
UNIDADE II
Apresentar alguns dos principais autores da antropologia clássica e as discussões
que inauguram a escola sociológica e a antropologia francesas e as três correntes
principais da antropologia: estrutural funcionalismo, estruturalismo francês e
culturalismo. Delimitar as bases teóricas da abordagem antropológica de alguns dos
principais temas discutidos pela antropologia.
UNIDADE III
Apresentar os traços fundamentais da formação social brasileira. Relacionar a
formação étnica do Brasil com os aspectos históricos que explicam a cultura e o
povo brasileiro. Apresentar os primeiros esforços do pensamento antropológico no
Brasil. Discutir as características histórico-sociais que determinam a formação
brasileira.
UNIDADE IV
Discutir temas históricos e atuais que marcam a formação brasileira e seus desafios.
Apresentar as raízes do racismo no Brasil e a trajetória dos movimentos negros ao
longo do século XX. Abordar os fundamentos do desenvolvimento capitalista no
Brasil e o problema das desigualdades sociais. Refletir sobre o tema dos direitos
humanos e os dilemas sociais e culturais do Brasil atual.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
UNIDADE I
Natureza, cultura e poder
Parentesco, mito e ritual
Etnocentrismo e relativismo cultural
Antropologia como ciência
Antropologia urbana
Antropologia econômica e política
Antropologia de gênero
Antropologia biológica e da família

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UNIDADE II
Durkheim e Mauss: a ordem e o fato social
Estrutural-funcionalismo inglês e a antropologia social
Bronislav MalInowski
Radcliffe-Brown e Pritchard: as organizações políticas africanas
O estruturalismo francês
Lévi-Strauss e a antropologia do pensamento humano
Os norte-americanos e a antropologia cultural
Antropologia cultural: Franz Boas e Ruth Benedict
UNIDADE III
Diversidade cultural: discussões sobre uma nação miscigenada
Os ensaístas
A institucionalização do pensamento antropológico no Brasil
Alienação e cultura
Florestan Fernandes: da antropologia dos povos indígenas ao estudo das classes
Roberto da Matta: carnavais, malandros e heróis
A tradição dos estudos de antropologia rural no Brasil
Estudos contemporâneos sobre etnologia
UNIDADE IV
Formação étnica e histórica do Brasil
O sentido da colonização
As teorias raciais do século XIX e a questão racial
Origens do racismo brasileiro
O sentido dos movimentos populares e o exemplo dos movimentos negros no Brasil
A trajetória dos movimentos negros no Brasil (1º e 2º períodos)
A trajetória dos  movimentos  negros  no Brasil (3º período)
Uma reflexão sobre os direitos humanos

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem: filosofia da cultura. São


Paulo: Contexto, 2008

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BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2010.
DA MATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução a antropologia social. Rio de
Janeiro: Rocco, 2010

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:
DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São
Paulo: Contexto, 2007
GOMES, Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil: passado, presente e futuro. São
Paulo: Contexto, 2012
CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer Rio
de Janeiro: Jorge Zahar editores, 2005.
WHYTE, William Foote. Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área
urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2005.

EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Os Nuer: uma descrição do modo de


subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo:
Perspectiva, 2007

METODOLOGIA:
A disciplina está dividida em unidades temáticas que serão desenvolvidas por meio
de recursos didáticos, como: material em formato de texto, vídeo aulas, fóruns e
atividades individuais. O trabalho educativo se dará por sugestão de leitura de
textos, indicação de pensadores, de sites, de atividades diversificadas, reflexivas,
envolvendo o universo da relação dos estudantes, do professor e do processo
ensino/aprendizagem.

AVALIAÇÃO:
A avaliação dos alunos é contínua, considerando-se o conteúdo desenvolvido e
apoiado nos trabalhos e exercícios práticos propostos ao longo do curso, como
forma de reflexão e aquisição de conhecimento dos conceitos trabalhados tanto na
parte teórica como na prática e habilidades. Prevê ainda a realização de atividades
em momentos específicos como fóruns, chats, tarefas, avaliações a distância e
Prova Presencial, de acordo com a Portaria de Avaliação vigente. A Avaliação

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Presencial, está prevista para ser realizada nos polos de apoio presencial, no
entanto, poderá ser realizada em home seguindo as orientações das autoridades da
área da saúde e da educação e considerando a Pandemia COVID 19.

Sumário

Aula 01_ Natureza, Cultura e Poder.......................................................................................................9


Aula 02_Parentesco, Mito e Ritual.......................................................................................................14
Aula 03_Etnocentrismo e Relativismo Cultural....................................................................................20
Aula 04_A Antropologia como Ciência.................................................................................................25
Aula 05_Antropologia Urbana..............................................................................................................37
Aula 06_Antropologia Econômica e Política.........................................................................................42
Aula 07_Antropologia de Gênero.........................................................................................................50
Aula 08_Antropologia Biológica e da Família.......................................................................................55
Aula 09_Durkheim e Mauss: a Ordem e o Fato Social..........................................................................59
Aula 10_Estrutural Funcionalismo Inglês e a Antropologia Social........................................................64
Aula 11_Bronislav Malinowski e a Pesquisa nas Ilhas do Pacífico........................................................69
Aula 12_Radcliffe-Brown e Pritchard: as Organizações Políticas Africanas..........................................74
Aula 13_O Estrutualismo Francês.........................................................................................................79
Aula 14_Lévi-Strauss e a Antropologia do Pensamento Humano.........................................................83
Aula 15_Os Norte-americanos e a Antropologia Cultural.....................................................................87
Aula 16_Antropologia Cultural: Franz Boas e Ruth Benedict................................................................92
Aula 17_Diversidade Cultural: Discussões sobre uma Nação Miscigenada..........................................95
Aula 18_Os Ensaístas............................................................................................................................99
Aula 19_A Institucionalização do Pensamento Antropológico no Brasil............................................103
Aula 20_O ISEB: Alienação e Cultura..................................................................................................107
Aula 21_Florestan Fernandes: da Antropologia dos Povos Indígenas ao Estudo das Classes.............110
Aula 22_Roberto da Matta: Carnavais, Malandros e Heróis...............................................................113
Aula 23_A Tradição dos Estudos de Antropologia Rural no Brasil......................................................116
Aula 24_Estudos Contemporâneos sobre Etnologia...........................................................................120
Aula 25_Formação Étnica e Histórica do Brasil..................................................................................123
Aula 26_O Sentido da Colonização.....................................................................................................127

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Aula 27_As Teorias Raciais do Século XIX e a Questão Racial.............................................................135


Aula 28_Origens do Racismo brasileiro..............................................................................................138
Aula 29_O Sentido dos Movimentos Populares e o Exemplo dos Movimentos Negros no Brasil......140
Aula 30_A Trajetória dos Movimentos Negros no Brasil (1º E 2º Períodos).......................................144
Aula 31_A Trajetória dos Movimentos Negros no Brasil (3º PERÍODO)..............................................150
Aula 32_Uma Reflexão sobre os Direitos Humanos...........................................................................156

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Aula 01_ Natureza, Cultura e Poder

Um tema fundamental da filosofia e das ciências sociais é o que chamamos


de cultura. Para a Antropologia esse é um conceito central e fundamental. O
objetivo desta primeira aula é buscarmos uma definição sintética de cultura e sua
relação com outros dois temas fundamentais: a natureza e o poder, este último
compreendido aqui como as formas de organização e de dominação que marcam as
sociedades humanas a partir de um dado período e a luta por interesses por vezes
antagônicos em uma mesma formação social.
1. O que é cultura?
Existem diversas tentativas de definir o que é cultura, tornando difícil,
portanto, uma única definição que abarque todas as suas possibilidades. Isso
significa que a cultura pode ser vista por diversas perspectivas. Mas podemos,
sinteticamente, afirmar que cultura é o conjunto de valores, costumes, tradições,
instituições, linguagens, manifestações artísticas e relações humanas estabelecidas
num dado espaço. Esse conjunto não é estático: está sempre em contato com
outras culturas e em constante movimento e mudança, reforçando alguns aspectos,
transformando outros, absorvendo elementos externos, metamorfoseando traços
culturais próprios e de outras culturas.
Conforme MOTTA e CALDAS (1997), para alguns, a cultura é a forma pela
qual uma comunidade satisfaz a suas necessidades materiais e psicossociais. De
acordo com os autores, a cultura pode ser encarada ainda como uma forma de
adaptação ao meio ambiente pelas comunidades. Ainda de acordo com os autores,
“outra forma de ver a cultura parte do inconsciente humano. Todas as configurações
culturais estariam previamente inscritas no inconsciente” (1997, p.16).
A cultura pode ser vista ainda, como dito mais acima, através de símbolos,
padrões de comportamento, linguagem e características ligadas às raízes e
costumes que caracterizam determinada sociedade. Ela envolve diversos valores e
hábitos que distingue um grupo, uma região e uma sociedade, consequentemente,
influenciando diretamente a forma com que as pessoas pensam, agem e se
expressam.

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Ainda que as definições e os vieses sejam muitos, vale insistir nas


características que geralmente estão ligadas à cultura: os traços culturais, os rituais,
as crenças, os costumes, os mitos, os valores, as ideologias, os padrões de
comportamento e as normas adotadas por determinada sociedade.
2. Natureza e Cultura
Temos duas maneiras de tratar da relação entre natureza e cultura: a primeira
estuda as especificidades humanas (como constituição biológica) e como essas
características e possibilidades corporais se realizam no meio, portanto, como são
fundamentais para o que chamamos de cultura; a segunda maneira se refere à
forma como o próprio homem pensa sua relação com a natureza, ou seja, como as
culturas expressam suas considerações acerca do que é a natureza. Essas duas
perspectivas estão imbricadas, mas vamos começar pensando nelas
separadamente.
Há correntes diversas da Antropologia que tratam de maneiras diferentes
diversos temas, como veremos nas aulas da Unidade II. Os estudos de antropologia
física, por exemplo, ocupam-se em estudar os limites biológicos do surgimento do
humano como o conhecemos. Podemos afirmar o mesmo acerca dos estudos
genéticos contemporâneos. Portanto, mesmo dentro da Antropologia, podemos ter
perspectivas diferentes da relação entre natureza e cultura, algumas delas bastante
problemáticas, como aquelas que procuram tratar como naturais algumas
disposições de grupos humanos. O pano de fundo sempre é a tentativa de justificar
desigualdades e não de compreender o humano como ser biológico e social ao
mesmo tempo. Essa justificativa das desigualdades possui raízes históricas que
podem ser observadas, por exemplo, na associação entre as teorias racistas do
século XIX e o neocolonialismo, assim como entre o desenvolvimento das
formações sociais capitalistas e as teorias da eugenia, da frenologia e do
darwinismo social.
Para a antropologia cultural e para a antropologia social, a natureza biológica
é um fato, assim como é um fato a cultura e a sociedade serem realidades que
influenciam e explicam diretamente o comportamento humano. É com essa
realidade cultural e social que constitui a vida do humano que a antropologia se

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preocupará e não com as definições da influência da natureza biológica, neurológica


e psíquica sobre seu comportamento.
Essa separação de objetos se refere a nossa primeira perspectiva sobre a
separação entre Natureza e Cultura relativa aos estudos antropológicos. Na
verdade, o que a psicologia ou a biologia e a genética chamam genericamente de
“meio”, a antropologia e a sociologia chamam de formação social e cultura.
Diferentemente do que muitas vezes pensam essas leituras “biologizantes” do
homem, portanto, o lugar de realização das capacidades biológicas e psíquicas do
sujeito não é um meio natural vazio de significado, como se o humano enquanto ser
biológico somente sofresse a influência da natureza.
A antropologia vai se dedicar a estudar as formações sociais e a cultura como
os locais de realização dessas capacidades, inclusive interferindo também nas
questões biológicas e suas potencialidades. Por exemplo, culturas diferentes podem
determinar padrões estéticos muito diferentes, comportamentos muito distintos e
padrões psíquicos diferenciados, elementos que influenciam como percebemos os
corpos e como os corpos são “modelados” de maneiras distintas.
Portanto, é necessário, primeiro, compreender nossa espécie animal dentro
do processo evolutivo e nossas especificidades orgânicas, depois, compreender
como essas especificidades possibilitam a sociabilidade e, na outra mão, como os
corpos sofrem também as influências dos padrões comportamentais e dos costumes
próprios de uma dada cultura, ou seja, compreender como as possibilidades abertas
ao humano são desenvolvidas de maneiras diferenciadas numa relação direta com a
cultura.
Para a antropologia, a sociedade e a cultura influenciam nossa forma
individual de pensar e de agir e essa consideração antropológica nos introduz à
segunda perspectiva sobre a importância da separação entre Natureza e Cultura.
Bem, discutimos a cultura como objeto da antropologia para o estudo do
comportamento e do pensamento humano, mas separar Natureza e Cultura é mais
do que uma expressão da proposta de construção de um objeto específico da
antropologia. Segundo Lévi-Strauss e muitos autores contemporâneos que se
inspiram em seus estudos para refletir as ciências e campos do conhecimento como
objetos culturais, a própria separação entre o que é Natural e o que é Cultural reflete

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a forma como o ser humano pensa. Por quê? Porque a mesma regra social que
evoca a forma como organizamos culturalmente a vida social também evoca a
capacidade humana de pensar, de criar grupos, classificar e refletir o mundo.
Segundo Lévi-Strauss, não somente a ciência moderna faz essa separação
entre o que é causa natural e o que é causa sociocultural, ou seja, sobre o que
corresponde ao mundo natural e o que corresponde ao mundo que os seres
humanos criam. Outros povos fazem esse tipo de separação e refletem essa
capacidade humana essencial de se distanciar daquilo que é natural. A ação do
homem sobre a natureza expressa uma separação entre sua parte natural (enquanto
parte dela) e sua parte cultural. O homem é o único animal capaz de criar cultura
sistematicamente e viver a partir dessa realidade que ele próprio cria, não somente
das condições naturais. A natureza não explica, por exemplo, porque roupas e joias
significam status social ou, simplesmente, porque os seres humanos vivem sob a
perspectiva de alguma religião.
Nós, assim como outros povos, notamos essa capacidade estritamente
humana de criar Cultura e refletimos sobre ela. Para Lévi-Strauss, não é à toa, por
exemplo, que muitos mitos ameríndios dedicam-se ao tema da relação do homem
com o fogo ou mesmo dedicam-se ao tema do tabu do incesto, por exemplo. O fogo,
o cozimento, as construções, a vida sociedade, as regras sociais são temas que
expressam a capacidade humana de não somente agir sobre a natureza através do
trabalho, mas também de criar cultura e refletir sobre ela.
O humano tem toda sua vida mediada por essa segunda realidade que é a
cultura. Um bom exemplo é o próprio parentesco: o parentesco não somente regula
nosso comportamento com os outros, mas influencia a forma como pensamos o
próprio “outro”. É como se todo nosso olhar sobre o mundo fosse moldado por aquilo
que a cultura, portanto, aquilo que a vida em sociedade, permite que vejamos.
Isso implica, inclusive, no fato de que a forma como pensamos a própria
distância entre o ser humano e a natureza depende de nossa cultura e nossa vida
em sociedade.
3. Cultura e Poder
Podemos entender cultura como uma dimensão do processo social e utilizá-la
como um instrumento para compreender as sociedades contemporâneas. A cultura

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é um produto da história coletiva por cuja transformação e por cujos benefícios as


forças sociais se defrontam. As preocupações com a cultura são institucionalizadas,
fazem parte da própria organização social. As preocupações com a cultura mantêm
sua proximidade com as relações de poder. Isso nos remete à relação entre cultura
e poder.
Uma das questões mais importantes da discussão sobre as complexas
relações entre cultura e poder diz respeito ao tema da cultura nacional. Entre cultura
e nação há relações antigas. Mas a relação entre ambas é mais ampla do que isso.
Cultura e nação são dimensões de referência necessárias para se entender o
mundo contemporâneo. O confronto entre as classes sociais transforma tanto a
cultura quanto a nação. Pode-se, assim, entender a cultura nacional como a cultura
comum de uma sociedade nacional.
Há problemas para saber qual o conteúdo de uma cultura nacional, para
delinear suas características, para definir os aspectos que a fazem única. É a
história de cada sociedade que pode explicar as particularidades de cada cultura. Ao
pensarmos sobre cultura, podemos estabelecer entre ela e a formação social várias
relações.
É importante ressaltar que a ciência e a tecnologia são aspectos da cultura
por causa do impacto direto que têm nos destinos das sociedades atuais. Entre a
cultura e a formação social há também planos de relacionamento mais específicos.
Nenhum grupo no interior de uma formação social tem uma cultura autônoma e
isolada. A discussão de cultura sempre remete ao processo, à experiência histórica.
Isso significa que a uma cultura jamais é imune às relações sociais que
ocorrem entre os humanos e que, por fim, constituem os humanos de uma dada
época: seu comportamento, suas perspectivas etc.. Significa também, portanto, que
a cultura reflete as relações de dominação que caracterizam uma dada formação
social histórica. Na Unidade IV, na parte final da disciplina, teremos bons exemplos a
partir dos estudos sobre a formação social brasileira e seus traços culturais
específicos.

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Aula 02_Parentesco, Mito e Ritual

1. Estudos de parentesco: o início da descoberta do “outro”


Os estudos de parentesco são muito importantes para a Antropologia. Foi a
partir da observação das relações de parentesco que surgiram duas das principais
correntes do pensamento antropológico, como veremos na Unidade II.
Nesta aula, vamos pensar o parentesco a partir das diferentes maneiras como
a Antropologia nos permite percebê-lo enquanto manifestação cultural e humana por
excelência, como aspecto fundamental para entendermos como estudar
antropologicamente o outro. Esse exercício de estudo do que é diferente, levando
em consideração a complexidade da diferença, é uma forma de diálogo crítico com
uma leitura mais biológica do homem.
Para a Antropologia contemporânea, o desafio dos estudos de parentesco
não está na busca de razões biológicas para as relações que se estabelecem entre
os seres humanos. A Antropologia toma essas relações como fato: o homem é um
ser social. No caso das relações de parentesco, as causas socioculturais do
comportamento humano em diferentes situações explicam problemas sociais
observáveis e o parentesco é um desses problemas da vida humana historicamente.
O universal está presente na diferença, portanto, a diferença é uma
expressão daquilo que nos faz humanos. O parentesco é tido pela Antropologia
como um universal: todas as sociedades humanas compartilham relações de
parentesco. Ao mesmo tempo, as relações de parentesco evocam a diversidade
humana: são as relações sociais que estabelecem culturalmente aqueles que são
considerados parentes e aqueles que não são. Para nossa sociedade, o parentesco
é legalmente determinado pela proximidade genética. Essa característica da nossa
cultura acaba parecendo quase que natural e não produto das relações sociais.
Apenas percebemos isso quando comparamos nossas relações sociais às de outras
culturas e suas correspondentes e distintas maneiras de compreender as relações
de parentesco. Ao fazer isso, percebemos que em outras formações sociais o
parentesco biológico não é tão ou mais importante que um parentesco por afinidade.

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Em nossa cultura é bastante comum, por exemplo, que quando nos


aproximamos muito de um amigo, o consideramos parte da família, como um “irmão”
ou como uma “mãe”. Quando alguns indígenas se aproximam muito de um
desconhecido, logo o incorporam também ao grupo de parentesco, mas o chamando
de “cunhado”. Vamos pensar nisso com mais atenção. Nossa sociedade dá tanta
importância ao parentesco biológico que a forma de agregar o “outro” que não é
nosso parente é incorporá-lo ao grupo de pessoas que consideramos mais próximos
de nós geneticamente.
Nas sociedades indígenas, o grupo de parentesco assume outra importância
social e cultural: ele separa grupos definidos de pessoas com quem podemos nos
casar e de pessoas com as quais não podemos. Considerando o “outro” com quem
se tem afinidade como um “irmão”, não se abre possibilidade de agregar toda sua
família como parte do próprio grupo social. Considerando o “outro” como “cunhado”,
represento que posso casar com suas irmãs, formar novas famílias, incorporá-las ao
grupo todo. É uma forma de representar que esse “outro” é bem vindo, junto com
seus descendentes, para fazer parte de uma sociedade.
O parentesco é, portanto, uma forma muito específica do ser humano
considerar o “outro”, além de ser uma espécie de “ferramenta” normativa das
relações diretas entre os sujeitos dentro da sociedade.
Analisando como outras sociedades delimitam seus grupos de parentes, a
Antropologia começou a ir além das relações normativas que sustentam o grupo
social: a Antropologia começou a estudar o “outro” como tema e como problema. O
que isso tudo quer dizer? Quando estabelecemos aqueles que são parentes e
aqueles que não são, estamos olhando para aquele que não faz parte do grupo e a
forma como fazemos isso explica como pensamos aquele que é diferente. Estudar a
forma como um grupo social incorpora ou não aquele que não faz parte do grupo é
tema essencial da Antropologia contemporânea e devemos muito aos estudos sobre
as relações de parentesco nesse sentido.
Concluindo, podemos dizer que é muito diferente tratar “o outro” com quem
nos identificamos como parte de um grupo seleto e tratar “o outro” com quem nos
identificamos e todos seus descendentes como parte de um grupo maior. Isso vai
mais além: por exemplo, em formações sociais capitalistas prevalece a noção

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ideológica de indivíduo, enquanto em outras culturas é sempre o grupo que


prevalece. Esse raciocínio significativo está presente na forma como nós ou os
grupos indígenas consideramos “o outro”, mas o mais importante é que essas
maneiras distintas de pensar o “outro” e estabelecer as relações de parentesco
estão fundadas nas formas distintas de organização da vida social, de divisão social
do trabalho e das necessidades da reprodução da vida social em formações sociais
históricas específicas..
2. Compreendendo Mito e Ritual
Assim como o parentesco, os mitos e rituais são temas bastante importantes
para a Antropologia contemporânea. Os mitos e os rituais também estão presentes
como manifestações socioculturais em todas as sociedades.
Vamos fazer aqui um exercício de desmistificação do mito e do ritual. Por que
desmistificação? Porque muitas vezes associamos a ideia de mito a civilizações
históricas ou a grupos sociais distantes culturalmente da sociedade em que vivemos.
Fazemos o mesmo quando pensamos em rituais, como algo exógeno, diferente. A
proposta da Antropologia, no entanto, é teorizar aquilo que é universal. Nesse
sentido, mito e ritual são elementos da vida humana.
Um dos autores essenciais ao estudo do ritual é Victor Turner (1920-1983).
No livro O processo ritual, Turner dedica-se quase que exclusivamente a
desenvolver uma teoria que possa abarcar a interpretação de diferentes rituais pelo
mundo. Assim como Mary Douglas nos propõe uma forma de analisarmos aquilo
que foge à classificação e, por isso, gera sentimentos de asco ou simplesmente de
medo, Turner nos propõe uma forma de pensarmos diferentes rituais e de
classificarmos seus efeitos e funções sociais.
Para analisar o ritual como uma ferramenta de expressão da estrutura social e
da cultura, Victor Turner se inspira nos estudos de Arnold Van Gennep (1873-1957)
sobre os ritos de passagem. Para Van Gennep, os ritos de passagem representam
três momentos específicos: separação, transição e agregação. Para Turner, os ritos
de passagem o os rituais em si mesmos representam um distanciamento da
estrutura social, um momento de tentativa de alterá-la e, por final, o reencontro com
a estrutura. O que isso significa? Para o autor, nos rituais, os membros do grupo
sociocultural representam a estrutura de regras ao contrário ou simplesmente

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representam o extremo da regra, sendo momento especial para observarmos os


ditames culturais que regem a vida cotidiana. É como se a regra e a estrutura
cultural inconsciente que orientam nossa vida em sociedade estivessem dormentes
durante o cotidiano: nós não falamos ou pensamos a regra e a cultura quando as
estamos reproduzindo no cotidiano, mas as pensamos e as evocamos nos
momentos rituais. Muitas vezes, é no momento do ritual também que uma
sociedade permite que a regra seja refletida e alterada: no ritual sempre invertemos
a ordem social, nos separando da sociedade para refletir aquilo que não é refletido
no cotidiano (separação). Para se afastar e representar a regra e a cultura em suas
especificidades, o ritual lança mão de uma estratégia bem interessante: inverte a
estrutura e a regra (transição). Por fim, nos momentos finais, o ritual sempre mostra
que essa inversão ou esse “exagero” encenado quer nos dizer sobre nossa vida
cotidiana, momento em que retornamos à estrutura (agregação, incorporação).
Um exemplo simples pode ser o ritual Naven. Nesses rituais, os papéis
sexuais são invertidos e as relações sexuais exacerbadas, encenadas com exagero.
Segundo o autor, é nesse momento que a comunidade pensa e enxerga mesmo os
papéis sexuais que não são refletidos no cotidiano das relações. Dando aos homens
e mulheres o papel de seus contrários, a sociedade se representa e se reflete no
momento ritual. O ritual é, portanto, um momento passível de transformação da
realidade sociocultural pela reflexão dos mecanismos inconscientes que a regem.
Os estudos de Victor Turner podem ser aplicados, por exemplo, quando
refletimos algumas das revoltas brasileiras do período colonial e mesmo republicano,
como no caso de Canudos. Em momentos em que a sociedade se revolta e cria um
reverso à ordem (os revoltosos faziam parte de um grupo social excluído e
marginalizado), está trazendo a tona sua própria estrutura de relações, que no caso,
significava hierarquia entre classes e opressão. O movimento de Canudos talvez
quisesse nos dizer, ao reafirmar a Monarquia no momento inicial da República, que
a suposta mudança na estrutura política significava continuidade na verdade. Por
sua vez, os rebelados montaram no ritual de transição um oposto ao que a
sociedade significava: uma expressão da vontade de igualdade entre aqueles que
eram marginalizados.

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Analisando uma situação próxima a nossa própria história, podemos refletir,


portanto, que a proposta de Turner é interessante não somente para pensarmos em
rituais de povos diferentes de nós, mas também para pensarmos nos rituais que
expressam nossa própria vida e estrutura sociocultural. O ritual é para a
Antropologia, uma expressão cênica da cultura e da sociedade, portanto, onde
encontramos momentos de ritualização, devemos ficar atentos ao que querem nos
dizer sobre nós mesmos. Isso vale para cerimônias de casamento, políticas,
religiosas, danças e festas, por exemplo.
O estudo sobre os mitos esteve relacionado, desde o começo dos estudos
antropológicos, ao estudo dos rituais, porque a importância da mitologia no universo
cultural da humanidade se mistura com a dos ritos. Isso porque muitos dos mitos
observados pelos primeiros antropólogos eram representados em rituais. Mas a
relação entre mito e ritual não é tão imediata: são manifestações independentes da
cultura humana e têm em comum o fato de representarem a cultura e a estrutura
social dos grupos sociais em que estão presentes.
Lévi-Strauss tratou da importância da análise dos mitos para sua teoria sobre
a estrutura de pensamento humana. Ele foi um dos autores que melhor nos explicou
o significado das leituras mitológicas de mundo, considerando que há variações para
um mito e que essas variações expressam a amplitude do significado que um mito
assume para uma cultura. Um bom exemplo está descrito em suas obras As
mitológicas. Investigando a mitologia ameríndia em O cru e o cozido, uma das obras
desta coleção, o autor nos mostra que encontramos preocupações humanas
semelhantes dentre uma variedade grande de mitos que se referem a um mesmo
tema. Lévi-Strauss percebe, por exemplo, que o tema do incesto está presente tanto
em mitos dos indígenas da América do Sul quanto em mitos gregos.
Esse tema evoca, para Lévi-Strauss, a preocupação essencial da
humanidade com a regra universal do incesto. De certo modo, portanto, os mitos são
expressões da reflexão da sociedade sobre o universo e sobre si mesma assim
como os rituais são momentos em que a sociedade se propõe a representar e
pensar a si própria e a forma como pensa. Por esse motivo, a Antropologia sempre
teve como paralelos os estudos sobre mito e ritual: são parte de todas as culturas e

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sua existência expressa a capacidade do homem e da sociedade refletirem sobre si


próprios e sobre o mundo que os cerca.
No entanto, se o ritual é o momento em que a sociedade e a cultura se
colocam em evidência e se propõem objetos de mudança e de crítica, o mito
expressa a continuidade da própria forma de pensar e de agir de um povo. O mito
representa a memória da cultura de uma forma velada: se o ritual é o momento de
evidência daquilo que está apagado pela nossa naturalização das relações culturais
e sociais cotidianas, o mito é um mecanismo de esquecimento dessas relações.
Por isso mesmo Lévi-Strauss dedica quatro tomos para tentar compreender o
que há de comum entre tantas histórias que aparentemente parecem inclusive não
serem lógicas. Não importa se parece verídico ou não, o mito tem a função
sociocultural de lembrar a toda a sociedade daqueles elementos que sustentam sua
humanidade e daqueles elementos que expressam a forma como cada sociedade
pensa o mundo e a si própria.
Lévi-Strauss faz uma afirmação bastante incômoda para muitos cientistas e
historiadores quando afirma, por exemplo, que a Revolução Francesa é um mito da
modernidade. Ora, aprendemos que a Revolução Francesa é um fato e nada nos
permite comprovar que as histórias que os mitos contam são fatos. Acontece que o
fato, a comprovação e a objetividade é algo que legitima o conhecimento em nossa
sociedade e isso não significa que para outras sociedades e povos a mitologia não
represente o mesmo que a Revolução Francesa acaba representando para nós: um
exemplo significativo e representativo da nossa própria estrutura de relações sociais
e de nossa própria cultura.
O que Lévi-Strauss quer nos dizer com sua declaração polêmica não é o que
entenderam muitos historiadores equivocadamente: que a Revolução Francesa pode
ser um mito no sentido pejorativo que a palavra assume no senso comum, ou seja,
que a Revolução Francesa pode não ser um fato histórico verídico. O que Lévi-
Strauss quer nos dizer é que, de fato, a importância que a sociedade
contemporânea dá para a Revolução Francesa e para seus pressupostos, tornou-se
como um mito no sentido antropológico da palavra: um instrumento sociocultural de
reafirmação de valores culturais necessários à continuidade de nossa própria
sociedade, como a democracia, a igualdade e a liberdade.

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Esse é o significado antropológico dos mitos. Por um lado, podemos pensar


que diferentes formas de ritualização nos expressam a cultura e as estruturas
sociais e, por outro, podemos pensar também que mesmo nossa sociedade cria
seus mitos, ou seja, suas formas de perpetuar inconscientemente valores e
reflexões que são socioculturais.

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Aula 03_Etnocentrismo e Relativismo Cultural

Na aula 01 procuramos definir cultura e afirmamos que existe uma relação


entre cultura e natureza e outra relação entre cultura e poder. Nosso objetivo agora
é pensarmos um pouco sobre disposições que podemos ter com relação a outras
culturas. Essas disposições não são pessoais: elas demarcam também as relações
entre essas culturas e têm uma grande importância, inclusive, nos estudos das
relações entre grupos internos de uma dada formação social e nos estudos das
relações internacionais. Estudaremos duas dessas disposições: o etnocentrismo e o
relativismo cultural.
1. Etnocentrismo
“Etnocentrismo é uma visão de mundo onde nosso próprio
grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são
pensados e sentidos através de nossos valores, nossos
modelos, nossas definições do que é a existência. No plano
intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a
diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,
diferença, hostilidade, etc.. Perguntar sobre o que é
etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se
misturam tanto elementos intelectuais e racionais, quanto
elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, esses dois
planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão
juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente
arraigado na história das sociedades como também facilmente
encontrável no dia-a-dia de nossas vidas.” (ROCHA, 1994,
p.01)
Entender a cultura dos povos é compreender a formação das sociedades ao
longo do tempo, a sua história, os seus hábitos e costumes. Cada povo possui a sua
cultura e quando elas se encontram e se chocam pode ocorrer o etnocentrismo, ou
seja, prevalecer uma visão do mundo na qual o nosso próprio grupo é tomado como
centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos

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valores, nossos modelos e nossas definições do que seja a existência. É pensar a


própria cultura como a melhor e a correta e que os outros devem, ou pelo menos
deveriam, ser iguais. Quando não são, recebem adjetivos pejorativos, como cultura
atrasada, inferior etc..
No seu primeiro sentido, o etnocentrismo é uma cegueira para diferenças
culturais, a tendência de pensar e agir como se elas não existissem. No segundo
sentido, refere-se aos julgamentos negativos que membros de uma cultura tendem a
fazer sobre todas as demais.
Conforme os estudos antropológicos revelaram, as culturas diferem muito
entre si, mas há também grande variação no grau em que pessoas estão
conscientes desse fato simples. O etnocentrismo pode ser considerado a
contrapartida sociológica do fenômeno psicológico do egocentrismo. A diferença é
que, em vez de indivíduos se definirem como o centro do universo, em relação ao
qual tudo mais deve sua existência e significação, uma cultura inteira é colocada
nessa posição elevada. Tal como o egocentrismo, o etnocentrismo é como um
prisma, através do qual tudo é percebido e interpretado em relação a um único
arcabouço cultural, com exclusão de todas demais possibilidades.
Exemplos clássicos: indivíduos que vivem em sociedades industriais supõem
que todo mundo sente seu apetite por bens de consumo e instituições políticas de
estilo ocidental, tratando as culturas diferentes como “primitivas”; descendentes dos
imigrantes brancos europeus que ora vivem por aqui supõem que foi Colombo (e
não os povos nativos) quem “descobriu” a América; estrangeiros considerados
“bárbaros”; a música “clássica” é a que vem da Europa; encarar as manifestações
religiosas comuns de uma cultura como corretas ou verdadeiras e as demais como
equivocadas e até pecaminosas. Enfim, poderíamos dar vários exemplos mais,
baseados nas suposições, na cegueira e nos juízos de valor relativos ao
etnocentrismo.
Em um sentido importante, o etnocentrismo não é um problema. Trata-se de
uma consequência inerente ao fato de pessoas viverem sob a influência de qualquer
dada cultura e da realidade socialmente construída que a acompanha. Todos os
sistemas sociais promovem até certo ponto uma opinião de si mesmos, da realidade
que construíram e do mundo em volta. O etnocentrismo torna-se um problema na

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medida em que distorce a maneira de ver outras culturas, sobretudo quando usado
ideologicamente como base para opressão social.
Para fazer observações sobre uma cultura alheia é necessário conhecer os
significados dessa linguagem, senão, tenderemos a analisar as outras visões de
forma preconceituosa, pois estaremos observando signos dos quais ou temos
conceitos diferentes ou nem mesmo conhecemos. Assim começamos a classificar
culturas superiores e culturas inferiores. A primeira é a “nossa” cultura, a que segue
o nosso padrão, a que fala a nossa linguagem, age e pensa como nós. Já a segunda
é a que deve ser destruída por ser “atrasada”, ignorante por não conhecer a nossa
visão. Como na nossa sociedade quem regula a ordem social é a classe dominante,
essa é que irá impor a sua “cultura superior” - a cultura da “elite”.
2. Relativismo cultural
“Enquanto a etnografia inglesa era construída como uma
descrição intensiva da sociedade como uma unidade de tempo
e espaço em laboratórios-ilhas na fronteira, a etnografia
boasiana-kroeberiana podia aplicar-se a tarefas de salvamento
cultural, e no limite, podia se converter na colaboração com um
único informante ou na exposição de sobreviventes. Mas foi
também uma antropologia formadora de uma cultura pluralista,
antirracista e tolerante, em oposição às tendências racistas,
xenófobas e eugenistas da época.” (ALMEIDA, 2004, p. 67)
Franz Boas, um dos pais antropologia cultural que estudaremos na Unidade
II, é considerado fundador da postura que hoje chamamos de relativista e este autor
desenvolveu seus estudos procurando mostrar que cada cultura tem sua forma de
conceber e significar a realidade. Tal disposição permite pensar numa política de
relacionamento com o outro que é totalmente oposta ao etnocentrismo.
Segundo Boas, para que compreendamos o que as diferentes culturas
querem dizer e para que entendamos realmente a singularidade de cada cultura, é
preciso adotar uma postura relativista. Boas parte de uma crítica às teorias racistas
e ao evolucionismo cultural e influência positivista. Esteve em contato com um
contexto de pesquisa das culturas dos povos nativos norte-americanos que era
bastante distinto daquele vivido pelos antropólogos ingleses em suas pesquisas de

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campo. Claro, os ingleses também se posicionaram contra os abusos do


colonialismo e as guerras contra as populações africanas (o próprio Radcliffe-Brown
foi expulso da África por assumir essa postura), mas ainda eram agentes dos povos
colonizadores buscando compreender grupos culturais bastante fortes politicamente
e culturalmente.
A proposta de relativismo cultural de Boas parte, portanto, de uma postura
política clara contra o etnocentrismo que orientou durante a história dos EUA suas
relações com as populações nativas.
Mas, afinal, como podemos definir o relativismo cultural? Relativizar o que
pensamos sobre outras culturas nada mais é que pensar que os valores e
significados são relativos, que dependem do contexto e da cultura em que estão
sendo referenciados. Nesse sentido, para julgamos qualquer situação ou valor,
temos de considerar que algumas verdades são relativas, assim como o sentido que
assumem depende das sociedades e culturas onde estão colocados. Relativizar é
desprender-se de seu cotidiano, de seus conceitos e seus valores quando a
proposta é compreender o cotidiano, os conceitos e os valores dos outros.
O relativismo cultural surge, portanto, como uma crítica contundente ao
etnocentrismo dos autores deterministas e evolucionistas, que viam as sociedades
estudadas a partir de seus próprios valores e significados e, ao mesmo tempo,
nasce como uma postura política declaradamente contrária aos efeitos racistas e
xenófobos do etnocentrismo.
Dentro das ciências humanas, o relativismo foi e ainda é bastante criticado
por aqueles que assumem um olhar universalista sobre alguns conceitos e valores,
como, por exemplo, sobre os direitos humanos. Há questões muito controversas
quando tomamos o relativismo ao extremo, dizendo que nada pode ser defendido
porque tudo pode ser relativo. Essa não é a postura dos antropólogos que estão
criticando o evolucionismo cultural ao defenderem o relativismo, mas alguns
pensadores levam ao extremo o próprio significado de relativismo ao não
considerarem que há universais nas diferentes culturas. Quando Boas ou Malinowski
estão estudando diferentes culturas, partem do pressuposto que o homem é um só e
que, por isso mesmo, tais culturas não podem ser comparadas em termos de
valores positivos ou negativos ou em termos de progresso ou regresso, já que a

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capacidade de criar cultura pressupõe que também podemos entender a


diversidade.
Dizer que nada é absoluto porque tudo é relativo é uma postura contrária ao
que esses autores estão nos propondo, porque ela coloca os universos culturais tão
apartados em suas singularidades que acaba por não levar em consideração uma
das propostas mais importantes da Antropologia: a busca da comunicação e
entendimento entre as culturas e da troca que é benéfica e essencial ao processo de
conhecimento e de relação com o outro. Não é, portanto, que a Antropologia não
considera a existência de universais (a diferença só pode ser entendida porque
todos somos humanos), mas sim que a antropologia se propõe a desconstruir
universais antes de tomá-los como verdades absolutas.
Desconstruir um conceito, um valor, uma postura é encontrar suas raízes
socioculturais e históricas, delimitando o significado que assumem em suas culturas
de origem para depois refletirmos se realmente tais conceitos, valores e posturas
podem ser universalizados. Um bom exemplo é o próprio conceito de
individualidade, que pressupõe o conceito de liberdade individual na sociedade
moderna. A noção de indivíduo livre foi construída pela revolução burguesa e tem
sentidos muito controversos, já que, como a sociologia e a antropologia mostraram,
na própria sociedade moderna não conseguimos nos apartar totalmente das
consciências coletivas e dos demais sujeitos que dela fazem parte. Muitos de nós
achamos que o casamento arranjado em muitas sociedades é uma afronta à
liberdade individual, sendo que, no seio delas, o casamento é uma instituição de
troca e muitas mulheres esperam justamente que seus maridos representem essa
relação.
Para a Antropologia, portanto, o processo de compreensão depende de um
duplo exercício: precisamos desnaturalizar nossas próprias verdades absolutas para
que possamos chegar até o outro e relativizar os valores e conceitos para que
possamos compreender seus significados.

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Aula 04_A Antropologia como Ciência

1. Das ciências naturais para as ciências humanas: o começo da


Antropologia
As ciências sociais, área do conhecimento da qual faz parte a Antropologia,
dialogaram desde o início com as ciências naturais, assim como outras ciências
humanas nascentes no final do século XIX e início do século XX.
É importante fazer esta referência porque a Antropologia, apesar de ter uma
proximidade maior com a filosofia ao buscar as origens e particularidades do
humano, também dialogou com as ciências naturais em um primeiro momento e
alguns campos dela até hoje fazem referência a preocupações que vêm dessa
influência, como é o caso da Antropologia Forense, que deriva dos estudos de
Antropologia Física e da Arqueologia. Além disso, é importante lembrar essa relação
porque, assim como a Sociologia, a Antropologia deve muito a autores que fizeram
uma transposição de ferramentas teóricas e analíticas ao considerarem a sociedade
como sendo regida por leis semelhantes às que regem o universo natural. Isso quer
dizer que, apesar de nascer como uma crítica à leitura teológica, filosófica e
biológica do homem trazida pelos autores evolucionistas, positivistas e difusionistas,
a Antropologia deve muito a seus métodos e a algumas das questões iniciais de que
tais autores partem para pensar o humano.
Quais perguntas seriam essas? Esses filósofos e autores das ciências
naturais se perguntavam o seguinte: quais as características que nos fazem seres
humanos, que nos diferenciam dos animais e que são universais a todos os
homens? A resposta dada por tais autores partia dos métodos e conceitos das
ciências naturais e da filosofia.
Autores como Auguste Comte, por exemplo, viam a sociedade como um
organismo ordenado por leis que mantêm sua autonomia e forma e, além disso,
bastante influenciados por uma visão evolucionista como a que encontramos
também na leitura de Herbert Spencer. Delimitavam as sociedades humanas como
parte de um desenvolvimento histórico mais amplo e que possuía etapas

NÚCLEO COMUM 26
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determinadas, por isso os denominamos como “evolucionistas culturais” e


“evolucionistas sociais”. Há alguns princípios comuns à leitura evolucionista, como
afirmar que há uma linha histórica progressiva quando estudamos as origens dos
seres e, no que se refere ao humano, essa linha é pressuposta tanto pelos estudos
físicos quanto pelos estudos históricos.
Um dos campos de estudo atuais que também parte dessas mesmas
questões é a Antropologia Física, representada pelos estudos médicos e forenses,
que se ocupa em descrever características fenotípicas (aparência) e genéticas
(estrutura biológica) comuns entre grupos populacionais humanos. Vocês já devem
ter entrado em contato, por exemplo, com seriados sobre crimes que analisam pistas
sobre suspeitos e desenham retratos falados a partir de dados genéticos desses
suspeitos. Esse tipo de pesquisa deriva do que hoje chamamos por Antropologia
Física e que naquele momento dos estudos sobre a sociedade e a humanidade
ainda se misturavam aos estudos dos autores evolucionistas culturais e sociais.
Exemplos dos primeiros estudos sobre Antropologia Física são as teorias que
desenvolvem as ideias de que os seres humanos são divididos em raças. A principal
preocupação desses estudos era encontrar em vestígios arqueológicos as diferentes
raças que deram origem ao humano contemporâneo. Tal método pressupunha,
portanto, uma história evolutiva da própria estrutura genética humana seguindo a
influência da leitura (por vezes equivocada) da teoria darwinista sobre a relação
entre desenvolvimento e adaptação.
Outro exemplo são os estudos evolucionistas culturais e sociais, que,
diferentemente da Antropologia Forense e da Antropologia Física, não são mais
utilizados, mas com os quais os primeiros autores das correntes clássicas do
pensamento antropológico dialogaram. Não é bem na teoria de Darwin que a
antropologia evolucionista vai se amparar. Os estudos evolucionistas que
influenciam os autores com os quais a Antropologia vai dialogar diretamente estão
mais próximos da proposta de Herbert Spencer para a interpretação da sociedade
humana.
Herbert Spencer foi um filósofo inglês nascido no século XIX. Contemporâneo
a Darwin, escreve sob o impacto da teoria evolucionista. Spencer viveu em um
momento em que os postulados científicos, o rigor e a objetividade legitimavam e

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davam maior importância aos próprios escritos filosóficos e esse cientificismo


influencia sua leitura sobre o humano. Assim como o darwinismo, as interpretações
de Spencer se afastam de uma leitura teológica, pois, nesse momento da história,
ciência e teologia se opõem veementemente como formas de ver o ser humano e
sua natureza. A ciência se pauta em conceitos e busca responder às suas perguntas
utilizando métodos e dados observáveis, ou seja, se afastando de verdades que não
são provadas por observação e testes. Esses são alguns dos principais pontos de
confluência entre as preocupações dos evolucionistas sociais e culturais e a
antropologia clássica: as ciências sociais e a Antropologia também se distanciam
das leituras teológicas e religiosas sobre o humano e semelhantemente à filosofia
evolucionista apropriam-se do estatuto de “verdade” que as ciências naturais
carregam nesse momento para proporem uma interpretação conceitual própria da
sociedade e do humano.
Reconhecendo essas principais considerações dos dois autores, podemos
delinear algumas das características do olhar evolucionista sociedade e para o
humano a partir de breves noções gerais. Eles acreditavam que as sociedades
humanas eram regidas por leis universais, assim como ocorria com a Física. O
desenvolvimento humano e social obedeceria a um processo evolutivo determinado,
passando por estágios fixos e similares, ainda que em tempos diferentes, o que
supostamente explicaria povos “adiantados” e outros “atrasados”. Por esses
estágios pelos quais passariam necessariamente todos os povos há
correspondentes formas (mais ou menos complexas) de organização da vida social,
com também correspondentes estágios do conhecimento humano: em sociedades
menos complexas e mais simples, o conhecimento humano também seria mais
limitado, bem como a própria espécie estaria num grau evolutiva relativo a esse
estágio, o que os levava a pensar em grupos humanos e formações sociais
superiores e inferiores. O ponto final desse processo evolutivo seria a sociedade
industrial, “civilizada” e que pautaria as explicações da realidade a partir do
conhecimento científico exclusivamente. Há, portanto, uma ideia de que as
formações sociais capitalistas corresponderiam a essa etapa superior do
desenvolvimento humano, que tenderia, por sua racionalidade, a relações sociais
mais avançadas.

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Embora influenciem decisivamente os primeiros ensaios de trabalhos


antropológicos, essas versões do evolucionismo cultural e social serão criticadas
pelas correntes clássicas da Antropologia. Além dos aspectos equivocados dessas
supostas “verdades científicas”, havia obviamente uma relação direta entre a difusão
dessas teorias e a necessidade que a expansão capitalista pelo mundo (na forma do
neocolonialismo) tinha de justificar a dominação de vastas regiões e inúmeros povos
pelos países do centro do sistema. Numa dada concepção, a dominação europeia e,
depois, estadunidense, corresponderia a um aspecto positivo: levar o progresso e a
aceleração do desenvolvimento e evolução desses povos que estariam, nessa
lógica, atrasados em relação aos europeus. Derivam daí também noções como
países desenvolvidos e subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, o que indica
movimento em um sentido final, como se todos os povos tivessem,
necessariamente, o mesmo destino: a “sociedade industrial”, como esses autores se
referiam ao modo de produção capitalista.
2. A institucionalização do conhecimento antropológico
Nessa parte, trataremos e alguns exemplos de autores que, influenciados
pelas teorias do evolucionismo (social e cultural), mas indo para além dele,
construíram um pensamento antropológico autônomo, ferramentas metodológicas e
temas que marcam as primeiras discussões da área e que se diferenciam em pontos
diversos das conclusões engessadas do evolucionismo. Dentre os autores que
partem desses pressupostos estão Lewis Henry Morgan (1818 -1881), Eduard
Burnett Taylor (1832-1917), Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) e James George Frazer
(1854-1941).
Mas, afinal, o que esses autores propõem que nos permitem tê-los como
primeiros a dialogar com a Antropologia e os diferenciarmos dos filósofos
evolucionistas e demais cientistas naturais? Primeiramente, é preciso levar em
consideração que, no começo do século XX, diferentes campos do conhecimento
estão se diferenciando da filosofia e requerendo para si alguns problemas
específicos e formas de analisá-los. É um momento em que as ciências estão se
institucionalizando e esses autores são os primeiros a reconhecerem-se como
estudiosos do humano, como antropólogos e não como filósofos ou sociólogos, por
exemplo. Além disso, há a preocupação específica dos antropólogos evolucionistas

NÚCLEO COMUM 29
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em desvendar uma origem universal ao humano que não tenha na religião ou na


ideia de deus uma resposta. A razão e o trabalho são os elementos universais que
permeiam as considerações sobre o humano nesses autores.
À primeira vista, podemos até achar um pouco óbvias essas premissas, se
não tomarmos cuidado em datar as leituras. Lembremo-nos que esses autores estão
tentando compreender um cenário de relações com povos e culturas diferentes
desvendado desde o colonialismo e retomado no processo de neocolonialismo.
Lembremo-nos que um dos embates teológicos mais importantes acerca dos povos
não europeus foi, durante algum tempo, se índios e negros teriam ou não teriam
alma, sendo ou não humanos de acordo com uma leitura religiosa. A leitura
antropológica evolucionista rompe com debates filosóficos deístas e teológicos
quando propõe que todos os povos compartilham uma história evolutiva que faz com
que sejam todos humanos por definição. Esse é um dos primeiros posicionamentos
antropológicos por excelência: reconhecer na diversidade o que é universal, o que é
genericamente humano, ou seja, reconhecer que todos os diferentes são humanos
não porque possuem alma ou compartilharem uma religião, mas sim por fazerem
parte desse movimento evolutivo maior que explica as diferenças entre sociedades e
culturas.
Todos os humanos, para esses autores, podem ser reconhecidos dentro
dessa linha evolutiva histórica que define o gênero e, como tais, podem ser
estudados em termos das formas como se organizam produtiva e politicamente
(povos coletores, agricultores, grandes civilizações, a civilização moderna) e
também em termos das formas como conhecem o universo em que vivem e que
constroem suas interpretações sobre a realidade, ou seja: há uma racionalidade
específica a cada expressão cultural (feitiçaria, magia, religião, mitos, ritos).
Lewis Henry Morgan dedicou-se em seu livro A Sociedade Primitiva a estudar
o parentesco e a família. Segundo Morgan, a família é a primeira forma de
organização social que podemos reconhecer na história da humanidade. O autor a
caracteriza como uma primeira instituição social e, pautado em um olhar
evolucionista sobre a história humana, considera que essa forma elementar de
sociedade dá início a um processo de complexificação (estatística e valorativa) dos
relacionamentos entre os humanos. O autor também relaciona diferentes estágios

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posteriores dessa evolução das relações de parentesco com estágios de um


desenvolvimento tecnológico ao qual podemos nos referir como parte de uma cultura
material, parte da história econômica e produtiva humana. Desta forma, o autor
desenha uma linha evolutiva em que deduz que partindo das primeiras relações de
parentesco e das primeiras formas de organização produtiva, a história humana
encaminha-se para uma complexificação tanto das relações entre os seres humanos
quanto das relações produtivas empreendidas entre o humano e a natureza.
Resumidamente, Morgan faz um paralelo entre um processo de complexificação e
aprimoramento dos instrumentos de trabalho e das formas de intervenção no
ambiente e um processo de complexificação das organizações sociais e das
relações entre os membros dos grupos de parentesco.
Há algumas preocupações estritamente antropológicas nas considerações de
Morgan, como:
a) pensar os seres humanos como eminentemente sociais: Morgan procura
as primeiras formas de organização social da história humana, encontrando-as nas
relações de parentesco.
b) observar o papel do trabalho: os seres humanos, diferentemente dos
demais animais, são capazes de construir objetos e de alterar racionalmente o
ambiente, de trabalhar, por esse motivo o trabalho e a cultura material são também
características eminentemente humanas.
Tais preocupações, lidas segundo um olhar evolucionista, implicam na
conclusão de que as relações sociais mais simples limitam o desenvolvimento
econômico. Por exemplo, somente quando os homens estabelecem regras de
casamento que também regulam o sistema de propriedade é que podem se
sedentarizar e, consequentemente, desenvolver a agricultura.
De certo modo, Morgan condiciona o desenvolvimento da racionalidade
humana (pensando em formas produtivas mais desenvolvidas) aos estágios de
desenvolvimento das relações de parentesco e de desenvolvimento da cultura
material. No entanto, foram autores como Lucien Lévy-Bruhl, Eduard Tylor, e James
Frazer que teceram interpretações antropológicas evolucionistas para o progressivo
desenvolvimento da racionalidade humana.

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Em seu livro O ramo dourado, Frazer dedica-se a estudar nas manifestações


religiosas mais primitivas as primeiras expressões do pensamento humano. Assim
como os autores positivistas, Frazer pressupõe que a forma como a ciência
empreende suas análises sobre a realidade é mais elaborada e mais complexa: para
esses autores, conceber a realidade objetivamente e a partir de conceitos é uma
manifestação mais racional que a concepção da realidade pressuposta na magia.
Nesse livro, o autor analisa uma série de mitos e rituais, dissertando sobre as formas
de operação do pensamento mágico. Frazer acredita que essas formas de operação
acabam por construir relações e deduções falsas, por não serem lógicas, sobre os
objetos aos quais se dirigem e não são lógicas porque fazem parte de um momento
primário do processo evolutivo das formas humanas de pensar. O evolucionismo de
Frazer está pressuposto em sua reflexão sobre a Razão e a lógica. O autor já tem
em mente que a objetividade científica é mais racional (como única forma de
conhecer a verdade) que a magia e, para comprovar suas considerações acerca dos
estágios do desenvolvimento do pensamento humano, vai buscar nos exemplos de
rituais a expressão da irracionalidade dessa antiga crença. Para Frazer, por
exemplo, quando um homem ataca um boneco esperando atingir um ser humano,
como em rituais Vodus, está buscando um efeito a partir de uma causa que não é
objetivamente comprovada, além disso, considera que o objeto e o ser humano
atingidos não estão objetivamente apartados. Para os autores da antropologia
evolucionista, as conclusões envolvidas nesses rituais são falsas, portanto,
irracionais ou pré-lógicas, como considera Lévy-Bruhl.
Aqui também podemos salientar algumas preocupações estritamente
antropológicas, assim como fizemos ao estudar a leitura de Morgan:
a) Magia, religião e ciência correspondem a leituras da realidade, portanto,
são manifestações de uma característica humana por excelência: a capacidade de
refletir o universo à sua volta.
b) Na linha histórica evolutiva, onde encontramos os diferentes estágios do
desenvolvimento humano, a Razão é uma das características universais, assim
como o fato do homem alterar a natureza. Mais ou menos racionais, todos os
humanos pensam e são humanos por causa de suas formas de racionalidade, não
por possuírem alma, por exemplo.

NÚCLEO COMUM 32
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Essa busca por elementos universais do humano é um exercício


antropológico que direcionará inclusive as análises antropológicas contemporâneas.
Considerar que os humanos em diferentes povos empreendem formas de conhecer
o universo, a sociedade e a natureza é uma preocupação antropológica bastante
atual e a devemos aos primeiros autores evolucionistas da Antropologia. No entanto,
a Antropologia contemporânea sustenta-se a partir de um princípio crítico a esses
autores, um princípio que também é um exercício antropológico por excelência: a
desnaturalização dos conceitos e pressupostos a partir dos quais nós próprios
pensamos.
A Antropologia contemporânea considera que nossos conceitos e formas de
pensar a realidade que nos cerca dependem do contexto social e histórico em que
vivemos e usa essa consideração para criticar os autores evolucionistas.
Desnaturalizar é desconfiar daquilo que nos soa irrefutável e daquilo que nos soa
naturalmente verdadeiro. Apesar da influência dos temas discutidos por Morgan,
Frazer ou Lévy-Bruhl e também da maneira como buscam institucionalizar a leitura
dos universais humanos, a Antropologia contemporânea se funda criticando o olhar
evolucionista, que partia do pressuposto que somente a ciência (como eles a
entendiam) poderia conhecer a verdade e que julgavam a sociedade em que
viveram como mais complexas e mais desenvolvidas que as de outros grupos
humanos.
3. O método de pesquisa: antropologia de gabinete e antropologia de
campo
“Como outros fenômenos sociais, a pesquisa de campo é, ao
mesmo tempo, mito e evento histórico no desenvolvimento da
antropologia. Concebida como ‘método’ por excelência da
disciplina, como ‘rito de passagem’ na formação dos
especialistas ou, ainda, como meramente a ‘técnica’ de coleta
de dados, a pesquisa de campo é o procedimento básico da
antropologia há um século. A forma como ela é vista hoje, isto
é, como uma imersão no universo social e cosmológico do
‘outro’, é relativamente recente; ela data da década de 20. [...]
Antes dos anos 20, os antropólogos -- ou melhor, fisiologistas,

NÚCLEO COMUM 33
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psicólogos experimentais, linguistas -- se deslocavam até as


sociedades primitivas objeto de seus interesses para coletar
dados, mas num contexto evolucionista, em que dominava o
que hoje chamamos de ‘antropologia de gabinete’, já era
bastante revolucionário sentarem-se a uma mesa, geralmente
na varanda de um oficial de colônia ou missionário, ou num
convés de navio em trânsito local, e convocar os nativos que,
enfileirados, esperavam sua vez para fornecer os dados
requisitados.” (PEIRANO, M.: 1995, p.4)
Há uma correlação entre a crítica dos autores clássicos da Antropologia aos
autores da chamada Antropologia evolucionista e os diferentes métodos de
observação e compilação dos dados utilizados pelos evolucionistas e pelos autores
clássicos.
Muitos dos antropólogos evolucionistas são conhecidos como “Antropólogos
de Gabinete”, nome que se refere ao modo como delineavam suas pesquisas e
também as suas fontes de dados sobre os diferentes povos que estudaram. Os
antropólogos de gabinete são chamados assim pelo fato desses autores terem
compilado e comparado vários dados recolhidos por viajantes, missionários e
cronistas e também pela forma como os conseguiam ter contato com os povos
pesquisados. Essa definição contém algumas controvérsias, já que o próprio Lewis
Morgan encontrou-se com os Iroqueses, povo nativo norte-americano, mas a
definição não se sustenta somente pelo fato de que, ao invés de utilizarem dados
recolhidos por viajantes e cronistas, Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, Ruth
Benedict, Malinowski, Margareth Mead, Lévi-Strauss foram autores que fizeram uma
espécie de imersão no universo dos povos por eles pesquisados.
A antropologia de gabinete e a antropologia que parte de uma pesquisa em
campo, se opõem também pela forma como olham para a realidade sociocultural
analisada e pelo modo como constroem suas perguntas iniciais. Vejam que método
e teoria não se apartam na antropologia, como também não se apartam em outros
campos de conhecimento. Na citação inicial, Mariza Peirano nos diz que muitos
autores chegaram a encontrar-se com povos nativos para recolherem dados que
nutririam suas pesquisas sobre as características culturais e sociais desses grupos,

NÚCLEO COMUM 34
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mas de forma muito distinta à maneira como Malinowski ou Evans-Pritchard


procederam com os povos que estudaram.
A pesquisa de campo como é hoje utilizada pela Antropologia desenvolveu-se
como método e premissa do olhar antropológico pelos estrutural-funcionalistas
ingleses, dentre eles, Bronislaw Malinowski. Para os autores estrutural-
funcionalistas, o objeto da antropologia são as relações sociais que explicam e
delimitam o pertencimento dos sujeitos em grupos social e culturalmente
diferenciados, considerando que cada grupo tem sua estrutura de relações sociais
que o permite sobreviver no tempo e ter sua própria história. São esses
pressupostos que orientam esses autores a considerarem o trabalho de campo
como uma das principais metodologias do pensamento antropológico e que
contribuem para que a chamada “etnografia” se torne um modelo da escrita e da
pesquisa antropológica moderna.
Muitas vezes, o trabalho de campo é confundido com um método de contato
direto com o contexto analisado, com visitas aos universos sociais estudados. No
entanto, o trabalho de campo que sustenta a escrita etnográfica específica da
antropologia segue intuitos bastante específicos.
Diferentemente dos antropólogos que enfileiravam seus informantes e os
inquiriam sobre diferentes temas recortados previamente, Malinowski funda uma
maneira de conceber a pesquisa antropológica que se pauta mais na observação e
vivência cotidiana com os povos estudados que nessa forma de inquirir os sujeitos
sobre questões que muitas vezes só estão na cabeça do pesquisador. Para
Malinowski, o trabalho de campo na Antropologia depende de um pressuposto
fundamental: para que entendamos estruturas sociais e significados produzidos
pelos grupos observados é preciso que convivamos com esses povos, que levemos
em consideração, antes de qualquer questão filosófica ou política essencial, aquilo
que os antropólogos chamam de “ponto de vista do nativo”.
Preso nas ilhas Trobriand, no Pacífico, e impossibilitado de retornar à Europa
durante o período da Primeira Guerra mundial, Malinowski conviveu durante anos
com os nativos dessas ilhas, observando e compartilhando atividades cotidianas.
Aprendeu a língua nativa, conviveu com ritos de troca, de casamento, da vida
religiosa, sexual e política dos Trobriandeses, construindo uma visão geral sobre os

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diferentes aspectos da estrutura social e cultural desse povo que foi descrita em
diferentes livros, dentre eles, Argonautas do Pacífico Ocidental, que ficou famoso
por descrever o cerimonial de trocas entre as ilhas, chamado de Kula.
Outro antropólogo que buscou conviver com os grupos que pretendia estudar
e descrever o “ponto de vista nativo” foi Evans-Pritchard, que viveu entre os Nuer e
os Azande, povos da África Central. Assim como Malinowski, Evans-Pritchard
descreveu o modo de vida, a cultura e os diferentes aspectos que constituem as
estruturas sociais desses povos em suas monografias, dentre elas Os Nuer e
Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande.
Os trabalhos escritos por esses autores têm em comum mais do que o fato
deles terem vivido com os povos que estudaram: eles procuram descrever a
estrutura social desses grupos não somente abstraindo as formas como se
relacionam socialmente e constroem suas instituições culturais e sociais, mas
buscando compreender o valor e o significado que esses povos dão para tais
instituições. Não é aleatório o fato do livro Argonautas do Pacífico Ocidental partir da
descrição e interpretação das cerimônias de troca entre as ilhas ou do livro Bruxaria,
Oráculos e Magia entre os Azande descrever a bruxaria como característica especial
da sociedade Azande. Descrever a cultura e a sociedade de um povo a partir da
pesquisa de campo na Antropologia é levar em consideração aquilo que os grupos
estudados falam sobre si próprios, aquilo para que dão importância, é levar em
consideração como eles próprios falam de si. Isso significa que o trabalho de campo
participante depende de um olhar de dentro para fora e do domínio dos códigos para
a compreensão dos significados que os sujeitos dão para suas próprias ações.
Vivendo com os habitantes das ilhas Trobriand, Malinowski notou que as
atividades econômicas de troca eram como pontos de confluência das atividades
políticas, religiosas, de parentesco, por isso sua monografia sobre a estrutura
sociocultural dos Trobriandeses leva em consideração a importância dessas
atividades para o povo local. Da mesma forma, Evans-Pritchard nota que a bruxaria
rege todas as relações sociais, políticas, econômicas, culturais dos Azande, sendo
preocupação recorrente do cotidiano desse povo e, por isso, escolhida como tema
para descrever sua estrutura sociocultural.

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A contribuição desses autores para o método e o olhar antropológico no


contato com as culturas, grupos e povos estudados é justamente notar que os
aspectos que podem caracterizá-los partem da própria forma como os sujeitos se
reconhecem como parte de um grupo, de uma cultura ou de uma sociedade. O
trabalho de campo na Antropologia hoje é um exercício de compreender a
terminologia, as ideias, as filosofias, os significados e olhares daqueles que estamos
estudando. Por isso os antropólogos têm um pouco de receio quando a “etnografia”
é usada como termo genérico para expressar trabalho de campo e quando trabalho
de campo é usado somente como método de “estar lá”, dentre aqueles que
queremos estudar: para o antropólogo, não basta “estar lá” ou descrever aspectos
culturais, conceitos ou linguagens, mas sim é preciso transferir-se para a realidade
observada, “pensar como eles”, para compreender o que estão querendo dizer.

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Aula 05_Antropologia Urbana

Depois de estudarmos alguns conceitos e problemas fundamentais da


Antropologia e também seus passos iniciais até a definição do método etnográfico,
vamos pensar em algumas áreas e problemas específicos dos estudos
antropológicos, como a questão urbana, a economia e a política, o tema do gênero e
as questões que envolvem a biologia e a forma de organização familiar. Comecemos
com a Antropologia Urbana.
“O problema das áreas pobres e degradadas, dizem alguns, é
que são comunidades desorganizadas. No caso de Cornerville,
esse diagnóstico é extremamente equivocado. É claro que há
conflitos no distrito. Os rapazes de esquina e os rapazes
formados têm diferentes padrões de comportamento e não se
entendem. Há um choque entre gerações. Com o suceder das
gerações, a sociedade encontra-se em estado de fluxo – mas
até esse fluxo é organizado. O problema de Cornerville não é a
falta de organização, mas o fracasso de sua própria
organização social em se interconectar com a estrutura da
sociedade a sua volta.” (WHYTE, 2005, p. 276)
O tema da identidade e o da Antropologia Urbana muitas vezes se cruzam,
mesmo essas áreas sendo independentes. Muitos antropólogos preocupam-se com
os grupos que se formam no universo urbano, mas não somente com isso. Por sua
vez, os estudos sobre o reconhecimento de identidades pode abarcar tanto o
universo urbano quanto o universo rural. A escolha por cruzar esses dois temas,
portanto, refere-se ao fato de evocarem problemas socioculturais em comum e
também porque falaremos um pouco sobre um autor importante para a Antropologia
Urbana, que encontrou o problema da identidade em seus estudos sobre a
comunidade italiana em um bairro de periferia nos EUA: William Foote Whyte (1914-
2000).
É importante dizer que assim como no caso de outros temas que são
estudados pela Antropologia, o tema da identidade evoca diferentes embasamentos

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teóricos. Vamos explicitar desde o começo qual é o embasamento que seguimos


nessa disciplina, relembrando de uma das principais tarefas da Antropologia: a
desnaturalização, a desconstrução.
O estudo das identidades que os grupos assumem para se diferenciarem de
outros não parte de características biológicas ou que outros grupos reconhecem a
partir de caracterizações externas. O que isso quer dizer? Quer dizer que quem
define quem é índio, muçulmano, italiano, punk ou feminista não somos nós, mas
sim aqueles que se identificam com essas identidades. Isso quer dizer também os
grupos negociam os elementos culturais que definem suas características de grupo.
Partimos da conclusão de que a cultura é mais do que o conjunto de traços
culturais, ou seja, não se confunde com folclore e, além disso, quem diz se ela está
em mudança ou não são aqueles que pensam e agem segundo uma cultura e não
aqueles que julgam a cultura pela relação entre grupos de poder.
Um exemplo é a cultura indígena, embora saibamos que tratamos de povos e
culturas distintas. O senso comum sobre a cultura indígena se confunde muito com
uma visão folclórica que a sociedade brasileira tem sobre a participação do índio na
constituição da identidade nacional. Crescemos aprendendo que os índios são
aqueles dos quadros de Debret e dos livros de história que falam sobre o Brasil
colonial. No entanto, hoje em dia há etnias querendo reconhecimento de sua
identidade, seus direitos e suas terras. Vejam, não cabe a nós julgarmos quem é ou
não é índio a partir da visão que temos sobre o que é ser índio. Como estudiosos da
vida social e cultural e como profissionais que atuam nesse universo nos cabe
entender os contextos que permitem a esses grupos hoje reconhecerem identidades
distintas.
Durante muito tempo na história política do país, ser índio era desvantagem
cultural, política, social. Hoje ainda há muito preconceito. Com a constituição de
1988, no entanto, abriu-se a possibilidade para que muitas etnias pudessem se fazer
vivas, pudessem aparecer e reconhecer seus direitos. Ser índio, perante a lei e a
sociedade de hoje é muito diferente de ser índio perante a lei e a sociedade de
ontem. O que isso nos diz sobre nossa teoria sobre identidades?
Os grupos indígenas e não somente eles, mas populações tradicionais,
quilombolas, minorias culturais e étnicas, todos esses grupos ressurgiram na

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sociedade brasileira a partir dos anos de 1990. Com a democracia, abriu-se a


possibilidade desses grupos voltarem a reconhecerem-se enquanto grupo. A
identidade parte do interior do grupo e é uma negociação de elementos culturais que
fundam maneiras de agir e de pensar distintas. Essas maneiras de pensar e agir
unem grupos de acordo com interesses comuns e também os orientam sobre como
se relacionar com outros grupos. Em eventos e situações sociais, portanto, os
grupos acionam sua memória cultural e reconhecem-se enquanto tais. Isso acontece
em diferentes espaços dentro da sociedade, dentro do universo rural ou urbano.
Pensando nas identidades no universo urbano, podemos nos referir ao livro
Sociedade de Esquina, de William Foote Whyte.
William Foote Whyte não era antropólogo de formação, no entanto, foi um dos
primeiros autores a realizarem etnografias entre grupos urbanos e ficou conhecido
justamente por seus trabalhos etnográficos realizados em uma comunidade de
imigrantes italianos na periferia de Boston quando ainda era pesquisador e
estudante em Harvard.
A maneira como o autor desenvolveu seus estudos e também como
descreveu a realidade de Cornerville (nome fictício para a comunidade) permitiu com
que o livro dialogasse não somente com antropólogos e sociólogos, mas também
com economistas, jornalistas e políticos. A intenção do autor era mostrar que os
problemas sociais, da maneira como são tratados por instituições públicas e
privadas, não são resolvidos porque simplesmente não são compreendidos. Assim
como outras comunidades norte-americanas periféricas, Cornerville se sustentava
sobre bases culturais e sociais muito específicas e o autor se propôs a estudá-las de
perto. A atualidade dessa proposta é impressionante e importantíssima para
profissionais que se dedicam principalmente a pensar a relação entre grupos sociais
e instituições no universo da cidade. Para o autor, as instituições de assistência e
mesmo as políticas de combate ao crime não eram eficazes porque não
contemplavam toda a complexa lógica de relacionamentos que os moradores
empreendiam cotidianamente e, sobretudo, porque não atingiam os diferentes
subgrupos locais.
O livro se chama Sociedade de esquina justamente porque o autor notou a
importância da estrutura dos grupos diferenciados, dentro da própria comunidade

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italiana de Cornerville. Whyte começa seu contato com os grupos de poder pelos
garotos das esquinas, as pequenas gangues de garotos que faziam serviços para os
gangsters ou que simplesmente se dedicavam a atividades ilegais (como as apostas
e jogos de esquinas). Sabendo que sua entrada na comunidade deveria partir de um
convívio cotidiano, o autor mudou-se para o bairro, sendo acolhido por uma família
local.
Depois de anos morando em Cornerville, Foote Whyte notou uma estrutura
muito complexa de relações entre gerações e entre subgrupos. Os garotos das
esquinas eram de uma primeira geração de imigrantes italianos nascida na América.
Os garotos que frequentavam círculos sociais dos clubes e faculdades também. Os
mais velhos ainda viviam mais isolados do universo cultural americano. O conflito de
gerações levava os garotos para as ruas e para as instituições legais ou ilegais que
os permitia ter uma vida americanizada. Por sua vez, a estrutura de atividades
ilegais se sustentava pelo carisma e pelo poder daqueles que se envolviam na
administração geral das atividades ilegais, carisma e poder que era reconhecido
pela comunidade. Toda a estrutura inferior sustentava os gangsters e muitos deles
limpavam sua imagem com o poder que exerciam entre a polícia e, inclusive, na
política.
Reconhecido como um bairro italiano violento de periferia, Cornerville se
mostrava muito mais complexo pelas descrições de Whyte. Primeiramente, as
instituições assistenciais não alcançavam os garotos das gangues, somente aqueles
que buscavam ascensão social pela educação. Acontece que todo o sistema de
operações ilegais era sustentado justamente pela juventude não assistida. Além
disso, dentro da comunidade esses jovens não necessariamente representavam um
papel negativo, pelo contrário, muitos deles agiam mais como italianos que os
jovens formados. Por outro lado, eram justamente as instituições políticas e policiais
que permitiam que os grandes chefões das atividades ilegais continuassem agindo
na ilegalidade ou na legalidade. Todo o sistema dependia dos garotos das esquinas
e se retroalimentava na política.
Com suas análises, Whyte mostrou a economistas que a sociedade e a
cultura se organizam em relação à pobreza. Mostrou aos políticos e assistentes
sociais que as políticas públicas não alcançavam a estrutura de relações que

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sustentam a própria pobreza ou dependência de alguns grupos sociais. Sobretudo,


mostrou aos antropólogos e sociólogos que a negociação da identidade de grupo
(imigrantes italianos) serviu aos moradores do bairro como elemento cultural de
reconhecimento de igualdade entre os membros tão diferentes entre si. Os garotos
das esquinas trabalhavam para gangsters italianos e políticos italianos eram eleitos
pela população do bairro. Esse uso da identidade mostrava justamente como um
grupo marginalizado se organizou para se relacionar com uma sociedade mais
ampla, que determina as regras de maneira diferente.
Pensem em periferias urbanas contemporâneas. O trabalho do autor não se
mostra muito interessante àqueles que querem trabalhar com esses grupos
diferenciados? Whyte se propôs a entender um grupo de imigrantes italianos que
moram na periferia como um grupo que se organiza segundo regras próprias e
encontrou o fator geracional e o fator da hierarquia como pontos fortes da definição
das relações entre os moradores. Além disso, encontrou a solidariedade entre
descendentes de italianos que buscavam sobreviver em uma cultura diferente da de
seus pais. Esse tipo de estudo cabe muito bem a cidades cosmopolitas e os
subgrupos que acolhem.
Esse trabalho é um exemplo de como o universo urbano pode ser objeto da
Antropologia. Há toda uma tradição de estudos de Antropologia Urbana, mas
podemos dizer que as preocupações dos autores são muito semelhantes às de
Whyte: mostrar aquelas relações culturais e sociais que fogem às definições
externas sobre um grupo e que fogem a visões generalizantes (macroeconômicas,
por exemplo). Nesse ponto, os estudos sobre identidades e sobre o universo urbano
se identificam e se cruzam.

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Aula 06_Antropologia Econômica e Política

Nesta aula, daremos seguimento à proposta de apresentar temas que são


transversais a diferentes campos do conhecimento e mostrar como a Antropologia
olha para eles. Mais especificamente, vamos pensar nas contribuições da
Antropologia para a economia e a política.
1. Antropologia Econômica
“Os mais primitivos povos da terra têm poucas posses, mas
não são pobres. A pobreza não é uma certa relação de bens,
nem simples relação entre meios e fins; acima de tudo, é
relação entre pessoas. A pobreza é um estatuto social,
invenção da civilização. Cresceu com a civilização, como
relação tributária – que pode tornar os agricultores mais
suscetíveis às catástrofes naturais do que qualquer
aldeamento de inverno do esquimó do Alasca”. (SAHLINS:
1978, p.42).
Pensaremos na antropologia da economia a partir de dois textos importantes
de Marshall Sahlins. Além de destacar-se devido aos seus estudos que unem
Antropologia e História, Sahlins também é reconhecido como um autor que explorou
a própria sociedade capitalista como tema para análises antropológicas,
inaugurando ao lado de autores como Edward Said (1935 – 2003) uma investigação
sobre os princípios culturais que regem as relações econômicas, de trabalho,
políticas e sociais do homem no universo capitalista.
Antes de tornar-se um defensor de uma Antropologia culturalista e mesmo de
começar os estudos que deram origem ao livro Ilhas de História, Sahlins dialogou
com autores que viam o trabalho e a economia como pontos cruciais do estudo da
história da humanidade e da própria sociedade contemporânea no artigo A primeira
sociedade de afluência.
Quando estudamos o Evolucionismo Cultural, falamos que muitos dos autores
evolucionistas pensavam a história humana levando em consideração a evolução da

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cultura material e das relações de trabalho. Apesar de a Antropologia ter se


distanciado conceitualmente desse tipo de estudo, ele ainda continuou a existir,
desenvolvendo-se, sobretudo, como complemento de análises econômicas que
investigam a eficiência da economia e do trabalho ao longo da história humana.
Para esses autores, a história do trabalho e da economia humanos estava
marcada por uma sucessão de processos de aperfeiçoamento da produtividade e,
sobretudo, de aumento da energia capaz de ser produzida. Nesse sentido, o período
marcado pela transição de uma economia essencialmente coletora e caçadora para
uma economia agrícola marca para esses autores um processo de desenvolvimento
de formas produtivas mais eficazes, por exemplo.
Em A primeira sociedade de afluência, Sahlins desmontará esse tipo de
argumentação levando em consideração não somente a quantidade de energia
produzida, mas também a quantidade e a qualidade do trabalho envolvidas na
produção, buscando criticar àqueles que consideravam povos caçadores e coletores
contemporâneos como uma espécie de “economia da idade da pedra”. Comparando
dados sobre o uso do tempo de trabalho e as quantidades de energias gastas e
consumidas, o autor critica os estudos comparativos que declaram maior eficiência
das sociedades agrícolas em relação a populações caçadoras e coletoras e propõe
que o problema desse preconceito se ancora em uma predefinição advinda da forma
como muitos autores pensaram o homem e o trabalho. Essas considerações
começam a esboçar um posicionamento antropológico que Sahlins desenvolverá
com maiores detalhes em Cultura e Razão Prática: para o autor, o trabalho também
é aspecto da cultura humana, portanto, a forma como a sociedade o pensa pode ser
objeto da Antropologia.
Segundo o autor, “há duas formas possíveis de afluência. As necessidades
podem ser ‘facilmente satisfeitas’, seja produzindo muito, seja desejando pouco”
(idem: p. 8). Para Sahlins, pensar que as necessidades podem ser satisfeitas de
diferentes maneiras significa que o problema dos estudos sobre populações
coletoras e caçadoras não deve encerrar-se na constatação ou na investigação de
dados que contabilizem a capacidade de produção energética das atividades
realizadas por elas, mas também se deve prestar atenção a como cada cultura
imprime significado ao seu próprio trabalho e o sentido qualitativo da produção.

NÚCLEO COMUM 44
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Esses estudos evolucionistas da economia tratavam algumas populações,


como os povos nômades africanos ou australianos, por exemplo, como uma espécie
de resquício de um processo primitivo da história da humanidade e, mais do que
isso, os relacionavam significativamente a uma concepção de “pobreza paleolítica”
ao pressuporem a ineficiência produtiva dos caçadores e coletores. Para o autor, ao
pensarmos dessa maneira, estamos projetando a imagem do homem burguês e de
como ele pensa o trabalho em outros povos, ou, em suas palavras: “tendo equipado
o caçador com impulsos burgueses e ferramentas paleolíticas, julgamos sua
situação desesperadora” (idem: p.10). O que isso significa, em termos
antropológicos e econômicos? Significa que a economia dos povos caçadores e
coletores consome menos tempo de trabalho para a obtenção de quantidades de
energia que consideram satisfatórias, partindo de uma escolha cultural primordial
pelo tempo de descanso e não pela alta produtividade: quantitativamente satisfatória
e qualitativamente mais eficaz que a própria economia capitalista quando levamos
em consideração a exploração do trabalho. Tal crítica nos direciona para outra forma
antropológica de pensar a própria economia que será desenvolvida por Sahlins no
livro Cultura e Razão Prática.
O autor desmonta uma argumentação economicista evolucionista levando em
consideração o lado qualitativo da produção e não somente o quantitativo e, no livro
Cultura e Razão Prática, investiga os pressupostos filosóficos que regem as leituras
econômicas em geral. Desnaturalizando alguns conceitos e mostrando sua origem
cultural e social, Sahlins dará o primeiro passo para que possamos estudar a própria
economia capitalista como uma construção cultural, portanto, histórica e passível de
críticas.
Sahlins utiliza o conceito antropológico de cultura para pensar nos limites das
“teorias da práxis”, ou seja, das teorias que se pautam na ideia de que as culturas
humanas são formuladas a partir da atividade prática (da modificação da natureza)
e, sobretudo, a partir do interesse utilitário que existiria por trás da prática. Para o
autor, é a cultura que define todas as propriedades que caracterizam o homem,
sendo, portanto, responsável pelo significado da utilidade e da necessidade. Em
outras palavras, é a cultura que define os termos da utilidade que a produção e as
próprias mercadorias têm, logo, não faz sentido pressupor que todos os humanos

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possuem a mesma relação presente nas formações capitalistas com a natureza e


com o trabalho.
Essas críticas se direcionam, principalmente, à economia política liberal, mas
também a certa tendência influenciada pelo pensamento marxista que pressupõe a
relação do homem burguês com o trabalho como motor da própria construção da
humanidade. Nesse sentido, a própria filosofia ocidental e moderna se instaura
partindo de pressupostos economicistas. Para o autor, “A singularidade da
sociedade burguesa não está no fato de o sistema econômico escapar à
determinação simbólica, mas em que o simbolismo econômico é estruturalmente
determinante” (idem: p.209). O autor considera, portanto, que essa preocupação
com a produção, com o trabalho e com a economia é uma preocupação do homem
moderno e capitalista e, sem perceber, muitos filósofos e outros pensadores
acabaram pensando o humano a partir dela.
Notamos que a Antropologia nos revela que conceitos e preceitos são
culturais e históricos, portanto, essa sua origem deve ser levada em consideração
quando estudamos grupos sociais. Pensando na atuação dos profissionais que
trabalharão com grupos socioculturais diferenciados ou com situações que nos
forçam a investigar as diferenças entre contextos sociais, um olhar da Antropologia
sobre a economia nos lembra, por exemplo, que dentre populações rurais
tradicionais as relações com a terra não são as mesmas relações econômicas
pressupostas pelo uso capitalista dela. As relações familiares, os usos tradicionais e
demais fatores influenciam na relação das populações com a produção e a
Antropologia pode nos ajudar a acessar essas peculiaridades, nesse caso ou em
muitos outros, como nas relações culturais que regem o sistema comercial informal
ou as atividades econômicas de diferentes grupos dentro do universo urbano, por
exemplo.
2. Antropologia política
A Antropologia esteve preocupada com a política desde o início, como no
caso dos estudos clássicos de Evans-Pritchard e Radcliffe-Brown sobre povos
africanos e sobre relações de parentesco. Assim como a Antropologia Econômica, a
Antropologia Política nos remete às primeiras preocupações antropológicas e às
críticas dos antropólogos ao evolucionismo cultural. Além disso, assim como a

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Antropologia Econômica, a Antropologia Política foi retomada por estudos


contemporâneos e tornou-se, inclusive, linha de pesquisa em muitas universidades.
“A abordagem da política pela antropologia pode ser definida
de uma forma simples: explicar como os atores sociais
compreendem e experimentam a política, isto é, como
significam os objetos e as práticas relacionadas ao mundo da
política. A compreensão de grupos específicos, em
circunstâncias particulares, leva a comparações e diálogos com
a literatura sobre contextos sociais mais amplos.” (KUSCHNIR,
2007, p. 163).
A partir da citação acima, notamos que assim como os demais aspectos da
vida social, no caso da política, a Antropologia contemporânea tem se dedicado a
observar a forma como diferentes grupos socioculturais pensam sobre um tema e
agem em relação a ele.
A Antropologia Política, no entanto, nasce em um contexto um pouco distinto.
Os autores clássicos preocupavam-se com temas universalizantes, já que,
lembremos, estavam interessados em combater as comparações evolucionistas e
em mostrar que a humanidade poderia ser encontrada na diversidade. A
preocupação de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, ao estudarem como povos
africanos organizavam-se enquanto unidades políticas, direcionava-se para o
conceito de estrutura social e, além disso, para a preocupação em mostrar aos
colonizadores que existem organizações políticas complexas dentro de universos
culturais e sociais que não compartilham a estrutura política do Estado moderno e
suas instituições. Esses primeiros estudos já mostram uma proximidade entre a
Antropologia e a política e, mais do que isso, mostram que o estudo da cultura e das
relações sociais pode explicar relações políticas estabelecidas ou idealizadas,
expressando que a política também tem suas origens sociais, culturais e, sobretudo,
históricas.
Pierre Clastres (1934-1977) é considerado um dos principais autores da
Antropologia Política, ao lado de outros autores como Edmund Leach (1910-1989),
que escreveu o clássico Sistemas Políticos da Alta Birmânia. Clastres destacou-se
dentro da área quando se propôs não somente a mostrar que povos distintos têm a

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capacidade de criar sistemas políticos e relações políticas complexas e eficientes


para a manutenção da unidade social, como nos mostraram Evans-Pritchard e
Radcliffe-Brown, mas também em mostrar que muitos dos nossos conceitos
estabelecidos sobre política podem ser criticados porque são fruto de uma
sociedade específica, mas acabaram sendo universalizados como característica
“humana”. O maior exemplo dessa crítica está expresso no livro A Sociedade contra
o Estado.
Há muitos conceitos e pressupostos da política clássica que se tornaram
verdades absolutas para muitos autores e, inclusive, tomaram o imaginário da vida
cotidiana, do senso comum. Muitas vezes já ouvimos que “o homem é mau por
natureza” ou mesmo que “poder é igual a dominação”. Essas ideias dispersas no
universo do senso comum e também incorporadas de uma maneira ou de outra por
muitas análises políticas e econômicas, regem as reflexões de autores clássicos da
filosofia política, como Thomas Hobbes (1588-1679). A concepção idealizada de um
líder político poderoso, detentor da violência expressa no livro Leviatã serve até hoje
à popularização da ideia de que o Estado unificador e detentor do poder de controlar
toda a sociedade é necessário porque os homens sem instituições que o regulem
vivem em situação caótica e violenta.
Na concepção de muitos autores clássicos da política, o homem é
individualista por natureza e, por isso, a vida em sociedade só é possível se houver
a regulamentação e regulação por parte de uma instituição poderosa e unificadora.
Essas concepções também são datadas e servem a um momento na história política
da Europa em que diferentes grupos e territórios organizavam-se em busca de
soberania e de poder político centralizado.
Outra concepção comum e estigmatizada sobre as relações políticas é a de
que o poder sempre se expressa como a dominação de um sobre outro ou que
poder sempre implica em imposição e hierarquia. Na verdade, muitos autores da
própria política contemporânea criticam essa definição de poder, considerando que
ele pode expressar a ação positiva da organização popular contra a própria
dominação, como nos diz Antonio Gramsci (1891-1937) ou mesmo ser muito mais
complexo que uma simples relação de dominação direta, como nos diz Michel
Foucault (1926-1984).

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Clastres, assim como outros antropólogos que estudaram povos nativos


americanos, viu situações e relações políticas muito distintas dentre índios
americanos. O livro A Sociedade contra o Estado é dedicado à etnografia dessas
relações políticas e, consequentemente, a uma crítica contundente à razão ocidental
e às suas concepções políticas intrínsecas. O autor parte da observação do papel
das autoridades e dos chefes indígenas para construir sua crítica. Os chefes
indígenas na América do Sul são como porta-vozes da sociedade que representam
e a autoridade política é diluída dentre os membros do grupo. O chefe indígena não
é aquele que detém o poder sobre a vida dos demais membros do grupo, mas na
verdade é por eles controlado, atuando como um comunicador e não como
autoridade jurídica, legislativa ou executiva. Clastres também desmonta o argumento
de que esse tipo de relação política só é possível em sociedades muito pequenas.
Há povos indígenas tão antigos quanto os Incas ou Maias na Amazônia
brasileira e peruana, por exemplo, que estabelecem esse tipo de relação com o
chefe. São grupos populacionais numerosos dispersos pela floresta: etnias
numerosas organizadas em pequenos grupos descentralizados que em situações
políticas de crise se unem em prol do grupo, mas assim que a situação se dissolve,
se dissolve também esse estado de centralização. Há grupos indígenas, como os
Ashaninka, que sobreviveram à ocupação do império andino e mesmo dos
colonizadores e hoje ainda se organizam em grupos dispersos pela floresta.
Segundo Clastres, os chefes não detêm o poder porque a sociedade não
permite. Essas situações de guerra nos dizem que esses povos conhecem o poder,
portanto, não são ignorantes quanto a seus perigos. Pelo contrário, não deixam
justamente que o poder fique centralizado na figura do chefe porque esse é um
pressuposto cultural da sociedade contra o poder que pode se acumular nas mãos
de um só. Esse tipo de “medo” da sociedade em relação ao poder centralizado se
expressa, por exemplo, nos mitos Guarani que falam sobre os muitos contra o único.
O poder dentre as sociedades indígenas está disperso entre todos aqueles
que pertencem ao grupo, portanto, quando a autoridade e o poder de deliberar sobre
os outros é centralizado na figura de uma só pessoa, os índios se organizam contra
essa figura. Essa é uma característica encontrada dentre povos nômades e mesmo

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dentre grupos intimamente presos a terra. Portanto, não é a autoridade política que
explica, tão pouco, a sedentarização.
A Antropologia Política de Pierre Clastres, portanto, nos diz que não
necessariamente as relações políticas são expressas por essa visão de que o ser
humano é mau ou individualista por natureza e por isso precisa de uma autoridade
que oriente sua vida em sociedade. Tão pouco é uma característica universal ao
poder essa capacidade de instaurar-se perpetuamente criando desigualdade,
hierarquia e dominação. Essa é a visão de certa sociedade sobre o poder, o que
implica que não necessariamente as relações políticas implicam em dominação.
Nesse ponto, retornamos ao que nos disse Karine Kurschinir: “A abordagem
da política pela antropologia pode ser definida de uma forma simples: explicar como
os atores sociais compreendem e experimentam a política” (idem). A Antropologia
nos ensinou que cada grupo experiência a política de forma distinta e que qualquer
tomada de decisão quanto à vida política de uma população deve partir dessa
experiência. Muitas políticas públicas experimentaram o fracasso justamente porque
se sobrepuseram a alguns grupos os ideais políticos de sua própria sociedade:
cooperativas, reservas, políticas de assistência não foram eficientes porque não
alcançaram os significados locais para as relações políticas. Isso vale não somente
para populações tradicionais, populações indígenas, povos rurais, mas também
grupos urbanos, marginalizados e periféricos.

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Aula 07_Antropologia de Gênero

Assim como a Antropologia Política e a Antropologia Econômica, a


Antropologia de Gênero dialoga com os primeiros autores que tecem suas críticas
ao evolucionismo e, ao mesmo tempo, nasce como uma crítica a alguns de seus
pressupostos.
Primeiramente, vamos pensar um pouco mais sobre o que é o gênero. Esse
tema é bastante complicado, sobretudo porque os estudos de gênero só se
assumiram enquanto tais recentemente, apesar de muitas discussões anteriores
terem sido profícuas para a construção de uma Antropologia de Gênero.
Gênero é uma categoria variável e plural que não pode ser confundida com
sexo, com categorias sexuais. Embora hoje em dia se discuta, dentro dos estudos
filosóficos e antropológicos, que o próprio conceito de sexo é antes de tudo um
conceito de gênero, podemos dizer que, no senso comum, as categorias sexuais
são as características biológicas sexuais que definem as diferenças entre homens e
mulheres. Lembremos, no entanto, que a Antropologia se distancia dos estudos
sobre as características e origens biológicas do humano e, no caso dos estudos de
gênero, também não podemos resumir as diferenças de gênero a partir de
determinações biológicas. Seria, portanto, a Antropologia de Gênero uma
antropologia das diferenças culturais entre homens e mulheres, ou seja, uma
preocupação sobre como a sociedade e a cultura gerenciam e classificam as
relações entre homens e mulheres? No início sim, porém, hoje os estudos de gênero
são mais do que isso. Acompanhemos um pouquinho da história dos estudos
antropológicos de gênero para entendermos melhor.
Os primeiros estudos sobre as relações de gênero são os estudos de
parentesco. O próprio Lewis Morgan já havia citado tal relação quando afirmou que
na história evolutiva da humanidade, os homens dominaram as mulheres e as
utilizaram como uma espécie de moeda de troca, além de serem os homens aqueles
historicamente responsáveis pela força política e social. Segundo os evolucionistas,
portanto, historicamente e geneticamente, a história das relações de gênero é

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marcada pela dominação de homens sobre mulheres e, além disso, essa dominação
foi necessária ao desenvolvimento da civilização como a conhecemos.
Mais tarde, inspirado em Morgan, Friedrich Engels (1820-1895) escreve A
origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, livro em que estuda a
relação entre trabalho e civilização dentro da história evolutiva da humanidade.
Engels discorda de Morgan no que se refere à participação das mulheres na
construção da civilização, dizendo que a fixação à terra depende eminentemente
das mulheres e que é muito mais provável que as primeiras organizações familiares
e sociais tenham sido matriarcados. Com essa argumentação, Engels ganhou a
atenção dos estudos feministas na segunda metade do século XX. São os estudos
feministas os primeiros a considerarem especificamente uma Antropologia de
Gênero.
O livro que inaugura essa preocupação das feministas em questionar as
relações assimétricas entre homens e mulheres, ou o lugar da mulher na sociedade,
é O segundo Sexo, da filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986).
A autora foi uma das primeiras a destacar, em um estudo minucioso e
interdisciplinar, que a noção de feminilidade naturalizada como característica
genética da mulher é, na verdade, uma condição cultural e social inventada, ou,
como diriam os antropólogos, cultural e histórica. A autora nos mostrou que dentro
da sociedade moderna, a assimetria suposta entre homens e mulheres instaura-se
como natural e esse pressuposto cultural se expressa inclusive nos estudos
filosóficos, biológicos e antropológicos, como é o caso de Morgan. Além disso,
segundo Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, ou seja, é a sociedade
que molda ao longo da vida aquelas características que serão consideradas e
requisitadas como características essenciais a uma mulher.
Estudos feministas foram, portanto, os primeiros a questionarem as
pressuposições existentes nas características de gênero e, com isso, começaram
uma série de estudos que nos permitem hoje não somente relativizar as relações
entre mulheres e homens, mas também relativizar a relação da sociedade com
pessoas que fogem às classificações gerais, como os homossexuais ou transexuais.
Por algum tempo, devido a essa influência, os estudos de gênero foram
praticamente marginalizados como estudos de mulheres sobre mulheres, já que as

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primeiras preocupações com as origens socioculturais das relações de gênero


expressavam a preocupação das feministas com as relações de poder entre homens
e mulheres. No entanto, essa ideia reducionista de que estudos de gênero são
estudos feministas se altera quando a Antropologia estruturalista e pós-estruturalista
se ocupa em estudar os mesmos temas que preocupavam as feministas, mas com
conceitos antropológicos.
Um dos livros mais importantes nessa linha é A Dominação Masculina, de
Pierre Bourdieu, que, de certo modo, recupera a argumentação existencialista de
Simone de Beauvoir de que a sociedade molda os corpos e mentes de homens e
mulheres e neles inscreve características de diferença, mas, além disso,
complementa tal argumento com críticas ao estruturalismo francês. Segundo
Bourdieu, os antropólogos estruturalistas franceses não levaram em consideração
um ponto importante quando relacionaram o conceito de estrutura às relações de
parentesco: que a troca e a comunicação essenciais à formação da sociedade são
assimétricas. Para Bourdieu, os estruturalistas desconsideraram o fato de que
homens se comunicarem através da troca de mulheres (casamento e parentesco)
implica uma relação de dominação.
O autor não nega o fato de que existam relações assimétricas entre homens e
mulheres em diferentes sociedades, mas critica a postura do estruturalismo em
tomar esse fato como universal e não o refletir como um problema sociológico e
antropológico em si. Bourdieu nos propõe, portanto, uma antropologia das relações
de gênero como essenciais também ao entendimento da dinâmica social e,
sobretudo, da própria definição das características que explicam a dominação. Em
suas etnografias com os Kabila da Argélia, por exemplo, o autor nota como o medo
e a restrição estão ligados a características femininas: tudo o que é perigoso ou
restrito no mundo dos Kabila é caracterizado como “feminino”. Essa definição é
cultural e nos remente aos lugares ocupados por mulheres e homens dentro dessa
sociedade, dentro dessa estrutura social.
Notamos, portanto, que os estudos de gênero começam a se aproximar mais
da Antropologia quando são pensados a partir de conceitos antropológicos como o
de estrutura social, o de habitus e mesmo a noção de estrutura dos antropólogos
franceses.

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Foi com os estudos de Michel Foucault, mais especificamente, que a


Antropologia de Gênero inaugurou sua face mais contemporânea. Foucault é um
autor polivalente, lido pelos historiadores, filósofos e antropólogos. Dentro da
Antropologia, muitos de seus livros são leituras obrigatórias em diferentes áreas.
Para aqueles que estudam relações de gênero, os volumes de A história da
sexualidade são essenciais.
Foucault é um autor de alta complexidade e, embora muitos de seus
argumentos e os conceitos que desenvolveu estejam presentes nas diferentes
discussões feitas em seus livros, devemos lê-los em suas particularidades. No caso
de A História da Sexualidade, a argumentação de que a preocupação com a
sexualidade não foi sempre a mesma dentro da história da sociedade ocidental nos
apresenta uma reviravolta nos estudos de gênero. Primeiramente, porque o autor
nos mostra que a classificação das sexualidades consideradas proscritas dentro da
sociedade ocidental dependeu de um longo processo de introjeção da culpa e de
criminalização das relações sexuais. Esse é um dos argumentos mais importantes.
O outro se refere à íntima relação entre a construção das relações de gênero e da
classificação das relações sexuais “corretas” com o desenvolvimento da ciência
moderna. A classificação dos gêneros e criminalização das relações sexuais
dependeu do desenvolvimento dos saberes modernos.
O que tudo isso quer dizer? Foucault nos mostra com estudos históricos
minuciosos, por exemplo, que a definição das próprias características sexuais
biológicas que classificam mulheres e homens é controversa, devido às diversas
exceções médicas amplamente catalogadas (diversas síndromes sexuais, como o
hermafroditismo, enumeram muitas exceções). Foi necessário ao homem moderno
classificar todas as exceções e regras referentes ao sexo biológico para a própria
definição do que é padrão e do que não é, portanto, não foi sempre natural pensar
no sexo quando queremos diferenciar homens de mulheres e o desenvolvimento do
saber médico e biológico colaborou com o estatuto de importância que as
características sexuais possuem hoje. O mesmo se pode dizer, segundo os estudos
do autor, sobre as sexualidades que são consideradas normais e as que são
consideradas anormais.

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Foucault volta os olhos da Antropologia de Gênero para outro ângulo quando


nos mostra como e porque a sexualidade e o sexo tornaram-se tão importantes para
a definição de papéis sociais dentro da sociedade moderna ocidental. Estudando a
história da sexualidade, Foucault desenha aspectos essenciais ao imaginário de
nossa sociedade: uma sociedade individualista em que a normatização dos
comportamentos corretos e incorretos é legitimada pelo saber científico.
Quantas vezes nos deparamos cotidianamente com o poder que a ciência
possui de construir verdades sobre as raízes de comportamentos? A genética
procura o gene da homossexualidade, da fraqueza feminina, da racionalidade
masculina, do comportamento agressivo humano, da hiperatividade da criança, da
depressão e a sociedade aguarda ansiosa pelos remédios que inibirão
comportamentos anormais, não é mesmo? Segundo Foucault, a legitimidade da
verdade científica, aliada ao poder do controle social, e da determinação do que é
normal e anormal, caracterizam o imaginário e o funcionamento da sociedade em
que vivemos.
A normatização, a importância da biologia e o controle social (pelo medo ou
disciplina) são características de uma sociedade em especial, portanto, não são
universais a todas as sociedades, não estão impressas na essência humana. O
estudo sobre a historicidade desse imaginário permite à Antropologia de Gênero
dedicar-se não somente às relações entre homens e mulheres, mas inclusive,
considerar os gêneros e sexualidades tidos como desviantes ou anormais como
parte integrante e importante de seus estudos.

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Aula 08_Antropologia Biológica e da Família

No bojo dos estudos de Foucault, finalizaremos nossa primeira unidade do


curso falando um pouco sobre um dos desdobramentos dos estudos de gênero: os
estudos sobre família e sobre biologia.
Os livros de Foucault discutem diferentes temas, como a história da
sexualidade, a história da loucura, a história das prisões e da clínica. Devido à
minuciosa pesquisa do autor e a escolha por uma construção textual bastante
específica, a leitura desses diferentes trabalhos muitas vezes parece nos indicar que
não há uma unidade na proposta teórica de Foucault. No entanto, para os
estudiosos da obra, podemos salientar alguns pontos que percorrem todos os
trabalhos.
Primeiramente, podemos dizer que o autor está preocupado com a formação
do imaginário da sociedade moderna capitalista e, nesse sentido, podemos repetir o
que já falamos anteriormente: segundo Foucault, a legitimidade da verdade
científica, aliada ao poder do controle social, e da determinação do que é normal e
anormal, caracterizam o imaginário e o funcionamento da sociedade em que
vivemos. A formação desse imaginário coincide com a formação de algumas
instituições, como o pensamento científico, o conhecimento médico, o controle
individual. Além disso, outro ponto importante que podemos citar quando falamos da
obra de Foucault é a preocupação do autor com a gênese histórica e social dos
conceitos, como no caso do conceito de sexualidade. Em todas as obras, o autor
relaciona a formação desses conceitos importantes ao imaginário da sociedade
moderna com o desenvolvimento das ciências médicas e também com a importância
do conhecimento científico.
Segundo o autor, para o desenvolvimento de instituições, como prisões ou
manicômios, foi extremamente necessário o surgimento de uma forma de
conhecimento que classificasse aqueles que são dignos da punição e aqueles que
deveriam ser medicados por fugirem à racionalidade normal. O mesmo podemos
dizer sobre as determinações do que é ou não é a sexualidade normal e o próprio
sexo normal. Toda a forma de classificação da normalidade e da anormalidade no

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universo da sociedade moderna, assim como a normatização da pena ao criminoso,


dependeram de estudos médicos, baseados na racionalidade científica. Para a
normatização da sexualidade, foi necessário que o conhecimento médico
classificasse todos os tipos de exceções. A estrutura atual das prisões e dos
manicômios, que apartam os proscritos da sociedade normal, basearam-se no
modelo das clínicas de leprosos, que isolavam os pacientes com hanseníase.
Notamos, portanto, que o conhecimento médico e o biológico, para Foucault,
são elementos dominantes e essenciais ao imaginário da sociedade moderna e que
a história das instituições modernas mais importantes (do controle e da
normatização) está intimamente ligada com o surgimento de instituições ligadas a
esse saber. Esse é um argumento que percorre as obras do autor e que se relaciona
com um dos conceitos importantes de sua obra que exploraremos com maior
atenção nessa aula: o conceito de biopoder.
A racionalidade moderna, aliada ao controle individual, é também essencial à
normatização e ao controle dos corpos dentro de nossa sociedade. Isso quer dizer
que dentro da sociedade ocidental contemporânea, a forma de poder com maiores
efeitos sobre a população é a forma de biopoder. Ao contrário do que pensam
muitos autores, o poder de controle do soberano ou o poder de controle da
economia não são as maiores características da sociedade contemporânea, mas
sim o poder que controla os corpos das pessoas, pautado na legitimidade do
conhecimento médico e científico. O biopoder caracteriza e controla, portanto, o
imaginário da sociedade em que vivemos.
Esse argumento nos remete a uma das principais linhas de pesquisa da
Antropologia contemporânea: o estudo da ciência e dos saberes que constituem a
forma de pensar e agir da sociedade contemporânea. A Antropologia da biologia, da
medicina, da racionalidade moderna e da ciência é um dos campos mais
importantes da pesquisa antropológica nos dias de hoje. Esses estudos nos
mostram, por exemplo, que a consanguinidade, a família, as determinações
genéticas do comportamento individual e humano, são preocupações específicas da
sociedade em que vivemos e, sobretudo, que essas preocupações são históricas e
que, como bem nos mostra Foucault, servem a uma forma específica de controle
social e cultural, explicada pelo conceito de biopoder.

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Outro autor importante que podemos citar, pensando nessa Antropologia da


ciência e do imaginário da sociedade contemporânea, é David Murray Schneider
(1918-1995), antropólogo culturalista americano que dedicou parte de seu trabalho a
questionar as bases culturais dos estudos antropológicos sobre parentesco, nos
dizendo que muito da leitura antropológica sobre o tema nos remete à forma como
as próprias sociedades americana e europeia, concebem as relações de parentesco.
Em outras palavras, para o autor, o medo biológico de casamentos consanguíneos
direciona as leituras de Morgan, de Lévi-Strauss e até mesmo de Sigmund Freud
(1856-1939) e esse medo nos remete a essa preocupação da sociedade ocidental e
moderna com as raízes biológicas do homem. Pensando nisso, o autor defende, por
exemplo, que a família e as relações de parentesco são temas relevantes para o
estudo da sociedade em que vivemos e, não necessariamente, são termos
universais ou devem ser essenciais ao estudo de outras sociedades e culturas.
Podemos notar que os estudos sobre família devem muito aos estudos de
parentesco. Os estudos de Schneider nos permitem observar o tema sob outro
ângulo, considerando não somente que em outras culturas observamos diferenças
nas formas de família, mas também que a própria importância do termo para o
estudo das sociedades pode ser relativa, já que nos remete ao universo simbólico de
nossa sociedade. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que o termo família nos fala
mais sobre a estrutura social e cultural de nossa sociedade e justamente porque
sociedade é gerenciada pelo saber médico e biológico devemos sempre relativizar o
poder moral do termo.
Os antropólogos mantém certa distância do fato e da moral para analisarem
as relações socioculturais justamente porque se misturarem moral e interpretação,
podem não alcançar as formas de poder que são subjacentes aos próprios conceitos
e à sua gênese.
Essa é uma postura bastante contemporânea sobre os estudos de
família e de parentesco e pode nos ajudar a compreender como esses termos são
pensados por aqueles que estamos estudando. Lembremos que atentar para os
significados que a partir dos quais os diferentes grupos pensam é uma postura
antropológica por excelência e nos permite alcançar as razões culturais que
realmente direcionam o comportamento desses grupos. Os estudos de família,

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portanto, devem atentar para as concepções específicas de família (religiosos,


jurídicos, senso comum, biológicos...) que entram em jogo nos diferentes universos
sociais e culturais.

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Aula 09_Durkheim e Mauss: a Ordem e o Fato Social

“A matéria do pensamento lógico é feita de conceitos.


Investigar como a sociedade pode ter desempenhado um papel
na gênese do pensamento lógico equivale a perguntar como
ela possa ter participado na formação dos conceitos.”
(DURKHEIM, 1996, p. 510)
Nesta aula, falaremos de dois autores franceses bastante importantes para o
pensamento sociológico e antropológico modernos: Émile Durkheim e Marcel
Mauss, considerados fundadores da escola sociológica francesa.
Toda obra de Durkheim está identificada com sua proposta de fundar
conceitos e métodos de uma ciência sociológica, o que influenciou uma de suas
obras que pode ser considerada a “mais antropológica”: trata-se do livro As formas
elementares da vida religiosa, de 1912. No livro, o autor tem uma preocupação
elementar: compreender como a sociedade é responsável pela formação do
pensamento humano.
Na compreensão de Durkheim, a sociedade é uma realidade formadora da
própria consciência humana, além de responsável pelos comportamentos
individuais. No livro, o autor buscará compreender como a sociedade foi responsável
pela origem do próprio pensamento humano em si, não somente em mostrar-nos
como ela explica fatos sociais. Durkheim se ocupará em estudar como as primeiras
formas de relacionamento em sociedade também são correlatas à construção das
primeiras crenças coletivas, considerando que é no seio da vida coletiva que
nascem também os conceitos elementares com os quais o pensamento humano
opera.
Para o autor, a religião pode ser considerada como uma primeira forma lógica
de entender o mundo e encontrar explicações para os fenômenos naturais.
Observando a religião em diferentes tempos e espaços, Durkheim conclui que o
homem, na sua forma mais simples de organização social, vê nas explicações
mágicas e religiosas a maneira mais imediata de conceber e de compreender o que
observa a sua volta e esta maneira de raciocinar o mundo ao redor de si não é uma

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resposta falsa, como disseram os autores evolucionistas. Para o autor, a concepção


do sobrenatural como explicação para fenômenos observados é uma abstração da
realidade tão coerente quanto os conceitos de eletricidade e de gravidade, por
exemplo.
Durkheim reconhece o fenômeno religioso, suas crenças, ritos e prescrições
sagradas, como um sistema de pensamento ordenado e também considera que a
organização coletiva em torno do universo religioso é uma das formas elementares
de manifestação da consciência coletiva e da vida em sociedade. É no ambiente
religioso que os sujeitos aprendem, primeiramente, seu papel social e como devem
se comportar em relação aos elementos da crença coletiva, ou seja, é ele que regula
as primeiras formas de cultura. A religião é, portanto, a primeira responsável pela
constituição da Razão, já que ela é uma instituição derivada da organização dos
homens em sociedade. A religião é responsável pela primeira forma de
concatenação das consciências individuais. Além disso, é esta primeira unidade
moral (a religião) que permite o surgimento dos conceitos e das categorias básicas
do pensamento racional.
Seguindo a citação com a qual iniciamos nossa aula, refletimos que o
pensamento lógico é capaz de exprimir realidades através de conceitos e, para o
autor, investigar a gênese do pensamento é investigar como se deu a gênese social
dos conceitos. Como um primeiro sensível, já que é a realidade objetiva concreta em
que se constroem os homens, a sociedade é a realidade a partir da qual os sujeitos
recortam os elementos causais que serão a base para a construção dos conceitos.
Pensem que a relação dos sujeitos com a natureza é mediada pela vida em
sociedade e, desse modo, o homem que conhece não é aquele ser individual
racional abstraído pelos filósofos do conhecimento, mas sim, um ser coletivo que
enxerga o mundo através dos olhos da própria sociedade. Ao falar sobre algumas
categorias, conceitos básicos do pensamento racional, como tempo, espaço e
gênero, o autor conclui:
“Não somente foi a sociedade que as instituiu, mas seu
conteúdo é constituído de aspectos diferentes do ser social: a
categoria de gênero no começo era indistinta do conceito de
grupo humano; é o ritmo da vida social que está na base da

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categoria de tempo; foi o espaço ocupado pela sociedade que


forneceu a matéria da categoria de espaço; foi a força coletiva
que serviu de protótipo para o conceito de força eficaz,
elemento essencial da categoria de causalidade.” (DURKHEIM,
1996, p.519).
Seguindo o raciocínio do autor, concluímos que as categorias do pensamento
humano só podem ter surgido da vida em sociedade, já que o homem é um ser
eminentemente social. Observando a regularidade do fenômeno religioso e
investigando sua gênese, Durkheim conclui que as categorias elementares do
pensamento humano, já discutidas por filósofos como Kant, só podem ter surgido a
partir da relação e da observação de homens em sociedade.
Utilizando sua teoria e sua ciência da sociedade, portanto, Durkheim está ao
mesmo tempo criticando os autores evolucionistas, que consideravam povos
primitivos como ilógicos ou pré-lógicos e também propondo uma epistemologia
sociológica e se contrapondo a filósofos do conhecimento, como Kant. Apesar de
dialogar com a ciência positivista e de Durkheim ser um entusiasta da ordem e do
progresso na sociedade moderna, suas discussões em As formas elementares da
vida religiosa influenciaram as próprias discussões de Lévi-Strauss sobre o homem
ser eminentemente racional.
“Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos
chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas
instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo
políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas – estas
supondo formas particulares de produção e de consumo, ou
melhor, do fornecimento e da distribuição -; sem contar os
fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os
fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam.”
(MAUSS, 2003, p. 187)
Marcel Mauss era sobrinho de Durkheim e foi um autor que escreveu sobre
diferentes aspectos da vida social. Muitos dos seus trabalhos inspiraram e inspiram
a Antropologia até hoje e são considerados clássicos, como é o caso de Esboço de

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uma teoria geral da Magia, Ensaio sobre a dádiva e As técnicas do corpo, reunidos
no livro Sociologia e Antropologia, com prefácio escrito por Lévi-Strauss.
Não se propondo a delimitar conceitos e ferramentas especificamente
sociológicas, Mauss permitiu-se dialogar com diferentes campos do conhecimento,
aproximando e distanciando a Antropologia e a Sociologia da Psicologia, da
Economia e mesmo da Geografia. Mesmo influenciado pela sociologia da escola
francesa, Mauss inovou ao propor, por exemplo, a noção de fato social total,
considerando não somente que há fatos que são sociais e culturais, mas também
considerando que há fatos sociais tão complexos que expressam a totalidade das
relações sociais e culturais construídos por diferentes povos. Se Durkheim mostrou-
se preocupado em construir conceitos que nos explicassem a relação entre indivíduo
e coletividade, Mauss mostrou-se preocupado também com as particularidades
culturais e o universo social dos povos considerados pelos evolucionistas como
primitivos.
A sua leitura de fato social total mostra-se muito interessante para pensarmos
como diversas instituições sociais podem estar representadas em um simples ato,
como o da troca ritual. É esse o objeto de sua pesquisa e de seu Ensaio sobre a
dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, em que analisa dados de
diferentes sociedades, da Escandinávia até a Polinésia, para encontrar os elementos
e razões comuns daquilo que o autor chama de economia das sociedades arcaicas.
Estudando dados sobre os costumes de diferentes povos pelo mundo, Mauss
reconheceu nas relações de troca um exemplo de fato social total, porque
considerou que diferentes instituições sociais estariam representadas nos ritos e
atos de troca entre os grupos ou os sujeitos dentro desses povos. As trocas seriam
reguladas por costumes religiosos, por relações de parentesco, por crenças e por
relações políticas ao mesmo tempo em que representavam as relações produtivas
das sociedades estudadas. Nesse sentido, podemos dizer que, diferentemente de
autores evolucionistas e deterministas, Mauss considera que as relações produtivas
não estão diretamente ligadas às necessidades de sobrevivência, sendo mediadas
pelas construções sociais e culturais dos povos. Além de contrapor-se aos
deterministas e concordar com os nascentes sociólogos ao dizer que há causas que

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não são biológicas ou naturais para o comportamento humano, Mauss está


propondo uma leitura das razões universais da troca em sociedades não capitalistas.
Segundo Mauss, a troca nas sociedades não capitalistas sempre implica em
três obrigações: dar, receber e retribuir. Essas obrigações explicam pontos
importantes de todo relacionamento entre os sujeitos, seja ele mediado pelas regras
de parentesco, seja pelas regras religiosas e políticas: dar, receber e retribuir é um
princípio da troca que implica sempre em uma relação estabelecida, uma
comunicação entre os diferentes sujeitos dentro e fora do mesmo grupo, ou seja, a
troca nos universos socioculturais não capitalistas não tem o mesmo significado e a
mesma função econômica que assume na sociedade moderna: ela é um meio de
estabelecimento de relações e de comunicação e representa as diferentes regras e
instituições sociais que as estabelecem.
Mauss é considerado um dos principais autores da Antropologia justamente
por esta preocupação em conhecer outras formas de estabelecer relações, de
conceber as próprias relações sociais que podem estar expressas nas instituições
de grupos diferentes da sociedade moderna e industrial. Para Mauss, se há uma
forma capitalista de lidar com o corpo, com a religião, com a educação, com a
produção e com a troca, ela não é a única possível e pode, portanto, ser
desnaturalizada e criticada. Esse é um pressuposto antropológico por excelência,
porque se há outras formas de educar, de pensar, de conceber e de relacionar, a
nossa não é a única ou a melhor.
O pensamento de Marcel Mauss é tão contemporâneo que nos permite,
inclusive, conceber que diferentes sociedades e culturas podem ser incorporadas: a
forma como nossos corpos se moldam e como se relacionam depende dos
universos socioculturais em que estamos inseridos, portanto, nosso próprio ser
biológico pode ser condicionado pela cultura e pela sociedade.

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Aula 10_Estrutural Funcionalismo Inglês e a Antropologia Social

O estrutural funcionalismo inglês é outra importante corrente do pensamento


antropológico contemporâneo. Procuramos demonstrar comparativamente quais
pontos distanciam-se da antropologia evolucionista e quais pontos dialogam com
ela.
O estrutural funcionalismo é uma corrente do pensamento antropológico que
se desenvolveu nas universidades inglesas no começo do século XX. Tem como pai
fundador o antropólogo Alfred Radcliffe-Brown e, diferentemente da antropologia
americana, direcionou seus estudos para povos africanos e para povos habitantes
de ilhas do pacífico. Ressalta-se que esse é um período da história europeia
reconhecido como neocolonialismo, em que alguns dos países europeus dividem o
mundo em áreas de influência e de colonização. O estrutural funcionalismo é a
corrente fundadora daquela que hoje é conhecida como Antropologia Social. É
tentando compreender e respeitar os diferentes povos com os quais estão em
contato nesse momento histórico que os antropólogos britânicos fundam o estrutural
funcionalismo.
Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955) é reconhecido como o pai fundador dessa
corrente e, como outros pais fundadores da antropologia contemporânea. Começou
seus estudos partindo da crítica ao evolucionismo social e cultural. Bronislaw
Malinowski (1884 -1942) também é reconhecido como um dos pais do estrutural
funcionalismo por suas discussões sobre diferentes povos dialogarem com os
conceitos de estrutura e função, mas, sobretudo, por ser considerado o primeiro a
delimitar o trabalho de campo como uma das principais ferramentas teóricas e
práticas do olhar antropológico. Dentre os discípulos desses dois autores, podemos
fazer referência a um dos mais importantes deles, Edward Evan Evans-Pritchard
(1902-1973), que ficou conhecido no campo antropológico por seus estudos com os
Azande e com os Nuer, povos africanos. Para melhor compreendermos essa
corrente de pensamento antropológico, é necessário pensar nos seus conceitos

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centrais: estrutura, organismo e função, com os quais Radcliffe-Brown está


dialogando para construir suas análises sobre os diferentes grupos sociais.
Assim como para Comte e Spencer, a sociedade é vista pelo estrutural
funcionalismo como um organismo em si, um organismo que sobrevive por que suas
partes estão colocadas em função umas das outras e porque é capaz de adaptar-se
ao ambiente em que está colocado. A noção de estrutura social deve muito a essa
visão da sociedade como um organismo, mas, ao contrário do evolucionismo, os
autores da antropologia estrutural funcionalista não condicionam o desenvolvimento
das sociedades à sua relação com o ambiente (numa crítica semelhante à do
culturalismo americano em relação ao determinismo ambiental). Além disso, a leitura
da sociedade como um organismo funcionalmente organizado a partir da qual
Radcliffe-Brown empreenderá seus estudos não deriva diretamente da leitura de
Spencer ou de Comte, mas sim da influência do sociólogo francês Émile Durkheim.
Durkheim foi bastante influenciado pelo positivismo de Comte e um dos
principais reflexos dessa influência se expressa na visão de que a sociedade é como
um organismo e que os seus componentes são funcionalmente interdependentes.
Para Durkheim, a figura do indivíduo totalmente livre não existe, porque não
conseguimos nos apartar totalmente da sociedade, que é responsável pela maneira
como nos relacionamos com outros sujeitos e mesmo pela nossa consciência
individual. No entanto, Durkheim se afasta dos pressupostos evolucionistas de
Comte, porque está preocupado em compreender as regras que mantêm o grupo
social unido e, sobretudo, está preocupado em analisar os imperativos sociais e não
históricos ou biológicos de nossos comportamentos e formas de pensar. Para
Durkheim, uma vez criada como forma de regular a vida dos sujeitos, a sociedade
torna-se uma realidade em si própria, por isso, todo o comportamento humano está
condicionado pela relação dos homens em sociedade: sendo o comportamento
individual mediado pela sociedade, não pode, portanto, estar diretamente submetido
às determinações biológicas ou físicas. Sendo os homens seres sociais, é preciso
que estudemos os fatos relacionados à vida em sociedade como fatos
eminentemente sociais e não biológicos ou físicos, portanto, tais fatos devem ser
analisados pelas ciências sociais e não pelas ciências naturais e suas ferramentas.

NÚCLEO COMUM 67
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Tendo uma leitura das relações sociais influenciada por Durkheim, o estrutural
funcionalismo de Radcliffe-Brown discorda do evolucionismo assim como a
sociologia durkheiminiana, apesar de ambos fazerem referências a termos já
discutidos por esses autores, como a noção de estrutura e de função.
Uma das principais posturas do estrutural funcionalismo é analisar as
sociedades a partir da relação funcional entre as instituições que a compõem, sendo
que cada sociedade, enquanto organismo independente, pode ser vista como uma
estrutura funcional única. A observação etnográfica, ou seja, a observação da forma
como os sujeitos em dada sociedade se relacionam e se organizam socialmente,
deve partir do presente e não buscar classificar e comparar sociedades e povos no
tempo, como fazem os evolucionistas culturais e sociais. Essa é uma das premissas
principais do trabalho de campo antropológico, defendido por Malinowski, em que o
observador deve viver com os povos que está estudando e descrever a realidade
presente observada. É, portanto, com o presente etnográfico observável que essa
corrente do pensamento antropológico está preocupada e não com uma suposta
história evolutiva humana.
Além disso, assim como Durkheim, Radcliffe-Brown e os demais autores do
pensamento antropológico inglês consideram as diferentes sociedades a partir de
suas regras funcionais internas e essa consideração carrega consigo uma forma de
ver os diferentes povos que critica a maneira como a antropologia evolucionista os
pensou. Os estrutural-funcionalistas ingleses estão preocupados em entender como
as sociedades sobrevivem no tempo, como os diferentes povos criam formas de
relacionamento e organização social que os permitem reconhecerem-se enquanto
unidade política, econômica, social e cultural. Em outras palavras, os estrutural-
funcionalistas estão preocupados em abstrair a estrutura social que sustenta as
formas de vida que são típicas dos diferentes povos e permitem reconhecerem-se
enquanto grupo diferenciado.
Notem que, para esses autores, a diversidade cultural e social é um fato
observável: os povos com os quais estão postos em contato possuem seus próprios
costumes e se organizam segundo regras sociais próprias que os fazem existir
enquanto grupo. Tais regras e formas de organização sociais compõem aquilo que
esses autores chamarão de estrutura social e tal estrutura pode ser abstraída pois

NÚCLEO COMUM 68
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está presente em todos os povos do mundo quando observamos a relação funcional


entre diferentes aspectos dos costumes e dos relacionamentos interpessoais. A
estrutura social é, para a antropologia estrutural inglesa, um elemento
eminentemente humano, uma característica universal a todos os grupos sociais.
Em síntese: a) o estrutural funcionalismo inglês dialoga com alguns dos
autores evolucionistas quando pensa a sociedade como um organismo e quando
utiliza os termos estrutura e função, mas discorda do evolucionismo ao dizer que só
podemos compreender a estrutura social analisando-a a partir do presente, negando
a necessidade de comparar e classificar sociedades no tempo; b) construir
estruturas sociais é uma característica eminentemente humana, portanto, pela
abstração, podemos construir um conceito de estrutura e um de função válidos para
todas as formas de organização da vida social; c) a diversidade social e cultural é
um fato, já que cada povo tem suas próprias regras sociais e formas de organizar-se
enquanto grupo, além de seus próprios costumes que delas derivam.
Esses três importantes pontos resumem as principais premissas analíticas da
antropologia funcionalista inglesa, mas, ainda é importante fazer referência a outro
ponto, já que os antropólogos, assim como demais cientistas sociais, partem de
alguns questionamentos essenciais. Os questionamentos essenciais dos estrutural
funcionalistas explicam sua preocupação com a estrutura social, mas, além disso,
são questionamentos por si próprios críticos ao evolucionismo antropológico. Vamos
fazer o exercício de pensar como eles para compreender essa crítica e suas
perguntas iniciais.
Lembremos que os antropólogos ingleses foram instigados a estudar
diferentes sociedades a partir do contato com os povos colonizados pela Inglaterra
no final do século XIX e começo do século XX. Nesse contato, notaram que havia
regras de relacionamento político e social e formas econômicas que satisfaziam
necessidades de cada grupo e lhes permitiam sobreviver enquanto grupo ao longo
do tempo. Levando isso em consideração, Radcliffe-Brown e seus discípulos se
perguntavam: quais relações e quais regras permitiam que essas sociedades
conservassem sua unidade e seus costumes? Diferentemente dos autores
evolucionistas, não se perguntam em quais estágios do desenvolvimento humano
estariam os povos estudados. Desde o principio, os estrutural funcionalistas

NÚCLEO COMUM 69
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consideraram que as formas de organização social, política e econômica dos


diferentes povos não eram melhores ou piores que a forma como a sociedade
moderna se organiza. Esses autores partiam do princípio que, mesmo não existindo
a forma de Estado moderna em povos como os africanos e os habitantes das ilhas
do pacífico, tais grupos sociais tinham suas próprias instituições e regulamentos
sociais, não sendo esses menos eficazes ou menos racionais que aqueles
encontrados na sociedade moderna.
Um dos exemplos dessa postura está nos estudos sobre parentesco.
Radcliffe-Brown e Malinowski notaram que as regras de casamento estabelecidas
dentro dessas sociedades estão interligadas a demais costumes e atividades
cotidianas que os diferentes grupos mantêm. Quando uma sociedade define que é
proibido casar com irmãos ou parentes próximos, por exemplo, obriga os sujeitos a
buscarem casamento fora de seu círculo familiar, os obrigando, por consequência, a
estabelecerem laços e relações com outros grupos familiares. Além disso, regras de
parentesco também podem definir regras de propriedade ou a sucessão política e
religiosa.
Os estrutural-funcionalistas observaram que em sociedades sem Estado, as
relações de parentesco são como instituições sociais reguladoras do comportamento
e dos costumes individuais. Isso não significa dizer que as sociedades que se
organizam a partir de relações de parentesco são menos racionais que sociedades
que possuem outros tipos de instituições políticas e sociais, como cita Lewis
Morgan. O fato dos costumes e do cotidiano serem regidos pelo parentesco não
implica numa maior ou menor complexidade, já que tanto as relações de parentesco
quanto o Estado moderno supõem a mesma funcionalidade, que é a
regulamentação do comportamento dos sujeitos em sociedade e são produzidos
pelos seres humanos, portanto, é fruto da sociabilidade humana, que é comum a
todos e não pode ser mensurada.
Por fim, podemos dizer que o objeto antropológico do estrutural
funcionalismo inglês e também da Antropologia Social contemporânea são as regras
de relacionamento social, que compõem o que Radcliffe-Brown chama de estrutura
social. Relacionamo-nos com membros do mesmo grupo ou de outros grupos em
diferentes “instâncias”: política, religiosa, econômica, social, cultural. Essas

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“instâncias” são parte da mesma estrutura social, portanto, condicionam nossos


comportamentos individuais e condicionam também a forma como nos relacionamos
uns com os outros, porque estão funcionalmente ligadas, são interdependentes.

Aula 11_Bronislav Malinowski e a Pesquisa nas Ilhas do Pacífico

Como já mencionamos anteriormente, Bronislaw Malinowski é reconhecido


dentro dos estudos antropológicos como o fundador da pesquisa de campo e como
um dos autores que consolidou o funcionalismo como uma das principais correntes
antropológicas. Discutimos também como o trabalho de campo não é somente um
método ou uma ferramenta de análise da vida em sociedade e da cultura, mas antes
de tudo uma forma específica de olhar para a realidade sociocultural. Em suma, para
que seja considerado trabalho antropológico de campo, uma pesquisa deve partir do
olhar da Antropologia para as sociedades e culturas. Nesta aula, falaremos um
pouco mais sobre os estudos e Malinowski e sobre os povos por ele estudados.
Os seus principais livros foram escritos a partir do contato e estudos com os
povos dos arquipélagos da Nova Guiné, no pacífico ocidental, mais especificamente,
nas ilhas Trobriand. Malinowski escreveu sobre a economia política local, sobre as
regras de parentesco, sobre o universo jurídico local e também sobre as crenças
religiosas em diferentes livros. Malinowski é um exemplo de como os autores
clássicos da Antropologia desenvolviam seus estudos e depois descreviam em suas
monografias etnográficas um recorte teoricamente orientado dos costumes
observados. As etnografias da Antropologia clássica são descrições que analisam
diferentes aspectos da vida social e cultural a partir do convívio e estudo de
diferentes povos em que a teoria propriamente dita não é explicitada ou discutida,
mas mostra-se através da forma como os dados são descritos. No caso de
Malinowski, por exemplo, notamos suas preocupações sobre a relação entre cultura
e economia ao longo da descrição das trocas rituais no universo dos povos da Nova
Guiné.
Em Argonautas do Pacífico Ocidental, o autor descreve densamente os
costumes e a vida econômica cotidiana dos trobriandeses, interessado em dialogar

NÚCLEO COMUM 71
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com estudos sobre a relação entre cultura material e economia. Nesse livro,
Malinowski descreve desde a construção ritualizada da canoa, que servirá de
transporte em um processo de troca cerimonial entre as ilhas, chamado Kula, até as
cerimônias e festas em que as trocas são realizadas, nos mostrando como a
reciprocidade esperada no processo de troca é ritualizada e, portanto, mediada por
diferentes aspectos da vida cultural.
O Kula é um cerimonial entre as ilhas do pacífico sul, em que conchas
vermelhas são trocadas em um dos sentidos circulares das visitas e conchas
brancas são trocadas no outro sentido (anti-horário e horário, respectivamente). Os
trobriandeses trocavam joias feitas de conchas que tinham valor significativo
enquanto objeto de status e a troca era o marco das relações estabelecidas entre as
ilhas e uma forma de representar e manter as relações de reciprocidade que
sustentavam a vida sociocultural e econômica desse povo.
Malinowski nota que a vida econômica é regrada pelo universo cultural e que
a produção e a troca são mediadas por relações políticas e de parentesco. Em
várias partes do livro, o autor mostra-se preocupado em descrever os elementos
básicos da alimentação e da vida material dos trobriandeses, mas acaba
encontrando, nessa procura, a mediação do universo cultural.
Assim como outros autores estrutural-funcionalistas, Malinowski estava
preocupado em encontrar as razões pelas quais os habitantes das ilhas Trobriand se
reconheciam como um grupo e também quais relações os mantinham unidos ao
longo do tempo. O autor encontrou na reciprocidade das relações de troca uma
resposta para seus questionamentos nesse sentido. Todos seus livros abordarão o
sistema de reciprocidade expresso pelas trocas rituais, de uma forma ou de outra,
mostrando que a estrutural social dos trobriandeses se sustenta por esse sistema de
relações recíprocas, que envolvem sempre a obrigatoriedade (como regra) de
retribuir os presentes dados, como no cerimonial das conchas. Compreendemos,
portanto, que o Kula é como uma expressão por excelência das regras de convívio
entre os trobriandeses, uma ritualização da estrutura de relações que mantém a
sociedade ativa e viva.
Em seu livro Crime e Costume na Sociedade Selvagem, o tema da
reciprocidade reaparece quando o autor se propõe a fazer uma espécie de

NÚCLEO COMUM 72
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etnografia do direito, da lei dentre os trobriandeses. Assim como outros autores


estrutural-funcionalistas, Malinowski pretende observar os elementos que permitem
às diferentes sociedades manterem-se enquanto organismo diferenciado e, nesse
ponto, a preocupação com as regras que mantêm a ordem social são bastante
relevantes. Além disso, os estrutural-funcionalistas partiam do pressuposto que se
tais sociedades conservam-se enquanto organismo independente, possuem
normatizações e instituições próprias que regulam a vida cotidiana de seus
membros. A reciprocidade, por exemplo, é o mecanismo pelo qual as relações entre
os sujeitos se mantêm no tempo, num ciclo em que o recebimento de algum
presente, de um favor ou mesmo de uma esposa significa uma dívida que, uma vez
cumprida, gera outra dívida e assim por diante.
Qual seria, portanto, o mecanismo que mantém a ordem em momentos em
que a regra da reciprocidade é descumprida? É essa a pergunta essencial de Crime
e Costume na Sociedade Selvagem e Malinowski a faz partindo do pressuposto de
que todas as sociedades têm suas próprias formas eficazes de regulamentar a
punição, mesmo que aparentemente não encontremos instituições específicas
responsáveis pela lei e pela ordem em sociedades como as que o autor encontrou
nos arquipélagos da Nova Guiné.
Segundo o autor, apesar de não possuírem papéis sociais ou instituições
especializados nas sanções relativas ao descumprimento da regra, há mecanismos
de controle que não deixam que o crime ou o descumprimento da regra passe
despercebido. Na maioria das vezes, é a sanção moral pública que orienta a punição
dos culpados, já que a solidariedade do grupo deve prevalecer sobre a vontade
individual. Um bom exemplo é descrito pelo autor no caso do suicídio de jovens que
se recusam a cumprir as regras de casamento delimitadas pelo sistema de
parentesco. A consciência de que o ato não passará despercebido e que o futuro
dentro da sociedade é incerto para os que não cumprem as regras definidas pelo
sistema de parentesco explica a reação desses jovens. Nesse sentido, a
impossibilidade da vida em sociedade é a pior punição. No caso, segundo as regras
de parentesco e casamento, os jovens não poderiam se casar por serem parentes
próximos e, quando a quebra da regra tornou-se pública, a punição da culpa os
impeliu ao ato.

NÚCLEO COMUM 73
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Além do suicídio, Malinowski nota que a magia é um grande elemento


regulador da ordem e o medo às sanções da magia também impelem os
trobriandeses a cumprirem as regras, sendo a magia, portanto, um mecanismo de
manutenção da ordem. Assim como em sociedades com instituições especializadas
em garantir a ordem, há dentro de sociedades sem Estado conflitos entre as regras
sociais mais poderosas e algumas questões específicas. No caso dos trobriandeses,
é o direito do lado materno e os sentimentos do lado paterno que acabam gerando
grande parte dos conflitos e situações em que a regra é quebrada.
Como em outras sociedades sem Estado, para os habitantes da Nova Guiné,
são geralmente as regras instituídas pelas relações de parentesco as mais influentes
na delimitação do lugar e do direito de cada indivíduo. Para os trobriandeses,
quando uma criança nasce, ela fará parte da família de sua mãe, ou seja, é como se
herdasse o nome e a linhagem de sua parte materna. Essa regra regula diferentes
aspectos das relações cotidianas, por exemplo, são sempre os homens da família da
mãe os responsáveis por sustentar a casa e também é nas terras da família materna
que a nova família deve se estabelecer. Quando há um divórcio ou mesmo quando o
pai não se dá com os homens da família materna, sua família não pode requerer as
crianças e ele não tem direito de permanecer nas terras onde seu filho e sua esposa
moram. Segundo o autor, a regra é cumprida, mas há sempre situações em que os
direitos da família materna em detrimento da paterna, geram conflitos e, assim como
em outras sociedades, o poder de alguns membros acaba por passar por cima da
norma, como quando um chefe acaba trazendo o filho para sua casa devido a sua
influência política. É importante notar, nesse ponto, que Malinowski encontrou na
reciprocidade o elemento que mantém as relações econômicas e produtivas e, nas
regras de parentesco, a normatização da vida pública.
As descobertas antropológicas de Malinowski são interessantes porque nos
lembram que em todos os grupos sociais há maneiras implícitas e explícitas de
normatizar a vida pública e também de ritualização de tais normas, como é o caso
do Kula, que simboliza todo o sistema de reciprocidade que sustenta tanto o sistema
de parentesco, quanto o sistema de troca ou o religioso: quando uma família cede
uma esposa para outra, essa deve dar-lhes os filhos resultantes do casamento, num
sistema de dívida semelhante ao de troca de conchas, e desrespeitar o ciclo de

NÚCLEO COMUM 74
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reciprocidade é atentar contra aquilo que mantém a sociedade unida, por isso,
passível de punição.
A preocupação de Malinowski com a manutenção da sociedade nos leva a
compreender diferentes aspectos da vida dos povos das ilhas Trobriand. Pensando
nisso, lembramo-nos de que a complexidade das relações e costumes de cada povo
orientam diferentes aspectos de seu cotidiano e também os orientam a agir seguindo
a sociedade e a cultura em situações individuais. Essa conclusão é uma das
principais contribuições de Malinowski e dos demais autores estrutural funcionalistas
para a Antropologia.
Na próxima aula, apresentaremos outros autores dessa corrente do
pensamento antropológico com mais detalhes e também conheceremos aspectos
culturais de outros povos por eles estudados.

NÚCLEO COMUM 75
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Aula 12_Radcliffe-Brown e Pritchard: as Organizações Políticas Africanas

“O método aqui adotado não é nem o histórico nem o pseudo-


histórico, mas o que associa comparação e análise.
Comparam-se os sistemas sociais com vista à definição das
suas diferenças e, para além delas, procura-se definir as suas
semelhanças fundamentais e aspectos gerais.” (RADCLIFFE-
BROWN, 1982, p.12)
Radcliffe-Brown nos propôs uma análise dos grupos sociais que buscava
entender as diferenças entre elas como partes de estruturas sociais próprias. Nesta
aula, vamos acompanhar mais de perto os estudos que o autor faz sobre alguns
temas e sociedades. Também acompanharemos os estudos de outro autor bastante
importante dentro do estrutural funcionalismo inglês: Evans-Pritchard.
Um ponto bastante comum entre Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard é estudar
como grupos que não se organizam politicamente segundo a forma do Estado
moderno também possuem instituições políticas. No caso das sociedades africanas,
a política das relações de parentesco é um dos principais aspectos que caracterizam
seu universo cultural.
Em seus estudos, Radcliffe-Brown busca entender a estrutura dos
relacionamentos sociais, o parentesco como sistema e os próprios grupos como um
todo organizado. Lembremo-nos que a intenção de Radcliffe-Brown não é a de
comparar sociedades no tempo, mas ainda é uma forma de estudo dos grupos
sociais que permite que realizemos comparações. O autor está preocupado com os
universais que definem o homem e, consequentemente, com aspectos genéricos do
comportamento humano em sociedade. Para o autor, o parentesco é um desses
aspectos universais às sociedades humanas e, no caso das sociedades africanas, o
sistema de parentesco age como regulamentador das relações políticas.
As preocupações do autor com as peculiaridades de sociedades sem Estado
e de grupos sociais modernos nos permitem estender o conceito de sociedade como
um conceito capaz de abranger analiticamente o estudo de como se organizam
todos os grupos humanos: os distintos sistemas de parentesco são as diferenças

NÚCLEO COMUM 76
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que nos permitem observar a universalidade, segundo Radcliffe-Brown. “Um sistema


de parentesco e casamento pode ser considerado como um arranjo que permite às
pessoas viverem juntas e cooperarem umas com as outras segundo certa ordem
social” (idem, p13). Para o autor e demais estrutural-funcionalistas, os casamentos
podem ser considerados instituições jurídicas elementares desses povos, já que
organizam e regulamentam a vida em sociedade, definindo o lugar de cada sujeito
dentro do grupo social e regrando o comportamento desses sujeitos uns com os
outros. Os casamentos e as relações de parentesco que eles estabelecem são
responsáveis pelos “arranjos” sociais que orientam o comportamento individual e
que, ao mesmo tempo, orientam as formas de cooperação entre os diferentes
membros da sociedade. Um sistema de parentesco é para Radcliffe-Brown,
portanto, um sistema atuante que estabelece e organiza as ligações entre indivíduos
em sociedade por meio de um arranjo ordenado de relações estabelecidas pelos
casamentos que, por sua vez, estabelecem formas de comportamento que
sustentam o funcionamento deste próprio arranjo. Parece um pouco difícil, por isso,
vamos observar melhor com exemplos.
Os casamentos são a expressão das regras de parentesco que regem o
universo social desses grupos. Vamos pensar em um grupo social qualquer, que
estabelece que todos os filhos de suas irmãs mulheres são considerados seus
parentes, enquanto todos os filhos de seus irmãos homens são membros quaisquer
desse grupo. A regra mais importante dos sistemas de parentesco e casamento é a
interdição do casamento com parentes, considerado incesto. Nesses grupos
africanos, casar com parentes é tão incestuoso quanto casar com pais ou irmãos da
mesma mãe e do mesmo pai. Por esse motivo, um sujeito nessa sociedade que
considera os filhos de sua irmã como parentes, não poderá casar seus filhos com
seus sobrinhos por parte de irmã, mas poderá casá-los com seus sobrinhos por
parte de irmão, com os quais não possui grau de parentesco, segundo sua cultura.
Aparentemente, para nós, essas regras parecem estranhas, porque em nossa
sociedade o parentesco é baseado na biologia, mas, assim como a proximidade
genética nos proíbe de casar com irmãos e pais, tais regras nessas sociedades
delimitam grupos mais específicos de pessoas com quem se pode casar e com
quem não se pode. Essa interdição gera todo um sistema complexo de regras de

NÚCLEO COMUM 77
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relacionamento social e é nesse sistema de reciprocidade gerado pelas regras de


parentesco e casamento que todo o sistema político desses povos se sustenta: as
regras de casamento criam um sistema complexo de descendência que explica, por
exemplo, como essas sociedades se perpetuam no tempo e explica também como
se constituem as relações políticas internas e externas ao grupo. É a partir das
regras de descendência que muitos povos africanos estabelecem suas relações
políticas cotidianas e extracotidianas.
Entenderemos melhor como o parentesco funciona como um sistema político
na África compreendendo os complexos sistemas de linhagens descritos por Evans-
Pritchard ao estudar os Nuer, povo habitante do atual Sudão.
É a partir das regras de descendência e das regras de casamento, por
exemplo, que as linhagens são estabelecidas e que a memória do parentesco atua
como orientadora das relações entre os sujeitos dentro destes grupos.
Diferentemente de nossa sociedade, a sociedade Nuer é baseada em uma memória
de parentesco que se remete a ancestrais muito antigos. Nós, geralmente, nos
lembramos no máximo de nossos bisavós, tataravós, mas os Nuer lembram-se de
parentes muito antigos. Imaginem uma árvore genealógica muito grande,
verticalmente falando, como essas que famílias nobres traçam para definir sua
posição social. Os Nuer memorizam árvores genealógicas enormes e as utilizam em
diferentes situações sociais.
O parentesco Nuer é definido de acordo com o lado paterno, o que significa
que todos os parentes por parte de pai são considerados parte de uma mesma linha
de parentesco, que se traça no tempo por muitas gerações. Uma linhagem é essa
linha de parentesco em que cada Nuer se encontra desde que nasce. Um homem
pertence à linhagem de seu pai desde antes de nascer e seus filhos pertencerão a
sua linhagem. Uma mulher fará parte da linhagem de seu pai, mas seus filhos farão
parte da linhagem de seu marido. Pensemos, portanto, nas linhagens como
subgrupos que pertencem a um clã, constituindo uma estrutura muito segmentada:
“um clã é um sistema de linhagens, e uma linhagem é um segmento genealógico de
um clã.” (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.201).
Mas, o que a política tem a ver com a memória do parentesco? Segundo
Evans-Pritchard, os Nuer se organizam em tribos, que se subdividem em segmentos

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e estes segmentos em segmentos menores. É observando como se dão as relações


entre os sujeitos pertencentes a estas seções e subseções que entendemos como
se dão os relacionamentos dentro do sistema político e dentro do território ocupado
pela tribo e pelas suas subseções.
As tribos Nuer constituem uma avaliação na distribuição territorial, e as
relações tribais, intertribais e estrangeiras são modos padronizados de
comportamento através dos quais se expressam os valores. O valor tribal é,
portanto, relativo e a qualquer momento está vinculado a uma determinada extensão
de uma série em expansão de relações estruturais, sem estar inevitavelmente fixado
a essa extensão. Além do mais, é não somente relativo (porque aquilo que
chamamos de tribo hoje pode ser duas tribos amanhã), como também determina o
comportamento quando um determinado conjunto de relações estruturais está em
operação, principalmente atos de hostilidade entre segmentos tribais e entre uma
tribo e outros grupos da mesma ordem estrutural, ou atos que provavelmente irão
causar agressão (idem, p. 160).
Segundo o autor, nos momentos em que alguns grupos são ameaçados, nos
momentos em que há algum litígio pelo gado ou pelas terras, os Nuer acionam sua
memória do parentesco para situarem aqueles que são seus parentes (e poderiam
os ajudar) e aqueles que não são, requerendo deles postura de ação. As linhagens
são acionadas em litígios como esses, dentro das tribos e, muitas vezes, entre os
grupos, já que pode haver membros de um clã em mais de uma tribo. Por sua vez,
os clãs se unem quando a tribo Nuer inteira está sendo ameaçada.
A memória do parentesco orienta o povo Nuer em diferentes momentos de
ação política, seja ela cotidiana, envolvendo questões internas ou mesmo quando
tais questões envolvem a relação com outros povos.
Evans-Pritchard notou que o parentesco é um elemento importantíssimo
quando pensamos na estrutura social de muitos povos africanos, assim como
Malinowski notou que o sistema de trocas e de reciprocidade orienta toda a vida
econômica e política dos povos das ilhas Trobriand. É importante fazermos esse tipo
de referência porque a antropologia econômica ou a antropologia do parentesco
nascem com o mesmo propósito: considerar que há formas diferentes de
relacionamento social e elas não são melhores ou piores que as da sociedade

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moderna. Além disso, cada povo se constitui segundo diferentes propósitos e eles
podem nos ensinar alguma coisa sobre nossos próprios propósitos econômicos,
políticos e sociais.

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Aula 13_O Estrutualismo Francês

Nesta aula vamos falar sobre outra definição de Estrutura, defendida como
característica eminentemente humana pela chamada Antropologia estrutural
francesa, cujo autor fundador é Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009).
Assim como estrutural funcionalismo inglês, a antropologia estrutural francesa
dialoga com os autores evolucionistas e se funda a partir da sua crítica. O
estruturalismo francês dialoga com o conceito de cultura e com o de estrutura social
ao buscar compreender o humano em sua universalidade, mas suas críticas se
direcionam para outras premissas dos autores evolucionistas que já estudamos nas
aulas anteriores: o estruturalismo francês nasce como uma crítica à visão de que há
povos mais ou menos racionais.
Para o estruturalismo francês, em todas as manifestações culturais e sociais
humanas, encontramos a expressão da Razão: é com as formas como opera o
pensamento humano que essa corrente do pensamento antropológico está
preocupada e, para seus autores, o pensamento humano é que será o responsável
pela explicação do que é universal às culturas e do que é diversidade cultural.
Lembremos que autores como James Frazer e Lévy-Bruhl dedicaram-se a
provar que as manifestações mitológicas e rituais dos povos por eles considerados
“primitivos” expressam uma etapa do desenvolvimento da racionalidade humana que
é anterior à própria Razão, já que estão lendo a Razão a partir da filosofia e da
ciência ocidentais e modernas. A proposta de Claude Lévi-Strauss é justamente
contrária a essa leitura. Em todos seus livros, o autor nos mostra que essas
manifestações culturais das sociedades anteriormente consideradas primitivas
expressam as mesmas capacidades mentais e reflexivas do pensamento científico.
Ao nos dizer que as diferentes culturas e formas de relacionamento sociais só
existem porque o ser humano é eminentemente um ser racional, Lévi-Strauss não
está negando nem o culturalismo norte-americano nem o estrutural funcionalismo
inglês, mas sim englobando as críticas dessas correntes ao evolucionismo, apesar
de estar dialogando com outros autores também. Para Lévi-Strauss, tanto as
manifestações culturais dos povos quanto a forma como se organizam social,

NÚCLEO COMUM 81
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política e economicamente, expressam as formas de operação do pensamento


humano. Interdições de parentesco, que foram analisadas como regras elementares
de relacionamento social pelos estrutural-funcionalistas ou interdições alimentares,
tratadas pelos culturalistas como parte dos costumes de uma cultura, expressam as
formas elementares como opera a mente humana.
O estruturalismo francês dialoga bastante com a filosofia cognitiva e
linguística e abstrai desse diálogo a noção de estrutura a partir da qual se propõe a
pensar a universalidade e a diversidade cultural. Afinal, como opera o pensamento
humano? O que há de universal na forma com pensamos?
Assim como a noção de estrutura social do estrutural funcionalismo deve
muito à influência de Durkheim, a noção de estrutura da antropologia francesa deve
muito à influência da linguística estruturalista de Ferdinand de Saussure (1857
-1913) e Roman Jakobson (1896 -1982). Para a linguística estruturalista, a língua é
considerada um sistema produtor de significados através da combinação de
estruturas elementares: os fonemas e os morfemas. A linguística estruturalista se
afasta de leituras históricas, buscando compreender a língua como ela se estrutura e
funciona, não como foi formada e buscando classificar morfologicamente os
elementos de que a língua é composta, agrupando-os de acordo com suas
semelhantes funções (verbos, pronomes, nomes). Para os linguistas estruturalistas,
cada língua estabelece suas próprias relações entre morfemas e fonemas, gerando
significados que são compreendidos por aqueles que a compartilham. Notem que,
por si própria, a linguística estruturalista já parte de uma crítica a leituras históricas
como as evolucionistas e propõe analisar as diferentes linguagens a partir das
próprias estruturas particulares que as compõem.
Assim como para Franz Boas, portanto, Lévi-Strauss considera que os
significados só podem ser compreendidos dentro do contexto em que são
produzidos e, assim como para Radcliffe-Brown, concorda que manifestações
culturais e sociais não podem ser comparadas em termos de uma história única
porque fazem parte de um sistema estrutural maior que tem sua própria história e
que condiciona a vida individual e social ao longo do tempo.
Compreendemos, portanto, que, assim como os autores e correntes do
pensamento antropológico anteriormente estudados, o estruturalismo francês parte

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de críticas ao determinismo histórico e ambiental do evolucionismo, assim como


critica a noção de progresso e desenvolvimento pressupostos pela leitura que os
evolucionistas fazem da Razão e da ciência. Para que possamos compreender
melhor a noção de estrutura de Lévi-Strauss, é preciso depurar um pouco mais essa
crítica à forma como os evolucionistas pensaram a Razão.
Comecemos compreendendo, a partir da citação abaixo, a relação explícita
que o autor faz entre língua e parentesco:
“No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida
também no estudo de outros problemas), o sociólogo se vê
numa situação formalmente semelhante à do linguista
fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são
elementos de significação; como eles, só adquirem esta
significação sob a condição de se integrarem em sistemas; os
‘sistemas de parentesco’, como os ‘sistemas fonológicos’, são
elaborados pelo espírito no estágio do pensamento
inconsciente; enfim, a recorrência, em regiões afastadas do
mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas
de parentesco, regras de casamento, atitudes identicamente
prescritas entre certos tipos de parentes etc., faz crer que, em
ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do jogo
de leis gerais, mas ocultas.” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.49)
Pelo excerto acima, notamos que Lévi-Strauss está fazendo um paralelo entre
o método estrutural de análise da linguagem e o método estrutural de análise das
culturas e sociedades, e esse paralelo só é possível porque, para Lévi-Strauss
língua, sociedade e cultura são sistemas estruturais criados pelo pensamento
humano.
Seguindo esse raciocínio, entendemos porque Lévi-Strauss afirma que o
parentesco e a língua devem ser observados da mesma forma: porque as leis gerais
ocultas, sobre as quais o autor está se referindo no final da citação, são as leis de
operação do pensamento humano, que criam estruturas de parentesco e estruturas
linguísticas. A partir destas afirmações, também compreendemos porque a noção de
estrutura em Lévi-Strauss não é igual à noção de estrutura social dos estrutural-

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funcionalistas, já que a noção de estrutura do estruturalismo francês engloba a


própria sociedade enquanto realidade estrutural. A forma como nos relacionamos
em sociedade ou os significados que cada cultura constrói são explicados por uma
estrutura englobante que é eminentemente humana: as leis de operação do
pensamento humano, a Razão.
Para Lévi-Strauss, a Razão é universal ao homem, porque no momento em
que ele se cria como um ser social e cultural, também está se criando como um ser
racional. Sendo todas as expressões de cultura humanas racionais, portanto, não
podem, por definição, serem pré-lógicas ou irracionais, como nos disseram James
Frazer e Lucien Lévy-Bruhl.
O estruturalismo francês dedicou-se a compreender diferentes estruturas
mitológicas, cosmológicas ou científicas como expressões culturais da racionalidade
humana, discordando, portanto, do positivismo e do evolucionismo e considerando a
diversidade como fruto da capacidade humana de pensar o mundo e o próprio
homem. Para o estruturalismo, não somente a ciência moderna busca a verdade.
Em síntese, podemos destacar alguns pontos importantes sobre o
estruturalismo francês: a) a noção de estrutura para Lévi-Strauss e para os
estruturalistas franceses engloba a noção de estrutura social com a qual estão
preocupados os estrutural-funcionalistas ingleses; b) o estruturalismo francês
preocupa-se com os objetos e signos construídos pelos diferentes grupos sociais,
não discordando da importância da noção de cultura, mas está preocupado em
demonstrar como o pensamento humano opera construções estruturais e racionais
mais que com descrever os aspectos culturais dos diferentes povos; c) Lévi-Strauss
e os estruturalistas franceses criticam os determinismos ambientais e históricos da
leitura evolucionista, mas vão além quando criticam especificamente a noção de
Razão dos evolucionistas, que a atrelam à definição positivista de Ciência.

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Aula 14_Lévi-Strauss e a Antropologia do Pensamento Humano

Nesta aula, nos aprofundaremos um pouco mais nos estudos antropológicos


de Claude Lévi-Strauss. Vamos nos lembrar de alguns pontos importantes e
apresentar alguns dos livros do autor, além de dados de sua biografia como
antropólogo.
Claude Lévi-Strauss nasceu na Bélgica, em Bruxelas, e deu início a seus
estudos filosóficos na França. Diferentemente de alguns estudantes franceses
também bastante conhecidos, como Jean-Paul Sartre, que começou como professor
do que hoje poderíamos chamar de ensino médio, Lévi-Strauss optou por dar início
a sua carreira acadêmica no Brasil, com o objetivo de recolher dados etnográficos
sobre povos indígenas brasileiros. Uma das principais consequências dessa viagem
ao Brasil foi a atuação de Lévi-Strauss como um dos professores fundadores do
universo antropológico acadêmico brasileiro, ao atuar como professor da recém
criada Universidade de São Paulo (USP), em 1934.
Lévi-Strauss deu início a sua carreira dentro da Antropologia como etnólogo
no Brasil. Na época, a Antropologia confundia-se, misturava-se com a etnologia,
sendo uma o sinônimo da outra. Os estudos etnológicos visavam estudar a lógica
interna a cada grupo étnico, descrita pelos principais antropólogos clássicos em
estudos monográficos também conhecidos como etnografias.
No Brasil, Lévi-Strauss lecionou sociologia na USP e visitou povos indígenas
como os Bororos e os Nambikwara, no Estado do Mato Grosso, e os Kadiweu, na
fronteira com o Paraguai. Sua empreitada entre os povos indígenas brasileiros foi
descrita no livro Tristes Trópicos, que não é uma etnografia no mesmo estilo dos
textos de Malinowski ou Evans-Pritchard, mas sim escrito como um livro de viagens
e mistura as impressões pessoais do autor com uma visão um pouco mais ensaísta
dos aspectos antropológicos observados.
Lévi-Strauss nunca foi um etnógrafo, como expressa desde o início sua
preocupação mais filosófica e epistemológica com os aspectos da vida e cultura dos
povos com os quais a Antropologia esteve preocupada em seu período clássico.

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Como já mencionamos, Lévi-Strauss foi o fundador de uma corrente


antropológica bastante relacionada com a filosofia e com a linguística: suas
intenções teóricas expressam uma preocupação em compreender o humano
enquanto ser social e racional, mais que em descrever as particularidades de cada
grupo social observado. A etnografia, para Lévi-Strauss, foi um passo para o
levantamento de dados necessários para sua teoria sobre a cultura e o homem e
também processo necessário para sua formação antropológica. Para o autor, a
diversidade da vida humana era um fato e suas preocupações não estavam tão
direcionadas para nos mostrar como cada particular organização social ou sistema
de parentesco expressavam a criatividade humana, mas sim em nos mostrar como
cada diferente sistema expressa um universal: a capacidade racional do ser
humano.
Assim como os autores que estudamos anteriormente, Lévi-Strauss
preocupou-se com temas como os estudos do parentesco e com estudos sobre
mitos e ritos, mas de uma forma um pouco distinta, desde o começo. O autor dialoga
com todos os demais autores que estudamos anteriormente, concordando com eles
em pontos muito importantes, como a consideração de que o sistema de parentesco
cria um mecanismo de reciprocidade que mantém a sociedade, mas vai além
quando busca compreender não somente o universo social, mas também como tal
universo é possibilitado pela racionalidade humana.
Lembremos que em As formas elementares da vida religiosa, Durkheim está
nos propondo um estudo sobre o conhecimento humano e que está dialogando
diretamente com filósofos que estudaram a Razão, como Kant. Lévi-Strauss também
está dialogando diretamente com esses estudos sobre as características do
pensamento humano, sobre as categorias a partir das quais nós, humanos,
pensamos e agrupamos nossas ideias (totalidade, gênero, tempo, espaço). Para
Lévi-Strauss toda a vida em sociedade expressa nossa capacidade de pensar, criar
grupos de conceitos e ideias que interpretam a vida social e o mundo natural.
É justamente pelo fato de somente o homem ser capaz de refletir sobre sua
condição natural e sua condição social que somente ele é capaz de criar cultura.
Para Lévi-Strauss, a estrutura de relações sociais, os sistemas de parentesco, os
sistemas mitológicos e até mesmo a ciência moderna são expressões da

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capacidade humana de refletir o mundo e, sobretudo de comunicar-se. Nesse


sentido, parentesco é mais do que um conjunto de regras que sustenta o universo
social, é uma expressão da capacidade humana de pensamento, porque expressa
nossa capacidade de criar sistemas complexos, e também uma expressão de nossa
capacidade de comunicação, essencial à vida em sociedade e à própria cultura. Por
esse motivo que os estudos de parentesco de Lévi-Strauss são conhecidos como
estudos sobre a “aliança”.
A reciprocidade dos sistemas de parentesco já citada pelos autores
anteriores, para Lévi-Strauss é um sistema complexo de comunicação entre os
sujeitos e sociedade e também um sistema complexo de aliança. Quando uma
sociedade proíbe um sujeito de se casar com membros do seu mesmo grupo, o
obriga a casar-se com membros de outros grupos. Esse é um mecanismo cultural de
criação de alianças sociais e também de criação de um sistema de comunicação
entre os seres humanos.
Compreendemos que a preocupação com a comunicação entre os sujeitos
dentro da sociedade é um diferencial nos estudos de Lévi-Strauss e inclusive já
estudamos a proximidade entre o estruturalismo francês e a linguística estrutural,
mas talvez ainda não tenhamos compreendido como o parentesco pode expressar a
forma de operar do pensamento humano.
Vamos pensar, por exemplo, na criação dos grupos ou das linhagens.
Quando crio um grupo de pertencimento, estou automaticamente criando outro
grupo de não pertencimento, assim como a regra do incesto cria automaticamente
as regras de descendência. O pensamento humano opera elementarmente dessa
mesma maneira: criando grupos, categorias, universos de pertencimento e de não
pertencimento. Para um índio Nambiqwara, urubus e araras fazem parte do mesmo
grupo genérico de animais que voam, assim como para um biólogo fazem parte do
grupo das “aves”.
Vejam, o raciocínio é o mesmo, para cientistas, índios ou mesmo para os
Nuer e seus sistemas de linhagens. Lévi-Strauss, ao perceber isso, revolucionou os
estudos antropológicos: as árvores genealógicas que desenhamos aos nos
referirmos a nossos parentes ou mesmo às famílias de elementos químicos de uma
tabela periódica expressam, metaforicamente, a forma como o próprio pensamento

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humano opera sua forma de conhecer e refletir o mundo. Mesmo que índios
considerem araras como essencialmente diferentes de galinhas (uma é capaz de
voar e outra não), vocês devem perceber que, para Lévi-Strauss, a racionalidade
humana se expressa não pela qualidade dos grupos formados, mas sim pela
capacidade de formar grupos.
O que é revolucionário nessa forma de pensar o homem é, portanto, a
maneira como o autor pensa a diversidade. O fato de concebermos um deus único
ou vários deuses não nos faz mais ou menos racionais. O que nos faz racionais é a
capacidade de concebermos uma entidade divina, é a capacidade que cada
sociedade tem de dar explicações para sua própria existência. Fazendo isso, Lévi-
Strauss destrói todas as barreiras valorativas entre a forma de conhecer
empreendida por um “selvagem” e a forma de conhecer da própria “ciência”, numa
crítica contundente ao positivismo ou ao cientificismo que, ao mesmo tempo, não
desqualifica nem a ciência e nem o pensamento conhecido como “selvagem”. A
pesquisa científica dá legitimidade à forma de conhecer da sociedade moderna,
enquanto o xamanismo ou o uso de remédios naturais dá legitimidade à forma de
conhecer das sociedades indígenas e Lévi-Strauss não as considera mais ou menos
verdadeiras: somente as considera partes de culturas diferentes e expressões da
mesma humanidade que há em nós ou que há em povos indígenas.

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Aula 15_Os Norte-americanos e a Antropologia Cultural

Partindo para o fim da primeira unidade do curso, estudaremos alguns


aspectos da chamada Antropologia cultural americana, também conhecida como
antropologia culturalista que, assim como demais correntes fundadoras do
pensamento antropológico contemporâneo, lançou críticas ao evolucionismo, mas
também ao determinismo geográfico e ambiental.
Franz Boas (1858 – 1942) é considerado o pai fundador da antropologia
cultural e, junto com seus discípulos, dentre eles as mais conhecidas são as
antropólogas Ruth Benedict (1887-1948) e Margaret Mead (1901-1978), construiu
análises importantes sobre a relação entre indivíduo e cultura. Esses autores fazem
parte de uma geração posterior a dos primeiros antropólogos evolucionistas e
desenvolvem suas pesquisas estando ligados a centros de pesquisas norte-
americanos e voltando-se também para povos nativos da América:
“[...] a tradição criada pelo próprio Boas tomou como objeto
indivíduos e cultura – e como laboratório a fronteira interior dos
Estados Unidos da América. A noção de cultura que ganhou
papel central nessa tradição, em que pese sua raiz europeia
como autoimagem ideal de um povo, passou aqui a apontar
para um domínio de signos que se repartiram nos ‘quatro
campos’ (signos-palavra na linguística, signos-corpo na
antropologia física, signos-artefato na arqueologia, signos-
costume na antropologia cultural). (ALMEIDA, 2004, p.66)
Compreendamos alguns dos principais aspectos da leitura antropológica de
Boas. Primeiramente, é importante ressaltar que o autor está preocupado em
estudar os aspectos que caracterizam diferentes culturas e os povos que as
compartilham, sendo que esses aspectos influenciam diretamente o comportamento
e o pensamento individual. Pensemos na cultura como uma soma dos costumes,
crenças, objetos de arte, objetos de trabalho, ritos, linguagem. É com a totalidade
desses elementos culturais que a antropologia culturalista-boasiana está
preocupada, não com a racionalidade presente ou não nas manifestações culturais,

NÚCLEO COMUM 90
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ou com as etapas do desenvolvimento da cultura material. Para Boas, a própria


cultura material é um aspecto particular que se soma aos costumes e crenças,
formando e delineando a cultura de um povo. A cultura, para os culturalistas
americanos, é como uma entidade abstrata que é compartilhada pelos indivíduos
que dela fazem parte, sendo bastante semelhante ao conceito de ethos, que pode
ser lido como uma espécie de espírito de um povo, uma soma de seus costumes e
crenças característicos.
A cultura é um padrão estabelecido de costumes, crenças, linguagens e
objetos que nos permite reconhecer os povos em suas diferenças. Imaginem, por
exemplo, que estão estudando um povo indígena norte-americano, segundo o olhar
culturalista. Vocês notariam todos os aspectos cotidianos que constituem os
costumes deste povo, desde os ritos até as formas de caçar, pescar e, até mesmo, a
forma como mães criam seus filhos ou como os adultos tratam os mais velhos. Essa
totalidade observável de uma espécie de comportamento cultural específico é que
define, para esses autores, a cultura dos esquimós ou a cultura dos Iroqueses, por
exemplo.
O princípio antropológico elementar do culturalismo é a análise dos povos a
partir de sua própria cultura, não partindo de uma comparação valorativa que os
pressupõe em um ou outro estágio do desenvolvimento humano: as culturas só
podem ser entendidas dentro dos padrões que elas próprias constroem e não sendo
comparáveis umas com as outras. Nesse sentido, a diversidade humana não se
explica a partir de uma linha histórica de estágios sucessivos, mas é uma expressão
da capacidade humana de produzir signos, ou seja, de produzir elementos culturais
cujo significado é dado e entendido por cada membro do grupo que faz parte de uma
cultura em especial.
Parece complicado? Vamos começar entendendo o que é um signo. Signo é
algo que o homem cria para fazer referência a outra coisa totalmente diferente. Uma
letra é um signo, porque é um sinal aleatório que representa um som. Essa
capacidade humana de criar referências e significados mediados a partir de signos é
considerada uma das principais diferenças entre homens e animais e a diversidade
da criatividade humana no processo de construção das diferentes linguagens e
costumes expressa essencialmente tal capacidade. A cultura, por consequência,

NÚCLEO COMUM 91
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expressa o que há de essencial no humano e, por isso, é o tema principal da


antropologia cultural americana.
Já salientamos em aulas anteriores que uma das preocupações que
caracterizam o pensamento antropológico é a busca daquilo que é universal ao
humano. Como encontrar o universal, se cada cultura é diferente? A antropologia
cultural americana toma a cultura como universal ao humano, mas cada povo tem
sua cultura e é capaz de criar seus próprios costumes e linguagens, que explicam e
dão significado às suas ações e crenças: essa capacidade é universal a todos os
povos e a criatividade dos diferentes grupos cria culturas distintas.
Constituindo-se a partir da proposta de compreensão da diversidade humana,
o culturalismo também empreende uma crítica contundente ao evolucionismo,
rompendo, por um lado, com o determinismo biológico e por outro, com o
determinismo geográfico. Para Boas, é a vida cultural dos povos que influencia a
maneira como pensam, produzem e se relacionam com a natureza e entre si. Não
há em sua análise antropológica uma determinação do ambiente ou da história
evolutiva na forma como a vida cultural se desenvolve. Recusando o determinismo
das raças ou o determinismo do meio físico como responsáveis pelos diversos
modos de vida humanos, o autor reconhece na cultura e na história particular de
cada povo as fontes da própria diversidade cultural.
Lembremos que o evolucionismo pensa a diversidade dispondo-a em uma
linha histórica evolutiva que explica a origem do homem e também diz que a
humanidade caminha rumo ao desenvolvimento e ao progresso. Os evolucionistas
estudam as diferenças entre sociedades e suas práticas e crenças, considerando
que podem compará-las a partir dessa linha do tempo, delimitando sociedades,
práticas e crenças mais ou menos desenvolvidas e mais ou menos racionais,
portanto. Boas está dialogando com autores que consideram o ambiente um fator
limitante ao desenvolvimento das sociedades, que condicionam o desenvolvimento
da Cultura às limitações geográficas.
Para Franz Boas, assim como para os demais autores da antropologia cultural
americana, a diversidade e a própria cultura humana não se limitam pelas
características biológicas humanas, logo, não se pode considerar o desenvolvimento
cognitivo dos povos como diferenciado, hierarquizado, portanto não se pode

NÚCLEO COMUM 92
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considerar que há culturas mais ou menos racionais. Do mesmo modo, a


diversidade e a cultura não se limitam pelo ambiente geográfico onde os grupos
humanos habitam, portanto, não se pode considerar que suas atividades produtivas
e sua cultura material limitam-se pelo ambiente.
Como, então, esses autores analisam a diversidade cultural? Primeiramente,
consideram a cultura como fruto de uma capacidade eminentemente humana de
criar objetos e signos e de estabelecer relações significativas a partir deles, portanto,
não consideram que as diferenças entre as culturas comprovam que há homens
mais ou menos racionais. Além disso, para os culturalistas, a diversidade existe
porque existem historicidades particulares a cada cultura. Considerando a
particularidade histórica de formação e construção de cada cultura diferente, esses
autores estão negando a existência de uma história cultural e material única à
humanidade e, portanto, negando o principal pressuposto do evolucionismo.
Por fim, é relevante salientar mais um posicionamento analítico importante
dos autores da antropologia cultural: se as diferentes sociedades e culturas não
podem ser comparadas em termos de uma linha evolutiva, como podemos visualizar
as diferenças existentes entre as culturas, seguindo o olhar da antropologia cultural?
Para Boas, devemos analisar todo o sistema cultural de um povo para podermos
compreender os significados de suas práticas e crenças, já que os significados
dependem dos signos que cada cultura cria e utiliza. Os autores evolucionistas
analisam os diferentes povos levando em consideração, antes de qualquer coisa,
suas concepções de ciência, de racionalidade, de sociedade e progresso:
acreditando não encontrar o objetivismo científico na magia, por exemplo,
consideram-na pré-lógica e até mesmo irracional. Os antropólogos evolucionistas
não analisaram as especificidades dos padrões culturais de cada povo que
compararam porque se espelhavam em sua própria sociedade para pensá-los.
Segundo Boas, para analisarmos a cultura dos povos é preciso tomar uma
postura relativista: povos diferentes chegam à verdade de diferentes maneiras e dão
distintos significados à moral e à ética, por exemplo, o que significa que temos de
pensar nesses temas de forma relativa, levando em consideração os diferentes
significados que assumem em suas culturas de origem para que possamos entender
a diferença cultural em seu contexto.

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Vamos recapitular os pilares da crítica culturalista ao evolucionismo: a) a


cultura é uma característica humana por excelência, todos os homens possuem
cultura e dela partem para pensarem e agirem no mundo; b) a diversidade cultural
não está condicionada a determinações do meio ou a características biológicas e
cognitivas, ela também não pode ser colocada em função de uma linha histórica
evolutiva única; c) cada povo deve ser compreendido dentro do contexto cultural por
ele criado e cada cultura tem sua própria historicidade, portanto, é preciso ter um
olhar relativista quando nos propomos a entender os aspectos culturais do
comportamento e do pensamento humanos.

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Aula 16_Antropologia Cultural: Franz Boas e Ruth Benedict

“Nos poucos casos que se tem investigado a influência da


cultura sobre as reações mentais de populações, pode-se
observar que a cultura é um determinante muito mais
importante do que a constituição física. Repito que se pode
encontrar nos indivíduos uma relação um tanto estreita entre
reação mental e constituição física, mas que ela estará
completamente ausente no caso das populações. Nessas
circunstâncias, precisamos basear a investigação da vida
mental do homem sobre um estudo da história das formas
culturais e das inter-relações entre vida mental individual e
cultura. Este é o tema da antropologia cultural. Podemos dizer
com segurança que os resultados do extenso material reunido
durante os últimos cinquenta anos não justifica a suposição de
qualquer relação estreita entre tipos biológicos e forma
cultural.” (BOAS, 2010, p.86)
A citação expressa parte dos principais objetivos do estudo antropológico
fundado por Franz Boas: a preocupação em estudar como a vida mental coletiva
influencia os comportamentos individuais e, sendo assim, como a cultura é fator tão
importante na determinação da vida mental dos sujeitos quanto os aspectos físicos
ou biológicos.
Esse pressuposto está por trás de um dos conceitos mais importantes para o
entendimento da antropologia cultural proposta por Boas, a noção de padrão
cultural.
Como já salientamos anteriormente ao falarmos do embate entre Boas e os
evolucionistas, os culturalistas americanos estão preocupados com aqueles
elementos culturais que compõem uma espécie de padrão mental observável de um
povo, influenciados pela noção de ethos. Nesta aula, mais especificamente, vamos
mostrar como compreendem esses padrões culturais a partir dos estudos de Ruth
Benedict no Japão.

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Ruth Benedict analisa em O Crisântemo e a Espada, aquilo que podemos


considerar como a cultura japonesa. A autora pesquisa aspectos da vida cotidiana e
das manifestações mentais que regram a sociedade japonesa para abstrair o que
seria o padrão cultural japonês, sempre tendo como oposto comparativo o padrão de
vida e o padrão cultural americano.
O contato da sociedade americana com a sociedade japonesa durante os
anos da II Guerra Mundial se deu entre formas contrastantes de pensar e agir
socialmente. Era isto que Ruth Benedict tinha em mente quando escreveu O
Crisântemo e a Espada: padrões de cultura Japonesa. Nesse livro, a autora tenta
entender os motivos culturais que estão por trás de certos comportamentos dos
japoneses durante a guerra, assim como entender sua reação posterior à rendição,
buscando-os em aspectos culturais tradicionais que constituiriam um padrão, um
modelo cultural de resposta ao contato com os norte-americanos. Seguindo esta
reação ao contraste entre a cultura japonesa com a cultura americana que Ruth
Benedict nos descreve as obrigações da honra, o comportamento em família, o
comportamento cotidiano, a forma como se relacionam homens, mulheres, velhos e
crianças na sociedade japonesa.
Benedict dedica um capítulo do seu livro para falar da autodisciplina no Japão
(“Autodisciplina”) e um para falar sobre como as crianças são criadas (“A criança
aprende”), por exemplo, para mostrar como esse aspecto abstrato da moral
japonesa acaba se construindo na prática educativa e mesmo na vida cotidiana.
Nesses capítulos, a autora nos dá elementos para pensarmos como são
estabelecidas etapas de vida e as famílias no Japão a partir dos comportamentos e
relacionamentos tradicionais.
Segunda a autora, no período de infância, a criança japonesa gozaria de uma
liberdade muito grande, se comparamos a sociedade japonesa com a americana. Ao
contrário da sociedade americana, a quantidade de restrições requerida para os
adultos seria bem maior que para as crianças e os velhos, sendo os mais jovens e
os idosos àqueles que gozariam de maior liberdade no Japão. Esse cenário muda
quando as crianças começam a serem educadas de maneira diferente: quando as
meninas começam a ser moldadas como meninas, os meninos como meninos e
quando as restrições em relação ao sexo começam a ser requeridas de maneira

NÚCLEO COMUM 96
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austera. Notamos isso, quando Benedict nos fala sobre a orientação do


relacionamento entre as crianças mais velhas de sexo oposto dentro das famílias,
mas, principalmente, na disciplina requerida dos corpos. Os educadores orientam os
corpos das meninas, por exemplo, para que sejam disciplinados mesmo dormindo.
A constituição do meio familiar é um dos elementos sociais de maior
importância na delimitação da vida adulta e é, de certa forma, a família que orienta
todo o jogo de deveres e obrigações que constitui a manutenção da honra através
de dívidas e pagamentos. Homens e mulheres adultos se realizam como homens e
mulheres quando se casam e têm seus filhos:
“Os pais japoneses precisam de filhos não apenas por
satisfação emocional, como também porque terão falhado na
vida se não houvessem levado avante a linha de família”
(BENEDICT, 1997, p.215).
Realizam-se como sujeito, no entanto, pela autodisciplina, que confere
competência seguindo-se as restrições que delimitam o lugar destes sujeitos na
sociedade. Uma esposa japonesa deve obrigações a sua sogra, sendo que mesmo
que esta aja de forma a destruir um casamento, nem o filho nem a nora contradizem
suas decisões. O filho deve à sua mãe e tal dever orienta suas relações em família e
em sociedade também. Homens e mulheres, portanto, ganham seu espaço na
categoria de idade “adulta”, que participa ativamente dos jogos de dever e honra,
quando fazem parte de uma estrutura familiar.
Pensando no padrão cultural japonês, podemos dizer, seguindo a leitura de
Ruth Benedict, que a família, a autodisciplina, a honra se conjugam na determinação
do padrão comportamental dos japoneses frente a situações cotidianas e, também,
frente a situações extremas, como é no caso da guerra.
A leitura de Benedict e de Boas são interessantes justamente porque nos
explicam que as respostas que os sujeitos dão a diferentes situações políticas,
sociais, econômicas, jurídicas, dependem da forma como veem o mundo a partir de
sua própria cultura. Nossas ações frente a tais situações sempre partem da nossa
própria cultura, portanto, a Antropologia é um campo de conhecimento bastante
contemporâneo, pois nos permite entender que as respostas dadas pelos sujeitos

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em determinados contextos sempre partem de seus costumes e suas próprias


concepções de mundo.

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Aula 17_Diversidade Cultural: Discussões sobre uma Nação Miscigenada

Podemos dizer que o desenvolvimento de um campo intelectual no Brasil


coincide com o surgimento das primeiras análises sobre as peculiaridades da
identidade nacional.
Quando o Brasil tornou-se independente, abriu-se espaço para a atuação de
profissionais com formação específica e qualificada, sobretudo os que frequentaram
escolas de Direito de Medicina, que formaram os profissionais que atuaram como
autoridades em serviços públicos. Já na transição à República, junto com as escolas
de medicina e as escolas de direito, surge a preocupação republicana com as
especificidades da sociedade brasileira e, sobretudo, com a possibilidade de nos
desenvolvermos enquanto país e nação.
Lembremo-nos do lema positivista de nossa bandeira republicana (“Ordem e
Progresso”) e entenderemos grande parte das preocupações e conclusões dos
primeiros autores a discutirem a formação da sociedade brasileira. Assim como os
positivistas, médicos e estudiosos de direito que começavam a discutir temas
especificamente brasileiros, estavam preocupados com a possibilidade de
desenvolvimento racional da sociedade e das instituições. Essa possibilidade estaria
condicionada às características de formação de nossa sociedade. Podemos dizer,
portanto, que essas primeiras preocupações com a formação da sociedade brasileira
inauguraram os primeiros temas antropológicos especificamente brasileiros e será
com os autores das teorias europeias racistas que os antropólogos brasileiros vão
começar a discutir.
Sobre as teorias racistas, podemos citar Lilia Schwarcz em seu artigo O
espetáculo da Miscigenação (1994, p.139):
“O mais interessante é, portanto, tendo em mente essa
representação mestiça do país, entender a relevância e
originalidade desse tipo de teoria que, no Brasil, conheceu seu
momento de maior influência no período que vai de 1870 a
1930. Modelo de sucesso na Europa de meados dos

NÚCLEO COMUM 99
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oitocentos, as teorias raciais chegam tardiamente ao Brasil,


recebendo, porém, uma entusiástica acolhida, em especial nos
diversos estabelecimentos de ensino e pesquisa, que na época
congregavam boa parte da reduzida elite pensante nacional. O
momento selecionado é particularmente significativo não só
porque aglutina uma série de episódios relevantes — o final da
Guerra do Paraguai, a fundação do Partido Republicano, a
promulgação da lei do Ventre Livre —, como por anunciar a
entrada de novos modelos científico-deterministas e o
amadurecimento de alguns centros de ensino e pesquisa
nacionais, como os institutos históricos, os museus
etnográficos, as faculdades de direito e de medicina.”
Nesse contexto de formação da sociedade brasileira, os estudos sobre as
raças que formam a identidade cultural e biológica do brasileiro inauguram as
primeiras discussões antropológicas. Como salienta a autora, as teorias raciais
chegam tardiamente ao país. Tais teorias nos remetem aos estudos evolucionistas
sobre os quais estudamos no início de nossa disciplina, mas não integralmente.
Estudos de autores como o médico legista e antropólogo forense Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906), nos remetem aos pressupostos evolucionistas sobre a
origem e a história humana, considerando as teorias do evolucionismo cultural e
social e o positivismo. No entanto, esses estudos são baseados nas escolas
médicas forenses, relacionadas ao trabalho do médico italiano Cesare Lombroso
(1835-1909) que, por sua vez, sofreu influência da Frenologia, desenvolvida pelo
alemão Gall. Esses estudos supostamente científicos relacionam tendências
comportamentais com heranças genéticas de uma maneira evolucionista, que
considera algumas raças mais profícuas a comportamentos degenerados, como
crime, preguiça, doenças mentais, portanto, menos profícuas ao desenvolvimento de
um povo capaz de sustentar formas de trabalho e de governo modernas, racionais.
Em termos nacionais, isso foi interpretado de maneira particular.
Para a escola de medicina baiana e para o médico legista criminal Nina
Rodrigues, assim como para a escola de direito do Recife e para Silvio Romero, a

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miscigenação definia a formação da sociedade brasileira e, com ela, vinham os


problemas e condições para a formação de uma nação republicana.
O problema se encerrava na maneira como os autores pensavam as raças,
sob influência do positivismo. Os estudos de antropologia criminal e forense desses
autores partiam do pressuposto que há raças mais fortes e mais fracas no sentido
evolucionista: há raças mais adaptadas ao desenvolvimento social e racional e raças
menos adaptadas. Foram os brancos que criaram a forma republicana de governar e
a própria ciência e segundo esses estudos outras raças, como negros e índios, não
teriam a mesma predisposição genética e histórica ao desenvolvimento e à
civilização.
Era comum, portanto, os criminalistas associarem comportamentos
criminosos, lascivos e doenças mentais à raiz mestiça da população brasileira,
levando em consideração os negros como fonte de degenerescência no processo de
formação da sociedade. A maior preocupação desses cientistas era considerar a
possibilidade ou não do desenvolvimento do país. Nesse sentido, a miscigenação
seria, além de um aspecto negativo à constituição do país, a causa principal do
atraso do Brasil em relação a outras nações e países civilizados e desenvolvidos.
Explicava-se, portanto, que o atraso na própria definição de formas de governo
republicanas e os altos índices de analfabetismo, por exemplo, seriam causados
pela mistura racial e, sobretudo, pela participação dos negros e índios nesse
processo.
Um dos resultados políticos mais expressivos dessa ciência das raças foi o
incentivo positivista para a migração europeia, sobretudo num período posterior à
abolição da escravatura. A imigração italiana, por exemplo, não somente foi
incentivada devido à intenção de trazer mão de obra para a lavoura de café, mas
também por ser uma população branca e europeia. Estudiosos da imigração
japonesa, por exemplo, falam sobre a diferença de tratamento, durante o período da
segunda guerra mundial, aos imigrantes italianos, japoneses e alemães (lembrando
que nesse período, o Brasil tornou-se aliado dos EUA e Rússia, inimigos declarados
de Japão, Itália e Alemanha).
Os vestígios das teorias racistas se enraizaram no imaginário nacional e
alguns autores argumentam, por exemplo, que a perseguição e o controle em

NÚCLEO COMUM 101


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relação aos imigrantes japoneses foram muito mais intensos do que em relação a
italianos e alemães. Essa seria uma expressão da influência das teorias racistas
para as políticas governamentais no início do século XX.
A própria miscigenação é tema recorrente até hoje quando falamos no
imaginário sobre a identidade nacional e a formação da sociedade brasileira.
Voltaremos a esse período no começo da Unidade IV. Foi a partir desse tema que
os primeiros ensaístas começaram a dialogar com as teorias racistas a partir de um
viés sociológico e antropológico, negando e criticando a visão de que a
miscigenação contribuiu para a degeneração da nação. Dentre eles, estão Gilberto
Freyre (1900 – 1987) e Euclides da Cunha (1886 – 1909), autores considerados por
sociólogos e antropólogos os primeiros a levantarem o problema da formação
brasileira com o olhar das ciências sociais e da história e não a partir de
pressupostos médicos ou jurídicos.

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Aula 18_Os Ensaístas

Nessa aula, vamos falar um pouco sobre as primeiras críticas tecidas às


teorias racistas no Brasil, feitas pelos autores conhecidos como ensaístas. Esses
autores ainda não são os primeiros antropólogos brasileiros porque, no momento em
que escrevem, ainda não temos instituições intelectuais e escolares com formação
antropológica ou universidades com um grupo de pesquisadores da área. No
entanto, são considerados importantes para a formação do pensamento
antropológico brasileiro, sobretudo porque suas críticas às teorias racistas compõem
estudos mais próximos ds ciências humanas e sociais.
Trataremos sinteticamente de dois desses importantes autores: Euclides da
Cunha, em seu livro Os Sertões, e Gilberto Freyre, em seu livro Casa Grande &
Senzala e.
Em Os Sertões, Euclides da Cunha narra a Guerra de Canudos. Bastante
plural e único, o livro é considerado leitura obrigatória para estudantes de literatura,
sociologia, antropologia, pelo seu viés literário e científico, ao mesmo tempo. Os
sertões é um dos primeiros ensaios a tratar da formação da sociedade brasileira
seguindo um recorte diferenciado, inaugurando os trabalhos que buscam interpretar
as características da sociedade brasileira segundo sua formação histórica particular.
Diferentemente dos autores das teorias racistas sobre a miscigenação, Euclides da
Cunha estudará as peculiaridades da adaptação dos sertanejos, considerando-os
como grupo social caracteristicamente brasileiro, não em termos raciais, mas em
termos sociais, culturais e históricos.
O autor também tece críticas ao determinismo ambiental que muito
influenciou os estudos sobre a sociedade brasileira: não é novidade para nós
relacionar o Brasil a uma civilização dos trópicos e, na época, isso significava
também que estávamos, enquanto nação, condicionados às doenças e à letargia
tropicais. Não somente as raças, mas o ambiente eram condições limitantes,
segundo autores das teorias racistas, para o desenvolvimento da nação. Euclides da
Cunha, por sua vez, considerou o sertanejo como totalmente adaptado à dureza do
ambiente do sertão: para Cunha, “o sertanejo é antes de tudo um forte”.

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De início, portanto, o autor considera que ao contrário do que diziam autores


como Nina Rodrigues e Silvio Romero, os mestiços não são a fonte de
degenerescência da nação, tampouco o ambiente, somado à fraqueza das raças
inferiores, é fonte de limitação à vida das populações brasileiras características,
como os sertanejos. Mas o autor não partiu com essas considerações quando foi
acompanhar a Guerra de Canudos. Republicano, Euclides da Cunha acompanhava
as preocupações da época, que já enraizavam a ideia de que os sertanejos seriam
parte da brasilidade, mas uma parte que preocupava o plano positivista e
republicano para a nação. Canudos, o monarquismo e a religiosidade lembravam o
passado do Brasil, que deveria ficar para trás e, durante muito tempo, os
miscigenados do sertão foram encarados como entrave a esse projeto.
Contemporâneo dos autores das teorias racistas e participante da elite
intelectualizada, Euclides da Cunha foi para o sertão preocupado com os rumos do
país após a abolição e proclamação da República. A fortaleza do sertanejo já
habitava o imaginário desses autores, que consideravam a sobrevivência do
sertanejo mestiço, em detrimento dos mestiços “neurastênicos” do litoral. No
entanto, Euclides da Cunha inova ao se preocupar em estudar as possibilidades de
incorporação desses brasileiros mestiços segundo políticas públicas, ao invés de
incentivar o branqueamento da nação, como defendia Nina Rodrigues, por exemplo.
Além disso, culpa também a história brasileira e a ineficiência política pelo
desenrolar dos fatos que desencadearam Canudos. Em resumo:
“O certo é o seguinte: se pelo caminho da ciência do século
XIX, Os Sertões encontra-se preso às amarras de uma visão
de mundo marcada por avaliações negativas sobre a terra e o
homem do Brasil, pelo caminho do simbolismo mítico (...) ele
supera os preconceitos e institui novas interpretações às
teorias cientificistas vulgarizadas na época. [...]. Os Sertões,
mais do que um livro em si, é o melhor exemplo da consciência
partida de uma geração na busca de sua identidade de povo e
nação. Se em 1897 Euclides da Cunha chegou ao arraial de
Canudos como mais um repórter, preso às visões civilizadas do
litoral sobre o sertão, o confronto com a trágica realidade

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dilacerou internamente o escritor, transformando o livro em um


manifesto a favor da memória dos heroicos seguidores do
Conselheiro, afirmando a existência de uma brasilidade
sertaneja, como algo essencial à formação histórica do Brasil.”
(OLIVEIRA, 2002, p.528)
Semelhante a Gilberto Freyre, portanto, Euclides da Cunha foi um dos
primeiros a escrever sobre a identidade nacional seguindo uma preocupação
cultural, social e política.
Gilberto Freyre pertence a uma geração posterior a Euclides da Cunha e é
considerado um dos pais das ciências sociais e da historiografia brasileiras.
Diferentemente dos médicos e juristas das teorias racistas e também do engenheiro
e jornalista Euclides da Cunha, Freyre foi um dos primeiros a dialogar diretamente
com teorias antropológicas. Gilberto Freyre estudou na universidade de Columbia,
nos EUA, e foi lá que teve contato com Franz Boas, pai da antropologia cultural. A
influência da antropologia de Boas marcará a interpretação particular de Freyre
sobre a origem miscigenada de nossa sociedade e de nossa cultura.
Freyre também discute a miscigenação como um dos fatores principais da
formação da sociedade brasileira e da identidade nacional, no entanto, a
considerando em termos antropológicos culturais e não evolucionistas. O autor leva
em consideração a participação de negros, brancos portugueses e índios na
formação da cultura nacional, pensando na contribuição cultural de cada uma
dessas “raças”. Gilberto Freyre não abandona o termo “raça” para pensar na
constituição da nação miscigenada, mas o pensa segundo uma perspectiva
totalmente diferente da perspectiva dos autores das teorias racistas, influenciado
pelo culturalismo antropológico norte-americano.
É exatamente no ponto de encontro do português e do negro que Freyre cria
o drama social do Brasil colônia. O ponto problemático é a afirmação simultânea de
desigualdade despótica, que a relação escravo/senhor propicia, com intimidade e
até, em alguns casos, afetividade e comunicação entre as raças e culturas. Nesse
ponto, surge a discussão do que afinal constituiria a especificidade da escravidão
brasileira. De onde ela vem, como e porque ela se distinguiria de outras sociedades
escravocratas. (SOUZA, 2000, p.118)

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Por fim, é importante referir que as ideias de Freyre sobre a contribuição


positiva de cada raça para a formação da identidade nacional e uma exagerada
tentativa de amenizar os efeitos mais perversos da escravidão acabam se
enraizando no imaginário nacional, sobretudo no desenvolvimento de uma visão do
Brasil que ficou conhecido como o “mito da democracia racial”. Lembramos que a
proposta de Freyre era dar outra interpretação à teoria sobre a miscigenação,
contrariando o etnocentrismo e os preconceitos recorrentes das teorias racistas. Os
que se empenharam em desenvolver o “mito da democracia racial” para esconder as
relações conflituosas entre classes e etnias fizeram propositalmente um indevido
uso das ideias de Freyre, pois o autor não tinha interesse em relacionar suas teorias
às políticas governamentais. A noção de democracia racial será reavaliada
posteriormente pelos primeiros antropólogos e sociólogos formados em escolas
brasileiras, como Florestan Fernandes.

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Aula 19_A Institucionalização do Pensamento Antropológico no Brasil

Em 1934 surgiu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,


decorrente da fundação da Universidade de São Paulo, (USP).
Na mesma época também foi fundada a Escola de Sociologia e
Política. Na primeira leva de professores fundadores da USP e
da ESP, muitos intelectuais estrangeiros foram contratados. Foi
assim que Roger Bastide, Emílio Willems, Claude Lévi-Strauss
passaram a trabalhar na primeira, enquanto Herbert Baldus,
Donald Pierson, na segunda, onde esteve como professor
visitante, por breve período durante a II Guerra Mundial,
Radcliffe-Brown. Também no Rio de Janeiro surgiu a
Universidade do Distrito Federal, onde Gilberto Freyre assumiu
em 1935, como seu primeiro professor, a cátedra de
Antropologia Social e Cultural; ocupou também a cátedra de
Sociologia, enquanto Arthur Ramos ficava com a de Psicologia
Social. (MELATI, 1990, p.11)
A Antropologia torna-se campo institucionalizado do conhecimento no Brasil
quando intelectuais de outros países chegam ao país para estudarem, dentre outros
temas, os índios brasileiros. Sob a influência desses autores se funda a antropologia
brasileira enquanto conhecimento institucionalizado, ou seja, enquanto formadora de
intelectuais brasileiros e também enquanto campo do conhecimento cujo objeto é a
sociedade brasileira.
Claude Lévi-Strauss chega ao Brasil recém-formado, em 1934, para assumir
a cátedra de professor de Sociologia na USP. Lévi-Strauss também estava
interessado em desenvolver seus estudos de etnologia com povos indígenas
brasileiros, seguindo um movimento de pesquisadores estrangeiros que muito
conheciam sobre povos da África e da Ásia e ainda conheciam muito pouco sobre os
nativos americanos, sobretudo nativos da América do Sul. Nesse momento, o autor
não havia ainda desenvolvido sua teoria do estruturalismo, que começa a tecer

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somente na década de 1950, depois de ter ido aos EUA e ter tido contato com a
linguística estrutural, mas sua influência no pensamento antropológico brasileiro é
clara.
Além de Lévi-Strauss, outros antropólogos e filósofos vieram na chamada
missão francesa direcionada à USP, dentre eles, Roger Bastide, que ficou conhecido
por ter sido pioneiro nos estudos sobre as religiões afro-brasileiras (1898 – 1974).
Nesse momento, o volume de temas a serem estudados e a nascente
institucionalização do conhecimento das ciências sociais no país, fazem com que os
autores caminhem por diferentes campos. Bastide era sociólogo, mas nesse
momento a sociologia e a antropologia no Brasil não se apartam totalmente. O
importante a notar é que estes temas inauguram as discussões propriamente
antropológicas no país. A etnologia indígena ou o estudo das religiões afro
inauguram, portanto, temas antropológicos brasileiros por excelência e também
inauguram a formação dos primeiros autores da área em instituições de ensino
superior no país.
A década de 1940 marca a chegada de outros autores importantes à
formação do pensamento antropológico brasileiro, como, por exemplo, os alemães
Emílio Willems (1905-1997) e Herbert Baldus (1899-1970), o norte-americano
Donald Pierson (1900-1995).
Willems lecionou na USP e na Escola de Sociologia e Política de São Paulo,
tendo sido o primeiro a ocupar a cadeira de antropologia na USP e, por isso, formou
muitos outros autores dentro da área, como Gioconda Mussolini (1913-1969).
Willems dedicou-se, dentre outros estudos, principalmente ao trabalho com
populações rurais brasileiras, seguindo uma proposta de estudo do ambiente rural
influenciada por autores americanos e também ingleses. Por isso o autor é bastante
referido dentro da tradição de estudos de antropologia rural no Brasil e considerado
um de seus fundadores.
Podemos citar também uma grande influência da antropologia alemã para os
estudos de etnologia no Brasil e, nesse sentido, podemos citar os trabalhos de
Herbert Baldus, que assumiu na Escola de Sociologia e Política de São Paulo a
cadeira de etnologia em 1939. O autor também se destaca nos estudos
arqueológicos brasileiros. Baldus, ao lado dos demais autores vindos com a missão

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francesa, acabaram lançando um dos principais campos de pesquisa da


antropologia brasileira atual: a etnologia indígena. Preocupados em documentar e
analisar a vida social e cultural dos indígenas brasileiros, esses autores acabaram
inaugurando uma preocupação antropológica eminentemente nacional, ou seja, a
preocupação em compreender as particularidades de cada grupo indígena que ainda
vivia em diferentes locais do país.
O estudo de etnologia é um marco, não somente nos estudos antropológicos,
mas também nos demais estudos sociais e históricos brasileiros, justamente porque
a ideia que se tinha do índio até então era influenciada pelas considerações sobre a
miscigenação. Para as teorias racistas ou para os ensaístas, a figura do índio para a
sociedade brasileira se estigmatizava pela sua presença histórica na formação da
sociedade e da cultura brasileira ou na formação da base genética dessa sociedade.
Até hoje, muito dessa visão do índio, como aquele representado nos quadros e
crônicas da colonização, é recorrente no imaginário da população. Esses têm a
preocupação de entender relações contemporâneas entre o índio e outros grupos
sociais brasileiros e, sobretudo, compreender as particularidades de cada etnia, até
então não estudadas.
Donald Pierson, por sua vez, também lecionou na Escola de Sociologia e
Política de São Paulo e, assim como Bastide, dedicou-se ao estudo dos negros.
Diferentemente deste último, seu intuito não era o de estudar as religiões, mas sim o
contato racial, a mudança social e as relações interétnicas, também conhecidas
nesse momento como fricções interétnicas. Notemos que as preocupações dos
autores são distintas, mas, assim como no caso dos estudos de etnologia indígena,
os estudos sobre a identidade negra e a cultura negra inauguram uma nova visão do
lugar do negro na sociedade brasileira. O estudo da cultura e das relações
contemporâneas aos autores traz o índio e o negro para o centro das pesquisas
antropológicas e sociológicas da época, desmembrando e vendo sob outra
perspectiva teórica o objeto principal dos autores anteriores: a miscigenação.
Na época de Nina Rodrigues e Silvio Romero, os estudos sobre a sociedade
brasileira eram orientados pela preocupação sobre a possibilidade de
desenvolvimento da nação e das estruturas republicanas. Mais tarde, com Gilberto
Freyre, a miscigenação passa a ser objeto específico da preocupação com o estudo

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da identidade cultural nacional e das especificidades de nossa história cultural e


social. No momento de institucionalização do pensamento antropológico no Brasil,
diferentes áreas do universo social brasileiro passam a ser objeto de estudo, como o
universo rural ou as culturas: indígena e negra. Isso acontece não somente porque o
campo intelectual estava crescendo e abria-se espaço para a especialização e
formação de mais autores, mas também porque esses autores são diretamente
influenciados pelas teorias antropológicas que estudamos no começo de nossa
disciplina, sobretudo o estrutural funcionalismo inglês e o culturalismo, além de
observarmos também uma grande influência dos estudos de etnologia alemães e
também dos estudos sobre aculturação e fricção interétnica desenvolvidos nos EUA.

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Aula 20_O ISEB: Alienação e Cultura

Nesta aula estudaremos como os intelectuais dos anos 1950, especificamente


autores ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB – estabeleciam
sua filiação a uma corrente de pensamento distinta daquela representada por Sílvio
Romero ou Gilberto Freyre, consequentemente, trazendo uma nova interpretação
sobre essas questões.
Os isebianos, ao construírem uma teoria do Brasil, retomam a temática da
cultura brasileira, mas vão imprimir novos rumos à discussão. Vimos como o
conceito de raça cede lugar ao de cultura. Agora é necessário compreendermos
como nos anos 1950 o conceito de cultura é remodelado.
Contrários a uma perspectiva antropológica, que toma o culturalismo
americano como modelo de referência, os intelectuais do ISEB analisam a questão
cultural dentro de um quadro filosófico e sociológico. Categorias como “aculturação”
são substituídas por outras, como “transplantação cultural”, “cultura alienada” etc..
Seguindo os passos da sociologia e da filosofia alemãs (Manheim e Hegel, por
exemplo), os isebianos dirão que cultura significa as objetivações do espírito
humano. Mas eles insistirão, sobretudo, no fato de que a cultura significa um vir a
ser.
Nesse sentido, eles privilegiarão a história que está por ser feita, a ação social
e não os estudos históricos. Por isso, temas como o projeto social e o papel dos
intelectuais se revestem para eles de uma dimensão fundamental. Ao conceber o
domínio da cultura como elemento de transformação socioeconômica, o ISEB se
afasta do passado intelectual brasileiro e abre perspectivas para pensar a
problemática da cultura brasileira em novos termos. Não seria exagero considerar o
ISEB como matriz de um tipo de pensamento que baliza a discussão da questão
cultural no Brasil dos anos 1950 até hoje.
O que chama a atenção nos escritos dos intelectuais do ISEB é que se
estruturam a partir dos conceitos fundamentais de alienação e de situação colonial.
As fontes originárias são: Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier. A dialética do

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senhor e do escravo torna-se clássica nas discussões sobre a dominação social,


econômica e cultural.
O conceito de situação colonial foi praticamente elaborado por Balandier, que
em 1951 publica um primeiro artigo a esse respeito nos Cahiers lnternationaux de
Sociologie. A originalidade de Balandier consiste em apreender o colonialismo
enquanto fenômeno social total. Nesse sentido, Balandier procura entender os
aspectos da dominação colonialista, seja no nível do imperialismo econômico, seja
em suas manifestações mais profundas que engendram a própria personalidade do
homem colonizado.
Balandier irá mais longe em suas análises e talvez seja o primeiro intelectual
que associe o conceito de alienação ao de situação colonial. Muito embora esta
questão não seja o cerne de sua abordagem, ele traz o problema da “tomada da
consciência” e o vincula diretamente à dialética do senhor e do escravo.
O tema da “tomada de consciência”, a que rapidamente se referia Balandier,
reaparece agora no interior do discurso do dominado. No mesmo sentido dirão os
intelectuais do ISEB: “A falta de consciência nacional, a falta de consciência crítica
em relação a nós mesmos se explica pela alienação, pois o conteúdo da colônia não
é a própria colônia, mas a metrópole.”
O que permite, no entanto, que dois assuntos distintos, a problemática racial e
a nacional, possam ser tratados e compreendidos através das mesmas categorias
teóricas? Dito de outra forma, o que existe de comum entre a temática da
dominação racial e da dominação colonial? Acreditamos que os movimentos negros
como os movimentos nacionalistas têm uma necessidade premente de busca de
identidade.
A crítica de Frantz Fanon (psiquiatra francês, escritor e combatente das lutas
de libertação do continente africano, morto em 1961) à ideologia do
embranquecimento se insere nessa perspectiva da procura de uma identidade
própria, desalienada do contexto social no qual foi fabricada. A cultura define,
portanto, um espaço privilegiado onde se processa a tomada de consciência dos
indivíduos e se trava a luta política.
Da mesma maneira considera Fanon que a libertação nacional é o único
quadro possível para a realização de uma cultura autêntica e nacional. A

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autenticidade marca, portanto, os diferentes níveis de manifestação da situação


colonial, ela é subjetiva, cultural e em última instância se realiza no interior de um
espaço nacional. Por isso a procura da identidade leva a uma indagação sobre o
homem negro ou o homem colonizado.
Maria Sílvia Carvalho Franco captou bem este aspecto do pensamento
isebiano quando dizia que seus intelectuais eram fundadores da sociedade civil
brasileira. A ausência de um “povo” caracteriza o passado brasileiro, no momento
em que os intelectuais do ISEB escrevem, afirma-se a existência de uma sociedade
civil que não possui ainda a devida expressão política. Ao se colocarem como
representantes legítimos do “povo”, o que eles de fato estão procurando realizar é
dar às classes médias um papel político que elas não possuíam até então. Nesse
sentido, a proposta política só pode ser reformista, nunca revolucionária.
Para Fanon, a nação não é somente uma realidade sociológica, sobretudo,
uma utopia. O presente é a luta anticolonialista que se abre para um ponto incerto
que faz do projeto revolucionário uma busca incessante, um movimento. Os
intelectuais do ISEB falam a partir de outra realidade política e social. A nação
brasileira não é algo que se encontra situado no futuro, pelo contrário, a existência
de uma sociedade civil atesta que ela é uma realidade presente, mas que não se
encontra ainda plenamente desenvolvida.

NÚCLEO COMUM 113


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Aula 21_Florestan Fernandes: da Antropologia dos Povos Indígenas ao Estudo


das Classes

Já mencionamos que quando nasce o campo das ciências sociais no Brasil,


as influências da Antropologia e da Sociologia se misturam e os autores caminham
por esses diferentes campos. Florestan Fernandes (1920 – 1995) é um dos autores
que se encaixam nesse perfil.
Conhecido como um dos pais da sociologia brasileira, Florestan Fernandes se
lança no universo intelectual do país com estudos de etnologia indígena, com sua
tese de doutorado intitulada A função social da guerra na sociedade Tupinambá.
Como o nome do trabalho já introduz, Fernandes escreve a partir de grande
influência do estrutural funcionalismo inglês, mais especificamente, sob influência
direta de Radcliffe-Brown. Nesse trabalho, o autor explora um dos temas de maior
repercussão sobre o universo da etnologia brasileira: os Tupinambás. Dizimados
pela colonização, os Tupinambás ficaram conhecidos por terem sido descritos em
livros de viajantes e cronistas, dentre eles, Hans Staden, viajante alemão que foi
capturado e seria morto e comido pelos indígenas caso não tivesse fugido.
A antropofagia indígena atingiu o imaginário da Europa e também dos
brasileiros justamente pela fama dos Tupinambás. Com o desenvolvimento da
Antropologia e da Sociologia brasileiras, o tema passou a ser objeto de análises
sistemáticas, A partir de dados históricos e informações desses cronistas, Florestan
Fernandes lançou mão do estrutural funcionalismo para buscar compreender o
significado das práticas antropofágicas e também da guerra para os Tupinambás.
Considerando a guerra como fato social, ou seja, como elemento que só pode
ser explicado pelo entendimento das relações sociais e culturais sustentadas pelos
Tupinambás, Fernandes tece uma análise sistemática e minuciosa dessas
narrativas. Além disso, essa interpretação funcionalista contrapunha muitas leituras
vigentes, que explicavam a guerra como um impulso da natureza humana. Enquanto
fato social, a guerra só poderia ser explicada se o observador partisse da forma da
organização social em que o fato social se sustenta e se expressa.

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No caso da perspectiva funcionalista, a guerra deveria ser vista a partir de sua


função social essencial: a manutenção da ordem social, a manutenção da estrutura.
Mas como a guerra e o canibalismo serviam à manutenção do funcionamento da
estrutura social Tupinambá? Segundo a pesquisa do autor, diferentes aspectos da
vida social desse povo se conectam ao universo de importância da guerra: as
relações de gênero, rituais de passagem, educação e status, ou seja, todos esses
elementos que falam sobre a socialização do povo Tupinambá passam pela guerra.
O canibalismo, por sua vez, deveria ser entendido a partir da compreensão de
seu significado ritual e mitológico. Como apontavam os próprios cronistas, o intuito
do cativeiro não era escravizar o inimigo e a prática do canibalismo não era fazer
uso da carne, mas sim do espírito do prisioneiro, incorporando sua alteridade à
unidade da estrutura. Para Fernandes, o canibalismo expressava a forma como esse
grupo incorporava o inimigo ao universo de sua sociedade, à sua estrutura social. A
própria socialização do outro passava pela guerra, portanto.
Por essas considerações, A função social da guerra na sociedade
Tupinambá, tornou-se um dos livros clássicos da etnologia indígena e, inclusive, é
bastante revisitado pelos etnólogos contemporâneos.
A passagem do Florestan Fernandes antropólogo para o Florestan Fernandes
sociólogo se dá pela influência do marxismo, mais especificamente, através da
identificação de Fernandes com a leitura do sociólogo Karl Mannheim (1893-1947).
Citamos aqui a importância dessa trajetória pessoal do autor porque sua mudança
de foco também implica em uma nova leitura de um tema bastante importante para a
Antropologia brasileira: o mito da democracia racial, consagrado pela leitura
culturalista da miscigenação.
A influência do marxismo e da sociologia da cultura para o trabalho de
Florestan Fernandes marca uma reviravolta nos estudos sobre miscigenação e
sobre a escravidão no Brasil. Lembremos, a partir de Gilberto Freyre, a ideia da
identidade nacional miscigenada e da participação positiva de cada uma das “raças”
para a formação da nação torna-se praticamente interpretação oficial sobre a
brasilidade. As teorias sobre as classes, trazidas pelo marxismo, vão contrapor-se a
essa visão da homogeneidade da identidade nacional. Um dos trabalhos que

NÚCLEO COMUM 115


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expressa essa crítica é o livro A integração do negro na sociedade de classes, de


Florestan Fernandes.
Nesse livro, além de descrever todo o problema da incorporação dos negros à
sociedade do trabalho livre, a argumentação que se desenvolve parte do
pressuposto de que a contribuição cultural dos negros para a formação da
identidade nacional não foi homogênea, tão pouco supera o fato de que a
escravidão criou uma desigualdade fundamental dentro da sociedade brasileira.
Além disso, a dissolução teórica dos conflitos entre classes e entre brancos e negros
causada pela incorporação oficial da teoria da miscigenação de Freyre acabou por
esconder ou dificultar a compreensão das condições objetivas de desigualdade entre
as classes. Mesmo nesse livro, a pluralidade metodológica que caracteriza a
formação das ciências sociais brasileira está presente. O autor chega a dialogar com
Roger Bastide e outros autores pioneiros nos estudos sobre a cultura negra, não
abandonando por completo, portanto, sua formação antropológica.
A falta de oportunidades de trabalho para os negros após a abolição e o
próprio incentivo à imigração europeia implicam em uma diferença essencial, muitos
anos após o início da escravidão. Esses dados dizem ao autor que não é correto
pensar nos termos de uma democracia racial no país se levamos em consideração
as diferentes condições de classe que separam negros e brancos e implicam em
conflito.
Autor plural, portanto, Florestan Fernandes destaca-se na Antropologia
brasileira não somente pela influência que até hoje tem nos estudos etnológicos,
mas também por acabar interpretando de maneira crítica a democracia racial e a
miscigenação, que durante muito tempo também foram objetos da Antropologia
brasileira.
Não podemos deixar de mencionar Florestan Fernandes quando pensamos
criticamente as noções de identidade nacional e democracia racial, termos que ainda
visitam o imaginário da sociedade brasileira. Isso acontece porque, como bem
levantou o próprio autor, as teorias sobre a miscigenação acabaram sendo retiradas
de seu contexto e incorporadas ideologicamente pelo discurso dominante, com o
objetivo de dissolver e esconder a compreensão objetiva dos conflitos e das
desigualdades que fundam a história e a estrutura da sociedade brasileira.

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Aula 22_Roberto da Matta: Carnavais, Malandros e Heróis

“Estou usando o conceito de dramatização e drama social


inspirado na obra de Victor Turner (..) para, através do estudo
sociológico de cerca de 100 casos do 'Você sabe com quem
está falando?'(...) chegar às suas propriedades estruturais,
invariantes. A noção de dramatização social é mais do que
adequada para tal apropriação teórica do meu material
empírico, dado que a própria situação a ser analiticamente
reconstruída é vista pelos membros da sociedade como um
'drama', uma 'cena', um momento acima – além ou aquém –
das rotinas que governam o mundo diário. Depois, conforme
indica Turner, o drama social tem como ponto básico a ação
que rompe com uma norma social vivida de modo quase que
automático, e também o conjunto de ações que desencadeiam
os processos compensatórios (ou de alívio). E, no caso em
estudo, ambos esses processos capitais dos dramas sociais
estão presentes.” (DA MATTA, R.:1981, p. 94)
Roberto Da Matta (1936) é um antropólogo brasileiro de uma geração
posterior aos autores que estudamos anteriormente. O autor dedicou-se a diferentes
temas durante sua carreira como antropólogo, tendo escrito sobre populações
tradicionais brasileiras, sobre etnologia indígena e mesmo sobre o ambiente urbano.
Nesta aula, destacaremos um dos temas que foi melhor e mais explorado
pelo autor: a Antropologia da sociedade brasileira. Em seu livro Carnavais,
Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, Da Matta desenvolve
uma argumentação antropológica sobre diferentes aspectos estruturais que
sustentam as relações sociais e culturais caracteristicamente brasileiras.
Diferentemente dos autores que falaram sobre a miscigenação ou mesmo
sobre os tipos culturais brasileiros, Da Matta se propõe a analisar aqueles aspectos
da cultura nacional que caracterizam nossas relações cotidianas que passam
despercebidas e que não teriam sido analisados anteriormente. Ao invés de buscar

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a cultura nacional naqueles elementos mais expressivos de nossa vida social, o


autor foi investigar aspectos não tão aparentes.
O livro Carnavais, Malandros e Heróis ficou conhecido justamente por tratar
de uma das principais festas nacionais, partindo da influência do antropólogo
britânico Victor Turner. Segundo Turner, em alguns momentos específicos, a
estrutura social se representa ao avesso: são momentos anti-estruturais. Nesses
momentos rituais, a sociedade representa o contrário da estrutura de relações
sociais. Segundo Da Matta, o Carnaval no Brasil é um exemplo desses momentos
rituais em que a sociedade permite aos sujeitos exercerem papéis que não
exerceriam nos dias comuns, que não exerceriam nos momentos estruturais.
No Carnaval, as classes baixas vão às ruas, tornam-se o centro das atenções
enquanto as classes médias e altas partem para assistir, além de ser um momento
antiestrutural por excelência: os homens se vestem de mulher, o momo vira rei.
Essas conclusões se complementam com as análises sobre paradas militares e
demais festas que sustentam o status estrutural das classes e dos sujeitos de poder,
como no caso do feriado do dia da pátria, por exemplo. Se esses feriados e paradas
sustentam os papéis estruturais, o Carnaval é uma inversão de status dramatizado.
A dramatização ritual é o momento em que a estrutura se mostra, deixando à vista
as relações sociais de poder, assim como o inverso delas.
Apesar de falar sobre um carnaval de outras épocas, a partir da
argumentação do livro, podemos notar alguns pontos especiais. Primeiramente,
assim como os autores clássicos chegam ao Brasil no momento de
institucionalização do conhecimento antropológico e influenciam os primeiros
autores, essa nova geração também é influenciada por uma segunda geração de
antropólogos, discípula dos autores clássicos, como é o caso de Victor Turner.
O carnaval e as festas cívicas representam, portanto, a vida cultural
hierarquizada da vida social brasileira. Esse é o tema central do trabalho e que fala
sobre o “dilema brasileiro” expresso no próprio título do livro. Tal dilema é a
expressão contraditória entre os aspectos autoritários e violentos estruturais à
sociedade brasileira e a representação desta como uma sociedade harmônica, que
busca a democracia. Há um contraste, por exemplo, entre o Brasil do “você sabe
com quem está falando?”, frase que resume bem a importância do status e do poder

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para a estrutura social e cultural brasileira, e o Brasil da democracia racial, o Brasil


do povo receptivo e festeiro. São expressões conflitantes da identidade nacional
que, até aquele momento, segundo o autor, não teriam sido exploradas da maneira
devida. A dramatização das relações sociais, para Da Matta, representa essa
contradição latente ao imaginário nacional.
Outro argumento do autor que expressa tal contradição é a oposição entre
esse universo daqueles que possuem status de poder, privilégios e direitos
efetivamente diferenciados e o universo ideológico da igualdade dos indivíduos.
Segundo Da Matta, é justamente esse aparato legal impessoal, destinado a
igualdade que acaba não existindo estruturalmente que sustenta a própria
desigualdade de direitos, pois é utilizado em prol da estrutura de poder que supera a
estrutura legal. A lei impessoal é, portanto, utilizada como instrumento de poder e
opressão por aqueles que são diferenciados. A religião, ou melhor, a religiosidade
presente nessa estrutura de relações, também serve, assim como a lei (que
aplicamos aos inimigos e não aos amigos), para dissolver a diferença e as relações
de poder: todos somos iguais perante a lei e perante Deus, mas não perante os
grupos de poder e de status.
Aos participantes do grupo de privilégios, cabe a reafirmação constante
desses direitos diferenciados. Aos demais, cabem as leis do mercado e da
burocracia, que reafirmam a igualdade individual. Isso quer dizer que, por exemplo,
se um advogado de alta classe ou um jornalista comete um assassinato, lhes cabem
todos os recursos legais garantidos, além das proteções indiretas daqueles que
pertencem ao seu grupo de poder, enquanto para um morador da periferia urbana
que comete o mesmo crime, cabe a pena máxima garantida pelo mesmo sistema
legal. Esse é somente um exemplo tão comum que podemos citar quando queremos
pensar na atualidade da interpretação do autor.
Notemos, por fim, como essa interpretação é distinta das anteriores propostas
de interpretação da cultura nacional e leva em consideração o poder, as inversões
estruturais e a dramatização da vida cotidiana para pensar nas relações culturais e
sociais que sustentam nossa vida. Isso se deve à proposta original de Da Matta,
mas também à influência de outros autores e outras correntes antropológicas que
também contribuem para a formação do pensamento antropológico brasileiro.

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Aula 23_A Tradição dos Estudos de Antropologia Rural no Brasil

“Podemos considerar que a fixação generalizada do paulista ao


solo, em seguida ao fim dos ciclos bandeirantes, no século
XVIII, fez com que se espraiasse pela capitania, até os limites
do povoamento, uma população geralmente marcada pelas
características acima definidas. Um lençol de cultura caipira,
com variações locais, que abrangia partes das capitanias de
Minas, Goiás e mesmo Mato Grosso. Cultura ligada às formas
de sociabilidade e de subsistência que se apoiavam, por assim
dizer, em soluções mínimas, apenas suficientes para manter a
vida dos indivíduos e a coesão dos bairros.” (CÂNDIDO, A.:
2001, p. 65)
No bojo dos temas discutidos pelos antropólogos brasileiros também se
encontra o estudo das populações rurais brasileiras. O tema se desenvolve,
sobretudo, na segunda metade do século XX, seguindo a necessidade de
interpretação teórica de um dos principais fenômenos econômicos e sociais da
época: o processo massivo de migração do campo para a cidade. Assim como os
estudos sobre os índios, os estudos sobre as populações rurais brasileiras
desenvolvem-se influenciados pela Antropologia europeia, sobretudo pelo estrutural
funcionalismo inglês, mas também são bastante influenciados por uma escola
antropológica e sociológica americana, que já havia estudado a relação entre campo
e cidade seguindo o que se convencionou chamar de estudos de comunidade.
O termo comunidade pode evocar diferentes estudos dentro da Antropologia.
Muitas vezes, o utilizamos para nos referir à análise de grupos sociais como
microssistemas. No entanto, estamos falando aqui de uma proposta de análise
específica, que leva em consideração o conceito de comunidade segundo uma
perspectiva específica também, que implica na observação da mudança social
dentro de situações de contato cultural. Tradicionalmente, portanto, os estudos de
comunidade que influenciam as primeiras leituras antropológicas sobre a relação
entre o universo rural e o urbano no Brasil são direcionados pelo conceito de

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aculturação e influenciados por estudos como os desenvolvidos pelo antropólogo


norte-americano Robert Redfield (1897 – 1958) com a população rural da península
de Yucatan, no México.
Os estudos de comunidades levam consigo a preocupação da relação entre
grupos sociais tradicionais com a economia política capitalista e a urbanização,
pensando na possibilidade de manutenção ou não das tradições culturais que
sustentam as relações sociais nesses grupos. Essa preocupação também está
presente nos estudos de Antropologia rural e de Sociologia rural brasileiros,
justamente pelos processos de transição na estrutura da sociedade ocorridos na
segunda metade do século XX.
Autores como Eunice Ribeiro Durham (1932) e Antônio Cândido (1918)
dedicam seus trabalhos a investigar a relação entre campo e cidade nesse momento
de transição, sobretudo, investigar os efeitos da urbanização e do desenvolvimento
capitalista para a tradicionalidade rural. Mesmo antes destes autores, o antropólogo
Emilio Willems havia discutido a mudança social em vilas do interior paulista,
mostrando a importância do tema para aquele momento da construção do aparato
teórico e metodológico da Antropologia no Brasil.
Antônio Cândido é mais conhecido como crítico literário, cadeira de pesquisa
que assumiu algum tempo depois de sua formação intelectual. Aluno da primeira
geração de autores da Antropologia e da Sociologia como disciplinas
institucionalizadas, como Roger Bastide, Antônio Cândido se formou sob a influência
indireta de autores da Antropologia inglesa e francesa, além de dialogar com os
estudos de comunidades norte-americanos. Foi colega de Florestan Fernandes que,
inclusive, o ajudou com a leitura e revisão do livro que exploraremos aqui: Os
parceiros do Rio Bonito.
Na introdução do livro, Cândido fala sobre suas influências, citando a
importância da leitura de Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss, além de Redfield. Os
conceitos utilizados por Antônio Cândido em Parceiros do Rio Bonito, influenciam os
estudos sobre populações rurais brasileiras, dentre eles a noção de cultura rústica e
a noção de bairro rural.
A intenção de Antônio Cândido era estudar não somente o efeito da mudança
sobre a estrutura social tradicional rural, mas também considerar a cultura rural a

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partir da obra de Lévi-Strauss. A noção de cultura rústica expressa essa influência


do estruturalismo francês. Segundo o autor, o caipira brasileiro, ou seja, o morador
do interior rural de localidades como São Paulo e Minas Gerais, tinha seu
comportamento social orientado por essa cultura chamada rústica, que implica em
uma forma de viver baseada no mínimo necessário. A busca pelo mínimo necessário
à sobrevivência e não pelo crescimento da produção, por exemplo, caracteriza a
vida dessa cultura tradicional rural. A busca pelo mínimo não é, portanto, um fator
limitante à sobrevivência das populações tradicionais, mas sim uma orientação
cultural por desejar somente o mínimo.
Por sua vez, a noção de bairro rural nos remete à influência de Radcliffe
Brown. Os bairros rurais seriam a unidade social estrutural, o menor sistema de
relações sociais estabelecido pelos moradores rurais. A cultura rústica e a análise
estrutural dos bairros rurais nos remetem a um ponto diferencial, portanto, na
proposta de estudo da relação entre a tradicionalidade e a modernidade. Para que a
mudança cultural ocorra, será necessário haver mudanças estruturais e isto significa
que a preocupação com a mudança social, nos termos dos estudos de comunidade,
é relativizada pelas demais influências antropológicas que Cândido segue.
As conclusões de Cândido levam em consideração, portanto, que mesmo em
um processo de mudança nas relações sociais e mesmo na cultura caipira, há
relações culturais que acabam se mantendo, sobretudo quando estes acabam
transferindo-se para o universo dos trabalhos urbanos. Esses estudos são base para
a tradição de estudos antropológicos sobre o universo rural brasileiro e sobre sua
participação na formação da sociedade brasileira.
No entanto, é importante também lembrar, quando estudamos a proposta de
Antônio Cândido, que havia uma preocupação essencial nesse momento de
transição da sociedade rural para a sociedade urbana em compreender a
possibilidade de incorporação democrática dos migrantes rurais, além da
possibilidade de que pudessem se desenvolver dentro do universo urbano.
Atualmente, há outras discussões em voga quando pensamos nos estudos
sobre a ruralidade brasileira. As teorias de Marshall Sahlins, por exemplo, foram
incorporadas por autores posteriores, que consideram os grupos rurais e populações
tradicionais brasileiras a partir da forma como estabelecem sua relação com o

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ambiente, com a terra e com os demais sujeitos do grupo ao qual pertencem. O


tema da identidade e também a visão de que a cultura é uma forma de pensar
influenciam os autores posteriores dentro dos estudos de Antropologia rural a
relativizarem as próprias categorias universalizadas por Cândido, como a noção de
cultura rústica, por exemplo.
Nos estudos de Antropologia rural atuais, as formas como os grupos se
identificam enquanto tais e também as formas como simbolizam suas relações são
consideradas preponderantes para o estudo da ruralidade e também da relação
entre o rural e urbano. Alguns autores, como Afrânio Garcia Jr, por exemplo,
questionam que a simples incorporação dos migrantes no sistema econômico e de
trabalho urbano não significa a perda desse olhar rural. Muitos dos migrantes vão
trabalhar nas cidades ou mesmo em áreas industrializadas para poderem
desenvolver suas terras e continuar o cultivo tradicional.

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Aula 24_Estudos Contemporâneos sobre Etnologia

“Qual é hoje a situação legal dos índios e de suas terras? Sem


entrar em muitos detalhes, salientarei alguns dados
fundamentais para o que aqui nos interessa. Os índios têm
direitos constitucionais, consignados em um capítulo próprio e
em artigos esparsos da Constituição Federal de 1988. A
Constituição trata sobretudo de terras indígenas, de direitos
sobre recursos naturais, de foros de litígio e de capacidade
processual. Pela Constituição, as terras indígenas são de
propriedade da União e de posse inalienável dos índios. A
Constituição não trata da tutela, que é um dispositivo enxertado
no Código Civil de 1916. Digo enxertado porque não constava
do projeto original de Clóvis Bevilacqua e foi acrescentado para
garantir, por analogia com um instituto já existente, proteção
especial aos índios. Eles foram assim enquadrados na
categoria de relativamente capazes que engloba os menores
entre 16 e 21 anos, os pródigos e, até 1962, quando se as
retirou do artigo, as mulheres casadas! Trata-se, como se vê
pelas outras categorias de relativamente capazes, de defender
os índios nas suas transações negociais, tentando impedir que
sejam lesados.” (CUNHA, 1994, p. 132)
Estudamos em nossas aulas anteriores diferentes momentos da formação do
pensamento antropológico no Brasil. Primeiramente, vimos como a vinda de
antropólogos de outros países influenciou a leitura antropológica brasileira, sendo
que com esses autores também vieram teorias para interpretação de problemas e
questões sociais e culturais nacionais. Nesse primeiro momento, a Antropologia
inglesa, francesa e norte-americana influenciam diretamente as interpretações sobre
temas importantes para a sociedade brasileira. Estávamos num momento de nossa
formação política e social em que a proposta não era defender uma identidade
nacional em prol do desenvolvimento republicano, como defenderam os ensaístas e

NÚCLEO COMUM 125


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os autores das teorias raciais. A proposta desses autores era encarar os fatos
sociais, políticos e culturais que explicavam situações de conflito ou de mudança e
que ainda não haviam sido estudados antropologicamente, como é o caso da
etnologia indígena.
No começo, havia um grande interesse por parte dos antropólogos pela
descrição de diferentes aspectos da vida social e cultural dos povos indígenas
brasileiros, que haviam sido pouco estudados. Etnias e diferentes temas sobre elas
próprias foram explorados pelos antropólogos estrangeiros e seus discípulos. No
entanto, a história da etnologia no Brasil segue a própria história da relação entre as
instituições governamentais e os índios, não somente segue o interesse de pesquisa
sobre os aspectos da cultura indígena. Devemos citar essa importância porque
muito do que hoje é o imaginário da população brasileira depende do papel dado
aos índios na formação de nossa sociedade.
Primeiro, o índio foi tratado como participante do processo de miscigenação, o
que contribuiu para a visão do índio como aquele que foi colonizado no passado e
dizimado pela cultura ou pela própria ocupação do território pelos portugueses.
Depois, foi redescoberto pelos autores que vieram lecionar Antropologia no país e
passou a ser tema de pesquisa novamente. Os costumes, a cultura, as relações
sociais dentro dos grupos indígenas passaram a ser objeto de pesquisa, assim como
as populações rurais, seguindo-se uma preocupação clara com o perigo de
desaparecimento das populações indígenas no processo de desenvolvimento
capitalista e da expansão da fronteira agrícola.
Junto com a retomada da preocupação com o estudo antropológico dos povos
indígenas brasileiros, surge a preocupação indigenista e sertanista também
retomada em meados do século XX. Os indigenistas e sertanistas, como os irmãos
Orlando, Carlos e Leonardo Villas-Boas, tentavam chegar aos povos indígenas
antes do progresso, que trazia doenças e mais mortes. Um dos autores que
podemos destacar, quando lembramos desses intuitos de contato e de proteção dos
índios é Darcy Ribeiro (1922 – 1997), que, junto com indigenistas foi um dos
primeiros a envolver-se politicamente na questão indígena brasileira.
O contexto das pesquisas com populações indígenas brasileiras começa a
mudar após o governo militar. O desenvolvimentismo e a intenção de ocupar a

NÚCLEO COMUM 126


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Amazônia propagados pelo governo militar passam a ser criticados e, após a


Constituição de 1988, a situação dos índios perante os estudiosos e perante as
políticas públicas muda também. Acontece que a Constituição abriu espaço para a
discussão dos direitos de populações tradicionais e da regulamentação do direito a
terra por parte dos povos indígenas, como bem nos lembra Manuela Carneiro da
Cunha na citação com a qual iniciamos esta aula.
No caso dos estudos etnológicos, notamos uma mudança de foco também. O
intuito de escrever sobre as particularidades das culturas indígenas não foi
abandonado, mas a questão política que envolve a relação entre a sociedade
brasileira e os índios mudou de figura, seguindo também um recorte antropológico
bastante específico. A cultura indígena passou a demarcar identidades que
sobreviveram e convivem até hoje com a nossa forma de governo e nossa
sociedade, inseridas ou paralelas. A afirmação ou a reafirmação das identidades
indígenas propiciadas pela Constituição de 1988 são estudadas pelo olhar de
antropólogos agora influenciados por novas leituras do estruturalismo e do estrutural
funcionalismo, sob a influência de Marshall Sahlins, por exemplo, mas também de
uma leitura mais filosófica do estruturalismo francês.
O problema do desaparecimento dos índios e de sua cultural foi substituído
pelo fato de que as culturas indígenas estavam retomando sua identidade perante a
estrutura legal e política nacional e os antropólogos teriam de lidar com esse
processo e buscar entendê-lo a partir de novas ferramentas antropológicas. A
atuação indígena no próprio congresso mudou a perspectiva a partir da qual a
sociedade brasileira enxergava os povos indígenas: de participantes na formação
genética da sociedade e de objetos em extinção para grupos organizados e
expressivos. A partir de então, os antropólogos também vêm buscando compreender
as perspectivas culturais, éticas e filosóficas desses povos trazendo à tona a
importância do diálogo entre as culturas.
Infelizmente, anos após tais conquistas, os direitos indígenas ainda são vistos
em termos de uma leitura bastante preconceituosa em relação à cultura.

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Aula 25_Formação Étnica e Histórica do Brasil

A cultura do Brasil foi moldada através das influências e da interação entre


indígenas, africanos e portugueses.
De acordo com MOTTA; CALDAS (1997, p. 16-17), Essas três etnias
misturaram-se em proporções diversas e deram origem a várias culturas no Brasil.
Dessa forma, é muito forte a cultura cabocla ou mameluca na região Norte, em
Estados como Amazonas e Pará, mas também em outras regiões e Estados. A
Oeste predomina a cultura sertaneja, que provavelmente combina as três matrizes
de forma mais equilibrada. Em São Paulo e Minas Gerais predomina a cultura
caipira, acrescida em São Paulo da cultura do imigrante, principalmente italiano.
Todavia, a presença do negro e do índio também são fortes, principalmente no modo
de falar.
A presença dos imigrantes europeus (não portugueses) e orientais
(principalmente japoneses e árabes) foi de grande importância na região Sudeste,
incluindo o Estado de São Paulo, mas especialmente na região Sul, isto é, nos
Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Imigrantes russos,
franceses e ingleses existem ou existiram no Sul, mas as colônias mais significativas
são as de alemães, italianos, poloneses e portugueses das ilhas de Açores.
As três matrizes étnicas que marcam a formação brasileira, no entanto, são
aquelas que predominam desde a formação do Brasil, no século XVI, ou seja, os
nativos (indígenas), os africanos (negros) e os portugueses (brancos).
Façamos, porém, uma reflexão mais aprofundada sobre a nossa formação e
nossa cultura. Quando perguntados sobre as matrizes étnicas da formação
brasileira, no geral, a resposta “negros, brancos e índios”, ou “africanos, portugueses
e índios”, aparece com alguma facilidade. Porém, há pelo menos dois aspectos que
nos ajudam a pensar melhor essa origem: uma se refere a esses povos diretamente;
outra é histórica, ou seja, precisamos pensar como se dá o encontro dessas três
etnias. Como veremos até o final do curso, esse aspecto histórico diz muito sobre
nossa cultura.
É necessário irmos para além das aparências e da superficialidade e
adentrarmos um tanto nessas questões, ainda que sinteticamente.

NÚCLEO COMUM 128


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a) As matrizes étnicas
O primeiro passo para sairmos do tratamento mais superficial sobre as
matrizes étnicas é percebermos que há especificidades em cada uma das matrizes.
Não estamos falando, portanto, do branco ou do europeu, mas de um dado povo da
Europa. Da mesma maneira ocorre com negros e índios.
A Europa, assim como o continente americano antes da descoberta e o
continente africano, abarca muitos povos, com histórias e especificidades culturais
muito próprias. Povos distintos, com culturas distintas. Por exemplo, os portugueses
falam um idioma latino, habitam a ponta oeste da Península Ibérica, possuem traços
culturais próprios e uma formação nacional das mais antigas da Europa. O
protagonismo no comércio mundial tornou Portugal, ao lado da Espanha, uma
grande potência dos séculos XIV, XV e XVI. A sua posição geográfica e as disputas
pelas rotas comerciais possibilitaram o desenvolvimento da tecnologia necessária
para navegação oceânica e abriram as portas para os descobrimentos. Os
portugueses são, portanto, um povo, com cultura e história próprias, com diversos
aspectos distintos daqueles dos demais povos europeus.
O mesmo ocorre com o que convencionamos chamar de índios ou povos
indígenas. Na verdade, essa é uma forma de generalização para se referir ao povo
nativo como se fosse uma coisa só. Na verdade, temos pelo menos dois grandes
troncos culturais e idiomáticos e, dentro de cada um desses troncos, diversos povos
distintos, com similaridades idiomáticas e culturais, mas povos diferentes que
formam uma grande diversidade cultural que, aliás, não estava fechada: havia o
contato entre esses povos por todo o continente, como demonstram os achados
arqueológicos de peças de cobre dos Andes próximas do que hoje é São Paulo e as
trilhas que ligavam regiões e aldeias, algumas muito extensas, como a trilha do
Peabiru, que vai do Paraguai a São Paulo.
Da mesma maneira era a composição do que convencionamos chamar de
negros ou africanos. O continente africano é vasto e possui, assim como a Europa e
a América, regiões e povos distintos. Em primeiro lugar, devemos localizar
geograficamente a “África negra”: falamos prioritariamente da região que está abaixo
(em direção ao sul) do deserto do Saara, ou a “África subsaariana”, como se
convencionou chamar. De lá foram trazidos para cá africanos escravizados. Mas

NÚCLEO COMUM 129


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esta região também possui povos e culturas distintas. Para o Brasil vieram tanto
grupos da Alta Guiné e sudaneses, quanto os angolanos. Os chamados “sudaneses”
estavam divididos em alguns agrupamentos culturais, como os iorubás e provinham
da região mais central da África. Os de origem banto (angolanos, moçambiques,
congoleses) vinham da região mais ao sul. Idiomas distintos, traços culturais
diversos, religiões distintas. Por exemplo, havia grupos islâmicos (como é mais
comum na região norte do continente africano) e grupos que deram origem ao culto
dos orixás no Brasil (Candomblé).
Enfim, pensar nas matrizes étnicas da nossa cultura exige pensar na sua
diversidade cultural e não cairmos em simplificações generalizantes que impedem a
justa compreensão da complexidade da nossa formação. Vamos ao segundo
aspecto.
b) A questão histórica
Geralmente, quando falamos da formação cultural brasileira e das matrizes
étnicas, corremos o risco de tratarmos o tema de maneira idílica, ou seja, um tanto
quanto pueril e fantasiada. Por vezes, ao estudarmos sobre a miscigenação e o
encontro desses povos e culturas distintos, deixamos de lado um aspecto
fundamental: a razão do encontro.
Pensar a razão desse encontro significa jamais deixar de lado a reflexão
sobre as questões históricas que permitiram que esses povos estivessem aqui no
começo do século XVI. Essa reflexão permite pensar objetivamente a formação do
Brasil e abre o caminho para irmos mais além: compreendermos alguns traços
culturais fundamentais da nossa formação.
De maneira rápida, para na aula seguinte aprofundarmos mais o
conhecimento do tema, devemos esquematicamente expor os pontos fundamentais
dessa reflexão. São eles:
a) a chegada dos portugueses se deve aos interesses comerciais e à sua
dinâmica do período. A ocupação do território obedece a questões que veremos na
aula seguinte, mas não podemos tratar dessa ocupação senão como uma invasão,
ou seja, os portugueses tomam para si um território que era habitado por diversos
povos nativos.

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b) a relação dos portugueses com os nativos foi sempre de subordinação


destes àqueles, mesmo quando alguns desses povos nativos colaboravam com o os
portugueses. A imposição da sua dinâmica e a dominação sobre os nativos foi a
tônica tanto da tentativa de escravização do nativo quanto do extermínio.
c) as relações sexuais ocorreram, no geral, via violência contra a s mulheres
nativas. Falar da miscigenação é falar da violência sexual sofrida pelas mulheres
indígenas. As mulheres europeias tardaram bastante a serem transferidas para a
Colônia.
d) o componente negro foi “trazido” para cá, ou seja, foi aprisionado,
transportado contra sua vontade e escravizado aqui. As mesmas práticas violentas
com relação aos povos nativos são replicadas aos povos negros.
Esses quatro pontos, assim sintetizados, permitem pensar a formação cultural
do Brasil a partir do que objetivamente ocorria aqui: um povo invasor/dominador que
impõe pela violência seus interesses. Eis aí a palavra que define um dos nossos
traços culturais mais característicos: a violência. Mas não é uma violência
generalizada: é uma violência bem direcionada e praticada / tolerada contra aqueles
grupos que foram suas vítimas historicamente (nativos, negros etc.) e contra grupos
que aparecem em situação de maior vulnerabilidade social, seja econômica
(população de rua, moradores das comunidades, favelas, periferias das grandes
cidades etc.), seja por preconceitos e questões culturais, como o machismo, a
homofobia etc. (mulheres, crianças, homossexuais etc.).
Um passo adiante na compreensão da nossa formação colonial e no seu
sentido permitirá agregarmos mais elementos para nossa reflexão.

NÚCLEO COMUM 131


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Aula 26_O Sentido da Colonização

“Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”
(Trecho d’O navio negreiro,
Castro Alves)
1. A expansão comercial
Entre os séculos IV e X a Europa foi abalada por constantes conflitos,
invasões e grandes deslocamentos populacionais. A partir do século XI, com uma
paz relativa, o trabalho artesanal, a agricultura e o comércio aumentaram
rapidamente de volume, tendo como consequências a geração de um crescimento
demográfico e de transformações dentro do modo de produção feudal.
Dentre as inovações técnicas que possibilitaram o aumento da produção
agrícola, podemos destacar a utilização do moinho hidráulico (que já era conhecido
anteriormente pelos europeus) e, a partir do século XII, do moinho de vento, trazido
pelos muçulmanos. Além disto, destacam-se a melhor utilização da força animal
(principalmente cavalo e boi), a fabricação de instrumentos agrícolas (enxadas e
forcados de ferro, arados dotados de rodas, etc.) e o surgimento de novas técnicas
agrícolas (adubagem, irrigação, melhor utilização do espaço destinado ao plantio)
que possibilitaram um grande aumento da produção, inclusive de produtos agrícolas
que seriam notadamente “comerciais”, como as videiras e oliveiras e outros ligados
à indústria têxtil (vegetais e animais, como a própria criação de carneiros,
principalmente na Inglaterra) (cf. Sodré, 1973).

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O aumento de mão-de-obra disponível permitiu com que novas terras


passassem a ser cultivadas e iniciou-se um processo de mudanças nas relações de
trabalho entre senhores e servos, com a introdução de pagamentos em dinheiro e
produtos, arrendamento de terras, possibilidade de venda do excedente da produção
nas cidades, etc. Muitos senhores feudais passavam, assim, à condição de grandes
arrendatários de terras, ao mesmo passo que a servidão caminhava para um
determinado declínio.
Parte da população oriunda deste crescimento demográfico passou a
concentrar-se nas cidades existentes ou mesmo formando novas cidades, cujo
surgimento era incentivado pelos senhores de terra, interessados nos ganhos com
novos impostos sobre as transações comerciais, aluguéis, etc. (VVAA, 1965, p. 16).
O trabalho artesanal migrou para as cidades, libertando-se dos laços feudais e
criando corporações de ofícios, incentivadas na sua produção pelo constante
aumento da necessidade de novos instrumentos agrícolas, de vestuário, de produtos
de uso geral e até mesmo artigos mais luxuosos, estabelecendo o comércio entre a
cidade e o campo.
Nessas corporações ocorreu um distanciamento progressivo entre mestres
(detentores da matéria-prima e dos mais caros instrumentos de trabalho) e
aprendizes e jornaleiros, embora estes ainda permanecessem possuidores de meios
de produção, assim como há uma divisão entre as próprias corporações,
classificadas entre as Artes Maiores e Artes Menores.
As Artes Maiores exigiam maior investimento e visavam a produção em larga
escala, também voltada para a exportação, como é o caso da lã e da seda em
algumas regiões da Europa. Já as Artes Menores visavam o atendimento das
necessidades da própria região, figurando dentre estes os sapateiros, padeiros,
marceneiros, etc.
O renascimento das cidades e a divisão entre cidade e campo, o
ressurgimento de relações monetárias, o surgimento do capital usurário, somados
aos demais elementos destacados acima, foram fundamentais para a expansão
comercial que extrapolou as fronteiras europeias, criando um sistema mercantil
internacional.

NÚCLEO COMUM 133


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A Europa ainda passou, no século XIV, por uma grave crise econômica .
Dentre seus motivos destacam-se a “Guerra dos Cem Anos” (travada entre
Inglaterra e França) e a chamada “Peste Negra”, que reduziram brutalmente a
população europeia, diminuindo também drasticamente a mão-de-obra disponível.
Somente a partir do século XV a população e a empresa comercial voltaram a
crescer apesar da permanência de crises econômicas, e em grande parte através
delas mesmo, principalmente por meio do comércio das especiarias, que era a
principal atividade mercantil europeia na época.
Desde logo é necessário destacar que “o caráter mercantil da produção , isto
é, o predomínio da produção para a troca não se confunde com o caráter capitalista
das relações de produção, que se baseiam no intercâmbio do trabalho vivo com o
salário” (Moraes, 2000, p. 162). Mesmo com o advento do mercantilismo, as
relações feudais, ainda que passando pelas transformações descritas acima,
prevaleciam em toda a Europa e persistiram, mesmo depois da revolução industrial,
por alguns séculos em algumas de suas regiões. (Sodré, 1973).
2. A expansão marítima e a supremacia portuguesa
No século XV, os grandes centros comerciais eram as cidades do Norte da
Itália e dos Países Baixos. O Mediterrâneo, a grande via de escoamento comercial
da época, tornou-se monopólio dos italianos e árabes. Além da necessidade de
buscar novas rotas para o comércio, o escoamento de moedas para o Oriente como
forma de pagamento das especiarias gerou uma escassez de metais preciosos,
prejudicando assim o comércio europeu. O caminho, tanto para baixar o preço das
especiarias, quanto para obtenção de metais preciosos para emissão de moedas, foi
a busca de novos mercados abastecedores, que consequentemente só poderiam
ser encontrados fora da Europa.
Diversos fatores fizeram com que Portugal se tornasse uma potência naval.
Dentre eles podemos destacar:
a) sua privilegiada posição geográfica, pois esta, ao lhe garantir saída para o
Atlântico, aumentava sua possibilidade de desenvolver o comércio ao longo da costa
africana e o estabelecimento de novas rotas para as “Índias”.
b) Portugal tornou-se reino independente ainda no século XII, delimitando
suas fronteiras (século XIII), estabelecendo uma monarquia centralizada, agrária,

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que impediu a formação tradicional do feudalismo. A baixa densidade demográfica,


agudizada durante a crise do século XIV, facilitou a utilização do trabalho de
africanos escravizados, ainda no século XV.
c) 1383: com a morte do rei D. Fernando inicia-se uma luta entre a nobreza e
o grupo mercantil e, em 1385, o Mestre de Aviz é coroado, tornando-se Dom João I,
marcando a vitória do grupo mercantil, apesar de seus sucessores terem oscilado
entre os interesses deste grupo e os da nobreza.
d) 1415: ocorre o início do devassamento do litoral africano: expedições em
busca de ouro, marfim e escravização de africanos; novas rotas de comércio com o
Oriente; formação de entrepostos comerciais na África e na Ásia..
A entrada do ouro africano e das especiarias asiáticas muda hábitos e torna o
comércio essencial e lucrativo. Basicamente, Portugal trocava produtos de países
europeus pelo ouro e pelas especiarias, que tornavam a serem vendidas aos
europeus. O desenvolvimento da indústria naval, com a adoção de técnicas que
permitiam a navegação pelos grandes oceanos, permitiu a Portugal o
estabelecimento de um comércio vigoroso, cujo monopólio foi mantido por quase um
século. Isto não impediu, porém, que entrasse, a partir do século XVII, “num ciclo
longo de decadência que, já no início do século XVIII, relegou Portugal à condição
de protetorado do Império Britânico” (Moraes, 2000, p.168).
3. A colonização do Brasil
A atenção de Portugal estava toda voltada para o comércio e a pilhagem na
África e na Ásia, onde havia cidades e povos que já conheciam o comércio, ao
passo que, no Brasil, além de não haver, aparentemente, grandes incentivos, como
a existência de metais preciosos, os nativos não conheciam o comércio e
mantinham uma produção voltada apenas para o próprio consumo.
O sistema de capitanias hereditárias foi o primeiro ensaio real de colonização,
no sentido de ocupação, que teve como incentivo maior a defesa do território, por
parte da Coroa portuguesa, em virtude das investidas nestas terras de outros países
europeus. Não havia, portanto, inicialmente, a intenção de habitar a região recém
descoberta. O que procuravam os europeus era reproduzir, na medida do possível, o
tipo de atividade desenvolvida em outras regiões do mundo, como as já citadas,
onde estabeleciam “simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e

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servir de articulação entre as rotas marítimas e territórios ocupados”(Prado Júnior,


1995). Nesse período inicial, em quase todo o continente americano o que
prevaleceu foi a extração de gêneros naturais, como madeira (notadamente, em
nossa terra, a madeira que lhe deu o nome), peles de animais, a pesca e metais
preciosos. Estes últimos incentivariam a ocupação espanhola, principalmente no
México e no Peru, como também serviriam, inicialmente e, principalmente, dois
séculos depois, para a intensificação da colonização portuguesa no Brasil.
O que é necessário que se apreenda para prosseguirmos é que as grandes
navegações, as descobertas, as pilhagens e os saques, o estabelecimento, como no
caso do Brasil, da grande lavoura, baseada na grande propriedade e no trabalho
escravo e todo o processo da colonização do continente americano são resultados
diretos da dinâmica do “sistema mercantil internacional” (Moraes, 2000)2.
O açúcar
O açúcar já era cultivado nas ilhas atlânticas pelos portugueses, além de já
fazer parte da dieta europeia. Era, portanto, um produto adaptável às terras
brasileiras e auxiliaria tanto na ocupação destas como na obtenção de lucros para a
empresa mercantil. Dá-se, assim, início, ao efetivo povoamento e colonização do
Brasil. Sua marca é a implantação da “empresa agrícola- comercial” (Furtado, 1972;
Prado Júnior, 1983) pelos portugueses, cujas características básicas são a grande
propriedade, o trabalho escravo, o monopólio do comércio pela metrópole e uma
economia agro-exportadora, “complementar à economia metropolitana” (Mello,
1984), exportando produtos da colônia e importando produtos manufaturados e,
depois, africanos escravizados.
O problema da mão-de-obra na Colônia.
Por que o trabalho escravo?
A escravidão, reinventada em pleno século XVI, não nasceu do
desenvolvimento das forças produtivas das comunidades primitivas, como ocorreu
em sua forma “clássica”, mas das necessidades do capital comercial. O monopólio
do comércio pela metrópole e seu controle sobre o preço de compra e venda
obrigavam uma produção em larga escala e de baixo custo, para compensar os altos
investimentos necessários para se colocar em movimento a grande lavoura
açucareira. Seria impossível a utilização de trabalho assalariado, pois os salários

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deveriam ser altíssimos para incentivar a vinda de trabalhadores para terras


brasileiras, além do que, havia uma grande quantidade de terras que poderiam servir
como fuga fácil a qualquer assalariado em busca da própria subsistência.
A transposição da forma de concessão de sesmarias de Portugal para o Brasil
não exigiria utilização de trabalho escravizado, exatamente porque em sua origem
ela não foi predominante. A ausência de uma grande massa de trabalhadores em
terras brasileiras tornava necessária a escravização, primeiro dos indígenas, depois
dos africanos.
a) a escravização dos indígenas
A solução inicial para suprir as necessidades de mão-de-obra para a empresa
colonial foi a escravização dos nativos das terras brasileiras. A morte trazida pelas
armas ou pelas doenças dos invasores e também pelo tipo de trabalho a que eram
forçados os indígenas reduziu, em pouco tempo, sua população e, em proporção
inversa, aumentou os problemas com a mão-de-obra para a lavoura.Como afirma
João Quartim de Moraes, “foi este imenso extermínio que tornou ‘necessária’ a
‘importação’ da força de trabalho africana exigida pelas grandes plantações”.
(Moraes, 2000, p.171).
Além disso, cabe acrescentar dois elementos fundamentais: o trabalho dos
africanos escravizados já era utilizado em Portugal, desde o século XV, e nas ilhas
de Madeira e Cabo Verde, onde também se cultivava a cana-de-açúcar; o segundo
elemento são os grandes lucros obtidos através da captura e do tráfico dos
africanos, que já era corrente para as colônias espanholas da América, antes de se
intensificarem com destino ao Brasil.
b) a escravização dos africanos
Os primeiros africanos chegaram com os portugueses, mas somente em 1549
foi desembarcado, em São Vicente, o primeiro contingente destinado à lavoura. Para
se ter uma ideia do crescimento da população escravizada, em 1586 a colônia era
composta por cerca de 57.000 habitantes, dos quais 14.000 africanos. Já em 1798,
a população da colônia era de 3.250.000 habitantes, dos quais 1.582.000 africanos,
ou seja, quase a metade. (Moura, 1994, p.47). Estatísticas aduaneiras permitem
chegar ao número de 4.850.000 a entrada de africanos escravizados no Brasil, até
1850. Deve-se considerar, porém, que há uma grande dificuldade de se estabelecer

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um número confiável, devido à escassez de documentação, em grande parte


destruída para a omissão destes dados e o contrabando, principalmente após 1850,
que marca a proibição do tráfico, além do alto número de mortes dos africanos
durante a viagem. Estima-se que de 10 a 30% dos africanos embarcados nos navios
negreiros não chegavam ao seu destino, devido às precárias condições do
“transporte”.
4. As heranças da formação colonial
Além do problema da escravização dos nativos e dos africanos, a forma de
manutenção da posse da terra acarretou grande atraso ao desenvolvimento
brasileiro. O período imediato pós-abolição é marcado pela marginalização do povo
negro e seu impedimento de acesso a terra. A abolição da escravatura, cujo ato final
foi marcado pela Lei Áurea, de treze de maio de 1888, não tinha preocupação
alguma com o destino do povo que sofrera mais de trezentos anos de escravização.
Antes mesmo deste ato final, ex-escravos já vinham instalando-se em regiões
economicamente decadentes - norte e nordeste, com o declínio das grandes
lavouras e da região das “minas” - geralmente praticando agricultura de subsistência
ou submetendo-se a formas de exploração do trabalho pré- capitalistas (colonato,
parceria, meia, terça, etc.). No caso do sudeste, para onde muitos migraram no
início do século XX, principalmente para São Paulo, com a lavoura do café e a
presença de indústrias, a marginalização dos negros foi ainda maior e o mercado de
trabalho ocupado em grande parte por trabalhadores imigrantes. Os negros
apertavam-se, dividindo espaço com imigrantes, principalmente italianos, em porões
e cortiços do centro da cidade.
Segundo Clóvis Moura, após a abolição
“houve um período no qual o negro não encontrava
possibilidades de se integrar economicamente e encontrar a
sua identidade étnica de forma não fragmentada e confusa. Daí
uma fase onde ele, como elemento mais onerado no processo
de passagem da escravidão para o trabalho livre, desarticulou-
se social, psicológica e culturalmente. Mas sempre procurou,
em nível organizacional, reencontrar-se.” (Moura, 1994:211).

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Os problemas oriundos de nosso tipo de formação inicial permanecem e


exigem solução histórica. Não apenas os relacionados com a forma de apropriação
da terra, baseada no latifúndio, mas também com a questão de classe envolvida no
caso do racismo brasileiro.
Além disso, não devemos esquecer que as relações de produção postas em
movimento durante a escravidão marcaram as relações posteriores e que o racismo
foi utilizado, principalmente desde a abolição, como uma justificativa para a
miserabilidade dos imensos contingentes populacionais, afrodescendentes ou não,
na medida em que pobres e miseráveis, desempregados e subempregados, são
vistos mais como vagabundos, desqualificados e sem vontade de “subir” do que
como produtos sociais do modo de produção capitalista e, no caso do Brasil, da
forma específica do desenvolvimento do seu capitalismo, feito pelo alto, articulando
o “novo” com o “velho”, sem participação popular.

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Aula 27_As Teorias Raciais do Século XIX e a Questão Racial

Nesta aula, estudaremos as principais teorias raciais do século XIX e a


identidade brasileira. A questão racial tal como foi colocada pelos precursores das
Ciências Sociais no Brasil adquire um contorno claramente racista, mas aponta, para
além desta constatação, um elemento significativo e constante na história da cultura
brasileira: a problemática da identidade nacional.
Para tanto, retomaremos brevemente as teorias explicativas do Brasil,
elaboradas em fins do século XIX e início do século XX. Os principais estudos e
teorias racistas desse período encontram-se nas obras de Sílvio Romero, Nina
Rodrigues e Euclides da Cunha. Esses autores, como já vimos, são considerados os
precursores das Ciências Sociais no Brasil.
Os escritos desses pensadores da realidade brasileira foram fortemente
influenciados pelo positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de
autores como Herbert Spencer. Elaboradas na Europa, em meados do século XIX,
essas teorias, distintas entre si, podem ser consideradas sob um aspecto único: o da
evolução histórica dos povos.
O positivismo se propunha a encontrar as leis que comandaram o progresso
das civilizações, aceitando a ideia de que o simples (povos primitivos) evolui
naturalmente para o mais complexo (sociedades ocidentais). Pode-se dizer que com
isso o evolucionismo em parte legitima ideologicamente a posição hegemônica do
mundo ocidental: a superioridade da civilização europeia torna assim decorrente das
leis naturais que orientariam a historia dos povos.
Nesse sentido, a importação de uma teoria dessa natureza deixa de colocar
problemas para os intelectuais brasileiros, interpretes da realidade brasileira. Como
pensar a realidade de uma nação emergente no interior desse quadro? O estágio
civilizatório do país se encontrava assim de imediato definido como “inferior” em
relação à etapa alcançada pelos europeus. Torna-se necessário, por isso, explicar o
“atraso” brasileiro e apontar para um futuro próximo, a possibilidade de o Brasil se
constituir enquanto povo, isto é, como nação. O positivismo fornece aos intelectuais
brasileiros os conceitos para a compreensão desta problemática. Se o positivismo

NÚCLEO COMUM 140


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torna possível a compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessária,


porém completá-la com outros argumentos que possibilitem o entendimento da
especificidade social brasileira. O pensamento brasileiro da época vai encontrar tais
argumentos em duas noções particulares: o meio e a razão. Os parâmetros raça e
meio fundamentam as análises dos intelectuais brasileiros de fins do século XIX e
inicio do século XX. A história escrita no período adquire sentido quando relacionada
a esses conceitos-chaves.
O argumento do meio propunha vincular o desenvolvimento das civilizações a
alguns fatores como calor, umidade, fertilidade da terra e sistema fluvial. Daí a
pergunta: se o Brasil contém esses elementos fundamentais, qual a razão da
inexistência de uma civilização nesta parte do mundo? A resposta, absurda, mas
convincente para o momento, era simples: por causa dos ventos alísios. Resulta
dessa interpretação um quadro acentuadamente pessimista do Brasil, onde a
natureza suplanta o homem, a cultura europeia tem dificuldades em se enraizar, o
que determinaria o estágio ainda bárbaro em que permanece o conjunto da
população brasileira.
A problemática racial é mais abrangente: Sílvio Romero chega a considerá-la
como mais importante que a do meio. Na realidade, ela é vista como “a base
fundamental de toda a história, de toda a política, de estrutura social, de toda a vida
estética e moral das nações”. A política de imigração desenvolvida no final do século
vem ainda reforçar a importância deste assunto. O movimento romantista elevou o
indígena como símbolo nacional e ignorou completamente a presença do negro. As
reflexões em relação ao cruzamento inter-racial são, no entanto, superficiais e pouco
esclarecedoras. Como fato político a Abolição marca o início de uma nova ordem
onde o negro deixa de ser mão-de-obra escrava para se transformar em trabalhador
livre. Evidentemente, ele será considerado pela sociedade como um cidadão de
segunda categoria. O negro aparece assim como fator dinâmico da vida social e
econômica brasileira, o que faz com que, ideologicamente, sua posição seja
reavaliada pelos intelectuais e produtores de cultura.
Para Sílvio Romero e Nina Rodrigues ele adquire uma importância maior que
a do índio, ou, como dirão alguns: “o negro é aliado do branco que prosperou”.
Abordar a problemática da mestiçagem é na realidade retomar a metáfora do Brasil

NÚCLEO COMUM 141


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cadinho, isto é, do Brasil enquanto espaço de miscigenação. Nesse momento torna-


se corrente a afirmação de que o Brasil se constitui através da fusão de três raças
fundamentais: o branco, o negro e o índio. O quadro de interpretação social atribuía
porem à raça branca uma posição de superioridade na construção da civilização
brasileira. Dentro dessa perspectiva, o negro e o índio se apresentam como entraves
ao processo civilizatório.
Surge assim um problema teórico fundamental para os “cientistas” do período:
como tratar a identidade nacional diante da disparidade racial? Da tentativa de
resolver esse problema decorre a necessidade de destacar o elemento mestiço. Na
medida em que a civilização europeia não pode ser transplantada para o solo
brasileiro (vimos que o meio é diferente do europeu), na medida em que no Brasil
duas outras raças consideradas inferiores contribuem para a evolução da história
brasileira, torna-se necessário encontrar um ponto de equilíbrio.
O mestiço é para os pensadores do século XIX mais do que uma realidade
concreta, ele representa uma categoria através da qual se exprime uma
necessidade social – a elaboração de uma identidade nacional. A mestiçagem,
étnica e moral, possibilita a “aclimatação” da civilização europeia nos trópicos. É do
resultado dessa experiência aclimatadora que se pode caracterizar uma cultura
brasileira distinta da europeia. O mestiço, enquanto produto do cruzamento entre
raças desiguais encerra, para os autores da época, os defeitos e taras transmitidos
pela herança biológica. A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral, intelectual
seriam dessa forma qualidades naturais do elemento brasileiro. Dentro desta
perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro só pode
existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser
realizada no futuro, ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira.
Por fim, é na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os
estigmas das “raças inferiores”, o que politicamente coloca a construção do Estado
nacional como meta e não como realidade presente.

NÚCLEO COMUM 142


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Aula 28_Origens do Racismo brasileiro

Na aula passada, vimos como as teorias raciais do século XIX e início do


século XX abordaram a questão do negro e a problemática da identidade nacional.
Nesta aula estudaremos as interpretações sobre a cultura brasileira do século XX.
Veremos as mudanças e permanências no enfoque teórico dado por autores da
primeira década do século passado.
São vários os autores que têm insistido sobre o aspecto da questão racial,
mas se é verdade que hoje existe uma ideologia da miscigenação democrática, é
interessante observar que ela é um produto recente na história brasileira. Houve um
tempo em que tínhamos preconceito explícito. Até a Abolição, o negro não existia
enquanto cidadão. Os primeiros estudos sobre o negro somente se iniciarão com
Nina Rodrigues, já na última década do século, mas sob a inspiração das teorias
racistas. Muito embora essas teorias sejam questionadas a partir da Primeira Guerra
Mundial, sua influência é tal que um autor como Oliveira Viana pode, em plena
década de 20, desenvolver um pensamento fundamentado nas premissas racistas
da virada do século.
Fica, porém uma pergunta: qual a razão de uma mudança tão radical, que
transforma o elemento mestiço, produto do cruzamento com uma raça considerada
inferior, em categoria que representa a própria identidade nacional? Acreditamos
que se considerarmos as relações entre cultura e Estado a questão pode ser mais
bem esclarecida.
Parece não haver dúvidas de que a ideologia de um Brasil - cadinho, isto é,
do Brasil enquanto espaço da miscigenação, começa a se forjar no final do século
XIX.
É, portanto, na virada do século que se engendra uma “fábula das três raças”,
como a considera Roberto da Matta. A ideia de fábula é sugestiva, mas talvez fosse
mais preciso falar em mito das três raças. O conceito de mito sugere um ponto de
origem, um centro a partir do qual se irradia a história mítica.

NÚCLEO COMUM 143


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A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofreu mudanças


profundas. O processo de urbanização e de industrialização se acelerou, uma classe
média se desenvolveu, surgiu um proletariado urbano. Com a Revolução de 1930 o
Estado procurou consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro deste quadro,
as teorias racistas tornam-se obsoletas, era necessário superá-las, pois a realidade
social impunha outro tipo de interpretação do Brasil. No nosso entendimento, o
trabalho de Gilberto Freyre vem atender a esta “demanda social”.
Gilberto Freyre reedita a temática racial, para constituí-la, como se fazia no
passado, em objeto privilegiado de estudo, em chave para a compreensão do Brasil.
Porém, ele não vai mais considerá-la em termos raciais, como faziam Euclides da
Cunha e Nina Rodrigues; na época em que escreveu fora fortemente influenciado
pela teoria antropológica culturalista de Franz Boas. A passagem do conceito de
raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a
respeito da herança negativa do mestiço. Gilberto Freyre transforma a negatividade
do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos
de uma identidade que há muito já vinha sendo desenhada.
A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das
teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso
comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos
como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional e há um
reforçamento do mito da democracia racial que, de um lado, afirma não haver o
racismo num país mestiço e plural e, de outro, esconde o racismo da maneira como
ocorre no Brasil.
O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos,
das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do
padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. O mito das três
raças é neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como
possibilita a todos de se reconhecerem como nacionais. 

NÚCLEO COMUM 144


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Aula 29_O Sentido dos Movimentos Populares e o Exemplo dos Movimentos


Negros no Brasil

O período pós-Abolição cria um mito do nativo e também deposita sobre a


população negra estereótipos que alimentam sua marginalização social. Desde a
compreensão de raças humanas distintas e superiores umas às outras, passando
pela ideia do embranquecimento da população como condição para o progresso,
culminando na atribuição de um amplo leque de qualidades supostamente naturais
ou genéticas que demarcariam a inferioridade do componente negro na formação do
Brasil, o fato concreto é que o conjunto das teorias racistas e da prática do racismo,
ainda que velado pelo mito da democracia racial, provocará sofrimentos diversos a
essa população e, consequentemente, reações mais ou menos organizadas a partir
do que chamamos aqui de movimentos negros que ocorrem ao longo do século XX.
Esta aula introduzirá o tema para, nas duas aulas seguintes, fazermos uma
síntese dos principais aspectos desses movimentos em três momentos distintos.
A relevância do tema não é somente a de melhor refletirmos sobre a questão
do racismo, mas a compreensão de que conhecendo mais e melhor a nossa história
podemos também entender e melhor modificar nossas relações e estruturas, no
sentido de relações mais justas, solidárias e fraternas. Também podemos
acrescentar outro aspecto relevante: no geral, os livros e cursos de história na
educação básica e mesmo nas disciplinas do ensino superior tratam a população
negra e também os nativos como se fossem apenas passivos historicamente,
recebendo uma ou outra migalha cedida pela sociabilidade organizada e dirigida
historicamente pela dominação europeia, como vimos. Compreender um tanto da
história dos movimentos negros significa perceber que há uma dinâmica nesse
processo que vai muito além do dar e receber: as lutas organizadas e empreendidas
por esse movimentos são responsáveis pelos avanços e conquistas dessa
população em termos de direitos e de espaço na história recente do Brasil.
Isso nos remete a uma reflexão inicial sobre o significado dos movimentos
populares ao longo da história, para chegarmos a uma constatação bastante

NÚCLEO COMUM 145


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interessante: embora a história seja, no geral, contada como uma relação de


dominação e de concessões por parte dos setores dominantes e de passividade por
parte de grupos específicos, o fato concreto é que os avanços e conquistas de
amplos setores se deveram à luta organizada ao longo do tempo e em condições
históricas as mais diversas. Isso serve para o movimento negro, mas também pode
nos servir para os nativos, os trabalhadores de um modo geral, mulheres, jovens,
homossexuais etc.
Para que possamos compreender a trajetória dos movimentos negros
organizados ao longo do século XX, portanto, devemos partir de algumas
observações prévias, para que o assunto seja compreendido em sua amplitude. Os
movimentos sociais não surgem do nada; não surgem do mundo das ideias ou de
cérebros iluminados que, como num despertar de um sonho, trazem consigo as
mensagens vindas de um mundo distante para o bem-estar dos humanos.
Tampouco surgem de “espíritos baderneiros”, como se costuma qualificar quaisquer
desses movimentos, como se fossem uniões voluntárias de desocupados que
resolvem perturbar a “ordem” social. Devemos compreender o surgimento desses
movimentos em dois sentidos: primeiro como uma resposta dada a uma situação
histórica concreta; segundo, como sistematização programática de proposições e
soluções objetivas para os problemas postos, desde os mais pontuais aos mais
abrangentes.
Localizados e localizáveis historicamente, os movimentos podem ser e ter as
mais diversas conotações, objetivos e características. Uma característica marcante
dos movimentos populares do século XX no Brasil é, de variadas formas, uma
reação organizada à ordem vigente, aos efeitos nefastos em suas vidas provocados
pelo desenvolvimento capitalista e suas contradições. Ou seja, os movimentos
organizados pretendem alcançar determinados objetivos, e somente para isto são
criados e, ao mesmo tempo, são criados porque naquele momento histórico esses
elementos que constituem seus objetivos estão, obviamente, ausentes
concretamente, surgindo daí a necessidade de organização. Sem isso não
existiriam, pois é apenas com o surgimento e a constatação de necessidades que
precisam ser sanadas que a forma e objetivos de organização também surge.

NÚCLEO COMUM 146


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O que pretendemos dizer com isto é que os seres humanos nascem e


crescem em momentos históricos específicos, alheios a sua vontade. Karl Marx dizia
que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, Karl. O dezoito Brumário
e cartas a Kugelmann. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974). Suas vidas não
dependerão apenas do que querem que elas sejam, mas de condições históricas
específicas, dentro das quais eles agem, que determinam inclusive os limites do que
os seres humanos querem para suas vidas. As necessidades, materiais e espirituais,
também são determinadas pela conjuntura histórica.
Os movimentos surgem, portanto, de necessidades específicas, postas
historicamente. Saber o que foram e o que são os movimentos negros é também
compreender as determinações históricas que proporcionaram seu surgimento, ou
seja, para estudarmos como foram e são esses movimentos, devemos compreender
os antecedentes históricos que os motivaram. Nosso objetivo e nossa intenção são,
portanto, proporcionar uma visão geral, ainda que sintética, sobre o desenrolar das
organizações do movimento negro no século XX.
O ponto de partida é o período pós-Abolição e, particularmente, a gestação do
mito da democracia racial, que serve de contexto para as primeira formas mais
organizadas do movimento negro, ainda que algumas das organizações vivessem
de uma certa ilusão integracionista.
A ideologia da democracia racial foi gestada no bojo das mudanças
provocadas pela revolução de 1930 no Brasil e pelo ascenso do movimento negro
organizado no mesmo período.
A “democracia racial” pretendia passar a ideia de que não havia no Brasil o
problema com o racismo. Constituído de vários povos, caracteristicamente mestiço,
de convívio pacífico e cordial, as diferenças sociais que marginalizavam o povo mais
pobre e negro seriam sanados na medida em que o desenvolvimento atingisse um
determinado nível. O “complexo de inferioridade dos negros” seria apagado,
portanto, pela sua qualidade de partícipe da união nacional destinada a galgar o
rumo do progresso. O trecho de Joel Rufino dos Santos, citado abaixo, é
esclarecedor do ambiente criado por esta ideologia:

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“Estávamos diante de uma concepção acabada do país como


grande família patriarcal, em que o macho branco ocupa o
centro, girando cada um dos parentes à sua volta, em círculos
concêntricos. Nessa família, em que todos se consideram,
acima de tudo, brasileiros, integrantes pacíficos da família
brasileira, o negro tem sua órbita – de parente pobre, é
verdade, mas não enjeitado e, provavelmente, agradecido por
constar dela”. (Santos, 2003).
Era como se houvesse um grande acordo velado, como se todos
participassem da negação sistemática da existência do racismo, como ainda vemos
em nossos dias. Algo como uma representação, um papel que encobre os
inconfessáveis segredos de seus atores, ou como uma situação em que se busca
tanto acreditar em algo, que se chega ao ponto de considerar quase como ofensa a
tentativa de levantar esta discussão.
Marcado por esta ideologia, o nascente movimento negro irá trilhar o caminho
do integracionismo, como se sua luta consistisse num esforço por estar em pé de
igualdade com os brancos, nesta concepção, adiantados pelo maior nível
educacional e cultural.
Os movimentos negros ao longo do século XX
Dividiremos a história do movimento negro no Brasil em três períodos,
seguindo a sugestão de Juarez Xavier (2003): o primeiro seria o da “ilusão da
integração pacífica”, cujo ponto máximo foi a criação da Frente negra Brasileira; o
segundo período, marcado pela denúncia do racismo, que se estende da década de
1930 até a década de 1970; por fim, o terceiro período, que é o da luta contra o
racismo e a estrutura que o reproduz, cujo ponto de partida é o ano de 1978, com a
fundação do MNUCDR (Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial).
Utilizaremos esta divisão em três períodos para facilitar nosso caminho na
compreensão do que foram e o que são os movimentos negros, ao longo de todo o
século XX. O primeiro e segundo períodos estão na aula 30 e o terceiro período na
aula 31.

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Aula 30_A Trajetória dos Movimentos Negros no Brasil (1º E 2º Períodos)

1º PERÍODO: de 1888 até a década de 1930


O período imediato pós-abolição é marcado pela marginalização do povo
negro. A abolição da escravatura, cujo ato final foi marcado pela Lei Áurea, de treze
de maio de 1888, não tinha preocupação alguma com o destino do povo que sofrera
mais de trezentos anos de escravização. Como vimos, antes mesmo deste ato final,
ex-escravos já vinham instalando-se em regiões economicamente decadentes,
geralmente praticando agricultura de subsistência ou migraram para cidades como
São Paulo, onde ocupavam os postos mais mal remunerados da divisão do trabalho
e onde eram preteridos pelo trabalho do imigrante.
Havia um reduzido número de negros que, superando as barreiras sociais,
conseguiram empregos mais estáveis, em escritórios e no serviço público. Este
segmento, em processo de ascensão, foi chamado por Florestan Fernandes de “elite
negra”, que se diferenciava da grande massa marginalizada e foi responsável pelo
surgimento de diversas organizações que congregavam a população negra em
atividades recreativas, culturais, beneficentes e políticas. Dentre elas, fundadas
entre 1927 e 1945, podemos destacar: Associação José do Patrocínio, Associação
dos Negros Brasileiros, Centro Cívico Beneficente Senhoras Mães Pretas, Centro
Cívico Palmares, Clube Negro de Cultura Social, Federação dos Homens de Cor,
Frente Negra Socialista, Grêmio Recreativo e Cultural, Grêmio Recreativo Kosmos,
Legião Negra Brasileira, Movimento Afro-Brasileiro de Educação e Cultura,
Organização de Cultura e Beneficência Jabaquara, Sociedade Beneficente 13 de
Maio e União Negra Brasileira. (Mendonça, 1996).
A imprensa negra
A partir destas organizações, uma quantidade considerável de jornais,
empenhados no combate ao racismo, que passaram a ser conhecidos como a
“Imprensa Negra”, tendo a frente principalmente esta “elite”, circularam por algumas
regiões do país, mas principalmente em São Paulo.
O principal objetivo desta imprensa negra era o de ser um veículo de
formação e informação da população negra, visto que eram tolhidos também pela

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grande imprensa “branca”. Começando pelo Menelik, em 1915, até o Correio


D’Ébano, em 1963, estes jornais terão forte influência na formação de uma
“ideologia étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu
comportamento”. (Moura, 1992).
Nestes jornais podem-se perceber as várias “correntes” do pensamento negro
na época, principalmente certa ética puritana, de objetivo integracionista, que
considerava que os negros deveriam igualar-se aos brancos através das virtudes
morais e da cultura. As notícias comuns ou os acontecimentos em geral estavam
ausentes destes jornais. Não há menção neles mesmo de fatos históricos
importantes e característicos da luta popular, como a Coluna Prestes e o levante
comunista de 1935.
É dessa primeira fase a criação da Frente Negra Brasileira, que seria o
primeiro grande movimento negro, inserido no campo político, a ter dimensão
nacional e que sofreu influência da ideologia da democracia racial.
A Frente Negra Brasileira
Os efeitos da crise de 1929, a confiança nas eleições e, posteriormente, na
revolução de 1930, que trazia consigo promessas de fazer valer os direitos do povo
negro, além da experiência conquistada através das diversas organizações e da
imprensa negra, formaram a base sobre a qual algumas lideranças do movimento
negro criaram a Frente Negra Brasileira, em 1931. O surgimento da FNB é o ponto
culminante desta primeira fase do movimento negro pós-abolição. Organizada
primeiramente em São Paulo e no interior do Estado, projetou-se nacionalmente,
congregando milhares de militantes e constituindo núcleos em outros estados, como
a Bahia, o Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco etc.(Mendonça,1996).
A FNB era organizada por uma rígida hierarquia, cujo presidente ou chefe
centralizava as decisões. Suas características mais marcantes, no campo
propositivo e ideológico, são: a busca da integração social, fortemente influenciada
pela ideologia da democracia racial; a defesa da pátria; “redenção da raça”, no
sentido de ascensão social, através da educação e do bom comportamento. Na
prática, os militantes da FNB procuravam romper as barreiras sociais impostas aos
negros para sua total integração, denunciando as manifestações de discriminação e
preconceito. Além disso, investia no preparo de seus membros para a “participação

NÚCLEO COMUM 150


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político-social integral, apoio aos anciãos, incentivo à poupança e aquisição da casa


própria, organização familiar, respeito à mulher e, integrado aos objetivos
educacionais gerais, ênfase na educação dos filhos”. (Mendonça, 1996:69). Ainda
constituíram uma organização paramilitar, cujos integrantes vestiam camisas
brancas e seguiam rígida disciplina.
A história da FNB é também marcada por críticas, oposições e dissidências. A
principal fonte destas críticas estava ligada à forte influência do movimento
integralista, marcado pelo ideário fascista. Os regimes totalitários em ascensão na
Europa e a figura do grande condutor, líder das massas, eram considerados os tipos
ideais de governo. “As ideias racistas, professadas pelo fascismo, também eram
elogiadas ao se justificar o lema ‘o Brasil para os brasileiros’, um país moreno, de
negros e mestiços, nesta visão, preteridos pelo estrangeiro.”(Mendonça,1996:70).
O grupo de militantes que publicava o jornal O Clarim da Alvorada,
republicano e democrata, um dos principais órgãos da imprensa negra, que
participaram ativamente da criação da FNB, acaba por romper com a organização,
devido às suas posições ideológicas, em 1932. O jornal A Chibata, criado por
remanescentes d’ O Clarim, tinha como objetivo a crítica e a sátira das posições da
FNB, que destruiu, através de um grupo de militantes e após apenas dois números
publicados, a redação deste jornal, que funcionava na casa de José Correia Leite.
(Mendonça, 1996). Este grupo originado n’O Clarim da Alvorada se organizaria no
Clube Negro de Cultura Social, de 1932, mantendo suas críticas à FNB e voltando-
se principalmente para a prática de esporte, cujo maior evento era a Prova Treze de
Maio, maratona realizada durante alguns anos.
Ainda em 1932, a FNB enfrentava uma grave crise interna, devido à divisão
ocorrida em torno da posição da organização diante da Revolução
Constitucionalista, desencadeada em São Paulo. Arlindo Veiga dos Santos, ainda
presidente, era contra a participação da FNB; de outro lado, alguns membros mais
jovens, chefiados por Guaraná Santana, diretor da FNB, defendiam a participação
dos negros no movimento armado, formando a Legião Negra, que participou
ativamente da luta ao lado dos paulistas.
Mesmo derrotado o movimento, a FNB passou por um processo de
depreciação de sua imagem diante dos paulistas, ocasionando a passagem da

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direção da organização para as mãos dos que combateram em 1932. Justiniano


Costa torna-se então seu presidente.
Mesmo não fazendo parte de seus objetivos iniciais, a FNB foi, aos poucos,
envolvendo-se com a política partidária. Lançou uma candidatura à Assembléia
Constituinte de 1934, que foi derrotada. Posteriormente, constitui-se como partido
político (1936), fechado após o golpe de Estado de 1937, que cassou todos os
partidos políticos e deu início ao período ditatorial de Getúlio Vargas, conhecido
como Estado Novo.
Após o seu fechamento, um de seus fundadores, Raul Joviano do Amaral,
fundou uma outra entidade, como nome de União Negra Brasileira, com a intenção
de substituir a FNB. Porém, a repressão da ditadura estadonovista a qualquer tipo
de organização impediu que seu objetivo alcançasse êxito.
Em 1938, ao se completarem cinquenta anos da abolição, a FNB e a União
Negra Brasileira, assim como os órgãos da imprensa negra, deixavam, pela
violência do Estado, de existir. Mesmo com as inúmeras críticas que sofreu e ainda
sofre a Frente Negra Brasileira, num ponto há convergência por parte dos militantes
do movimento negro: seu ineditismo e a importância de ter sido o primeiro
movimento político dos negros de grande envergadura.
2º PERÍODO: da década de 1930 a 1970:
Denúncias sociais da miséria provocada pelo racismo
A segunda fase é marcada pelo fim das ilusões da possibilidade de uma
integração social dos negros, baseada, como vimos, na ideologia da democracia
racial. Denúncias contra o preconceito e discriminação racial, as dificuldades
encontradas no mercado de trabalho e no acesso à educação, a miséria e a
marginalização da população negra, serão a tônica deste período que, a partir de
inúmeras organizações por todo o Brasil, buscarão também, em muitos casos, o
resgate e a resistência cultural.
Em 1944 surge o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do
Nascimento, um dos fundadores da extinta Frente Negra Brasileira. Além de ensaiar
e apresentar peças de teatro, o TEN publicou o jornal Quilombo e organizou o
Instituto Nacional do Negro. Em sua atividade, o TEN movimentou a consciência
negra e procurou “imprimir às suas atividades um conteúdo de elite cultural negra.

NÚCLEO COMUM 152


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Sob sua influência foi convocada a Conferência Nacional do Negro, em 1949”


(Moura, 1992).
Passado o período do Estado Novo, acabada a II Guerra Mundial (1939/45),
com a derrota do nazi-fascismo e deposto Getúlio Vargas, foi possível uma
rearticulação dos movimentos negros de forma mais ampla. O poeta Solano
Trindade, que também havia sido militante da Frente Negra Brasileira em
Pernambuco e criado, em 1936, o Centro de Cultura Afro- Brasileira, criou um grupo
de arte popular no Rio Grande do Sul e tentou, sem êxito, criar o Teatro do Povo, em
1945, no Rio de Janeiro; organizou o Teatro Folclórico Brasileiro, em 1948,
abandonando-o quando não concordava com o caráter “comercial” dado por um
empresário; ainda articulou o Teatro Popular Brasileiro, composto por integrantes
das camadas populares, viajando ao exterior, apresentando-se em várias capitais
europeias, dispersando-se logo após o regresso. Até sua morte, Trindade, em São
Paulo, manteria o Teatro Popular Brasileiro, com apresentações esporádicas.
Em 1945, fundou-se no Rio de Janeiro, no clima da redemocratização, o
Comitê Democrático Afro-Brasileiro, que trazia propostas políticas concretas, tais
como: a convocação de uma Assembleia Constituinte; anistia ampla e incondicional
para os crimes políticos; liberdade da palavra escrita e falada; liberdade de
agremiação; reconhecimento do direito de greve; atamento de relações diplomáticas
com a URSS etc. Outra importante organização do período foi a Associação Cultural
do Negro (ACN), criada em 1954, na rua São Bento, em São Paulo. Dentre seus
dirigentes estavam Geraldo Campos de Oliveira, Américo Orlando da Costa,
Américo dos Santos e José Correia Leite, antigo militante e fundador d’O Clarim da
Alvorada, um dos mais importantes órgãos da imprensa negra. Editavam o Caderno
de Cultura Negra e possuíam diversos departamentos, como de recreação, cultura,
esporte, estudantil e feminino.
No ano de 1958, a ACN, unida a outras organizações, como o Teatro
Experimental do Negro – TEN -, o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade, a
Associação dos Amigos do Homem do Norte e Nordeste, o Grêmio Estudantil Castro
Alves, a Sociedade Recreativa José do Patrocínio de São Miguel e o Fidalgo Club,
organizou atos para marcar a passagem dos setenta anos da abolição.

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Devemos ainda salientar o papel das escolas de samba e dos terreiros de


Candomblé que sempre serviram para agrupar parte da população negra e irradiar
sua cultura, apesar do caráter comercial que têm tomado o carnaval e as escolas de
samba, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Com a implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964, muitas
organizações foram fechadas e as dificuldades para qualquer movimento organizado
na sociedade tornaram-se imensas. As dificuldades oriundas do golpe militar e o
recrudescimento da ditadura, principalmente a partir de 13 de dezembro de 1968,
com o Ato Institucional número cinco – AI-5 – interromperam em grande parte as
iniciativas dos movimentos negros, inclusive as discussões acerca de questões
político- ideológicas, cujo debate florescia em muitas destas organizações.
No entanto, este longo período representou o acúmulo de uma massa crítica,
permitindo que se desse o salto qualitativo da intervenção dos movimentos negros a
partir da década de 1970.

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Aula 31_A Trajetória dos Movimentos Negros no Brasil (3º PERÍODO)

Da década de 1970 aos nossos dias: Luta contra as estruturas que


reproduzem o racismo
O dia dezoito de junho de 1978 entrou para a história dos movimentos negros
como o marco de uma nova postura e formas de organização. Nas escadarias do
Teatro Municipal de São Paulo, foi fundado o Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial – MNUDCR – como resultado do acúmulo das experiências
anteriores e da consciência de que a luta não deveria estar calcada na ideia de
integração social e nem na fase anterior, das denúncias, mas a população negra
deveria engajar-se na luta pela própria superação das estruturas que permitiam a
discriminação e a marginalização do negro no Brasil.
Essa nova fase, que perdura até nossos dias, elevou os movimentos negros a
novos patamares organizativos e ampliou o leque de sua atuação, no campo social,
cultural e político.
Existiram causas externas e internas que permitiram a abertura desta nova
fase dos movimentos negros. Dentre elas, podemos destacar como fatores externos
as lutas de independência das ex-colônias africanas e os movimentos pelos direitos
civis, ocorridos nos EUA, que projetaram internacionalmente nomes como Martin
Luther King e Malcom X; internamente, destacamos os nefastos efeitos da política
econômica da ditadura militar (arrocho dos salários, desemprego, concentração de
renda, internacionalização da economia etc), o fim do “milagre econômico”, a
decadência da ditadura e a rearticulação dos movimentos populares brasileiros.
Durante o período ditatorial houve um crescimento de faculdades particulares,
estimuladas pelo regime para solucionar o problema de vagas no ensino superior
público, ponto de tensão desde o início da década de 1960. O grande crescimento
econômico verificado em fins da década de 1960 até meados da de 1970, somado a
proliferação destas faculdades, ocasionou um aumento considerável de
universitários, dentre eles muitos negros, mesmo sendo ainda em número
incomparável com a quantidade de brancos.

NÚCLEO COMUM 155


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A ideologia da democracia racial, que tratamos anteriormente, fazia com que


muitos destes estudantes sonhassem com as possibilidades de ascensão social em
virtude de sua formação universitária. Porém, a realidade demonstrou que além de
permanecer ativa, a discriminação racial servia, nestes tempos de “milagre
econômico” como “incremento da competitividade [...] O choque entre a geração de
graduados negros dos anos sessenta e as desigualdades raciais estimuladas pelo
‘milagre econômico’ fez germinar os movimentos negros atuais; as influências norte-
americana e africana foram a semente”.(Santos,2003).
Clovis Moura chama de “universo letrado” esta classe média negra, em
contraposição ao “universo plebeu”, cujos membros seriam os negros
marginalizados nas periferias das grandes cidades, distantes mesmo das condições
mais elementares de vida.
A questão que surge para o autor e que deve também fustigar o raciocínio do
leitor é: por que o movimento negro contemporâneo surge da iniciativa desta classe
média, do “universo letrado” e não do “universo plebeu”, vítima maior das mazelas
econômicas e sociais patrocinadas pela ditadura militar e pelo desenvolvimento do
capitalismo no Brasil?
No campo das influências e da formação, podemos destacar que o “universo
letrado” captou as movimentações que partiram dos movimentos pelos direitos civis
estadunidenses e pelas lutas de libertação africanas, principalmente de países como
Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné- Bissau, enquanto o “universo plebeu”
estava mais ligado a entidades de cultura popular, como as escolas de samba que
“produziam uma cultura de assimilação de padrões brancos e sofriam e sofrem um
trabalho de cooptação muito bem organizado pelos diversos órgãos institucionais a
elas ligados”, além de estarem muito mais suscetíveis às influências diversas,
principalmente da mídia eletrônica, com suas características alienantes e
propositalmente formadoras de uma visão apolítica e acrítica da realidade.
A unidade nas propostas e nas lutas de ambos setores, letrado e plebeu,
nunca teve uma constante e durável existência. As tentativas para que se
removessem as barreiras entre os dois “grupos” geralmente partiram do primeiro ao
segundo, quase que numa imposição da sua “ideologia racial, política e cultural”.
Esta hierarquização do movimento e a falta de identidade entre estes dois universos

NÚCLEO COMUM 156


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fez com que os membros “plebeus” preferissem participar de organizações


reivindicatórias populares, de moradia, educação, segurança, transporte, etc, nas
quais de alguma forma, mesmo que sem reconhecê-lo, lutavam também contra as
barreiras impostas pela sociedade através do racismo.
Do MNUCDR ao MNU: mudança de foco
Num ato público que reuniu cerca de três mil pessoas foi fundado, em 1978, o
MNUCDR, como dissemos acima. Os motivos imediatos da convocação deste ato
foram casos de discriminação e violência ocorridos naquele ano, como por exemplo:
o Clube de Regatas Tietê, de São Paulo, havia proibido a entrada de atletas negros;
Robson Silveira da Luz, operário negro, foi assassinado por espancamento nas
dependências de uma delegacia; um outro trabalhador negro havia sido assassinado
pela polícia, no bairro da Lapa, também em São Paulo, poucos dias antes do ato.
(Mendonça, 1996).
Várias entidades de São Paulo participaram da preparação deste ato público,
que deu origem ao MNUCDR: Associação Recreativa Brasil Jovem, Núcleo Negro
Socialista, Afrolatino-América, Associação Casa de Arte e Cultura Afro-brasileira,
Associação Cristã Beneficente do Brasil, Jornegro, Jornal Abertura, Jornal Capoeira,
Company Soul, Zimbawe Soul, CECAN – Centro de Cultura e Arte Negra (que, por
medo da repressão da ditadura militar e por desavenças ideológicas, acabou por
não participar oficialmente. Alguns de seus membros organizaram-se como Centro
de Luta e Decisão, participando do ato) e a Câmara de Comércio Afro-brasileira (que
deixou de participar da organização e do ato).(Mendonça, 1996).
No dia do ato, além da participação de vários membros de entidades
democráticas, foram recebidas moções de apoio de Minas Gerais, Pernambuco,
Bahia, Rio de Janeiro, Sergipe e Alagoas, além de uma mensagem dos presidiários
negros da Casa de Detenção de São Paulo. (Moura, 1994). Estes apoios recebidos
retratam, na opinião de Clóvis Moura, que além de existir em nível nacional os
mesmos problemas referentes à discriminação racial ocorridos em São Paulo,
problemas estes recrudescidos pelo regime ditatorial, havia um “nível de consciência
racial sincrônico que determinou a atitude de solidariedade”. Ainda segundo o autor,
a manifestação de solidariedade e protesto de seis Estados da Federação davam ao
movimento que nascia em São Paulo uma dimensão nacional, o primeiro após a

NÚCLEO COMUM 157


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Frente Negra Brasileira, além de demonstrar uma “articulação ideológica do negro


em caráter nacional”.(Moura, 1994).
Os dois principais objetivos da criação do MNUCDR, parcialmente cumpridos,
foram desmascarar o mito da democracia racial brasileira e articular as lutas dos
afrodescendentes com as lutas dos demais marginalizados. Segundo Dennis de
Oliveira, o primeiro objetivo foi cumprido, inclusive contando com a produção teórica
de importantes intelectuais, como Florestan Fernandes e Clóvis Moura,
desmascarando o mito da democracia racial e “denunciando os mecanismos racistas
que colocavam o negro como ‘cidadão de segunda categoria’”.(Oliveira, 2003). O
segundo objetivo, porém, mesmo presente inicialmente, é abandonado pelo
movimento logo após sua fundação, que passou a denominar-se apenas Movimento
Negro Unificado – MNU – e adotou um projeto de minorias, fortemente influenciado
pelas lutas estadunidenses pelos direitos civis.
Esta mudança de objetivo restringiu o campo de atuação do MNU, que
passou a ser alvo de muitas críticas por parte de outras organizações existentes e
que surgiram após este período. As diferenças da formação brasileira e
estadunidense são invocadas pelos críticos desta nova postura do MNU. Segundo
eles, há duas diferenças básicas, que impossibilitam uma estratégia de minoria no
Brasil, como a levada a cabo pelos movimentos nascidos nos EUA. A primeira delas
é a forma como se desenvolveu e construiu-se a hegemonia do modo de produção
capitalista e sua superestrutura no Brasil e nos Estados Unidos: no caso deste, a
afirmação capitalista deu-se através de uma guerra civil, que colocava em lados
opostos o norte, desenvolvido e capitalista, vitorioso na guerra, ao sul,
predominantemente agrário e baseado no trabalho escravo; do lado brasileiro, além
das particularidades da sua formação colonial, o desenvolvimento das relações
capitalistas deram-se “no seio da sociedade escravista”.(Oliveira, 2003). A segunda
grande diferença entre os dois países trata da questão quantitativa da população
negra: nos EUA, esta população não chegaria a 20% do total, enquanto que no
Brasil, constitui a maioria (Oliveira, 2003). Por estes números, justifica-se a luta
dentro do projeto de minoria naquele país, enquanto que no Brasil, os movimentos
negros devem articular-se com outros seguimentos e organizações dos movimentos
sociais na busca pela superação das próprias estruturas marginalizantes.

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Organizações, conquistas e desafios.


É inegável que o movimento negro obteve grandes êxitos nos últimos anos. A
grande proliferação de organizações políticas e culturais permite uma maior
visibilidade e garantem também maior poder de inserção dos afrodescendentes em
todos os níveis e setores da sociedade brasileira, ainda que existam conflitos no seu
próprio meio.
Dentre as conquistas do movimento negro contemporâneo podemos destacar:
a institucionalização do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra;
legislação antirracista, como a que trata como crime inafiançável a prática de
racismo ou qualquer tipo de discriminação racial; o desuso cada vez maior de
termos preconceituosos e outros, como determinadas piadas que colocam a questão
racial como centro; o resgate da história e da importância dos africanos e
afrodescendentes na construção do Brasil, desmascarando o mito da democracia
racial e a truculência das elites brasileiras e de seus projetos racistas excludentes e
até de extermínio da população negra e marginalizada; a obrigatoriedade de serem
incluídos nos programas escolares da rede pública e particular o estudo da história
da África e sua cultura e a presença e contribuição dos africanos e
afrodescendentes na construção do Brasil, em todos os sentidos; a proposição, o
debate e a concretização de políticas afirmativas, como a questão das cotas nas
universidades etc..
Existe, portanto um grande número de organizações envolvidas com as
questões políticas e culturais dos afrodescendentes. Como já dissemos, há um
grande debate no interior do movimento negro sobre caminhos a seguir, uma
polêmica que é naturalmente compreendida, tendo em vista a multiplicidade de
organizações e atividades diferenciadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Passamos nessas duas últimas aulas, sinteticamente, por todo o século XX,
procurando demonstrar a trajetória dos movimentos negros e as especificidades de
cada período. Mas, obviamente, há muita informação e muito a se estudar para
compreender a história, as contradições e os desafios dos movimentos populares no
Brasil e dos movimentos negros, em particular. Indicamos o estudo mais
pormenorizado das discussões relativas às políticas afirmativas, tão atuais e

NÚCLEO COMUM 159


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polêmicas, além das questões legislativas, que são amplamente divulgadas através,
por exemplo, de páginas na internet das organizações, jornais e revistas. As
resoluções da Conferência de Durban (Conferência Mundial Contra o Racismo,
Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001), são interessantes para uma
visão global da questão. Fora esses documentos mais atuais, conhecer mais e
melhor a história do nosso país e os livros de Clóvis Moura são, sem dúvida
alguma, obrigatórios para os que pretendem compreender melhor o assunto.

NÚCLEO COMUM 160


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Aula 32_Uma Reflexão sobre os Direitos Humanos

É interessante começarmos a aula com um rápido exercício: cada um


responda para si mesmo – o que entende por Direitos Humanos?
O que costuma vir à mente, em resposta à pergunta acima é um conjunto de
aspectos que faz parte da ideia de Direitos Humanos, mas não os define
perfeitamente: a proteção às minorias desfavorecidas, como seriam os idosos, as
mulheres, os homossexuais, os afrodescendentes; o resguardo de liberdades
essenciais; o artigo 5º da nossa Constituição Federal; a defesa da dignidade,
inclusive, dos criminosos; a proteção contra os riscos das ditaduras e da repressão;
a condenação da miséria etc..
Para chegarmos ao conceito contemporâneo de Direitos Humanos
precisamos analisar o termo, todas as noções que são evocadas pelo termo, as
constantes que vinculam essas ideias – quando acertadas – e seu fundamento na
realidade vital da vida social.
Os Direitos Humanos são direitos, e não princípios ou ideais, porque atendem
ao requisito da bilateralidade atributiva, segundo o qual, conforme ensina Miguel
Reale, pode ser reconhecido um fenômeno como jurídico pela relação entre dois ou
mais sujeitos cuja reciprocidade é a de se poder exigir ou fazer algo de forma
garantida. Em outras palavras, se alguém tem direito de algo, outra parte tem o
dever de garantir esse direito, para que ele o seja em realidade. Isso nos conduz à
pergunta: o que garante a juridicidade dos Direitos Humanos? Segundo a
Declaração dos Direitos Humanos de Viena, de 1993, são responsabilidades
primordiais dos Governos a promoção e a proteção dos Direitos Humanos.
E por que humanos? Será que é assim para se evitar qualquer dúvida sobre
se esses direitos protegem homens, tatus-bolas, árvores ou pedras? A verdade é
que essa designação não pretende diferenciar os seus titulares dos outros
segmentos da vida assim como ela se manifesta no planeta, mas especificar que
esses direitos devem valer para todos os seres humanos, universalmente
considerados, e não somente para os cidadãos de uma ou outra nação. É a pessoa

NÚCLEO COMUM 161


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humana, o sujeito de direitos. E é por isso que se fala da universalidade dos Direitos
Humanos.
As normas de Direitos Humanos são internacionais e oferecem proteção a
todos, sem distinções entre nacionais e estrangeiros. Enfim, o conceito
contemporâneo de Direitos Humanos visa respeitar a dignidade humana e combater
o sofrimento, proclamando direitos como a vida, a liberdade, a igualdade e a
segurança, por meio de Convenções Internacionais, de forma universal e indivisível.
Nesse sentido, podemos definir os Direitos Humanos como aqueles direitos
inerentes às pessoas, dirigidos a proteção destas, aceito por todas as culturas, isto
é, por todos os Estados Soberanos que os ratificam.
Ainda que a ideia de sujeito de direito seja permeada pela concepção liberal
de indivíduo e, portanto, seja altamente questionável e auxilie na ocultação das
relações objetivas de exploração entre classes como ocorre no capitalismo,
devemos considerar a noção de Direitos Humanos e a luta para que seus princípios
sejam seguidos por todos os países como um avanço civilizacional importante ou, no
mínimo, tomar seus princípios como uma importante arma de combate às injustiças
e desigualdades presentes em nosso tipo de sociabilidade, principalmente em
países da periferia do sistema, como o Brasil, com agravante de nosso recente
passado escravista, como estudamos nas aulas anteriores.
Portanto, ainda que permeado por contradições próprias do nosso tempo, a
noção de Direitos Humanos permite um avanço positivo, baseada em três pontos
fundamentais: a) a liberdade pública, compreendida como a proteção da liberdade e
dos direitos da pessoa; b) direitos econômicos e sociais; c) Direito de Solidariedade
Podemos separar dois grandes grupos que defendem a noção de Direitos
Humanos. O primeiro grupo procura fazer uma defesa teórica da tese dos Direitos
Humanos que resvala necessariamente para a defesa de uma suposta “natureza
humana”, ou seja, esses Direitos Humanos que são afirmados agora existem desde
que a espécie humana surge na natureza, ainda que não sejam reconhecidos e
defendidos. A partir dessa perspectiva, a compreensão é a de que temos direitos
humanos que são direitos naturais, ou seja, eles são parte da nossa espécie, nos
ajudam a mantermos a espécie e, ao mesmo tempo, definem as condições (pelo
menos as mínimas) para que sejamos compreendidos como espécie humana.

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Existe, portanto, uma fusão dessa perspectiva com formas do que se convencionou
chamar de jusnaturalismo, ou seja, “direitos naturais”, pertencentes ontologicamente
à espécie. Essa perspectiva está ligada à compreensão liberal do indivíduo, como
dissemos no parágrafo anterior. O segundo grupo não parte da noção de uma
natureza humana que não se altera historicamente (ontológica, ou seja, própria do
ser), portanto, não pode partir da ideia de que os Direitos Humano sejam direitos
naturais que existem desde sempre, embora sejam reconhecidos somente agora.
Para este grupo, como já mencionado mais acima, a noção dos Direitos Humanos
aparece como um avanço do nosso tempo e um instrumento a mais de defesa de
liberdades mínimas e de conquista de proteção contra as formas variadas de
repressão política e violência social nas quais vivemos e se repetem ao longo da
história recente. Neste caso, a luta pelos Direitos Humanos está revestida de um
caráter progressista e positivo, que pretende, ao mesmo tempo, assegurar as
garantias mínimas de existência a toda a espécie e avançar para as possibilidades
abertas de novas formas de organização da vida social, baseadas na solidariedade
e na divisão da abundante capacidade de produção da riqueza material que
possuímos, garantindo condições dignas de vida à nossa espécie e uma nova
maneira de nos relacionarmos com o restante da vida no planeta.
Seja como for, como tese da natureza humana ou como instrumento de lutas
por avanços civilizacionais, o mais importante é refletirmos sobre os Direitos
Humanos como meio para atingirmos melhores e mais harmoniosas formas de vida
coletiva.
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