Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Departamento de Filosofia
Falar de sexo:
Clínica, política, estética
Curso integral
Como vocês sabem, o título desse curso é “Falar de sexo: clínica, política,
estética”. E como vocês sabem, estamos no Brasil, no ano de 2021. Nã o faria
sentido começar esse curso sem levar em conta as coordenadas histó ricas que
envolvem sua enunciaçã o. Até agora, em quase vinte anos de docência nessa
universidade, sempre insisti na importâ ncia de nunca tematizar diretamente as
vicissitudes do contexto só cio-histó rico que nos envolve. Parecia-me
fundamental criar uma certa barreira entre as discussõ es políticas fora da sala de
aula e o espaço de reflexã o e debate que aqui deve imperar. Em larga medida,
acho que esse princípio deve continuar a ser respeitado como condiçã o de
respeito a vocês, ou seja, respeito a capacidade que vocês tem de estabelecer, por
vocês mesmos, relaçõ es com situaçõ es atuais e definir regimes pró prios de
instrumentalizaçã o de saberes. Nã o creio realmente que caiba a um professor
fazer isso no lugar de vocês, muito menos de forma direta.
Mas como vocês viram, eu usei um condicionante na frase anterior e nã o
pude evitar de falar “em larga medida”. Porque acredito que vale a pena, nesse
momento atual com toda sua carga dramá tica, ao menos contextualizar as razõ es
da decisã o que me levou a discutir nossas formas de “falar de sexo”. Pois seria
impossível nã o lembrar de algo que todos tem percebido de forma cada vez mais
explícita nos ú ltimos anos, a saber, que um dos eixos fundamentais do poder é a
tentativa de controlar as formas de falar de sexo. Nã o há projeto autoritá rio que
nã o tenha, como espaço fundamental de sua expressã o, a regulagem dos corpos,
de seus regimes de visibilidade, a definiçã o das formas de aliança, os circuitos de
afetos e desejos. Sexo sempre foi, e sempre será uma das questõ es centrais da
vida social e da esfera do político. Pois poder é mobilizaçã o de libido, é
constituiçã o de adesã o a partir de processos de identificaçã o. Embora use
continuamente a força e a violência, nenhum poder se sustenta apenas sob a
força e violência. Ele se sustenta a partir do desejo. Ele precisa do desejo para
impulsionar os processos de reproduçã o material da vida social. Nossa servidã o
é libidinalmente construída e investida.
Por isso, nã o se trata de afirmar que a ascensã o de regimes autoritá rios
seja acompanhada de discursos repressivos sobre o sexual. Isso nunca ocorreu
dessa forma. Todo poder fala de sexo, de forma insistente e compulsiva, com a
esperança de que essa fala defina uma partilha entre as formas da experiência
libidinal que podem circular, que devem ser visíveis e aquelas que nã o podem.
Pois falar de sexo é nã o apenas constituir socialmente objetos de desejo, mas
principalmente falar de instituiçõ es, de hierarquias, de normas sociais, de
sujeiçõ es. Lembrem por exemplo de alguém como Margareth Thatcher a dizer:
“Nã o existe esse negó cio de sociedade. Existem indivíduos e famílias”. Alguém
poderia se perguntar: “mas o que a família está fazendo nessa frase?”. Pois há
certa ló gica em dizer que nã o existiria a sociedade como corpo anterior aos
indivíduos, existiriam apenas indivíduos em associaçã o e julgamento de açõ es a
partir de seus sistemas particulares de interesse. Essa é a fantasia liberal por
excelência. A fantasia de que a sociedade é, na verdade, o sistema de relaçõ es
entre elementos sem relaçõ es imanentes entre si.
Mas por que entã o associar a “família”? Por que associá -la a nã o ser para
naturaliza formas de hierarquia de gênero, de transmissã o e filiaçã o, de
autoridade, de divisã o social de trabalho, de individualizaçã o? Formas que
deverã o ser desejá veis, que deveremos querer reproduzir, que deveremos ser
capazes de investir libidinalmente, organizar nossas fantasias e desejos a partir
de seu nú cleo. Margareth poderia nã o saber, mas ela estava falando de sexo, de
como sexo deve ser feito e, principalmente, contra quem ele deve ser feito. Pois
quando se fala de sexo, essa é uma questã o fundamental que definirá o sentido
de tais falas: contra quem tais proposiçõ es sã o enunciadas? Contra quem é
enunciada a afirmaçã o de que existiria apenas indivíduos e famílias, contra que
potencialidades, contra que criaçã o possível, o que se quer parar dizendo isto?
No campo do sexual, nenhum enunciado é meramente descritivo. Todo
enunciado é agonístico.
Entã o, nã o será surpresa para ninguém que, neste exato momento
histó rico que é o nosso, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma
jocosa, sarcá stica, ameaçadora, apocalíptica. Ou seja, talvez nã o seja estranho que
ele fale de uma maneira muito similar à quela que os alemã es ouviam, na década
de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversõ es
contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversõ es.
Aversõ es produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo:
Sexo e poder
3
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
4
KRAFFT-EBING, Psychopatologia sexualis, p. 1
5
Idem, p. 29
da moralidade teoló gica sobre nossos corpos, a normatividade de sua estrutura
sobre nossos desejos.
Dessa forma, a projeçã o, para dentro do campo do sexual, de distinçõ es
entre normal e patoló gico, entre saú de e doença implicaria uma transformaçã o
final na nossa forma de falar de sexo. Transformaçã o essa que aprofundaria os
mecanismos de disciplina e gestã o social pró prios ao poder nas sociedades
ocidentais. Pois essa moralidade nã o era apenas teoló gica, ela fundava uma
economia, uma política, ou seja, uma dinâ mica de trabalho e disciplina (contra o
dispêndio e o gozo), uma forma de hierarquia e sujeiçã o (patriarcal). Por isso,
longe de acreditar que a liberaçã o da fala sobre o sexual pudesse expressar a
consolidaçã o de processos de emancipaçã o social, longe de defender a existência
de uma espécie de substâ ncia natural reprimida que devesse vir a tona, tratava-
se de denunciar a sujeiçã o da experiência do sexual a um discurso
eminentemente clínico. Daí afirmaçõ es como:
8
WITTIG, La pensée straight, p. 48
9
Idem, p. 60
10
Idem, p. 70
estratégica das lutas sociais vinculadas a gênero e opressã o feminina, que nã o
seja um setor retardatá rio dessas lutas.
Isto nos levará a problematizar essa visã o completamente subsidiá ria da
clínica do sexual. E creio que, como nã o poderia deixar de ser, seremos obrigados
a discutir o caso mais complexo dessas modalidades de discurso clínico, a saber,
a psicaná lise. Insistiria nesse lugar privilegiado da psicaná lise porque nenhum
discurso clínico sobre o sexual teve tanto impacto na cultura ocidental quanto
ela. Independente do que pensemos sobre a psicaná lise enquanto clínica, é certo
que ela teve um impacto cultural maior em nossa forma de falar de sexo. Há algo
da sensibilidade psicanalítica que moldou, de forma extremamente visível, nossa
cultura. Por isso, será o caso de, em vá rios momentos de nosso curso, voltar à
psicaná lise mais uma vez a fim de medir a natureza dispersa e muitas vezes
divergente de tal impacto.
Acusada muitas vezes de alimentar o primado da figura patriarcal do
nome, da reduçã o do desejo ao horizonte familiarista com suas hierarquias e
figuras de autoridade, de sustentar um falocentrismo inapto a se relacionar com
a plasticidade imanente do desejo, de um discurso indiferente aos marcadores
raciais do sofrimento psíquico, a psicaná lise também foi historicamente o eixo da
constituiçã o do programa de uma “revoluçã o sexual”, nos anos trinta. Nela,
desenvolveu-se o trabalho com a explicitaçã o das figuras do desejo insubmisso,
dos vínculos libidinais que explodem ordens sociais, da dimensã o política do
gozo e de sua forma de fazer desabar a linguagem. A partir dela, foi possível
constituir uma decisiva reflexã o libidinal sobre as bases psíquicas da sujeiçã o
racial. Ou seja, há uma complexidade que é pró pria à psicaná lise e que explicita
uma dimensã o clínica conflitual, contraditó ria e, por isso, politicamente rica.
Gostaria de explorar tais contradiçõ es com vocês a fim de pensar a questã o
sobre o que pode ser uma clínica do sexual em um momento histó rico como o
nosso.
Mas há ainda um quarto regime de discurso sobre o sexual que será objeto de
nossa reflexã o. Se para além de uma clínica do sexual e de um discurso do sexo
como campo de lutas sociais, há nã o apenas esse ponto de falência de nossa
sociedade e que seria dado por uma ars eró tica. Há também algo que poderíamos
chamar de uma eró tica da arte. Há uma forma da arte falar de sexo que nã o é
exatamente a transcriçã o de prá ticas e cuidados que se transmite diante do
cuidado dos corpos, mesmo que em vá rios momentos isso possa ser encontrado.
No entanto, eu gostaria de me dedicar, no interior de nosso curso, há um outro
regime de discurso que existe nessa eró tica da arte que nos é pró pria. Um regime
bem específico que, a meu ver, é o politicamente mais desustruturador e a-
normativo. Ele vai ser encontrado na literatura (Ballard, Duras), no cinema
(Cronenberg) e mesmo na ó pera (Berg). Deixe-me tentar fornecer um exemplo
do que tenho em mente:
Na sua visã o de um acidente de carro com a atriz, Vaughan estava
obcecado pelas mú ltiplas feridas e impactos – pelo cromo morrendo e
pelos anteparos em colapso dos dois carros encontrando-se de frente em
um complexo de colisõ es repetidas sem fim em filmes de câ mera lenta,
pelas feridas idênticas infligidas em seus corpos, pela imagem de névoa de
vidro de parabrisa em volta de sua face tal qual ela quebrara sua
superfície tingida como uma Afrodite morta-viva, pela fraturas expostas
de suas coxas impactadas contra os suportes do freio de mã o, e sobretudo
pelas feridas em suas genitá lias, o ú tero dela perfurado pelo bico
herá ldico da marca do produtor, o sêmen dele despejado através do sinais
luminosos que registraram para sempre a ú ltima temperatura e o nível
pleno de gasolina da má quina11.
12
Idem, p. 245
Falar de sexo:
Aula 2
14
HACKING, Ian; Historical ontology, p. 106
15
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
corpos, histó rias e identidades a partir das categorias de um discurso social
fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invençã o da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversõ es através destes grandes tratados psiquiá tricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nó s podemos dizer
que nã o era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nó s
podemos mesmo dizer que nã o havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que prá ticas homossexuais existiram antes e sempre existirã o, mas
nã o a concepçã o, tã o evidente para nó s, de que elas, por si só , definem uma
identidade social em toda sua extensã o, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepçã o sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Daí porque seria o caso de afirmar:
A sodomia – essa dos antigos direito civil ou canô nico – era um tipo de
atos proibidos, seu autor era apenas um sujeito jurídico. O homossexual
do século XIX tornou-se um personagem: um passado, uma histó ria e uma
infâ ncia, um cará ter, uma forma de vida; também uma morfologia, uma
anatomia indiscreta e talvez uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é
em sua totalidade escapa à sexualidade16.
Por exemplo, havia prá ticas homossexuais na Grécia antiga, mas elas nã o
eram uma questã o em si, nã o está vamos em um mundo no qual classificava-se o
comportamento de alguém a partir de suas preferências por pessoas do mesmo
sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questã o definidora na Grécia era se alguém
desempenhava ou nã o o papel de um agente passivo, se alguém era ou nã o capaz
de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como Foucault dirá :
16
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – I, p. 59
17
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
18
HACKING, Ian; idem, p. 107
que nã o significa apenas modificaçõ es em um futuro possível, mas também um
“efeito de looping” que modifica fenô menos passados, assim como a
compreensã o presente de tais fenô menos.
A perversão do discurso
Ou seja, está claro que sexo aparece aqui como aquilo que permite a
passagem da contingência à necessidade. Através do desejo sexual, a natureza
teria inscrito nos humanos a direçã o nã o apenas à propagaçã o da espécie, mas
também à consolidaçã o de relaçõ es sociais de propriedade, de autoctonia e,
sobretudo, de moralidade e altruísmo. Sexo fundaria assim uma ló gica que é, ao
mesmo tempo, bioló gica, econô mica e moral. Ele seria o ponto de unidade entre
natureza e cultura. Mas nã o apenas fator chave de uma explicaçã o holista da
existência humana, sexo é também um vetor de progresso. O comportamento
sexual progride da mesma forma como progrediriam as sociedades. Neste
sentido, vale para a reflexã o sobre as perversõ es, o que diz Augusto Comte em
sua defesa do paralelismo entre filogênese e ontogênese:
Produzindo fetichistas
24
KRAFFT-EBING, idem, p. 1
Gostaria de finalizar trazendo para vocês um exemplo de como se constró i
categorias clínicas no campo das perversõ es. Trata-se do fetichismo, uma espécie
de forma geral das perversõ es que existe ainda hoje. Nã o por outra razã o, será a
primeira das perversõ es descritas por Krafft-Ebing em seu tratado. Poucos sã o
os termos tã o ligados à constituiçã o da consciência da modernidade ocidental
quanto “fetichismo”. Façamos um pouco de sua histó ria. Enunciado pela primeira
vez em 1756 pelo escritor francês Charles de Brosses, membro da Académie des
Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia de Diderot e
d’Alambert, o fetichismo aparecia como peça maior de uma operaçã o que visava
estabelecer os limites precisos entre nossas sociedades esclarecidas e sociedades
primitivas pretensamente vítimas de um sistema encantado de crenças
supersticiosas. Já o título da obra de De Brosses dedicada à apresentaçã o
sistemá tica do fetichismo era ilustrativo: Do culto dos deuses fetiches ou Paralelo
da antiga religião do Egito com a religião atual da Nigritia (1760). Ou seja,
tratava-se de criar um paralelo entre um limite à racionalidade moderna ao
mesmo tempo histó rico (no passado) e geográ fico (no presente), determinar as
coordenadas histó rico-geográ ficas do pensamento primitivo, isto através da
identificaçã o de uma forma de encantamento cuja ilustraçã o perfeita seria o culto
aos ditos deuses fetiches.
À ocasiã o, o fetichismo aparecia definido, fundamentalmente, como culto
de objetos inanimados e, em outros casos, como divinizaçã o de animais e de
fenô menos irregulares da natureza. Baseando-se no relato de navegadores
portugueses a respeito do modo de culto de tribos africanas da Guiné e da Á frica
Ocidental, De Brosses criava um termo derivado do português antigo fetisso (que
dará no atual feitiço) a fim de colocar em marcha uma generalizaçã o extensa que
englobava estes espaços infinitos nos quais o Ocidente nã o via sua pró pria
imagem.
Tal caracterizaçã o do pretenso pensamento primitivo através do
fetichismo atravessará os séculos XVIII e XIX. Ela pode ser encontrada, entre
outros, em escritos de ideó logos como Destutt de Tracy, de filó sofos como Kant,
Hegel, Benjamin Constant, mas será com Augusto Comte que o fetichismo,
definido enquanto está gio inicial da vida social e das formas do pensar, alcançará
sua enunciaçã o canô nica. Assim, quando o termo aparece pela primeira vez na
psicologia e nos estudos das perversõ es, através de dois artigos, publicados em
1887 pelo psicó logo francês Alfred Binet, intitulados “O fetichismo no amor”, ele
já tinha atrá s de si uma longa histó ria. Constituído por derivaçã o, o fetichismo
enquanto nosografia da perversã o visava dar conta dos modos de investimento
libidinal em objetos inanimados e partes do corpo, investimentos estes que
podiam chegar à condiçã o de determinaçõ es exclusivas do interesse sexual.
Da mesma forma que o fetichismo aparecia no interior das teorias sobre a
vida social como dispositivo de crítica a formas de vida que teriam permanecido
em uma “infâ ncia perpétua” marcada pela ignorâ ncia e barbá rie25, o fetichismo
relacionado à vida amorosa aparecia como modo de fixaçã o do comportamento a
uma fase regressiva em relaçã o à maturidade sexual ligada aos imperativos de
reproduçã o. Neste sentido, talvez nenhum outro termo expô s tã o claramente
esta estratégia de legitimaçã o de prá ticas clínicas baseada na aproximaçã o entre
25
De Brosses chega a falar, a respeito dos povos fetichistas, que: “seus costumes, suas ideias, seus
raciocínios, suas práticas são as das crianças” (DE BROSSES, Charles; Du culte des dieux fétiches,
Paris: Fayard, 1988)
“pensamento primitivo”, comportamento infantil e patologia mental. Como se
estivéssemos diante de três figuras maiores da minoridade. Uma minoridade
contra a qual o esclarecimento, anunciado por este Iluminismo cujo impulso
alimentou a constituiçã o do termo “fetichismo”, prometeu combater, seja na
clínica, seja na crítica social. Minoridade esta assentada sobre o mito da
identidade entre o doente, o primitivo e a criança. Um pouco como se o
fetichismo fosse: “a Á frica no sujeito”26.
Ao falar pela primeira vez sobre o fetichismo no amor, Binet inicia seu
texto lembrando que, se o fetichismo religioso consistiria na adoraçã o de objetos
inanimados e naturais pretensamente dotados de poderes sobrenaturais, “no
culto de nossos doentes, a adoraçã o religiosa foi substituída pelo apetite
sexual”27. Neste contexto, o fetichismo aparece como o “amor por coisas inertes”,
como o investimento libidinal em objetos inanimados (peças de vestuá rio,
uniformes) ou em partes de representaçõ es globais de pessoas (mã os, pés, olhos,
cabelos, tranças, cheiro ou mesmo traços imateriais de cará ter, como a
severidade, a dureza). Tais objetos e partes têm, em comum, a incapacidade de
satisfazer aquilo que Binet chama de “necessidades genitais”, ou seja, o sexo
submetido aos imperativos da reproduçã o. Por isto, eles seriam impró prios à
vida sexual normal. Assim, se uma das características maiores do fetichismo
desde De Brosses era a impossibilidade de se “passar dos objetos sensíveis aos
conhecimentos abstratos”, algo de semelhante ocorria aqui, já que o perverso
fetichista seria incapaz de passar do objeto à funçã o, ou seja, do investimento nos
objetos sensíveis e particularidades ao investimento na funçã o global de
reproduçã o sexual. Isto o leva a afirmar que: “o amor do pervertido é uma peça
de teatro na qual um simples figurante avança em direçã o à cena e toma o lugar
do primeiro personagem”28. Só faltou a Binet se perguntar sobre quem afinal
dirige essa peça de teatro de nossos desejos, quem montou o cená rio e porque
tanta gente procura dela escapar.
26
BÖHME, Hartmut; Fetischismus und Kultur: eine andere theorie der Moderne, Rowohlt :
Hamburgo, 2006, p. 400
27
BINET, Alfred; Le fétichisme dans l’ amour, Paris : Payot et Rivages, 2001, p. 31.
28
idem, p. 127
Falar de sexo
Aula 3
29
KRAFFT-EBING, idem, p. 1
pessoas temerem a insubmissã o nas ruas através do temor que se instaura
contra a insubmissã o do seu pró prio desejo.
É tendo esse contexto em vista que gostaria de abordar o caso mais
complexo dessa consolidaçã o clínica das formas de falar de sexo. Trata-se da
psicaná lise. Prá tica que se desenvolve mais ou menos à mesma época que a
emergência do discurso clínico sobre o sexual e que será uma de suas mais fortes
expressõ es. Eu havia dito a vocês na primeira aula que a influência da psicaná lise
em nossa forma de falar de sexo é extensa. Defendendo ou nã o a prá tica clínica
psicanalítica, é certo que estratos fundamentais de nossa cultura sã o
psicanalíticos. Nossa forma de falar sobre a família, sobre a infâ ncia, sobre os
conflitos de transmissã o e filiaçã o, sobre nossos sonhos e sobre nossas formas de
sofrer foi profundamente marcado pela cultura psicanalítica.
Mas além dessa questã o de influência, há ainda outra razã o para dar a
psicaná lise tal prevalência. Falar da psicaná lise e de sua forma de falar de sexo é
falar, necessariamente, de um campo fraturado. Há uma contradiçã o em seu seio,
como ela fosse atravessada por uma espécie de luta de classe que lhe divide em
dois. No que nos diz respeito, podemos dizer que ela será tanto a prá tica capaz
de vincular o discurso clínico ao horizonte de lutas sociais que se desenhavam a
época quanto a prá tica que fornecerá à ciência da sexualidade alguns de seus
dispositivos disciplinares mais resilientes. Da psicaná lise virá o impulso à s
temá ticas de uma revoluçã o sexual, da crítica implacá vel à melancolia
pressuposta em toda construçã o de identidades de gênero, da relaçã o entre
violência e colapso da ordem patriarcal. Ela virá também a reduçã o do circuito
do desejo a seu nú cleo familiar, a temá tica do cará ter necessariamente deceptivo
do processo civilizató rio, entre tantos outros.
Por isso, eu gostaria de utilizar duas aulas para falar de Freud e a primeira
aula gostaria de dedica-la à descriçã o de um fracasso. Na verdade, trata-se de um
fracasso conhecido como “o caso Dora”. Contrariamente à quilo que é a norma no
saber médico, Freud faz de um fracasso clínico um caso onde é questã o dos
limites da técnica analítica e seus desafios. Essa é uma maneira privilegiada de
procurarmos entender como a psicaná lise lida com essa dupla inscriçã o, como
ela será a cena na qual certa forma de falar de sexo encontrará seus impasses.
O direito do ginecologista.
Essa afirmaçã o está no início do texto dedicado ao caso Dora. Tais colocaçõ es sã o
mais importantes do que parecem. Elas expõ em todo um regime de fala do sexual
30
FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt:
Fischer, 1999, p. 186
que entã o se constituía. Demoremo-nos um pouco nessa singular inveja dos
“direitos do ginecologista”. Tal como o ginecologista, a fala de Freud nã o poderia
ser vista como fala que porta lubricidade, interesse. Freud dirá que ela deve ser
“seca e direta”, dando aos ó rgã os sexuais seus nomes técnicos e comunicando
seus nomes quando estes sã o desconhecidos pela paciente. Uma fala que
descreveria as perversõ es “sem indignaçã o”. Ou seja, como já disse Foucault, esta
fala é uma vontade de saber baseada na submissã o da sexualidade ao modo de
descriçã o de uma scientia sexualis. Através desta submissã o, a psicaná lise teria
produzido um imperativo de transformar o desejo em discurso clínico.
É desta transformaçã o que é questã o no caso Dora. Ao falar francamente
sobre sexo com uma garota, Freud nã o apenas escuta. Ele a ensina como falar, em
que condiçõ es seu desejo pode ser colocado em discurso, qual histó ria ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Falar nã o é apenas liberar. Falar é também
internalizar uma gramá tica do desejo. Assim, podemos ler o caso freudiano
também como a histó ria de um conflito. O conflito que ocorre quando as relaçõ es
sexuais, seus ó rgã os e funçõ es sã o postos em um determinado regime de “falar
clínico”, sã o levados a assumir certas histó rias e dinâ micas. Se assumirmos tal
perspectiva, o caso Dora talvez aparecerá como um interessante relato de certa
forma de resistência que nã o é apenas uma reaçã o terapêutica negativa, mas a
insistência da dificuldade em constituir uma fala sobre a sexualidade que seja
capaz de dar voz aos arranjos contingentes que a sexualidade produz. A posiçã o
de Freud é aquela de quem fornece uma norma geral de fala. A posiçã o de Dora é
aquele de quem nã o a aceita completamente. É esta incompletude em relaçã o à
norma de fala fornecida por Freud que produzirá a ruptura do tratamento.
Para começar a compreender a natureza dessa norma geral de fala,
perguntemo-nos como Dora foi classificada. A categoria clínica que lhe
determinaria seria o que a época entendíamos por “histeria”. É do estudo sobre
as histerias que Freud parte
Sabemos como, desde os gregos a histeria era uma “questã o de mulheres,
ou melhor, de parteiras”31. De onde se segue sua etimologia deriva de hystera
(ú tero). Hipó crates falava dos sintomas provocados pela “sufocaçã o da matriz” e
pela mobilidade do ú tero que, ao tocar outros ó rgã os como o fígado, provocaria
reaçõ es como a perda de voz e a lividez. Para manter o ú tero em seu lugar, o
médico grego prescrevia a relaçã o sexual e a gravidez. Algo nã o muito diferente
encontra-se em Platã o que, no Timeu, compara o ú tero a um ser vivo possuído
pelo desejo de procriar e que se irrita quando permanece estéril durante muito
tempo, “causando toda variedade de doença”32. Ou seja, a articulaçã o entre
histeria e sexualidade mostra-se como uma das correlaçõ es mais antigas da
histó ria da medicina. Neste sentido, mais do que um instaurador, Freud aparece
como um peculiar restaurador, isto ao insistir na etiologia sexual da histeria e na
necessidade da conduçã o da paciente à assunçã o do lugar que poderia
determinar sua sexualidade.
No entanto, como é pró prio das estratégias de Freud, mais do que
descrever desvios em relaçã o a uma sexualidade normal, ele tende a generalizar
a histeria como quadro geral de socializaçã o através da identificaçã o com o
g6enero feminino. Isso significa que, para Freud, nã o há identificaçã o de gênero
sem a produçã o de sofrimento, sem a produçã o de sintomas. Em suma, nã o há
31
TRILLAT, Etienne; História da histeria, São Paulo: Escuta, 1986, p.17
32
PLATAO, Timée, Paris: Pleiade, 1990, 91c
gênero sem sintoma. No caso da posiçã o feminina, esses sintomas sã o pensados
de forma preferencial através da histeria. É certo que Freud tem um horizonte de
cura e tratamento a lhe guiar. Tal horizonte se refere, sobretudo, a certas
disposiçõ es normativas vindas do complexo de É dipo e de sua maneira de
compreender os conflitos afetivos a partir da repetiçã o modular de conflitos
familiares. Mas o verdadeiro interesse do caso Dora está em outro lugar. Na
verdade, Freud acaba por mostrar, a contrapelo, os limites desse dispositivo
clínico fundado na mobilizaçã o edípica como matriz para uma leitura do sexual.
Vejamos como isso se dá .
Gozo e destruição
Ela tinha razã o : seu pai nã o queria levar em conta o comportamento do
Sr. K em relaçã o à sua filha, isto a fim de nã o ser incomodado na sua
relaçã o com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
havia sido cú mplice desta relaçã o e tinha descartado todos os índices que
testemunhavam sua verdadeira natureza33.
Sendo assim, a relaçã o nã o era exatamente insuportá vel, mas tinha uma funçã o
importante para o direcionamento do desejo de Dora. Freud lembra, por
exemplo, como ela estava a par, desde há muito, de toda situaçã o envolvendo seu
pai, isto graças à intervençã o de uma governanta. Ela também se ocupava dos
filhos da Sra. K, como se procurasse facilitar os encontros de seu pai. Sua relaçã o
com a Sra. K chega a ponto das duas dormirem juntas na mesma cama, à ocasiã o
em que Dora se hospedava na casa dos K, à beira do famoso lago.
Freud insiste que deve existir aqui a reatualizaçã o de um processo de
identificaçõ es que nã o ocorrera, de maneira satisfató ria, no interior do universo
familiar nuclear. Ele acredita que tal identificaçã o concernia a relaçã o entre Dora
e a Sra. K. No entanto, a partir de sua interpretaçã o, esta seria uma maneira de
ocupar o lugar da Sra. K diante de seu marido. Ele insiste vá rias vezes com Dora
que ela está apaixonada pelo Sr. K. Como se um dos fundamentos da histeria
fosse encontrado no fato de Dora ser incapaz de admitir e agir a partir da certeza
de uma paixã o que pareceria evidente a todos.
Poderíamos imaginar que o problema ligado ao reconhecimento de seu
amor pelo Sr. K fosse de ordem moral (apaixonar-se por um homem casado). No
entanto, ele é de outra ordem. Para Freud, há algo vinculado a uma certa
maturaçã o libidinal que nã o consegue se realizar. Primeiro, ele acredita haver
algo no comportamento de Dora que parece impedir a realizaçã o do curso
necessá rio das escolhas de objeto. Freud chega a afirmar que um dos traços
33
FREUD, idem, p. 210
característicos da neurose é a incapacidade de satisfazer as “exigências reais do
amor”. No caso de Dora, isto equivale dizer que a posiçã o de ser objeto de desejo
de alguém a quem ela amasse lhe aparecia como uma experiência insuportá vel.
Como se o desejo da histérica devesse permanecer, necessariamente, em posição de
insatisfação.
No entanto, há de se notar como Freud nã o teme aqui colocar-se na
posiçã o daquele que enuncia para a paciente qual o objeto de seu desejo. Ele
fornece, de maneira absolutamente expeditiva, a norma na qual o desejo da
paciente deve se reconhecer. Nã o sã o poucas as vezes em que Freud corta
qualquer possibilidade de elaboraçã o, por Dora, de sua pró pria experiência
afetiva, isto ao nomear, em seu lugar, o objeto de seu desejo. Há algo de muito
diferente entre a paciente elaborar, através de sua experiência, a nomeaçã o do
objeto de seu desejo e o analista nomeá -lo de forma absolutamente normativa.
Neste caso, a reaçã o do paciente nã o pode ser vista como alguma forma de
denegaçã o, mas como a compreensã o de que um objeto só advém necessá rio ao
desejo quando se enuncia no interior da série de contingências que
determinaram seu encontro. Neste sentido, o objeto nã o é o mais importante,
mas a rede de relaçõ es que construíram seu lugar.
A interpretaçã o de Freud produz um curto-circuito na constituiçã o de tal
rede, ele bloqueia seu aparecimento e a elaboraçã o singular de sua constituiçã o
(que poderia estar “naturalmente” em vias de se produzir). Se assumisse seu
amor pelo Sr. K, Dora o amaria à maneira de Freud, a maneira do médico que diz
ao paciente para onde seu desejo deve ir, qual é seu objeto (mesmo que esse
objeto nã o seja exatamente socialmente reconhecível, no caso, um homem
casado) e nunca à sua maneira. Como o amor é a elaboração singular de um
encontro contingente, nã o seria incorreto dizer que Freud fez com que toda a
paixã o pelo Sr. K perdesse o sentido para Dora. Freud precisa fazer isto para
fornecer à Dora o que seria a histó ria de seu desejo, uma histó ria de conflitos
edípicos nã o resolvidos. Mas talvez a histó ria de Dora fosse outra e sua forma de
ir embora depois de três meses fosse simplesmente a exposiçã o de tal erro.
Lembremos, por exemplo, dos dois sonhos de Dora interpretados por Freud. O
primeiro:
Trata-se de um sonho que Dora teve vá rias vezes. Freud procura localizar
a primeira incidência do sonho. De fato, ele ocorre logo apó s o assédio que Dora
sofreu do Sr. K à beira do lago. O que leva Freud a acreditar que se trata de um
sonho relacionado ao incidente. Ao relatar tal intepretaçã o, Dora produz uma
associaçã o. Um dia apó s a cena do lago, ela estava dormindo em seu quarto
quando acordou bruscamente e viu diante dela o Sr. K. Os dois discutiram e ele
afirmou haver entrado no quarto para pegar algumas coisas. Dora procura uma
chave para trancar o quarto, mas a chave acaba por desaparecer, o que a leva a
acreditar que o Sr., K a pegou. Com medo de que ele aparecesse bruscamente,
Dora sempre veste-se rapidamente.
Por outro lado, a caixa de joias remeteria a duas associaçõ es. Primeiro, a
uma situaçã o na qual Dora viu uma briga entre seu pai e sua mã e a propó sito de
uma joia. A mã e havia pedido brincos de pérola em forma de gotas, mas recebeu
um bracelete. Furiosa, ela afirma que, se é para dar presentes que ela nã o quer,
melhor dar para outra mulher. Freud afirma que Dora se viu como esta outra
mulher. No entanto, Dora nã o assente à interpretaçã o.
A segunda associaçã o remete ao Sr. K. Ele havia presenteado Dora com
uma caixa cara de joias. Freud lembra que “caixa de joias” é também uma
expressã o para vagina. Dora afirma entã o que sabia que ele, Freud, diria isto.
Segue-se a interpretaçã o freudiana: quem recebe um presente deve dar algo em
troca. Dora saberia que, no fundo, o Sr. K espera conquistá -la e transar com ela.
Ela estaria disposta a dar aquilo que sua mã e nã o deu para seu pai, a saber, a
gratidã o. No entanto, no momento em que ela poderia realizar seu desejo, eis que
o antigo amor de Dora por seu pai é chamado de novo para defende-la do amor
atual pelo Sr. K.
Dora nã o aceita a interpretaçã o freudiana. Note-se que a associaçã o da
caixa de joias com o ó rgã o sexual feminino nã o é uma produçã o associativa de
Dora, mas uma sugestã o de Freud, da mesma forma que a rivalidade entre Dora e
sua mã e e respeito da destinaçã o das joias. Tais interpretaçõ es deixam muito
claro o desejo freudiano de conduzir a situaçã o de Dora aos conflitos matriciais
do Complexo de É dipo.
Freud parece mais bem sucedido quando explora outra via do sonho, esta
que se refere ao incêndio. Dora lembra que seu pai e sua mã e brigaram porque a
mã e tinha o há bito de trancar a sala de jantar. Como o quarto do irmã o só tinha
acesso através da sala de jantar, ele ficava necessariamente trancado. O pai
protesta dizendo que o filho poderia precisar sair à noite. Como houve uma
tempestade violenta e o pai afirmou ter medo de incêndio, já que a casa nã o tinha
para-raio, Dora produziu a associaçã o.
Freud tenta associar o incêndio a situaçõ es infantis. Ele lembra que
normalmente proíbe-se crianças de brincar com fogo por medo delas urinarem
na cama, isto devido a uma oposiçã o á gua-fogo. “Nã o poder sair à noite” deve
também ser compreendido como “nã o poder ir ao banheiro”. Freud conclui que
tanto ela quanto seu irmã o deviam ter incontinência uriná ria até uma idade
avançada. De fato, o irmã o teve até o sétimo ano e Dora entre o sétimo e oitavo
ano. Um médico foi chamado, que diagnosticou fraqueza nervosa e recomendou
fortificantes. Freud coloca a incontinência na conta da descoberta da
masturbaçã o, isto devido a uma ideia da época que colocava os dois fatos em
relaçã o. Dora nega veementemente tal associaçã o.
No entanto, no decorrer da interpretaçã o de Freud, Dora demonstra ter
consciência da natureza da doença de seu pai. Ele era sifilítico e tudo indicava
que pegara a doença antes do casamento. Sua mã e parecia ter sintomas ligados à
transmissã o da doença, como dores no ventre e leucorreia. Na dimensã o
fantasmá tica, Dora também se colocava como portadora deste vínculo ao pai, daí
sua maneira patoló gica de vivenciar a sexualidade, em especial a sexualidade
genital. Sua histeria poderia assim ser interpretada como a sua maneira de
participar da doença do pai: “Meu pai estragou a experiência da sexualidade”,
pensa Dora. “Ele produziu um vínculo indissociá vel entre sexo e doença. Minha
maneira de ser a filha de meu pai, de assumir certa filiaçã o, é perpetuando tal
vínculo através da histeria”. A impotência produzida pela sífilis mostra, para
Dora, como a força do desejo pode acabar por destruir a própria possibilidade de
realização do desejo.
Note-se como, ao menos se seguirmos Dora, o problema da histeria está
ligado à incapacidade da figura paterna dissociar sexo e destruiçã o. O pai nã o
apenas destró i a mã e, mas adoece devido a seu desejo. A experiência do desejo
sexual transmitida pela figura paterna nã o é tranquilizadora, mas é encarnaçã o
de um índice de perigo e, sobretudo, de impotência. Por isto, Dora nã o pode
chegar perto demais da assunçã o de sua pró pria sexualidade. Dora paga com seu
corpo o colapso da ilusã o de que a ordem patriarcal poderia fornecer lugares
estabilizados ao desejo.
Freud ainda interpretará um segundo sonho de Dora antes do final de aná lise. A
seu ver, o sonho confirmaria algumas hipó teses maiores de sua interpretaçã o.
Ele é apresentado da seguinte forma:
Ando em uma vila que nã o conheço. Entro na casa que moro, vou a meu
quarto e encontro uma carta de minha mã e. Ela escreve nã o ter querido
informar que papai estava doente. “Agora que ele está morto, você pode
vir se quiser (?)”. Tento ir à estaçã o ferroviá ria. Pergunto talvez cem vezes
onde ela se encontra e sempre recebo a mesma resposta: - Cinco minutos.
Encontro-me em uma floresta espessa onde um homem me afirma: -
Ainda duas horas e meia. Ele propõ e me acompanhar, mas recuso. Vejo a
estaçã o diante de mim, mas nã o consigo alcançá -la. Depois, encontro-me
em casa. A empregada abre e responde: - Sua mã e e os outros já estã o no
cemitério. Apó s esta resposta, vou a meu quarto e leio, sem tristeza e
calmamente, um grande livro que estava lá .
35
FREUD, Três ensaios, p. 59
É claro como havia, na base de categoria clínica, consideraçõ es sobre a
pretensa naturalidade do corpo feminino, sobre as funçõ es sociais que ele deve
desempenhar como mã e e como certa sexualidade genital lhe seria vital. Nó s
vimos, na aula passada, como Freud abordava tais conflitos psíquicos na esfera
do sexual e procurava, a sua maneira, encaminha-los para alguma forma de cura.
Ele os lê como motivados por certa impossibilidade de maturaçã o, certa
permanência do sujeito em está gios nos quais vínculos a situaçõ es edípicas
permanecem, assim como permanece também formas de gozo nã o submetidas
ao primado genital. Na histeria, dirá Freud, há sempre certa autonomizaçã o das
zonas eró genas em relaçã o aos genitais. No que se vê como Freud continua a
trabalhar com uma noçã o de patologia ligada ao conceito de degenerescência, de
preservaçã o de arcaísmos.
Neste sentido, lembremos como Freud lê toda a relaçã o de Dora a uma
tríade de amantes composta pelo seu pai por sua amante e o marido como
expressã o de certa fixaçã o na escolha edípica de objeto e na impossibilidade de
assumir uma possível paixã o por aquele que, afinal, lhe assediava há anos. Freud
lia as ambivalências de Dora como expressã o de sentimentos contraditó rios de
afeto e rejeiçã o ao mesmo sujeito. Nesse sentido, ele insiste em ler os afetos de
Dora a partir de uma histó ria, de uma narrativa na qual encontramos o abandono
necessá rio dos vínculos familiares e assunçã o da maturidade afetiva. Por outro
lado, ele também percebe o investimento de Dora em um gozo ligado a oralidade,
como se seu corpo tivesse um investimento oral que resiste à integraçã o como
prazer preliminar do primado genital. O trabalho analítico de Freud consistirá
em, de certa forma, acelerar o desenvolvimento que nã o teria sido realizado, seja
na dimensã o das escolhas de objeto, seja na dimensã o da integraçã o genital do
gozo.
Vimos como Dora, em vá rios momentos, recusava as interpretaçõ es de
Freud, até abandonar a aná lise depois de nã o mais do que três meses. Eu cheguei
mesmo a sublinhar que haveria outras vias a explorar a respeito da posiçã o de
Dora, que nã o seriam compatíveis com essa concepçã o de fixaçã o. Uma delas se
referia a degradaçã o da ordem patriarcal devido ao vínculo entre sexo e
destruiçã o na figura de um pai sifilítico. Isso nã o só marca o gozo sexual com a
experiência da destruiçã o e da doença, como tende a estender-se a outras figuras
masculinas. Tal articulaçã o entre sexo e destruiçã o na figura paterna tende, no
caso de Dora, a estender-se a outras figuras de autoridade. Isso talvez explique
porque sua identificaçã o com a amante do pai ganhe força suplementar. Ela
acaba por se identificar a uma mulher que se afasta do marido e procura por um
amante impotente.
Segundo, eu insistira também na maneira com que essa clínica do sexual
que nasce pelas mã os de Freud tinha claras dimensõ es disciplinares e o peso da
dimensã o disciplinar recai sobre o uso extensivo de certa forma de socializaçã o
do desejo através do recurso ao É dipo, ou seja, através do recurso a certa
concepçã o de maturaçã o e funçã o social. Assim, ao falar francamente sobre sexo
com uma garota, Freud nã o apenas escutava. Ele a ensinava como falar, em que
condiçõ es seu desejo poderia ser colocado em discurso, qual histó ria ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Como disse anteriormente, falar nã o é
apenas liberar. Falar é também internalizar uma gramá tica do desejo. Assim,
podemos ler o caso freudiano também como a histó ria de um conflito. O conflito
que ocorre quando as relaçõ es sexuais, seus ó rgã os e funçõ es sã o postos em um
determinado regime de “falar clínico”, sã o levados a assumir certas histó rias e
dinâ micas. Se assumirmos tal perspectiva, o caso Dora talvez aparecerá como um
interessante relato de certa forma de resistência que nã o é apenas uma reaçã o
terapêutica negativa, mas a insistência da dificuldade em constituir uma fala
sobre a sexualidade que seja capaz de dar voz aos arranjos contingentes que a
sexualidade produz. A posiçã o de Freud é aquela de quem fornece uma norma
geral de fala. A posiçã o de Dora é aquele de quem nã o a aceita completamente. É
esta incompletude em relaçã o à norma de fala fornecida por Freud que produzirá
a ruptura do tratamento.
No entanto, como é pró prio das estratégias de Freud, mais do que
descrever desvios em relaçã o a uma sexualidade normal, ele tende a generalizar
a histeria como quadro geral de socializaçã o através da identificaçã o com o
g6enero feminino. Isso implica uma consideraçã o estrutural a respeito das
identidades de gênero, a saber, que nã o há identificaçã o de gênero sem a
produçã o de sofrimento, sem a produçã o de sintomas. Em suma, nã o há gênero
sem sintoma. No caso da posiçã o feminina, esses sintomas sã o pensados de
forma preferencial através da histeria. É certo que Freud tem um horizonte de
cura e tratamento a lhe guiar. Tal horizonte se refere, sobretudo, a certas
disposiçõ es normativas vindas do complexo de É dipo e de sua maneira de
compreender os conflitos afetivos a partir da repetiçã o modular de conflitos
familiares. Mas o verdadeiro interesse do caso Dora está em outro lugar. Na
verdade, Freud acaba por mostrar, a contrapelo, os limites desse dispositivo
clínico fundado na mobilizaçã o edípica como matriz para uma leitura do sexual.
Libido e história
Mas as elaboraçõ es trazidas por Freud tem outras dimensõ es, e isso explicará
muito da força da psicaná lise a partir de entã o. Ela será o campo de um embate
interno entre, digamos, a norma e a insurreiçã o. Mas para que isso fique mais
visível, devemos ir em direçã o a outro texto, no caso os Três ensaios sobre a
teoria sexual, cuja primeira ediçã o data do mesmo ano de publicaçã o do caso
Dora. Pois lá encontramos as bases de uma concepçã o inovadora e
desnaturalizada do sexual. A tensã o interna à psicaná lise pode ser
compreendida, entre outras coisas, através da tentativa de paulatinamente
readequar os dispositivos clínicos à s elaboraçõ es conceituais, que por sua vez
sã o frutos de observaçã o clínica.
No prefá cio à quarta ediçã o do livro, Freud reconhece que sua “ênfase na
importâ ncia da vida sexual em todas as realizaçõ es humanas e a tentativa de
ampliaçã o do conceito de sexualidade”36 era exatamente o ponto de maior
resistência contra a psicaná lise. E, neste ponto, uma operaçã o surpreendente
ocorre. Freud, tã o reticente em desconsiderar a novidade de suas construçõ es,
afirma que, afinal, Platã o e Schopenhauer já haviam indicado como a sexualidade
era o eixo de compreensã o do humano. Esse recurso à filosofia nã o é apenas
estratégico. Ele aparecerá em outros momentos decisivos da reflexã o de Freud
como, por exemplo, na defesa de sua segunda tó pica da teoria das pulsõ es. Isso
indica compreensã o de que a reflexã o sobre a sexualidade exige um discurso que
nã o é apenas clínica, mas que explicita seu enraizamento em regimes críticos de
discurso, como o discurso filosó fico.
36
FREUD, Sigmund; Três ensaios sobre a teoria sexual, p. 18
Isto fica claro na escolha do termo chave para a organizaçã o da reflexã o
de Freud sobre a sexualidade, a saber, libido. O termo tem atrá s de si uma longa
histó ria cujas raízes nos remetem ao pensamento teoló gico-filosó fico ocidental,
em especial Santo Agostinho. Pois é dele afirmaçõ es como:
O homem caído nã o caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisã o marca sua pró pria vontade que se divide,
retorna-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus38.
37
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
38
FOUCAULT, Michel; Les aveux de la chair, p. 334
39
FREUD: três ensaios, p. 34
40
Idem, p. 35
A diferença mais profunda entre a vida amorosa no mundo antigo e no
nosso estaria em que os antigos ressaltavam a pulsã o mesma, e nó s
enfatizamos o objeto. Eles celebravam a pulsã o e se dispunham, em nome
dela, a enobrecer até mesmo o objeto inferior, enquanto nó s
menosprezamos a atividade pulsional em si, achando que apenas os
méritos do objeto a desculpam41.
Essa colocaçã o é de grande importâ ncia. Freud está a dizer que os antigos
tem sobretudo uma diferença em relaçã o a compreensã o da articulaçã o entre
pulsã o e objeto. Eles investem o processo, nã o o objeto, como nó s fazemos. Em
outras palavras, eles desejam o desejo, nã o exatamente o objeto. Por isso, podem
chegar até a enobrecer um pretenso “objeto inferior”. De certa forma, os antigos
estã o mais pró ximos de uma des-individualizaçã o que é pró pria a um impulso
sexual que nã o tem objeto que lhe seja necessá rio, isso se levarmos em conta que
Freud dirá mais tarde que o objeto é aquilo que há de mais variá vel na pulsã o.
Essa ausência de naturalidade entre o objeto e o desejo é, de certa forma, perdida
por nó s, que nos enganamos mais facilmente com a crença de que amamos o
objeto e nã o o desejo. Ou seja, é possível dizer que os antigos estã o mais
pró ximos da dinâ mica real da pulsã o do que nó s. Como se nossa histó ria fosse a
histó ria de um longo desconhecimento. O que inverte as perspectivas
teleoló gicas e etapistas que marcavam a clínica do sexual de entã o.
Transposições
Ele indica que o que está em jogo em um ser humano no que diz respeito
as suas pulsõ es é propriamente humano e produto de seres singulares,
isto ao mesmo tempo que uma pulsã o, devido ao fato de seus
componentes escaparem ao sujeito que é dela o teatro, aparece como
anô nima, despersonalizada, a-subjetiva 43.
41
FREUD, Três ensaios, p. 40
42
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke vol. X, op. cit., p. 280
43
DAVID-MÉNARD, Monique; Les pulsions caractérisés par leurs destins : Freud s´éloigne-t-il du
concept philosophique de Trieb ? In: BIENESTOCK (org.); Tendance, désir, pulsion, Paris: PUF,
2001, p. 207
Na verdade, isto demonstra como o ponto de vista econô mico visa
permitir a Freud pensar esta plasticidade pró pria a uma energia psíquica
caracterizada, principalmente, pela sua capacidade em ser transposta, invertida
(Freud usa, nestes casos, o termo Verkehrung), desviada, recalcada, em suma,
deslocada de maneira aparentemente inesgotá vel. Princípio de deslocamento
constante que leva Freud a caracterizar inicialmente a libido como energia que
circula livremente, “energia livre” em relaçã o à quilo que poderia barrar tal
movimento, ou seja, em relaçã o a sua ligaçã o (Bändigung) através da subsunçã o
a representaçõ es.
Que Freud tenha refletido sobre tal plasticidade, de maneira privilegiada,
a partir de fenô menos ligados à sexualidade, eis um ponto absolutamente
central. Contrariamente a Krafft-Ebing, por exemplo, Freud nã o define a
sexualidade como uma funçã o natural a serviço da reproduçã o. Ao contrá rio, ele
quer mostrar como há , no sujeito, o que só se manifesta de maneira polimó rfica,
fragmentada e que encontra seu campo privilegiado, necessariamente, em uma
sexualidade nã o mais submetida à ló gica da reproduçã o, encontra seu campo em
um impulso corporal que desconhece telos finalistas, como é o caso da
reproduçã o. Daí porque a libido é inicialmente caracterizada como auto-eró tica,
inconsistente por estar submetida aos processos primá rios e, por fim, perversa
(no sentido de ter seus alvos constantemente invertidos, desviados e
fragmentados).
Este é um ponto importante por lançar algumas luzes a respeito do
conceito freudiano de “sexual”. Longe de procurar fundar algum tipo de moral
naturalizada através da elevaçã o de Eros à fundamento do ser, as reflexõ es
freudianas tem o interesse de mostrar como “sexual” é o nome psicanalítico para
: “um radical impasse ontoló gico”44. A este respeito, lembremos como, desde o
início, as pulsõ es sexuais nã o sã o naturalmente vinculadas aos imperativos de
reproduçã o, mas sã o tendencialmente polimó rficas, sempre prontas a desviarem
de maneira aparentemente inesgotá vel os alvos e objetos sexuais. Como se
estivéssemos diante de um paradoxo : o paradoxo do desvio em relaçã o a uma
norma inexistente. O primado da sexualidade genital a serviço da reproduçã o é a
ú ltima fase que a organizaçã o sexual atravessa e só se impõ e através de
processos profundos de repressã o e recalcamento. É isto que Freud tem em vista
ao afirmar: “A vida sexual compreende a funçã o de obtençã o do prazer através
de zonas corporais; ela é posta apenas posteriormente (nachträglich) a serviço
da reproduçã o”45. Daí porque haveria “algo de inato na base das perversõ es, mas
algo que é inato a todos os homens”46. Algo que diz respeito à polimorfia
perversa que encontraríamos em toda sexualidade infantil. Polimorfia que deve
ser compreendida aqui como reconhecimento desta posiçã o na qual a
multiplicidade dos prazeres corporais nã o se submete à hierarquia teleoló gica
dos imperativos de reproduçã o com seu primado do prazer genital.
Assim, pelos prazeres corporais nã o se submeterem imediatamente a uma
hierarquia funcional, cada zona eró gena (boca, â nus, ouvidos, ó rgã os genitais,
etc.) parece seguir sua pró pria economia de gozo e cada objeto a elas associados
44
ZUPANCIC, Alenka; Sexuality and ontology, In: Why psychoanalysis?, Uppsala : NSU Press, 2008,
p. 24
45
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, vol XVII, op. cit, p. 75
46
Idem, Gesammelte Werke, vol. V, op. cit., p. 71
(seio, fezes, voz, urina) satisfaz uma pulsã o específica, produzindo um “prazer
específico de ó rgã o”. O melhor comentá rio do sentido deste prazer de ó rgã o vem
de Alenka Zupancic :
50
FREUD, Três ensaios…, p. 54
51
Idem, p. 100
52
Idem, p. 58
para a psicaná lise em sua natureza propriamente materialista. Pois trata-se de
insistir que sexo é o nome do processo material através do qual o desejo
constitui laços, estrutura relaçõ es e define modalidades de identificaçã o. E a
consideraçã o de uma sexualidade infantil traz, necessariamente, a tese de que as
relaçõ es familiares sã o necessariamente sexualmente investidas. Uma
sexualidade que será objeto de conflitos de toda ordem, isso a ponto de
podermos dizer que a família burguesa será vista como um nú cleo produtor de
neuroses.
Nesse quadro, a infâ ncia aparece, sobretudo, como um espaço de
esquecimento. Na verdade, de esquecimento da sexualidade. Uma sexualidade
que engloba atos infantis mú ltiplos, como o ato de chupar, o ato de defecar, açõ es
muculares, entre outros. Sexualidade que engloba crueldade.
Falar de sexo
Aula 5
Nessa aula, gostaria de terminar nossa discussã o sobre a psicaná lise através de
uma reflexã o sobre um dos conceitos mais polêmicos por ela desenvolvido, a
saber, o conceito de pulsã o de morte. Mas gostaria de fazer uma abordagem
pontual, procurando explorar o que ele implica para uma teoria da sexualidade.
A tese a ser defendida aqui é que o conceito de pulsã o de morte é um dos
elementos mais importantes da teoria psicanalítica da sexualidade e um de seus
elementos politicamente mais decisivos. Ele faz do sexual um campo atravessado
por um princípio radicalmente nã o reprodutivo e des-identificador. Nesse
sentido, a junçã o entre sexual e pulsã o de morte ainda reinscreve a sexualidade
no campo da natureza, mas de forma tal que tal reinscriçã o perde sua
característica normativa de outrora. A natureza aparece como um campo de
contínua decomposiçã o e recomposiçã o. Tal junçã o serve ainda para definir o
modo de produtividade que seria pró pria à experiência do sexual
Para tanto, faz-se necessá rio compreender melhor o que de fato está em
jogo no conceito psicanalítico, desenvolvido inicialmente por Sabina Spielrein e
depois retomado por Sigmund Freud. Pois há uma visã o tradicional a respeito do
problema que acabou por se impor e definir as balizas de nossa interpretaçã o.
Ela consiste em compreender a pulsã o de morte como expressã o bruta de um
instinto de destruiçã o inscrito tanto nos organismos quanto nos seres humanos.
Nesse sentido, ela seria aquilo do qual deveríamos nos afastar para que as forças
primordiais da vida pudessem desenvolver sua concó rdia e trabalho. A divisã o
classicamente estabelecida entre Eros e Tanatos nos levaria, por sua vez, a
compreender as dinâ micas da sexualidade como ausentes da pulsã o de morte, ou
presentes apenas de forma auto-destrutiva e patoló gica. Nesse sentido, caberia à
clínica preservar a distâ ncia necessá ria entre o sexual e a pulsã o de morte.
No entanto, o quadro fornecido pela psicaná lise se mostrará muito mais
complexo do que tal dicotomia pode nos fazer supor. E notemos a extensã o das
consequências dessa complexidade. Uma visã o mais complexa da pulsã o de
morte quebra, inicialmente, certa racionalidade utilitarista que compreende os
seres humanos como agentes maximizadores de interesses. Interesses esses que,
por sua vez, estariam vinculados à procura em maximizar experiências de prazer
e afastar-se de experiências de desprazer. Freud sabia do que produzia quando
afirmava a existência de uma ló gica da açã o “para além do princípio do prazer”.
Ele estava a retirar os sujeitos de uma economia restrita para deslocá -los para o
interior de uma economia de destruiçã o e devir.
Interesse e destruição
53
“When the term "interest" in the sense of concerns, aspirations, and advantage gained currency in
Western Europe during the late sixteenth century, its meaning was by no means limited to the material
aspects of a person's welfare; rather, it comprised the totality of human aspirations, but denoted an
element of reflection and calculation with respect to the manner in which these aspirations were to be
pursued” (HIRSCHMAN, Albert; p. 32)
Lembro de tudo isso para contextualizar o impacto de teorias, como a
psicaná lise, que colocarã o em cheque a naturalidade desses cá lculos e de tais
ló gicas de maximizaçã o. Pois nos perguntemos sobre o que acontece quando
alguém como Sabina Spielrein afirmar, em 1912, pela primeira vez:
54
SPIELREIN, Destruição como causa do devir, p. 160
antagô nicos, uma pulsã o de destruiçã o assim como uma pulsã o de devir”55. Ou
seja, a destrutividade aparece como componente do instinto sexual, a pulsã o
sexual tem no seu interior uma dualidade, o que explicaria que a satisfaçã o
sexual produziria nã o apenas sentimentos positivos, mas sentimentos negativos
como o asco e principalmente a angú stia, tema posteriormente desenvolvido
também por Georges Bataille.
55
Idem, p. 184
56
FREUD, Sigmund; “Das Unheimlich”, In: Gesammelte Werke v. XII, Frankfurt: Suhrkamp, 199, p.
237.
duplos que, segundo sua interpretaçã o, portam a condiçã o de: “inquietantes
mensageiros da morte”57.
Mas antes de desenvolvermos as consequências dessa forma alargada de
pensar a pulsã o de morte, façamos um passo para trá s a fim de entender como o
conceito de pulsã o se desenvolve em Freud e o que ele procura resolver. Ao
aparecer pela primeira vez de maneira explícita, nos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, o termo pulsã o visava dar conta das fontes internas de excitaçã o
à s quais o organismo nã o pode escapar. Dentre tais fontes de excitaçõ es internas,
a sexualidade já aparece como elemento maior das preocupaçõ es freudianas,
embora ela nã o seja a fonte exclusiva. Já no nã o-publicado Projeto para uma
psicologia científica, Freud lembrava, ao falar da “urgência da vida” (Not des
Lebens) enquanto excitaçã o interna que contrariava o princípio de inércia do
aparelho psíquico, que a fome e a respiraçã o também eram fontes de tal
excitaçã o. Nesta primeira abordagem sobre a pulsã o, Freud ainda insistirá que
uma de suas características centrais é a de ser uma força constante, e nã o apenas
força de um impacto momentâ neo de falta sentida pelo organismo. De onde se
segue a definiçã o canô nica da pulsã o como: “representaçã o psíquica (psychische
Repräsentanz) de uma fonte endossomá tica de excitaçã o”.
Sabemos como Freud parte inicialmente de uma distinçã o entre a energia
libidinal pró pria á sexualidade e “outras formas de energia psíquica” como
aquelas em jogo nas necessidades fisioló gicas de auto-conservaçã o; distinçã o
esta fundadora de um primeiro dualismo pulsional entre pulsõ es sexuais e
pulsõ es de auto-conservaçã o. Tal dualismo será suspenso a partir da constituiçã o
da categoria de “narcisismo”, já que o narcisismo permitirá a Freud reconhecer
que: “as pulsõ es de auto-conservaçã o também eram de natureza libidinal, eram
pulsõ es sexuais que haviam tomado por objeto, ao invés dos objetos exteriores, o
pró prio eu”58. De onde se seguia a afirmaçã o de que: “Basta simplesmente
admitir que as pulsõ es sã o parecidas qualitativamente e que devem seus efeitos
unicamente à s grandezas de excitaçã o (Erregungsgrössen) que cada pulsã o
veicula ou, talvez, a certas funçõ es desta quantidade”59. Por fim, o dualismo
pulsional voltará , de maneira totalmente reconfigurada, apenas a partir do texto
Para além do princípio do prazer. É neste momento de reconfiguraçã o profunda
também da noçã o de libido que Freud fará mais apelo à s reflexõ es sobre o
conceito de Trieb desenvolvidas a partir da tradiçã o idealista alemã , em especial
na obra de Schopenhauer.
Seguindo uma via aberta por Lacan, Jean Laplanche lembra que uma
metamorfose profunda ocorre quando Freud vincula, na segunda tó pica, a noçã o
de libido à potência unificadora de Eros (tal como ele a encontra no mito de
Aristó fanes, em O banquete, de Platã o), isto ao passar ao dualismo pulsional
Eros/Tanatos. A definiçã o da libido como Eros unificador , potência que visaria:
“formar, a partir da substâ ncia viva, unidades (Einheiten) cada vez maiores e
assim conservar a vida na sua permanência levando-a a desenvolvimentos mais
complexos”60 parece implicar abandono da noçã o de libido pensada a partir de
uma energia livre pró pria à esta sexualidade fragmentada e polimó rfica, tal como
vimos na aula passada. Tal abandono seria impulsionado pelas consideraçõ es
57
Idem, p.
58
FREUD, Sigmund ; Gesammelte Werke vol. XIII, op. cit. p. 231
59
Idem, Gesammelte Werke vol. X, op. cit., p. 216
60
FREUD, , Sigmund; Gesammeite Werke vol. XIII, op. cit., p. 233
freudianas a respeito da centralidade do narcisismo, com seus mecanismos de
projeçã o e introjeçã o que unificam os destinos da pulsã o à repetiçã o da imagem
do Eu. Como dirá Laplanche :
61
LAPLANCHE, Jean; Vie et mort en psychanalyse, Paris: Flammarion, 1970, p. 187
62
LACAN, Jacques ; Séminaire II, op. cit., p. 163
E nesse ponto, podemos abordar uma das operaçõ es mais singulares de
Freud. Ela consiste em afirmar que a pulsionalidade nã o é um fato apenas
humano. Ela é um fato bioló gico. Daí definiçõ es tardias da pulsã o como uma:
“pressã o (Drang) inerente ao organismo vivo em direçã o ao restabelecimento de
um estado anterior [inorgâ nico] abandonado devido a influências perturbadoras
de forças exteriores”63, e nã o apenas a representaçã o psíquica de uma fonte
endosomá tica de excitaçã o constante. Da primeira à segunda definiçã o,
acrescenta-se um certo cará ter teleológico que orienta a direçã o da pressã o
pulsional para as vias de uma operaçã o de retorno. A pulsã o aparece assim como
expressã o da inércia da vida orgâ nica, como exigência de trabalho em direçã o ao
restabelecimento de um estado de supressã o de tensã o, como um retorno à
morte que cada organismo procura fazer “a sua maneira”. Mas principalmente,
fica claro que a pulsã o é o que inscreve o sujeito no interior da natureza, e nã o
aquilo que lhe retira radicalmente do campo do natural. Essa leitura, muito em
voga no meio psicanalítico, é simplesmente incorreta e apenas reverbera uma
fobia moderna típica que consiste em compreender a natureza como o avesso da
liberdade.
Freud afirma que a tendência de retorno ao estado inorgâ nico é um
processo presente inclusive nos organismos unicelulares. Nesse sentido, ele
segue discussõ es importantes à época sobre um impulso inerente à vida que
conduz necessariamente à morte. Muito já se falou a respeito do pretenso cará ter
fantasioso da reflexã o de Freud, mas gostaria de lembrá -los de alguns dados, nã o
da biologia de sua época, mas da biologia contemporâ nea. Gostaria de começar
pela ideia de que o organismo bioló gico é uma organizaçã o dinâ mica capaz de
ser um processo de:
64
CANGUILHEM, 1990. (ATLAN, 1992, p. 224)
equilíbrio, e os caminhos utilizados para retornar ao equilíbrio oferece
possibilidades de organizaçã o muito mais ricas”
De fato, nada disso deveria nos surpreender pois, por mais que nã o seja
imediatamente evidente, há um lugar importante a respeito do sexual no interior
dos textos de Engels e Marx. Comecemos por algumas passagens bem conhecidas
do Manifesto Comunista:
Supressã o da família! Até os mais radicais se indignam com este propó sito
infame dos comunistas. Sobre que assenta a família atual, a família
burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente
desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu
complemento na ausência forçada da família para os proletá rios e na
prostituiçã o pú blica. A família dos burgueses elimina-se naturalmente
com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o
desaparecer do capital. Censurais-nos por querermos suprimir a
exploraçã o das crianças pelos pais? Confessamos este crime.
A experiência soviética
De toda forma, esse debate demonstra como uma revoluçã o sexual sem
uma revoluçã o política e econô mica verá simplesmente a inversã o do sentido de
todas as proposiçõ es que ela defende. A liberdade se tornará uma forma mais
insidiosa de escravidã o.
A resposta soviética passará , no entanto, por outra estratégia. Ela será
fundada na tentativa de transferência da quase integralidade do trabalho
doméstico para a esfera pú blica produzindo, com isso, o puro e simples fim do
trabalho doméstico devido à assunçã o de tais tarefas pelo estado. Como dirá
Preobrazhenskii: “nossa tarefa nã o consiste em lutar por justiça na divisã o do
trabalho entre os sexos. Nossa tarefa é libertar homens e mulheres do trabalho
doméstico trivial”69. Isso permitiria a generalizaçã o do trabalho assalariado para
as mulheres.
Tal política abriu espaço para a discussã o inclusive da educaçã o e cuidado
dos filhos. Vá rios foram os debates a respeito da compreensã o de que a
emancipaçã o efetiva passava pela transferência do cuidado das filhas e filhos ao
poder pú blico. O que permitiria à s mã es e pais terem relaçõ es com as crianças
quando quisessem, desenvolvendo com isso as condiçõ es materiais para relaçõ es
baseadas na expressã o do amor. A ideia por trá s era de que, dessa forma,
mulheres poderiam definir de forma mais livre as relaçõ es entre maternidade e
trabalho. No interior da família burguesa submetida à exploraçã o do trabalho, os
pais tem efetivamente tempo mínimo com seus filhos e filhas, já que sã o
submetidos a cargas cada vez maiores e mais estafantes de trabalho, vendo as
obrigaçõ es com as crianças como um trabalho a mais. A modificaçã o dessa
estrutura permitiria a liberaçã o das relaçõ es entre pais e crianças para um
tempo de maior prazer juntos.
Historiadoras como Wendy Goldman afirmarã o que: “os bolcheviques
atribuíram pouca importâ ncia para os poderosos laços emocionais entre pais e
seus filhos”70. A colocaçã o é real, mas seria necessá rio se perguntar a razã o para
tanto. Podemos levantar a hipó tese de que se tratava de defender a noçã o de que
modificaçõ es estruturais na base econô mica e no ordenamento jurídico
empurrariam, de forma irreversível, a reconfiguraçã o do que aparece a nó s como
68
FEDERICI, Silvia, Calibã e a bruxa, p. 12
69
Apud, GOLDMAN,
70
“poderosos laços emocionais”. Há de se notar ainda que projetos dessa natureza
se demonstraram inviá veis nã o exatamente por reaçã o popular a eles, mas por
inviabilidade de sua implantaçã o econô mica em um país que conhecerá , depois
da Revoluçã o, uma guerra civil longa que levará a economia ao colapso até a
aplicaçã o da chamada Nova Política Econô mica (NEP).
De fato, a modificaçã o da base econô mica se demonstrará muito mais
difícil de se realizar do imaginaram os bolcheviques. Por exemplo, apesar da
igualdade no trabalho, percebeu-se que as mulheres tinham a maior rotatividade,
sendo as primeiras a serem despedidas e as ú ltimas a serem recontratadas. Pois
os responsá veis pela produçã o temiam situaçõ es como maternidade e outros que
impediriam a condiçã o do trabalho em situaçõ es ditas normais. Há de se lembrar
ainda que a estrutura gerencial da economia soviética continuava comandada
por homens, o que tinha consequências nã o negligenciá veis.
Por outro lado, a realidade camponesa e a realidade urbana eram muito
distintas em um país de dimensõ es continentais como a URSS. A facilitaçã o do
divó rcio, por exemplo, tinha um impacto muito diferente no campo e na cidade.
No campo, era comum a divisã o de bens apó s o termino do casamento terminar
em situaçõ es de inviabilidade econô mica, com maior vulnerabilidade para as
mulheres. O que fazia com que as mulheres camponesas acabassem por
defender, por exemplo, limitaçõ es drá sticas no direito de divó rcio.
Dito isso, aparece um problema real e complexo vinculado à s mú ltiplas
temporalidades a qual obedece a estrutura das dinâ micas afetivas dos sujeitos.
Os padrõ es de mudança nã o sã o unificados, nem as respostas a tanto. A
permanência de certas formas de vínculos, mesmo depois de modificaçõ es
macro-estruturais, nem sempre expressam algum tipo de regressã o ou atitude
defensiva.
Falar de sexo
Aula 7
Fascismo e sexualidade
Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socializaçã o
que nã o passam pela repressã o das pulsõ es sexuais. Daí porque Reich poderá
dizer: “ Em uma sociedade socialista, o complexo de É dipo deve desaparecer
porque a sua base social, a família patriarcal, perde a sua razã o de ser e
desaparece”77. Ou seja, recuperando discussõ es que vimos na aula passada, sobre
a obsolescência da família como unidade social na sociedade comunista, Reich
75
Idem, p. 299
76
Idem, p. 73
77
REICH, Psicanálise materialismo dialético, p.
tira suas consequências psíquicas, a decomposiçã o progressiva da família leva
consigo as modalidades de organizaçã o dos conflitos psíquicos que sã o
imanentes a sua organizaçã o nuclear. Daí porque nã o haveria mais complexo de
É dipo na sociedade comunista plenamente realizada.
Reich eleva a família autoritá ria, cujo teatro inconsciente nos é fornecido
pelo Complexo de É dipo, ao nú cleo central de reproduçã o social das dinâ micas
de regressã o. Ela será a “célula reacioná ria central”78, um Estado autoritá rio em
miniatura que visa nã o apenas a naturalizaçã o de um tipo patriarcal de
dominaçã o, mas também a oposiçã o da mulher como genitora e a mulher como
ser sexual, de onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias
numerosas: estratégia clá ssica para submeter a mulher a condiçã o de genitora. O
que significa, em uma fidelidade clara ao debate comunista da época, que apenas
o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento de uma
sociedade emancipada. Por outro lado, apenas a anulaçã o de uma prá tica clínica
baseada na reduçã o dos conflitos psíquicos aos processos de identificaçã o no
interior do nú cleo familiar poderia contribuir para a emancipaçã o.
Ou seja, Reich procura fornecer uma aná lise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressã o social em operaçã o nas
dinâ micas de socializaçã o, em especial na família. Mais do que a expressã o da
família patriarcal, o fascismo aparecia, na verdade, quando a força da família
patriarcal entrava em colapso, como se fosse uma reaçã o desesperada ao seu
ocaso, à descoberta social de sua fragilidade. Diante da possibilidade aberta pelo
seu fim, tudo se passa como se setores fundamentais da sociedade apelassem a
sua versã o propriamente terrorista.
79
REICH; Wilheim; Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53
80
Idem, La psychologia de masse …p. 56
81
Idem, p. 19
82
Idem, p. 74
honra sexual, para lutar corajosamente contra as tentaçõ es, etc. Cada
adolescente e cada criança conhece a luta contra a tentaçã o da
masturbaçã o. Ë no curso desse combate que se desenvolve todos os
elementos estruturais, sem nenhuma exceçã o, do homem reacioná rio83.
Assim, Reich insiste que o racismo nã o é apenas uma justificaçã o bioló gica
para aspiraçõ es imperialistas. O racismo fascista, como é voltado contra setores
nã o submetidos à reificaçã o da escravidã o, como os judeus, é para Reich fruto de
estrutura psicoló gica precisa. Nele, pulsa as formas mais elementares de
recalque sexual através da temá tica da purificaçã o das raças e da hierarquia
pressuposta que procura aproximar motivos teoló gicos e geográ ficos:
85
Idem, p. 192
86
Idem, p. 139
87
Idem, p. 143
casamento, onde mulheres seriam disponíveis a todos em uma espécie de
prostituiçã o generalizada, de socializaçã o das mulheres, onde “nã o haveria mais
uniã o entre homem e mulher, onde se viveria hoje com uma pessoa, amanhã com
outra, de acordo com seus caprichos”88.
Mas notemos como colocar o problema do racismo e do antisemitismo
inerente ao fascismo desta forma é maneira de afirmar que sua superaçã o nã o
passa apenas pela denú ncia das dinâ micas econô micas e de exploraçã o
imanentes a tal violência social. Na verdade, os problemas do racismos e do
antisemitismo exigem o esclarecimento de seu fundamento sexual e a atuaçã o
neste nível. O racismo para Reich se combate através de uma revoluçã o sexual.
Nesse sentido, podemos dizer que Reich tem o mérito de expor como nã o
há autoritarismo sem regulaçã o necessá ria da vida sexual, pois se trata de
lembrar que isto nã o é uma manobra diversionista, nã o é um elemento auxiliar,
mas o fundamento necessá rio de toda servidã o e sujeiçã o social. Reich era tã o
consciente deste ponto que, entre o fim dos anos vinte no início dos anos trinta
em Viena e depois em clínicas gratuitas de aconselhamento sexual para a classe
proletá ria, chamadas de SexPol. Tais clínicas, compostas por psicanalistas,
médicos, obstetras e advogados eram uma mistura de consulta psicanalítica,
discussã o marxista, prescriçã o de contraceptivos tendo em vista o combate à
miséria sexual e o desenvolvimento de uma sexualidade livre. Essas clínicas
muitas vezes eram montadas em ô nibus que iam para as periferias e parques,
além de serem responsá veis por palestras pú blicas e distribuiçã o de folhetos
sobre sexualidade deixados de porta em porta. Assim:
Ou seja, desde de o início sua clínica será uma clara clínica de intervençã o
social, como se a verdadeira clínica do sexual fosse a continuaçã o das lutas
sociais por outros meios.
88
Idem, p. 170
89
ANN DANTO, Elisabeth; As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, São Paulo:
Perspectiva, 2019, p. XXI
Falar de sexo
Aula 8
Gostaria de começar com Georges Bataille, sendo que na aula que vem
falaremos de uma ó pera de Alban Berg, chamada Lulu. A escolha de começar por
Bataille passa pela procura em explicitar o que poderíamos chamar de setor mais
radicalizado do surrealismo. Dessa forma, essa é uma maneira de entrarmos na
aná lise do potencial disruptivo das vanguardas modernistas e como uma outra
forma de falar de sexo foi mobilizada nesse contexto.
Desde de meados dos anos vinte, Bataille participa assiduamente das
discussõ es a respeito do surrealismo, animadas principalmente por André
Breton. No entanto, suas relaçõ es com Breton sã o tensas e logo serã o levadas à
ruptura. Bataille se vê em uma posiçã o mais radical do que a de Breton, que ele
compreende como uma porta-estandarte de uma versã o “oficial” e
“institucionalizada”. A seu respeito, Breton dirá : “O Sr. Bataille faz profissã o de
querer considerar apenas o que há de mais vil, mais desencorajador e
corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que ele se torne útil ao que
quer que seja de determinado a correr absurdamente com ele em direção a
algumas casas provinciais assombradas, mais vis que as moscas mais viciosas, mais
rançoso que salões de cabelereiro”90.
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica
da realidade social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o
que teria sido recalcado pelos processos de racionalizaçã o na modernidade,
como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência
modernista aparece como um paradoxal apelo à recuperaçã o do que foi expulso
do nosso tempo histó rico. Recuperaçã o da capacidade de escrever como um
criança, sem objetivo e em completa errâ ncia; escrever com as condensaçõ es, os
deslocamentos e as associaçõ es pró prias à s formaçõ es do inconsciente; escrever
deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o
selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a posiçã o de Bataille consiste em
explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexã o sobre a potência de
uma escrita da transgressão.
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma
vertente do surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents,
Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais
revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela,
encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci.
Mas, pelas mã os de Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de
seu sexo, suas vísceras estã o expostas e nas mã os ele carrega um coraçã o em
chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença
renascentista no humanismo e na razã o que se expressa no equilíbrio sereno da
boa forma perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a
paixã o que queima e a morte ligada ao sexo. O que nã o nos surpreende se
lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando:
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito
tarde para tentar ser razoá vel e instruído – o que levou a uma vida sem atrativos.
Secretamente ou nã o, faz-se necessá rio se transformar em algo totalmente outro
ou cessar de ser”.
Mas eu gostaria de falar de Bataille privilegiando nã o exatamente sua
literatura, composta de livros como A história do olho e Madame Edwarda, livros
que passaram à histó ria da literatura devido a sua maneira explícita de falar de
sexo e que parecem se colocar na linha direta de produçõ es como as de Sade, dos
libertinos franceses, entre outros. Pois sua obra nã o é, exatamente, a obra de um
escritor. Seus romances sã o a elaboraçã o literá ria de uma problematizaçã o
filosó fica, um pouco como os romances de Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo
de “romance de tese” em sua obra literá ria, já que a literatura aparece quase
como um regime discursivo de explicitaçã o de proposiçõ es filosó ficas.
Por isso, mesmo que se trate de começar um eixo sobre estética, eu
gostaria de começar explicitando as proposiçõ es filosó ficas de Bataille, essas
proposiçõ es que atravessarã o sua obra, que farã o de sua obra literá ria o campo
de produçã o de horizontes de transgressã o e de saturaçã o da escrita. Enquanto
90
BRETON, André; Manifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132
um autor anfíbio, Bataille explicita como poucos a maneira com que setores
avançados das vanguardas modernistas estavam a procura da extensã o de
modalidades de crítica social impulsionados pela perspectiva de novas
circulaçõ es do sexual.
A esse respeito, lembremos como um dos pontos de partida da crítica de
Bataille se refere ao primado da sociedade do trabalho como forma geral de
organizaçã o social na modernidade capitalista. Sua maior preocupaçã o é como o
trabalho impõ e uma atividade na qual o humano perde aquilo que é fundamental
em suas açõ es, a saber, o gozo:
91
BATAILLE, Georges; O erotismo, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 64
92
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
conservaçã o, a conservaçã o de seus bens, o cá lculo econô mico de seus esforços e
a fruiçã o de formas moderadas de prazer, ou seja, formas de prazer que nã o nos
coloquem fora de nosso pró prio domínio. Eles sã o aqueles que se julgam
racionais por sempre submeterem sua afetividade à reflexã o sobre a utilidade e a
medida. Dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da
mercadoria, as relaçõ es entre pessoas acabarã o por se submeterem a
racionalidade instrumental da relaçõ es entre coisas. Algo que Bataille, à sua
forma, recupera ao afirmar que: “a humanidade, no tempo humano, antianimal
do trabalho é em nó s o que nos reduz a coisas” 93. Tempo antianimal porque
tempo que se acumula, que conta, que se dispõ e como unidade bruta de
contagem, tempo disciplinar do cá lculo dos meios em relaçã o a fins.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que nã o se
confunde com o cá lculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda açã o social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmaçã o como:
93
Idem; O erotismo, p. 184.
94
Idem; A parte maldita, p. 21
95
Idem; O erotismo, p. 188
Notemos um ponto fundamental aqui, o erotismo é excessivo. Mas, com
isto, nã o significa dizer que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso
nã o é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo”
significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma
medida comum entre os dois fenô menos, sendo que um é apenas maior do que o
outro. Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de
medir, simplesmente porque é o que nã o se mede, o que colapsa toda medida,
porque sua ló gica nã o é a ló gica dos objetos mensurá veis. Neste sentido, mesmo
quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples
olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do
que nã o aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que
podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo
porque o que lhe caracteriza é exatamente aquilo que nã o entra na imagem atual
do humano, deste da sociedade do trabalho e da ló gica utilitá ria. Assim, quando
Bataille propor uma espécie de fó rmula ontoló gica ao afirmar que: “o ser é
também o excesso do ser, elevaçã o ao impossível”96, devemos entender com isto
que é pró prio da definiçã o do ser o reconhecimento de uma relaçã o constitutiva
com o que lhe determina. Neste contexto, “impossível” nã o significa inexistente;
“impossível” significa o que nã o se expressa na configuraçã o atual dos possíveis e
que, por isto, força tal configuraçã o a modificar-se.
Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em tudo o que parece
inumano no sexo:
Mas se esses livros nã o falam da vida sexual, como entã o falar de sexo? O que
pode pois significar falar de sexo? A esse respeito, lembremos da definiçã o dada
por Bataille:
Falar de sexo é falar dessa dissoluçã o das formas constituídas, regulares, que
fundam a ordem descontínua das individualidades que somos. Ou seja, será
sempre uma fala estranha à nossa individualidade e nossa identidade.
Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo composto por
esses á tomos sociais que sã o os indivíduos modernos com seus sistemas
particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de interesses
através de contratos, de limites, de cá lculos. Interesses, por sua vez, submetidos
à ló gica utilitarista da maximizaçã o do prazer e do afastamento do desprazer, de
98
Idem, p. 179
99
Idem, p. 180.
100
BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43
distinçã o entre gozo e sofrimento, sendo que a mistura entre os dois só pode ser
compreendida como uma forma insidiosa de patologia. Por isto, do ponto de
vista da preservaçã o das individualidades, o erotismo sempre será violento e
invasivo: “o que significa o erotismo dos corpos, senã o uma violaçã o do ser dos
parceiros?” pois “A passagem do estado normal ao de desejo eró tico supõ e em
nó s a dissoluçã o relativa do ser constituído na ordem descontínua”101.
Nesse sentido, a fala que diz algo sobre o sexo sempre tentará introduçã o
toda a continuidade que esse mudo descontínuo é capaz, Daí afirmaçõ es como:
101
Idem, p. 41
102
Idem, p. 55
103
BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179
104
BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224
Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor:
significa a recusa de uma subordinaçã o ao gozo menor, uma recusa a
condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o
á pice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressã o
que nã o para antes de ter atingido o á pice da transgressã o. Sade nã o
evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o
princípio inicial da negaçã o dos outros e da afirmaçã o de si. A negaçã o dos
outros se torna, no extremo, negaçã o de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido
por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?105.
Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter
colocado em cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal
sofrimento. No entanto, a posiçã o de Sade guarda algo de profundamente reativo,
e essa natureza reativa é sua limitaçã o. Bataille explora com exaustã o o fato
paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato,
um carrasco sá dico, há de se lembrar que carrascos nã o escrevem, pois: “a
violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definiçã o, a expressã o do homem
civilizado”113. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto, Bataille
pode dizer:
Emancipar a dissonância
116
EISLER, Hanns; Musique et société, Paris: Editions de Maison des sciences de l’homme, 1998, p.
32
117
TENNEY, James; A history of consonance and dissonance, p. 11
momento histó rico no qual o que aparecia entã o como discó rdia, como o que
estremece a sensibilidade, será o tecido fundamental de nossa experiência. Nã o
se modifica as formas musicais sem abalarmos os alicerces da cidade, já dizia
Platã o. E é nessa esfera que podemos apreender a dimensã o efetivamente
política da mú sica. Essa dimensã o nã o está na “mensagem” que ela veicula, nem
mesmo na posiçã o social de seus compositores e compositoras. Ela está na
maneira com que a forma musical torna possível relaçõ es de síntese, de unidade,
de diferença, de relaçã o até entã o impossíveis no interior da vida social. Essa é
uma ideia importante que vocês podem encontrar, por exemplo, em Theodor
Adorno, quando ele afirma:
118
ADORNO, Ästhetische Theorie, p. 379.
Elas estã o a organizar um material liberado do ponto de vista de seu
desenvolvimento imanente
A ó pera é também a liberaçã o dos corpos na força violenta dos desejos que
nã o aceitam mais os lugares sociais aos quais eles haviam sido submetidos. Por
exemplo, ela é praticamente a primeira ó pera a tratar abertamente do tema do
lesbianismo (a relaçã o entre Lulu e a Condessa Geschwitz). Essa liberaçã o nã o é
tratada de forma edificante e redentora, mas trá gica. As relaçõ es só podem ser
marcadas pela violência e pela decomposiçã o, sem que nenhuma possa se salvar.
Pois nã o há nenhuma referência social possível para que uma relaçã o na qual
desejo e preservaçã o possa se orientar. Além do que, uma situaçã o social
degradada e sua explicitaçã o só pode levar sujeitos a agirem inicialmente
levando em conta uma luta de preservaçã o violenta em suas açõ es e reaçõ es. Por
isso, ela é uma ó pera sem reconciliaçã o. A imagem da irreconciliaçã o é o negativo
da ausência de toda reconciliaçã o possível em nosso horizonte social.
Além disso, a ó pera expõ e de uma clara insubmissã o de classe. Ao poucos
descobrimos que Lulu vem das classes mais baixas e espoliadas. Sua histó ria
começa com ela tentando bater a carteira de um rico burguês que depois se
tornará seu amante, o Dr. Schö n. Seus companheiros do passado, como o pró prio
pai, aparecem na ó pera como mendigos. Como dirá Adorno, há em Berg a
atmosfera fruto da identificaçã o com o que é : “separado, desqualificado, excluído
da sociedade”
De fato, se isso ocorre dessa forma, é porque Lulu faz parte de uma série de
figuras que aparecem nas artes alemã s da Repú blica de Weimar, como o filme O
Anjo Azul, de Sternberg, filmado em 1930 e baseado no romance de Heinrich
Mann, Professor Unrat ou o fim de um tirano, de 1905. Sã o mulheres vindas das
classes populares cuja circulaçã o produzem desejos de posse e controle que
terminarã o por levar à destruiçã o, ou a degradaçã o. Mas esse processo, e nã o é
por acaso que eles aparecem em plena Repú blica de Weimar, ou seja, na
antecâ mara do fascismo, é a forma de um colapso prenunciado. Nã o mais
submetido aos sistemas de poder da moral, circulando livremente no interior do
corpo social, esse corpos femininos contam a histó ria de prostitutas que invadem
os lugares que elas nã o podiam estar. Elas se tornam nã o mais as amantes, mas
as paixõ es, as esposas, como se aquilo que havia até entã o ficado no lugar de uma
sexualidade compartimentalizada nos bordeis, nos cabarets invadisse todos os
poros da sociedade, mostrando o que essa sociedade realmente é, a saber, um
sistema de divisõ es que joga o desejo para os cantos escuros enquanto procura
preservar a ordem de sua devastaçã o. Nesse sentido, obras como Lulu sã o, de
fato, a encenaçã o de um processo inelutá vel de devastaçã o. Mas nã o porque elas
procuram acender alguma forma de alerta vermelho, como quem diz que
devemos parar antes de nos deixarmos afetar pelo que aparece como um desejo
de empuxo. Antes, elas sã o um sistema de explicitaçã o de violências que
demonstra como as representaçõ es sociais pró prias a nossa vida nã o saberã o o
que fazer diante de uma dinâ mica libidinal que parece vir com uma nova
configuraçã o de classes.
Tomemos um exemplo, logo na introduçã o da ó pera de Berg. A ó pera
começa, e isto nã o poderia ser mais sintomá tico, em um espaço de circo. Estamos
em uma Ménagerie, onde sã o apresentados os animais adestrados. A mú sica
começa com metais chamando a atençã o, como se faz em um espetá culo circense.
Logo, vemos o apresentador descrever as feras mais impressionantes enquanto a
mú sica começa com figuras rítmicas de entretenimento circense.
Isso até que ele apresenta a mais perigosa das feras, criada por deus para
seduzir, infectar e destruir. E nesse momento aparece Lulu. A ambiência de circo
é um signo de crítica social, de degradaçã o da humanidade à condiçã o de uma
animalidade enjaulada é adestrada. Como dirá Malkani: “Todas as dimensõ es
essenciais dessa ó pera estã o presentes desde o Pró logo: o reino da mascarada, a
aprisionamento da espontaneidade, o assujeitamento das pulsõ es elementares, o
primado da aparência e da simulaçã o, o desdobramento do poder e da
violência”119. Mas a mú sica apresenta uma dimensã o lírica anteriormente ausente
quando Lulu é apresentada. Ou seja, contrariamente ao resto do trecho,
Esse recurso a uma mú sica de circo parece-me uma maneira interessante
de introduzir a ó pera de Berg. Pois gostaria de lembrar a vocês de uma
característica importante do trabalho da Segunda Escola de Viena. A força
política da Segunda Escola de Viena leva muitos de seus compositores a
procurarem recuperar formas musicais “degradadas” transformando-as. Ou seja,
eles procuram associar-se nã o ao “originá rio” que poderia ressoar em uma
mú sica popular “da terra”, ainda mais em um momento de ascensã o da versã o
paranoica de corpo social, como era o caso da Alemanha dos anos 1920 e 1930.
Eles procuram o horizonte da mú sica “desclassificada” como a mú sica de cabaré,
deliberadamente sarcá stica e “mal cantada”, ou como o tango, tal qual faz Berg
em Der Wein (diga-se de passagem, outra mú sica de cabaré). Digo isso por que é
da mú sica de cabaret que Schoenberg tira o sprechgesang.
O recurso à mú sica de cabaré (e o momento mais impressionante é usá -la
para organizar o canto de uma “peça sacra” como Moisés e Arão) é quase o
inverso do que seria o recurso à mú sica folcló rica. Schoenberg procura o que está
fora da imagem do povo, do que é um corpo estranho, pois ligado à crítica social,
ao sarcasmo, à sexualidade “promíscua”, em suma, ao que há de menos
valorizado diante de certa imagem do que deve ser o “povo”. Essa sexualidade
insubmissa, que ressoa a revolta das classes populares contra um poder que fala
de deus, pá tria e propriedade enquanto procura tudo submeter a seus desejos,
reaparece como o eixo estruturador de Lulu.
Um problema de representação
Ou seja, esse saber sobre o sexual nasce como a procura de inscrevê-lo na ordem
natural dos fenô menos físicos, em uma perspectiva holista para a qual a
modificaçã o na ordem do sexual só poderia mesmo equivaler a um abalo geral
das leis da existência.
No entanto, nã o será sob essa forma que encontraremos o
desenvolvimento da sexologia depois da Segunda Guerra. Na verdade, o
desenvolvimento de uma ciência da sexualidade nã o poderia ser indiferente a
tudo o que havia ocorrido entre o final do século XIX e as primeiras décadas do
século XX. E, como vimos, havia ocorrido fenô menos como: a transformaçã o da
sexualidade em campo de lutas sociais tendo em vista o aprofundamento de
processos de emancipaçã o social; o desenvolvimento de uma clínica da
sexualidade que rompia com relaçõ es estabelecidas entre sexualidade,
reproduçã o e normatividade naturalizada; uma reflexã o estética sobre a
sexualidade que insistia em seu cará ter disarmô nico, dissonante em relaçã o à s
exigências normativas da reproduçã o material de nossas sociedades, por isto,
uma algo que poderíamos chamar de “estética trá gica da sexualidade”. Por outro
lado, a experiência do fascismo e da guerra também foram questionadas a partir
da economia lidibinal que elas mobilizavam, ou seja, a partir da forma como
estruturas de personalidade autoritá ria enraizavam-se em dinâ micas repressivas
da sexualidade. Esse impacto da guerra nã o pode ser negligenciado na
reorientaçã o da sexologia em direçã o a um discurso que agora se serviria das
expectativas emancipató rias da vida social.
Assim, seus manuais, a partir da Segunda Guerra, serã o apresentados
como verdadeiras peças de uma “revoluçã o sexual” de outra natureza. Nã o mais
aquela revoluçã o que acompanharia a transformaçã o radical das estruturas e
instituiçõ es da vida social e que tematizavam o enraizamento profundo entre
processos de espoliaçã o econô mica, sofrimento social, divisã o sexual do trabalho
e miséria sexual. A revoluçã o sexual se daria a partir de entã o no interior mesmo
das sociedades capitalistas, como se fosse uma questã o de melhor ajustar a
potencialidade imanente a tais sociedades e a liberalidade de costumes e
comportamentos sexuais. Ou seja, tudo se passava como se o desenvolvimento
imanente das sociedades capitalistas e suas dinâ micas de consumo levassem
necessariamente as sociedades a se confrontarem com um aumento exponencial
das liberdades de escolhas e do desenvolvimento da autonomia individual. Nesse
121
WILLARD; Sexology ..., p. 7
contexto, as antigas restriçõ es sexuais perderiam paulatinamente o sentido para
dar lugar a indivíduos capazes de afirmar a singularidade de sua pró pria
sexualidade.
Dessa forma, o advento desses estudos de sexologia eram apresentados
como uma verdadeira liberaçã o que, nã o por acaso, acontecia inicialmente na
América. Para entender melhor essa dinâ mica, vamos nos deter por um
momento nesse que foi o mais emblemá tico e famoso dos estudos de sexologia:
os estudos desenvolvidos por Alfred Kinsey.
Os relatórios Kinsey
Alfred Kinsy foi um bió logo e sexó logo norte-americano responsá vel por
estudos que procuravam descrever através de surveys, entrevistas e estatísticas,
o comportamento sexual dos norte-americanos. Por exemplo, seu estudos sobre
o comportamento sexual dos homens norte-americanos foi composto de 12 mil
entrevistas: amostra nunca antes mobilizada em tal tamanho. A ideia bá sica de
Kinsey era descrever, como um taxonomista, o que as pessoas efetivamente
fazem quando fazem e pensam em sexo. Daí afirmaçõ es como essas a respeito da
diferença entre seus estudos e aqueles desenvolvidos anteriormente:
but none of the authors of the older studies, in spite of their keen insight
into the meanings of certain things, ever had any precise or even an
approximate knowledge of what average people do sexually. They
accumulated great bodies of sexual facts about particular people, but they
did not know what people in general did sexually. They never knew what
things were common and what things were rare, because their data came
from the miscellaneous and usually unrepresentative persons who came
to their clinics (Freud, Hirschfeld, et al.), or from persons from whom they
happened to receive correspondence (Ellis), or from limited numbers of
persons whom they interviewed in elaborate detail (as in the Henry
study)122.
122
KINSEY, p. 58
123
Idem, p. 40
Os dados forma levantados a partir de questioná rios, aplicados em
entrevistas, que iam a até 521 questõ es abordando desde memó rias de infâ ncia
até todas as formas de experiências e estímulos sexuais. Os métodos eram
compostos ainda de entrevistas em profundidade, além de aná lises de variaçã o
de comportamentos através da aná lise de relaçõ es sexuais reais. Em alguns casos
Kinsey desenvolveu escalas como aquela que classificava sujeitos em seis níveis:
0 – exclusivamente heterossexual
1- predominante heterossexual, apenas incidentalmente homossexual
2- predominante heterossexual, mas mais do incidentalmente
homossexual
3- igualmente heterossexual e homossexual
4- predominante homossexual, mas mais do que incidentalmente
heterossexual
5- predominante homossexual, apenas incidentalmente heterossexual
6- exclusivamente homossexual
Na aula de hoje , gostaria de retornar à psicaná lise, mas através de Jacques Lacan.
Gostaria de mostrar como Lacan tem uma compreensã o a respeito da fala do
sexual que se aproxima de uma matriz que nã o deixará de ressoar a experiência
trá gica que encontramos em certa tradiçã o estética pró pria ao século XX, como
vimos em aulas anteriores. Contrariamente ao que vimos na aula passada, com o
advento de um discurso como a sexologia que se colocava como saber científico
sobre o sexual, como discurso de condutas naturalizadas que permitiriam uma
vida melhor, a psicaná lise pelas mã os de Lacan insistirá que nã o há saber sobre o
sexual, que o sexual só se inscreve no horizonte do saber sob a forma do impasse
e que este nã o saber é condiçã o fundamental para uma fala portadora de verdade
em relaçã o ao que nã o se instrumentaliza nem se permite colonizar-se como
setor de uma procura de bem-estar. A psicaná lise nã o é um saber sobre o sexual,
mas uma operaçã o clínica que visa permitir ao sexual desdobrar-se para fora das
determinaçõ es sociais do saber. Por isso, ela poderá (ou ao menos deveria)
aparecer como uma clínica da disparidade entre a fala e o sexual.
Há vá rias formas de discutir a questã o do sexual em Lacan e, certamente,
uma articulaçã o mais cerrada nã o poderia ser feita em uma aula. Mas há um
caminho, a meu ver profícuo, que gostaria de apresentar hoje. Ele passa pela
transformaçã o do “gozo” em conceito clínico central por Lacan, assim como pelo
desenvolvimento de uma crítica social que visa expor a ló gica da vida social a
partir das dinâ micas de espoliaçã o e organizaçã o do gozo. Lacan desenvolve
uma clínica orientada à confrontaçã o do sujeito à experiências que nã o se
submetem integralmente aos cá lculos de maximizaçã o do prazer e do
afastamento do desprazer. Experiências que, seguindo uma via aberta por
Bataille, Lacan chamará de “gozo”. Ou seja, Lacan compreender que uma das
matrizes fundamentais do sofrimento está vinculada à incapacidade dos sujeitos
estabelecerem alguma forma de relaçã o a modalidades de gozo que os des-
identificam, que os deslocam de determinaçõ es sociais e lugares naturais, que os
deslocam de seu gênero e de suas identidades.
124
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, pp. 393-398 e pp. 598-602. O caso se encontra em KRIS,
Ernst; “Ego psychology and interpretation in psychoanalytic theraphy”, Psychoanalytic Quartely, n. 10,
v.1, 1951
modo de relaçã o intersubjetiva por comparaçã o que remete à s relaçõ es com seu
pai e seu avô , um “grande pai” (grandfather), cientista reconhecido, que realizou
o sucesso que o pai nã o foi capaz de alcançar.
Um dia, o paciente chega à sessã o analítica afirmando ter encontrado um
livro que contém as ideias dos textos que escrevera, mesmo sem publicar. Kris
intervém pedindo para ler o livro. O que ele faz, concluindo nã o haver nada do
que o paciente temia. Ao contrá rio, dirá Kris, o paciente projetava no outro ideias
que ele gostaria de ter. Kris intervém assim no nível da “apreciaçã o da
realidade”, tentando levar o paciente a aceitar que: “sempre lidamos com as
ideias dos outros, trata-se de uma questã o de saber como lidar com elas”. Ao
apresentar sua interpretaçã o, Kris ouve do paciente a seguinte resposta: “Sempre
quando minha sessã o de aná lise termina, um pouco antes do almoço, eu gosto de
passear por uma rua onde encontro um restaurante que oferece um de meus
pratos preferidos: miolos frescos”.
Lacan dirá que tal resposta expõ e, na verdade, o fracasso da intervençã o
de Kris. Ela a compreende como um caso típico de acting out, ou seja, de uma
modalidade de açã o que apenas representa, de forma imaginá ria, o que deveria
ser realizado do ponto de vista estrutural. Pois mesmo que a aná lise de Kris nã o
estivesse incorreta, falta analisar o desejo de “comer miolos frescos”. Pouco
importa se ele é ou nã o plagiá rio, mas é certo que uma mistura confusa de desejo
de autoria e plá gio parece estruturador e intransponível. Isto nos leva a insistir
que há um gozo oral primordial e bruto (expresso no desejo de comer miolos
frescos ou ainda em um sonho edípico de uma batalha com o pai no qual livros
eram armas e livros conquistados eram engolidos durante o combate) que
aparece bloqueando uma dimensã o essencial do reconhecimento
linguisticamente estruturado, a saber, a dimensã o da “publicaçã o”, do tornar-se
pú blico, do assumir para o Outro a forma de suas ideias. Pois tal relaçã o oral tem
algo, para este sujeito, de nã o inscritível em uma forma reconhecida, algo de
profundamente fusional, algo de campo confuso no qual distinçõ es de
identidades nã o se sustentam mais. Esse gozo que nã o se submete a um primado
genital, quebra a possibilidade do sujeito “ter um nome”, “estar em um lugar que
lhe seja pró prio”. Dele, o Eu “nada quer saber”, pois é tal gozo o que foi expulso
como radicalmente para além dos limites do princípio do prazer.
Por isto, a ú nica forma possível de reconhecimento aparece através: “de
um ato totalmente incompreendido do sujeito”125. Um acting out que ele repete,
com se traduzisse em forma imaginá ria aquilo que deveria ser capaz de
apreender de forma simbó lica. Mas que o “nã o” do paciente, ao dizer “Eu nã o
posso publicar, eu nã o sou alguém que possa publicar suas pró prias ideias” seja
invertido pela analista em uma afirmaçã o do tipo “você pode publicar, nossas
ideias sempre vem de outros”, isto significa uma espécie de bloqueio na escuta
mais precisa deste “nã o”. Nã o foi possível ouvir como tal negaçã o era mais brutal,
pois pedia o desenvolvimento de uma experiência com a linguagem na qual a
confusã o das relaçõ es profundamente orais pudesse vir à tona e encontrar uma
forma. O que era impossível no interior de um uso da linguagem marcada pelas
fronteiras individualizadas de quem se sente, a todo momento, entrando
indevidamente no domínio de um outro, sendo desmascarado como um
plagiador. A aná lise deveria pois levar o sujeito a reconstituir seu modo de
existência a partir desse gozo, mesmo com o preço dele nã o saber mais quem é e
125
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, 398
quais os “limites”, quais “determinaçõ es” que definiriam claramente sua
presença no mundo. Pois esse gozo é uma forma de afirmaçã o do
descentramento e da despossessã o. Ele é o colapso das ilusõ es de identidade do
sujeito e a base libidinal para a abertura à quilo que nã o porta sua pró pria
imagem.
Uso essa vinheta clínica para mostrar um dimensã o fundamental do
horizonte para onde caminha a clínica lacaniana. Ela nã o é exatamente uma
clínica da simbolizaçã o, da verbalizaçã o e da rememoraçã o, como é o horizonte
hegemô nico da clínica psicanalítica. Ela é uma clínica do descentramento, e o
operador principal de tal descentramento é algo de nã o é completamente
simbolizá vel no interior da experiência do sexual. Algo que Lacan chama de gozo.
Essa maneira de definir um monismo fá lico, pode nos levar a crer que
Lacan entende esta ordem patriarcal como intransponível. Afinal, ele dirá em
vá rios contextos que o falo: “é o significante fundamental através do qual o
desejo do sujeito pode se fazer reconhecer enquanto tal, quer se trate do homem
ou quer se trate da mulher”126. Isto demonstra como o falo permite a construção
de um Universal capaz de unificar as experiências singulares do desejo. Vá rias
foram as crítica contra este “monismo” fá lico lacaniano, vindas principalmente
de setores do feminismo. Lembremos, por exemplo, de como Nancy Fraser
sintetiza essas críticas ao afirmar:
126
LACAN, S V, p. 273
127
FRASER, Nancy; Fortunes of feminism: from state-managed capitalism to neoliberal crisis,
Londres: Verso, 2013, p. 146.
Neste sentido, a psicaná lise apareceria como uma tecnologia para preservar a
estrutura heteronormativa e biná ria que serviria de base para a colonizaçã o dos
corpos através da normalizaçã o das posiçõ es de homens e mulheres. No caso de
Lacan, teríamos um sistema de diferenças que nã o escaparia do binarismo sexual
e da genealogia patriarcal do nome.
Mas notemos inicialmente como há algo de singular nesse “para todos”
produzido pelo reconhecimento do desejo através do falo. Pois o falo é, ao
mesmo tempo, o significante por excelência do desejo e o significante que
encarna a falta própria à castração, “significante do ponto onde o significante
falta/fracassa”128. Estamos aí diante de uma contradiçã o, salvo se admitirmos a
existência de algo como um desejo de castração ou a sustentaçã o necessá ria de
uma inadequaçã o radical entre o desejo e os objetos empíricos. Nã o por outra
razã o, autores como Judith Butler acusarã o Lacan de uma : “idealizaçã o religiosa
da ‘falha’, humildade e limitaçã o diante da Lei”129 politicamente suspeita. Pois
Lacan teria insistido que a ú nica forma possível de reconhecimento do desejo
passaria pela sua inscriçã o simbó lica através de um significante que é a pró pria
encarnaçã o do fracasso em nomear o desejo, já que o falo é apenas: “um símbolo
geral desta margem que sempre me separa de meu desejo” 130 .
Ou seja, e esse ponto é muito importante, o falo nã o é a figura da
transformaçã o do desejo em vontade de controle e poder. Ele é uma maneira de
articular gozo e angú stia, procura de gozo e inadequaçã o de todo objeto
empírico. Por isso, o falo é sobretudo uma forma de movimento do desejo, é essa
maneira que o desejo tem de gozar da inadequaçã o, com suas dinâ micas de
degradaçã o do objeto do desejo e procura de um ponto contínuo de
ultrapassagem. Algo que mais pareceria uma teologia negativa travestida de
clínica do sofrimento psíquico com consequências políticas paralisantes. Como
seria paralisante a posiçã o de quem sustenta uma ordem que ele sabe ser
inadequada, mas sem ser capaz de superá -la. O que seria a mais astuta e perversa
forma de conservaçã o de uma lei que deveria há muito ter sido abandonada.
De fato, é para insistir na generalidade da castraçã o que Lacan defende o
falo como processo geral de socializaçã o do desejo. Ou seja, o falo nã o é um
norma generalizada, mas uma inadequaçã o generalizada. Se a castraçã o nã o
fosse um processo genérico e extensivo a todos, entã o teríamos que admitir que
a vida social preserva alguns da violência de seus modos de determinaçã o e
limitaçã o. Ou seja, deveríamos aceitar que há sujeitos que preservariam uma
relaçã o imanente ao gozo, sujeitos que entrariam na ordem social sem serem
marcados pela violência da alienaçã o. O que seria, talvez, a pior de todas as
fantasias de compensaçã o à violência social, a saber, a fantasia de que há algum
ponto no qual esta ordem social permite aos sujeitos que nó s somos, sujeitos
constituídos pela ordem social, nã o se sujeitarem. Ou seja, generalizar a
castraçã o é afirmar que nenhuma existência preserva-se da alienaçã o, mesmo
aquelas que, em nossas sociedades atuais, colocam-se como nã o-biná rias, como
mutantes. Nenhuma existência pode falar em nome de uma diferença atual em
meio à sociedade da violência capitalista ainda vigente. Isto será apenas uma
forma de impostura.
128
LACAN, S VIII, p. 277
129
BUTLER, Judith; Gender trouble, Routledge: Nova York, 1999, p. 72.
130
LACAN, S V, p. 243
No entanto, há ao menos dois tipos distintos de efeitos resultantes desta
passagem pela castraçã o: um produz os regimes de existência, outro abre espaço
à experiência do inexistente. O primeiro caso nos leva ao gozo fá lico, o outro nos
leva à s discussõ es sobre o gozo feminino. Esses dois efeitos, é sempre bom
lembrar este ponto, se dã o nos mesmos corpos. Os corpos humanos sã o
atravessados por esses dois efeitos. Nã o há nenhum corpo humano que tenha
sido submetido à s formas do gozo fá lico sem que isto nã o produza inadequaçõ es.
Uma das razõ es da violência extrema daqueles que lutam por se reconhecerem
no interior da ló gica do gozo fá lico é o fato deles nã o saberem o que fazer com
outra experiência de gozo que os assombra. Mais uma vez, nã o há binarismo em
Lacan. Há monismo, mas nã o há posiçã o sem uma pressuposiçã o que a nega. Por
isto, nã o há posiçã o que nã o seja instá vel e aberta a um devir.
Neste sentido, a insistência de Lacan em falar da irredutibilidade da
diferença sexual nã o é simplesmente a expressã o de sua dependência a um modo
de existência heteronormativo. Isto significaria confundir diferença opositiva-
representativa com diferente auto-referencial, o que só acontece em posiçõ es
anti-dialéticas, o que nã o é o caso de Lacan. A diferença sexual, em Lacan, é a
expressã o de uma distâ ncia irredutível que me separa de mim mesmo, é a
expressã o do modo de relaçã o que tenho em relaçã o à minha pró pria
“sexualidade”. A diferença é interna a mim, nã o uma relaçã o externa a outro. Ou
seja, ela é uma diferença auto-referencial, nã o a expressã o de oposiçõ es
caracterizadas por incompatibilidades materiais. Ela nã o é a diferença entre
homem e mulher, como dois conjuntos específicos de pessoas. E como ela
poderia ser se a mulher é um inexistente? A diferença sexual é uma diferença
interna entre a existência e aquilo que tal existência nega como inexistente para
poder existir. Afirmar tal distâ ncia interna a si tem uma forte razã o política e
transformadora.
Uma das críticas mais importantes do feminismo a Lacan foi feita por
Monique Wittig. Foi dela a afirmaçã o, a respeito da noçã o de diferença sexual tal
como Lacan a utiliza : “o conceito de diferença nã o tem nada de ontoló gico. E
apenas uma maneira que o mestre tem de interpretar uma situaçã o histó rica de
dominaçã o. A funçã o da diferença é mascarar, em cada nível, os conflitos de
interesse, incluindo os ideoló gicos”131. Pois “diferente” é aquilo sempre posto em
relaçã o de subalternidade. O que se trata é de decompor a naturalizaçã o da
relaçã o social obrigató rio entre “homem” e “mulher” levando tais categorias a
seu ponto de exaustã o.
De fato, nã o se trata de ontologizar a diferença, como se fosse possível sair
da situaçã o histó rica atual a fim de dar validade atemporal à quilo que é fruto de
coordenadas histó rico-sociais precisas. Mas faz-se necessá rio falar de uma
“ontologia para nó s”, ou seja, para nó s, tal experiência tem uma irredutibilidade
ontoló gica. Isto é dito tendo em vista impedir que se fale de uma existência que
ainda nã o tem figura, e nã o deve ter. Pois nã o é exatamente a diferença que
aparece como peso ontoló gico aqui, mas a inexistência. Compreender a funçã o
política de tal estratégia nos impediria de regredir a situaçã o de criticar Lacan
por ele nos colocar diante de necessidades que: “escapam do controle da
consciência e da responsabilidade dos indivíduos”132. Pois imaginar que alguma
forma efetiva de açã o política será produzida pela consciência e por indivíduos
131
WITTIG, Monique; The straight mind and other essays, Beacon Press, 1992, p. 13
132
WITTIG, Monique, idem, p. 15
agentes é desconhecer de onde pode realmente vir a agência emancipada. Ela
certamente nã o virá do que se conforma como propriedade e atributo de um
indivíduo. Pois toda e qualquer forma de indivíduo e consciência é determinada
pela pró pria estrutura que nos faz existir e nos oprime. Por isto, uma ontologia
do inexistente é politicamente necessá ria.
Gêneros de problemas
Essa língua que fala “Nã o há outro gozo ... salvo este do qual nã o se fala,
salvo este que, se houvesse, seria outro”, língua que fala “É falso que haja outro, o
135
LACAN, S XX, p. 56
que nã o impede de dizer que nã o deveria ser este” é a fotografia de um processo
de emergência que leva a língua a seu ponto de torçã o. Processo que recusa
identificaçã o, que recusa nomeaçã o e identidade, fazendo colapsar a ordem por
dentro, como algo indescritível que nasce do que parecia o mais familiar. Esta é
uma estratégia política de produçã o de diferença que nã o poderia, em hipó tese
alguma, ser confundida com uma dinâ mica de restauraçã o.
Pode-se criticar Lacan por colocar a mulher em uma posiçã o na qual ela
nada fala sobre seu gozo, na qual ela nada conhece de seu gozo. Mas para tanto
seria necessá rio lembrar que esse desconhecimento é, para Lacan, constituinte
de nossos modos gerais de alienaçã o. A posiçã o masculina crê falar e se encontra
a todo momento em uma fala vazia que nã o é outra coisa que a simples repetiçã o
do có digo. Neste contexto, nada falar é o começo de uma verdadeira
transformaçã o.
Por outro lado, poderíamos dizer que a psicaná lise lacaniana é
absolutamente indiferente ao problema da performatividade de gênero. Ela nã o
tem problema algum em assumir mú ltiplas inscriçõ es de gênero. Pois sua
questã o central encontra-se em outro lugar, a saber, nas estruturas de
relacionalidade (que, é claro, nã o podem ser abstraídas das determinaçõ es de
gênero)136. Ela procura levar os corpos a assumirem uma forma de
relacionalidade na qual possa circular um gozo que nos desacostume do regime
identitá rio, acumulador e contá bil pró prio ao capitalismo. Essa forma pode
ocorrer em regimes mú ltiplos de relacionalidade, até mesmo entre uma mulher e
um homem.
Nesse sentido, poderíamos terminar lembrando que uma das ideais mais
fortes da psicaná lise a esse respeito, potencializada por Jacques Lacan, nos
lembra que relaçõ es sexuais nã o se dã o entre representaçõ es globais de pessoas,
mas entre objetos que circulam entre corpos, e que ele chama de objetos a.
Objetos que carregam traços de posiçõ es do desejo que desconhecem algo que
poderia ser chamado de “determinaçõ es de gênero”. Mas vivemos em uma
metafísica tã o empobrecedora que descrever relaçõ es sexuais como algo que se
dá entre objetos parece alguma forma de degradaçã o das “pessoas” envolvidas,
de instrumentalizaçã o do outro, de “fetichismo” e coisas do gênero. Como se só
houvesse força de açã o e decisã o em “pessoas”, nã o em “objetos”. Toda uma
concepçã o jurídico-metafísica de atividade acaba assim por colonizar até mesmo
a forma de compreendermos afecçõ es. Há também um fetichismo da pessoa do
qual deveríamos saber nos livrar.
Assim, dizer que relaçõ es sexuais se dã o entre objetos significa,
concretamente, que ninguém deseja “mulheres” ou “homens”, mas deseja objetos
que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos. Objetos esses que nã o sã o
projeçõ es de fantasmas individuais. O corpo do Outro nunca é uma tela de
projeçã o. Ele é um espaço de encontro e nunca se erra um encontro efetivo,
sendo a marca de sua efetividade a força bruta de duraçã o. Se um encontro
ocorre é porque há objetos que circulam, e a ideia de circulaçã o é importante
aqui. Eles tem a capacidade de passar de um lado para o outro porque eles fazem
reverberar as histó rias dos desejos dos sujeitos, a histó ria de seus desejos
desejados. Uma hora eles se encontram de um lado, outra hora eles se encontram
de outro. E tal circulaçã o é a expressã o de que tais objetos nã o se fixam em
136
Ver, a este respeito, LACAN, Jacques; S XX, p. 131 na qual Lacan fala de uma relação de
reconhecimento no interior da qual a relação sexual cessa de não se inscrever.
“gêneros específicos”. Por isto, eles podem levar um “homem” ou uma “mulher” a
pontos de indistinçã o, eles podem inverter posiçõ es, eles podem permitir
composiçõ es heteró clitas as mais variadas.
Quando um juiz da corte de apelaçã o de Dresden, no século XIX, cujo
nome era Daniel Paul Schreber, tem um surto paranoico depois de imaginar que
seria bom ser uma mulher “no momento do coito”, ele demonstrou que apenas
um paranoico sentiria tal posiçã o como exterior a si. Só um paranoico entenderia
isso como algo tã o invasivo que lhe levaria a construir um delírio que integraria
tal corporeidade, tais objetos associados por ele ao gozo feminino, apenas à
condiçã o de uma modificaçã o alucinató ria de seu corpo tendo em vista a sua
pró pria transformaçã o em “a mulher de deus”. Fora da posiçã o paranoica,
estamos a todo momento fazendo tais passagens em nosso inconsciente (que é
onde os encontros afetivos realmente se dã o), tanto em um sentido quanto em
outro.
Dito isto, é fato que a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada
como processo de reaçõ es fó bicas contra tais movimentos, contra tal circulaçã o
de objetos. Ela pode assim consolidar disposiçõ es produtora das piores
violências e negaçõ es, pois violências nas quais se mistura destruiçã o de si e
incorporaçã o, no outro, do que se quer destruir. Mas tais discursividades
descrevem apenas uma tentativa desesperada e brutalizada de lidar com
impasses típicos dos que compreendem e vivenciam o desejo no nível de
“pessoas” e “indivíduos”. Nesse sentido, é bem prová vel que a melhor forma de
desativar tais discursos seja mostrando, cada vez mais, que eles nã o descrevem
sujeito algum, que eles descrevem uma forma de disciplina que cresce
exatamente no momento em que as sociedades começam a classificar sujeitos a
partir das pretensas escolhas sexuais de pessoas que eles seriam.
Falar de sexo
Aula 13
O nouveau roman
Sexo
In all Duras’s writings of the 1980s, relations between the sexes are of
vital importance, but they also prove to be intensely fraught and
precarious. In many instances, the prospect of union seems out of the
question from the outset; and for some of the partners even the
possibility of a shared present or future is excluded. To this extent, these
stories of incest, suicidal passion, male homosexuality, separation, or
divorce all display a prolonged and deepseated crisis affecting the inner
logic of sexual relations; and what Duras’s texts describe, rather than a
sequence of euphorically transgressive love idylls, is a series of sexual
relations that seem to be like so many failures of sexual relation138.
138
HILL, Leslie; Marguerite Duras: apocaliptic desires, p. 138
da pró pria ló gica interna do desejo que parecer vir os movimentos aberrantes
dos personagens:
Quand elle est couchée dans le champ, derrière l’hô tel où se trouvent
Tatiana et son amant, elle ne cherche pas à les voir. Elle dort. Elle dort
dans l’ombre d’autres personnes. Son bonheur est là . C’est un état de la
pensée. Elle est obligée d’inventer tous les instruments de son bonheur.
Le monde de Lol V. Stein est un monde cohérent, qui devient cohérent143.
A cena final
Quando Jacques Hold fizer enfim amor com Lol, isto depois dos dois
voltarem ao vazio do salã o onde ela fora abandonada pelo noivo há dez anos, ele
fará amor com alguém que se entrega na cama em meio a uma decomposiçã o. Lol
só pode estar presente na relaçã o sexual, ela só pode sexualizar seu corpo
“impenetrá vel” e opaco através de Tatiana. Por sua vez, Jacques Hold, o narrador,
só pode descrever o que se passa através de uma narrativa cada vez mais
fragmentada e instá vel, como quem está diante de algo em vias de se dissolver.
Esta confrontaçã o com um objeto que no amor se revela dilacerado entre uma
imagem que o unifica (vinda de uma outra) e uma opacidade que o traga,
opacidade que, segundo Lacan, celebra, “as nú pcias taciturnas da vida com o
objeto indescritível”, é talvez a figura mais pró xima do que podemos entender
por “travessia do fantasma”.
Lembremos ainda que personagens como Lol trazem uma característica
maior do nouveau roman. Eles perderam toda substancialidade, toda densidade
psicoló gica, todo enraizamento em contextos só cio-culturais. No caso de Lol, isto
a reduz a estar ligada apenas a uma cena que formaliza tal situaçã o existencial de
abandono: a cena do baile. Suas açõ es consistem em repetir tal cena (por
exemplo, dando um baile em sua pró pria casa e “raptando” Jacques Hold sob os
olhos de Tatiana) ou em imitar uma outra que ela procura tomar o lugar.
No entanto, ao invés de simplesmente levar a personagem a reconstruir
vínculos substanciais (por exemplo, fugindo com Jacques Hold para “reconstruir
a vida” de maneira mais “autêntica”), o romance prefere nos levar a este ponto
onde a perda de substancialidade demonstra seu conteú do de verdade, ou seja,
onde Hold depara-se com a situaçã o de precisar inventar uma maneira de
conviver com aquilo que nã o pode mais ser submetido à s amarras seguras da
identidade. Por isso, creio valer a penar demorar um pouco na cena final. Ei-la:
143
DURAS, Marguerite; Le dernier des métiers, Paris: seuil, p.
Lol sonha com um outro tempo em que a mesma coisa que vai ocorrer
ocorreria de modo diferente. De outro modo. Mil vezes. Em toda parte. Em
outra parte. Entre outros, milhares que, da mesma maneira que nó s,
sonham com esse tempo, obrigatoriamente. Esse sonho me contamina.
Sou obrigado a despi-la. Ela nã o o fará por si mesma. Está nua. Quem está
lá na cama? Quem, pensa ela?
Estirada, nã o se mexe. Está inquieta. Está imó vel, fica onde a coloquei.
Acompanha-me com os olhos, como um desconhecido, pelo quarto
quando, por minha vez, tiro a roupa. Quem é? A crise está aí. Foi nossa
situaçã o neste momento, neste quarto em que estamos só s, ela e eu, que a
desencadeou.
Nã o a contradigo.
— Vamos embora.
— Quem é?
— Temos de voltar.
Essa é a ú nica cena de sexo na qual encontraremos Lol. Ela começa com a
expectativa de que possa se abrir um “outro tempo” no qual “a mesma coisa que
vai ocorrer ocorreria de modo diferente”. Ou seja, como se tivéssemos enfim a
força bruta dos encontros que retiram sujeitos do horizonte de uma repetiçã o
fantasmá tica. Mas, entre dois amantas despidos, há o desencadeamento de uma
crise. Há o delírio de policiais a espreita, há a incerteza de quem está lá a seu
lado, há a escrita que se torna cada vez mais fragmentada.
E entã o há a cena de sexo, que nunca é diretamente descrita, que é sem
lirismo, que é como um vazio indescritível, sem adjetivos, uma sequência de
efeitos sem causa, mas que aparece como a confrontaçã o bruta com um ponto de
fuga. O corpo é inicialmente impenetrá vel, extenuante até o ponto que Hold pede
ajuda. De fato, ela ajuda. Algo ocorre, uma outra forma de arrebatamento. Mas
agora nã o mais o arrebatamento paralisante, e sim algo da ordem do que
provoca gritos, insultos, sú plicas, a desorientaçã o de quem procura, ao mesmo
tempo, fugir e se fazer capturar, até o momento de uma dupla nomeaçã o, quando
ela nomeia a si e a seu ponto de fuga, ao mesmo tempo. Como se houvesse aquilo
que só se nomeia através do deslizamento contínuo entre dois nomes pró prios.
E depois, eles acordam. Ou seja, houve o dormir juntos, o acalmar-se, que
também nã o se descreve, que é acolhido em silêncio. Depois do silêncio, há o
retorno, a tentativa de narrar, agora feita pelo pró prio amante que quer saber
como é a vida em casal de Lol. Ela fala, diz tudo o que ele quer saber, ela pode
dizer tudo, embora nada será dito no romance. Como se fosse apenas uma
possibilidade que nã o será usada, nunca, como quem descobre, ao mesmo tempo,
poder atravessar uma fronteira e nunc ter efetivamente tido o desejo de
atravessá -la.
Entã o eles voltam à mesma cena, com uma mudança substancial. A perda
mudou de lugar. “Senti o afastamento de Lol com uma grande dificuldade”, é o
que diz Jacques Hold. E nesse deslocamento da perda, nessa relaçã o com alguém
para quem ela pode ofertar a perda que lhe constituiu, uma outra funçã o do sexo
se desenha. Ela pode falar agora, mesmo que dessa fala exista apenas traços no
romance. Ele continuará a encontrar Tatiana, mas agora mais pró ximo da
devastaçã o que marcou Lol. E assim uma outra forma de falar de sexo apacerá :
nesse ponto entre despossessã o e deslumbramento, uma outra forma de falar de
sexo marcada por silêncios que nã o sã o censuras, por atrofias que nã o sã o
contençõ es, mas formas de ser raptado e arrebatado, entre a dor e o gozo.
Falar de sexo
Aula 14
Uma dessas inflexõ es pode ser vista através da consolidaçã o do que hoje
compreendemos por “teorias de gênero”. Uma de suas teó ricas mais
emblemá ticas é Judith Butler. Dentre a multiplicidade de questõ es que tal teoria
levanta, eu gostaria de partir de um ponto específico, a saber, a maneira com ela
pensa as relaçõ es entre sexo, ética e política. Há uma importante discussã o sobre
estruturas de reconhecimento que perpassa tal reflexã o e ela tem consequências
para a configuraçã o dos embates políticos.
Por exemplo, partamos dessa ideia de que nã o se tratava de entender
apenas como sujeitos sã o sujeitados à s normas sociais e completamente
constituídos por elas. Pois de nada adiantaria abandonarmos uma noçã o
essencialista de natureza para cairmos em uma visã o identitá ria de
performatividade social. Por isto, pelas mã os de Butler, a teoria de gênero nã o
será apenas uma teoria da produçã o de identidades. Ela será uma astuta teoria
de como, através da experiência de algo no interior da experiência sexual que
nã o se submete integralmente à s normas e identidades, descubro que ter um
gênero é um “modo de ser despossuido”,145 de abrir o desejo para aquilo que me
desfaz a partir da relaçã o ao outro. Daí uma afirmaçã o como:
Ou ainda:
Poder e melancolia
149
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. p. 185.
150
Sobre os usos e críticas de Teresa de Lauretis a respeito do termo “queer”, ver DE LAURETIS,
Teresa. The Practice of Love: Lesbian Sexuality and Perverse Desire. Indiana University Press, 1994.
151
BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. p. 2.
submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos
clá ssicos de coerçã o, pois violência de uma regulaçã o social que internaliza uma
clivagem, mas clivagem cuja ú nica funçã o é levar o eu a acusar si mesmo em sua
pró pria vulnerabilidade. Desta forma, a melancolia aparece como uma das
mú ltiplas formas, mas a mais paralisante, de aceitar ser habitado por um
discurso que, ao mesmo tempo, nã o é meu mas me constitui. O poder nunca
conseguiria se impor sob a forma da sujeiçã o se nã o se apropriasse de um
princípio de abertura que constitui todo e qualquer sujeito.
O conceito de melancolia utilizado por Judith Butler vem de Freud. Neste
ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia”, é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais
importantes: The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. Butler vê, na
descriçã o freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral de constituiçã o de
identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a identificaçã o
de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido é
internalizado como uma proibiçã o”.152 Desta forma, uma teoria da constituiçã o
do Eu aparece como fundamento para reflexõ es éticas e políticas.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em
sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexã o
mais ampla sobre as relaçõ es amorosas. Freud sabe que o amor nã o é apenas o
nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos
de formaçã o da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as
verdadeiras relaçõ es amorosas colocam em circulaçã o dinâ micas de formaçã o da
identidade, já que tais relaçõ es fornecem o modelo elementar de laços sociais
capazes de socializar o desejo, de produzir as condiçõ es para o seu
reconhecimento. Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a
fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Por outro lado, isto nos explica porque Butler dirá : “nenhum sujeito emerge sem
um vínculo passional com esses com os quais ele ou ela é fundamentalmente
dependente”.153
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo: esta é,
para Freud, a base da experiência que vincula luto e melancolia. No entanto, o
melancó lico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do
sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse
contra si pró prio, através de autorrecriminaçõ es e acusaçõ es. Há uma
“reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como
objeto, clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como
se houvesse uma base moral para a reflexividade, tó pico que Butler encontrará
em autores como Hegel e Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma
violência em toda reflexividade. Uma reflexividade que acaba por fundar a
pró pria experiência da vida psíquica, de um espaço interior no qual, como dizia
Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura de topografias
psíquicas. Tal violência, que encontra em certos regimes de discurso ético sua
expressã o mais bem-acabada, será o ponto de partida deste Relatar a si mesmo.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade,
uma identificaçã o de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo
se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
152
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. p. 80.
153
BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. . p. 7.
melancolia fosse a continuaçã o desesperada de um amor que nã o pode lidar com
a situaçã o da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo
colocar em questã o o pró prio fundamento da minha identidade. Mais fá cil
mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusaçã o patoló gica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí
uma afirmaçã o como: “Freud identifica consciência elevada e autorreprimendas
como signos da melancolia com um luto incompleto. A negaçã o de certas formas
de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito assigna um luto
incompleto e nã o resolvido”.154 Assim, a sujeiçã o do desejo pode se transformar
em desejo por sujeiçã o. Butler insiste como tal vínculo melancó lico a um objeto
perdido funda a pró pria identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma
que as identidades em geral sã o constituídas.
Quando o luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao
impulso de resolver isto rapidamente, bani-lo em nome de uma açã o
investida com o poder de restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua
antiga ordem ou ainda revigorar a fantasia de que o mundo estava
anteriormente ordenado.160
sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primá ria, uma angú stia,
sem dú vida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados,
reivindicados, vinculados ao que nã o somos, mas também de sermos
movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nó s mesmos em outro lugar e,
assim, abandonamos o “eu” autossuficiente como um tipo de posse.162
162
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.
171.
Falar de sexo
Aula 15
sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primá ria, uma angú stia,
sem dú vida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados,
reivindicados, vinculados ao que nã o somos, mas também de sermos
163
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004, p. 25.
movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nó s mesmos em outro lugar e,
assim, abandonarmos o “eu” autossuficiente como um tipo de posse.164
A era farmacopornográfica
Com afirmaçõ es dessa natureza, Preciado procura descrever uma histó ria
material de processos de produçã o e controle de subjetividades a partir da
normatizaçã o de suas sexualidades. Tal histó ria articula necropolítica e
biopolítica, pois ela nasce com as guerras mundiais. Na verdade, as guerras
aparecem como: “laborató rios privilegiados para a experimentaçã o em escala
global de drogas pesadas, estupros em massa, serviços sexuais obrigató rios nã o
remunerados e implementaçã o de programa de extermínio tecnobiopolítico”166.
Ou seja, laborató rio para o aprofundamento de gestã o libidinal das populaçõ es e
normatizaçã o. Normatizaçã o essa que passará pela descriçã o do
aprofundamento tecnoló gico do controle sobre os corpos. A esse campo
tecnoló gico de intervençã o nos corpos, Preciado dará o nome de
“farmacopornografia”. O termo alude a uma junçã o entre regulaçã o
farmacoló gica dos corpos e incitaçã o de desejos através do desenvolvimento
exponencial da indú stria pornográ fica. Uma espécie de sexdesign, que passa pela
invençã o da pílula anticoncepcional (as moléculas farmacêuticas mais usadas da
histó ria da humanidade) e pela transformaçã o da indú stria pornográ fica na
maior produtora de imagens de nosso sistema midiá tico, aparece como um dos
eixos fundamentais de sujeiçã o social. Pois, dentro dessa perspectiva, a
pornografia é sobretudo uma forma de vigilâ ncia e controle dos afetos e corpos.
164
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.
171.
165
PRECIADO, Paul; Testo Junkie p. 27
166
Idem, p. 331
Consolida-se assim uma série de novas tecnologias do corpo e da representaçã o
que permitem o aprofundamento de processos de controle que nã o se colocam
do exterior, mas que se diluem no pró prio corpo, criando o que poderíamos
chamar de “somatécnicas”. Daí colocaçõ es como:
167
Idem, p. 36
168
Idem, p. 86
169
Idem, p. 42
Essa alta rentabilizaçã o com mínimo de investimento, esse modelo de
empregabilidade no qual os fornecedores de trabalho aparecem como
empreendedores de si, sem vínculo algum ao que um dia foi chamado de
“emprego” forneceria um modelo para todas as outras formas de produçã o sob o
capitalismo avançado.
No entanto, as raízes dessa sexopolítica nã o devem ser procuradas nas
modificaçõ es tecnoló gicas do capitalismo a partir da Segunda Guerra, com sua
generalizaçã o de prá ticas de intervençã o de corpos submetidos à guerra para
toda a populaçã o. Na verdade, Preciado segue Foucault e define o século XIX e
sua consolidaçã o de uma clínica do sexual como momento decisivo para o
desenvolvimento de formas sociais de controle e disciplina que passam pela
regulagem do sexual. A esse respeito, Preciado lembra dos processos de
histerizaçã o do corpo feminino, de desenvolvimento do higienismo com sua
pedagogia sexual em relaçã o as crianças, de implantaçã o das perversõ es e de
regulaçã o das condutas de procriaçã o.
Dentro desses processos, o eixo fundamental é dado pelo fortalecimento
da heteronormatividade com toda a patologizaçã o dirigida aos comportamentos
ditos desviantes.
Política do hackeamento
170
Idem, p. 148
sistemas de implicaçã o que poderiam definir um espaço, imediatamente efetivo,
de açã o política ao alcance de todo indivíduo:
Dessa forma, configura-se uma prá tica política que acaba por levar as
lutas sociais a um espaço que, até entã o, era ocupado pela clínica, a saber, o
espaço da açã o sobre si a partir dos deslocamentos e apropriaçõ es operadas
sobre có digos e dinâ micas criadas inicialmente para o aprofundamento da
sujeiçã o social.
173
Idem, p. 288
174
Idem, p. 357
Falar de sexo
Aula 16
Essa consciência de que somos o lugar no qual opera o gesto violento de recusa
de nó s mesmos perpassa, principalmente, a forma de seu cinema ou, ainda,
perpassa a relaçã o de Cronenberg com o cinema. Aquilo que é apresentado na
dimensã o do conceito também se realiza nas mú ltiplas dimensõ es da forma. Pois
sabemos como, em larga medida, Cronenberg passou à histó ria do cinema como
alguém que levou ao extremo o que poderíamos chamar de utilização deslocada
das formas. A grande maioria de seus filmes desenvolve-se forçando os limites
das formas estabelecidas pela tradiçã o da histó ria do cinema. Eles se aproveitam
de estruturas narrativas desgastadas de gêneros, como o horror, o filme de açã o
ou a ficçã o-científica, a fim de perverter suas referências centrais. Como diz o
pró prio Cronenberg: "Eu ‘protegi’ meus filmes através do gênero ".
Neste sentido, o melhor exemplo continua sendo A mosca:
um remake aparentemente banal de um dos clá ssicos do gênero e que se
transforma na histó ria da lenta agonia da perda de identidade através da
mutaçã o do corpo, impulsionada pela emergência de um gozo que se desdobra
nos limiares da confusã o entre humanidade e animalidade. No filme,
acompanhamos o cientista Seth Brundle a começar com o desejo de
desmaterializar o corpo e teletransporta-lo. Esse desejo de desmaterializaçã o
será o disparador de um processo no qual vemos o protagonista ir da euforia do
encontro com um gozo nunca visto até a consciência desse gozo ser
acompanhado por uma contínua decomposiçã o de si e de sua expulsã o do mundo
dos humanos. O corpo que outrora parecia poder ser desmaterializado desnuda-
se em seu devir animal bruto. Mais uma vez, nã o restará outra coisa que o
suicídio. Um desconhecido filme de 1979, Chromosome III/ The Brood, também
leva esta ló gica ao extremo. Um psiquiatra faz com que seus pacientes somatizem
suas raivas e frustraçõ es. Nola, que acaba de se divorciar, vai mais longe e dá a
luz a uma série de pequenos monstros assassinos que a vingam de seus
familiares. Com este argumento de filme tipo B, Cronenberg cria uma espécie de
Medeia produzida em laborató rio que revela, na maternidade, uma forma bruta
de horror.
Como lembrará o crítico de cinema Serge Grü nberg, com Cronenberg
entramos em um momento da histó ria do cinema na qual a substâ ncia do que era
o “filme B” se torna, por razõ es comerciais, o material dominante175. Esses ditos
filmes B (terror, pornografia, ficçã o científica) parecem a transposiçã o mais
direta ou, se quisermos, uma intervençã o industrial mais direta no circuito
libidinal dos sujeitos. Se a nouvelle vague se caracterizou, entre outras coisas,
pela elaboraçã o a partir dos clichês do cinema de Hollywood (A bout de souffle,
de Godard, é um exemplo privilegiado nesse sentido), tudo se passa como se
Cronenberg representasse uma operaçã o que vai mais baixo, que capta o
subterrâ neo da produçã o cinematográ fica. Subterrâ neo que é, na verdade, o eixo
da produçã o cinematográ fica como negó cio. Para se ter uma ideia, segundo
dados da WebRoot, 68 milhõ es de procuras por dia sã o feitas apenas nos EUA
para acessar filmes pornográ ficos. Uma indú stria que mobiliza U$ 97 bilhõ es por
ano. A título de comparaçã o, o maior lucro fornecido por um filme na histó ria do
cinema vem de Avengers: Endgame e Avatar com U$ 2,7 bilhõ es.
Assim, o processo de criaçã o de Cronenberg consistirá em aparentemente
preservar a linguagem cinematográ fica, utilizando-se de elementos vindos
diretamente dos setores mais industrializados e fetichizados de sua produçã o.
eXitenZ se apropria do universo dos videogames, Videodrome se apropria dos
snuff-movies e coloca Debbie Harry, a cantora do Blondie, como protagonista
sadomasoquista. Vá rios sã o os filmes que partem do universo do cinema de
terror. Quem viu Rabid talvez se lembre da atriz principal, Marilyn Chambers: a
mesma das orgias de Atrás da porta verde, o primeiro sucesso de bilheteria,
juntamente com Garganta Profunda, da entã o emergente indú stria pornográ fica.
Mas essa preservaçã o visa, na verdade, a exposiçã o de como a linguagem
cinematográ fica está doente. Daí essa ideia de Grü nberg de dizer que, com
Cronenberg, encontramos o “grande cinema doente”176. Nesse sentido, vale a
175
GRUNBERG, Serge ; David Cronenberg : Entretiens avec Serge Grunberg, Paris : Editions du
Cahiers du Cinema, 2000, p. 32
176
idem, p. 35
pena lembrar de Rabid, de 1977 porque ele é, acima de tudo, uma espécie de
vingança, de reversã o cinematográ fica. Anos antes, Chambers tinha sido
sequestrada, levada a um clube chamado Porta Verde, para terminar livrando-se
de suas resistências e participando de uma orgia na qual ela era penetrada por
todos. Em Rabid, ela passa por uma cirurgia que acabará por lhe fornecer uma
espécie de pênis violento que sai de uma cavidade em sua axila e penetra o corpo
de todos e todas, inoculando uma sede incontrolá vel de sangue. “A” atriz porno
agora inverte os papéis, sai de sua cena original e, enquanto goza, contamina a
todxs com o descontrole que alcança o canibalismo. Como se a industrializaçã o
global do sexo produzida pelo advento da indú stria pornográ fica hardcore no
início dos anos setenta, como se essa dessublimaçã o repressiva que agora nã o
precisava mais se esconder em salas escuras, fosse necessariamente produzir
algo que as imagens fetichizadas nã o seriam mais capazes de controlar.
Nesse sentido, nã o é um acaso que o ponto mais sensível dessa gramá tica
industrial de nossos desejo diga respeito exatamente a sexualidade e que seja
exatamente por esse caminho que as anomalias começam e contagiam. Um pouco
como os protagonistas de Gêmeos, que sã o empurrados para fora de seus
circuitos controlados de médicos ginecologistas e pesquisadores do corpo
feminino devido ao encontro com Claire Niveau, uma mulher que tem uma
anomalia rara no ú tero e uma sexualidade sadomasoquista explosiva. Esse
encontro modifica o sistema de partilha e as distinçõ es de personalidade entre os
dois irmã os gêmeos, leva-os a uma luta entre o descontrole de si e a tentativa
violenta de reinstaurar o controle, nem que seja remodelando o corpo feminino
através de instrumentos cirú rgicos para mulheres mutantes. Ao final, os dois
irmã os se decompõ em e se suicidam.
Lembremo-nos como nesses filmes nã o há espaço para o erotismo, com
seus acordos tá citos de procura por um prazer cada vez mais completo e
harmonioso. O prazer se submete ao cá lculo, ao ajuste, à enunciaçã o consciente e
o cuidado de si. O que temos aqui é, ao contrá rio, algo que sempre acaba por
quebrar tal ordem econô mica. Na verdade, nã o há espaço sequer para algo
parecido à pornografia com sua funcionalizaçã o e ritualizaçã o das imagens do
sexual. Fato que Jacques Rancière entendeu muito bem ao dizer, a respeito de
Crash:
Ao negar o ró tulo pornográ fico aplicado a seu filme, Cronenberg opõ e suas
cenas sexuais à s habituais histó rias de amor e de seduçã o do cinema, que
no fundo, diz ele, sã o cenas de estupro. Poderíamos responder que a
histó ria de amor tem isto, de fato, em comum com a crueldade sá dica, que
ela está sempre, por menos que seja, fundada na desigualdade de dois
desejos. O que define ao contrá rio a cena pornográ fica é a pressuposiçã o
de que os atos de um sã o precisamente o objeto do desejo do outro. Assim,
a pornografia ilustra à sua maneira a versã o liberal do contrato social. Isso
se dá porque ela desenvolve seu império visual ao ritmo da evoluçã o do
neoliberalismo consensual177.
177
RANCIÈRE, Jacques; “O avião em terra firme”, Folha de São Paulo, 26/01/1997
Há uma historieta sintomá tica a este respeito. No começo de sua carreira,
Cronenberg precisava de dinheiro e resolveu fazer um teste para filmar filmes
eró ticos. Tempos depois, o produtor o chama no canto e diz, meio sem graça:
"Nó s sabemos que você tem um senso muito desenvolvido da sexualidade, só nã o
sabemos de que tipo ele é". O que nã o poderia ser diferente, já que vemos, na
verdade, um gozo obsceno, mas em um sentido radicalmente distinto de
“obscenidade”. Nã o nos sentido pretensamente moral, mas no sentido visual:
algo fora da cena, algo que nã o compõ e uma cena, algo que quebra essa “versã o
liberal do contrato social” com sua economia da produçã o. Algo que, na verdade,
é profundamente improdutivo, empurra sujeitos para o campo da anti-produçã o.
De certa forma, tal colapso ocorre por que, como dirá Cronenberg em uma
entrevista dedicada a divulgaçã o de Crash: “sexo é um força potente sem
propó sito”. Por ser habitado por essa força potente sem propó sito, já que desde
Freud sabemos que sexo só se submete a imperativos de reproduçã o depois de
um longo processo através do qual a polimorfia infantil é organizada a partir do
primado genital, os corpos serã o insubmissos. Pois nã o há lugar possível de
existência para algo sem propó sito em uma sociedade marcada pela
funcionalizaçã o extensiva de tudo, de todos e todas. Mas a questõ es que talvez
fique é: para onde irã o os corpos insubmissos? Onde eles poderã o habitar?
Colisão e Capital
Quando Crash saiu, o soció logo Robert Kurz escreveu um pequeno texto
polêmico onde tentava desqualificar o filme como se estivéssemos diante de uma
estetizaçã o fetichista do fetichismo da mercadoria, mas uma estetizaçã o marcada
pela reversã o da euforia em imposiçã o melancó lica do acidente. Daí afirmaçõ es
como:
178
KURZ, Robert; “O oco do fetichismo”, In: Os últimos combates, Petrópolis: Vozes, 1998
179
Ver a esse respeito, por exemplo, a interpretação sobre Death in America, de Andy Warhol, feita por
FOSTER, Hal; The return of the real, MIT Press, 1997
imagens da vida liberada dos resultados da colonizaçã o da imaginaçã o social
pelos processos de reproduçã o material do capitalismo. Imagens essas que
teriam, por magia, a capacidade de se preservar da contaminaçã o pelo fetiche em
uma era exatamente marcada pela sua generalizaçã o implacá vel.
Neste contexto, operaçõ es como essas mobilizadas por Cronenberg sã o
profundamente realistas e materialistas. Certamente, ela nã o segue uma outra
via possível: essa marcada pelo empuxo brutal à incomunicabilidade e
desfibramento. Mas ela é realista ao expor que a pura circulaçã o do fetiche nã o é
capaz de sustentar-se em seu pró prio circuito, que ela é obrigada a mover
processos que podem produzir colisõ es, podem transformar colisõ es na forma
bruta de um real, que como lembra Hal Foster a respeito de certos caminhos da
arte contemporâ nea, será a expressã o de um “realismo traumá tico”.
Quando J-G Ballard escreveu Crash, ele afirmava querer inventar uma
nova forma de pornografia. Isto deve ser compreendido como uma nova forma
de escrita da visibilidade exaustiva do desejo. Esta visibilidade exaustiva é a
matéria de Crash. Basta analisar a forma narrativa de um dos primeiros
pará grafos do romance, que se inicia pela fixaçã o de Vaughan por um acidente
automobilístico que teria ocorrido com Elisabeth Taylor:
Notemos o ritmo da descriçã o., sem pausas, uma ú nica frase ocupando todo o
pará grafo. Como se fosse questã o de criar um fluxo contínuo de imagens que
passam dos corpos mortos ao carro reduzido à condiçã o de ferragem. Como se
fosse questã o de um tempo parado pró prio à s colisõ es, essas mesmas colisõ es
que parecem paralisar os fluxos, quebrar os movimentos e produzir uma nova
forma, construída a partir de feridas e impactos. Percebamos essa escrita que
procura fazer do acidente alguma forma possível de encontro entre má quina e
humano. Nã o mais o encontro da má quina como extensã o das habilidades do
humanos, como promessa de desenvolvimento e progresso através do
fortalecimento da capacidade humana em intervir em um mundo desencantado a
partir das exigências da produçã o. O que temos é a “colisã o”, o crash que é o
crash do choque entre carros, mas é também o crash da bolsa de valores e do
colapso da economia.
Mas tentemos levar em conta que crash é exatamente este. Em um texto
para a revista automobilística Drive (Autopia, 1971), Ballard afirma que a
imagem fundamental do século XX nã o é o homem na Lua ou Churchill fazendo o
180
BALLARD, James; Crash, Londres; Fourth Estate, 2009, p. 2
V de vitó ria apó s o fim da Segunda Guerra, mas “um homem em um carro
motorizado, dirigindo em uma auto-estrada de concreto para algum destino
desconhecido”181. A auto-estrada como a pura expressã o do século, com toda sua
velocidade e violência. O que nã o poderia ser diferente, já que se trata de
compreender que o ponto fundamental de uma sociedade é dado pela maneira
com que ela organiza os fluxos e movimentos, a maneira com que ela opera a
circulaçã o. Ou seja, mais importante do que saber o que sociedades trocam, é
saber como elas trocam, em que velocidade, em qual ritmo e intensidade. E o
ritmo automotivo é o ritmo da fricçã o e da velocidade, da aproximaçã o dos
pontos no espaço através de um fluxo aparentemente desimpedido que, em
vá rios pontos, produz colisõ es.
Dessa forma, através do automó vel, Ballard forneceu uma bela metá fora
de uma sociedade fascinada pelo universo da circulaçã o. Tal como os
automó veis, as coisas no interior da vida social, os objetos de nosso desejo
circulam de maneira cada vez mais rá pida até se chocarem. Eles vã o se
equivalendo e criando uma estranha zona de indiferença, de des-identidade, até
que o choque aparece com a força das crises redentoras. Como se o choque fosse
a ú nica coisa capaz de quebrar a indiferença da circulaçã o. A sociedade do
automó vel é a melhor metá fora de uma sociedade para a qual a circulaçã o é o
fato social total. Em pleno momento da ascensã o do automó vel, das cidades
concebidas para o fluxo desimpedido (como Brasília e Los Angeles), momento
anterior a primeira grande crise do petró leo, em plena construçã o de paisagens
automotivas (já que a velocidade constró i paisagens, ela apaga contornos e cria
relaçõ es), Ballard resolve voltar sua atençã o para o que para o fluxo, para o que
congela os corpos em uma cena fria e clínica, como essa que descreve a imagem
que James Ballard (o protagonista do romance) vê logo apó s seu primeiro
acidente de carro, no qual ele se choca com o carro da Dra. Remigton:
Tudo o que eu pude ver foi a junçã o inusual de suas coxas, abrindo-se
para mim em seu jeito deformado. Nã o foi a sexualidade da posiçã o que
ficou em minha cabeça, mas a estilizaçã o dos eventos terríveis que nos
envolveram, os extremos de dor e violência ritualizados nesse gesto de
suas pernas, como a pirueta exagerada de uma garota mentalmente
retardada que uma vez vi representando uma peça natalina em uma
instituiçã o182.
A descriçã o é quase clínica, sem exposiçõ es psicoló gicas de sensaçõ es, a nã o ser
a analogia com algo que, inicialmente, está fora do universo dos investimentos
libidinais, a saber uma pirueta de uma garota com transtorno mental. Como diz o
protagonista, o que lhe faz fixar na cena nã o é a sexualidade da cena, mas a
possibilidade de estilizaçã o do que parece avesso a toda estilizaçã o.
Mas essa frieza é apenas uma forma segunda de recuperar uma
sexualidade que parece lutar para ir em outra direçã o, estranha a direçã o dos
fluxos de libido organizados pelos processos de gestã o de nosso gozo. Pois é uma
sexualidade que procura os pontos de colapso, que procura as colisõ es. Ou que
procura fazer o tempo do sexual quebrar a circulaçã o perfeita da sociedade dos
serviços. Como esse assédio feito por James Ballard com uma aeromoça no
181
Idem, p. 245
182
BALLARD, Crash, p. 14
aeroporto, impulsionado pela forma de suas saias e a fuselagem dos aviõ es.
Sexualidade que parece querer voltar para essas cenas nas quais a má quina, a
tecnologia nã o está mais a serviço dos humanos, mas a serviço do que parece nã o
poder ser reproduzido.