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Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: HEMOSTASIA E TROMBOSE

34: 229-237, jul./dez. 2001 Capítulo I

FISIOLOGIA DA COAGULAÇÃO,
ANTICOAGULAÇÃO E FIBRINÓLISE

OVERVIEW OF COAGULATION, ANTICOAGULATION AND FIBRINOLYSIS

Rendrik F. Franco

Professor Livre-Docente de Hematologia e Hemoterapia. Coordenador do Serviço de Investigação em Hemofilia e Trombofilia, Funda-
ção Hemocentro de Ribeirão Preto. Coordenador do Laboratório de Hemostasia, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
CORRESPONDÊNCIA: FUNDHERP, Rua Tenente Catão Roxo, 2501 – 14051-140, Ribeirão Preto, SP. E-mail: rendri@hotmail.com

FRANCO RF. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise. Medicina, Ribeirão Preto, 34:
229-237, jul./dez. 2001.

RESUMO: O presente artigo revisa aspectos de fisiologia dos sistemas de coagulação, anti-
coagulação e fibrinólise, que são relevantes para a compreensão de mecanimos
etiopatogênicos operantes em doenças hemorrágicas e trombóticas.

UNITERMOS: Coagulação. Anticoagulação. Fibrinólise.

1. INTRODUÇÃO 2. COAGULAÇÃO
A formação do coágulo de fibrina no sítio de A formação do coágulo de fibrina envolve com-
lesão endotelial representa processo crítico para a ma- plexas interações entre proteases plasmáticas e seus
nutenção da integridade vascular. Os mecanismos cofatores, que culminam na gênese da enzima trombina,
envolvidos nesse processo, constituintes do sistema que, por proteólise, converte o fibrinogênio solúvel em
hemostático, devem ser regulados para simultanea- fibrina insolúvel. Progressos significativos ocorreram
mente, contrapor-se à perda excessiva de sangue e nas últimas décadas, concernentes à compreensão da
evitar a formação de trombos intravasculares, decor- fisiologia desse sistema e dos mecanismos que o re-
rentes de formação excessiva de fibrina. gulam(1,2). Conforme assinalado a seguir, tais conhe-
Os componentes do sistema hemostático inclu- cimentos tiveram fundamental importância para a
em as plaquetas, os vasos, as proteínas da coagulação melhor compreensão da fisiologia da hemostasia e do
do sangue, os anticoagulantes naturais e o sistema de papel das reações hemostáticas em doenças hemor-
fibrinólise. O equilíbrio funcional dos diferentes “seto- rágicas e trombóticas.
res” da hemostasia é garantido por uma variedade de Em 1964, Macfarlane e Davie & Ratnoff pro-
mecanismos, envolvendo interações entre proteínas, puseram a hipótese da “cascata” para explicar a fisi-
respostas celulares complexas, e regulação de fluxo ologia da coagulação do sangue(3,4). Nesse modelo
sangüíneo. No presente capítulo, abordaremos os sis- (Figura 1), a coagulação ocorre por meio de ativação
temas de coagulação e fibrinólise, responsáveis pela proteolítica, seqüencial de zimógenos, por proteases
formação e dissolução do coágulo de fibrina, respecti- do plasma, resultando na formação de trombina que,
vamente. Adicionalmente, discussão acerca do papel então, converte a molécula de fibrinogênio em fibrina.
de mecanismos reguladores desses dois sistemas será O esquema divide a coagulação em uma via extrínse-
apresentada. ca (envolvendo componentes do sangue, mas, tam-

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bém, elementos que usualmente não estão presentes extrínseco, tal separação é atualmente entendida como
no espaço intravascular) e uma via intrínseca (inicia- inadequada do ponto de vista de fisiologia da coagula-
da por componentes presentes no intravascular), que ção, tendo em vista que a divisão não ocorre in vivo.
convergem no ponto de ativação do fator X (“via final Adicionalmente, alterações conceituais ocorreram
comum”). Na via extrínseca, o fator VII plasmático desde a descrição do modelo da cascata no que diz
(na presença do seu cofator, o fator tecidual ou respeito à importância relativa das duas vias de ativa-
tromboplastina) ativa diretamente o fator X. Na via ção da coagulação. Por exemplo, a julgar pela gravi-
intrínseca, ativação do fator XII ocorre quando o san- dade das manifestações hemorrágicas, decorrentes das
gue entra em contato com uma superfície, contendo deficiências dos “fatores intrínsecos” VIII e IX (He-
cargas elétricas negativas (por exemplo, a parede de mofilia A e B, respectivamente), postulou-se, no pas-
um tubo de vidro). Tal processo é denominado “ativa- sado, que a via intrínseca teria maior relevância na
ção por contato” e requer ainda a presença de outros fisiologia da coagulação. Essa idéia todavia não é cor-
componentes do plasma: pré-calicreína (uma serino- reta: sabe-se que a deficiência de fator XI é associa-
protease) e cininogênio de alto peso molecular (um da a distúrbio hemorrágico leve, e deficiências dos
cofator não enzimático). O fator XIIa ativa o fator XI, fatores da ativação por contato (fator XII, pré-
que, por sua vez, ativa o fator IX. O fator IXa, na calicreína, cininogênio de alto peso molecular) não re-
presença de fator VIII, ativa o fator X da coagulação, sultam em quadro hemorrágico. Os fatores intrínse-
desencadeando a geração de trombina e subseqüente cos, portanto, não têm importância primária na gera-
formação de fibrina. ção de fator IXa durante o processo hemostático nor-
Não obstante haja a tradição de se dividir o sis- mal, que sucede a injúria vascular. Por outro lado, a
tema de coagulação do sangue em intrínseco e deficiência de fator VII (crucial para a “ativação ex-

Figura 1. Esquema da cascata da coagulação, proposto na década de 1960, com a divisão do sistema de coagulação em duas
vias. CAPM: cininogênio de alto peso molecular; PK: pré-calicreína.

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Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise

trínseca” da coagulação do sangue) é associada a contendo fosfolipídeos (em especial das plaquetas),
quadro hemorrágico similar à Hemofilia. Em conjun- em que essas reações acontecem (Figura 2). Os ele-
to, esses dados demonstram que a ativação do fator mentos biológicos que contribuem para o componente
IX não depende exclusivamente da via intrínseca e de fosfolipídeos da coagulação incluem tecidos
indicam que a coagulação do sangue é iniciada princi- vasculares lesados, células inflamatórias e plaquetas
palmente pela via do fator tecidual ou extrínseca. ativadas. O principal contribuinte, em termos de nú-
Adicionalmente, experimentos conduzidos nas últimas meros de sítios, são as membranas de plaquetas, que,
três décadas demonstraram que as vias intrínseca e quando ativadas, expressam sítios de ligação para os
extrínseca não exibem funcionamento independente, complexos fator IXa/fator VIIIa (complexo “tenase”)
conforme detalhado a seguir. e fator Xa/fator Va (complexo “protrombinase”). Adi-
Atualmente, aceita-se que mecanismos hemos- cionalmente, íons de cálcio são necessários em diver-
táticos, fisiologicamente relevantes estejam associa- sos passos das reações da coagulação.
dos com três complexos enzimáticos procoagulantes, A iniciação do processo de coagulação depen-
os quais envolvem serinoproteases dependentes de de da exposição do sangue a componentes que, nor-
vitamina K (fatores II, VII, IX e X) associadas a malmente, não estão presentes no interior dos vasos,
cofatores (V e VIII), todos localizados em uma su- em decorrência de lesões estruturais (injúria vascular)
perfície de membrana contendo fosfolipídeos(1,2). Os ou alterações bioquímicas (por ex., liberação de
complexos encontram-se esquematizados na Figura citocinas). Qualquer que seja o evento desencadeante,
2, que resume os dados apresentados a seguir. a iniciação da coagulação do sangue se faz medi-
As diversas enzimas da coagulação convertem ante expressão do seu componente crítico, o fa-
seus substratos procofatores em cofatores, os quais tor tecidual (FT), e sua exposição ao espaço
localizam as proteases sobre as superfícies celulares, intravascular.

Figura 2: Representação esquemática dos complexos procoagulantes. O início da coagulação se faz mediante ligação do fator VIIa
ao fator tecidual (FT), com subseqüente ativação dos fatores IX e X. O complexo fator IXa/fator VIIIa ativa o fator X com eficiência
ainda maior, e o fator Xa forma complexo com o fator Va, convertendo o fator II (protrombina) em fator IIa (trombina). A superfície
de membrana celular em que as reações ocorrem também encontra-se representada. Esquema adaptado da referência 1.

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O FT é uma glicoproteína de membrana de XIII da coagulação, que, por sua vez, estabiliza o co-
45000 Da, que funciona como receptor para o fator águlo de fibrina.
VII da coagulação. O FT não é normalmente expres- A Figura 3 mostra, em maior detalhe, o conjun-
so em células em contato direto com o sangue (tais to de reações envolvidas na coagulação do sangue,
como células endoteliais e leucócitos)(5,6), mas apre- com ênfase para as etapas seqüenciais em que zimo-
senta expressão constitutiva em fibroblastos subjacen- gênios de serinoproteases são transformados em en-
tes ao endotélio vascular(6). O FT é também encon- zimas proteolíticas. Em tal esquema, fica enfatizado o
trado em queratinócitos, células epiteliais do trato res- conceito de que não há distinção clara entre os siste-
piratório e trato gastrointestinal, cérebro, células mus- mas intrínseco e extrínseco, que atuam de modo alta-
culares cardíacas e glomérulos renais. Células endo- mente interativo in vivo. Em condições fisiológicas,
teliais e monócitos, que, normalmente, não expressam as reações esquematizadas nas Figuras 2 e 3 resultam
o fator tecidual, podem expressá-lo na vigência de le- em produção equilibrada de quantidades apropriadas
são endotelial e na presença de estímulos específicos, de trombina e do coágulo de fibrina, em resposta ade-
tais como endotoxinas e citocinas (TNF-α e interleu- quada e proporcional à injúria vascular existente. Com
cina-1)(7,8,9). Em indivíduos normais, níveis mínimos efeito, no estado fisiológico não há formação e depo-
da forma ativada do fator VII da coagulação (FVIIa) sição de fibrina no intravascular, em decorrência das
estão presentes em circulação, correspondendo a apro- propriedades anticoagulantes do endotélio, à forma
ximadamente 1% da concentração plasmática total de inativa das proteínas plasmáticas, envolvidas na coa-
fator VII. O FVIIa é capaz de se ligar ao FT expres- gulação (que circulam como zimogênios ou cofatores),
so em membranas celulares, e a exposição do FT ao e à presença de inibidores fisiológicos da coagulação
plasma resulta na sua ligação ao FVII e FVIIa, sendo (vide infra). Por outro lado, a perda do equilíbrio di-
que somente o complexo FT-FVIIa exibe função nâmico das reações da coagulação têm, como conse-
enzimática ativa; o complexo é também capaz de ati- qüência clínica, o aparecimento de distúrbios hemor-
var o FVII em processo denominado “auto-ativação”. rágicos ou trombóticos.
O complexo FT-FVIIa tem como substratos princi- Finalmente, vale mencionar que, no que se re-
pais o fator IX e o fator X, cuja clivagem resulta na fere ao sistema de coagulação, a utilização dos ter-
formação de FIXa e FXa, respectivamente, com sub- mos “intrínseco” e “extrínseco” pode ser ainda útil na
seqüente formação de trombina e fibrina (Figura 2). interpretação de dois exames laboratoriais, utilizados
Deve ser ressaltado, no entanto, que
quantidades mínimas de trombina são
geradas a partir do complexo “protrom-
binase” extrínseco. Todavia, uma vez que
há gênese inicial de trombina, esta enzi-
ma é capaz de ativar o fator V em fator
Va, e o fator VIII em fator VIIIa. As
duas reações, envolvendo ativação de
procofatores são fundamentais para a
geração do complexo “tenase” intrínse-
co (fator IXa/fator VIIIa), o qual con-
verte o fator X em fator Xa, e do com-
plexo “protrombinase” (fator Va/fator
Xa), que converte a protrombina em
trombina (Figura 2). Um importante as-
pecto dessas reações é que o complexo
fator IXa/fator VIIIa ativa o fator X com
eficiência 50 vezes maior que o comple-
xo fator VIIa/FT. O produto principal das
citadas reações, a trombina (IIa), exibe
atividades procoagulantes, convertendo Figura 3: Visão atualizada da coagulação sangüínea. As diferentes reações
o fibrinogênio em fibrina, promovendo ocorrem em superfícies de membrana, contendo fosfolípides (não
representadas no esquema).
ativação plaquetária e ativando o fator

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Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise

na rotina da avaliação da hemostasia: o TP/INR e o papel inibitório sobre o complexo fator VIIa/FT.
TTPA, que são de particular importância no diagnósti- Outra importante via de anticoagulação do san-
co de anormalidades hemostáticas e na monitorização gue é o sistema da PC ativada (PCa). A PC, quando
de terapêutica anticoagulante. Na execução desses ligada ao seu receptor no endotélio (EPCR, “endothelial
testes in vitro, criam-se, no tubo de reação, as condi- PC receptor”), é ativada após a ligação da trombina
ções para ativação preferencial das vias ditas extrín- ao receptor endotelial trombomodulina (TM) (Figura
seca (avaliada pelo TP) e intrínseca (avaliada pelo 5). A PCa inibe a coagulação, clivando e inativando os
TTPA). À parte da utilidade mencionada, de caráter fatores Va e VIIIa, processo que é potencializado pela
puramente didático e de interpretação laboratorial, a PS, que atua como um cofator não enzimático nas re-
divisão do sistema de coagulação em duas vias é ina- ações de inativação. A identificação do sistema da PCa
dequada para a compreensão da sua fisiologia. De fato, implicou importante mudança conceitual no que se re-
os conceitos de que o fator tecidual é o principal ativa- fere ao papel da trombina no sistema hemostático: não
dor da coagulação do sangue e de que a distinção en- obstante ela tenha função procoagulante, quando ge-
tre sistemas extrínseco e intrínseco não existe na fisi- rada em excesso, sua função, na fisiologia do sistema,
ologia do sistema representam importantes mudanças em que é produzida apenas em pequenas quantida-
conceituais, que devem ser assimiladas para entendi- des, é a de um potente anticoagulante, tendo em vis-
mento correto dos eventos bioquímicos, envolvidos na ta que sua ligação à TM endotelial representa o even-
ativação do sistema hemostático. to-chave para ativação da via inibitória da PC.
A AT (anteriormente designada AT III) é o ini-
3. MECANISMOS REGULADORES DA COA- bidor primário da trombina e também exerce efeito
GULAÇÃO SANGÜÍNEA inibitório sobre diversas outras enzimas da coagula-
ção, incluindo os fatores IXa, Xa, e XIa (Figura 6).
As reações bioquímicas da coagulação do san- Adicionalmente, a AT acelera a dissociação do com-
gue devem ser estritamente reguladas, de modo a evi- plexo fator VIIa/fator tecidual e impede sua reasso-
tar ativação excessiva do sistema, formação inade- ciação. Assim, a AT elimina qualquer atividade
quada de fibrina e oclusão vascular. De fato, a ativida- enzimática procoagulante excessiva ou indesejável. A
de das proteases operantes na ativação da coagula- molécula de heparan sulfato, uma proteoglicana pre-
ção é regulada por numerosas proteínas inibitórias, que sente na membrana das células endoteliais, acelera as
atuam como anticoagulantes naturais. No
presente capítulo, discutiremos as que apre-
sentam maior relevância biológica, atuan-
do como inibidores fisiológicos da coagula-
ção: o TFPI (“tissue factor pathway
inhibitor”), a proteína C (PC) e a proteína
S (PS), e a antitrombina (AT) (9).
Conforme mencionado previamente,
o complexo fator VIIa/FT atua sobre dois
subtratos principais: os fatores IX e X da
coagulação, ativando-os. Essas reações são
reguladas pelo inibidor da via do fator teci-
dual (TFPI), uma proteína produzida pelas
células endoteliais, que apresenta três do-
mínios do tipo “Kunitz”. O primeiro domí-
nio liga-se ao complexo fator VIIa/FT, ini-
bindo-o, e o segundo domínio liga-se e ini-
be o fator Xa. Assim, a ativação direta do
fator X é regulada negativamente de modo
rápido na presença do TFPI, que limita,
desta forma, a produção de fator Xa e fa- Figura 4. Inibição da via de ativação da coagulação dependente do fator
tecidual pelo TFPI (“tissue factor pathway inhibitor”). O símbolo C indica os
tor IXa (Figura 4). A ligação do fator Xa é pontos de inibição do TFPI.
necessária para que o TFPI exerça seu

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Figura 5. Sistema da proteína C ativada. A ligação da trombina (IIa) ao receptor endotelial trombomodulina (TM) modifica as
propriedades da trombina, transformando-a em um potente anticoagulante, por ativar a PC, que, juntamente com seu cofator (PS),
inativa os fatores VIIIa e Va, suprimindo a gênese de trombina. EPCR: “endothelial PC receptor” (receptor endotelial da PC).

Figura 6. Efeitos anticoagulantes da antitrombina (AT). A potenciação do efeito inibitório da AT pelo heparan sulfato e heparina
encontra-se também representada.

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Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise

reações catalisadas pela AT (Figura 6). A atividade que resulta na formação de uma serinoprotease ativa,
inibitória da AT sobre a coagulação é também poten- a plasmina. Embora a plasmina degrade não somente
temente acelerada pela heparina (Figura 6), um polis- a fibrina, mas, também, o fibrinogênio, fator V e fator
sacarídeo linear, estruturalmente similar ao heparan VIII, em condições fisiológicas, a fibrinólise ocorre
sulfato. como processo que é altamente específico para a
As diferentes vias regulatórias, citadas anteri- fibrina, portanto de ativação localizada e restrita, e não
ormente, não operam isoladamente, pois há sinergismo sistêmica, cumprindo, assim, sua função de remover o
entre o TFPI e a AT e entre o TFPI e o sistema da excesso de fibrina do intravascular de modo equilibra-
PC, suprimindo a gênese de trombina. Por exemplo, a do. Esta especificidade dependente de fibrina é resul-
AT (mas não o TFPI) inibe a ativação do fator VII, tado de interações moleculares específicas entre os
mediada pelo fator Xa, no complexo fator VII/FT. Por ativadores do plasminogênio, o plasminogênio, a fibrina,
outro lado, o TFPI (mas não a AT) inibe o excesso de e os inibidores da fibrinólise. Por exemplo, o t-PA exi-
ativação do fator X pelo complexo fator VII/FT. Adi- be baixa afinidade pelo plasminogênio na ausência de
cionalmente, o TFPI, em conjunção com o sistema da fibrina (KM = 65 µM), afinidade que é muito aumenta-
Pca, inibe potentemente a gênese de trombina pelo da na presença de fibrina (KM = 0,15-1,5 µM), o que
complexo fator VII/FT. ocorre porque a fibrina representa uma superfície ide-
Em condições fisiológicas (ausência de lesão al para ligação do t-PA ao plasminogênio, e em tal
vascular) há predomínio dos mecanismos anticoagu- reação, o plasminogênio liga-se à fibrina via resíduos
lantes sobre os procoagulantes, mantendo-se, desta de aminoácido lisina (“lysine-binding sites”). Em con-
forma, a fluidez do sangue e preservando-se a patência traste com esses mecanismos fisiológicos, ativação
vascular. mais extensa do sistema fibrinolítico ocorre quando
da infusão de agentes trombolíticos do tipo estrepto-
4. SISTEMA PLASMINOGÊNIO/PLASMINA quinase e uroquinase, que não são específicos para a
(SISTEMA FIBRINOLÍTICO) presença de fibrina.
A inibição do sistema fibrinolítico ocorre em
Fibrinólise pode ser definida como a degrada- nível dos ativadores do plasminogênio mediante ação
ção da fibrina, mediada pela plasmina. O sistema de inibidores específicos (PAIs, “plasminogen activator
fibrinolítico ou sistema plasminogênio/plasmina é com- inhibitors”), cujo principal representante é o PAI-1, e
posto por diversas proteínas (proteases séricas e inibi- diretamente sobre a plasmina, função inibitória exer-
dores), que regulam a geração de plasmina, uma enzi- cida pela a2-antiplasmina (Figura 7).
ma ativa, produzida a partir de uma proenzima inativa Recentemente, um novo componente do siste-
(plasminogênio), que tem por função degradar a fibrina ma fibrinolítico foi identificado e designado TAFI
e ativar metaloproteinases de matriz extracelular(10). (“thrombin-activatable fibrinolysis inhibitor”, inibidor
À parte seu papel no sistema hemostático, nos últimos da fibrinólise, ativado pela trombina, também denomi-
anos, foram descobertas numerosas funções do siste- nado carboxipeptidase B plasmática, procarboxipepti-
ma plasminogênio/plasmina em outros processos, in- dase U ou procarboxipeptidase R)(11). O TAFI é um
cluindo remodelagem da matriz extracelular, cresci- zimogênio plasmático que ocupa importante papel na
mento e disseminação tumoral, cicatrização e infec- hemostasia, funcionando como um potente inibidor da
ção, mas tais aspectos não serão aqui abordados. fibrinólise. O TAFI é ativado pela trombina, tripsina e
As enzimas do sistema fibrinolítico são todas plasmina, e, na sua forma ativada, é capaz de inibir a
serinoproteases, ao passo que os inibidores da fibrinó- fibrinólise por remover resíduos de lisina da molécula
lise são membros da superfamília de proteínas desig- de fibrina durante o processo de lise do coágulo,
nadas serpinas (inibidores de proteases séricas). São suprimindo,assim, as propriedades de cofator da fibrina
conhecidos dois ativadores fisiológicos do plasmino- parcialmete degradada na ativação do plasminogênio.
gênio: o ativador do plasminogênio do tipo tecidual Curiosamente, a principal via de ativação do TAFI é
(t-PA, “tissue-type plasminogen activator”) e o ativa- dependente da ligação do fator IIa (trombina) à
dor do plasminogênio do tipo uroquinase (u-PA, trombomodulina (complexo que tem também a fun-
“urokinase-type plasminogen activator”) (Figura 7). ção de ativar o sistema da proteína C). Dessa forma,
Os dois ativadores têm alta especificidade de ligação a molécula do TAFI representa um ponto de conexão
com seu substrato (plasminogênio) e promovem hi- entre os sistema de coagulação e fibrinolítico, fato ilus-
drólise de uma única ponte peptídica (Arg560-Val561), trado na Figura 8.

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Figura 7: Representação esquemática do sistema fibrinolítico. PDF: produtos de degradação de fibrina. Outras siglas: vide texto.

Figura 8: TAFI: ponto de conexão entre o sistema de coagulação e da fibrinólise, intermediado pelo complexo trombina/
trombomodulina. Esquema adaptado da referência 11. PLG: plasminogênio, Pn: plasmina, TM: trombomodulina, FGN: fibrinogênio,
PDF: produtos de degradação de fibrina.

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Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise

FRANCO RF. Overview of coagulation, anticoagulation and fibrinolysis. Medicina, Ribeirão Preto, 34:
229-237, july/dec. 2001.

ABSTRACT: The present article revises different aspects of the coagulant, anticoagulant and
fibrinolytic systems, which are relevant for a better understanding of aetiopathogenetic mechanisms
operating in bleeding and thrombotic disorders.

UNITERMS: Coagulation. Anticoagulation. Fibrinolysis.

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