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Análise do filme “Que horas ela volta?

”: reflexões com base na psicologia da gestalt

A obra de Anna Muylaert explora o contexto de diversas famílias da classe alta na


sociedade brasileira. A história de “Que horas ela volta?” é localizada no Morumbi, um bairro
rico da cidade de São Paulo e retrata o cotidiano de uma família composta apenas por sujeitos
brancos, com um pai, uma mãe e um filho adolescente e que dividem um pequeno espaço da
casa com Val, uma mulher preta nordestina que migrou para o sudeste em busca de emprego.
Exercendo a função de cuidadora, cozinheira, empregada doméstica e até funções parentais
com o filho que não é seu, Fabinho, a vida da funcionária acabou tornando-se completamente
imersa na dos integrantes paulistanos, passando a conviver mais tempo com estes do que com
a própria filha, Jéssica, que deixou para trás em sua cidade natal e com a qual passou a se
comunicar apenas através de telefonemas durante todo o período que morou com a família.
À vista deste enredo já internalizado e aceito pelos personagens, é que a chegada de
Jéssica na casa torna-se elemento incômodo para todos. A adolescente já não via a mãe há
mais de dez anos, tem a mesma idade de Fabinho e foi até São Paulo para prestar o mesmo
vestibular que o menino, fato que logo expõe a visão preconceituosa dos membros da família,
já que todos se surpreendem - de maneira duvidosa - com o fato da universidade mais
concorrida do país ser o sonho da filha de Val. Percebendo as reações, Jéssica ainda traz uma
justificativa sócio-política para a escolha da profissão que almeja, sendo esta a de “ferramenta
de transformação social”, uma situação que pode ser vista como uma metáfora da presença da
estudante no ambiente: ela representa os aspectos que nunca foram relevados pela família e
que passam a criar um furo na bolha na qual estão inseridos, captando a atenção e aflorando
emoções de todos os presentes.
À luz das leis da gestalt, faz-se possível e necessária uma análise aprofundada dos
fenômenos supracitados. A lei da pregnância postula que a construção da forma deve possuir
uma estrutura simples, equilibrada e regular, proporcionando harmonia e, assim, fechando a
gestalt do sujeito. Esta é representada pelo contexto cômodo e alienante dos integrantes do
grupo familiar e estrutura a base onde ocorre a dinâmica hierarquizada com Val e outros
indivíduos que estejam em posições semelhantes a esta personagem, dentres estes os outros
empregados da casa com os quais possui características em comum, como a condição de
prestador de serviço e, portanto, são categorizados e agrupados num mesmo grupo
considerado inferior pelos empregadores.
Em segunda instância, é de acordo com estes fatores que Jéssica representa a “gestalt
que não fecha”. Apesar de ser filha de Val e ter vindo do mesmo lugar que ela, esta é
completamente diferente em todos os outros sentidos: tem um posicionamento forte, é
contestadora e não fica calada diante de injustiças, contrariando a lei da semelhança da
configuração dos outros personagens da história. Soma-se à isso o conceito de percepção de
figura e fundo, sendo este a tendência do sistema visual de simplificar uma cena com base
num objeto selecionado (a figura) em contraste com o fundo. Este último é interpretado como
a bagagem de tudo aquilo que vivemos e experienciamos, as nossas lembranças e conceitos
que influenciam no nosso modo de perceber a vida e o mundo à nossa volta.
À partir disso, é interessante discorrer mais sobre o conceito de figura, sendo este o
elemento que nos chama atenção em dado momento, nos capta por ser uma necessidade que
precisa ser satisfeita, para que a gestalt volte a se fechar e assim o nosso estado de harmonia e
equilíbrio retorne. Dessa forma, a figura é sempre onde encontra-se toda a nossa energia e
engajamento, de modo que é importante frisar que a mesma figura pode ter significados
distintos de acordo com o fundo da qual emerge. Na obra, a figura central que destoa de
diversas formas dos fundos com a qual contrasta, é Jéssica.
Uma característica em comum presente nos modos relacionais de todos da casa com a
adolescente, seja patrões ou empregados, é que todos esperam que ela aja de modo submisso
por ser filha de uma empregada doméstica e, por conseguinte, todos acabam surpreendidos e
tocados por ela agir de modo não esperado. Já as características diferenciais do contraste do
fundo de cada um dos personagens com Jéssica é possível de serem observadas através dos
comportamentos dos mesmos. Val mostra-se totalmente desconcertada com as atitudes da
filha na presença dos patrões e tenta corrigi-la sobre os modos corretos - na verdade,
subalternos - de agir nessas ocasiões, que é reiterado também pela outra funcionária da casa
que mostra desaprovar e estranhar os comportamentos da garota.
Já com os integrantes da família, ao longo da convivência com eles, Jéssica ressoa em
cada um de maneira bem diversa. O efeito desarmonizador da presença da filha de Val para
Bárbara é tão forte que esta toma atitudes absurdas e incabíveis, como trocar a água da
piscina só porque a adolescente entrou, chamar uma amiga para dormir na sua casa só para
que a mesma desocupasse o quarto de hóspedes e, quando seu incômodo chegou ao ápice só
porque viu a garota tomando o “sorvete de Fabinho”, ela tornou esse sentimento explícito e
pediu para Val para que não a deixasse ultrapassar a porta da cozinha.
A simples união das partes não explica o todo: o princípio base da psicologia da
gestalt corrobora com a complexidade das relações estabelecidas entre as pessoas que moram
sob o mesmo teto. Apesar dos vários anos de convivência entre os quatro personagens e Val
ouvir constantemente de Bárbara, a dona da casa, que ela é “praticamente da família”, quando
localizamos esta organização estabelecida entre os sujeitos no contexto macrossocial da
sociedade brasileira, é possível constatar que esta relação ultrapassa a simples questão dos
afetos. Isto posto, o “praticamente” não é dito à toa: esta palavra marca o limite da relação
mediada pelo contrato implícito dos papéis de soberana e subalterna.
Diante disso, a obra coloca Jéssica como figura destoante e que põe em questão a
harmonia pré-estabelecida através de seus questionamentos acerca dos costumes da morada,
como o fato de Val ser proibida de desfrutar da maioria dos espaços da casa, dentre estes a
piscina, a mesa de jantar e o quarto de hóspedes, que além de ser muito maior e melhor do
que o da empregada doméstica, na maior parte do tempo fica desocupado. À partir disso,
Nogueira (2016) afirma que encontrar o ponto de vista incorporado em uma história é o
primeiro passo para a criação de uma estrutura visual, o que deve ser definidor da forma
como o público deverá se sentir emocionalmente sobre a narrativa e os personagens.
Com isso, é interessante chamar a atenção também para a cinematografia do filme,
que explicita bem a demarcação dos espaços entre Val e seus patrões, de modo que é possível
vê-la nos espaços supracitados apenas para desempenhar alguma função. Além disso, o
ambiente mais retratado no filme é a cozinha, visto que é onde a funcionária passa a maior
parte do tempo, de forma que só é possível ver a sala de jantar através do frame da porta que
separa os dois ambientes e fica aberta apenas quando os patrões estão comendo, para que Val
a atravesse para lhes servir alguma coisa.
Ademais, dentre estes espaços, faz-se relevante discorrer mais sobre a piscina, outra
figura que tem significado dicotômico dependendo do papel em que se contextualiza. Val
morou mais de dez anos com a família e nunca nem sequer havia pensado na possibilidade de
desfrutar do prazer de um mergulho, até sua filha levantar essa discussão. Inconformada com
os questionamentos da adolecente, Val responde que “se nasce sabendo o que é certo e
errado”, em uma tentativa de naturalizar a discriminação que sofre cotidianamente por
aqueles que nutre sentimentos de afeto. Nesse ponto, Jéssica aproxima-se da função da gestalt
terapia, ao trazer partes inconscientes da narrativa de Val que foram rejeitadas e que
incomodam, numa tentativa não intencional de integrá-la com o real problema.
Em virtude do que foi analisado, foi possível interpretar questões como o estereótipo,
a exploração e a discriminação através da abordagem da filosofia da gestalt, de modo que o
filme trabalhou não apenas em explicitar muito bem a perceção de cada um dos personagens
acerca da situação que todos compartilhavam, como também buscou impactar a percepção do
próprio expectador, corroborando com o cineasta Hugo Munsterberg, o qual afirmou que este
embarca na ilusão da cena por trazer consigo um repertório de ideias, sentimentos e
experiências que o faz preencher lacunas e aceitar o que o teórico chama de "aparência de
verdade" (1983).

Referências
Munsterberg, H. (1983) A atenção. In: A Experiência do cinema: antologia, XAVIER,
Ismail (org.). Rio de Janeiro: Edições Graal.
Nogueira, W. (2017). O espaço visual no cinema: um diálogo entre as teorias de Bruce
Block e o filme “Que Horas Ela Volta?”. Rascunho, 9(15).

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