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ANÁLISE DO PODER DISCIPLINADOR DAS ESCOLAS AGRÍCOLAS (1947-1956)

Lindamar Etelvino Santos Soares


Professora Ms. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sudeste de Minas Gerais- Campus Rio Pomba.

1- RESUMO:

O trabalho foi desenvolvido no âmbito do Instituto Federal de MG- Rio Pomba e Instituto Federal de
MT- Cuiabá e tem como objetivo demonstrar a anatomia política das duas Escolas Agrícolas na
perspectiva de seu poder disciplinador no período de 1947 a 1956. Assim, além de Foucault e vários
autores importantes da História da Educação; como procedimento técnico-metodológico pode-se
atentar para a Lei Orgânica do Ensino Agrícola, como Decretos, levantamentos de fontes documentais
das escolas, depositadas nos Arquivos Públicos de MG e MT, nas informações dos mais diversos
periódicos regionais. Assim, pretende-se estudar a História da Educação Agrícola a partir da
correlação com a História do Brasil e regional, baseadas em Franco e Lima dentre outros, assim como,
a incursão pela Cultura Escolar está assentada em Dominique Julia. Finalmente, o discente nas escolas
responde a um processo modelar de conduta próximo à sociedade disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Escolas Agrícolas; História da Educação; sociedade disciplinar.

2- Breve histórico do ensino agrícola

O início da educação agrícola regular ou formal com escola, aluno e professor


surge somente no final do período imperial, instituições profissionalizantes de educação
agrícola voltadas à formação de agrônomos.
Segundo Franco (1987), o primeiro estabelecimento instituído aos 23 de junho de
1875, apoiou-se na Carta Régia de 25 de junho de 1812, e foi denominado Imperial Escola
Agrícola da Bahia, no Engenho de São Bento das Lages, comarca de Santo Amaro, a única
escola agrícola de Brasil até 1890.
Inaugurada somente em 1877, a Escola iniciou os seus cursos em dois graus: o
elementar e o superior. O primeiro habilitava os trabalhadores agrícolas, e o superior formava
agrônomos, engenheiros agrícolas e veterinários. A primeira turma da escola da Bahia
formou-se em 1880, foram 74 formandos. Afora a instituição bahiana, os estudantes tinham
apenas por opção estudar nas escolas estrangeiras que se valiam de uma orientação
europeizante de estudos agronômicos. Muitos brasileiros, da época, se formaram em Zurique,
Stutgart, França ou Coimbra.
De lá para cá, instituições foram criadas no Brasil ainda no período imperial, mais
três escolas agrícolas, uma em Pelotas (RS), outra em Piracicaba (SP) e a terceira em Lavras
(MG). Aos poucos, as escolas dirigiram-se também para formação de veterinários e, por volta
de 1890, transformaram-se em Liceus de Agronomia e Veterinária.
Diligências mais concretas na formação de profissionais para agricultura só
ocorreram no término do período imperial e na primeira fase da República.
A necessidade de introdução de inovações na agricultura para salvaguardar a
economia cafeeira fez com que fossem valorizadas as criações de escolas agrícolas na
primeira fase da república.
Esse tipo de ensino passou a ser enaltecido, tido como forma de transformação da
população rural, de improdutiva par produtiva. A antiquada tecnologia passou a ser
substituída por técnicas consideradas mais sofisticadas.
No início do século XX, técnicos, em sua maioria alemães e norte-americanos,
prestaram consultorias relacionadas ao incremento do setor agrícola. A modernização através
do ensino agrícola era vista com bons olhos, concebida a partir da importação do sofisticado
modelo norte- americano.
Na primeira fase da República, foram criadas instituições estatais responsáveis
pelo controle e formação de profissionais em todos os níveis para melhorar a agricultura
brasileira. Assim sendo, em 1906, fundou-se o Ministério da Agricultura Indústria e
Comércio e o Ensino Agronômico, sob a subordinação do Ministério da Agricultura,
estabelecido pelo Decreto número 8319 de 20 de outubro de 1910. De 1910 a 1930 foram
criadas dezessete escolas agrícolas fornecedoras de cursos de agronomia e veterinária.
Em mensagem ao Congresso Nacional, em 1911, o Presidente da República
Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca se empenhou no sentido de execução de dotações
orçamentárias para concretização do Decreto número 8319. Através da execução de
dispositivos orçamentários, mencionou a criação da Escola Agrícola da Bahia e do
Aprendizado Agrícola anexo, por força dos Decretos números 8.584 de 1 de março de 1911 e
o 8.607, de 08 de março do mesmo ano. Anunciou também o funcionamento, no mesmo ano,
da Escola Média ou Teórica Pública do Rio Grande do sul; a Escola de Agricultura, anexa ao
Posto Zootécnico Federal, o Aprendizado Agrícola da Bahia e outros estabelecimentos
instalados em 1911. Ainda no pronunciamento, é citada a criação de novas instituições
agrícolas.
Em 1911, existiam oito aprendizados agrícolas localizados em São Paulo, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, Alagoas, Pará e Maranhão. Em 1916,
reduziu-se em cinco os aprendizados, um em Minas Gerais, outro no Pará, um no Rio Grande
do Norte e dois na Bahia. A redução ocorreu como forma de contenção orçamentária.
O governo brasileiro por muito tempo não se importou com a construção de
aprendizados agrícolas, e existia um contingente um pouco maior de universidades voltadas
para formação de agrônomos e veterinários. Preocupados mais em explorar as fontes
extrativistas do país, somente na segunda metade do século XX, começam a dar atenção a
esse setor:

Somente após a completa extinção dos bens que a natureza nos agraciou é que o governo
redirecionou o seu plano de trabalho. Mesmo assim, apenas a partir da segunda metade do século
XX, os dirigentes nacionais perceberam que o setor agropecuário era merecedor de um pouco mais
de atenção, pois o país capengava com a falta de tecnologia para produzir no campo. O impulso
necessário à criação de novas tecnologias para o campo só surgiu quando da criação das escolas
agrícolas, aprendizados agrícolas e universidades voltadas para o ensino agropecuário
(MARQUES, 2004, p.18).

A criação da Escola “Gustavo Dutra” ocorreu em 1943, sua primeira


denominação foi Aprendizado Agrícola “Gustavo Dutra”, em homenagem a Gustavo Dutra, o
primeiro diretor da Escola Superior de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. A universidade mencionada foi criada em 1910 pelo
Presidente da República Nilo Peçanha e pelo Ministro da Agricultura Rodolfo Nogueira da
Rocha Miranda, o qual estabeleceu as bases fundamentais do ensino agropecuário no Brasil.
A “Escola Agrícola de Rio Pomba” foi criada pela Lei 3092/56 de 29 de
dezembro de 1956, publicada no DOU em 02 de janeiro de janeiro de 1957. No entanto, a
Escola foi inaugurada somente no dia 16 de agosto de 1962 pelo Deputado Último de
Carvalho, favorecendo aos anseios políticos, econômicos e sociais da época.
Com o Estado Novo, nos anos 30, surgem mecanismos de controle que garantiam
um Estado forte e autoritário, representante dos interesses das oligarquias rurais. As
burguesias agroexportadoras favoreceram-se com o novo regime pela intervenção do governo,
protegendo a economia, através da criação de novos organizadores centralizadores de crédito
agrícola, adquiridos no exterior, pela mesma estrutura agrária (dominada por grandes
propriedades), pela exploração das condições de trabalho.
Pelo Decreto Lei número 2.832, de 04 de novembro de 1940, foi criada a
Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinário- SEAV- subordinada ao Ministério da
Agricultura. Todas as escolas agrícolas passaram a ser subordinadas a este órgão.
Maria Laura P. Barbosa Franco menciona a função da SEAV, baseada em
Calazans:

Esse órgão configurou-se como importante, pois todas as escolas agrícolas passaram à sua
subordinação devendo ajustarem-se ao Padrão de Ensino Agronômico e Veterinário instituído pela
referida superintendência. Cabia, pois, à SEAV a responsabilidade de fiscalizar todas as escolas
agrícolas, registrar seus diplomados, aprovar os currículos propostos pelas escolas novas ou as
modificações sugeridas pelas já existentes para que assim fosse mantida uma uniformidade padrão
em todos os estabelecimentos de ensino agrícola. Além disso “competia à SEAV orientar e
fiscalizar o ensino agrícola em seus diferentes graus, fiscalizar o exercício das profissões de
agronomia e veterinária, ministrar o ensino médio elementar de agricultura, promover a educação
direta das populações rurais, e realizar estudos e pesquisas educacionais aplicados à agricultura”
(CALAZANS, 1979, p.86).

Eurico Gaspar Dutra, em mensagem apresentada ao Congresso Nacional, em


1947, na abertura da sessão legislativa, mencionou a grande deficiência de técnicos em
agricultura e pecuária no Brasil. O ponto de partida para salvaguardar a economia nacional foi
dado a partir da promulgação da Lei Orgânica do Ensino Agrícola, pelo Decreto-Lei número
9.613, de 20 de agosto de 1946.
Em 1946, o Ministro Raul Leitão da Cunha regulamentou o Ensino Primário e o
Ensino Normal, além de criar o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial),
para atender as modificações exigidas pela sociedade, após a Revolução de 1930.
Dutra apresentou, em pronunciamento, a importância da Lei Orgânica como
forma de ampliação de técnicos e substituição dos velhos métodos por técnicas de introdução
em larga escala de recursos mecânicos.
Com a queda de Getúlio Vargas e a promulgação da Lei Orgânica, ocorreu a
regulamentação do ensino agrícola de nível médio. A Lei Orgânica do Ensino Agrícola
ocorreu em um período de realização das eleições e da elaboração de uma nova Constituição
que pretendia a independência dos poderes e a autonomia dos Estados, entretanto, como
afiança Franco (1987), a marca autoritária e centralizadora dos regimes ditatoriais por
funcionar estabelecimentos de ensino agrícolas federais ainda mantidos e administrados sob a
responsabilidade direta da União, como consta no artigo 54 da referida Lei.
A Lei Orgânica dá providências na constituição de outras modalidades de ensino,
os equiparados e reconhecidos. Os primeiros seriam mantidos pelos Estados e os
reconhecidos, pelos Municípios ou por pessoas naturais ou jurídicas. Só que, os
estabelecimentos de ensino agrícolas equiparados ou reconhecidos não poderiam funcionar
sem prévia autorização do Ministério da Agricultura. A inspeção dos estabelecimentos se
fazia somente sob o ponto de vista administrativo e também com o caráter de orientação
pedagógica.

3-O poder disciplinar no ensino agrícola

As instituições ao serem consideradas globalmente, podem-se ter outra impressão,


até mesmo com relação à falta de organismos disciplinadores. No entanto, desde as minúcias
dos regulamentos, das inspeções e outros controles da vida dos indivíduos se detectam estes
organismos e, primeiramente, na distribuição do indivíduo no espaço, já se atenta para os
procedimentos disciplinadores.
A localização espacial favorece a cerca, local heterogêneo e fechado, protegido da
monotonia disciplinar; o quadriculamento com indivíduos bem dispostos em lugares propícios
à vigilância. Corpos, elementos não descontrolados, estruturalmente bem postos favorecendo
a localização, a circulação controlada, a medição de atuação do indivíduo na instituição, a
regra das localizações funcionais, na arquitetura, com lugares determinados para satisfazerem
as necessidades de vigiar, de impedir as comunicações perigosas e fazer criar um espaço útil
e, as famosas filas, cada um é definido pelo lugar que ocupa na série e pela distância que os
separa dos outros. O indivíduo, unidade, revela-se como a posição que se localiza na fila.
Os aparelhos disciplinares trabalham o espaço disciplinar, com indivíduos
distribuídos em espaços próprios, a cada um, aglomerem-se com outros. Criando condições de
vigilância mais efetiva, de vigilância médica, militar e fiscal. Por exemplo, num hospital, há o
controle de idas e vindas, fichas de controle, individualização dos corpos, etc.
As disciplinas organizam também salas apropriadas, celas, lugares, filas para
garantir obediência, técnicas de poder. O espaço disciplinador favorece o controle, a
vigilância coletiva base para uma microfísica do poder.
A disciplina procede na distribuição do indivíduo no espaço. E ao olhar para a
Escola de Iniciação Agrícola “Gustavo Dutra” bem como para “Escola Agrícola de Rio
Pomba”, pode-se atentar para indícios de um internato modelo em ordem e disciplina. “No
quadro das modernas teorias da percepção, o espaço-escola é [...] um mediador cultural em
relação à gênese e formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, ou seja, um
elemento significativo do currículo, uma fonte de experiência e aprendizagem” (ESCOLANO,
2001, p.26).
“Portadores de significados múltiplos, a arquitetura e o espaço escolares têm se
constituído nos últimos anos em promissoras vertentes de investigação sobre a cultura
escolar” (SOUZA, 2005, p.8).
E mais, Souza (2001), salienta que no domínio dos silêncios ordinários, da
potencialidade das escutas, das dimensões simbólicas, nas tecnologias de controle de mentes e
corpos; os estudos do espaço e da arquitetura escolares se tornam como “eixos potenciais de
pesquisa e compreensão das instituições educativas”.
A Escola de Iniciação Agrícola “Gustavo Dutra” apresenta toda uma
potencialidade enquanto elemento investigativo, no entanto, a tarefa requer muita atenção,
olhar clínico e sensibilidade para cada elemento que surge na investigação. Logo, no início, a
tarefa se torna difícil até mesmo para o investigador, pois, afinal, os poucos indícios aparentes
necessitam de uma compreensão profunda para entender a diversidade educacional. E de fio
em fio, a teia se delineia,a propiciar o entendimento de todo um processo complexo.
Construída na serra de São Vicente, no município de Santo Antonio do Leverger,
no estado de Mato Grosso, a escola possui uma área de cinco mil hectares. A maior parte da
área é cercada de paisagem típica do cerrado, comum à região central do Brasil. O prédio
principal da Gustavo Dutra abriga as instalações do pavilhão pedagógico, do internato, do
pavilhão administrativo, do refeitório e da lavanderia. As construções, como do almoxarifado,
do posto de saúde, das residências e outras são próximas umas das outras. Até as oficinas
didáticas de marcenaria-carpintaria, sapataria, mecânica e as áreas de atuação prática de
zootecnia e agricultura mostram-se próximas ao pavilhão central. A usina é a mais distante do
pavilhão.
Com relação ao pavilhão central, alguns dispositivos arquitetônicos do
educandário favorecem a visualização dos indivíduos. Através de uma fachada imponente,
comum às escolas federais agrícolas, construídas no século XX, já se pode vislumbrar uma
significação comum às instituições educacionais de internato muito próximas às escolas
militares da época onde a ordem e a disciplina são valorizadas desde a parte física até as
tomadas de atitude.
A entrada na escola se dá com a subida em degraus. Cheios de significação,
escalados para algo imperceptível ou novo, diferente da realidade que circunda a comunidade
escolar.
O novo já aparece para interferir na mentalidade de cada um que adentra à escola.
Ao deixar de lado as interferências externas e introduzir todo um modo de ver, de ouvir, de se
portar, de gesticular diferente de antes de entrar na instituição de ensino.
Os degraus de entrada são galgados em direção a um salão de recepção que
abrigava, ao lado a secretaria escolar, a sala da direção e a sala dos professores. Os primeiros
delineamentos de comando e de vigilância começam a ocorrer. De uma sala envidraçada, os
membros da administração podem vislumbrar os discentes e todos que adentram na escola.
Também, antes de subir os degraus, no andar superior da escola, através de uma sacada
secreta,para os que estão abaixo, é possível observar todos os que entram e saem da
instituição.
Dentro da escola, as salas de aula são dispostas em filas de frente aos corredores,
possibilitando a circulação dos próprios educandos e também dos controladores do processo
de vigilância. Além disso, as janelas de cada sala de aula, juntamente com as portas das
mesmas, se localizam na frente dos corredores, possibilitando a observação dos que estejam
nos interiores das salas de aula.
E cada turma possui a sua própria sala de aula, com alunos dispostos em filas. Os
discentes possuem as suas próprias carteiras escolares individuais, bem dispostas, a favorecer
a visualização por parte do professor, do inspetor e de outros. A colocação adequada de cada
educando favorece a individualização de cada um, sem aglomerações de corpos humanos.

Nas escolas do século XVII, os alunos também estavam aglomerados e o professor chamava um
deles por alguns minutos, ensinava-lhe algo, mandava-o de volta, chamava outro, etc. Um ensino
coletivo dado simultaneamente a todos os alunos implica uma distribuição espacial. A disciplina é,
antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um
espaço individualizado, classificatório, combinatório (FOUCAULT, 2005, p.106).

O arranjo do pátio de recreio, no centro do pavilhão pedagógico e administrativo,


a colocação das mesas escolares artisticamente alinhadas em filas, a distribuição dos
dormitórios semelhantes às salas de aula, quase tudo favorece o controle. E mais e mais
arranjos se dispõem beneficiando a vigilância geral e, também, individual.
A existência de um culto cívico toda semana no pátio de recreio, constitui uma
das engrenagens para a boa organização espacial. Os discentes são dispostos em fila por
turmas e altura, ou seja, cada uma disposta em uma determinada fila e os alunos menores na
frente dos maiores. A visualização dos discentes é favorável ao corpo docente e
administrativo, pois os mesmos ficam num patamar acima e à frente dos alunos. O arranjo,
assim, propicia a apresentação de funcionários novos e autoridades presentes, anunciação de
eventos, leitura de regras e normas escolares, falácia de ditames da instituição e até regência
de hinos.
Assim, as minúcias do olhar em várias partes da instituição escolar, mostram-se
um dos passos para revelar as técnicas desse cálculo ínfimo e infinito como diz Foucault.
Na escola foram encontradas, também, várias fichas de controle de entrada e saída
dos alunos do internato, além de controle das salas de aula e das atividades práticas.
Em um livro de registro dos guardas, dos anos quarenta e cinquenta, foram
achados relatos quanto à conduta de cada discente. Depois do controle, por meio das fichas,
tudo era relatado nos livros para maior conhecimento, principalmente das irregularidades dos
discentes.
Uma leitura detalhada dos livros de registro foi possível identificar uma
instituição disciplinar que se valia da observação contínua e diária. O discente era visto em
todos os locais da escola desde as salas de aula e até mesmo na horta, na pocilga... As salas de
aula eram bem dispostas em filas e existia a organização por etapas, ou seja, da série inicial à
série inicial ocupava a primeira sala do corredor e assim por diante.

A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos
indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme à regra. É preciso vigiá-
los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares. É assim
que no exército aparecem sistemas de graus que vão sem interrupção, do general chefe até o ínfimo
soldado, como também os sistemas de inspeção, revistas, paradas, desfiles, etc..., que permitem que
cada indivíduo seja observado permanentemente (FOUCAULT, 2005, p.106).

Nada escapava dos olhares atentos dos guardas e inspetores que se imbuíam da
autoridade escolar para concentrar esforços na manutenção da ordem, do respeito, da boa
conduta moral e dos preceitos próprios a uma época que se valia de vários dispositivos de
combate da ociosidade, do desperdício de tarefas a serem realizadas, da diminuição do
conteúdo a ser assimilado.
A organização, através de fichas de controle de cada aluno, foi muito utilizada na
escola de Iniciação Agrícola “Gustavo Dutra”. Existia a observância das fichas pelos guardas.
Os outros funcionários da instituição e mesmo a direção valorizavam a organização e controle
como forma de conhecimento das atuações dos discentes em todas as localizações espaciais,
pois, afinal, a escola era muito extensa e tais procedimentos tornavam-se necessários,
principalmente na informação da conduta dos alunos nos alojamentos.
A escola, também, contava com várias áreas de atuação prática, onde a
aprendizagem tornava-se importante para a formação de um educando qualificado. A
cavalariça usada nas aulas práticas sobre equinos, muares e asininos; o estábulo para aulas
práticas de bovinocultura; o aviário para noções de criação de frangos, galinhas e marrecos; o
apiário para práticas de noção de Zootecnia, produção de mel, cera, própolis e geléia real...
Logo ao iniciar as tarefas do dia, os educandos eram postos em fila para chamada, feita pelos
guardas. O não comparecimento de algum aluno era anotado e levado a conhecimento dos
interessados na organização das atividades dos jovens.
As fichas de controle eram utilizadas desde o início de cada manhã, logo após do
desfecho do Hino Nacional e da leitura dos avisos. O discente respondia a uma chamada de
presença e as ausências eram anotadas. Os presentes eram recompensados com um final de
semana livre, os ausentes respondiam outras chamadas nos finais de semana, quando eram
obrigados a fazerem atividades extraclasse de trabalho duro nas lavouras ou nas próprias
instalações físicas:

A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado
os indivíduos em sua singularidade. É o poder de individualização que tem o exame como
instrumento fundamental. O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir
os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através
do exame, a individualidade torna-se um elemento pertinente para o exercício do poder
(FOUCAULT, 2005, p.107).

As chamadas eram repetidas em várias localizações espaciais: no pátio, nas salas


de aula, nas lavouras e em todos os locais onde era necessária a vigilância. Se alguma pessoa
procurasse um dos alunos da escola, era possível identificá-lo facilmente, pois as fichas eram
recolhidas logo após cada chamada.
Outro passo disciplinar importante era a procura, no mesmo dia, do aluno faltoso.
Em um livro de registro dos guardas foi relatada a fuga de alguns discentes, das áreas de
trabalho. Geralmente, os discentes fujões procuravam algum local de lazer. A fuga era rápida
e escapava da vista dos controladores, só que no mesmo dia o responsável pelo ato era
encontrado e levado para responder pela atitude impensada.
A pena, para o desvirtuamento das regras abalizadas pela lei imposta por
normativas prescritas em Documentos Internos, era passar outro final de semana no
afadigamento do trabalho que passava a ser também um meio de punição e de castigo a todos
aqueles que desvirtuassem as regras e normas escolares.
Com relação à valorização do código moral, analisado com mais profundidade,
pode-se detectar um código severo, a que o discente:

“[...] deverá submeter-se, incondicionalmente, sob pena de punição; no caso inverso, ou seja, de
maior valorização dos processos de subjetivação, a ênfase não estará no conteúdo da lei ou nas
condições de aplicação, mas na relação consigo, sendo ela definida pela soberania de si sobre si
mesmo” (FAÉ, 2004, p.9).

Acima do pátio existiam também sacadas em forma de corredores que permitiam,


na época, a visualização dos que estavam abaixo. Um cerco muito organizado permitia o
disciplinamento fora e dentro. Os mínimos detalhes podiam ser notados tanto pela vista aérea
como pela térrea.
“O lugar que a escola teve de ocupar na sociedade foi um ponto de especial
preocupação para os reformadores dos fins do século XIX e indícios do século XX”
(ESCOLANO, 2001, p.30).
O meio natural é valorizado por parte dos higienistas e médicos. Uma escola
longe das imundícies das cidades favorecia o delineamento de um corpo saudável ao ar livre,
perto do campo. Ainda que houvesse o reforço de enfermeiros e, às vezes, médicos na Escola
de Iniciação Agrícola “Gustavo Dutra”, a vida perto das árvores, da natureza, muito favorecia,
para os planejadores da escola, a uma vida saudável.
Ao adentrar à escola, os hábitos anteriores são deixados de lado para uma postura
organizacional válida para o século XX, onde o aluno, que antes vivia descalço, passava a
seguir um padrão higienista, pois possuía um espaço para os banhos diários, para colocação
adequada das roupas nos armários, para lavagens de roupas etc.
As vestes não podiam estar sujas ou rotas e, para isso, era necessário a troca a
cada ano e lavagem constante. Os espaços escolares organizados com rouparia para abrigar
roupas limpas, lavanderia para lavagem das vestes e outros, favoreciam o controle do uso das
vestimentas e a manutenção das mesmas.
A escola, afastada dos grandes centros urbanos, constituía-se em estratégia de
formação de indivíduos que valorizavam a pedagogia da natureza. Homens saudáveisjunto
aos bons ares naturais, livres das aglomerações urbanas e das inúmeras enfermidades físicas
que acometem, todos os dias, as populações. Afastar-se da cidade, também, era indicado por
Rousseau como uma forma de saída de um meio favorecedor do ócio, do perigos da vida
indolente, sedentária. “A precaução mais rápida e mais fácil é tirá-lo do perigo local. Leve-o
primeiro para fora das cidades, para longe dos objetos capazes de tentá-lo” (ROUSSEAU,
1995, p.43). A escola, como agente de moralização desse tempo, proporcionou aos habitantes
uma vivência separada das tentações urbanas e, para isso, facilitou a entrada em um espaço
escolar, expressão de bons costumes sociais.
Os pais confiavam, à escola, seus próprios filhos. Depoimentos, de antigos
discentes do educandário, revelam que as famílias achavam que a Gustavo Dutra era um tipo
de colônia de correção, mas os mesmos discentes afiançavam não ser a escola um tipo de
instituição com este fim. Ao analisar o espaço escolar, a arquitetura escolar e mesmo as
normas de higiene, começa a se delinear um educandário muito próximo as colônias de
correção, pois, “além de retirar a educação das novas gerações do monopólio da casa e da
igreja, serviria também, caso funcionasse de acordo com os imperativos de ordem médica,
para esvaziar as prisões e as galés ao fabricar uma moralidade higiênica e higienizadora”
(GONDRA, 2003, p.534).

4- Referências

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BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. História da educação, arquitetura e espaço escolar/
Marcus Levy Albino Bencostta, organizador. São Paulo, Cortez, 2005.
BURKE, Peter. O que é história cultural?/ Peter Burke; traduzido por Sérgio Góes de Paula.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Ed., 2005.
CALAZANS, J.et alii. Estudo retrospectivo da educação rural no Brasil. Rio de Janeiro,
Instituto de Estudos Avançados em Educação, 1979, mimeo.
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo, Fundação Editora da UNESP (FEU),
1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; traduzido por Raquel
Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 2004.
__________, História da sexualidade I: A vontade de saber; traduzido por Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J.A. Guillon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2003.
__________, Microfísica do Poder; organização e tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro, Edições Graal, 2005.
FRANCO, Maria Laura P. Barbosa. Introduzindo a problemática do ensino técnico agrícola e
um pouco de sua história. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, INEP, v.68,
n.158, jan./abr.1987.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo, Moraes, 1986.
GONDRA, José Gonçalves. Medicina, higiene e educação escolar. In: VEIGA, Cynthia
Greive; FARIA FILHO, Luciano Mendes; LOPES, Eliane Maria Teixeira. 500 anos de
educação no Brasil. 3ª ed., Belo Horizonte, Autentica, 2003. p.519-551.
LINHARES, Maria Y. L. e SILVA, F.C.T. da. História da Agricultura Brasileira –
combates e controvérsias. São Paulo, Brasiliense, 1981.

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