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CORPO FRACTAL | MOVIMENTOS INDISCERNÍVEIS

PARA UMA GUERRILHA TÁCITA

Dani Spadotto

programa performativo performance arte


pensamento esquizo biopolítica

O presente ensaio aspira compartilhar um sistema de criação cujo princípio poético é


o pensamento e o modo de ser esquizo. Tal sistema situa a esquizofrenia como uma
episteme desterritorializada e imanente, capaz de descolonizar o pensamento, sub-
verter a linguagem e, por conseguinte, abrir campo para ressignificação simbólica e
restauração do imaginário singular.

capital. FRACTAL BODY | INDISCERNIBLE MOVEMENTS


FOR TACIT GUERRILLA | The present essay intends
coreografar as vísceras até a exaustão to share a system of creation whose poetical
principle is a schizophrenic form of thought and
dizem quando é loucura tudo cai no poço do es- being. Such system places schizophrenia as a
quecimento então basta engolir a mão de punho deterritorialized and immanent episteme capable of
cerrado e ao chegar no estômago abrir os dedos decolonializing thought, subverting language and
therefore capable of opening a field for symbolic
o máximo possível para retirar de dentro todas as resignification and restoration of the singular
palavras desacreditadas palavras-delírios afogadas imaginary. | Performative program, performance
compulsoriamente entre o impulso e o medo art, schizo thoughts, biopolitics.

o pesadelo neoliberal

os delinquentes capitalizados nos invadem nos invadem a todo momento ultrapassam e como são educa-
dos em suas camisas brancas engomadas (sqn) e como falam bem em rede rádio televisão (sqn) e como
fazem rodopiar processos numa escalada ascendente rumo à grande nuvem por trás de superfícies e
vales de silicone e couro infinitas equações matemáticas infinitos javascripts geometrias em espessuras
abissais cujas narrativas são apreendidas pelos olhos estrábicos do esquizo apagam os rastros manipulam
eleições grandes ambiências performativas do telejornal ao encontro de artistas estupradores do merca-
do das carnes que cagam mole admitindo a convulsão da vulnerável 217-A 147 173 215 mas como são
educados em suas fraudes brancas engomadas e como falam bem em rede rádio televisão são muito bem

Dani Spadotto. Disgressões na parede do quarto, agosto 2017. Fotografia


[01] A

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relacionados contatos enquanto nós gritamos em da barra de rolagem para deixá-la scroll down e
contorções babando a bile para ter o que comer assim tornar-se mais uma obsolescência progra-
mada da grande matrix organizada: produtora
Willian Downer sorria sedutor enquanto anuncia-
de sensações: promotora de estado de espírito:
va o certeiro golpe de direita 2013 leem nossas
organizadora de manifestações online: facilitado-
mensagens clonam nossas camerawebs drones
ra de propagação de abaixo-assinados: compa-
nas matas que pegam fogo em papa-móveis eles
nheira nos elos sentimentais: espectadora dos 15
sabem eu sei está acontecendo e trocarei de rou-
segundos de fama nós pe(s)cadores de precisão
pas até infinito enquanto atentado ao pudor ôni-
montadores delirantes criamos organismos-cracks
bus praça padaria finanças rua metrô de pavuna
monstros engolidores de matérias para instaura-
condomínio azul e seus pequenos clusters disposi-
ção da escura visão tátil aboliremos centenas sé-
tivos de controle pinho sol é o kralho Rafael Braga culos de desenvolvimento não nos igualaremos
somos nós ao Sol faremos justiça à eterna dança da rotação
as telas da psiqui-arquia no box 24/7 quadros por da Terra para assim nos abrirmos ao caos galáxias
segundo da Praça Roosevelt ao facebook da Cro- criadas ao explodirmos nossos órgãos-estrelas
nópolis trabalhando para <div classes> <hidden C://
scores> <recruiting bodies> <offers no reac- start
tions> <targeting audience manager funnel> system and security
marketing ou a oikonomia do invisível: algoritmos disable remote control
performam imagens de: outros corpos que dese- don’t allow connections to this computer
jam: corpos que podem produzir corpos: da dife- enter2
rença na indiferente beleza dos infinitos inframin- A imaginação é uma espécie de negritude
ces espectrovirtuais organizados estrategicamente da razão, seu movimento é indisciplinado ou
no espaço caleidoscópico quase afroguarany ex- selvagem, apagão do raciocínio (já vimos,
cesso de onipresença do deus www.escassezde- com a noção de Deleuze de escuridão-liber-
sentido.net capitalizando os dados navegados dade-potencialidade, como a escuridão atrai
como uma grande heterotopia à espera de um a imaginação desenfreada). Assim, a fotofilia
não-sei-o-quê no meio do oceano opaco da web constitutiva da iluminação, é o encobrimento
As atualizações da vivência virtual ocorrendo à do mundo como fotologia reificada da razão,
taxa de 60Hz dos monitores menos modernos revelando um inconsciente estético-racista e
as tornam hiper-realizadas de experimenta- sustentando toda uma formação política que
ções em representação simbólica de vivências. abomina a negritude (racial) como escuridão
Daí parte da sua hipnose. Outra advém da (civilizacional) e desarranjo (da razão).3
população empregável no registro das admis- Os corpos do delírio, assim como os corpos ne-
sões como entrevistas de emprego, editais, gros, sempre estiveram do lado obscuro do pro-
licitações; e na mais jovem como treino para jeto moderno de poder da Europa Ocidental. A
o ministério do controle do tempo [também violência da colonização sobre nossos saberes es-
conhecido como mercado de trabalho].1 teve (e continua presente) na base da expansão
vida habitada de fetifunção encapsula o indivíduo do pensamento universalista europeu (séculos 16
na árdua tarefa de levar a grande rocha até o topo e 17), coincidindo com a implementação de hos-

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pitais gerais pela Europa e com a exploração co- metamorfose do corpo modifica o pensamento e
lonial na África e nas Américas. Trancar a boca de vice-versa. O conhecimento do delírio é pautado
um negro ou de um sujeito do delírio é imagem pelas imagens que esse corpo em movimento cria
do silenciamento e construção de suas histórias a no pensamento, portanto não é um saber que se
partir do ponto de vista conveniente às institui- pensa de fora, ele cria o fora a partir da compre-
ções de poder. ensão de um todo movente, ele capta o todo e
o fragmenta, é um saber imanente e infinito em
Mesmo hoje em dia, as relações entre centro e pe-
sua capacidade de criação, um saber a partir da
riferia se mantêm na chamada colonialidade glo-
intuição que instaura um novo modo de pensar e
bal. O “capitalismo global contemporâneo ressig-
de enunciar, mais próximo às epistemologias má-
nifica, em um formato pós-moderno, as exclusões
gicas pré-coloniais.
provocadas pelas hierarquias epistêmicas, espiri-
tuais, raciais/étnicas e de gênero/sexualidade im- _______ Sistema
plementadas pela modernidade”.4 Tal domínio só
É preciso o sistema, e é preciso o excesso.7
foi possível prolongar-se, segundo o pensamento
decolonial, porque se trata de uma rede que en- Corpo fractal é um sistema generativo utilizado
gendra múltiplos regimes culturais, políticos, eco- na criação do filme-performance Elegia obscena
nômicos e de poder, onde a linguagem “sobre- e também em minha experiência cotidiana. Ele
determina, não só a economia, senão a realidade tem nas qualidades da esquizofrenia – delírio e
social em seu conjunto”. A proposta decolonial,
5 sensação de vigilância e controle – seu princípio
desenvolvida dentro do grupo Modernidade/Co- poético. Seu esquema de montagem atua no ato
lonialidade6 acredita, pois, que a descolonização de ver/ser visto (pois, assim como propõe Fou-
foi operada apenas na instância jurídico-política e cault, o indivíduo, ao sentir-se visto, regula seu
faz-se urgente a instauração de processos de res- comportamento, princípio de ação dos processos
significação simbólica para uma descolonização de subjetivação, disciplinarização e controle), e se
completa; o que inclui encontrar novas lingua- desdobra em novos agenciamentos com o ideário
gens que deem conta de novos conceitos e que luminoso e de circulação de capital. Por se tratar
estes permitam fruir num mesmo espaço-tempo de um sistema fruto dos mecanismos de iteração
gêneros, etnias e epistemes múltiplas. da sociedade do controle, ele considera o indiví-
duo autorreferente, sujeito e objeto de si mesmo,
O delírio sob essa perspectiva seria a expressão do
cujo corpo, matéria bruta e sutil, é entendido para
corpo frente a tais violências instituídas, o modo
além da sua voluminosidade. É um corpo que se
encontrado pelo corpo (esquizo) para manter vivo
fragmenta e se desdobra no ambiente físico e di-
o pensamento, manter o pensamento pensando e
gital (internet, telas, celulares), em que operações
produzindo conhecimento singular. Por se tratar
de divisão e extensão obedecem à lógica fractal.
de um saber que nasce da ação do corpo que, por
Como sugere Brian Massumi:
sua vez, move o pensamento, é um saber visceral
que provoca choques no pensamento e o amalga- O “eu” dessa autorreferencialidade é de um
ma a si: não há como os separar, corpo e pensa- tipo qualitativamente diferente, que inclui
mento são como corpo cósmico oscilando entre o operacionalmente em si mesmo outros corpos
caos e o ritmo, entre a quebra e a composição. A humanos individuais, assim como computa-

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Dani Spadotto. Estudo#1: Atratores. Esquema espaço
[02]

dores, linhas telefônicas, eletromagnetismo e samente a expressão completa desse aspecto


qualquer quantidade de elementos heterogê- do humano que o torna pós-humano. A re-
neos; forças, objetos e órgãos. O corpo-self de-de-si expressa extensibilidade a um grau
foi conectado a uma rede ampliada. Como acima do humano. Mas a reciprocidade ex-
sujeito-objeto fractal, o corpo é a rede – uma tensiva que está para além do humano é uma
rede-de-si. característica de toda coisa que percebe, pos-
(…) to que é capaz de mudar. A extensão até o
O corpo fractal faz com que essa extensiva pós-humano é, portanto, a expressão plena
mutalidade se expresse plenamente. É preci- de uma pré-humanidade do humano. Ela é a

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expressão-limite do que o humano comparti- mentaridade plástica, tendências que conferem
lha com cada coisa que não é humana: saindo ao sistema o “poder de conexão até o infinito, em
da sua inclusão na matéria, seu pertencimento todos os sentidos e em todas as direções”,11 e que
no mesmo mundo material autorreferente em corrobora o aumento dos fluxos de intensidade
que cada ser se desdobra. As potenciais ex- (energia) impelindo-o à (radi)ação.
tensões ciborgues do humano, uma vez que
O sistema Corpo fractal é composto por elemen-
entraram em um estado hipermutavelmente
tos que estão divididos em quatro núcleos, de
aberto, são existencialmente ilimitadas. A re-
acordo com suas naturezas. São eles:
de-de-si é um mundo do humano, a Lua é o
limite, ou talvez não. Tendo contra-atacado a . Disparadores:
força da gravidade da Terra, o mundo do cor- São os elementos que perturbam o sistema para
po pós-humano está em sua própria órbita: o colocá-lo em ação. Argumento e instruções para
devir-planeta-humano.8 performance, no projeto Elegia obscena.
Trata-se de um sistema paradoxal porque alia . Engrenagens:
elementos de intensidade aos elementos de exte-
rioridade, é um “dispositivo que torna interior o São os meios de produção da ação. Por se tratar
espaço exterior, e reciprocamente”.9 Ele nasce não de elementos muito heterogêneos, as engrena-
como um devir-planeta, como sugere Massumi, gens conferem ao sistema alta complexidade e
mas como um buraco negro;10 é um corpo cós- abertura ao acaso. Sem muito planejamento, tra-
mico – uma estrela densa e brilhante que, com o balha-se com o que se tem em mãos, numa lógica
passar do tempo, teve suas singularidade e inten- de bricolagem.
sidade esmagadas pela gravitação (capitalística) e, . Atratores:
por não suportar tanta (com)pressão, implodiu,
Tendências da performatividade esquizo do siste-
originando um buraco negro massivo e em ro-
ma: opacidade e ruído. São produtos, respectiva-
tação devoradora (seu estado opaco e delirante).
mente, das biopolíticas de controle e do delírio,
Assim como o buraco negro, um sujeito, quando
são (de)formações imanentes de um corpo em
engrenado ao Corpo fractal, possui a propriedade
constante (de)composição. Eles atuam no gesto
de preservar sua singularidade no abismo des-
ver/ser visto e pretendem romper com a lineari-
conhecido de seu mundo abstrato, o que, para
dade da narrativa, ampliando a distância entre
quem observa de fora, cria graus de opacidade, ao
signo e sentido e desestabilizando os processos
passo que é capaz de capturar quaisquer estímu-
de subjetivação levados a cabo pelas instituições
los que estejam inscritos no seu horizonte, como
de governamentalidade.
uma kinesfera expandida – desde a molécula mais
interna do corpo (soma) até o limite da visão, seu A vertigem e a violência do sistema estão nas
mundo concreto – e dilacerá-los, profaná-los, operações que ele realiza ao colocar em contato
criando um emaranhado aparentemente caótico o corpo do indivíduo com as coisas do mundo,
entre interioridade e exterioridade, intensidade rompendo a dicotomia sujeito-objeto e deixando
e matéria, os ruídos. O efeito é de contradição; seus contornos indefinidos. A plasticidade do sis-
um corpo opaco e ruidoso, na verdade, é comple- tema se dá não pelo conjunto de elementos que o

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Dani Spadotto. Estudo#2: Atratores. Esquema de Montagem
[05]

compõem, mas pelo movimento informe de seus çar o corpo, desorganizá-lo; arrancar-lhe a cabeça
elementos formais. Assim como o inconsciente é ou provocar a discórdia violenta dos órgãos, assim
o movimento informe do pensamento no sujeito; como propões Bataille. Ou romper com as funções
como as fragmentações, metamorfoses, justapo- de organização, com o organismo, propondo um
sições, movimentos que visam deformar ou invisi- “corpo-sem-órgãos”, como enfatiza Artaud; tudo
bilizar o sujeito-objeto, como explica Didi-Huber- isso para liberar os fluxos de intensidade e criar
man: “o informe de modo algum qualifica termos novas realidades a partir do imaginado do delírio.
– ‘coisas informes’ enquanto tais – e sim relações:
Ao instaurar opacidade e ruído como moventes
o informe não é nem uma pura e simples negação
do sistema, o que se propõe é mitigar a lingua-
da forma, nem uma pura e simples ausência de
gem ordinária e todos os seus códigos rumo ao
forma”.12 O informe é, assim, a forma e a consci-
esquecimento e devolver ao sujeito da experiência
ência racional, a concepção de corpo e de razão
performativa (ou cotidiana), o princípio incontro-
burguesa, sendo negadas dialeticamente. Destro-
lável do sensível, da sensação e do pensamento

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Dani Spadotto. Vídeo-Performativa#13 Dani Spadotto. InstalaçãoPerformativa#13
Sussurra Sussurra

esquizo, em que, de um lado, estão as sensações


de vigilância e controle que movem a criação de
um vão opaco entre exterioridade e interioridade,
e, de outro, as derivas do delírio (pensamento- Dani Spadotto. Dispositivo Coreográfico#13
[3]
-imagem) editando fragmentos de imaginação e
fragmentos de mundo concreto.

. Fractais:
mance, estabelecendo distâncias entre as cenas.
Correspondem às cenas, dispositivos coreográfi-
Uma vez em que o espect-ator está mergulhado
cos e instalações performativas de Elegia obsce-
nesse espaço instalativo emaranhado, o espaço de
na e, conceitualmente, aos nós da “rede-de-si”,
acreção, ele tem a liberdade para traçar o percur-
e são produtos da performatividade dos atratores
so que desejar, para “navegar” como quiser pe-
ao combinar disparadores e engrenagens. O hu-
los fractais; é como se ele se tornasse parte dessa
mano está fractalizado.
rede, ele literalmente “cai na rede” e integra o
Essa rede-de-si é como uma pele virtual e invisível, corpo do trabalho.
e os poros são os nós dessa rede. Se utilizarmos o
_______ Elementos ativos
princípio holográfico de um buraco negro, a rede-
-de-si corresponde à superfície (x, y) do horizonte ––––––––Opacidade
de eventos em que cada bit de informação nela
A metáfora fundante da filosofia ocidental
contido – que seria um holograma ou nó da rede
como metafísica está na oposição entre escu-
– tem sua partícula gêmea no volume interior (x,
ridão e luz, entendida como oposição entre
y, z) à singularidade desse mesmo buraco negro.
autorrevelação e auto-ocultamento. E Derrida
Nesse raciocínio, cada nó ou holograma da rede-
conclui; “toda a história da nossa filosofia é
-de-si carrega consigo potencial suficiente para
uma fotologia, o nome dado para a história
engendrar um fractal do filme, ou seja, carrega
de, ou o tratado sobre, a luz”.13
uma informação viva do interior da singularida-
de – é como um rastro. Ao ser espacializados, os A escuridão ainda não foi suficientemente domes-
Fractais ampliam a (s)kinesfera do filme-perfor- ticada. Nela, alguns códigos morais e ideológicos

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não vingam. Podemos dormir e imaginar o que, É na escuridão que os limites do corpo se perdem
estando no escuro, nos falta – parte da força des- e se confundem com os limites do espaço, tornan-
sa escuridão e do nosso espanto. As vozes sem do indiscernível dentro e fora, condição que nos
fisionomias, rostos sem gênero ou raça, narrativas priva parcialmente de apreender suas dimensões
pessoais (que hoje são matéria-prima que man- físicas e torna invariável direita e esquerda. O es-
tém o fluxo de capital das corporações neolibe- curo que nos preenche e nos desorienta, intimida
rais) esvaziam-se, e, assim, o sujeito deixa de ser o totalitarismo da visão e induz o corpo a expe-
mais um dispositivo a serviço das instituições de rimentar toda a potência da (s)kinestesia; somos
poder. No escuro, a infinidade de perfis desmonta lançados num espaço insubordinado, sem coor-
nosso raciocínio ocidental; ver faces, como diria denadas ou percepções simbólicas preconcebidas.
Merleau-Ponty, “não me oferece verdades como a Adentrar um espaço desconhecido e em completa
geometria, mas presenças”.14 escuridão nos mobiliza em nossa inteireza; somos
forçados a juntar nossas partes, encontrar nossos
Não há como negar a estranheza na escuridão,
limites, sem o auxílio de qualquer imagem. Trata-
nela um corpo está entre o repouso e o movimen-
-se de um interesse contínuo pelo que está além
to, um labirinto no vazio em que o pensamen-
do que podemos alcançar.
to busca desvendar os caminhos que percorreu
lentamente em suas errâncias. Olhar o escuro
comporta outra gestualidade e, por conseguinte,
outra experiência física e intelectual. No completo
escuro, o desejo de ver é intenso, mesmo que não
haja expectativa de visibilidade; na penumbra, a
quantidade de informação é comparativamente
menor à da mesma cena iluminada, o que denota
a existência de um multiverso que somos incapa-
zes de acessar visualmente; um vazio cheio, por-
tador de ameaçadoras ausências e instabilidades.

Man Ray. Le Minotaure, 1934. Fotografia. wikiart.org Dani Spadotto. cena26 INCORPORAL. vídeo-performance

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Planos propositadamente velados não deixam de citação de Deleuze, trata-se de “um começo de vi-
ser hiatos, frutos do elo perdido que o sujeito do sível, que ainda não é figura, ainda não é ação”.16
delírio mantém com a imagem do próprio corpo;
Essa forma calcada numa potência ou num afeto
mas eles também visam romper com as estruturas
e que caminha à margem do poder instituinte é
do “campo da luz como fundação dominante e
capaz de engendrar um real singular que age so-
transcendente da representação e percepção visu-
bre o real, fragilizando a pulsão fusional da ima-
al”.15 Aparente paradoxo, tais planos visam criar um
gem e colocando o sujeito em contato direto com
espaço-tempo de fruição que não seja colonizado
o não visto, sem a mediação do visível, ou seja, tal
pelo excesso de estímulo externo, mas que permita operação devolve, como que por encantamento,
ao sujeito abrir-se ao abismo que compreende um o estado de corpo imaginativo em que a “força da
campo de virtualidades que se atualizam no pró- imagem provém do desejo de ver, a do visível da
prio momento de encontro com tais fragmentos de sua capacidade de ocultar, de construir a distância
imagens. Como na passagem de Ulisses, de Joyce, entre o que é dado a ver e o objeto do desejo”.17
“Fecha os olhos e vê”, um vazio-cheio que conecta
um fora a um dentro, como prolongamento em Em seu texto sobre coreografias encenadas no es-
curo, In the dark, André Lepecki cita Lapoujade
peles, da imagem, do corpo, e ao mesmo tempo
e argumenta que a contemporaneidade, pautada
inverte a lógica espetacular do reino do visível e das
pelo capitalismo óptico e pela biopolítica das pos-
significações. Espaço-tempo porque na escuridão é
sibilidades infinitas que “precedem nossa percep-
preciso ir devagar para não tropeçar nas coisas, é
ção, nossas ações, nossos pensamentos, nossas
preciso olhar devagar até que a pupila se acostume
opiniões, como se o futuro contivesse previamente
com a falta de nitidez daquilo que está em vias de
todos os possíveis”,18 limita o campo de atuação
aparecer, e esse tempo se contrapõe à alta velo-
do indivíduo e induz o desejo a emergir sempre de
cidade com que circulam as imagens no circuito
uma zona ou de uma força dada a priori, enquan-
luminoso de produção 24/7.
to a experiência do escuro, inserida nesse mesmo
Quando uma imagem é tomada pela escuridão, contexto, deve ser entendida como o “meio pelo
como um grande corpo de sombra, seu espaço qual alguma outra coisa foi trazida para a visibi-
ganha massas planas ou buracos homogêneos lidade, audibilidade e sensação porque alguma
que decompõem possíveis perspectivas, o todo se coisa foi liberada da fotosfera reificada”.19 Com
fragmenta e os detalhes se escondem, o visível se isso, tem-se um outro jeito de pensar/imaginar
cobre de mistério e ausências, intervalos que car- que não parte do discurso e nem da imagem, mas
regam crenças potenciais. Essa imagem que nos das forças que lhes deram origem, em que ser e
olha ganha uma espessura subjetiva que enfrenta pensamento, corpo e linguagem se fundem como
o nosso olhar e cria um campo opaco marcado magma. Esse pensamento não deve ser reduzido
pela experiência do encontro. É com a instauração ao intelecto, como aponta Lepecki: trata-se de
dessa opacidade que é possível alcançar o estado um “mundo absolutamente aberto de um pen-
de suspensão, regiões de gravitação onde repou- samento fundindo intuição e duração, o mundo
sam simultaneamente olhar e fragmentos de cor- da singularidade sombria em que, dentro de seu
pos que se misturam e se atualizam, instigando horizonte de eventos, se experimenta ‘a fusão do
uma relação mística entre ver/ser visto. Como na escuro e do pensamento’”.20

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Ruído das da grande síntese disjuntiva. [...] é todo
o domínio da inorganização real das sínteses
[...]
passivas, onde em vão procuraríamos algo a
< meta sorriso aberto application spe- que se pudesse chamar o Significante, e que
akable tabindex=“0” c a11y toogle image compõe e decompõe ininterruptamente as
talvez seja isso que sou a parte que divide cadeias de signo que nunca virão a ser signi-
ping back o mundo em clipboards po- ficantes. A única vocação do signo é produzir
pups display em dois em vários esquarte- desejo, e em todos os sentidos.22
jados em vários fragmentos de // mundo
Na forma de fractais, os ruídos permeiam o pensa-
style in position in gois regions desertos
mento e dão ritmo ao tempo; memórias próximas
especulares effects e vc você de que lado
e longínquas, presente real e imaginado, futuro
quer estar? shortcuts […] 21
virtual e casuístico, intuições, o tempo trabalha,
O ruído é como o grito, mais alto do que qual- como diz Didi-Huberman, e o conhecimento se dá
quer discurso, um ruído impensado. Ele exacerba por fulgurações interconectadas, pequenos ruídos
a experiência do excesso e lança o corpo num em rede, os lampejos de novas ideias, que não
estado de turbulência, em que, desnorteado, ele obedecem a operações de encadeamento lógico
vai catando e jogando fragmentos do/no mun- ou unidade formal, mas:
do e colando uns aos outros, criando zonas de
Constrói e desmorona, desagrega-se e se me-
contato, deslocando corpos e fazendo deslocar
tamorfoseia. Desliza, cai e renasce. Enterra-se
o pensamento.
e ressurge. Decompõe-se, recompõe-se: em
Sua heurística de montagem é baseada no fato outro lugar de outra maneira, em tensões
de haver necessidade de criar zonas de não signi- ou em latências, em polaridades ou ambiva-
ficação, visto que o corpo esquizo está tão imerso lências, em tempos musicais ou em contra-
nos excessos (de luz, de estímulos) que a experiên- tempos... […] Ritmos a serem ouvidos nos es-
cia é atormentada pela informação. Descontrolar canções do canto [refiro-me à fala da queixa],
o corpo e as formas, deixar com que os pedaços ritmos a serem vistos na dança do sintoma: o
se juntem indiscriminadamente, sem lhes atribuir “trabalho” que Freud destaca parece de fato
qualquer valor ou significado é uma maneira de construir, em seu desenho, a angulação ópti-
responder ao conjunto estruturado da linguagem ca de três “pontos de vista” sucessivos – uma
que perfura e amarra o corpo às regras sociais, heurística do olhar, portanto –, como se o olho
como dizem Deleuze e Guattari: fosse capaz de “penetrar cada vez mais profun-
[...] É todo um sistema de agulhagens e sor- damente” na temporalidade do inconsciente.23
teios, que formam fenômenos aleatórios par- As frases, como no exemplo do texto inicial ou
cialmente dependentes, parecidos com uma no texto no início deste segmento, não são pon-
cadeia de Markoff. Os registros e as transmis- tuadas, mas picotadas por símbolos matemáticos
sões vindos de códigos internos, do meio exte- provenientes da linguagem html, e sua ação per-
rior, de uma região do organismo para outra, formativa (como diria Austin) enfatiza as ativida-
cruzam-se pelas vias perpetuamente ramifica- des da algo.ritmia maquínica das páginas web

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Hélio Oiticica e Neville de Almeida. Cosmococa 3, 1973. Instalação Hélio Oiticica. Tropicália PN2 e PN3, 1967. Reproduão fotográfica: Césas
Multimídia. MACBA Collection | MACBA Foundation Oiticica Filho. ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.

(localização das palavras, tamanho, tipo e cor das styleshit // s0.wp.com/_static/?? -ejacula-
letras, tamanho das imagens, movimentos). Por tion-sic-pelas-oh!!!25
sua vez, palavras se repetem, outras viram pala-
Descaracterizar o objeto da linguagem e com isso
vras-valise que desdobram a semântica do texto
exacerbar a abertura à interpretação. Aumentar a
e mantêm não apenas a aparência caótica das di-
capacidade de aleatoriedade é atividade funda-
versas vozes, mas geram ambiguidade entre elas,
mental do ruído. No exemplo acima, as palavras
de modo a borrar os limites entre fatos e fanta-
performam o espaço digital encadeando equa-
sias. O que interessa aqui é menos fixar uma in-
ções geométricas num texto corrido, e quando se
formação do que deixá-la atravessar num fluxo à
trata do espaço físico a intenção é equivalente.
medida que o texto caminha para o fim, ou seja,
Enquanto com a opacidade a desorientação ad-
um aglomerado de palavras cujo sentido é o de
vém da perda da noção espacial porque as volu-
ser corpos em movimento que colocam corpos
minosidades dos corpos e as coisas são obliteradas
em movimento, propriedade comum aos fluxos
pela falta de luz, com o ruído ocorre exatamente o
informacionais da contemporaneidade: “as pala-
contrário, a desorientação atinge sua capacidade
vras surgem ao mesmo tempo que as imagens, as
máxima com o excesso de luz que toca sempre
noções surgem ao mesmo tempo que os exem-
algo (material ou imaterial – por exemplo, um
plos (que, em geral, também são excessões)”.24
vaso, uma bicicleta ou uma memória, um pensa-
css1108 1.7:454:792 jquery zoom mento) entre o sujeito e aquilo que o olhar ou
no processamento padding left page o corpo desejam alcançar, são como obstáculos.
wrapper footer div not found flagmask Por conseguinte, experimenta-se a desordem la-
typo:} pingback alternate application/ biríntica, em que a apreensão de fragmentos (do
rss+xml function addload event so many espaço, do pensamento, de outro corpo) impede
events he loves events onload events a apreensão do todo, rompendo, assim, com a
events events e vento window=else ordem e o cálculo presentes na ideia de horizon-

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te e perspectiva linear desenvolvidas na moderni- Pontificia Universidad Javerina/Instituto Pensar,
dade, e, como consequência, com o controle e a 2007: 14.
manipulação.
5 Idem, ibidem: 16.
Desse modo o ruído opera a destituição da ca-
6 O Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) foi
pacidade de apreensão totalizante do sujeito. O constituído no final dos anos 90 por intelectuais
olhar de sobrevoo do panóptico ou do mapa é latino-americanos, acadêmicos em diversas
conduzido a ceder lugar à experiência do cor- universidades da América. É considerado por Arthuro
po a corpo que traça uma cartografia singular Escobar um “programa de investigação” que tem
e de afeto, a linha do horizonte é abolida para como princípio esgarçar a crítica ao pensamento
dar espaço à experiência do chão. A experiên- moderno/colonial. O M/C foi-se estruturando em
cia espacial tende a resultar da somatória de torno de diversos seminários e congressos, que
perspectivas, ou perspectivas em que o corpo é deram origem a importantes publicações, tais como
incapaz de ser o centro das projeções, ou, quan- Grosfoguel, Castro-Gomez, op. cit.
do o é, ele também se encontra fragmentado;
7 Didi-Huberman, George. A semelhança informe:
o espaço não é maior do que ele, o espaço é,
ou o gaio saber visual segundo George Bataille. Rio
com ele, a sua medida. O ambiente produzido
de Janeiro: Contraponto, 2015: 216.
não possui ancoradouro ou ponto de referência,
apenas fulgurações de elementos heterogêneos 8 Massumi, Brian. Parables for the virtual: movement,
deformando novos corpos em espaços utópicos affect, sensation. London: Duke University Press,
e imaginários. 2002: 127-128.

9 Gil, José. Movimento total – o corpo e a dança.


Lisboa: Relógio D’Água, 2001: 61.
NOTAS
10 Na física existem alguns modelos que explicam
1 Spadotto, Danielle; Ribeiro, Felipe. Zona Fractal. os buracos negros, os mais recentes tratam da
2011. Disponível em: <https://issuu.com/gnoise/ complementariedade entre o modelo da física
docs/zona_fractal>. Acessado em 7 jul. 2018. clássica, qual seja, a teoria da relatividade e o modelo
da mecânica quântica, um modelo das equivalências,
2 Esse texto de caráter experimental busca enfatizar
ou princípio holográfico, o modelo utilizado nesta
a velocidade e a forma do pensamento esquizo, por
dissertação.
isso a falta de pontuação e hierarquias entre as frases.
É como um jorro de palavras que vão aleatoriamente Segundo a física clássica, um buraco negro
colando na superfície do papel. supermassivo gera uma deformação (dobra) no
espaço-tempo de tal proporção, que nem mesmo
3 Lepecki, André. Singularities: dance in the age of
uma partícula de luz (bit de informação) consegue
performance. New York: Routledge, 2016: 59.
escapar de sua singularidade, uma vez ultrapassado
4 Grosfoguel, Ramón; Castro-Gomez, Santiago. o horizonte de eventos. Quando observamos
El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad um buraco negro com telescópio, o que vemos
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: é a tensão, a força que sua singularidade (corpo
Siglo del Hombre Editores/Universidad Central/ massivo) exerce sobre o espaço-tempo a sua volta,
Instituto de Estudios Sociales Contempoáneos y gerando uma gravitação em que os corpos celestes

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orbitam desordenadamente e se chocam produzindo 13 Lepecki, op. cit.: 57.
energia térmica e radiação até ser definitivamente
14 Merleau-Ponty, Maurice. O primado da percepção
devorados; portanto, um buraco negro é um sistema
e suas consequências filosóficas. Tradução de
termodinâmico. Nesse modelo clássico, o bit de
Constança Marcondes César. Campinas: Papirus,
informação é esmagado no interior da singularidade
1990: 44.
e a energia é liberada em forma de radiação; nesse
modelo, o buraco negro irradia até sua evaporação. 15 Lepecki, op. cit.: 55.
Esse é o modelo desenvolvido por Stephen Hawking.
16 Deleuze, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo.
No modelo da gravidade quântica, por sua vez, São Paulo: Brasiliense, 2005: 241.
desenvolvido pelo físico Leonard Susskind e
17 Mondzain, Marie-José. A imagem pode matar?
atualmente amplamente aceito, o buraco negro
Lisboa: Vega Editora, 2009: 31.
exerce a mesma força gravitacional deformante
do espaço-tempo, porém pontua que os bits de 18 Lepecki, op. cit.: 56.
informação não são perdidos ao adentrar o horizonte 19 Idem, ibidem: 57.
de eventos, mas decodificados em sua superfície. É
20 Idem, ibidem: 64.
como olhar uma fotografia, que tem na imagem
em duas dimensões as informações contidas no 21 Spadotto, Danielle. Trecho do texto Argumento
espaço no ato da realização da foto. Nesse modelo, citado no presente artigo e componente do projeto
o buraco negro possui uma espécie de pele ao longo Elegia obscena.
do horizonte de eventos em que estão contidas todas
22 Deleuze; Guattari, op. cit.: 42.
as informações que caem na órbita do seu horizonte;
é aí que a entropia acontece. Essa pele funciona 23 Didi-Huberman, Georges. A imagem sobrevivente:
como uma espécie de holograma que contém toda a história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby
informação do buraco negro. Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013: 280.

Trata-se de um princípio de equivalência, porque, 24 Didi-Huberman, 2015, op. cit.: 201.


para a física quântica, essa partícula da pele do
25 Spadotto, Danielle. Trecho do texto Argumento
buraco negro e a partícula no interior do buraco
citado no presente artigo e componente do projeto
negro são partículas gêmeas, o que quer dizer que
Elegia obscena.
quando você observa um buraco negro, o bit na
superfície do horizonte de eventos (2D), ela contém Recebido em: 09/05/2019
as mesmas propriedades do bit de informação na
Aceito em: 01/07/2019
singularidade do buraco negro (3D). Assim, há uma
equivalência entre interioridade e exterioridade, não
existe representação.
Dani Spadotto é artista e mestre em Linguagens
11 Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O antiÉdipo. Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
Capitalismo e esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio & Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade
Alvim, 2004: 408. Federal do Rio de Janeiro.

12 Didi-Huberman, 2015, op. cit.: 148. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6776-3326

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