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Não há nada de novo no front… mas vamos forçar notícias mesmo assim.

As principais notas das últimas semanas de abril de 2020 dão conta da pandemia
global do Covid-19, popularmente conhecido como Corona Vírus. No Brasil, o noticiário
agrega a crise política que vem se arrastando desde o afastamento do ministro da saúde
Henrique Mandetta e, no último dia 24, o pedido de demissão do ministro da justiça Sergio
Moro. Isso sem levar em conta que, nos últimos meses, considerando a linha editorial que a
Rede Globo e alguns jornais como a Folha seguem, o que acontece é, de fato, uma crise
política. Para emissoras como o SBT e a Record ou jornais como o Estadão, o máximo que
transcorre são pequenos ajustes, quando muito breves desvios de conduta. Enquanto o
brasileiro com acesso à programação televisiva ou aos jornais impressos acompanha
diariamente um embate editorial sobre a política nacional, o Corona Vírus vem
gradativamente se espalhando e causando mais e mais vítimas no país.
A questão que se coloca aqui é o que se discute e o efeito na população. Um
observador externo, ciente de suas responsabilidades e com um mínimo de informação diria
que o ponto principal seria como conduzir a população em tempos de pandemia. O
problema é que a crise política brasileira torna até mesmo uma pandemia global uma
situação política. Os fatos que se colocam pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a
experiência com o crescimento do vírus mundo afora tornam a escala da emergência maior
que muitas crises recentes na história humana. Não há ataque terrorista, desastre natural
ou mesmo conflito armado que tenha feito tantas vítimas, todas de um inimigo em comum:
uma variação de um vírus cuja ciência vem alertando para o risco de uma pandemia desde
2006, inclusive preparando a população para epidemias cada vez maiores, como a da H1N1
em 2009. Mesmo considerando o desastre de Chernobyl em 1986 na extinta União
Soviética, não se tem notícia de um número tão grande de vítimas. São mais de cem mil
mortos desde o último dia 10 de abril e a expectativa é que o número aumente ainda mais
até junho.
Lavar as mãos a todo momento e manter isolamento social são as principais
recomendações da OMS, mas nem Pôncio Pilatos ou Brutus lavaram as mãos por uma
questão de saúde em suas respectivas épocas. E é de personagens assim que o jornalismo
brasileiro está cheio: pessoas dispostas a lavar as mãos não pela saúde pública mas sim
moralmente, para discutir a mesma ladainha política que aporrinha o Brasil desde que se
derrubou a ex-presidenta Dilma Roussef. Não importa se a economia brasileira pode perder
parceiros comerciais com as falas inconsequentes do filho 01, 02 ou 03. Não importam as
inúmeras evidências de corrupção envolvendo o laranjal e o maior exemplo nacional de
isolamento social que se tem notícia: Queiroz. Interessa ainda menos a relação do gabinete
do ódio com as milícias e o assassinato de Marielle Franco. Se com todas essas situações
a imprensa brasileira se divide entre os que defendem e os que acusam o mito, não é uma
“gripezinha” que vai resolver a questão, mesmo com tantos mortos..
O que se pretende defender aqui é simples: o brasileiro está anestesiado e boa
parte da culpa disso é da imprensa. Desde 2013, quando o povo foi para as ruas em
movimentos que na época pareciam de origem popular, mas cuja origem se deu em grupos
como o infame instituto Atlas, o brasileiro não tem ideia do que quer. Eram 20 centavos? A
Copa do Mundo? A Dilma? A Lava Jato? O preço do dólar que hoje excede quase três
vezes o valor do câmbio da época? Notícias de todos os lados bombardearam o povo que
passou a acreditar cada vez mais no bandido morto como solução, no ensino da pesca e
não no peixe, na ditadura gay e por aí vai, entre tantas outras ladainhas. Nas eleições o
culpado foi o WhatsApp. Será que por falta de uma narrativa coesa da imprensa o brasileiro
médio não foi se refugiar em seu celular, ignorando o oráculo absoluto que foi um dia a
Rede Globo desde a redemocratização? Ou será que justamente a falibilidade do discurso
jornalístico então fragmentado não se postulou um convite a esse tipo de especulação,
terreno fértil para a proliferação das fake news?
Em seu livro “Como as Democracias Morrem”, os professores Steven Levitisky e
Daniel Ziblatt basicamente colocam que o enfraquecimento das instituições levou ao poder
políticos de extrema direita como Trump e seu equivalente tupiniquim. Um judiciário
tendencioso e uma imprensa disposta a fornecer uma narrativa parcial bastam para
derrubar um governo democrático e instaurar algo que podemos definir não apenas como
governos de extrema direita mas tecnocracias dispostas a manter e estender seus
privilégios comerciais. O fato é que uma imprensa que denuncia, pode sim ser parte de um
esquema que privilegia. A notícia deixa de ter valor como informação e passa a ter
significado estratégico inclusive quando inventada, gerando assim as famigeradas fake
news. Uma narrativa é uma narrativa desde que o primeiro escritor decidiu registrar seus
pensamentos, a diferença estava na ficção ou fato, algo que aparentemente a imprensa
deixou de distinguir nos últimos anos.
O escritor brasileiro Daniel Galera coloca em seu romance “Meia-Noite e Vinte”,
lançado em 2016, um dos protagonistas participando das manifestações de 2013. O
personagem, um publicitário privilegiado bem nascido, anda com a massa, não interessado
nos direitos da população e sim numa das meninas na passeata. Na medida em que a turba
se desloca e as autoridades reagem, o personagem decide cobrir o rosto e, tomado pela
catarse do momento, quebra a fachada de um estabelecimento comercial, que depois
descobre ser o de sua família. O ponto da cena em questão é como a classe média alta
brasileira se deixou levar por uma narrativa catártica, aparentemente conduzida pelo povo
comum, mas que na verdade foi incitada por grupos interessados em desestabilizar e
anestesiar um povo que já não sabia dizer o que queria. O livro em si pode tratar de uma
ficção mas os fatos, sempre eles, nos mostram como estamos confusos em nossas ações.
Vivemos uma pandemia global, épica em escala e cujas medidas preventivas só
podem aliviar a situação até que se encontre uma cura, algo que se pode esperar no
mínimo para 2021, com alguma sorte. Estamos anestesiados e confusos quando devíamos
estar precavidos e nos cuidando. Mas mesmo o medo de uma pandemia é usado contra a
população, tal como foram a violência, a crise econômica e o 7x1 da Alemanha. O mesmo
medo que manipula e não precisa mais da imprensa formal para estabelecer as metas dos
senhores por trás dos planos maquiavélicos. Nada acontece… feijoada, o meme mais
brasileiro.
George Orwell falava de um inimigo terrível em “1984”: o exército da Eurásia,
responsável por uma guerra que não existia mas mantinha o povo anestesiado pelo medo.
Agora vivemos uma guerra contra um inimigo invisível, porém real e cujo avanço nos
mantém anestesiados pelo medo. Ficção e fato se confundem nas narrativas cada vez mais
preocupadas com seus objetivos e menos com o bem estar de todos. Como acreditar em
uma imprensa isenta se cada veículo defende seus interesses e todos nos mantém
anestesiados? Uma cura possível para a ignorância seria a literatura mas nem essa escapa
da mão invisível do mercado: no último dia 22 os bancos decidiram negar crédito para
livrarias e editoras, a desculpa é a alegação de que o setor “está acabando”. Sem distinção
de ficção ou fato e com uma oferta cada vez menor de boas ficções, o brasileiro tende a
seguir anestesiado.

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