Você está na página 1de 131

Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Falar de sexo:
Clínica, política, estética

Curso integral

Prof. Vladimir Safatle


Primeiro semestre de 2021
Falar de sexo:
Aula 1

Como vocês sabem, o título desse curso é “Falar de sexo: clínica, política,
estética”. E como vocês sabem, estamos no Brasil, no ano de 2021. Nã o faria
sentido começar esse curso sem levar em conta as coordenadas histó ricas que
envolvem sua enunciaçã o. Até agora, em quase vinte anos de docência nessa
universidade, sempre insisti na importâ ncia de nunca tematizar diretamente as
vicissitudes do contexto só cio-histó rico que nos envolve. Parecia-me
fundamental criar uma certa barreira entre as discussõ es políticas fora da sala de
aula e o espaço de reflexã o e debate que aqui deve imperar. Em larga medida,
acho que esse princípio deve continuar a ser respeitado como condiçã o de
respeito a vocês, ou seja, respeito a capacidade que vocês tem de estabelecer, por
vocês mesmos, relaçõ es com situaçõ es atuais e definir regimes pró prios de
instrumentalizaçã o de saberes. Nã o creio realmente que caiba a um professor
fazer isso no lugar de vocês, muito menos de forma direta.
Mas como vocês viram, eu usei um condicionante na frase anterior e nã o
pude evitar de falar “em larga medida”. Porque acredito que vale a pena, nesse
momento atual com toda sua carga dramá tica, ao menos contextualizar as razõ es
da decisã o que me levou a discutir nossas formas de “falar de sexo”. Pois seria
impossível nã o lembrar de algo que todos tem percebido de forma cada vez mais
explícita nos ú ltimos anos, a saber, que um dos eixos fundamentais do poder é a
tentativa de controlar as formas de falar de sexo. Nã o há projeto autoritá rio que
nã o tenha, como espaço fundamental de sua expressã o, a regulagem dos corpos,
de seus regimes de visibilidade, a definiçã o das formas de aliança, os circuitos de
afetos e desejos. Sexo sempre foi, e sempre será uma das questõ es centrais da
vida social e da esfera do político. Pois poder é mobilizaçã o de libido, é
constituiçã o de adesã o a partir de processos de identificaçã o. Embora use
continuamente a força e a violência, nenhum poder se sustenta apenas sob a
força e violência. Ele se sustenta a partir do desejo. Ele precisa do desejo para
impulsionar os processos de reproduçã o material da vida social. Nossa servidã o
é libidinalmente construída e investida.
Por isso, nã o se trata de afirmar que a ascensã o de regimes autoritá rios
seja acompanhada de discursos repressivos sobre o sexual. Isso nunca ocorreu
dessa forma. Todo poder fala de sexo, de forma insistente e compulsiva, com a
esperança de que essa fala defina uma partilha entre as formas da experiência
libidinal que podem circular, que devem ser visíveis e aquelas que nã o podem.
Pois falar de sexo é nã o apenas constituir socialmente objetos de desejo, mas
principalmente falar de instituiçõ es, de hierarquias, de normas sociais, de
sujeiçõ es. Lembrem por exemplo de alguém como Margareth Thatcher a dizer:
“Nã o existe esse negó cio de sociedade. Existem indivíduos e famílias”. Alguém
poderia se perguntar: “mas o que a família está fazendo nessa frase?”. Pois há
certa ló gica em dizer que nã o existiria a sociedade como corpo anterior aos
indivíduos, existiriam apenas indivíduos em associaçã o e julgamento de açõ es a
partir de seus sistemas particulares de interesse. Essa é a fantasia liberal por
excelência. A fantasia de que a sociedade é, na verdade, o sistema de relaçõ es
entre elementos sem relaçõ es imanentes entre si.
Mas por que entã o associar a “família”? Por que associá -la a nã o ser para
naturaliza formas de hierarquia de gênero, de transmissã o e filiaçã o, de
autoridade, de divisã o social de trabalho, de individualizaçã o? Formas que
deverã o ser desejá veis, que deveremos querer reproduzir, que deveremos ser
capazes de investir libidinalmente, organizar nossas fantasias e desejos a partir
de seu nú cleo. Margareth poderia nã o saber, mas ela estava falando de sexo, de
como sexo deve ser feito e, principalmente, contra quem ele deve ser feito. Pois
quando se fala de sexo, essa é uma questã o fundamental que definirá o sentido
de tais falas: contra quem tais proposiçõ es sã o enunciadas? Contra quem é
enunciada a afirmaçã o de que existiria apenas indivíduos e famílias, contra que
potencialidades, contra que criaçã o possível, o que se quer parar dizendo isto?
No campo do sexual, nenhum enunciado é meramente descritivo. Todo
enunciado é agonístico.
Entã o, nã o será surpresa para ninguém que, neste exato momento
histó rico que é o nosso, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma
jocosa, sarcá stica, ameaçadora, apocalíptica. Ou seja, talvez nã o seja estranho que
ele fale de uma maneira muito similar à quela que os alemã es ouviam, na década
de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversõ es
contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversõ es.
Aversõ es produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo:

Nossa mais alta tarefa consistirá em facilitar a formaçã o de uma família


aos dois companheiros ligados pela vida. Sua destruiçã o definitiva
equivalerá a supressã o de toda humanidade superior. Mesmo concedendo
à mulher um vasto campo de atividade , nunca deveremos perder de vista
que o objetivo ú ltimo de uma evoluçã o verdadeiramente orgâ nica e ló gica
é a formaçã o da família. Ela é a menor unidade mas também a mais
importante de toda estrutura do Estado (...)Como o bolchevismo quer
aniquilar toda individualidade, ele destró i a família, que imprime ao
homem sempre uma marca individual. É por isto que ele detesta todas as
aspiraçõ es nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-os dó ceis ...
Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serã o reduzidas a nada
enquanto restar no coraçã o do homem uma centelha de religiã o, pois é na
religiã o que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relaçã o ao
mundo ambiente1.

Esse era um texto do Partido Nazista alemã o que concorria à eleiçã o de


1932. Religiã o, família, liberdade individual, luta contra a homogeneizaçã o.: tudo
isso em nome de uma sexualidade que assuma “lugares naturais”, que nã o
1
Idem, p. 192
perverta as formas sociais orgâ nicas da evoluçã o, a ló gica do existente, em suma,
toda humanidade superior. Essa era, como dizia o panfleto, “nossa mais alta
tarefa”. Uma tarefa feita contra um bolchevismo que, de fato, ao menos entre
1917 e 1924, tinha procurado questionar os sistema de trabalhos e exploraçã o
no interior da família burguesa, fazendo de tarefas privadas tarefas que
deveriam ser de responsabilidade do poder pú blico, que tinha lutado para
modificar a estrutura das relaçõ es de gênero, compreendendo que a igualdade
social exige fortalecimento do reconhecimento da plasticidade libidinal dos
sujeitos, facilitado os divó rcios, legalizando o aborto, descriminalizando relaçõ es
homoafetivas, criando pensõ es mesmo para os ditos filhos ilegítimos. Alexandra
Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que, no comunismo:
“o ato sexual seja algo tã o simples quanto beber um copo d’á gua”.
Tenhamos isso em mente quando nos perguntarmos porque, nesse
momento, talvez uma das melhores coisas que a universidade pode fazer é falar
de sexo, porque nessa momento, uma das mais importantes formas de luta passe,
exatamente, por falar de sexo. Mas falar de uma forma bastante específica, na
esperança de que exista ao menos uma forma de falar que faça do sexual um
motor de emancipaçã o social.

Sexo e poder

No entanto, antes de começar esse trajeto, talvez seja o caso de lembrar de um


certo paradoxo. Pois há um livro sobre a histó ria da sexualidade que começa por
nos lembrar do paradoxo de uma sociedade (no caso, a nossa) que, mesmo
acreditando ser marcada por inú meros interditos, censuras e repressõ es, nã o
cansa de falar de sexo. Esse livro marcou época, entre outras coisas, por insistir
que nã o deveríamos partir de uma aná lise de como reprimimos o que é da
ordem do sexual, mas como falamos, de forma reiterada e insistente, daquilo que
dizemos reprimido. “Trata-se de interrogar o caso de uma sociedade que, desde
mais de um século, fustiga de maneira barulhenta sua hipocrisia, fala com
prolixidade de seu pró prio silêncio, anima-se a detalhar aquilo que ela nã o diz,
denuncia os poderes que ela exerce e promete liberar-se de leis que a fazem
funcionar”2.
Essa questã o de método partia de um princípio maior que consistia em
compreender como sociedades organizavam suas relaçõ es entre sujeitos,
definiam o uso e circulaçã o dos corpos, perpetuavam estruturas de poder,
legitimavam prá ticas de intervençã o a partir de determinaçã o das formas
possíveis de falar de sexo, e nã o exatamente através de seu silenciamento
compulsivo. Com isto em vista, tratava-se de lembrar como, a partir de meados
do século XIX, as ditas sociedades ocidentais conhecerã o uma modificaçã o
estrutural nas formas de falar de sexo. Uma modificaçã o da qual ainda seríamos
legatá rios, que se desdobrou de forma lenta e tensa. Tratava-se do advento de
um discurso clínico sobre o sexual. Lembremos mais uma vez dessa passagem
arquiconhecida:

Há historicamente dois procedimentos para produzir a verdade do sexo.


De um lado, as sociedades (e elas sã o numerosas: a China, o Japã o, a índia,
Roma, as sociedades á rabo-muçulmanas) que se dotaram de uma ars
2
FOUCAULT, Histoire de la sexualité I, p. 16
erótica. Na arte eró tica, a verdade é extraída do pró prio prazer, tomado
como prá tico e recolhido como experiência. Nã o é em relaçã o a uma lei
absoluta do permitido e do proibido, nã o é em absoluto por um critério de
utilidade que o prazer é levado em conta (...) Nossa civilizaçã o, ao menos
sob um primeiro ponto de vista, nã o tem uma ars erótica. No entanto, ele é
a ú nica a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, ao ter desenvolvido no
decorrer dos séculos procedimentos que se ordenam essencialmente a
uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciaçõ es e
ao segredo magistral: trata-se da confissã o3.

A colocaçã o é clara. Em sociedade outras que as ocidentais haveria um


falar sobre sexo marcado pela singularizaçã o de prá ticas e experiências que
deveríamos chamar de “ars erotica”. Essa singularizaçã o nã o se regularia a partir
da conformidade a uma legislaçã o de cará ter homogêneo e universalizante. Tal
inexistência de uma ars erotica entre nó s pode ser explicada pela presença de um
elemento no conjunto descrito por Foucault que destoa, a saber, Roma. A
estratégia é clara: o cristianismo, com sua procura singular pela transcendência,
com seu dualismo e posterior problematizaçã o moral do corpo, com sua junçã o
entre sexual e confissã o, marcou entre nó s nossas formas de falar de sexo. A
Roma pagã , assim como a Grécia, ainda estaria no interior de um regime
discursivo que continuaria a resistir por mais tempo em sociedades ainda nã o
completamente submetida ao colonialismo ocidental.
Mas se o ocidente nã o conheceria uma ars erotica, ele conheceria uma
ciência da sexualidade, ou seja, ele teria visto a emergência de um discurso
clínico sobre o sexual. Esse discurso, e afinal sua origem nã o poderia nos
enganar, se construçã o no interior de um campo no qual se articulavam medicina
e moral. Como dirá Krafft-Ebing em um tratado de grande influência no século
XIX sobre as perversõ es: “o sentimento sexual é a raiz de toda ética e, sem
dú vida, do esteticismo e religiã o”4. Até porque:

A tarefa, quase infinita de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a um


outro, tantas vezes quanto possível, tudo o que concerne o jogo dos
prazeres, sensaçõ es e pensamentos inumerá veis que, através da alma e do
corpo, tem alguma afinidade com o sexo. Este projeto de uma “colocaçã o
em discurso” do sexo foi formado, há muito tempo, no interior de uma
tradiçã o ascética e moná stica. O século XVII fez dele uma regra para
todos5.

Ou seja, essa vontade de saber, de classificaçã o, de medida que parece


animar a clínica do sexual teria uma origem indelével. Ela está lá na tradiçã o
ascética e moná stica, lá nas prá ticas tendo em vista uma forma muito peculiar de
ascese religiosa. E tudo isto ainda estaria entre nó s através, principalmente, de
nossa clínica. Uma clínica que, no fundo, seria a continuaçã o da religiã o por
outros meios. E quanto mais falaríamos de sexo em termo clínicos, com suas
classificaçõ es, suas categoriais, suas patologias, mais perpetuaríamos a sombra

3
FOUCAULT, Histoire de la séxualité I, pp. 77-78
4
KRAFFT-EBING, Psychopatologia sexualis, p. 1
5
Idem, p. 29
da moralidade teoló gica sobre nossos corpos, a normatividade de sua estrutura
sobre nossos desejos.
Dessa forma, a projeçã o, para dentro do campo do sexual, de distinçõ es
entre normal e patoló gico, entre saú de e doença implicaria uma transformaçã o
final na nossa forma de falar de sexo. Transformaçã o essa que aprofundaria os
mecanismos de disciplina e gestã o social pró prios ao poder nas sociedades
ocidentais. Pois essa moralidade nã o era apenas teoló gica, ela fundava uma
economia, uma política, ou seja, uma dinâ mica de trabalho e disciplina (contra o
dispêndio e o gozo), uma forma de hierarquia e sujeiçã o (patriarcal). Por isso,
longe de acreditar que a liberaçã o da fala sobre o sexual pudesse expressar a
consolidaçã o de processos de emancipaçã o social, longe de defender a existência
de uma espécie de substâ ncia natural reprimida que devesse vir a tona, tratava-
se de denunciar a sujeiçã o da experiência do sexual a um discurso
eminentemente clínico. Daí afirmaçõ es como:

O ponto importante nã o consistirá em determinar se tais produçõ es


discursivas e seus efeitos de poder conduzem a formular a verdade sobre
o sexo ou, ao contrá rio, a formular mentiras destinadas a ocultá -lo. Trata-
se de expor a ‘vontade de saber’ que lhe serve, ao mesmo tempo, de
suporte e de instrumento6.

Ou seja, tratava-se de mostrar quais efeitos de poder seriam derivados de certas


modalidades de vontade de saber, como uma vontade de saber é um instrumento
silencioso de “técnicas polimó rficas de poder”. Nã o se tratava assim de negar a
repressã o, mas de negar que sua temá tica pudesse dar conta da maneira com que
o poder sobre a vida age e produz. Ou seja, nã o apenas um discurso clínico, mas
também um discurso político
Daí vinha a importâ ncia de sublinhar como esta técnica permaneceria
ligada ao destino da espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres
individuais se ela nã o tivesse sido integrada, a partir do século XVIII, a um
verdadeiro mecanismo de: “incitaçã o política, econô mica, técnica” sobre o sexo.
Nã o um mecanismo ligado diretamente à moralidade, mas um mecanismo
técnico, portador de um discurso que nã o é simplesmente aquele da tolerâ ncia
ou da condenaçã o, mas da gestã o, do fortalecimento da saú de pú blica:

O sexo, isso nã o se julga apenas, mas se administra (...) No século XVIII, o


sexo advém questã o de ‘polícia’, mas no sentido pleno e forte que se dava
entã o a esta palavra – nã o apenas repressã o da desordem, mas majoraçã o
ordenada das forças coletivas e individuais (...) Polícia do sexo, ou seja,
nã o o rigor de uma proibiçã o, mas a necessidade de regular o sexo através
de discursos pú blicos e ú teis7.

Este era o ponto central. A modernidade conheceria, entre outras coisas,


um discurso sobre o sexo enquanto setor de uma administraçã o pú blica. Assim,
se era verdade que apenas o ocidente conhecerá esta ideia do sexo como objeto
de uma ciência, há de se lembrar que tal ciência nã o visava apenas “curar”
desvios, mas encontrar as formas mais produtivas de gerir as populaçõ es já que,
6
Idem, p. 20
7
Idem, p. 35
no coraçã o do problema político das populaçõ es encontra-se o sexo. Se um país
rico e forte era um país populoso, entã o algumas questõ es centrais de
administraçã o pú blica serã o: a aná lise da taxa de natalidade, a idade do
casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência
das relaçõ es sexuais, o efeito do celibato e das interdiçõ es, a incidência de
prá ticas contraceptivas, entre outros. Pela primeira vez, uma sociedade
reconhece que seu futuro e fortuna está ligado à maneira com que cada um faz
uso de seu sexo.
Mas essa administraçã o também se dava no sentido de definir uma
normatividade explícita, reprodutiva e heteronormativa, e empurrar todo o resto
para o campo das patologias, das perversõ es. Será assim que, a partir de meados
do século XIX, encontraremos esses tratados de perversõ es que desejavam
catalogar todos os “desvios” possíveis. Krafft-Ebing, responsá vel pelo tratado
talvez o mais influente à época falar de quatro perversõ es fundamentais:
inversõ es, fetichismo, sadismo e masoquismo. Nã o deixa de ser extremamente
sintomá tico que, dessas quatros perversõ es fundamentais, duas sejam invençõ es
literá rias (sadismo e masoquismo) e uma seja uma apropriaçã o de um
dispositivo colonial de sujeiçã o (fetichismo).

Clínica e lutas sociais

Eu gostaria de partir desse livro que tanto influenciou nossos estudos


para expressar certa discordâ ncia de fundo. Pois nã o é difícil compreender a
consequência mais clara dessa perspectiva colocada em circulaçã o por Foucault.
Ela consiste em abandonar a possibilidade de um discurso clínico do sexual que
nã o fosse expressã o de modalidades de disciplina e sujeiçã o. Ou seja, tudo se
passava como se fosse questã o de dissociar toda possibilidade de pensar
conjuntamente clínica e crítica. Nesse horizonte o discurso clínico sobre sexo só
poderia ser uma estrutura de poder baseada nas dinâ micas de classificaçã o e
patologizaçã o de sujeitos. Nesse sentido, haveria uma caracterizaçã o subsidiá ria
da clínica do sexual. Subsidiá ria porque completamente dependente da
adequaçã o de prá ticas que se desdobram no campo da ascese religiosa (como a
confissã o, a contençã o, a descriçã o exaustiva, a exploraçã o da relaçã o entre
prazer e culpa, entre tantos outros). Daí porque, consequente com seu pró prio
projeto, caberá a Foucault procurar recuperar modalidades possíveis dessa ars
erotica soterrada em definitivo entre nó s pelo advento da clínica do sexual.
Tratava-se de retornar ao cultivo dos prazeres que uniriam gregos e romanos a
prá ticas que se desenvolveriam em subculturas que procuram restabelecer
fortes laços comunitá rios a partir de sexualidades dissidentes.
Um dos resultados interessantes desse processo foi uma espécie de
deslocamento através do qual falar de sexo tende a se tornar algo imediatamente
traduzível em um espectro concreto de lutas sociais. Ninguém precisou esperar
Foucault para isto, mas é certo que a crítica da clínica deu força subsidiá ria a
uma relaçã o entre clínica e luta social na qual a segunda parece anular ou
submeter imediatamente a primeira. Haveria vá rios exemplos a trazer nesse
contexto, mas eu gostaria de lembrar de um vindo, nã o de Foucault, mas de certo
espectro do feminismo. Por exemplo, a maneira que falamos de sexo
preservando uma certa ilusã o ontoló gica da diferença sexual será vista, ao
mesmo tempo, como resultado de uma naturalizaçã o de pressupostos clínicos e
objeto de uma luta social contra formas institucionalizadas de opressã o ligadas a
gênero. Exemplo ilustrativo nesse sentido é Monique Wittig.
Wittig afirmará que a construçã o da noçã o de diferença sexual e seu uso
clínico mascaram o fato de que estamos a falar, na verdade, de uma luta de
classes entre homens e mulheres que só pode ser abolida politicamente. Daí
afirmaçõ es como:

a categoria de sexo é uma categoria política que funda a sociedade


enquanto heterossexual. Nisso, ela nã o é uma questã o de ser, mas de
relaçõ es (pois as ‘mulheres’ e os ‘homens’ sã o o resultado de relaçõ es). A
categoria de sexo é a categoria que estabelece como ‘natural’ a relaçã o que
está na base da sociedade (heterossexual) e através da qual a metade da
populaçã o – as mulheres – sã o ‘heterossexualizadas’ (a fabricaçã o das
mulheres é semelhante à fabricaçã o dos eunucos, ao adestramento dos
escravos e animais) e submetidas a uma economia heterossexual8.

Nesse sentido, o combate consiste em “suprimir os homens enquanto classe, no


curso de uma luta política de classe, nã o de um genocídio”. E desaparecendo a
classe dos homens, desaparecerá também a classe das mulheres, “pois nã o há
escravos sem senhores”9. Notemos essa assunçã o explícita e consequente de um
esvaziamento da clínica em prol da transferência da fala sobre o sexual para o
campo político das lutas de classe, da crítica de dinâ micas de espoliaçã o através
da problematizaçã o das ló gicas de sujeiçã o no interior de instituiçõ es sociais
como família, casamento e divisã o sexual do trabalho E, para que tal
deslocamento possa ser completo, faz-se necessá rio que Wittig recuse
claramente a possibilidade de um discurso clínico que fale sobre diferença sexual
e que nã o seja outra coisa que a continuaçã o da dominaçã o por outros meios:

Pois na experiência analítica há um oprimido, é o psicanalisando de quem


se explora sua necessidade de comunicar e que, da mesma forma que
anteriormente as feiticeiras só podiam repetir, sob tortura, a linguagem
que os inquisidores queriam ouvir, nã o há outra opçã o, se ele nã o quiser
romper o contrato implícito que lhe permite comunicar e do qual ele
necessita, do que de tentar dizer o que querem que ele diga10.

Essa é uma forma de transposiçã o da fala do sexual para o quadro


imediato das lutas sociais. Ela nos mostra como nossas sociedades conheceriam
ao menos duas formas de se falar de sexo. Formas essas que tecem entre si
relaçõ es complexas. E insistiria nessa complexidade porque conheceremos
momentos histó ricos nos quais clínica e lutas sociais caminharã o pró ximas, como
nos anos vinte e trinta do século XX, quando o termo “revoluçã o sexual”
aparecerá . Haverá outros, e talvez esse seja nosso caso atual, no qual um divó rcio
entre os dois parece se estabelecer, levando-nos a pensar se um discurso nã o
deveria afinal submeter o outro, se faz ainda algum sentido preservar uma clínica
do sexual, ao menos uma clínica que nã o seja orientada pela configuraçã o tá tica e

8
WITTIG, La pensée straight, p. 48
9
Idem, p. 60
10
Idem, p. 70
estratégica das lutas sociais vinculadas a gênero e opressã o feminina, que nã o
seja um setor retardatá rio dessas lutas.
Isto nos levará a problematizar essa visã o completamente subsidiá ria da
clínica do sexual. E creio que, como nã o poderia deixar de ser, seremos obrigados
a discutir o caso mais complexo dessas modalidades de discurso clínico, a saber,
a psicaná lise. Insistiria nesse lugar privilegiado da psicaná lise porque nenhum
discurso clínico sobre o sexual teve tanto impacto na cultura ocidental quanto
ela. Independente do que pensemos sobre a psicaná lise enquanto clínica, é certo
que ela teve um impacto cultural maior em nossa forma de falar de sexo. Há algo
da sensibilidade psicanalítica que moldou, de forma extremamente visível, nossa
cultura. Por isso, será o caso de, em vá rios momentos de nosso curso, voltar à
psicaná lise mais uma vez a fim de medir a natureza dispersa e muitas vezes
divergente de tal impacto.
Acusada muitas vezes de alimentar o primado da figura patriarcal do
nome, da reduçã o do desejo ao horizonte familiarista com suas hierarquias e
figuras de autoridade, de sustentar um falocentrismo inapto a se relacionar com
a plasticidade imanente do desejo, de um discurso indiferente aos marcadores
raciais do sofrimento psíquico, a psicaná lise também foi historicamente o eixo da
constituiçã o do programa de uma “revoluçã o sexual”, nos anos trinta. Nela,
desenvolveu-se o trabalho com a explicitaçã o das figuras do desejo insubmisso,
dos vínculos libidinais que explodem ordens sociais, da dimensã o política do
gozo e de sua forma de fazer desabar a linguagem. A partir dela, foi possível
constituir uma decisiva reflexã o libidinal sobre as bases psíquicas da sujeiçã o
racial. Ou seja, há uma complexidade que é pró pria à psicaná lise e que explicita
uma dimensã o clínica conflitual, contraditó ria e, por isso, politicamente rica.
Gostaria de explorar tais contradiçõ es com vocês a fim de pensar a questã o
sobre o que pode ser uma clínica do sexual em um momento histó rico como o
nosso.

Uma erótica da arte

Mas há ainda um quarto regime de discurso sobre o sexual que será objeto de
nossa reflexã o. Se para além de uma clínica do sexual e de um discurso do sexo
como campo de lutas sociais, há nã o apenas esse ponto de falência de nossa
sociedade e que seria dado por uma ars eró tica. Há também algo que poderíamos
chamar de uma eró tica da arte. Há uma forma da arte falar de sexo que nã o é
exatamente a transcriçã o de prá ticas e cuidados que se transmite diante do
cuidado dos corpos, mesmo que em vá rios momentos isso possa ser encontrado.
No entanto, eu gostaria de me dedicar, no interior de nosso curso, há um outro
regime de discurso que existe nessa eró tica da arte que nos é pró pria. Um regime
bem específico que, a meu ver, é o politicamente mais desustruturador e a-
normativo. Ele vai ser encontrado na literatura (Ballard, Duras), no cinema
(Cronenberg) e mesmo na ó pera (Berg). Deixe-me tentar fornecer um exemplo
do que tenho em mente:
Na sua visã o de um acidente de carro com a atriz, Vaughan estava
obcecado pelas mú ltiplas feridas e impactos – pelo cromo morrendo e
pelos anteparos em colapso dos dois carros encontrando-se de frente em
um complexo de colisõ es repetidas sem fim em filmes de câ mera lenta,
pelas feridas idênticas infligidas em seus corpos, pela imagem de névoa de
vidro de parabrisa em volta de sua face tal qual ela quebrara sua
superfície tingida como uma Afrodite morta-viva, pela fraturas expostas
de suas coxas impactadas contra os suportes do freio de mã o, e sobretudo
pelas feridas em suas genitá lias, o ú tero dela perfurado pelo bico
herá ldico da marca do produtor, o sêmen dele despejado através do sinais
luminosos que registraram para sempre a ú ltima temperatura e o nível
pleno de gasolina da má quina11.

Este é o trecho de um romance intitulado Crash, de James Ballard. Creio


que a maioria de vocês deve conhecer esta histó ria de sua versã o
cinematográ fica, filmada por David Cronenberg nos anos noventa. Como vocês
verã o, nosso curso será atravessado pela aná lise de textos que nã o sã o nem
explicitamente clínicos nem explicitamente ligado à s dinâ micas concretas de
lutas sociais vinculadas a questõ es de sexo. Eu procurei privilegiar textos que
levam a literatura para uma espécie de erotismo do limite. No caso desse texto,
de um erotismo que se dá entre sujeitos e má quinas em decomposiçã o.
Eu gostaria de insistir nesse ponto por acreditar que há algo de decisivo
na experiência do sexual que se dá nessas formas de descriçõ es libidinais de
acidentes que se desenrola nesse espaço singular que é o espaço literá rio. Algo
que tanto a clínica quanto as dimensõ es das lutas sociais nã o poderiam esquecer,
pois é algo que as habita como um horizonte fundamental. Há certa experiência
que se dá no campo do sexual e que coloca questõ es que aparecem inicialmente
como sofrimento psíquico e sofrimento social para acabarem por serem
acolhidas em um esforço de decomposiçã o de mundos que, entre tantas outras
figuras possíveis, acabou por chegar a nó s como a experiência de uma colisã o de
carros.
Eu gostaria de discutir isso partindo de uma literatura que fala de sexo,
mas que nã o pode ser descrita como eró tica, pois nã o fala de uma “ars erotica”,
nã o fala de prá ticas e disposiçõ es que podem ser integradas à vida na sua
procura em cultivar e criar prazeres. Ela fala de sexo como se estivesse diante de
algo insubmisso aos có digos do erotismo, mas também avesso ao regime de
segurança da pornografia, porque a pornografia é uma forma de segurança, a
segurança de que o gozo estará totalmente integrado à imagens que saberíamos
como manipular, que poderíamos classificar em uma miríade de lugares
ordenados, com seus acrô nimos que muitas vezes mais parecem siglas de
empresas e megacorporaçõ es (BDSM, MILF, BBW, AMWF, BBC, CBT, CFMN,
CMNF, DAP, FFFM etc.).
Essa escolha se justifica porque creio que tal literatura explicita algo que
pulsa como um dos motores da clínica e das lutas sociais capazes de operar
transformaçõ es no campo do sexual. Mas que pulsa muitas vezes como um motor
mudo e a respeito do qual talvez devamos recuperar seu som específico, suas
palavras possíveis. Por isso, esse curso foi composto através dos deslocamentos
entre os campos da clínica, das lutas sociais e das artes.
Voltemos entã o ao texto com o qual iniciei. Notemos o ritmo da descriçã o,
sem pausas, uma ú nica frase ocupando todo o pará grafo. Como se fosse questã o
de criar um fluxo contínuo de imagens que passam dos corpos mortos ao carro
reduzido à condiçã o de ferragem. Como se fosse questã o de um tempo parado
pró prio à s colisõ es, essas mesmas colisõ es que parecem paralisar os fluxos,
11
BALLARD, James; Crash, Londres; Fourth Estate, 2009, p. 2
quebrar os movimentos e produzir uma nova forma, construída a partir de
feridas e impactos. Percebamos essa escrita que procura fazer do acidente
alguma forma possível de encontro entre má quina e humano, entre técnica e
pulsã o. Nã o mais o encontro da má quina como extensã o das habilidades do
humanos, como promessa iluminista de desenvolvimento e progresso técnico
através do fortalecimento da capacidade humana em intervir em um mundo
desencantado a partir das exigências da produçã o. O que temos é a “colisã o”, o
crash que é o crash do choque entre carros, mas é também o crash da bolsa de
valores e do colapso da economia.
Mas tentemos levar em conta que crash é exatamente este e porque esse
crash é uma forma possível de abertura. Em um texto para a revista
automobilística Drive (Autopia, 1971), Ballard afirma que a imagem
fundamental do século XX nã o é o homem na Lua ou Churchill fazendo o V de
vitó ria apó s o fim da Segunda Guerra, mas “um homem em um carro motorizado,
dirigindo em uma auto-estrada de concreto para algum destino desconhecido” 12.
A auto-estrada como a pura expressã o do século XX, com toda sua velocidade e
violência. O que nã o poderia ser diferente, já que se trata de compreender que o
ponto fundamental de uma sociedade é dado pela maneira com que ela organiza
os fluxos e movimentos, a maneira com que ela opera a circulaçã o. Ou seja, mais
importante do que saber o que sociedades trocam, é saber como elas trocam, em
que velocidade, em qual ritmo e intensidade. E o ritmo automotivo é o ritmo da
fricçã o e da velocidade, da aproximaçã o dos pontos no espaço através de um
fluxo aparentemente desimpedido que, em vá rios pontos, produz colisõ es.
Dessa forma, através do automó vel, Ballard forneceu uma bela metá fora
de uma sociedade fascinada pelo universo da circulaçã o. Tal como os
automó veis, as coisas no interior da vida social, os objetos de nosso desejo, as
pessoas que encontramos e com as quais transamos circulam de maneira cada
vez mais rá pida até se chocarem. Eles vã o se equivalendo e criando uma estranha
zona de indiferença, de des-identidade, até que o choque aparece com a força das
crises redentoras. Como se o choque fosse a ú nica coisa capaz de quebrar a
indiferença da circulaçã o. Eu gostaria de mostrar, nesse curso, como tais
choques, presentes em vá rios regimes de discursos sociais, sempre foram uma
das mais astutas formas de luta contra uma forma fascista de vida. Essa mesma
forma que nos assombra atualmente.

12
Idem, p. 245
Falar de sexo:
Aula 2

Em meados do século XIX, o ocidente descobre a proliferaçã o de tratados sobre a


sexualidade e seus pretensos desvios, ou perversõ es. Em 1870, o médico Carl
Friedrich Otto Westphal publica um artigo intitulado: O sentimento sexual
contrário: sintoma de um estado neuropatológico (psicopático). Ao que tudo
indica, esse teria sido o primeiro texto a tratar um comportamento sexual, no
caso, o sentimento homoafetivo, como um transtorno psíquico, e nã o como uma
falta moral ou uma violaçã o jurídica. Um trabalho com o mesmo título será
publicado pelo médico alemã o Alfred Moll em 1891. Westphal seria seguido, em
1877, de Os exibicionistas, de Charles Lasègue: texto que cunhou essa perversã o
conhecida ainda hoje por “exibicionismo”. Em 1886, o psiquiatra Krafft-Ebing
publica Psychopathia Sexualis: um estudo clínico forense, que se tornará a
referência maior no estudo sobre as perversõ es. Um ano depois, o psicó logo
francês Alfred Binet publicará um influente artigo intitulado O fetichismo no
amor, no qual a categoria socioló gica de fetichismo era aplicada pela primeira
vez a casos de perversã o sexual. Por sua vez, o médico inglês Havelock Ellis
publicará , a partir de 1897 os seus Estudos sobre a psicologia do sexo, em seis
volumes. Fechando o conjunto, o médico alemã o Magnus Hirschfeld publicará
Safo e Sócrates, em 1896: um texto que se diferenciava dos demais nesse grupo
por procurar criticar a patologizaçã o da homossexualidade.
Todas essas datas mostram como, em menos de quarenta anos, um novo
tipo de discurso sobre sexo havia se desenvolvido. Discurso esse que articulava,
ao mesmo tempo, pretensõ es científicas e um conjunto específico de
intervençõ es clínicas. Mas o ponto que gostaria de salientar é outro. Pois o que
veremos, através da construçã o dessas categorias clínicas, de seu quadro extenso
de classificaçã o, será nã o apenas a emergência de um novo regime discursivo,
mas da produçã o de novos sujeitos. Ou seja, através dessa nova categorizaçã o
médica, através dessa transposiçã o do sexual para a condiçã o de objeto de um
discurso médico, nã o será apenas uma nova forma de descriçã o que emergirá ,
mas emergirá também novos sujeitos a serem descritos. Há uma força
performativa do discurso médico que deve ser levada em conta quando falamos
sobre sexo. Como nossa forma de falar de sexo produziu o que somos.

O que é uma categoria clínica?

Isto nos leva a partir de um questionamento de ordem epistemoló gica.


Pois se trata de começar por discutir que tipo de entidade sã o as categorias
clínicas utilizadas para descrever e classificar modalidades de sofrimento
psíquico, levando em conta que tais categorias pró prias à perversã o foram
construídas para descrever formas de sofrimento, seja dos ditos sujeitos
perversos, seja daqueles que seriam objeto de suas perversõ es. Seriam tais
categorias a expressã o de espécies naturais descobertas pelo desenvolvimento
técnico do saber médico? Entendamos, neste contexto, por “espécie natural” uma
espécie correspondente ao agrupamento de fatos e elementos que refletiria a
estrutura do mundo natural, ao invés de refletir os sistema de interesses e açõ es
do seres humanos. Neste sentido, uma espécie natural seria um agrupamento
dotado de duas características fundamentais: acessibilidade epistêmica (eles
podem ser conhecidos) e autonomia metafísica (eles nã o se reduzem a
construçõ es convencionais produzidas pelas minhas estruturas de saber).
Devemos começar por perguntar: sã o o fetichismo ou o sadismo espécies
naturais, sã o elas categorias dotadas de estruturas naturais, de leis naturais
regulares que podem ser identificadas e verificadas através de pesquisa
empírica? Quais seriam entã o as propriedade essenciais da perversã o, seus
marcadores bioló gicos?
Partamos da hipó tese contrá ria, ou seja, de que categorias clínicas nã o sã o
espécies naturais, de que nã o há nada no mundo natural parecido à perversã o, da
mesma forma que nã o há nada no mundo natural parecido à esquizofrenia, ao
transtorno obsessivo-compulsivo, ao transtorno de personalidade histriô nica, já
que os mesmos marcadores bioló gicos podem descrever estados mentais
distintos. Poderíamos entã o afirmar que categorias clínicas sã o, de certa forma,
agenciamentos produzidos pelo pró prio impacto dos saberes médicos nos
objetos que eles descrevem? Pode a configuraçã o do saber médico, com suas
estruturas de classificaçã o, produzir efeitos na experiência subjetiva?
Percebamos como é possível que muitas dessas categorias clínicas nã o
tem marcadores bioló gicos precisos e nunca terã o. Afinal, apenas para ficar em
um exemplo pedagó gico, seria possível encontrar marcadores bioló gicos para o
já citado transtorno de personalidade histriô nica? Seus critérios diagnó sticos
sã o, entre outros, “desconforto em situaçõ es nas quais ele ou ela nã o é o centro
das atençõ es”, “uso constante da aparência física para chamar a atençã o para si”,
“mostra auto-dramatizaçã o, teatralidade e expressã o exagerada de emoçõ es”.
Tais critérios nã o podem ser avaliados como expressã o de marcadores bioló gicos
específicos, mas como comportamentos de recusa, inconsciente ou nã o, a
padrõ es de socializaçã o que, por sinal, sã o bastante imprecisos. Pois se estamos a
falar em “expressã o exagerada de emoçõ es” há de se perguntar onde estaria a
definiçã o de um “padrã o adequado” de emoçõ es, a nã o ser na subjetividade do
médico.
Posto desta forma, fica evidente como tal problema diz respeito,
inicialmente, a questõ es epistemoló gicas gerais ligadas ao campo do saber
psiquiá trico-psicoló gico e suas categorias. O discurso sobre o sexual é apenas o
caso mais explícito desse problema geral. Neste sentido, seria o caso de lembrar
como há uma vasta literatura que procura evidenciar aquilo que poderíamos
chamar de “a natureza nã o-realista” de conceitos em operaçã o no saber pró prio
à s clínicas do sofrimento psíquico13. Normalmente, tais pesquisas visam mostrar
como estamos diante de problemas que vã o além de questõ es de cunho
estritamente epistemoló gico, pois se referem também à aná lise do sistema de
valores que estariam presentes em modalidades de intervençã o clínica, assim
como do seu impacto na produçã o dos objetos que deveriam descrever. Pois
devemos nos perguntar se as orientaçõ es que guiam perspectivas hegemô nicas
de intervençã o clínica sã o neutras em relaçã o a valores. Se elas nã o sã o neutras,
13
Esta literatura é extensa e tem seu momento fundador, entre outros em FOUCAULT, Michel;
Histoire de la folie .Gallimard, 1962. Para desdobramentos contemporâneos ver, principalmente,
KINCALD, Harold e SULLIVAN, Jacqueline: Classifying psychopathology: mental kinds and natural
kinds, MIT Press, 2014, assim como ZACHAR, Peter; A metaphysics of psychopathology, MIT Press,
2014, COOPER, Rachel; Classifying madness: a philosophical examination of the Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders, Springer, 2005 e MURPHY, Dominic; Psychiatry in the
scientific image, MIT Press, 2012
entã o é o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso
horizonte de cura nã o exigiria uma perspectiva ampliada de aná lise na qual
modalidades de orientaçã o clínica sã o compreendidas no interior de sistemas de
influências compostos por discursos de forte teor normativo advindos de campos
exteriores à prá ticas terapêuticas como, por exemplo, a cultura, a moral, a
estética, a política e a racionalidade econô mica. Trata-se, nestes casos, de nã o
fornecer à s questõ es clínicas o estatuto de problemas autô nomos, mas de
reinscreve-las no interior do sistema de circulaçã o de valores que compõ em as
vá rias esferas da vida social como um sistema de implicaçã o constante.
Dentro das perspectivas nã o-realistas de compreensã o da natureza das
categorias clínicas, há uma que gostaria de apresentar a vocês, pois ela pode nos
ser ú til em nosso curso. Trata-se do que filó sofos da ciência como Ian Hacking
chamaram de “nominalismo dinâ mico”. Entenda-se por nominalismo dinâ mico a
perspectiva epistemoló gica pró pria à queles que defendem que a maneira com
que classificamos pessoas nã o é uma mera descriçã o de categorias que existem
na natureza, mas uma construçã o que produz pessoas. Pessoas que, a partir de
entã o, apreenderã o reflexivamente tais categorias, produzindo efeitos até entã o
inexistentes. Como dirá Hacking: “um tipo de pessoa vem à existência ao mesmo
tempo que um tipo é inventado”14. Neste sentido, classificaçõ es de sofrimento
psíquico nã o sã o “espécies indiferentes”, como sã o aqueles usadas para
descrever fenô menos do mundo físico, mas “espécies interativas”, ou seja, há
uma interaçã o entre categorias e objetos através da apropriaçã o auto-reflexiva e
da posterior modificaçã o dos objetos.
Boa parte desta discussã o nasce do uso que Michel Foucault fez do
conceito de “sexualidade”. Foucault queria mostrar como um certo regime de
organizaçã o, de classificaçã o e de descriçã o da vida sexual foi fundamental para a
constituiçã o dos indivíduos modernos. Nã o por outra razã o, “sexualidade” é
aquilo produzido por um discurso de aspiraçõ es científicas, seja vindo
normalmente da psiquiatria, da psicologia ou da medicina. Foucault parece
querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual pró pria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrõ es de normalidade e
de patologia. Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que
eu possa ser visto como um indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
Notemos uma inflexã o importante. Nã o se trata de afirmar que pelas vias
da sexualidade nó s poderíamos descobrir uma histó ria, um corpo e uma
identidade. Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um
corpo, uma histó ria e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma
sexualidade equivaleria a uma construçã o que nã o seria simplesmente fruto de,
digamos, um projeto individual, mas da internalizaçã o das categorias do discurso
de uma ciência. Uma ciência que nã o apenas descreve, mas que também, e
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um sistema
do conhecimento psiquiá trico que tem seu estilo muito particular de raciocínio e
argumentaçã o”15. Ou seja, assim o problema da sexualidade nã o se encontra na
identificaçã o de uma espécie de libido natural que deve se fazer sentir. O
problema da sexualidade se transforma na descriçã o de modos de produçã o de

14
HACKING, Ian; Historical ontology, p. 106
15
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
corpos, histó rias e identidades a partir das categorias de um discurso social
fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invençã o da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversõ es através destes grandes tratados psiquiá tricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nó s podemos dizer
que nã o era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nó s
podemos mesmo dizer que nã o havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que prá ticas homossexuais existiram antes e sempre existirã o, mas
nã o a concepçã o, tã o evidente para nó s, de que elas, por si só , definem uma
identidade social em toda sua extensã o, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepçã o sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Daí porque seria o caso de afirmar:

A sodomia – essa dos antigos direito civil ou canô nico – era um tipo de
atos proibidos, seu autor era apenas um sujeito jurídico. O homossexual
do século XIX tornou-se um personagem: um passado, uma histó ria e uma
infâ ncia, um cará ter, uma forma de vida; também uma morfologia, uma
anatomia indiscreta e talvez uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é
em sua totalidade escapa à sexualidade16.

Por exemplo, havia prá ticas homossexuais na Grécia antiga, mas elas nã o
eram uma questã o em si, nã o está vamos em um mundo no qual classificava-se o
comportamento de alguém a partir de suas preferências por pessoas do mesmo
sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questã o definidora na Grécia era se alguém
desempenhava ou nã o o papel de um agente passivo, se alguém era ou nã o capaz
de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como Foucault dirá :

O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro


que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais
importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de
prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente17.

Isto significa que, em ú ltima instâ ncia, a homossexualidade como


identidade é uma invençã o que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construçã o
produzida por uma forma de circulaçã o do discurso psiquiá trico e médico que
tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal. A produçã o de tal
identidade implica modificaçã o do campo de possibilidade de uma pessoa
individualizada. Lembremos como: “quem nó s somos nã o é apenas o que
fizemos, fazemos e queremos fazer, mas também o que poderíamos ter feito e o
que podemos fazer”18. De certa forma, o que coisas fazem nã o dependem da
maneira como as nomeamos, ou dependem apenas de maneira indireta,
enquanto o que pessoas fazem dependem profundamente da maneira como
determinamos descriçõ es. Assim: “quando novos modos de descriçã o vem à
existência, novas possibilidade de açã o vem consequentemente à existência”. O

16
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – I, p. 59
17
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
18
HACKING, Ian; idem, p. 107
que nã o significa apenas modificaçõ es em um futuro possível, mas também um
“efeito de looping” que modifica fenô menos passados, assim como a
compreensã o presente de tais fenô menos.

A perversão do discurso

Sendo assim, se é verdade que a sexualidade seria o resultado de um conjunto de


dispositivos disciplinares que, através da incitaçã o ao discurso, visavam
constituir uma normatividade social na relaçã o do sujeito a seus corpos, seus
prazeres e ao outro, entã o como explicar este fenô meno, tã o pró prio ao século
XIX, de atençã o exaustiva à s perversõ es? Qual o sentido dessa relaçã o profunda
entre o advento da perversã o como categoria clínica e a consolidaçã o da
sexualidade como objeto do discurso médico? Ou, perguntando de outra forma,
por que em certo momento as sociedades ocidentais começaram a produzir
“fetichistas”, “masoquistas”, “sá dicos”, “invertidos”, “voyeristas” ? Por que
exatamente nesse momento?
Michel Foucault tem um proposiçã o a esse respeito. Ele dirá que, antes do
final do séulo XVIII, as leis sobre sexo legislavam sobre o lícito e o ilícito tendo
em vista, basicamente, as infraçõ es à s regras de aliança matrimonial. Por isto,
nã o haveria partilha clara entre as infraçõ es a tais regras e os desvios em relaçã o
à genitalidade. Adultério e sodomia, enganar sua mulher ou violar cadá veres, por
exemplo, seriam fenô menos colocados no mesmo plano. Principalmente, tratam-
se de objetos submetidos a marcadores jurídicos, e nã o clínicos.
Foi necessá rio um lento movimento para que tais desvios em relaçã o à
sexualidade fossem constituídos como uma “contra-natureza” responsá vel por
quadros clínicos como “loucura moral”, “neurose genital”, “desequilíbrio
psíquico” ou “degenerescência”. Lento movimento onde a influência da religiã o
sobre os có digos legais de conduta dará lugar à gestã o médica da saú de sexual.
Nesta contra-natureza, será alojada as formas do desvio, como se o poder
fosse, ao mesmo tempo, o processo de definiçã o da norma e de definiçã o das
formas do desvio. Como se as margens da norma fossem já uma produçã o
interna ao funcionamento da disciplina. Pois o poder age realmente nã o quando
ele nos obriga à conformaçã o à norma enunciada, mas quando ele nos oferece,
em um movimento quase silencioso, as figuras possíveis da resistência. Ao
descrever as perversõ es, o poder, como diz Foucault, acaricia os olhos, estimula
os corpos, dramatiza os movimentos, intensifica as regiõ es corporais. Ele
implanta novos modos de prazeres, define nossos lugares, mesmo que tais
lugares se situem à s margens. Por isto, Foucault fala de um: “mecanismo de
dupla impulsã o” no interior do qual poder e prazer se articulam no interior da
mesma enunciaçã o. Poder que se deixa invadir pelo prazer que ele,
pretensamente, afasta.
Assim, as perversõ es nã o seriam a manifestaçã o de uma polimorfia
originá ria que nunca se enquadraria totalmente nas exigências de uma
sexualidade genital orientada à reproduçã o. Na verdade, elas seriam o efeito de
um jogo do poder. Assim, quando Foucault afirma que nossa sociedade moderna
é perversa de uma maneira extremamente visível, trata-se de lembrar o tipo de
poder que ela faz funcionar sobre o corpo e o sexo. Poder que procede através da
multiplicaçã o de sexualidades singulares, pela produçã o e fixaçã o da
“disparidade sexual”. Por isto:
O crescimento das perversõ es nã o é um tema moralizador que teria
obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. Ela é o produto real da
interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. É
possível que o Ocidente nã o tenha sido capaz de inventar prazeres novos
e, sem dú vida, ele nã o descobriu vícios inéditos. Mas ele definiu novas
regras para o jogo dos poderes e prazeres: o rosto petrificado das
perversõ es nele se desenhou19.

Esse rosto petrificado se tornará extremamente resiliente, mesmo dentro


de um campo, como a psiquiatria, em contínua modificaçã o categorial. Notemos a
relevâ ncia dessa resiliência. Quando foi publicado em sua primeira versã o, em
1952, o DSM continha 128 categorias para a descriçã o de modalidades de
sofrimento psíquico. Em 2013, em sua ú ltima versã o, ele apresentava 541
categorias. Ou seja, em algo em torno de sessenta anos, 413 novas categorias
foram “descobertas” e um nú mero igualmente impressionante de categorias
simplesmente desapareceram (como paranoia, neurose, histeria etc.). Nã o há
nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tã o
anô malo e impressionante. No interior de tal mutaçã o categorial contínua, a
psiquiatria achou por bem preservar as perversõ es, agora nomeadas como
parafilias. Há de se perguntar sobre o que se preserva e qual sua razã o.
Vejamos inicialmente como se pode ser perverso atualmente. A
psiquiatria conhece oito grupos: transtornos de voyerismo, de exibicionismo, de
frotterismo, de masoquismo sexual, de sadismo sexual, de pedofilia, fetichismo e
travestismo. Embora nã o sejam as ú nicas, a ú ltima versã o do DSM lista apenas
tais oito por sua suposta maior incidência clínica, embora nenhum estudo para
corroborar tal afirmaçã o tenha sido feito. Outras justificativas apresentadas sã o
o fato de algumas dessas parafilias serem prá ticas criminalmente tipificadas
(como a pedofilia, o voyerismo e o exibicionismo). Mas se nos perguntarmos
como sã o atualmente definidas as parafilias, encontraremos afirmaçõ es como: “o
termo parafilia denota todo interesse sexual persistente e intenso outro que o
interesse sexual na estimulaçã o genital ou carícias preparató rias com parceiros
humanos consensuais, fenotipicamente normais e fisicamente maduros”20. Já o
termo “transtorno de parafilia” é utilizado para descrever parafilias que
normalmente causam sofrimento e prejuízos ao indivíduo ou danos pessoais
(personal harm) a outrem. Há ainda a disforia de gênero, que ganhou uma
categorizaçã o a parte.
Notemos inicialmente os pressupostos presentes em tal categorizaçã o das
parafilias. O padrã o de comportamento normal é dado pelo interesse sexual que
se organiza a partir do primado genital, que submete todo interesse outro à
condiçã o de carícias preparató rias. Nã o por acaso, esse primado é a condiçã o
clá ssica para a submissã o do sexo a uma normatividade pretensamente natural
baseada na reproduçã o. Ou seja, ele é a peça fundamental para a defesa de que
sexo seria um processo cuja funçã o central é a atraçã o tendo em vista a
reproduçã o, nã o por acaso a base do que chamamos de heteronormatividade.
Por outro lado, esse processo deve ser com parceiros “consensuais, normais e
maduros”. Como vocês devem imaginar, haveria realmente muito a se dizer a
19
Idem, p. 66
20
DSM V, p. 685
respeito do que pode ser compreendido, nesse contexto, por “fenotipicamente
normal”. Sobre “fisicamente maduro”, há de se lembrar como as balizas da
maturidade mudam e mudaram dramaticamente nas ú ltimas décadas. Há três
geraçõ es, era considerada “fisicamente madura” uma adolescente de nã o mais do
que treze anos, o que atualmente seria facilmente descrito como pedofilia. Por
fim, a consensualidade é uma categoria jurídica advinda das prá ticas contratuais.
Isto apenas demonstra como a clínica opera apoiando-se em sistemas de valores
exteriores à clínica. No caso, valores sociais, jurídicos e morais.

Back to the past

Mas ainda nã o respondemos a pergunta sobre por que, em certo momento


bastante específico, a saber, o final do século XIX, o ocidente achou por bem
produzir “fetichistas”, “sá dicos”, “masoquistas”? Pergunta essa que nos leva
agora a outra pergunta, subsidiá ria, a saber, por que tais invençõ es se mostraram
tã o resilientes, por que elas permaneceram mais de um século depois? Voltemos
entã o aos primeiros tratados sobre perversõ es para ver os traços que eles
evidenciam e que ainda aparecem em nossos tratados atuais. Ou seja,
perguntemos se por trá s dos nossos tratados atuais, nossos manuais
diagnó sticos, nã o estariam ainda esses velhos livros repletos de figuras que
parecem dignas de um museu de cera da histó ria da medicina.
Partamos do texto que sugeri à leitura de vocês, a saber, o primeiro
capítulo do Psychopatia sexualis, de Krafft-Ebing. Notem como começa esse que é
o mais influente tratado sobre as perversõ es da tradiçã o psiquiá trica ocidental :

A propagaçã o da raça humana nã o é deixada ao mero acaso ou aos


caprichos dos indivíduos, mas é garantida pelas leis escondidas da
natureza que sã o reforçadas por um impulso poderoso e irresistível (...)
Sem dú vida, a vida sexual é o fator poderoso no indivíduo e nas relaçõ es
sociais do homem que revela seu poder de atividade, de adquirir
propriedade, de estabelecer morada, de despertar sentimentos altruístas
diante de uma pessoa do sexo oposto, tanto em direçã o a seu pró prio
interesse quanto ao interesse de toda a raça humana21.

Ou seja, está claro que sexo aparece aqui como aquilo que permite a
passagem da contingência à necessidade. Através do desejo sexual, a natureza
teria inscrito nos humanos a direçã o nã o apenas à propagaçã o da espécie, mas
também à consolidaçã o de relaçõ es sociais de propriedade, de autoctonia e,
sobretudo, de moralidade e altruísmo. Sexo fundaria assim uma ló gica que é, ao
mesmo tempo, bioló gica, econô mica e moral. Ele seria o ponto de unidade entre
natureza e cultura. Mas nã o apenas fator chave de uma explicaçã o holista da
existência humana, sexo é também um vetor de progresso. O comportamento
sexual progride da mesma forma como progrediriam as sociedades. Neste
sentido, vale para a reflexã o sobre as perversõ es, o que diz Augusto Comte em
sua defesa do paralelismo entre filogênese e ontogênese:

O desenvolvimento individual reproduz necessariamente sob os nossos


olhos, em uma sucessã o mais rá pida e familiar, cujo conjunto é entã o mais
21
KRAFFT-EBING,
apreciá vel, embora menos pronunciado, as principais fases do
desenvolvimento social. Tanto um quanto outro tem essencialmente como
objetivo comum a subordinaçã o, na medida do possível, da satisfaçã o
normal dos instintos pessoais ao exercício habitual dos instintos sociais,
assim como o assujeitamento de nossas paixõ es à s regras impostas por
uma inteligência cada vez mais preponderante22.

Ou seja, o discurso médico sobre sexo nasce da naturalizaçã o de certa


ló gica do progresso histó rico. Como se saíssemos de uma situaçã o inicial de
violência e posse do outro para alcançar uma situaçã o social na qual a vida
sexual encontraria, enfim, sua moralidade inerente através dos sentimentos de
pertencimento à família, de maternidade, constituiçã o de laços de casamento,
entre outros. Tal caminho em direçã o à civilizaçã o, nã o poderia deixar de ser,
explicita-se na maneira com que o ocidente mostraria sua superioridade em
relaçã o a outras culturas e formas sociais. Daí afirmaçõ es como essas, tã o
presentes no texto de Krafft-Ebing:

A mulher muçulmana é apenas um meio para a gratificaçã o sexual e para


a propagaçã o da espécie, enquanto no bá lsamo ensolarado da doutrina
cristã , desabrocham suas qualidades divinas como esposa, companheira e
mã e ... Que contraste!23 .

Afirmaçõ es dessa natureza procuram naturalizar a ideia de que haveria


um progresso moral vinculado à sublimidade da moralidade cristã , com suas
formas de relaçã o entre libido e culpa, entre papeis sociais e contençã o. Tal
progresso da civilizaçã o cristã em relaçã o à s demais forneceria o horizonte
regulador da distinçã o entre normalidade e patologia. O que nã o poderia ser
diferente já que estamos no interior de uma concepçã o da doença mental como
degenerescência, como se a doença fizesse o caminho inverso do processo de
maturaçã o. Este é um ponto claro no interior do qual a clínica nascente faz apelo
à histó ria e a uma certa teoria, claramente colonial, do progresso.
Ou seja, as instauraçã o das perversõ es nã o foi apenas um dispositivo de
classificaçã o visando a consolidaçã o disciplinar de uma concepçã o reprodutiva e
heteronormativa de sexualidade. Ela também foi o eixo fundamental da
naturalizaçã o de disposiçõ es institucionais e morais que visavam claramente a
justificaçã o colonial do ocidente. Assim, nã o será um acaso que tais concepçõ es
clínicas apareçam exatamente no momento em que a Europa submetia a uma
nova vaga colonial o continente africano e asiá tico. Momento no qual a pretensa
superioridade da estrutura socio-cultural do ocidente precisava
desesperadamente de um amparo científico. Que amparo melhor do que mostrar
como a forma de desejar reconhecida por nossas instituiçõ es, a estrutura de
nosso gozo, expressaria a destinaçã o moral superior de nosso povo?
Nesse sentido, lembremos como sã o assim da mesma época as
justificaçõ es científicas da superioridade racial do ocidente, a consolidaçã o das
perversõ es e, principalmente, o risco de degenerescência da estrutura social do
ocidente devido ao século XIX ser um século de revoluçõ es sociais. Ou seja, a
regressã o vem de fora e de dentro de nossas sociedades. Ela descreve o está gio
22
COMTE, Cours de philosophie positiva, leçon 51, p. 291
23
Idem, p. 5
no qual sociedades nã o-ocidentais ainda se encontrariam e o princípio de
degradaçã o imanente à s nossas sociedades, princípio esse que deveria ser
combatido com todas as forças. Em momentos de forte convulsã o social, era
necessá rio que a capacidade de intervençã o e administraçã o social se
internalizasse cada vez mais, tornando-se administraçã o dos corpos, regulaçã o
médica dos desejos, controle que se internaliza em uma mistura irresistível entre
medicina e moral. Quando a sombra do desgoverno avança, há de se governar
melhor os corpos, levar à classe proletá ria a figura do médico que entra na casa
para controlar a masturbaçã o das crianças, tirar os filhos do leito dos pais, lutar
contra a pedofilia, regular a estrutura indissolú vel da família, colocar o desejo
feminino no seu pretenso lugar natural.
Nã o é por acaso que, quando as revoluçõ es explodem em solo europeu
(1830, 1848, 1871) colocando em questã o a ordem social em toda sua extensã o
(que se lembre do papel protagonista desempenhado pelas mulheres na Comuna
de Paris), a medicina seja chamada para povoar a sociedade com fetichistas,
sá dicos, voyeristas e pedó filos, para nos levar à estrita observâ ncia de nossos
desejos. Como se nosso desejo fosse a força insubmissa que pode, a todo
momento, destruir tudo, causar as piores desordens. “Amor desenfreado é um
vulcã o que queima e arrasa tudo a sua volta; é um abismo que tudo devora –
honra, substâ ncia, saú de”24. Assim, investir sexualmente na ordem institucional,
nas estruturas mais claramente vinculadas aos processos de reproduçã o material
do capitalismo em expansã o, de fortalecimento de uma concepçã o unitá ria e
identitá ria de corpo social que reforça o lugar diretivo da autoridade médica,
moral e política aparece como uma forma privilegiada de luta política de
preservaçã o e restauraçã o.
Disso se tira um princípio genealó gico fundamental que deve servir como
questã o de método: se quisermos entender a emergência de dispositivos de
disciplina e controle há de se perguntar contra quem eles sã o levantados, contra
qual processo histó rico concreto de insubmissã o e revolta eles sã o construídos?
Ou seja, nã o devemos olhar apenas para a histó ria do desenvolvimento das
tecnologias de poder, como se fosse o caso de descrever um desenvolvimento
autô nomo. Devemos principalmente olhar para a histó ria das sublevaçõ es que
tais tecnologias procuram sufocar.
Nesse sentido, nã o deve ser motivo de surpresa perceber a incrível
quantidade de categoriais clínicas que serã o produzidas através da patologizaçã o
de dispositivos literá rios: sadismo, masoquismo, bovarismo. Em comum, elas
tem a característica de serem produçõ es literá rias, algumas delas ligadas à
literatura libertina. Ou seja, tudo se passa como se as sociedades ocidentais
precisassem também criar barreiras de contençã o para o tipo de dispositivo
libidinal que setores avançados da literatura eram capazes de produzir, barreiras
para o tipo de crítica que a experiência literá ria colocava em circulaçã o. A leitura
de maus romances degenera os comportamentos, perverte os desejos, contagia
os corpos, enfraquece a luta a que os sujeitos sã o convocados para se
submeterem à norma.

Produzindo fetichistas

24
KRAFFT-EBING, idem, p. 1
Gostaria de finalizar trazendo para vocês um exemplo de como se constró i
categorias clínicas no campo das perversõ es. Trata-se do fetichismo, uma espécie
de forma geral das perversõ es que existe ainda hoje. Nã o por outra razã o, será a
primeira das perversõ es descritas por Krafft-Ebing em seu tratado. Poucos sã o
os termos tã o ligados à constituiçã o da consciência da modernidade ocidental
quanto “fetichismo”. Façamos um pouco de sua histó ria. Enunciado pela primeira
vez em 1756 pelo escritor francês Charles de Brosses, membro da Académie des
Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia de Diderot e
d’Alambert, o fetichismo aparecia como peça maior de uma operaçã o que visava
estabelecer os limites precisos entre nossas sociedades esclarecidas e sociedades
primitivas pretensamente vítimas de um sistema encantado de crenças
supersticiosas. Já o título da obra de De Brosses dedicada à apresentaçã o
sistemá tica do fetichismo era ilustrativo: Do culto dos deuses fetiches ou Paralelo
da antiga religião do Egito com a religião atual da Nigritia (1760). Ou seja,
tratava-se de criar um paralelo entre um limite à racionalidade moderna ao
mesmo tempo histó rico (no passado) e geográ fico (no presente), determinar as
coordenadas histó rico-geográ ficas do pensamento primitivo, isto através da
identificaçã o de uma forma de encantamento cuja ilustraçã o perfeita seria o culto
aos ditos deuses fetiches.
À ocasiã o, o fetichismo aparecia definido, fundamentalmente, como culto
de objetos inanimados e, em outros casos, como divinizaçã o de animais e de
fenô menos irregulares da natureza. Baseando-se no relato de navegadores
portugueses a respeito do modo de culto de tribos africanas da Guiné e da Á frica
Ocidental, De Brosses criava um termo derivado do português antigo fetisso (que
dará no atual feitiço) a fim de colocar em marcha uma generalizaçã o extensa que
englobava estes espaços infinitos nos quais o Ocidente nã o via sua pró pria
imagem.
Tal caracterizaçã o do pretenso pensamento primitivo através do
fetichismo atravessará os séculos XVIII e XIX. Ela pode ser encontrada, entre
outros, em escritos de ideó logos como Destutt de Tracy, de filó sofos como Kant,
Hegel, Benjamin Constant, mas será com Augusto Comte que o fetichismo,
definido enquanto está gio inicial da vida social e das formas do pensar, alcançará
sua enunciaçã o canô nica. Assim, quando o termo aparece pela primeira vez na
psicologia e nos estudos das perversõ es, através de dois artigos, publicados em
1887 pelo psicó logo francês Alfred Binet, intitulados “O fetichismo no amor”, ele
já tinha atrá s de si uma longa histó ria. Constituído por derivaçã o, o fetichismo
enquanto nosografia da perversã o visava dar conta dos modos de investimento
libidinal em objetos inanimados e partes do corpo, investimentos estes que
podiam chegar à condiçã o de determinaçõ es exclusivas do interesse sexual.
Da mesma forma que o fetichismo aparecia no interior das teorias sobre a
vida social como dispositivo de crítica a formas de vida que teriam permanecido
em uma “infâ ncia perpétua” marcada pela ignorâ ncia e barbá rie25, o fetichismo
relacionado à vida amorosa aparecia como modo de fixaçã o do comportamento a
uma fase regressiva em relaçã o à maturidade sexual ligada aos imperativos de
reproduçã o. Neste sentido, talvez nenhum outro termo expô s tã o claramente
esta estratégia de legitimaçã o de prá ticas clínicas baseada na aproximaçã o entre

25
De Brosses chega a falar, a respeito dos povos fetichistas, que: “seus costumes, suas ideias, seus
raciocínios, suas práticas são as das crianças” (DE BROSSES, Charles; Du culte des dieux fétiches,
Paris: Fayard, 1988)
“pensamento primitivo”, comportamento infantil e patologia mental. Como se
estivéssemos diante de três figuras maiores da minoridade. Uma minoridade
contra a qual o esclarecimento, anunciado por este Iluminismo cujo impulso
alimentou a constituiçã o do termo “fetichismo”, prometeu combater, seja na
clínica, seja na crítica social. Minoridade esta assentada sobre o mito da
identidade entre o doente, o primitivo e a criança. Um pouco como se o
fetichismo fosse: “a Á frica no sujeito”26.
Ao falar pela primeira vez sobre o fetichismo no amor, Binet inicia seu
texto lembrando que, se o fetichismo religioso consistiria na adoraçã o de objetos
inanimados e naturais pretensamente dotados de poderes sobrenaturais, “no
culto de nossos doentes, a adoraçã o religiosa foi substituída pelo apetite
sexual”27. Neste contexto, o fetichismo aparece como o “amor por coisas inertes”,
como o investimento libidinal em objetos inanimados (peças de vestuá rio,
uniformes) ou em partes de representaçõ es globais de pessoas (mã os, pés, olhos,
cabelos, tranças, cheiro ou mesmo traços imateriais de cará ter, como a
severidade, a dureza). Tais objetos e partes têm, em comum, a incapacidade de
satisfazer aquilo que Binet chama de “necessidades genitais”, ou seja, o sexo
submetido aos imperativos da reproduçã o. Por isto, eles seriam impró prios à
vida sexual normal. Assim, se uma das características maiores do fetichismo
desde De Brosses era a impossibilidade de se “passar dos objetos sensíveis aos
conhecimentos abstratos”, algo de semelhante ocorria aqui, já que o perverso
fetichista seria incapaz de passar do objeto à funçã o, ou seja, do investimento nos
objetos sensíveis e particularidades ao investimento na funçã o global de
reproduçã o sexual. Isto o leva a afirmar que: “o amor do pervertido é uma peça
de teatro na qual um simples figurante avança em direçã o à cena e toma o lugar
do primeiro personagem”28. Só faltou a Binet se perguntar sobre quem afinal
dirige essa peça de teatro de nossos desejos, quem montou o cená rio e porque
tanta gente procura dela escapar.

26
BÖHME, Hartmut; Fetischismus und Kultur: eine andere theorie der Moderne, Rowohlt :
Hamburgo, 2006, p. 400
27
BINET, Alfred; Le fétichisme dans l’ amour, Paris : Payot et Rivages, 2001, p. 31.
28
idem, p. 127
Falar de sexo
Aula 3

Na aula passada, vimos como o advento das perversõ es enquanto categoria


clínica estava profundamente vinculado a dois processos de natureza política.
Nã o se tratava de reduzir a consolidaçã o das perversõ es a tais processos, mas de
traze-los enquanto elementos importantes que devem ser levados em conta se
quisermos ter uma visã o articulada do que está em jogo quando categorias
clínicas sã o constituídas e, através delas, novos sujeitos sã o produzidos. Eu
insistira na aula passada em certa natureza performativa das categorias clínicas.
De onde se seguiu a sugestã o de usarmos perspectivas como o “nominalismo
dinâ mico” de Ian Hacking para dar conta da especificidade dos modos de
categorizaçã o nas clínicas do sofrimento psíquico. Ou seja, essa fala de sexo que
nasce no começo do século XIX, uma fala clínica, tinha natureza profundamente
performativa. Através da classificaçã o, ela nã o simplesmente descrevia objetos,
ela os criava. Nesse sentido, a pergunta da qual partimos na aula passada poderia
ser retomada da seguinte forma: “Por que, em dado momento histó rico, o
ocidente começou a criar “fetichistas”, “exibicionistas”, “sá dicos”,
“homossexuais”, “masoquistas”, entre tantos outros?”, “Por que tais sujeitos
apareceram?”
Como uma questã o de método, eu havia sugerido submeter reflexõ es de
cunho genealó gico a consideraçõ es de ordem, digamos, agonística. Isso significa
que a reflexã o sobre o desenvolvimento histó rico das tecnologias pró prias a um
certo discurso de aspiraçã o científica (no nosso caso as clínicas do sofrimento
psíquico) deve partir de questõ es do tipo “contra quem”, ou seja, questõ es que
procuram revelar o solo de conflitos sociais nos quais tais desenvolvimentos
tecnoló gicos se inserem. Contra quem as perversõ es sã o erigidas, uma clínica dos
desvios da sexualidade erigida? Uma perspectiva genealó gica deve, sobretudo,
dar conta de quais conflitos sociais concretos movem os deslocamentos de
saberes. Se vocês me permitem, esse parece-me o ponto cego do projeto de
Michel Foucault, do qual partimos na primeira aula. Ao procurar fazer uma
histó ria da sexualidade a partir, sobretudo, do advento do discurso clínico, faltou
a Foucault definir a cartografia das insubmissõ es, efetivas e potenciais, contra as
quais tal discurso se constitui. Essa clínica da sexualidade tinha uma dimensã o
contra-insurrecional. Seria necessá rio falar mais dela. Nesse sentido, a título
introdutó rio, eu sugeri levarmos em conta dois eixos principais de conflitos.
Primeiro, devíamos estar atentos à maneira com que a consolidaçã o das
perversõ es desdobrava-se no interior de uma concepçã o de doença mental como
degenerescência. Isso significava que a doença mental era compreendida
necessariamente como regressã o, como fixaçã o a estados arcaicos de
desenvolvimento e de maturaçã o. Por outro lado, a aceitaçã o, extensiva no
discurso médico de entã o, do princípio positivista do paralelismo entre
filogênese e ontogênese criava um campo possível de acoplagem entre uma
teoria do progresso histó rico das formas sociais e uma teoria da maturaçã o
subjetiva. Nesse sentido, a perversã o será , sobretudo, expressã o de
comportamentos arcaicos, da fixaçã o naquilo que deveria ter sido ultrapassado
pelo processo civilizató rio. Ou seja, o comportamento perverso seria um
“arcaísmo” que ressoaria comportamentos pró prios de sociedades ainda em
está gio primitivo. Nã o será por outra razã o que encontraremos, de forma tã o
abundante, termos como “sodomia”, “inversã o”, “lascívia”, “corrupçã o”, prá ticas
depois descritas como travestimos utilizados durante séculos para a descriçã o da
“bestialidade” do comportamento sexual dos ameríndios, assim como de outros
povos nã o-ocidentais. Antes de passar ao campo clínico, a estigmatizaçã o dessas
prá ticas estavam em operaçã o nas dinâ micas coloniais. Maneira de lembrar que
a implantaçã o clínica das perversõ es tem articulaçõ es profundas com
dispositivos coloniais do sujeiçã o, aplicados agora no territó rio das pró prias
metró poles. E, como havia dito, nã o é mero acaso que tal consolidaçã o
tecnoló gica da administraçã o dos corpos ocorra exatamente no momento que
uma nova vaga de colonizaçã o se desenvolve na Á frica e na Á sia, aumentando
exponencialmente o contato entre europeus e outros povos.
Mas havia ainda um segundo elemento a ser acrescido nesse quadro.
Como insisti na aula passada, há de se lembrar como sã o da mesma época as
justificaçõ es científicas da superioridade racial do ocidente, a consolidaçã o das
perversõ es e, principalmente, o risco de degenerescência da estrutura social do
ocidente devido ao século XIX ser um século de revoluçõ es sociais. Ou seja, a
regressã o viria de fora e de dentro de nossas sociedades. Ela descreveria tanto o
está gio no qual sociedades nã o-ocidentais ainda se encontrariam quanto o
princípio de degradaçã o imanente à s nossas sociedades, princípio esse que
deveria ser combatido com todas as forças. Em momentos de forte convulsã o
social, com a emergência das massas no espaço político, era necessá rio que a
capacidade de intervençã o e administraçã o social se internalizasse cada vez
mais, tornando-se administraçã o dos corpos, regulaçã o médica dos desejos,
controle que se internaliza em uma mistura irresistível entre medicina e moral.
Quando a sombra do desgoverno avança, há de se governar melhor os corpos,
levar à classe proletá ria a figura do médico que entra na casa para controlar a
masturbaçã o das crianças, tirar os filhos do leito dos pais, lutar contra a
pedofilia, regular a estrutura indissolú vel da família, colocar o desejo feminino
no seu pretenso lugar natural.
1830, 1848, 1871 sã o apenas algumas datas que nos lembram como a
Europa foi tomada por corpos que ocupavam as ruas, bloqueavam a circulaçã o,
exigiam uma nova ordem e saiam, de forma violenta, de seus “lugares naturais”.
Corpos em contato, em contá gio e em fusã o. Contra essa insubmissã o dos corpos
nas ruas nada melhor do que ensinar a submissã o à norma sexual e a
desconfiança perpétua em relaçã o à polimorfia confusa de nossos desejos. Nada
melhor do que instaurar um policial no interior de cada sujeito, nem que ele
esteja vestido com as roupas do médico. Como se nosso desejo fosse a força
insubmissa que pode, a todo momento, destruir tudo, causar as piores
desordens. “Amor desenfreado é um vulcã o que queima e arrasa tudo a sua volta;
é um abismo que tudo devora – honra, substâ ncia, saú de”29. Assim, investir
sexualmente na ordem institucional, nas estruturas mais claramente vinculadas
aos processos de reproduçã o material do capitalismo em expansã o, de
fortalecimento de uma concepçã o unitá ria e identitá ria de corpo social que
reforça o lugar diretivo da autoridade médica, moral e política aparece como
uma forma privilegiada de luta política de preservaçã o e restauraçã o. Fazer as

29
KRAFFT-EBING, idem, p. 1
pessoas temerem a insubmissã o nas ruas através do temor que se instaura
contra a insubmissã o do seu pró prio desejo.
É tendo esse contexto em vista que gostaria de abordar o caso mais
complexo dessa consolidaçã o clínica das formas de falar de sexo. Trata-se da
psicaná lise. Prá tica que se desenvolve mais ou menos à mesma época que a
emergência do discurso clínico sobre o sexual e que será uma de suas mais fortes
expressõ es. Eu havia dito a vocês na primeira aula que a influência da psicaná lise
em nossa forma de falar de sexo é extensa. Defendendo ou nã o a prá tica clínica
psicanalítica, é certo que estratos fundamentais de nossa cultura sã o
psicanalíticos. Nossa forma de falar sobre a família, sobre a infâ ncia, sobre os
conflitos de transmissã o e filiaçã o, sobre nossos sonhos e sobre nossas formas de
sofrer foi profundamente marcado pela cultura psicanalítica.
Mas além dessa questã o de influência, há ainda outra razã o para dar a
psicaná lise tal prevalência. Falar da psicaná lise e de sua forma de falar de sexo é
falar, necessariamente, de um campo fraturado. Há uma contradiçã o em seu seio,
como ela fosse atravessada por uma espécie de luta de classe que lhe divide em
dois. No que nos diz respeito, podemos dizer que ela será tanto a prá tica capaz
de vincular o discurso clínico ao horizonte de lutas sociais que se desenhavam a
época quanto a prá tica que fornecerá à ciência da sexualidade alguns de seus
dispositivos disciplinares mais resilientes. Da psicaná lise virá o impulso à s
temá ticas de uma revoluçã o sexual, da crítica implacá vel à melancolia
pressuposta em toda construçã o de identidades de gênero, da relaçã o entre
violência e colapso da ordem patriarcal. Ela virá também a reduçã o do circuito
do desejo a seu nú cleo familiar, a temá tica do cará ter necessariamente deceptivo
do processo civilizató rio, entre tantos outros.
Por isso, eu gostaria de utilizar duas aulas para falar de Freud e a primeira
aula gostaria de dedica-la à descriçã o de um fracasso. Na verdade, trata-se de um
fracasso conhecido como “o caso Dora”. Contrariamente à quilo que é a norma no
saber médico, Freud faz de um fracasso clínico um caso onde é questã o dos
limites da técnica analítica e seus desafios. Essa é uma maneira privilegiada de
procurarmos entender como a psicaná lise lida com essa dupla inscriçã o, como
ela será a cena na qual certa forma de falar de sexo encontrará seus impasses.

O direito do ginecologista.

Nesta histó ria da doença (...) discute-se francamente as relaçõ es sexuais,


os ó rgã os e funçõ es sexuais sã o chamadas por seu nome correto. Com isto,
o leitor poderá se convencer, apó s minha exposiçã o, que nã o recuei da
discussã o de tais assuntos em tal linguagem com uma garota. Devo entã o
também me justificar desta acusaçã o? Eu reivindico simplesmente os
direitos do ginecologista ou ainda direitos muito mais modestos. Seria
índice de estranha e perversa lubricidade supor que conversas parecidas
seriam um bom meio de excitaçã o sexual30.

Essa afirmaçã o está no início do texto dedicado ao caso Dora. Tais colocaçõ es sã o
mais importantes do que parecem. Elas expõ em todo um regime de fala do sexual
30
FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt:
Fischer, 1999, p. 186
que entã o se constituía. Demoremo-nos um pouco nessa singular inveja dos
“direitos do ginecologista”. Tal como o ginecologista, a fala de Freud nã o poderia
ser vista como fala que porta lubricidade, interesse. Freud dirá que ela deve ser
“seca e direta”, dando aos ó rgã os sexuais seus nomes técnicos e comunicando
seus nomes quando estes sã o desconhecidos pela paciente. Uma fala que
descreveria as perversõ es “sem indignaçã o”. Ou seja, como já disse Foucault, esta
fala é uma vontade de saber baseada na submissã o da sexualidade ao modo de
descriçã o de uma scientia sexualis. Através desta submissã o, a psicaná lise teria
produzido um imperativo de transformar o desejo em discurso clínico.
É desta transformaçã o que é questã o no caso Dora. Ao falar francamente
sobre sexo com uma garota, Freud nã o apenas escuta. Ele a ensina como falar, em
que condiçõ es seu desejo pode ser colocado em discurso, qual histó ria ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Falar nã o é apenas liberar. Falar é também
internalizar uma gramá tica do desejo. Assim, podemos ler o caso freudiano
também como a histó ria de um conflito. O conflito que ocorre quando as relaçõ es
sexuais, seus ó rgã os e funçõ es sã o postos em um determinado regime de “falar
clínico”, sã o levados a assumir certas histó rias e dinâ micas. Se assumirmos tal
perspectiva, o caso Dora talvez aparecerá como um interessante relato de certa
forma de resistência que nã o é apenas uma reaçã o terapêutica negativa, mas a
insistência da dificuldade em constituir uma fala sobre a sexualidade que seja
capaz de dar voz aos arranjos contingentes que a sexualidade produz. A posiçã o
de Freud é aquela de quem fornece uma norma geral de fala. A posiçã o de Dora é
aquele de quem nã o a aceita completamente. É esta incompletude em relaçã o à
norma de fala fornecida por Freud que produzirá a ruptura do tratamento.
Para começar a compreender a natureza dessa norma geral de fala,
perguntemo-nos como Dora foi classificada. A categoria clínica que lhe
determinaria seria o que a época entendíamos por “histeria”. É do estudo sobre
as histerias que Freud parte
Sabemos como, desde os gregos a histeria era uma “questã o de mulheres,
ou melhor, de parteiras”31. De onde se segue sua etimologia deriva de hystera
(ú tero). Hipó crates falava dos sintomas provocados pela “sufocaçã o da matriz” e
pela mobilidade do ú tero que, ao tocar outros ó rgã os como o fígado, provocaria
reaçõ es como a perda de voz e a lividez. Para manter o ú tero em seu lugar, o
médico grego prescrevia a relaçã o sexual e a gravidez. Algo nã o muito diferente
encontra-se em Platã o que, no Timeu, compara o ú tero a um ser vivo possuído
pelo desejo de procriar e que se irrita quando permanece estéril durante muito
tempo, “causando toda variedade de doença”32. Ou seja, a articulaçã o entre
histeria e sexualidade mostra-se como uma das correlaçõ es mais antigas da
histó ria da medicina. Neste sentido, mais do que um instaurador, Freud aparece
como um peculiar restaurador, isto ao insistir na etiologia sexual da histeria e na
necessidade da conduçã o da paciente à assunçã o do lugar que poderia
determinar sua sexualidade.
No entanto, como é pró prio das estratégias de Freud, mais do que
descrever desvios em relaçã o a uma sexualidade normal, ele tende a generalizar
a histeria como quadro geral de socializaçã o através da identificaçã o com o
g6enero feminino. Isso significa que, para Freud, nã o há identificaçã o de gênero
sem a produçã o de sofrimento, sem a produçã o de sintomas. Em suma, nã o há
31
TRILLAT, Etienne; História da histeria, São Paulo: Escuta, 1986, p.17
32
PLATAO, Timée, Paris: Pleiade, 1990, 91c
gênero sem sintoma. No caso da posiçã o feminina, esses sintomas sã o pensados
de forma preferencial através da histeria. É certo que Freud tem um horizonte de
cura e tratamento a lhe guiar. Tal horizonte se refere, sobretudo, a certas
disposiçõ es normativas vindas do complexo de É dipo e de sua maneira de
compreender os conflitos afetivos a partir da repetiçã o modular de conflitos
familiares. Mas o verdadeiro interesse do caso Dora está em outro lugar. Na
verdade, Freud acaba por mostrar, a contrapelo, os limites desse dispositivo
clínico fundado na mobilizaçã o edípica como matriz para uma leitura do sexual.
Vejamos como isso se dá .

Gozo e destruição

Lembremos de alguns traços maiores do caso, tal como descrito por


Freud. Dora tinha dezoito anos quando levada a Freud por seu pai devido a uma
intençã o de suicídio, enunciada em uma carta, seguida de um acesso de desmaio.
Ela apresentava sintomas de depressã o, transtornos de cará ter e alguns sintomas
somá ticos, como tosse nervosa, dispneia e afonia. Dora já apresentava
transtornos neuró ticos desde a idade de oito anos (problemas respirató rios). Aos
dozes, aparecem dores de cabeça, tosses nervosas e pigarreamento. As dores de
cabeça desaparecem à idade de dezesseis anos, o resto persiste.
Com este quadro de sintomas, Freud procurará confirmar a presença de
um conjunto de condiçõ es, enunciadas desde o Estudos sobre a histeria, para o
aparecimento da histeria, como o trauma psíquico (que se organiza como um
“corpo estranho” no interior do sistema de representaçõ es do sujeito), o conflito
de afetos e a intervençã o da esfera sexual.
A aná lise de Dora, que só dura três meses, se coloca inicialmente sob o
signo da reivindicaçã o dirigida ao pai. Dora reclama que o amor de seu pai lhe
fora roubado pela ligaçã o deste com uma amante, Guiseppina Zellenka, chamada
no caso de “Sra. K”. Como em uma espécie de troca, ele a ofereceu à s
assiduidades do marido da amante, o Sr. K. Como vimos, Dora escrevera uma
carta na qual relatava sua intençã o de suicídio. Tal carta fora escrita apó s um
incidente envolvendo seu pai e o Sr. K. Dora afirmava ter sido assediada pelo Sr.
K, a beira de um lago, e exigia que seu pai tirasse satisfaçõ es com o referido. O Sr
K. nã o apenas negou a intençã o como acusou a jovem de se deixar influenciar por
literatura de cunho sexual, como o entã o conhecido Fisiologia do amor, de Paolo
Mantegazza..Vendo que o pai preferia acreditar no Sr. K, Dora ameaçou suicidar-
se.
Freud afirma que tal incidente com o Sr. K fornecia a ocasiã o do
traumatismo psíquico. Mas Freud recua à idade de 14 anos para encontrar outra
cena, também envolvendo o Sr. K. Na ocasiã o, ele convidara Dora a ir à sua loja
para ver, apó s, uma solenidade religiosa. Enquanto Dora esperava que o Sr. K
fechasse a loja, ele a agarrou e a beijou na boca. Tomada de profundo desgosto,
Dora desvencilhou-se dele e fugiu por uma porta aberta. No entanto, ela nada diz
sobre o incidente. Silêncio que indica ausência possível de reaçã o. Um sintoma
somá tico (uma alucinaçã o sensorial) aparece: a pressã o na altura do tó rax. Freud
deduz que tal pressã o era a marca do sentimento da ereçã o do pênis do Sr. K
quando este a apertou contra seu corpo. Freud afirma que a excitaçã o sexual que
deveria aparecer nesta cena foi vivenciada por Dora como desgosto. De onde se
segue a afirmaçã o: “Entendo por histérica toda pessoa para quem uma ocasiã o de
excitaçã o sexual provoca sobretudo ou exclusivamente desgostos, que esta
pessoa apresente ou nã o sintomas somá ticos”. Uma garota normal teria se
excitado, diz Freud.
A princípio, a posiçã o de Freud parece insustentá vel. Afinal, tudo se passa
como se ele recebesse em seu consultó rio uma garota que sofrera assédio sexual,
nã o tendo ideia melhor do que tentar convencê-la de que, afinal de contas, ela
está apaixonada por seu agressor. Note-se, no entanto, que a verdadeira idéia de
Freud consiste em dizer que Dora nã o reage nem como uma excitaçã o clara nem
com um simples desgosto. A simples repulsa violenta ao assédio indicaria que ela
nada quer do Sr. K. Mas isto nã o explicaria os sintomas somá ticos como a pressã o
no tó rax, nem a perpetuaçã o da relaçã o. Tais sintomas sã o, ao menos para Freud,
a marca de uma reaçã o contraditó ria onde desgosto e excitaçã o parecem investir
o mesmo processo. Desta forma, o problema da natureza traumá tica da situaçã o
vem do fato de haver algo de profundamente contraditó rio que impede a açã o.
Essa contradiçã o se expressa, por sua vez, em uma dimensã o estrutural
do sistema da relaçõ es no interior do qual o desejo de Dora está enredado. É
pensando nisso que Freud se pergunta o nível de cumplicidade que Dora teria em
relaçã o a esta situaçã o. Nã o teria algo da implicaçã o de seu desejo nesta maneira
de perpetuar, durante anos, uma situaçã o que, segundo Dora, era insuportá vel?
Como dirá Freud:

Ela tinha razã o : seu pai nã o queria levar em conta o comportamento do
Sr. K em relaçã o à sua filha, isto a fim de nã o ser incomodado na sua
relaçã o com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
havia sido cú mplice desta relaçã o e tinha descartado todos os índices que
testemunhavam sua verdadeira natureza33.

Sendo assim, a relaçã o nã o era exatamente insuportá vel, mas tinha uma funçã o
importante para o direcionamento do desejo de Dora. Freud lembra, por
exemplo, como ela estava a par, desde há muito, de toda situaçã o envolvendo seu
pai, isto graças à intervençã o de uma governanta. Ela também se ocupava dos
filhos da Sra. K, como se procurasse facilitar os encontros de seu pai. Sua relaçã o
com a Sra. K chega a ponto das duas dormirem juntas na mesma cama, à ocasiã o
em que Dora se hospedava na casa dos K, à beira do famoso lago.
Freud insiste que deve existir aqui a reatualizaçã o de um processo de
identificaçõ es que nã o ocorrera, de maneira satisfató ria, no interior do universo
familiar nuclear. Ele acredita que tal identificaçã o concernia a relaçã o entre Dora
e a Sra. K. No entanto, a partir de sua interpretaçã o, esta seria uma maneira de
ocupar o lugar da Sra. K diante de seu marido. Ele insiste vá rias vezes com Dora
que ela está apaixonada pelo Sr. K. Como se um dos fundamentos da histeria
fosse encontrado no fato de Dora ser incapaz de admitir e agir a partir da certeza
de uma paixã o que pareceria evidente a todos.
Poderíamos imaginar que o problema ligado ao reconhecimento de seu
amor pelo Sr. K fosse de ordem moral (apaixonar-se por um homem casado). No
entanto, ele é de outra ordem. Para Freud, há algo vinculado a uma certa
maturaçã o libidinal que nã o consegue se realizar. Primeiro, ele acredita haver
algo no comportamento de Dora que parece impedir a realizaçã o do curso
necessá rio das escolhas de objeto. Freud chega a afirmar que um dos traços
33
FREUD, idem, p. 210
característicos da neurose é a incapacidade de satisfazer as “exigências reais do
amor”. No caso de Dora, isto equivale dizer que a posiçã o de ser objeto de desejo
de alguém a quem ela amasse lhe aparecia como uma experiência insuportá vel.
Como se o desejo da histérica devesse permanecer, necessariamente, em posição de
insatisfação.
No entanto, há de se notar como Freud nã o teme aqui colocar-se na
posiçã o daquele que enuncia para a paciente qual o objeto de seu desejo. Ele
fornece, de maneira absolutamente expeditiva, a norma na qual o desejo da
paciente deve se reconhecer. Nã o sã o poucas as vezes em que Freud corta
qualquer possibilidade de elaboraçã o, por Dora, de sua pró pria experiência
afetiva, isto ao nomear, em seu lugar, o objeto de seu desejo. Há algo de muito
diferente entre a paciente elaborar, através de sua experiência, a nomeaçã o do
objeto de seu desejo e o analista nomeá -lo de forma absolutamente normativa.
Neste caso, a reaçã o do paciente nã o pode ser vista como alguma forma de
denegaçã o, mas como a compreensã o de que um objeto só advém necessá rio ao
desejo quando se enuncia no interior da série de contingências que
determinaram seu encontro. Neste sentido, o objeto nã o é o mais importante,
mas a rede de relaçõ es que construíram seu lugar.
A interpretaçã o de Freud produz um curto-circuito na constituiçã o de tal
rede, ele bloqueia seu aparecimento e a elaboraçã o singular de sua constituiçã o
(que poderia estar “naturalmente” em vias de se produzir). Se assumisse seu
amor pelo Sr. K, Dora o amaria à maneira de Freud, a maneira do médico que diz
ao paciente para onde seu desejo deve ir, qual é seu objeto (mesmo que esse
objeto nã o seja exatamente socialmente reconhecível, no caso, um homem
casado) e nunca à sua maneira. Como o amor é a elaboração singular de um
encontro contingente, nã o seria incorreto dizer que Freud fez com que toda a
paixã o pelo Sr. K perdesse o sentido para Dora. Freud precisa fazer isto para
fornecer à Dora o que seria a histó ria de seu desejo, uma histó ria de conflitos
edípicos nã o resolvidos. Mas talvez a histó ria de Dora fosse outra e sua forma de
ir embora depois de três meses fosse simplesmente a exposiçã o de tal erro.

Morrer queimada junto ao pai

Lembremos, por exemplo, dos dois sonhos de Dora interpretados por Freud. O
primeiro:

Há um incêndio na casa. Meu pai está levantado diante de meu leito e me


acorda. Visto-me com pressa. Minha mã e procura salvar sua caixa de joias
mas papai diz: “Nã o quero que meus dois filhos sejam carbonizados por
causa de sua caixa de joias”. Descemos com pressa e, assim que estou do
lado de fora, acordo.

Trata-se de um sonho que Dora teve vá rias vezes. Freud procura localizar
a primeira incidência do sonho. De fato, ele ocorre logo apó s o assédio que Dora
sofreu do Sr. K à beira do lago. O que leva Freud a acreditar que se trata de um
sonho relacionado ao incidente. Ao relatar tal intepretaçã o, Dora produz uma
associaçã o. Um dia apó s a cena do lago, ela estava dormindo em seu quarto
quando acordou bruscamente e viu diante dela o Sr. K. Os dois discutiram e ele
afirmou haver entrado no quarto para pegar algumas coisas. Dora procura uma
chave para trancar o quarto, mas a chave acaba por desaparecer, o que a leva a
acreditar que o Sr., K a pegou. Com medo de que ele aparecesse bruscamente,
Dora sempre veste-se rapidamente.
Por outro lado, a caixa de joias remeteria a duas associaçõ es. Primeiro, a
uma situaçã o na qual Dora viu uma briga entre seu pai e sua mã e a propó sito de
uma joia. A mã e havia pedido brincos de pérola em forma de gotas, mas recebeu
um bracelete. Furiosa, ela afirma que, se é para dar presentes que ela nã o quer,
melhor dar para outra mulher. Freud afirma que Dora se viu como esta outra
mulher. No entanto, Dora nã o assente à interpretaçã o.
A segunda associaçã o remete ao Sr. K. Ele havia presenteado Dora com
uma caixa cara de joias. Freud lembra que “caixa de joias” é também uma
expressã o para vagina. Dora afirma entã o que sabia que ele, Freud, diria isto.
Segue-se a interpretaçã o freudiana: quem recebe um presente deve dar algo em
troca. Dora saberia que, no fundo, o Sr. K espera conquistá -la e transar com ela.
Ela estaria disposta a dar aquilo que sua mã e nã o deu para seu pai, a saber, a
gratidã o. No entanto, no momento em que ela poderia realizar seu desejo, eis que
o antigo amor de Dora por seu pai é chamado de novo para defende-la do amor
atual pelo Sr. K.
Dora nã o aceita a interpretaçã o freudiana. Note-se que a associaçã o da
caixa de joias com o ó rgã o sexual feminino nã o é uma produçã o associativa de
Dora, mas uma sugestã o de Freud, da mesma forma que a rivalidade entre Dora e
sua mã e e respeito da destinaçã o das joias. Tais interpretaçõ es deixam muito
claro o desejo freudiano de conduzir a situaçã o de Dora aos conflitos matriciais
do Complexo de É dipo.
Freud parece mais bem sucedido quando explora outra via do sonho, esta
que se refere ao incêndio. Dora lembra que seu pai e sua mã e brigaram porque a
mã e tinha o há bito de trancar a sala de jantar. Como o quarto do irmã o só tinha
acesso através da sala de jantar, ele ficava necessariamente trancado. O pai
protesta dizendo que o filho poderia precisar sair à noite. Como houve uma
tempestade violenta e o pai afirmou ter medo de incêndio, já que a casa nã o tinha
para-raio, Dora produziu a associaçã o.
Freud tenta associar o incêndio a situaçõ es infantis. Ele lembra que
normalmente proíbe-se crianças de brincar com fogo por medo delas urinarem
na cama, isto devido a uma oposiçã o á gua-fogo. “Nã o poder sair à noite” deve
também ser compreendido como “nã o poder ir ao banheiro”. Freud conclui que
tanto ela quanto seu irmã o deviam ter incontinência uriná ria até uma idade
avançada. De fato, o irmã o teve até o sétimo ano e Dora entre o sétimo e oitavo
ano. Um médico foi chamado, que diagnosticou fraqueza nervosa e recomendou
fortificantes. Freud coloca a incontinência na conta da descoberta da
masturbaçã o, isto devido a uma ideia da época que colocava os dois fatos em
relaçã o. Dora nega veementemente tal associaçã o.
No entanto, no decorrer da interpretaçã o de Freud, Dora demonstra ter
consciência da natureza da doença de seu pai. Ele era sifilítico e tudo indicava
que pegara a doença antes do casamento. Sua mã e parecia ter sintomas ligados à
transmissã o da doença, como dores no ventre e leucorreia. Na dimensã o
fantasmá tica, Dora também se colocava como portadora deste vínculo ao pai, daí
sua maneira patoló gica de vivenciar a sexualidade, em especial a sexualidade
genital. Sua histeria poderia assim ser interpretada como a sua maneira de
participar da doença do pai: “Meu pai estragou a experiência da sexualidade”,
pensa Dora. “Ele produziu um vínculo indissociá vel entre sexo e doença. Minha
maneira de ser a filha de meu pai, de assumir certa filiaçã o, é perpetuando tal
vínculo através da histeria”. A impotência produzida pela sífilis mostra, para
Dora, como a força do desejo pode acabar por destruir a própria possibilidade de
realização do desejo.
Note-se como, ao menos se seguirmos Dora, o problema da histeria está
ligado à incapacidade da figura paterna dissociar sexo e destruiçã o. O pai nã o
apenas destró i a mã e, mas adoece devido a seu desejo. A experiência do desejo
sexual transmitida pela figura paterna nã o é tranquilizadora, mas é encarnaçã o
de um índice de perigo e, sobretudo, de impotência. Por isto, Dora nã o pode
chegar perto demais da assunçã o de sua pró pria sexualidade. Dora paga com seu
corpo o colapso da ilusã o de que a ordem patriarcal poderia fornecer lugares
estabilizados ao desejo.

Madona na estação ferroviária

Freud ainda interpretará um segundo sonho de Dora antes do final de aná lise. A
seu ver, o sonho confirmaria algumas hipó teses maiores de sua interpretaçã o.
Ele é apresentado da seguinte forma:

Ando em uma vila que nã o conheço. Entro na casa que moro, vou a meu
quarto e encontro uma carta de minha mã e. Ela escreve nã o ter querido
informar que papai estava doente. “Agora que ele está morto, você pode
vir se quiser (?)”. Tento ir à estaçã o ferroviá ria. Pergunto talvez cem vezes
onde ela se encontra e sempre recebo a mesma resposta: - Cinco minutos.
Encontro-me em uma floresta espessa onde um homem me afirma: -
Ainda duas horas e meia. Ele propõ e me acompanhar, mas recuso. Vejo a
estaçã o diante de mim, mas nã o consigo alcançá -la. Depois, encontro-me
em casa. A empregada abre e responde: - Sua mã e e os outros já estã o no
cemitério. Apó s esta resposta, vou a meu quarto e leio, sem tristeza e
calmamente, um grande livro que estava lá .

A vila no sonho remete a um balneá rio alemã o cuja imagem encontrava-se


em um á lbum presenteado por um jovem engenheiro interessado em Dora (com
o qual ela se casará mais tarde). A caminhada na vila, por sua vez, aparece em
uma associaçã o com sua primeira visita a Dresden, onde ela foi sozinha à
Gelmä ldegalerie Alte Meister a fim de contemplar, durante duas horas, a Madona
sistina, de Rafael. Freud associa a galeria à estaçã o ferroviá ria, assim como Dora
ao jovem engenheiro que queria conquistá -la e a Madona à Sra. K. O sonho
parece entã o encaminhar-se para a figuraçã o de um encontro amoroso que
nunca se realiza.
A pergunta insistente sobre o lugar da estaçã o é associada por Dora a uma
disputa com sua mã e. Na noite do sonho, o pai pede a Dora um copo de cognac,
pois sem beber ele nã o consegue dormir. Ela pergunta à mã e onde está a chave
do armá rio no qual se encontra a garrafa. No entanto, a mã e nã o escuta, o que faz
Dora gritar: “Faz cem vezes que lhe peço a chave”. Freud associa a chave à caixa
de joias, ou seja, à possibilidade de abrir-se para a sexualidade. Da mesma forma,
a estaçã o ferroviá ria será associada à vagina.
A figura da Madona parece esclarecer a natureza do conflito figurado no
sonho. Enquanto mã e virgem, Maria fornece a imagem de um feminino sem sexo,
profundamente idealizado e ancorado na maternidade. Note-se ainda que, no
quadro de Rafael, Maria está ao lado de Sã o Sixto e Santa Barbara. Freud nã o
explora esta via, mas Barbara foi decapitada por seu pró prio pai por abjurar a fé
cristã . Para isolá -la do contato do mundo, o pai a trancara em uma torre. Mesmo
sendo bela, ela recusava todos os pretendentes. Ao perceber a força de sua fé
cristã , o pai a entregou ao prefeito, que mandou torturá -la, extirpando seus seios.
Como nem isto abalou a fé de Barbara, seu pai a decapitou. Ou seja, o quadro nã o
deixa de se referir à destruiçã o da filha pelo pai e à impossibilidade do pai
permitir à filha operar suas pró prias escolhas.
No entanto, a carta no sonho é associada por Dora a uma carta que a Sra. K
lhe escrevera convidando-a a ir à casa do lago. Por sua vez, tal carta se vincula à
cena do assédio à beira do lago. Freud pede a Dora que conte novamente a cena
e, desta vez, uma precisã o importante aparece. Ao abrir seu amor por Dora, o Sr.
K havia dito: - Você sabe, nã o tenho nada com minha mulher (- Sie wissen, ich
habe nichts an meiner Frau). Depois disto, Dora lhe dá um tapa na cara e resolve
voltar a pé para a vila. No caminho, ela encontra um homem e lhe pergunta
quanto tempo para chegar na vila. – Duas horas e meia, é a resposta.
Freud poderia ter seguido por mais tempo a associaçã o entre a carta e a
Sra. K. Se é a Sra. K quem escreve a carta, entã o nã o é difícil concluir que a frase:
“Agora que seu pai está morto, você pode vir se quiser” indica o desejo de se
confrontar com algo que se realiza na relaçã o com a amante, para além do
vínculo ao pai. A “morte do pai” permitiria a Dora vir ao encontro de sua atraçã o
pela Sra. K, que no sonho é idealizada sob a forma da Madona. O desejo de saber,
indicado através da leitura calma do livro apó s o enterro do pai, demonstra, por
sua vez, o desejo de compreensã o de sua sexualidade que só poderá se dar neste
lugar onde Dora quer vir, aceitando o convite da Sra. K.
Lembremos como, quando tratada por Felix Deutsche vinte quatro anos
depois34, Dora falará compulsivamente sobre sua frigidez e infelicidade conjugal
ininterrupta (ela casara-se com Ernst Adler, o jovem engenheiro, anos depois de
ter sido analisada por Freud). Ela reclamará do egoísmo dos homens e dirá nã o
poder ter um segundo filho devido ao aspecto traumá tico das dores de parto que
sentiu à ocasiã o do nascimento de seu primeiro filho. Os sintomas somá ticos
continuaram, acrescidos de outros ligados à audiçã o e à constipaçã o.
Esta miséria afetiva ligada à assunçã o da heterossexualidade (frigidez,
desgosto dos homens, experiência traumá tica do parto) deixa aberta questõ es
que nã o temos respostas. Pois poderíamos nos perguntar se a homossexualidade
nã o seria uma possível vida afetiva melhor para Dora. Pode-se sempre dizer que
a maneira dessexualizada com que a Sra. K aparece nas fantasias de Dora (a
associaçã o com a Madona, de Rafael, assim como o pró prio desgosto sexual da
Sra. K) lembra como um eixo maior de sua questã o encontra-se na dificuldade em
aproximar vida afetiva e experiência de gozo sexual, qualquer que seja este gozo.
Mas isso nã o é seguro. É claro como o relato do caso Dora demonstra uma
participaçã o do discurso clínico em disposiçõ es normativas muito tipificadas e
produtoras de sofrimento. Dora a todo momento se defende das interpretaçõ es
de Freud, que tem a honestidade intelectual de descrever tais recusas. Sua
compreensã o edípica de que a histeria está vinculada a uma identificaçã o ao pai
34
DEUTSCH, Felix; Apostila ao “Fragmento de análise de um caso de histeria”, de Freud. (mimeo)
sempre desperta quando uma nova escolha afetiva se apresenta, impede Freud
de trabalhar como novas escolhas nã o podem se realizar porque elas implicam
perda de formas de gozo que o deslocamento em relaçã o à norma social permitiu
preservar. De certa forma, Dora goza como o pai (a insistência na importâ ncia
das sensaçõ es orais fala a esse respeito), mas isso significa que essa foi sua forma
de preservar a disparidade de seu gozo em relaçã o ao lugar que esperem que ela
ocupe. Nã o por outra razã o, a aná lise só poderia terminar em um fracasso .
Mas tudo se complica porque haverá , em Freud, algo mais que poderemos
encontrar em sua teoria da sexualidade. Esse “algo mais” do que o uso
terapêutico dos quadros normativos de socializaçã o do desejo nos exigirá um
passo para trá s. Um passo em direçã o aos Três ensaios sobre a teoria sexual.
Falar de sexo
Aula 4

Na aula passada, apresentei para vocês algumas características principais da


teoria freudiana da histeria. A ideia principal consistia em apresentar eixos
fundamentais dessa clínica do sexual que se constitui no final do século XIX e
início do século XX e que tem na psicaná lise uma de suas expressõ es
fundamentais. No entanto, tratava-se de apresentar a emergência dessa clínica
em sua dupla inscriçã o. Primeiro, era importante expor sua estrutura disciplinar,
suas dinâ micas de conformaçã o e categorizaçã o, isso para que em um segundo
momento pudéssemos dar conta de sua dimensã o propriamente insurrecional.
Eu havia insistido desde o início que uma leitura da emergência da psicaná lise
como clínica do sexual precisaria saber como mobilizar essa dupla inscriçã o
contraditó ria, precisaria ser fiel a tal contradiçã o e explora-la em seus meandros.
Tendo isso em vista, partimos da histeria, o que nã o poderia ser diferente
já que é a partir da reflexã o sobre a histeria que nasce a clínica psicanalítica e
para tanto eu privilegiei uma leitura possível do caso Dora, de 1905. No campo
psicanalítico atual, diríamos que a histeria é uma neurose, ou seja, certa posiçã o
subjetiva do desejo na qual as formas do conflito psíquico se servem sobretudo
de estruturas de recalque e de denegaçã o. No caso, da histeria, as conversõ es
somá ticas costumam também desempenhar papel fundamental na determinaçã o
das formas do conflito.
A categoria clínica da neurose é utilizada atualmente apenas pela
psicaná lise, tendo sido abandonada pela psiquiatria desde o DSM III, que
privilegiou uma categorizaçã o do sofrimento psíquico através de transtornos e
disfuncionamentos em funçõ es psicoló gicas específicas, ao invés de continuar
operando com estruturas holistas que descrevem orientaçõ es globais em relaçã o
ao desejo. Ou seja, as neuroses indicam uma estrutura geral de comportamento
que modifica as relaçõ es do sujeito ao Outro, a si e ao mundo. Baseada nas
divisõ es da personalidade psíquica produzidas por conflitos, as neuroses
histéricas, segundo Freud, deviam necessariamente mobilizar um trauma
psíquico, contradiçõ es de afetos e deviam partir da esfera sexual. Ou seja, na base
de toda histeria, e isto Freud traz de Charcot, haveria traumas psíquicos vindos
da estrutura profundamente contraditó ria de afetos na esfera sexual
(atraçã o/desgosto, idealizaçã o/repugnâ ncia, etc.). essa estrutura contraditó ria
de afetos acabava por produzir uma repressã o sexual “que vai além da medida
normal”35.
Lembrei a vocês como Freud nã o inventara a histeria. Antes, ela era uma
das categorias mais antigas da medicina ocidental, já presente em tratados de
Hipó crates. Na ocasiã o, ela se referia ao ú tero, de onde se segue o fato dela
derivar de hystera: ú tero, em grego. Língua na qual histerikos será entã o “o que
concerne o ú tero”. Histeria indicava os transtornos orgâ nicos provocados pelos
movimentos do ú tero, ideia que podemos já encontrar em um papiro egípcio de
1900 AC: o chamado “papirus de Kahun”. O ú tero se movia por estar vazio, no
que a profilaxia contra a histeria nã o era outra que a gravidez e a atividade
sexual.

35
FREUD, Três ensaios, p. 59
É claro como havia, na base de categoria clínica, consideraçõ es sobre a
pretensa naturalidade do corpo feminino, sobre as funçõ es sociais que ele deve
desempenhar como mã e e como certa sexualidade genital lhe seria vital. Nó s
vimos, na aula passada, como Freud abordava tais conflitos psíquicos na esfera
do sexual e procurava, a sua maneira, encaminha-los para alguma forma de cura.
Ele os lê como motivados por certa impossibilidade de maturaçã o, certa
permanência do sujeito em está gios nos quais vínculos a situaçõ es edípicas
permanecem, assim como permanece também formas de gozo nã o submetidas
ao primado genital. Na histeria, dirá Freud, há sempre certa autonomizaçã o das
zonas eró genas em relaçã o aos genitais. No que se vê como Freud continua a
trabalhar com uma noçã o de patologia ligada ao conceito de degenerescência, de
preservaçã o de arcaísmos.
Neste sentido, lembremos como Freud lê toda a relaçã o de Dora a uma
tríade de amantes composta pelo seu pai por sua amante e o marido como
expressã o de certa fixaçã o na escolha edípica de objeto e na impossibilidade de
assumir uma possível paixã o por aquele que, afinal, lhe assediava há anos. Freud
lia as ambivalências de Dora como expressã o de sentimentos contraditó rios de
afeto e rejeiçã o ao mesmo sujeito. Nesse sentido, ele insiste em ler os afetos de
Dora a partir de uma histó ria, de uma narrativa na qual encontramos o abandono
necessá rio dos vínculos familiares e assunçã o da maturidade afetiva. Por outro
lado, ele também percebe o investimento de Dora em um gozo ligado a oralidade,
como se seu corpo tivesse um investimento oral que resiste à integraçã o como
prazer preliminar do primado genital. O trabalho analítico de Freud consistirá
em, de certa forma, acelerar o desenvolvimento que nã o teria sido realizado, seja
na dimensã o das escolhas de objeto, seja na dimensã o da integraçã o genital do
gozo.
Vimos como Dora, em vá rios momentos, recusava as interpretaçõ es de
Freud, até abandonar a aná lise depois de nã o mais do que três meses. Eu cheguei
mesmo a sublinhar que haveria outras vias a explorar a respeito da posiçã o de
Dora, que nã o seriam compatíveis com essa concepçã o de fixaçã o. Uma delas se
referia a degradaçã o da ordem patriarcal devido ao vínculo entre sexo e
destruiçã o na figura de um pai sifilítico. Isso nã o só marca o gozo sexual com a
experiência da destruiçã o e da doença, como tende a estender-se a outras figuras
masculinas. Tal articulaçã o entre sexo e destruiçã o na figura paterna tende, no
caso de Dora, a estender-se a outras figuras de autoridade. Isso talvez explique
porque sua identificaçã o com a amante do pai ganhe força suplementar. Ela
acaba por se identificar a uma mulher que se afasta do marido e procura por um
amante impotente.
Segundo, eu insistira também na maneira com que essa clínica do sexual
que nasce pelas mã os de Freud tinha claras dimensõ es disciplinares e o peso da
dimensã o disciplinar recai sobre o uso extensivo de certa forma de socializaçã o
do desejo através do recurso ao É dipo, ou seja, através do recurso a certa
concepçã o de maturaçã o e funçã o social. Assim, ao falar francamente sobre sexo
com uma garota, Freud nã o apenas escutava. Ele a ensinava como falar, em que
condiçõ es seu desejo poderia ser colocado em discurso, qual histó ria ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Como disse anteriormente, falar nã o é
apenas liberar. Falar é também internalizar uma gramá tica do desejo. Assim,
podemos ler o caso freudiano também como a histó ria de um conflito. O conflito
que ocorre quando as relaçõ es sexuais, seus ó rgã os e funçõ es sã o postos em um
determinado regime de “falar clínico”, sã o levados a assumir certas histó rias e
dinâ micas. Se assumirmos tal perspectiva, o caso Dora talvez aparecerá como um
interessante relato de certa forma de resistência que nã o é apenas uma reaçã o
terapêutica negativa, mas a insistência da dificuldade em constituir uma fala
sobre a sexualidade que seja capaz de dar voz aos arranjos contingentes que a
sexualidade produz. A posiçã o de Freud é aquela de quem fornece uma norma
geral de fala. A posiçã o de Dora é aquele de quem nã o a aceita completamente. É
esta incompletude em relaçã o à norma de fala fornecida por Freud que produzirá
a ruptura do tratamento.
No entanto, como é pró prio das estratégias de Freud, mais do que
descrever desvios em relaçã o a uma sexualidade normal, ele tende a generalizar
a histeria como quadro geral de socializaçã o através da identificaçã o com o
g6enero feminino. Isso implica uma consideraçã o estrutural a respeito das
identidades de gênero, a saber, que nã o há identificaçã o de gênero sem a
produçã o de sofrimento, sem a produçã o de sintomas. Em suma, nã o há gênero
sem sintoma. No caso da posiçã o feminina, esses sintomas sã o pensados de
forma preferencial através da histeria. É certo que Freud tem um horizonte de
cura e tratamento a lhe guiar. Tal horizonte se refere, sobretudo, a certas
disposiçõ es normativas vindas do complexo de É dipo e de sua maneira de
compreender os conflitos afetivos a partir da repetiçã o modular de conflitos
familiares. Mas o verdadeiro interesse do caso Dora está em outro lugar. Na
verdade, Freud acaba por mostrar, a contrapelo, os limites desse dispositivo
clínico fundado na mobilizaçã o edípica como matriz para uma leitura do sexual.

Libido e história

Mas as elaboraçõ es trazidas por Freud tem outras dimensõ es, e isso explicará
muito da força da psicaná lise a partir de entã o. Ela será o campo de um embate
interno entre, digamos, a norma e a insurreiçã o. Mas para que isso fique mais
visível, devemos ir em direçã o a outro texto, no caso os Três ensaios sobre a
teoria sexual, cuja primeira ediçã o data do mesmo ano de publicaçã o do caso
Dora. Pois lá encontramos as bases de uma concepçã o inovadora e
desnaturalizada do sexual. A tensã o interna à psicaná lise pode ser
compreendida, entre outras coisas, através da tentativa de paulatinamente
readequar os dispositivos clínicos à s elaboraçõ es conceituais, que por sua vez
sã o frutos de observaçã o clínica.
No prefá cio à quarta ediçã o do livro, Freud reconhece que sua “ênfase na
importâ ncia da vida sexual em todas as realizaçõ es humanas e a tentativa de
ampliaçã o do conceito de sexualidade”36 era exatamente o ponto de maior
resistência contra a psicaná lise. E, neste ponto, uma operaçã o surpreendente
ocorre. Freud, tã o reticente em desconsiderar a novidade de suas construçõ es,
afirma que, afinal, Platã o e Schopenhauer já haviam indicado como a sexualidade
era o eixo de compreensã o do humano. Esse recurso à filosofia nã o é apenas
estratégico. Ele aparecerá em outros momentos decisivos da reflexã o de Freud
como, por exemplo, na defesa de sua segunda tó pica da teoria das pulsõ es. Isso
indica compreensã o de que a reflexã o sobre a sexualidade exige um discurso que
nã o é apenas clínica, mas que explicita seu enraizamento em regimes críticos de
discurso, como o discurso filosó fico.
36
FREUD, Sigmund; Três ensaios sobre a teoria sexual, p. 18
Isto fica claro na escolha do termo chave para a organizaçã o da reflexã o
de Freud sobre a sexualidade, a saber, libido. O termo tem atrá s de si uma longa
histó ria cujas raízes nos remetem ao pensamento teoló gico-filosó fico ocidental,
em especial Santo Agostinho. Pois é dele afirmaçõ es como:

A libido é tã o forte que nã o apenas domina o corpo inteiro nem só dentro


e fora, mas também põ em em jogo o homem todo, reunindo e misturando
entre si o afeto do â nimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a
voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto é assim que
o momento preciso em que voluptuosidade chega ao cú mulo, se ofusca
quase por completo a razã o e surge a treva do pensamento37.

Ou seja, a libido aparece nã o apenas como excesso e impureza a se regular


através de prá ticas de contençã o visando o fortalecimento de si. Ela é a marca do
involuntá rio no interior do voluntá rio. Ela é a vontade submetida ao que ofusca
quase completamente a razã o e impõ e as trevas ao pensamento. Essa
insubmissã o do corpo expressa no humano a insubmissã o original à lei divina.
Deus colocou no humano a marca dessa insubmissã o primeira para que ela possa
ser superada através do exercício autô nomo da vontade e do governo, para que
dessa forma ela nã o mais ocorra. Como lembrará Foucault:

O homem caído nã o caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisã o marca sua pró pria vontade que se divide,
retorna-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus38.

É importante ter esse horizonte em mente ao tentarmos compreender o


que Freud irá fazer com a noçã o de libido. Ela é o que nã o se governa, o que nã o
se integra e que levará o humano à polimorfia. Isso explica a maneira singular
com que começa os Três ensaios sobre a teoria sexual. Freud começa por falar
sobre o comportamento humano em geral para descrever as perversõ es como
algo que permite a intelecçã o das tendências internas ao comportamento dito
normal. Exemplar , por exemplo, é sua maneira de abordar as “inversõ es” para ao
fim generaliza-la ao lembrar da tendência geral do humano à bi-sexualidade. Isso
a ponto dele terminar por dizer: “todas as pessoas sã o capazes de uma escolha
homossexual de objeto e também a fizeram em seu inconsciente”39. Ou ainda: “Na
concepçã o da psicaná lise, portanto, também a escolha exclusiva do homem pela
mulher é um problema que requer explicaçã o, nã o é algo evidente em si, baseado
em uma atraçã o fundamentalmente química”40. Nesse sentido, a reflexã o de
Freud é um estudo sobre a plasticidade da libido como dado fundamental do
humano.
Essa plasticidade reenquadra a tendência evolucionista da clínica da
sexualidade da época, como vimos em nossa aula sobre Krafft-Ebing. Pensemos,
por exemplo, em afirmaçõ es de Freud como:

37
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
38
FOUCAULT, Michel; Les aveux de la chair, p. 334
39
FREUD: três ensaios, p. 34
40
Idem, p. 35
A diferença mais profunda entre a vida amorosa no mundo antigo e no
nosso estaria em que os antigos ressaltavam a pulsã o mesma, e nó s
enfatizamos o objeto. Eles celebravam a pulsã o e se dispunham, em nome
dela, a enobrecer até mesmo o objeto inferior, enquanto nó s
menosprezamos a atividade pulsional em si, achando que apenas os
méritos do objeto a desculpam41.

Essa colocaçã o é de grande importâ ncia. Freud está a dizer que os antigos
tem sobretudo uma diferença em relaçã o a compreensã o da articulaçã o entre
pulsã o e objeto. Eles investem o processo, nã o o objeto, como nó s fazemos. Em
outras palavras, eles desejam o desejo, nã o exatamente o objeto. Por isso, podem
chegar até a enobrecer um pretenso “objeto inferior”. De certa forma, os antigos
estã o mais pró ximos de uma des-individualizaçã o que é pró pria a um impulso
sexual que nã o tem objeto que lhe seja necessá rio, isso se levarmos em conta que
Freud dirá mais tarde que o objeto é aquilo que há de mais variá vel na pulsã o.
Essa ausência de naturalidade entre o objeto e o desejo é, de certa forma, perdida
por nó s, que nos enganamos mais facilmente com a crença de que amamos o
objeto e nã o o desejo. Ou seja, é possível dizer que os antigos estã o mais
pró ximos da dinâ mica real da pulsã o do que nó s. Como se nossa histó ria fosse a
histó ria de um longo desconhecimento. O que inverte as perspectivas
teleoló gicas e etapistas que marcavam a clínica do sexual de entã o.

Transposições

Procuremos entã o compreender, nos termos de Freud, o que devemos


entender por libido. Freud a define normalmente como força quantitativamente
variá vel que permite a comparaçã o de processos e transposiçõ es no domínio da
excitaçã o sexual. A caracterizaçã o da libido como quantum de energia nã o é feita
tendo em vista alguma forma de “mensuraçã o” de processos psíquicos entre si. É
verdade que Freud define o ponto de vista econômico (que, juntamente com o
tópico e o dinâmico, compõ e a perspectiva de apreensã o de fatos
metapsicoló gicos) como sendo aquele que: “se esforça em seguir os destinos
(Schicksale) das grandezas de excitaçã o (Erregungsgrössen) e em obter uma
estimativa (Schätzung), ao menos, relativa destas”42. Mas a afirmaçã o diz o que
ela quer dizer. Se o problema da estimativa é afetado por uma clá usula de
relativizaçã o, é para lembrar que o ponto realmente importante diz respeito à
apreensã o do trajeto, do “destino” dos quanta de energia libidinal. Sobre o uso do
termo « destino » neste contexto, lembremos que :

Ele indica que o que está em jogo em um ser humano no que diz respeito
as suas pulsõ es é propriamente humano e produto de seres singulares,
isto ao mesmo tempo que uma pulsã o, devido ao fato de seus
componentes escaparem ao sujeito que é dela o teatro, aparece como
anô nima, despersonalizada, a-subjetiva 43.
41
FREUD, Três ensaios, p. 40
42
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke vol. X, op. cit., p. 280
43
DAVID-MÉNARD, Monique; Les pulsions caractérisés par leurs destins : Freud s´éloigne-t-il du
concept philosophique de Trieb ? In: BIENESTOCK (org.); Tendance, désir, pulsion, Paris: PUF,
2001, p. 207
Na verdade, isto demonstra como o ponto de vista econô mico visa
permitir a Freud pensar esta plasticidade pró pria a uma energia psíquica
caracterizada, principalmente, pela sua capacidade em ser transposta, invertida
(Freud usa, nestes casos, o termo Verkehrung), desviada, recalcada, em suma,
deslocada de maneira aparentemente inesgotá vel. Princípio de deslocamento
constante que leva Freud a caracterizar inicialmente a libido como energia que
circula livremente, “energia livre” em relaçã o à quilo que poderia barrar tal
movimento, ou seja, em relaçã o a sua ligaçã o (Bändigung) através da subsunçã o
a representaçõ es.
Que Freud tenha refletido sobre tal plasticidade, de maneira privilegiada,
a partir de fenô menos ligados à sexualidade, eis um ponto absolutamente
central. Contrariamente a Krafft-Ebing, por exemplo, Freud nã o define a
sexualidade como uma funçã o natural a serviço da reproduçã o. Ao contrá rio, ele
quer mostrar como há , no sujeito, o que só se manifesta de maneira polimó rfica,
fragmentada e que encontra seu campo privilegiado, necessariamente, em uma
sexualidade nã o mais submetida à ló gica da reproduçã o, encontra seu campo em
um impulso corporal que desconhece telos finalistas, como é o caso da
reproduçã o. Daí porque a libido é inicialmente caracterizada como auto-eró tica,
inconsistente por estar submetida aos processos primá rios e, por fim, perversa
(no sentido de ter seus alvos constantemente invertidos, desviados e
fragmentados).
Este é um ponto importante por lançar algumas luzes a respeito do
conceito freudiano de “sexual”. Longe de procurar fundar algum tipo de moral
naturalizada através da elevaçã o de Eros à fundamento do ser, as reflexõ es
freudianas tem o interesse de mostrar como “sexual” é o nome psicanalítico para
: “um radical impasse ontoló gico”44. A este respeito, lembremos como, desde o
início, as pulsõ es sexuais nã o sã o naturalmente vinculadas aos imperativos de
reproduçã o, mas sã o tendencialmente polimó rficas, sempre prontas a desviarem
de maneira aparentemente inesgotá vel os alvos e objetos sexuais. Como se
estivéssemos diante de um paradoxo : o paradoxo do desvio em relaçã o a uma
norma inexistente. O primado da sexualidade genital a serviço da reproduçã o é a
ú ltima fase que a organizaçã o sexual atravessa e só se impõ e através de
processos profundos de repressã o e recalcamento. É isto que Freud tem em vista
ao afirmar: “A vida sexual compreende a funçã o de obtençã o do prazer através
de zonas corporais; ela é posta apenas posteriormente (nachträglich) a serviço
da reproduçã o”45. Daí porque haveria “algo de inato na base das perversõ es, mas
algo que é inato a todos os homens”46. Algo que diz respeito à polimorfia
perversa que encontraríamos em toda sexualidade infantil. Polimorfia que deve
ser compreendida aqui como reconhecimento desta posiçã o na qual a
multiplicidade dos prazeres corporais nã o se submete à hierarquia teleoló gica
dos imperativos de reproduçã o com seu primado do prazer genital.
Assim, pelos prazeres corporais nã o se submeterem imediatamente a uma
hierarquia funcional, cada zona eró gena (boca, â nus, ouvidos, ó rgã os genitais,
etc.) parece seguir sua pró pria economia de gozo e cada objeto a elas associados

44
ZUPANCIC, Alenka; Sexuality and ontology, In: Why psychoanalysis?, Uppsala : NSU Press, 2008,
p. 24
45
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, vol XVII, op. cit, p. 75
46
Idem, Gesammelte Werke, vol. V, op. cit., p. 71
(seio, fezes, voz, urina) satisfaz uma pulsã o específica, produzindo um “prazer
específico de ó rgã o”. O melhor comentá rio do sentido deste prazer de ó rgã o vem
de Alenka Zupancic :

Em relaçã o à necessidade de alimentar-se, com a qual ela inicialmente se


vincula, a pulsã o oral persegue um objeto distinto do alimento : ela
persegue (e procura repetir) a pura satisfaçã o produzida na regiã o da
boca durante o ato de nutriçã o (...) nos seres humanos, toda satisfaçã o de
uma necessidade, a principio, permite outra satisfaçã o ocorrer, que tende
a advir independente e a auto-perpetuar-se na procura e na reproduçã o
de si47.

Freud chamará de “pulsõ es parciais” tais pulsõ es que nã o se submetem à


satisfaçã o com representaçõ es globais de pessoas produzidas graças à uma
imagem unificada do corpo. Ele chamará também de “auto-eró tica” tal satisfaçã o
por ela procurar e encontrar seus objetos no corpo pró prio do sujeito desejante,
já que mesmo o seio e a voz do Outro materno sã o compreendidos pelo bebê
como sendo objetos internos à sua pró pria esfera de existência48.

Uma integração nunca completa

No entanto, vá rios psicanalistas insistiram no fato do processo de


maturaçã o sexual, através da submissã o da sexualidade polimó rfica e auto-
eró tica ao primado genital, nunca ser realizada de maneira completa. Jacques
Lacan compreendeu isto muito bem ao afirmar:

As aspiraçõ es mais arcaicas da criança sã o, ao mesmo tempo, um ponto de


partida e um nú cleo nunca totalmente resolvido sob alguma forma de
primado genital ou de pura e simples Vorstellung do homem sob a forma
humana, tã o total que supomos andró gena por fusã o”49.

Ou seja, o primado genital sempre é frá gil, está continuamente ameaçado.


A ligaçã o das pulsõ es parciais em uma Unidade nunca é completamente possível.
Como se houvesse algo a determinar a sexualidade que nã o poderia vincular-se à
imagem unificada de uma pessoa. Algo que do ponto de vista da pessoa como
unidade coerente de condutas aparece como força de indeterminaçã o.
Consideraçõ es dessa natureza apenas radicalizam posiçõ es que Freud
indica já em seus ensaios sobre a sexualidade. Lembremos, por exemplo, de sua
estratégia de normalizaçã o das perversõ es. Ela se encontra em afirmaçõ es como:

Quando as circunstâ ncias favorecem, também o indivíduo normal,


durante um bom tempo, pode substituir por uma perversã o dessas a meta
sexual normal, ou conceder-lhe um lugar ao lado dessa. Em nenhum
indivíduo sã o estaria ausente, em sua meta sexual normal, um ingrediente
a ser denominado perverso, e já bastaria essa universalidade para
47
ZUPANCIC, Alenka; ibidem p. 16
48
Neste sentido, o auto-erotismo indica uma posição anterior ao narcisismo. Ela serve para indicar a
polimorfia de uma libido que se direciona ao prazer de órgãos que ainda não se submetem a um
princípio geral de unificação fornecido pelo Eu enquanto unidade sintética
49
LACAN, Jacques ; Séminaire VII, Paris: Seuil, 1986, p. 112
demonstrar como é inadequado usar reprovativamente o termo
‘perversã o’50.

Ou seja, a perversã o é apenas uma lente de aumento que explicita


características gerais de todo comportamento sexual dito normal. O esforço de
Freud consistirá em retirar a perversã o da descriçã o de comportamentos sexuais
típico para, ao final, principalmente em um texto dedicado ao fetichismo,
descreve-la como modo específico de agenciamento de conflitos psíquicos
através de uma forma de negaçã o na qual o termo negado e seu oposto convivem
na consciência sem que isso implique impossibilidade de açã o. Isso representará
um golpe importante contra a junçã o entre clínica e dispositivos de normalizaçã o
dos comportamentos sexuais. Pois se trata de reconhecer que nã o há dimensã o
constitutiva alguma nas perversõ es, elas nã o sã o uma questã o de disposiçã o, mas
respostas a circunstâ ncias favorá veis. Se Freud chega a dizer que há algo
congênito nas perversõ es, é para lembrar que se trata de algo que todos os seres
humanos tem em comum. Daí porque há de se analisar a perversã o juntamente
com a infâ ncia. Ou seja, daí porque há de se compreender que a criança nã o é
outra coisa que um perverso polimorfo. Lembremos descriçõ es freudianas como:

A criança pequena é, antes de tudo, sem pudor, mostrando, em certos


momentos de seus primeiros anos, inequívoco prazer em desnudar o
corpo, com ênfase nas partes sexuais. A contrapartida dessa inclinaçã o
vista como perversa, a curiosidade de ver os genitais de outras pessoas,
provavelmente apenas se manifesta em épocas posteriores da infâ ncia,
quando o obstá culo do sentimento de vergonha já atingiu certo
desenvolvimento51.

Colocaçõ es como essas modificam radicalmente a funçã o da categorizaçã o


clínica das perversõ es e sua natureza disciplinar. O que havia sido criado para
estabelecer uma linha rígida de demarcaçã o entre nossos desejos e os desejos
daqueles que estavam sob o signo da regressã o social ou do arcaísmo,
generaliza-se como comportamento estrutural do ser humano, como marca
sempre inscrita na infâ ncia.
Nesse sentido, a explicaçã o para o fato dos comportamentos ditos
perversos nã o serem a regra geral será colocada na conta de afetos como nojo,
vergonha e moralidade. Isso significa: “precipitados histó ricos das inibiçõ es
externas sofridas pelo instinto sexual na psicogênese da humanidade”52. Em
outras palavras, construçõ es sociais vinculadas a julgamentos sociais e, por isso
mesmo, cambiantes e plá sticos.

Sexualidade com crianças

Mas sabemos que as discussõ es freudianas sobre as perversõ es aparecem como


uma espécie de introduçã o para a apresentaçã o desse tema que, segundo o autor,
seria uma descoberta sua, a saber, a sexualidade infantil ou, se quisermos, a
normalidade da sexualidade infantil. A tese da sexualidade infantil é fundamental

50
FREUD, Três ensaios…, p. 54
51
Idem, p. 100
52
Idem, p. 58
para a psicaná lise em sua natureza propriamente materialista. Pois trata-se de
insistir que sexo é o nome do processo material através do qual o desejo
constitui laços, estrutura relaçõ es e define modalidades de identificaçã o. E a
consideraçã o de uma sexualidade infantil traz, necessariamente, a tese de que as
relaçõ es familiares sã o necessariamente sexualmente investidas. Uma
sexualidade que será objeto de conflitos de toda ordem, isso a ponto de
podermos dizer que a família burguesa será vista como um nú cleo produtor de
neuroses.
Nesse quadro, a infâ ncia aparece, sobretudo, como um espaço de
esquecimento. Na verdade, de esquecimento da sexualidade. Uma sexualidade
que engloba atos infantis mú ltiplos, como o ato de chupar, o ato de defecar, açõ es
muculares, entre outros. Sexualidade que engloba crueldade.
Falar de sexo
Aula 5

Nessa aula, gostaria de terminar nossa discussã o sobre a psicaná lise através de
uma reflexã o sobre um dos conceitos mais polêmicos por ela desenvolvido, a
saber, o conceito de pulsã o de morte. Mas gostaria de fazer uma abordagem
pontual, procurando explorar o que ele implica para uma teoria da sexualidade.
A tese a ser defendida aqui é que o conceito de pulsã o de morte é um dos
elementos mais importantes da teoria psicanalítica da sexualidade e um de seus
elementos politicamente mais decisivos. Ele faz do sexual um campo atravessado
por um princípio radicalmente nã o reprodutivo e des-identificador. Nesse
sentido, a junçã o entre sexual e pulsã o de morte ainda reinscreve a sexualidade
no campo da natureza, mas de forma tal que tal reinscriçã o perde sua
característica normativa de outrora. A natureza aparece como um campo de
contínua decomposiçã o e recomposiçã o. Tal junçã o serve ainda para definir o
modo de produtividade que seria pró pria à experiência do sexual
Para tanto, faz-se necessá rio compreender melhor o que de fato está em
jogo no conceito psicanalítico, desenvolvido inicialmente por Sabina Spielrein e
depois retomado por Sigmund Freud. Pois há uma visã o tradicional a respeito do
problema que acabou por se impor e definir as balizas de nossa interpretaçã o.
Ela consiste em compreender a pulsã o de morte como expressã o bruta de um
instinto de destruiçã o inscrito tanto nos organismos quanto nos seres humanos.
Nesse sentido, ela seria aquilo do qual deveríamos nos afastar para que as forças
primordiais da vida pudessem desenvolver sua concó rdia e trabalho. A divisã o
classicamente estabelecida entre Eros e Tanatos nos levaria, por sua vez, a
compreender as dinâ micas da sexualidade como ausentes da pulsã o de morte, ou
presentes apenas de forma auto-destrutiva e patoló gica. Nesse sentido, caberia à
clínica preservar a distâ ncia necessá ria entre o sexual e a pulsã o de morte.
No entanto, o quadro fornecido pela psicaná lise se mostrará muito mais
complexo do que tal dicotomia pode nos fazer supor. E notemos a extensã o das
consequências dessa complexidade. Uma visã o mais complexa da pulsã o de
morte quebra, inicialmente, certa racionalidade utilitarista que compreende os
seres humanos como agentes maximizadores de interesses. Interesses esses que,
por sua vez, estariam vinculados à procura em maximizar experiências de prazer
e afastar-se de experiências de desprazer. Freud sabia do que produzia quando
afirmava a existência de uma ló gica da açã o “para além do princípio do prazer”.
Ele estava a retirar os sujeitos de uma economia restrita para deslocá -los para o
interior de uma economia de destruiçã o e devir.

Interesse e destruição

Nesse sentido, poderíamos começar por lembrar como naturalizamos


uma certa ideia de racionalidade social na qual os sujeitos socializados seriam
aqueles capazes de agir a partir de um cá lculo visando “maximizar interesses”,
ou seja, enunciar para si as motivaçõ es de suas açõ es a partir da noçã o de
“interesse” e interagir socialmente tendo em vista o reconhecimento, o
estabelecimento de contratos, o acordo em relaçã o a seus interesses. Assim,
relaçõ es humanas racionais seriam fundamentalmente baseadas no
reconhecimento e no agenciamento de interesses particulares, até onde isto for
possível.
Essa ideia tem raízes histó ricas que nos levam para os debates filosó ficos
dos séculos XVI e XVII na Europa. Pois é nesse momento que encontramos a
consolidaçã o da contraposiçã o entre paixõ es e interesses, entre paixõ es que
levam os humanos a destruírem a paz, a ordem social e a si mesmos, devido ao
cará ter irrefreá vel e pretensamente irracional da libido, e interesses que podem
ser o motor de pactos sociais, negociaçõ es e contratos. Em um estudo clá ssico,
Albert Hirschman lembra que antes de definir um desejo por bens e ganhos
econô micos ou materiais, a noçã o de “interesse” se referia à possibilidade de
submeter paixõ es ao cá lculo53. Essa é uma definiçã o importante: interesse é algo
como paixõ es que podem ser submetidas ao cá lculo e à reflexã o.
Longe de aplicar-se a indivíduos, a noçã o de “interesse” aparece
inicialmente relacionada à arte de governar, à afecçã o que o príncipe deve levar
em conta para governar. O príncipe nã o deve ser movido por paixõ es, mas por
interesses, o que vai dar na teoria dos interesses do estado. O que nos explica por
que, quando for aplicá vel aos indivíduos, o sujeito de interesses será , antes de
mais nada, alguém governá vel, alguém que pode se submeter ao cá lculo da
preservaçã o do estado porque age de forma constante e previsível. Assim,
quando alguém como David Hume utilizar “interesse” para falar da avidez por
ganho, por possessõ es, ou seja, como a internalizaçã o psíquica de um princípio
de atividade econô mica, estará realizada as condiçõ es para que a racionalidade
social necessá ria à preservaçã o do poder seja compreendida como racionalidade
capitalista. Pois , com a ascensã o do capitalismo, veremos a noçã o de “interesse”
ser cada vez mais traduzível em um vocabulá rio econô mico de investimentos,
rendimentos, lucro, reciprocidade, receber o quanto se dá ou mais, entre tanto
outros. Assim, nasce o homo oeconomicus, uma concepçã o de sujeito cujo
fundamento é a definiçã o da açã o racional como açã o capaz de se justificar a
partir da racionalidade econô mica.
É tendo isto em vista que devemos entender certa mutaçã o nas noçõ es de
prazer que ocorrerá décadas depois, através do trabalho de utilitaristas como
Jeremy Bentham ou Stuart Mill. Os utilitaristas compreenderã o que a açã o social
a partir dos interesses estará ligada ao cá lculo de afastamento de desprazer e de
maximizaçã o do prazer. Cá lculo que leva em conta sete variá veis: intensidade,
duraçã o, certeza, proximidade, fecundidade, pureza e extensã o. Ou seja, o prazer,
a partir dos utilitaristas, torna-se um fator econô mico e fundamento da açã o
racional. De onde se segue o horizonte da açã o social como sendo a produçã o da
maior quantidade de felicidade para o maior nú mero possível de pessoas. A
utilidade neste contexto está vinculada. Isso a ponto da escola econô mica dos
marginalistas, influenciados nesse ponto pelo utilitarismo, afirmar que o valor de
uso de uma mercadoria estará vinculado à funçã o entre sua oferta e a satisfaçã o
que ela produz (que pode ser medida, mesmo que obedeça a padrõ es subjetivos
e temporais).

53
“When the term "interest" in the sense of concerns, aspirations, and advantage gained currency in
Western Europe during the late sixteenth century, its meaning was by no means limited to the material
aspects of a person's welfare; rather, it comprised the totality of human aspirations, but denoted an
element of reflection and calculation with respect to the manner in which these aspirations were to be
pursued” (HIRSCHMAN, Albert; p. 32)
Lembro de tudo isso para contextualizar o impacto de teorias, como a
psicaná lise, que colocarã o em cheque a naturalidade desses cá lculos e de tais
ló gicas de maximizaçã o. Pois nos perguntemos sobre o que acontece quando
alguém como Sabina Spielrein afirmar, em 1912, pela primeira vez:

As bem conhecidas pulsõ es bá sicas de preservaçã o (eu e espécie)


possuiriam um valor similar para a totalidade da vida psíquica e para o
ego, a saber, prazer e desprazer? Devo defender dogmaticamente a
perspectiva de que a psique pessoal é governada por impulsos
inconscientes mais profundos e que, em suas demandas, nã o estã o
concernidos com nossas reaçõ es de sentimentos. Prazer é simplesmente a
reaçã o afirmativa do ego em relaçã o a essas demandas vindas da
profundeza. Podemos sentir prazer no desprazer e na dor, que assumimos
como profundamente vinculada ao desprazer. Dor é certamente um
problema para a luta instintiva do ego por auto-preservaçã o. Em nossas
profundezas, por mais paradoxal que isso possa parecer, há algo que quer
auto-infligir-se enquanto o ego age contrariamente a isso com o prazer54.

Ou seja, a totalidade da vida psíquica nã o se confunde com as exigências pró prias


à preservaçã o do Eu. Haveria, em um nível mais profundo do que os cá lculos de
prazer e desprazer do eu, a saber, no inconsciente, impulsos que suspendem a
racionalidade exclusiva dos processos de auto-conservaçã o. Na verdade, o eu
serve-se do prazer como forma de defesa contra tais impulsos mais
estruturantes. Sendo assim, teríamos uma economia do inconsciente que nã o se
guia pela simples exigência de auto-conservaçã o, nem pelos cá lculos que lhes sã o
pró prios. O que significa que estaríamos a falar de algum tipo de processo que
nã o se compreende como o “perseverar no seu pró prio ser”.
Spielrein descreve tais impulsos como vinculados a dinâ micas de
transformaçã o que negam o ego presente e, através de tal negaçã o, procuram a
criaçã o de algo outro. O recurso à experiência estética de criaçã o é
continuamente citado em seu texto, assim como o recurso a uma “psique da
espécie”, distinta da psique do eu. Pois o que é da ordem do Eu seria está tico e
marcado pela simples preservaçã o. Já o que é da ordem da espécie seria
mobilizaçã o de componentes positivos e negativos para a mutaçã o das formas. Já
Schopenhauer insistia na dinâ mica de morte do indivíduo como condiçã o para a
continuidade da dinâ mica de fluidez pró pria à espécie.
Dessa forma, a experiência de dissociaçã o entre desejo e prazer nã o
aparece apenas como a figura patoló gica de uma perversã o, como o sadismo ou o
masoquismo, mas como uma forma mais primá ria de circulaçã o do desejo em
geral ligada a estruturas do devir. Mais uma vez, a psicaná lise redimensiona o
campo das perversõ es generalizando comportamentos compreendidos entã o
como perversos para a estrutura genérica do comportamento humano. E é dessa
forma que a distinçã o entre pulsã o de morte e pulsã o sexual se esfumaça, já que a
morte aqui significa nã o apenas a aniquilaçã o do organismo, mas a destruiçã o de
unidades e formas de organizaçã o prévias. Na verdade, há de se lembrar que
morre-se vá rias vezes no interior de uma vida. Daí a afirmaçã o de que: “a pulsã o
reprodutiva pode também consistir psicologicamente em dois componentes

54
SPIELREIN, Destruição como causa do devir, p. 160
antagô nicos, uma pulsã o de destruiçã o assim como uma pulsã o de devir”55. Ou
seja, a destrutividade aparece como componente do instinto sexual, a pulsã o
sexual tem no seu interior uma dualidade, o que explicaria que a satisfaçã o
sexual produziria nã o apenas sentimentos positivos, mas sentimentos negativos
como o asco e principalmente a angú stia, tema posteriormente desenvolvido
também por Georges Bataille.

A montagem da pulsão de morte

Retornar a certas consideraçõ es na origem do conceito de pulsã o de morte nos


ajuda a lembrar que nã o se morre apenas vá rias vezes, mas também se morre de
vá rias formas. Normalmente, vincula-se a criaçã o do conceito de pulsã o de morte
ao impacto da Primeira Guerra Mundial, assim como ao estudo de neuroses de
guerra que faziam sujeitos retornarem, através de sonhos e outras formaçõ es do
inconsciente, a situaçõ es traumá ticas e portadoras de sofrimento profundo. Isso
quebrava a ló gica freudiana de que o sonho é a realizaçã o de um desejo. A nã o
ser que houvesse algo como um desejo de auto-destruiçã o. Essas reflexõ es sobre
neurose de guerra eram, na verdade, setor de consideraçõ es mais extensas sobre
a compulsã o de repetiçã o que levava sujeitos a repetirem, de forma irresistível,
como se estivessem diante de um “destino”, processos que claramente iam
contra seus interesses e suas expectativas de satisfaçã o.
No entanto, já na elaboraçã o de Freud a respeito da pulsã o de morte, em
1921, encontramos consideraçõ es vindas de outra ordem. Por exemplo, Freud
vincula a pulsã o de morte ao jogo infantil, isso através do famoso exemplo do
jogo da bobina. Nesse jogo, Freud via seu neto, ainda bebê, procurar simbolizar a
ausência da mã e através da produçã o de um objeto substituto, a bobina, cuja
presença e ausência podia ser controlada pelo pró prio sujeito. Como se o trauma
da ausência e da separaçã o devesse ser encenado sob a forma de um jogo que
podemos dispor a todo momento. A transformaçã o do trauma em jogo, ou se
quisermos, a criaçã o a partir da ausência era uma condiçã o fundamental de
simbolizaçã o e construçã o produtiva para a criança, que conseguia se deslocar
para um espaço entre a realidade e a imaginaçã o que lhe permitia produzir e
lidar com separaçõ es. Mas, e isso nã o poderia de forma alguma ser diminuído, na
base pulsional dessa criaçã o encontrá vamos a pulsã o de morte. A pulsã o de
morte nos faz retornar mais de uma vez a uma cena que nos provoca desamparo,
mas é ela também que faz desse retorno a condiçã o de um jogo que desativa o
cará ter paralisante do acontecimento.
Essa espécie de matriz estética sobre a pulsã o de morte ressoa ainda o
potencial disruptivo do conceito freudiano de Unheimlichkeit: conceito este
resultante das reflexõ es de Freud a respeito de certos aspectos da estética
româ ntica. Nã o por acaso, o texto freudiano sobre o conceito é escrito no mesmo
momento que os cinco primeiros capítulos de Para além do princípio do prazer.
Lembremos como, nã o por acaso, Unheimlich é inicialmente dito de fenô menos
que embaralham a distinçã o entre vivo e morto, entre o animado e o
inanimado56. Fenô menos que provocam a semelhança entre o inanimado e o
vivo. Freud os aborda, entre outros, através de exemplos da fascinaçã o por

55
Idem, p. 184
56
FREUD, Sigmund; “Das Unheimlich”, In: Gesammelte Werke v. XII, Frankfurt: Suhrkamp, 199, p.
237.
duplos que, segundo sua interpretaçã o, portam a condiçã o de: “inquietantes
mensageiros da morte”57.
Mas antes de desenvolvermos as consequências dessa forma alargada de
pensar a pulsã o de morte, façamos um passo para trá s a fim de entender como o
conceito de pulsã o se desenvolve em Freud e o que ele procura resolver. Ao
aparecer pela primeira vez de maneira explícita, nos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, o termo pulsã o visava dar conta das fontes internas de excitaçã o
à s quais o organismo nã o pode escapar. Dentre tais fontes de excitaçõ es internas,
a sexualidade já aparece como elemento maior das preocupaçõ es freudianas,
embora ela nã o seja a fonte exclusiva. Já no nã o-publicado Projeto para uma
psicologia científica, Freud lembrava, ao falar da “urgência da vida” (Not des
Lebens) enquanto excitaçã o interna que contrariava o princípio de inércia do
aparelho psíquico, que a fome e a respiraçã o também eram fontes de tal
excitaçã o. Nesta primeira abordagem sobre a pulsã o, Freud ainda insistirá que
uma de suas características centrais é a de ser uma força constante, e nã o apenas
força de um impacto momentâ neo de falta sentida pelo organismo. De onde se
segue a definiçã o canô nica da pulsã o como: “representaçã o psíquica (psychische
Repräsentanz) de uma fonte endossomá tica de excitaçã o”.
Sabemos como Freud parte inicialmente de uma distinçã o entre a energia
libidinal pró pria á sexualidade e “outras formas de energia psíquica” como
aquelas em jogo nas necessidades fisioló gicas de auto-conservaçã o; distinçã o
esta fundadora de um primeiro dualismo pulsional entre pulsõ es sexuais e
pulsõ es de auto-conservaçã o. Tal dualismo será suspenso a partir da constituiçã o
da categoria de “narcisismo”, já que o narcisismo permitirá a Freud reconhecer
que: “as pulsõ es de auto-conservaçã o também eram de natureza libidinal, eram
pulsõ es sexuais que haviam tomado por objeto, ao invés dos objetos exteriores, o
pró prio eu”58. De onde se seguia a afirmaçã o de que: “Basta simplesmente
admitir que as pulsõ es sã o parecidas qualitativamente e que devem seus efeitos
unicamente à s grandezas de excitaçã o (Erregungsgrössen) que cada pulsã o
veicula ou, talvez, a certas funçõ es desta quantidade”59. Por fim, o dualismo
pulsional voltará , de maneira totalmente reconfigurada, apenas a partir do texto
Para além do princípio do prazer. É neste momento de reconfiguraçã o profunda
também da noçã o de libido que Freud fará mais apelo à s reflexõ es sobre o
conceito de Trieb desenvolvidas a partir da tradiçã o idealista alemã , em especial
na obra de Schopenhauer.
Seguindo uma via aberta por Lacan, Jean Laplanche lembra que uma
metamorfose profunda ocorre quando Freud vincula, na segunda tó pica, a noçã o
de libido à potência unificadora de Eros (tal como ele a encontra no mito de
Aristó fanes, em O banquete, de Platã o), isto ao passar ao dualismo pulsional
Eros/Tanatos. A definiçã o da libido como Eros unificador , potência que visaria:
“formar, a partir da substâ ncia viva, unidades (Einheiten) cada vez maiores e
assim conservar a vida na sua permanência levando-a a desenvolvimentos mais
complexos”60 parece implicar abandono da noçã o de libido pensada a partir de
uma energia livre pró pria à esta sexualidade fragmentada e polimó rfica, tal como
vimos na aula passada. Tal abandono seria impulsionado pelas consideraçõ es

57
Idem, p.
58
FREUD, Sigmund ; Gesammelte Werke vol. XIII, op. cit. p. 231
59
Idem, Gesammelte Werke vol. X, op. cit., p. 216
60
FREUD, , Sigmund; Gesammeite Werke vol. XIII, op. cit., p. 233
freudianas a respeito da centralidade do narcisismo, com seus mecanismos de
projeçã o e introjeçã o que unificam os destinos da pulsã o à repetiçã o da imagem
do Eu. Como dirá Laplanche :

Eros é o que procura manter, preservar e mesmo aumentar a coesã o e a


tendência sintética tanto do ser vivo quanto da vida psíquica. Enquanto
que, desde as origens da psicaná lise, a sexualidade era, por essência, hostil
à ligaçã o, princípio de ‘des-ligamento’ ou de desencadeamento
(Entbildung) que só se ligava através da intervençã o do Eu, o que aparece
com Eros é a forma ligada e ligadora da sexualidade, colocada em
evidência pela descoberta do narcisismo 61.

Como se o narcisismo fosse a revelaçã o do pathos de um Eu pensado como


unidade sintética que fornece o princípio de ligaçã o do diverso da experiência
sensível em representaçõ es de objetos.
Neste contexto, a reconstruçã o do dualismo pulsional através do par Eros
e pulsã o de morte seria o resultado da necessidade em encontrar um novo
destino para a potência de des-ligamento pró pria à energia livre que havia
inicialmente definido a libido. Ou seja, a polaridade vida/morte na teoria
pulsional freudiana recobre, na verdade, a distinçã o entre energia ligada em
representaçõ es através da capacidade sintética do Eu/energia livre inauguradora
da dinâ mica psíquica.
Mas, a princípio, nã o é evidente a razã o que leva Freud a utilizar o termo
“morte” para falar de tal potência de des-ligamento. Trata-se de uma questã o
claramente posta por Lacan quando afirma:

Existe uma dimensã o para além da homeostase do Eu (moi), uma outra


corrente, uma outra necessidade que deve ser distinguida em seu plano.
Esta compulsã o a retornar a algo que foi excluído do sujeito [pró pria à
pulsã o de morte], ou que nunca foi por ele absorvida, o verdrängt, o
recalcado, nó s nã o podemos fazê-lo entrar no princípio do prazer [que
agora se confunde com Eros] (...) Faz-se necessá rio supor um outro
princípio. Por que Freud o chamou instinto de morte?62.

A resposta já está na maneira de formular a pergunta. A pulsã o de morte


aparece como necessidade a retornar a algo que foi excluído do sujeito ou que
nunca foi por ele absorvido. Algo que foi excluído exatamente para que o Eu
pudesse aparecer em suas exigência de unidade sintética de percepçã o, de centro
de uma personalidade pensada como coerência de conduta e julgamento.
Integrar o que foi excluído, ou seja, principalmente a disposiçã o fragmentá ria e
polimó rfica da sexualidade, os vínculos a objetos que nã o compõ em o corpo
pró prio, as posiçõ es do desejo que precisei recalcar para constituir-me como
personagem sexual, só é possível à condiçã o de forçar o Eu a sua decomposiçã o,
logo, a sua morte.

Uma natureza peculiar

61
LAPLANCHE, Jean; Vie et mort en psychanalyse, Paris: Flammarion, 1970, p. 187
62
LACAN, Jacques ; Séminaire II, op. cit., p. 163
E nesse ponto, podemos abordar uma das operaçõ es mais singulares de
Freud. Ela consiste em afirmar que a pulsionalidade nã o é um fato apenas
humano. Ela é um fato bioló gico. Daí definiçõ es tardias da pulsã o como uma:
“pressã o (Drang) inerente ao organismo vivo em direçã o ao restabelecimento de
um estado anterior [inorgâ nico] abandonado devido a influências perturbadoras
de forças exteriores”63, e nã o apenas a representaçã o psíquica de uma fonte
endosomá tica de excitaçã o constante. Da primeira à segunda definiçã o,
acrescenta-se um certo cará ter teleológico que orienta a direçã o da pressã o
pulsional para as vias de uma operaçã o de retorno. A pulsã o aparece assim como
expressã o da inércia da vida orgâ nica, como exigência de trabalho em direçã o ao
restabelecimento de um estado de supressã o de tensã o, como um retorno à
morte que cada organismo procura fazer “a sua maneira”. Mas principalmente,
fica claro que a pulsã o é o que inscreve o sujeito no interior da natureza, e nã o
aquilo que lhe retira radicalmente do campo do natural. Essa leitura, muito em
voga no meio psicanalítico, é simplesmente incorreta e apenas reverbera uma
fobia moderna típica que consiste em compreender a natureza como o avesso da
liberdade.
Freud afirma que a tendência de retorno ao estado inorgâ nico é um
processo presente inclusive nos organismos unicelulares. Nesse sentido, ele
segue discussõ es importantes à época sobre um impulso inerente à vida que
conduz necessariamente à morte. Muito já se falou a respeito do pretenso cará ter
fantasioso da reflexã o de Freud, mas gostaria de lembrá -los de alguns dados, nã o
da biologia de sua época, mas da biologia contemporâ nea. Gostaria de começar
pela ideia de que o organismo bioló gico é uma organizaçã o dinâ mica capaz de
ser um processo de:

Desorganizaçã o permanente seguido de reorganizaçã o com apariçã o de


propriedades novas se a desorganizaçã o pode ser suportada e nã o matou
o sistema. Dito de outra forma, a morte do sistema faz parte da vida, nã o
apenas sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte
intrínseca de seu funcionamento e evoluçã o: sem perturbaçã o ou acaso,
sem desorganizaçã o, nã o há reorganizaçã o adaptadora ao novo; sem
processo de morte controlada, nã o há processo de vida (ATLAN, 1979, p.
280).

Aqui se delineia a diferença ontoló gica fundamental entre um organismo e


uma má quina artificial. Ao menos segundo Canguilhem (2003, p. 149), “na
má quina, há verificaçã o estrita das regras de uma contabilidade racional. O todo
é rigorosamente a soma das partes. O efeito é dependente da ordem das causas”.
Já o organismo nã o conhece contabilidade. Para Atlan, “Uma fiabilidade como
esta do cérebro, capaz de funcionar com continuidade mesmo que células
morram todos os dias sem serem substituídas, com mudanças inesperadas de
irrigaçã o sanguínea, flutuaçõ es de volume e pressã o, sem falar da amputaçã o de
partes importantes que perturbam apenas de maneira muito limitada as
performances do conjunto, nã o tem semelhança com qualquer autô mato
artificial” (ATLAN, 1979, p. 41). Ou seja, há um princípio de auto-organizaçã o no
organismo capaz de lidar com desestruturaçõ es profundas e desordens. Isto é
possível porque um sistema reduzido a uma só via de contato (entre A e B) seria
63
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke vol. XIII, op. cit. p. 38
simplesmente dissolvido se tal via se desordenasse por completo. Mas
organismos nã o sã o sistemas desta natureza. Ao contrá rio, eles sã o compostos
por vá rios subsistemas que permitem a completa independência entre A e B nã o
traduzir-se na dissoluçã o completa do organismo.
No entanto, a possibilidade da destruiçã o do organismo como sistema é
um dado real, por isso o organismo é marcado por errâ ncia, ou seja, quisermos,
devir. Errâ ncia implica poder se perder por completo, dispender todo o processo
acumulado em uma profunda irracionalidade econô mica, o que explica porque a
destruiçã o do sistema é uma parte intrínseca de seu funcionamento. Pois é
apenas por poder perder-se por completo, ou seja, por poder deparar-se com a
potência do que aparece como a-normativo, que organismos sã o capaz de
produzir formas qualitativamente novas, migrar para meios radicalmente
distintos e, principalmente, viver em meios nos quais acontecimentos sã o
possíveis, nos quais acontecimentos nã o sã o simplesmente o impossível que
destró i todo princípio possível de auto-organizaçã o. Tal figura do acontecimento
demonstra como as experiências do aleató rio, do acaso e da contingência sã o
aquilo que tensionam o organismo com o risco da decomposiçã o. Sã o tais
experiência ligadas à errâ ncia que dã o à vida sua “normatividade imanente”
(MUHLE, 2008, p. 106).
Nã o deixa de ser surpreendente que a vida sirva-se desta dinâ mica para
poder construir suas formas, o que talvez mostre como nã o se trata de um mero
dado anedó tico lembrar que “Mais de noventa e nove por cento das espécies
aparecidas desde quatro bilhõ es de anos foram provavelmente extintas para
sempre” (AMEISEN, 2003, p. 12). A natureza paradoxal de um sistema que
funciona através da errâ ncia vem do fato de estar assentada sobre a ausência de
uma tendência a “perseverar no seu pró prio ser”. Para que haja uma errâ ncia que
nã o seja simplesmente movimento de expressã o do desenvolvimento bioló gico
em direçã o ao progresso contínuo, devemos aceitar a existência de uma
tendência à “dilapidaçã o de si” interna aos organismos. O que talvez explique
porque filó sofos da ciência como Georges Canguilhem nunca viram reais
dificuldades em admitir, por exemplo, o fundamento bioló gico de um conceito
como a pulsã o de morte freudiana Como dirá Canguilhem: “Se é verdade que o
vivente é um sistema em desequilíbrio incessantemente compensado por
empréstimos ao exterior, se é verdade que a vida está em tensã o com o meio
inerte, o que haveria de estranho ou de contraditó rio na hipó tese de um instinto
de reduçã o de tensõ es a zero, de uma tendência à morte?”64. Canguilhem pensa,
sobretudo em afirmaçõ es de Henri Atlan, para quem o ú nico projeto possível dos
organismos bioló gicos é morrer,

“ou seja, como em todo sistema físico, de alcançar um estado de equilíbrio.


Os algoritmos do mundo vivente nã o podem ser inicialmente algoritmos
de reproduçã o de estados de equilíbrio, mas de distâ ncias em relaçã o ao
equilíbrio, assim como de retorno a tal estado por desvios (…) Como nota
W.R. Ashby, o retorno ao equilíbrio só é banal e desinteressante, do ponto
de vista de algoritmos de organizaçã o, em sistemas simples. Em sistemas
complexos, unicamente devido ao grande nú mero de parâ metros que
podem variar ao mesmo tempo, os estados de estabilidade fora do

64
CANGUILHEM, 1990. (ATLAN, 1992, p. 224)
equilíbrio, e os caminhos utilizados para retornar ao equilíbrio oferece
possibilidades de organizaçã o muito mais ricas”

Esta tendência à dilapidaçã o de si foi descrita posteriormente através de


fenô menos como a apoptose, ou seja, a morte celular produzida por um princípio
interno:

Durante muito tempo, pensamos que o desaparecimento de nossas células


– assim como nossa pró pria desapariçã o como indivíduos – só podia
resultar de acidentes e de destruiçõ es, de uma incapacidade fundamental
a resistir à usura, à passagem do tempo e à s agressõ es permanentes do
meio ambiente [...] Hoje, sabemos que todas nossas células possuem o
poder de se autodestruir em algumas horas [...] E a sobrevivência de cada
uma de nossas células depende, dia apó s dia, de sua capacidade a
perceber no meio ambiente de nosso corpo os sinais emitidos por outras
células, e apenas tais sinais lhe permitem reprimir o desencadeamento de
sua autodestruiçã o [...] um acontecimento percebido até aqui como
positivo – a vida – parece resultar da negaçã o de um acontecimento
negativo – a auto-destruiçã o (AMEISEN, 2003, p. 15).

Ou seja, viver, para cada célula, é ter conseguido reprimir o


desencadeamento de seu suicídio, é negar uma negaçã o, algo que Freud defendeu
em seu texto. Tal ideia produz consequências importantes para o conceito de
auto-organizaçã o. Pois sistemas orgâ nicos, devido à constâ ncia dos erros de
leitura, teriam uma tendência interna à decomposiçã o e à desordem. Tendência
que pode levar ou à auto-destruiçã o ou ser agenciada através da errâ ncia, com
todos os seus riscos e as suas reorganizaçõ es provisó rias. Daí porque “Viver,
construindo-se em permanência, é utilizar instrumentos que podem provocar a
auto-destruiçã o e ser, ao mesmo tempo, capaz de reprimir tal auto-destruiçã o”
(AMEISEN, 2003, p. 316). A mecanizaçã o da vida descrita através dos fenô menos
de doença nã o é apenas uma reaçã o catastró fica contra um meio ambiente em
mutaçã o. Ela é também incapacidade em agenciar tendências internas ao pró prio
organismo.
Fiz essa longa digressã o para lembrar a vocês como a hipó tese de um
processo biologicamente interligado entre destruiçã o e criaçã o nã o era uma
fantasia metafísica, mas uma elaboraçã o astuta a partir de princípios bioló gicos
presentes ainda entre nó s. Isso nos fornece uma imagem ainda mais
desorientadora do sexual trazido pela psicaná lise. Pois o sexual nã o seria
exatamente uma longa operaçã o de desvio em relaçã o a uma normatividade vital
naturalmente fundamentada. Ele seria a expressã o mais fiel da natureza em nó s,
de uma natureza naquilo que ela tem de naturalmente desviante e errá tico. Ou
seja, a clínica da sexualidade acabaria por nos trazer uma imagem da natureza
que demonstra como somos naturalmente desviantes por precisarmos operar
continuamente um processo no qual, como disse de forma feliz Spielrein, a
destruiçã o é causa do devir.
Com isso, espero ficar claro como a crítica da clínica da sexualidade como
um discurso de natureza disciplinar e conformadora é real apenas pela metade.
Há uma outra metade que nã o pode ser negligenciada e demonstra a
possibilidade de sua preservaçã o como discurso da naturalizaçã o do conflito e da
mutaçã o no interior da ordem sexual.
Falar de sexo
Aula 6

Nossa mais alta tarefa consistirá em facilitar a formaçã o de uma família


aos dois companheiros ligados pela vida. Sua destruiçã o definitiva
equivalerá a supressã o de toda humanidade superior. Mesmo concedendo
à mulher um vasto campo de atividade , nunca deveremos perder de vista
que o objetivo ú ltimo de uma evoluçã o verdadeiramente orgâ nica e ló gica
é a formaçã o da família. Ela é a menor unidade mas também a mais
importante de toda estrutura do Estado (...)Como o bolchevismo quer
aniquilar toda individualidade, ele destró i a família, que imprime ao
homem sempre uma marca individual. É por isto que ele detesta todas as
aspiraçõ es nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-os dó ceis ...
Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serã o reduzidas a nada
enquanto restar no coraçã o do homem uma centelha de religiã o, pois é na
religiã o que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relaçã o ao
mundo ambiente.

Esse era um texto do Partido Nazista alemã o que concorria à eleiçã o de


1932. Esse texto era apenas um dentro os mú ltiplos panfletos que alertavam os
alemã es contra o “bolchevismo sexual”, termo cunhado pelo pastor Ludwig
Hoppe no início dos anos vinte para descrever um pretenso processo de
degradaçã o de costumes e perversã o de condutas que ameaçava as sociedades
ocidentais. Como vemos no texto, tratava-se de mobilizar religiã o, família,
liberdade individual, luta contra a homogeneizaçã o em nome de uma sexualidade
que respeitasse seus “lugares naturais”, que nã o pervertesse as formas sociais
orgâ nicas da evoluçã o, a ló gica do existente, em suma, toda “humanidade
superior”. Essa era, como dizia o panfleto, “nossa mais alta tarefa”. No que se via
como a luta contra o comunismo era nã o apenas luta contra uma nova ordem
econô mica, mas luta contra a potencialidade de uma nova circulaçã o do desejo.
Essa afirmaçã o de bolchevismo sexual nã o era uma mera manobra
diversionista feita para desviar o interesse dos verdadeiros problemas que
seriam ligados à espoliaçã o econô mica. Ela se referia a processos que haviam
ocorrido, de fato, na Uniã o soviética a partir da aprovaçã o do Código de leis
referentes ao registro civil de mortes, nascimentos e casamentos, de outubro de
1918. Fruto de intensa discussã o que mobilizou juristas, ativistas, representantes
de trabalhadoras, camponesas e camponeses, o có digo trazia inovaçõ es até entã o
nunca presentes em legislaçã o alguma.
O Có digo de leis de 1918, assim como a versã o seguinte aprovada em
1926 eram vistos como sistemas provisó rios de leis pró prios a uma sociedade de
transiçã o em direçã o a ao definhamento final da família, à uniã o livre e à
igualdade radical entre homens e mulheres através da generalizaçã o do trabalho
assalariado e da aboliçã o do trabalho doméstico pela sua socializaçã o e
responsabilizaçã o estatal. Um dos juristas responsá veis pela aprovaçã o do
có digo de 1918, Alexander Goikhbarg dirá claramente: “o poder proletá rio
elabora seus có digos e todas as suas leis dialeticamente, para que cada dia da
existência deles mina a necessidade de existirem”65. Ou seja, essas leis deveriam
ser sistemas provisó rios que impulsionariam a consolidaçã o de condiçõ es para
que elas deixassem de existir, pois tratava-se de utilizar o ordenamento jurídico
para a sociedades teriam modificados seus modos de relaçã o, instituiçõ es como
família e casamento teriam perdido sua funçã o econô mica e, com isso, sua razã o
social de existência.
Tais princípios legais só serã o modificados com a ediçã o de um novo
có digo da família em 1936, sob os auspícios do regime stalinista. Nesse
momento, nã o haverá mais tais horizonte de transformaçã o estrutural das
instituiçõ es ligadas ao sexual. Tais reaçõ es serã o ainda referendadas por um
edito aprovado em 1944. As modificaçõ es subsequentes procuraram aliviar as
restriçõ es e o cará ter abertamente natalista das leis sob o stalinismo, mas elas
estarã o bem longes do que podemos encontrar nos có digos de 1918 e 1926. Ou
seja, a articulaçã o entre modificaçã o revolucioná ria das macro-estruturas de
poder e produçã o econô mica e a transformaçã o global das estruturas sociais de
circulaçã o do desejo será perdida e ficará como marca de um momento histó rico
específico caracterizado pelos primeiros anos do processo revolucioná rio
soviético. O resto da histó ria do comunismo soviético será estranha a tal impulso
inicial.
Como havia dito em aulas passadas, quando os corpos saírem de seus
pretensos lugares naturais, quando processos insurrecionais tomarem a Europa
no século XIX, a mobilizaçã o do discurso clínico sobre a sexualidade será
necessá ria para que os processos de reproduçã o material da vida continuem no
mesmo lugar. Nesse sentido, nã o será fonte alguma de surpresa descobrir que
quando tais processos insurrecionais de fato conquistarem o poder de estado, irá
se abrir imediatamente amplas discussõ es sobre novas formas de circulaçã o dos
corpos. Assim, quando uma revoluçã o enfim tomar o poder e durar, como foi o
caso da revoluçã o soviética, o mundo assistirá um questionamento sistemá tico e
um desejo profundo de reconstruçã o institucional de tudo relativo à sexo. Ao
menos entre 1917 e 1924, a revoluçã o soviética irá questionar os sistema de
trabalhos e exploraçã o no interior da família burguesa, fazendo de tarefas
privadas tarefas que deveriam ser de responsabilidade do poder pú blico. A Uniã o
Soviética irá proliferar creches, restaurantes e lavanderias pú blicas para liberar
as mulheres do trabalho doméstico, modificar a estrutura das relaçõ es de
gênero, compreendendo que a igualdade social exige fortalecimento do
reconhecimento da plasticidade libidinal dos sujeitos. Ela irá facilitar os
divó rcios (sendo que um divó rcio poderia ser feito a pedido de qualquer um dos
membros do casal), fazendo com a Uniã o Soviética se tornasse o país no mundo
com o maior nú mero de divó rcios e casamentos durante dos anos vinte. Ela irá
ainda legalizar o aborto, fazendo da URSS o primeiro país no mundo a adotar o
direito de aborto em estruturas pú blicas e gratuitas, descriminalizar relaçõ es
homoafetivas, criar pensõ es mesmo para os ditos filhos ilegítimos, discutir
invençõ es jurídicas para formas nã o-monogâ nicas de relaçõ es afetivas como a
“paternidade coletiva”, ou seja, paternidade reconhecida por mais de um homem.
Alexandra Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que, no
comunismo: “o ato sexual seja algo tã o simples quanto beber um copo d’á gua”. O
có digo trazia outras inovaçõ es. Por exemplo, quando casado um casal poderia
adotar o sobrenome do marido, o sobrenome da esposa ou ambos o sobrenome
65
Apud GOLDMAN, Wendy; Mulheres e revolução,
dos dois. Esta possibilidade só entrou na legislaçã o brasileira em na mudança do
có digo civil de 2002.
Tudo isso para lembrar a vocês que a acusaçã o do pastor Hoppe a
respeito do bolchevismo sexual, acusaçã o que será reiteradamente posta em
circulaçã o pelos nazistas alemã es, nã o tinha nada de gratuita. Ela se direcionava
a um processo real, que havia impulsionado outras transformaçõ es em vá rios
outros países. De fato, como dirá à mesma época Wilhelm Reich, nã o haverá
revoluçã o social sem revoluçã o sexual. Uma nã o era uma compensaçã o para a
ausência da outra, mas era a expressã o mais clara de que todas as formas de
reproduçã o material da sociedade, com suas hierarquias, suas espoliaçõ es e seus
processos de concentraçã o, estavam em vias de serem abaladas. Havia uma
compreensã o clara de que era impossível modificar macro-estruturas sem
modificar processos de circulaçã o de corpos e desejos.

Marx, Engels e o sexo

De fato, nada disso deveria nos surpreender pois, por mais que nã o seja
imediatamente evidente, há um lugar importante a respeito do sexual no interior
dos textos de Engels e Marx. Comecemos por algumas passagens bem conhecidas
do Manifesto Comunista:

Supressã o da família! Até os mais radicais se indignam com este propó sito
infame dos comunistas. Sobre que assenta a família atual, a família
burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente
desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu
complemento na ausência forçada da família para os proletá rios e na
prostituiçã o pú blica. A família dos burgueses elimina-se naturalmente
com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o
desaparecer do capital. Censurais-nos por querermos suprimir a
exploraçã o das crianças pelos pais? Confessamos este crime.

Esta é uma perspectiva que aparecerá no início da revoluçã o soviética, a


saber, a compreensã o de que a família é um nú cleo de produçã o econô mica e que
sua realidade social se assenta em sua característica de célula econô mica de
produçã o e proteçã o social. Como se se tratasse de formas institucionalizadas de
contrato por proteçã o e garantia econô mica. A aboliçã o da exploraçã o econô mica
permitiria maior autonomia dos sujeitos para a decisã o a respeito das formas de
aliança, que nã o necessitariam de passar pela família burguesa. Assim, a família
burguesa iria embora conjuntamente com a hegemonia econô mica da burguesia.
A degradaçã o familiar do proletariado, vista pela medicina social da época como
fonte de patologias, era compreendida por Marx e Engels como condiçã o para
novas formas de relaçã o nã o mais dependentes do tipo de dominaçã o que a
família burguesa representa, principalmente no que diz respeito à relaçã o à s
crianças e à s mulheres.
Esse é outro tó pico importante dos trabalhos de Marx e, sobretudo,
Engels, as mulheres estariam sob uma exploraçã o laboral e sexual no interior das
instituiçõ es burguesas, como podemos ver em passagens como:
Mas vó s, comunistas, quereis introduzir a comunidade das mulheres,
grita-nos toda a burguesia em coro. O burguês vê na mulher um mero
instrumento de produçã o. Ouve dizer que os instrumentos de produçã o
devem ser explorados comunitariamente, e naturalmente nã o pode
pensar senã o que a comunidade virá igualmente a ser o destino das
mulheres. Nã o suspeita que se trata precisamente de suprimir a posiçã o
das mulheres como meros instrumentos de produçã o. De resto, nã o há
nada mais ridículo do que a moralíssima indignaçã o dos nossos burgueses
acerca da pretensa comunidade oficial de mulheres dos comunistas. Os
comunistas nã o precisam de introduzir a comunidade de mulheres; ela
existiu quase sempre. Os nossos burgueses, nã o contentes com o fato de
que as mulheres e as filhas dos seus proletá rios estã o à sua disposiçã o,
para nem sequer falar da prostituiçã o oficial, acham um prazer capital em
seduzir as esposas uns dos outros. O casamento burguês é na realidade a
comunidade das esposas. Quando muito poder-se-ia censurar aos
comunistas quererem introduzir uma comunidade de mulheres franca,
oficial, onde há uma hipocritamente escondida. É de resto evidente que
com a supressã o das relaçõ es de produçã o atuais desaparece também a
comunidade de mulheres que dela decorre, ou seja, a prostituiçã o oficial e
nã o oficial.

Essas colocaçõ es serã o desenvolvidas posteriormente por Engels e serã o


tó picos maiores nos debates que se seguirã o. Por exemplo, um século depois,
feministas materialistas como Monique Wittig irã o partir de colocaçõ es dessa
natureza a fim dar um passo à frente e de compreender as relaçõ es entre homens
e mulheres como setor de uma luta de classes na qual, no interior dos vínculos
afetivos, as mulheres teriam sido postas na condiçã o de “meros instrumentos de
produçã o”. Daí afirmaçõ es como: “A luta de classes entre as mulheres e os
homens e o que deveria ser empreendido por todas as mulheres é o que resolve
as contradiçõ es entre os sexos e os abole no momento mesmo que as tornam
compreensíveis”66. Compreender as relaçõ es entre homens e mulheres como um
setor da luta de classes e da exploraçã o de classe levava Wittig a afirmar que
sexo era uma categoria política e que gênero lhe aparecia como uma categoria
imprecisa. Pois sendo a relaçã o entre homens e mulheres um setor da luta de
classes, essa luta nã o poderia se resolver através de alguma espécie de vitó ria de
uma classe sobre outra, o que significaria a perpetuaçã o da ló gica da dominaçã o,
mas agora a partir de outro polo. O verdadeiro objetivo só poderia ser a aboliçã o
da noçã o mesma de classe através da dissoluçã o tanto da classe dos homens
quanto da classe das mulheres: “Nosso combate visa suprimir os homens
enquanto classe através de uma luta de classe política – nã o através de um
genocídio. Uma vez que a classe dos homens terá desaparecido, as mulheres
enquanto classe desaparecerã o, pois nã o há escravos sem mestres”67.
Mas, para tanto, era necessá rio compreender como a “imprecisã o” do
gênero vem do fato dele nã o ser exatamente uma categoria cultural, mas a
expressã o de uma relaçã o de classe que, por sua vez, explicita processos de
espoliaçã o do trabalho e sujeiçã o psíquica necessá ria para a reproduçã o do
Capital em sua acumulaçã o primitiva contínua.
66
WITTIG, La pensée straight, p. 45
67
Idem, p. 60
Essas eram posiçõ es consequentes com o que Engels havia desenvolvido
em trabalhos como Origem da propriedade privada, da família e do estado. Nele,
Engels assentavam-se em discussõ es sobre a gênese histó rica de nossas
instituiçõ es que regulam o sexual, tal como víamos à mesma época nos trabalhos
de psiquiatras como Krafft-Ebing, Moll e outros. Mas havia aqui uma diferença
maior : a consideraçã o histó rica nã o estava mais ao serviço de uma perspectiva
evolucionista e perfeccionista, o que significava necessariamente uma
perspectiva colonial. Antes, ela funcionava para denunciar o comprometimento
histó rico de nossas instituiçõ es com formas de dominaçã o e organizaçã o
econô mica que deveriam ser superadas.
Engels adota a tese de uma origem matrilienar da vida em sociedade, tal
com ele encontra em antropó logos como Lewis Morgan. Tal origem que seria
suplantada pelo advento da família monogâ mica e patriarcal em uma espécie de
luta de classe que terminará em uma forma de servidã o feminina. Pois a
estrutura matrilienar estaria vinculada a dinâ micas coletivas de trabalho, devido
a um princípio no qual as filhas e filhos estarem em linhagem matrilinear (filhas
e filhos de minha irmã também sã o meus). Com o desenvolvimento da
agricultura (atividade predominantemente masculina) e a produçã o de
excedente, ganha força a propriedade privada e com ela a necessidade da
centralidade da paternidade como modo de preservaçã o do cará ter privado dos
bens e riquezas. Daí se segue a necessidade social de imposiçã o da monogamia à s
mulheres, pois essa seria a ú nica forma de garantir que os filhos e filhas sã o
filhos e filhas do pai. Dessa forma, assegura-se a preservaçã o da propriedade
pela determinaçã o da filiaçã o a partir do pai. A propriedade privada impõ e o fim
do “direito materno”, a consolidaçã o de uma verdadeira divisã o sexual do
trabalho e a supremacia do patriarcado, assim como a sujeiçã o final das
mulheres ao trabalho doméstico.
A histó ria da família estará entã o marcada pela exploraçã o do trabalho
doméstico e pela sujeiçã o das mulheres à esfera privada. O que explica porque
até hoje teríamos neoliberais a nos doutrinar dizendo: “nã o há esse negó cio de
sociedade. Há apenas indivíduos e famílias”, como um dia afirmou Margareth
Thatcher. O que significa também que a queda do patriarcado nã o se daria sem a
modificaçã o estrutural da ló gica de reproduçã o material que o sustenta, a saber,
a determinaçõ es por propriedade. A preservaçã o da propriedade privada sob o
fundo de crítica do patriarcado seria apenas a continuaçã o do patriarcado por
outros meios.
Essa determinaçã o por propriedade faz da vida afetiva burguesa um
espaço profundo de inautenticidade e, como dirá Engels de “aborrecimento
mortal”. Pois nã o se trataria de estrutura de relaçõ es baseadas na circulaçã o de
experiência afetivas comuns, mas de um contrato tá cito de preservaçã o de bens e
propriedades, assim como um contrato de naturalizaçã o de formas de sujeiçã o. A
miséria afetiva e sexual daí decorrente seria responsá vel por toda forma de
duplicidade de conduta (pois a família burguesa é, na verdade, um sistema de
circulaçã o composto pelo marido, pela esposa, pelos amantes e pelas amantes),
culpabilizaçã o, inibiçã o, angú stia e sintomas que serã o as marcas da vida sexual
no ocidente capitalista. De onde se segue que só lá onde relaçõ es de propriedade
nã o definem os vínculos entre sujeitos poderia haver alguma forma de
experiência de amor efetivo, o que se daria potencialmente na classe proletá ria.
As formas de opressã o internas à família proletá ria, no entanto, nunca serã o
objetos das reflexõ es de Marx e Engels.

A experiência soviética

Essas colocaçõ es serã o fundamentais para o desenvolvimento das lutas sociais


em direçã o à dinâ mica revolucioná ria soviética. Era claro que o processo
revolucioná rio deveria ser sensível ao sofrimento psíquico e social produzido
por experiências de opressã o social das dinâ micas do desejo. Mas essa
sensibilidade nã o se dará preferencialmente através da consolidaçã o de
discursos e prá ticas clínicas, embora a experiência soviética será espaço de
desenvolvimento de discursos clínicos como a psicaná lise nos primeiros anos da
Revoluçã o através de nomes como: Sabina Spielrein, Tatiana Rosenthal, Moshe
Wulff, Nikolai Osipov e Ivan Ermakov. Na verdade, a experiência soviética se dará
através de lutas e transformaçõ es sociais que levarã o a modificaçõ es estruturais
do ordenamento jurídico. Sexo aparece, claramente, como um objeto central das
lutas sociais. Podemos entrar na natureza das problematizaçõ es colocadas pela
experiência soviética se levarmos em conta, por exemplo, o seguinte trecho de
um texto de Alexandra Kollontai:

A trabalhadora curva-se sob o peso da família, esgota-se sob a tripla


jornada: trabalhadora profissional, dona de casa e mã e. E o que lhe
propõ em as feministas? Que saída, que alívio buscam para ela? “Jogue fora
antigos preceitos morais”, sugerem elas à irmã mais nova, “torne-se uma
amante livre e uma mã e livre. Adote nosso bordã o – amor livre, liberdade
de amar e direito à maternidade”. Como se há muito tempo esses bordõ es
nã o tivessem se tornado demasiado reais para a mulher da classe
trabalhadora! Como se, por força das condiçõ es sociais que a cercam, em
que todo o fardo da maternidade recai sobre os ombros enfraquecidos da
proletá ria “trabalhadora autô noma”, o amor livre, a liberdade de amar e a
maternidade nã o fossem para ela fonte inexplicá vel de novos sofrimentos,
preocupaçõ es, dissabores! Como se toda a questã o estivesse nas formas
ritualísticas externas, e nã o nas relaçõ es socioeconô micas da sociedade,
que determinam as complexas obrigaçõ es familiares da mulher
proletá ria! A questã o matrimonial e familiar, nã o importa se
sacramentada pela igreja, oficializada pelo juiz ou construída com base
em um acordo informal, só deixaria de ser crucial para a maioria das
mulheres se, e apenas se, a sociedade retirasse de suas costas todas as
minuciosas tarefas domésticas (inevitá veis, em virtude da existência de
lares individualizados e desarticulados), se a sociedade tomasse para si as
preocupaçõ es com a nova geraçã o, se protegesse a maternidade e
devolvesse a mã e à criança em seus primeiros meses de vida.

As colocaçõ es aqui sã o claras. A emancipaçã o em relaçã o à s formas de


sujeiçã o ligadas à s dinâ micas de circulaçã o do sexual nã o ocorrer quando os
processos de espoliaçã o econô mica continuam consolidados. A uniã o livre pode
se tornar um fardo, e nã o uma liberaçã o, se ela implica aumento da precariedade
e vulnerabilidade das mulheres que nã o terã o sequer a garantia legal de bens
fornecida pelo casamento. Ser uma mã e livre também pode se tornar um fardo
caso a estrutura de tripla jornada de trabalho continue a ser a regra para as
mulheres da classe proletá ria. Ou seja, Kollontai insiste sobre a natureza classista
de discursos de emancipaçã o que nã o leva em conta a necessá ria modificaçã o
estrutural das bases materiais de reproduçã o social. Levando questõ es como
essa em conta, décadas depois, feministas como Silvia Federici, lembrarã o da
necessidade de compreensã o do trabalho doméstico como trabalho assalariado,
como trabalho que deve receber um salá rio:

o trabalho doméstico nã o remunerado das mulheres tem sido um dos


principais pilares da produçã o capitalista, ao ser o trabalho que produz a
força de trabalho. Argumentamos ainda que nossa subordinaçã o aos
homens no capitalismo foi causada por nossa nã o remuneraçã o, e nã o
pela natureza “improdutiva” do trabalho doméstico, e que a dominaçã o
masculina é baseada no poder que o salá rio confere aos homens68.

De toda forma, esse debate demonstra como uma revoluçã o sexual sem
uma revoluçã o política e econô mica verá simplesmente a inversã o do sentido de
todas as proposiçõ es que ela defende. A liberdade se tornará uma forma mais
insidiosa de escravidã o.
A resposta soviética passará , no entanto, por outra estratégia. Ela será
fundada na tentativa de transferência da quase integralidade do trabalho
doméstico para a esfera pú blica produzindo, com isso, o puro e simples fim do
trabalho doméstico devido à assunçã o de tais tarefas pelo estado. Como dirá
Preobrazhenskii: “nossa tarefa nã o consiste em lutar por justiça na divisã o do
trabalho entre os sexos. Nossa tarefa é libertar homens e mulheres do trabalho
doméstico trivial”69. Isso permitiria a generalizaçã o do trabalho assalariado para
as mulheres.
Tal política abriu espaço para a discussã o inclusive da educaçã o e cuidado
dos filhos. Vá rios foram os debates a respeito da compreensã o de que a
emancipaçã o efetiva passava pela transferência do cuidado das filhas e filhos ao
poder pú blico. O que permitiria à s mã es e pais terem relaçõ es com as crianças
quando quisessem, desenvolvendo com isso as condiçõ es materiais para relaçõ es
baseadas na expressã o do amor. A ideia por trá s era de que, dessa forma,
mulheres poderiam definir de forma mais livre as relaçõ es entre maternidade e
trabalho. No interior da família burguesa submetida à exploraçã o do trabalho, os
pais tem efetivamente tempo mínimo com seus filhos e filhas, já que sã o
submetidos a cargas cada vez maiores e mais estafantes de trabalho, vendo as
obrigaçõ es com as crianças como um trabalho a mais. A modificaçã o dessa
estrutura permitiria a liberaçã o das relaçõ es entre pais e crianças para um
tempo de maior prazer juntos.
Historiadoras como Wendy Goldman afirmarã o que: “os bolcheviques
atribuíram pouca importâ ncia para os poderosos laços emocionais entre pais e
seus filhos”70. A colocaçã o é real, mas seria necessá rio se perguntar a razã o para
tanto. Podemos levantar a hipó tese de que se tratava de defender a noçã o de que
modificaçõ es estruturais na base econô mica e no ordenamento jurídico
empurrariam, de forma irreversível, a reconfiguraçã o do que aparece a nó s como

68
FEDERICI, Silvia, Calibã e a bruxa, p. 12
69
Apud, GOLDMAN,
70
“poderosos laços emocionais”. Há de se notar ainda que projetos dessa natureza
se demonstraram inviá veis nã o exatamente por reaçã o popular a eles, mas por
inviabilidade de sua implantaçã o econô mica em um país que conhecerá , depois
da Revoluçã o, uma guerra civil longa que levará a economia ao colapso até a
aplicaçã o da chamada Nova Política Econô mica (NEP).
De fato, a modificaçã o da base econô mica se demonstrará muito mais
difícil de se realizar do imaginaram os bolcheviques. Por exemplo, apesar da
igualdade no trabalho, percebeu-se que as mulheres tinham a maior rotatividade,
sendo as primeiras a serem despedidas e as ú ltimas a serem recontratadas. Pois
os responsá veis pela produçã o temiam situaçõ es como maternidade e outros que
impediriam a condiçã o do trabalho em situaçõ es ditas normais. Há de se lembrar
ainda que a estrutura gerencial da economia soviética continuava comandada
por homens, o que tinha consequências nã o negligenciá veis.
Por outro lado, a realidade camponesa e a realidade urbana eram muito
distintas em um país de dimensõ es continentais como a URSS. A facilitaçã o do
divó rcio, por exemplo, tinha um impacto muito diferente no campo e na cidade.
No campo, era comum a divisã o de bens apó s o termino do casamento terminar
em situaçõ es de inviabilidade econô mica, com maior vulnerabilidade para as
mulheres. O que fazia com que as mulheres camponesas acabassem por
defender, por exemplo, limitaçõ es drá sticas no direito de divó rcio.
Dito isso, aparece um problema real e complexo vinculado à s mú ltiplas
temporalidades a qual obedece a estrutura das dinâ micas afetivas dos sujeitos.
Os padrõ es de mudança nã o sã o unificados, nem as respostas a tanto. A
permanência de certas formas de vínculos, mesmo depois de modificaçõ es
macro-estruturais, nem sempre expressam algum tipo de regressã o ou atitude
defensiva.
Falar de sexo
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de expor alguns traços fundamentais da reflexã o


psicanalítica de Wilhelm Reich. Reflexã o esta cuja influência nã o será apenas
restrita aos anos trinta, mas que será uma referência fundamental para as lutas
de emancipaçã o social que ocorrerã o a partir do final dos anos sessenta, no bojo
de maio de 68. Reich será recuperado à ocasiã o por ser peça importante na
compreensã o das relaçõ es entre dominaçã o política e repressã o libidinal, entre
sexualidade e poder.
Sua reflexã o nã o pode ser dissociada dos debates que vimos na aula
passada a respeito das tendências internas ao comunismo na compreensã o dos
modos de sujeiçã o e espoliaçã o imanentes à s estruturas institucionais do
casamento, da família e das formas de divisã o sexual do trabalho no capitalismo.
Nesse sentido, Reich aparecerá como aquele que fornecerá uma reflexã o
propriamente psicanalítica para a compreensã o das modalidades de
enraizamento psíquico de tais modos de sujeiçã o, além de fornecer estudos
fundamentais sobre como a tentativa de modificar tal realidade através da defesa
de uma nova ordem sexual nos primeiros anos da revoluçã o soviética havia
provocado uma reaçã o autoritá ria cujo nome correto é “fascismo”. Ele ainda
procurará desenvolver uma clínica na qual a intervençã o direta na consolidaçã o
corporal das estruturas repressivas servirá de eixo para o tratamento. Ou seja, ao
invés de uma técnica centrada no manejo da palavra, com era aquela
desenvolvida por Freud, Reich defendia um terapia de intervençã o corporal
visando liberar a força libidinal reprimida. Essa relaçã o turbulenta com a
ortodoxia freudiana lhe levará a ser afastado da Associaçã o Psicanalítica
Internacional no início dos anos trinta.
Reich é um dos principais nomes (juntamente com Siegfried Bernfeld,
Otto Fenichel, Paul Federn, Erich Fromm) do que se convencionou chamar por
um tempo de “freudo-marxismo”, ou seja, a tentativa de aproximar reflexã o
marxista sobre processos de alienaçã o social e psicaná lise, ou seja, alienaçã o
social e alienaçã o psíquica. Eles irã o, cada um a sua maneira, procurar na
psicaná lise a chave para compreender os mecanismos de paralisia da
emancipaçã o no capitalismo. Ou seja, nã o se tratava de descrever os processos de
sujeiçã o apenas a partir das descriçõ es das matrizes de violência social e das
dinâ micas de extermínio e desaparecimento. Tratava-se de compreender,
através de uma teoria do desejo e de seus modos de socializaçã o, os regimes de
adesã o subjetiva a nossa pró pria sujeiçã o, como a pró pria vida psíquica era
produzida através da internalizaçã o das clivagens produzidas por dinâ micas
sociais de sujeiçã o.
Dessa forma, paradoxalmente, nos encontrá vamos em um terreno clá ssico
para a filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso
sobre a servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da
literatura política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o
problema da servidã o a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos
momentos se deseja a servidã o, por que em certos momentos se deseja esse
processo de concentraçã o radical da soberania na mã o de um? Nã o se trata de
descrever a servidã o a partir da submissã o à força, mas a partir da sua
associaçã o à voluntas, de um querer e participar à sua pró pria servidã o, e este é o
ponto fundamental:

Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas


aldeias, tantas cidades e tantas naçõ es suportem por vezes um ú nico
tirano, que tem o poder que elas mesmas lhe dã o; cujo poder de
prejudicá -las é o poder que elas mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes
algum mal porque elas pró prias preferem padecer deste mal a
contradizer o tirano71.

Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da


estrutura libidinal do fascismo, eles nã o deixarã o de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulaçã o novamente por Reich:

Pois como disse Reich, o surpreendente nã o é que pessoas roubem, que


outros façam greve, mas sim que os famintos nã o roubem sempre, que os
explorados nã o façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploraçã o, a humilhaçã o, a escravidã o, ao ponto nã o apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Nã o, as massas nã o
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstâ ncia, e é isto que se faz necessá rio compreender72.

A resposta de Reich passará por insistir que categorias como opressã o,


repressã o, ameaça nã o bastam, embora nã o se trate de ignorar a presença dos
fenô menos que elas descrevem. Lembremos do horizonte histó rico-social da
emergência dessa reflexã o clínica. Todos esses autores do chamado freudo-
marxismo partem de um tempo histó rico no qual a possibilidade de uma
revoluçã o política se colocava de forma concreta no horizonte, principalmente
depois da vitó ria da Revoluçã o Russa. No entanto, eles se deparam com o
crescimento contínuo de alternativas fascistas e de extrema-direita no pró prio
seio da classe proletá ria. Uma resposta a isto passa pela defesa de que o fracasso
da política marxista se deveria a uma concepçã o insuficiente da psicologia
humana, suas contradiçõ es e conflitos. Daí porque a impossibilidade de
constituiçã o de uma consciência de classe ou de uma atitude revolucioná ria será
derivada de processos de sujeiçã o psíquica responsá veis pela pró pria formaçã o
da personalidade e do sujeito psicoló gico. Trata-se de entender como os desejos
inconscientes paralisam a emergência de uma consciência revolucioná ria de
classe. Nesse sentido, lembremos da afirmaçã o de Reich, citada décadas depois
por Deleuze e Guattari:

A psicologia reacioná ria procura descobrir os motivos irracionais para


explicar o roubo ou a greve, recorrendo a uma argumentaçã o tipicamente
reacioná ria. Para a psicologia social, o problema se apresenta de maneira
inversa: ela nã o se demora sobre as razõ es que levam o homem faminto
ou explorado ao roubo ou à greve, mas ela procura explicar por que a
71
LA BOÉTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
72
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
maioria dos famintos nã o rouba, por que a maioria dos explorados nã o faz
greve73.

Esta é uma das colocaçõ es fundamentais de A psicologia de massas do fascismo,


de Wilhelm Reich, escrito em 1933, que retoma elaboraçõ es presentes em
Psicanálise e Materialismo dialético. Ela explicita uma questã o de método maior a
respeito da relaçã o entre clínica e teoria social. Nã o se trata de psicologizar os
fenô menos sociais, como se uma greve fosse causada pela revolta contra o pai,
por projeçõ es imaginá rias ou por outro fator de ordem psicoló gica. Esta seria
uma maneira de reduzir as reivindicaçõ es políticas a demandas de amparo e
cuidado. Trata-se de lembrar da existência de uma diferença entre “greve” e
“comportamento psíquico durante a greve”, reconhecendo que a clínica tem
muito a dizer sobre o segundo e nada sobre o primeiro. Ela pode auxiliar na
compreensã o da estrutura da ideologia, nã o de seu terreno histó rico. Por isto, é
possível partir do reconhecimento político da revolta contra a injustiça social a
fim de se perguntar como dimensõ es psíquicas podem paralisar as dinâ micas de
transformaçã o.

Fascismo e sexualidade

Mas percebamos o que de fato está em questã o nessa abordagem de


Reich. Se podemos ter, em um mesmo movimento, uma teoria geral da sujeiçã o
psíquica e uma teoria específica da estrutura psicoló gica do fascismo é porque o
fascismo aparecerá como uma tendência sempre inscrita na estrutura psicoló gica
dos sujeitos modernos. Em suma, para além do fascismo histó rico, haverá uma
espécie de “fascismo estrutural”, já que fenô menos como o fascismo nã o podem
ser explicados se nã o levamos em conta a economia libidinal que lhe seria
pró pria. Ele nã o seria um fenô meno de classe, de raça, de naçã o (embora seja
capaz de mobilizar tudo isso), mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer
sentir em qualquer lugar e momento. Para sermos claros, o que esses textos
afirmam é a existência de algo como um regime fascista do desejo que deveria
ser o verdadeiro alvo de uma açã o política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, nã o procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressã o política do retorno a estruturas
arcaicas de comportamento. Alguém como Reich, insistirá que longe da
ressurgência de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do resultado final
de um trabalho de civilizaçã o que confunde socializaçã o e repressã o pulsional.
Pois até agora nã o houve processo civilizacional que nã o se constituísse sobre os
escombros das pulsõ es sexuais. Daí porque é importante lembrar como: “a
estruturaçã o autoritá ria do homem se produz em primeiro lugar através da
ancoragem de inibiçõ es e de angú stias sexuais na matéria viva das pulsõ es
sexuais”74. Ou seja, tudo se passa como se eles estivessem a dizer que nã o é falta
de civilizaçã o que produz o fascismo, mas civilizaçã o em sua funçã o repressiva
bem sucedida e em sua capacidade de produçã o de satisfaçõ es substitutas à
sexualidade reprimida. De onde se segue a insistência de Reich em mostrar a
centralidade dos discursos sobre a família e a moral sexual no nazismo, sua
funçã o estruturante diante de, como vimos, um risco efetivo dos corpos saírem
73
REICH, idem, p. 62
74
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75
de seus “lugares naturais” definindo radicalmente a sociedade a partir de novas
formas de circulaçã o de desejos e afetos.
O ponto de partida de Reich se encontra na descriçã o da individuaçã o, da
constituiçã o do indivíduo moderno a partir de mecanismos de repressã o da
sexualidade, de suas dinâ micas polimó rficas e insubmissas. Ou seja, as
faculdades mentais e as instâ ncias psíquicas do indivíduo sã o fundadas na
operacionalizaçã o da repressã o à experiência sexual:

O mecanismo através do qual as massas humanas perdem o sentido da


liberdade, como a economia sexual social provou de maneira abundante
graças a experiências clínicas é a repressã o social da sexualidade genital
das crianças, dos adolescentes e dos adultos75.

O materialismo de Reich tem uma espécie de base energética fundada em uma


noçã o que eleva a sexualidade à condiçã o de fundamento material do humano.
Reich desenvolverá uma compreensã o naturalista da energia sexual, uma
bioenergética da libido (compreendida como urgência psíquica em direçã o à
gratificaçã o sexual) que é fruto de uma perspectiva materialista bastante
explícita, definindo a prá tica clínica como um processo de liberaçã o, pela via do
contato físico (vegetoterapia), da referida energia sexual de sua couraça
caracterial e muscular repressora. As disposiçõ es corporais, os traços de cará ter
funcionam como uma armadura cuja psicaná lise deve saber como desconstituir.
Uma desconstituiçã o que tem nã o apenas funçã o clínica, mas fundamentalmente
política.
Tal repressã o vinculada de forma estrutural aos processos de socializaçã o
nã o é, no entanto, a condiçã o para a civilizaçã o. Ou seja, é possível para Reich
pensar formas de sociedade nã o-repressiva. Trata-se, e isto nã o se encontrará
em Freud, de estabelecer as coordenadas histó ricas da repressã o, e nã o suas
coordenadas antropoló gicas. Nã o é o processo civilizató rio que produziria uma
sociedade repressiva, baseada na culpabilidade e na agressividade. Há
coordenadas histó ricas bastante precisas que podem e devem ser superadas. O
trabalho analítico deve ser um setor de tal superaçã o. Daí a necessidade de
sublinhar como a repressã o é o resultado direto da reproduçã o material de certa
modalidade bastante específica de forma de vida:

Ao voltarmos para a histó ria da repressã o sexual descobrimos que ela nã o


nasceu com a cultura, que ela nã o é condiçã o para a formaçã o da cultura,
mas que ela iniciou relativamente tarde, apó s a instauraçã o do
patriarcado autoritá rio e do nascimento das classes76.

Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socializaçã o
que nã o passam pela repressã o das pulsõ es sexuais. Daí porque Reich poderá
dizer: “ Em uma sociedade socialista, o complexo de É dipo deve desaparecer
porque a sua base social, a família patriarcal, perde a sua razã o de ser e
desaparece”77. Ou seja, recuperando discussõ es que vimos na aula passada, sobre
a obsolescência da família como unidade social na sociedade comunista, Reich

75
Idem, p. 299
76
Idem, p. 73
77
REICH, Psicanálise materialismo dialético, p.
tira suas consequências psíquicas, a decomposiçã o progressiva da família leva
consigo as modalidades de organizaçã o dos conflitos psíquicos que sã o
imanentes a sua organizaçã o nuclear. Daí porque nã o haveria mais complexo de
É dipo na sociedade comunista plenamente realizada.
Reich eleva a família autoritá ria, cujo teatro inconsciente nos é fornecido
pelo Complexo de É dipo, ao nú cleo central de reproduçã o social das dinâ micas
de regressã o. Ela será a “célula reacioná ria central”78, um Estado autoritá rio em
miniatura que visa nã o apenas a naturalizaçã o de um tipo patriarcal de
dominaçã o, mas também a oposiçã o da mulher como genitora e a mulher como
ser sexual, de onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias
numerosas: estratégia clá ssica para submeter a mulher a condiçã o de genitora. O
que significa, em uma fidelidade clara ao debate comunista da época, que apenas
o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento de uma
sociedade emancipada. Por outro lado, apenas a anulaçã o de uma prá tica clínica
baseada na reduçã o dos conflitos psíquicos aos processos de identificaçã o no
interior do nú cleo familiar poderia contribuir para a emancipaçã o.
Ou seja, Reich procura fornecer uma aná lise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressã o social em operaçã o nas
dinâ micas de socializaçã o, em especial na família. Mais do que a expressã o da
família patriarcal, o fascismo aparecia, na verdade, quando a força da família
patriarcal entrava em colapso, como se fosse uma reaçã o desesperada ao seu
ocaso, à descoberta social de sua fragilidade. Diante da possibilidade aberta pelo
seu fim, tudo se passa como se setores fundamentais da sociedade apelassem a
sua versã o propriamente terrorista.

Uma personalidade fascista

Mas tentemos entender melhor como Reich compreende as formas de


regressã o social imanentes ao fascismo. Ao descrever as estruturas da vida
psíquica, Reich fala de três camadas distintas do que ele chama de estrutura
biopsicoló gica. Uma camada mais superficial diria respeito à s dinâ micas sociais
de cooperaçã o e civilidade. Uma segunda se refere a impulsos agressivos,
concorrenciais e belicistas. Por fim, a ú ltima está vinculada ao nú cleo bioló gico
natural do humano. Nela, encontraríamos uma forma de cooperaçã o mais natural
e sexualmente desenvolvida. Depois da decomposiçã o da organizaçã o
democrá tica primitiva fundada no trabalho associado, o nú cleo bioló gico do
humano nã o teria mais conhecido representaçã o social. Por isto, sua recuperaçã o
seria necessariamente revolucioná ria.
O fascismo seria a expressã o politicamente organizada da estrutura
caracterial do homem médio, esse cuja caracteriologia estaria ligada à segunda
camada. Tal estrutura seria universal e internacional, nã o sendo pró prio de
raças, naçõ es ou partidos determinados. Ou seja, a aná lise do fascismo é uma
aná lise caracterial.
A noçã o de cará ter permite a Reich “integrar no edifício da sociologia nã o
apenas os dados econô micos, mas também os dados sexuais”. Sobre a noçã o de
cará ter, Reich lembrará que os mecanismos de defesa do Eu, assim como seus
traços de cará ter que compõ em o cerne da personalidade psicoló gica, sã o
constituídos da mesma forma que os sintomas. Daí porque:
78
Idem, p. 164
A forma das reaçõ es do ego, que difere de um cará ter para outro mesmo
quando os conteú dos das experiências sã o semelhantes, pode ser
remontada à s experiências infantis, da mesma maneira que o conteú do
dos sintomas e das fantasias79.

Na aná lise, estamos lindando com resistências que sã o manifestaçõ es de traços


de cará ter. Este cará ter ou “modo de existir de uma pessoa”80, seu sistema de
reaçõ es, de regularidades, representa uma expressã o de todo seu passado. Ao
analisar o fascismo a partir da estrutura caracterial, Reich apenas mobiliza mais
claramente a relaçã o entre arqueologia social das repressõ es e produçã o de
personalidade psíquica. Ou seja, Reich é praticamente o primeiro a insistir que
há uma personalidade fascista, que o fascismo é uma forma de personalidade.
Isto permite a Reich afirmar que o líder fascista só pode ocupar tal lugar porque
sua personalidade coincide com a estrutura daquela pró pria a largas parcelas da
populaçã o. O que lhe leva a analisar de forma extensiva os traços de
personalidade de Hitler.
Lembremos ainda que esta estrutura caracterial precisa ser objeto de uma
adesã o forte para constituir uma personalidade fascista. Isto explica porque a
base de seus recrutados estaria nos estratos médios, na “pequena burguesia
medíocre e reacioná ria”. Pois a pequena burguesia simplesmente teria copiado a
atitude dos “grandes”, fornecendo sua versã o caricatural e exagerada: “nã o se
representa impunemente ao pequeno burguês a comédia da ‘grande política’”81.
Ela naturaliza aquilo que, nos estratos mais elevados, seria algo como uma
aparência assumida enquanto tal. Ela é o setor que realmente acredita nas
injunçõ es do discurso do poder e suas estratégias retó ricas de auto-justificaçã o.
A personalidade estará assim assentada em uma arqueologia social das
repressõ es porque o destino da sexualidade moldaria toda a extensã o dos traços
de cará ter do indivíduo. É isto o que permite a Reich fazer afirmaçõ es como:

A inibiçã o moral da sexualidade natural da criança cuja ú ltima etapa é o


afunilamento característico da sexualidade genital faz da criança alguém
ansioso, selvagem, submisso, obediente, “amá vel” e “dó cil” no sentido
autoritá rio da palavra; impondo a todo movimento de vida e liberdade
uma forte carga de angú stia, ela paralisa as forças de revolta no homem e
deteriora, ao impedi-lo de pensar nas coisas sexuais, sua potência
intelectual e seu senso crítico82.

Ou ainda, de forma mais explícita:

O homem genitalmente satisfeito é honesto, consciente do seu dever,


corajoso, disciplinado sem fazer muito caso disto. Todas essas qualidades
estã o organicamente ligadas à sua personalidade. O indivíduo sofrendo de
fraqueza genital cuja estrutura sexual é plena de contradiçõ es, está
constantemente em guarda para dominar sua sexualidade, para salvar sua

79
REICH; Wilheim; Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53
80
Idem, La psychologia de masse …p. 56
81
Idem, p. 19
82
Idem, p. 74
honra sexual, para lutar corajosamente contra as tentaçõ es, etc. Cada
adolescente e cada criança conhece a luta contra a tentaçã o da
masturbaçã o. Ë no curso desse combate que se desenvolve todos os
elementos estruturais, sem nenhuma exceçã o, do homem reacioná rio83.

A colocaçã o é clara. Haveria uma espécie de moral naturalizada que


derivaria da ausência de distorçõ es de comportamento provocada pela repressã o
à funçã o do orgasmo. Tal moral naturalizada seria o fundamento para uma
estrutura de cará ter que nã o está à s voltas com a necessidade dos sujeitos se
mortificarem até se tornarem completamente submissos à ordem ou dar conta
de contradiçõ es que aparecerã o insuperá veis, que obrigarã o os sujeitos a
encontrar formas de satisfaçã o substitutiva, de desvio agressivo à quilo com o
qual eles nã o sã o mais capazes de lidar.
Reich chegará a dizer que o medo da liberdade sexual, sinô nimo na mente
reacioná ria de caos e depravaçã o sexual é o que realmente freia a superaçã o da
liberaçã o em relaçã o à exploraçã o econô mica. A exploraçã o econô mica é
assentada na naturalizaçã o de dinâ micas sociais de opressã o, de mando, de
submissã o que cada sujeito procura desenvolver sobre sua pró pria sexualidade.
Por isso, tais dinâ micas sã o inefetivas em alguém cuja liberdade sexual é
conquistada.
O que significa, ao menos no seu caso, aceitar que: “todo espírito
autenticamente revolucioná rio, toda arte e toda verdadeira ciência tem suas
raízes no nú cleo bioló gico natural do homem”84. A emancipaçã o social seria
indissociá vel de uma certa ressureiçã o da natureza negada, da afirmaçã o de uma
força bioló gica que permitiria aos sujeitos amar, conhecer e trabalhar. Nã o será
por outra razã o que Reich passará para a histó ria como aquele que inventará a
noçã o de “revoluçã o sexual” que, para ele, era indissociá vel da revoluçã o política
e social. Esta será a razã o que levará Reich a criticar as revoluçõ es comunistas
que ocorrem no início do século XX. A seu ver, o potencial revolucioná rio
desaparecera na medida que as tentativas iniciais de transformaçã o das
estruturas das relaçõ es entre os sexos, dos modos de reproduçã o da família sã o
abandonadas em prol do fortalecimento dos modelos autoritá rios tradicionais.
Perdido isso, nã o havia mais nada o que esperar.

Imunizar o corpo social

A partir desta estrutura repressiva de base, Reich procura derivar


algumas das características principais do fascismo, a saber, o racismo em sua
variante anti-semita, o lugar das temá ticas religiosas (o que Reich chama de
misticismo) e a fantasia da purificaçã o do corpo social que fundamenta uma
concepçã o unitá ria e identitá ria de naçã o, de estado e de pá tria. Analisemos cada
um desses pontos.
A respeito dos vínculos entre fascismo e religiã o, Reich afirma que eles se
fundam na reversã o do cará ter masoquista da antiga religiã o patriarcal em
sadismo. Daí porque um regime que se coloca como a redençã o sagrada contra a
decadência ateísta pode admitir de forma tã o orgâ nica todos os padrõ es de
violência. A temá tica religiosa em sua complexidade se transforma na defesa
83
Idem, p. 104
84
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, op. cit., p. 15
contra a destituiçã o das estruturas psicoló gicas de reproduçã o da vida social sob
a forma da “individualidade”. Reich cita, por exemplo, um trecho de texto de
propaganda fascista:

Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destró i a


família, que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto
que ele detesta todas as aspiraçõ es nacionais. Ele quer uniformizar os
povos tornando-os dó ceis ... Mas todas as tentativas de aniquilar a vida
pessoal serã o reduzidas a nada enquanto restar no coraçã o do homem
uma centelha de religiã o, pois é na religiã o que sempre se manifesta a
liberdade pessoal em relaçã o ao mundo ambiente85.

Sobre o racismo fascista, Reich lembrará como ele estará sempre


associado ao imaginá rio da purificaçã o do corpo social, da sua unidade e da sua
imunizaçã o necessá ria:

A ideologia mundial da ‘alma’ e da ‘pureza’ é a ideologia mundial da


asexualidade, da ‘pureza sexual’ ou, para chamar as coisas por seus
nomes, uma forma de recalque sexual e de angú stia sexual, emanaçã o de
uma sociedade patriarcal autoritá ria86.

Assim, Reich insiste que o racismo nã o é apenas uma justificaçã o bioló gica
para aspiraçõ es imperialistas. O racismo fascista, como é voltado contra setores
nã o submetidos à reificaçã o da escravidã o, como os judeus, é para Reich fruto de
estrutura psicoló gica precisa. Nele, pulsa as formas mais elementares de
recalque sexual através da temá tica da purificaçã o das raças e da hierarquia
pressuposta que procura aproximar motivos teoló gicos e geográ ficos:

A ideologia fascista separa o desejo de orgasmo do homem das estruturas


humanas formadas pelo patriarcado autoritá rio e atribui tal separaçã o à s
diferentes raças: nó rdico se torna assim sinô nimo de luminoso, celeste,
assexual, puro; o Oriente médio, inversamente, é instintual, demoníaco,
sexual, orgiá stico87.

Essas colocaçõ es aparecerã o décadas depois quando Franzt Fanon


procurar pensar certa psicaná lise do processo colonial em Peles negras,
máscaras brancas. Ou seja, o racismo é indissociá vel das dinâ micas pró prias à
repressã o. Sabemos como tal divisã o entre o nó rdico luminosos e o semita
instintual marca também os negros e os africanos. O fascismo relega o sexual e o
sensual à s raças estrangeiras, aos costumes que pervertem nosso povo,
recuperando assim uma dinâ mica que já vimos nos primeiros tratados sobre
perversã o sexual no ocidente, no qual os comportamento sexual de outros povos
era mostrado em seu pretenso arcaísmo, em sua incapacidade de atingir as
alturas da sublimidade moral da civilizaçã o europeia-cristã . Reich mostra, por
exemplo, a abundante propaganda produzida pelos nazistas alemã es a respeito
da pretensa promiscuidade da entã o Uniã o Soviética, onde nã o haveria mais

85
Idem, p. 192
86
Idem, p. 139
87
Idem, p. 143
casamento, onde mulheres seriam disponíveis a todos em uma espécie de
prostituiçã o generalizada, de socializaçã o das mulheres, onde “nã o haveria mais
uniã o entre homem e mulher, onde se viveria hoje com uma pessoa, amanhã com
outra, de acordo com seus caprichos”88.
Mas notemos como colocar o problema do racismo e do antisemitismo
inerente ao fascismo desta forma é maneira de afirmar que sua superaçã o nã o
passa apenas pela denú ncia das dinâ micas econô micas e de exploraçã o
imanentes a tal violência social. Na verdade, os problemas do racismos e do
antisemitismo exigem o esclarecimento de seu fundamento sexual e a atuaçã o
neste nível. O racismo para Reich se combate através de uma revoluçã o sexual.
Nesse sentido, podemos dizer que Reich tem o mérito de expor como nã o
há autoritarismo sem regulaçã o necessá ria da vida sexual, pois se trata de
lembrar que isto nã o é uma manobra diversionista, nã o é um elemento auxiliar,
mas o fundamento necessá rio de toda servidã o e sujeiçã o social. Reich era tã o
consciente deste ponto que, entre o fim dos anos vinte no início dos anos trinta
em Viena e depois em clínicas gratuitas de aconselhamento sexual para a classe
proletá ria, chamadas de SexPol. Tais clínicas, compostas por psicanalistas,
médicos, obstetras e advogados eram uma mistura de consulta psicanalítica,
discussã o marxista, prescriçã o de contraceptivos tendo em vista o combate à
miséria sexual e o desenvolvimento de uma sexualidade livre. Essas clínicas
muitas vezes eram montadas em ô nibus que iam para as periferias e parques,
além de serem responsá veis por palestras pú blicas e distribuiçã o de folhetos
sobre sexualidade deixados de porta em porta. Assim:

Em um momento de luta entre a necessidade humana e as forças


socioeconô micas dominantes, os psicanalistas nã o podiam mais insistir
em considerar a neurose do indivíduo como ú nico locus de intervençã o.
Do ponto de vista clínica, a reestruturaçã o seguiria o esquema de Sandor
Ferenczi de terapia ativa. Socialmente, a intervençã o efetiva significava
defender os direitos sociais, com o direito à assistência acima de tudo89.

Ou seja, desde de o início sua clínica será uma clara clínica de intervençã o
social, como se a verdadeira clínica do sexual fosse a continuaçã o das lutas
sociais por outros meios.

88
Idem, p. 170
89
ANN DANTO, Elisabeth; As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, São Paulo:
Perspectiva, 2019, p. XXI
Falar de sexo
Aula 8

Na aula de hoje, gostaria de fazer uma espécie de deslocamento em relaçã o ao


que foi, até agora, o eixo principal de nosso curso. Pois, como vocês devem ter
percebido, acompanhamos uma articulaçã o entre a consolidaçã o de discursos
clínicos sobre a sexualidade e o desdobramento de lutas sociais que tiveram por
objeto novas formas de circulaçã o social dos corpos, de seus afetos e desejos. Em
alguns momentos, tais dispositivos clínicos pareceram mobilizados para retirar o
ímpeto dessas novas formas de circulaçã o, em outros eles pareceram
impulsionados por elas.
Mas a partir de agora, eu gostaria de complexificar nosso quadro trazendo
um terceiro eixo, a saber, a praxis estética. E gostaria de começar por insistir
nessa maneira de descrever tal eixo como uma praxis, como uma atividade social
que, a sua maneira, compõ e o campo dos processos indutores de transformaçõ es
estruturais na vida. Pois lembremos como a estética, e isso nã o poderia ser
diferente, diz respeito a modos de afecçã o, a estrutura dos campos do sensível,
do visível, do perceptível. Ela aparece assim como eixo fundamental para a
determinaçã o das condiçõ es de possibilidade da vida social. Pois se trata de
produzir as dinâ micas pró prias da imaginaçã o social em sua força de
esquematizaçã o dos objetos da experiência. Por essa razã o, a estética é e sempre
será uma atividade política, mesmo e sobretudo quando nã o falar diretamente de
assuntos políticos. Pois ela interfere na forma do campo social de experiências,
em sua maneira de unir, de dividir, de sintetizar, de compor, de decompor, de
estruturar. Isto nã o é feito apenas no interior de alguma forma delirante de
esfera autô noma da fruiçã o estética. Antes, isto tem consequências profundas na
forma geral de determinaçã o das condiçõ es de possibilidade da experiência.
Levando isso em conta, gostaria de começar a recompor nosso curso a fim
de dar espaço à maneira com que experiências estéticas vã o reordenar as
condiçõ es de possibilidade do campo do sexual, como elas irã o criar velocidades
e trajetos de corpos mobilizando, muitas vezes, o que se produz nas clínicas do
sexual e no campo extensivo das lutas sociais. Nossas pró ximas duas aulas serã o
dedicadas a tanto.

Bataille e a crítica ao trabalho

Gostaria de começar com Georges Bataille, sendo que na aula que vem
falaremos de uma ó pera de Alban Berg, chamada Lulu. A escolha de começar por
Bataille passa pela procura em explicitar o que poderíamos chamar de setor mais
radicalizado do surrealismo. Dessa forma, essa é uma maneira de entrarmos na
aná lise do potencial disruptivo das vanguardas modernistas e como uma outra
forma de falar de sexo foi mobilizada nesse contexto.
Desde de meados dos anos vinte, Bataille participa assiduamente das
discussõ es a respeito do surrealismo, animadas principalmente por André
Breton. No entanto, suas relaçõ es com Breton sã o tensas e logo serã o levadas à
ruptura. Bataille se vê em uma posiçã o mais radical do que a de Breton, que ele
compreende como uma porta-estandarte de uma versã o “oficial” e
“institucionalizada”. A seu respeito, Breton dirá : “O Sr. Bataille faz profissã o de
querer considerar apenas o que há de mais vil, mais desencorajador e
corrompido e ele convida o homem, a fim de evitar que ele se torne útil ao que
quer que seja de determinado a correr absurdamente com ele em direção a
algumas casas provinciais assombradas, mais vis que as moscas mais viciosas, mais
rançoso que salões de cabelereiro”90.
Podemos definirmos um dos eixos centrais do surrealismo como a crítica
da realidade social em prol de uma sobre-realidade na qual encontraríamos o
que teria sido recalcado pelos processos de racionalizaçã o na modernidade,
como o inconsciente, o infantil e o arcaico. Neste sentido, a experiência
modernista aparece como um paradoxal apelo à recuperaçã o do que foi expulso
do nosso tempo histó rico. Recuperaçã o da capacidade de escrever como um
criança, sem objetivo e em completa errâ ncia; escrever com as condensaçõ es, os
deslocamentos e as associaçõ es pró prias à s formaçõ es do inconsciente; escrever
deixando retornar experiências sociais que a modernidade quer marcar com o
selo do arcaismo. Dentro desse horizonte, a posiçã o de Bataille consiste em
explorar tal retorno do recalcado através de uma reflexã o sobre a potência de
uma escrita da transgressão.
Com este projeto em mente, Bataille irá organizar o campo de uma
vertente do surrealismo que se constituirá através de revistas como Documents,
Minotaure e, principalmente, Acéphale. Talvez a síntese do espírito de tais
revistas se encontre na capa de Acéphale, desenhada por André Masson. Nela,
encontramos um desenho inspirado no Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci.
Mas, pelas mã os de Masson, ele perde sua cabeça, ganha uma caveira no lugar de
seu sexo, suas vísceras estã o expostas e nas mã os ele carrega um coraçã o em
chamas e uma adaga. Ou seja, a figura que talvez melhor sintetize a crença
renascentista no humanismo e na razã o que se expressa no equilíbrio sereno da
boa forma perde sua cabeça e se vê obrigada a segurar a violência da adaga, a
paixã o que queima e a morte ligada ao sexo. O que nã o nos surpreende se
lembrarmos como Bataille escreve o primeiro texto da revista anunciando:
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito
tarde para tentar ser razoá vel e instruído – o que levou a uma vida sem atrativos.
Secretamente ou nã o, faz-se necessá rio se transformar em algo totalmente outro
ou cessar de ser”.
Mas eu gostaria de falar de Bataille privilegiando nã o exatamente sua
literatura, composta de livros como A história do olho e Madame Edwarda, livros
que passaram à histó ria da literatura devido a sua maneira explícita de falar de
sexo e que parecem se colocar na linha direta de produçõ es como as de Sade, dos
libertinos franceses, entre outros. Pois sua obra nã o é, exatamente, a obra de um
escritor. Seus romances sã o a elaboraçã o literá ria de uma problematizaçã o
filosó fica, um pouco como os romances de Sartre, de Diderot e Rousseau. Há algo
de “romance de tese” em sua obra literá ria, já que a literatura aparece quase
como um regime discursivo de explicitaçã o de proposiçõ es filosó ficas.
Por isso, mesmo que se trate de começar um eixo sobre estética, eu
gostaria de começar explicitando as proposiçõ es filosó ficas de Bataille, essas
proposiçõ es que atravessarã o sua obra, que farã o de sua obra literá ria o campo
de produçã o de horizontes de transgressã o e de saturaçã o da escrita. Enquanto
90
BRETON, André; Manifestes do surréalisme, Paris: Gallimard, 1962, p. 132
um autor anfíbio, Bataille explicita como poucos a maneira com que setores
avançados das vanguardas modernistas estavam a procura da extensã o de
modalidades de crítica social impulsionados pela perspectiva de novas
circulaçõ es do sexual.
A esse respeito, lembremos como um dos pontos de partida da crítica de
Bataille se refere ao primado da sociedade do trabalho como forma geral de
organizaçã o social na modernidade capitalista. Sua maior preocupaçã o é como o
trabalho impõ e uma atividade na qual o humano perde aquilo que é fundamental
em suas açõ es, a saber, o gozo:

O trabalho exige uma conduta em que o cá lculo do esforço, relacionado à


eficá cia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoá vel, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
nã o sã o admitidos. Se nã o pudéssemos refrear esses movimentos, nã o
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razã o de
refreá -los91.

Nesta citaçã o, vemos Bataille insistir na existência de um modelo de


cá lculo, de mensuraçã o, de quantificaçã o derivado da ló gica do trabalho e
estranho à “improdutividade” (dentro de uma perspectiva da acumulaçã o
capitalista) desses modos de relaçã o social que sã o a festa e o jogo. Tal modelo é
indissociá vel da noçã o de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as
atividades sã o medidas tendo em vista o cá lculo dos esforços e investimentos, a
“eficá cia produtiva” com sua recusa ao desperdício enquanto horizonte supremo
de moralidade de nossas açõ es. Há uma capacidade de controle a partir da
possibilidade de prever resultados e grandeza que funda o trabalho como modo
de apropriaçã o de minha força e dos objetos. Controle encarnado no primado da
utilidade. Ou seja, o trabalho é, acima de tudo, a internalizaçã o de uma disciplina
do desejo.
Mas, se nos perguntarmos sobre o que devemos entender por “utilidade”
neste contexto, teremos que apelar a um texto do início dos anos 30, intitulado
“A noçã o de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob


uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se
deixa limitar, por um lado, à aquisiçã o (praticamente à produçã o) e à
conservaçã o dos bens e , por outro, à reproduçã o e à conservaçã o das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser vá lido, à s necessidades fundamentais da
produçã o e da conservaçã o92.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece nã o apenas enquanto modo de


descriçã o da racionalidade pró pria a um sistema só cio-econô mico determinado,
mas principalmente como o princípio fundamental de definiçã o moral da
natureza dos sujeitos pró prios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do
capitalismo sã o aqueles que organizam suas açõ es tendo em vista sua auto-

91
BATAILLE, Georges; O erotismo, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 64
92
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
conservaçã o, a conservaçã o de seus bens, o cá lculo econô mico de seus esforços e
a fruiçã o de formas moderadas de prazer, ou seja, formas de prazer que nã o nos
coloquem fora de nosso pró prio domínio. Eles sã o aqueles que se julgam
racionais por sempre submeterem sua afetividade à reflexã o sobre a utilidade e a
medida. Dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da
mercadoria, as relaçõ es entre pessoas acabarã o por se submeterem a
racionalidade instrumental da relaçõ es entre coisas. Algo que Bataille, à sua
forma, recupera ao afirmar que: “a humanidade, no tempo humano, antianimal
do trabalho é em nó s o que nos reduz a coisas” 93. Tempo antianimal porque
tempo que se acumula, que conta, que se dispõ e como unidade bruta de
contagem, tempo disciplinar do cá lculo dos meios em relaçã o a fins.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que nã o se
confunde com o cá lculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda açã o social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmaçã o como:

A atividade humana nã o é inteiramente irredutível a processos de


reproduçã o e de conservaçã o, e o consumo deve ser dividido em duas
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo
necessá rio para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservaçã o da
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condiçã o fundamental desta ú ltima. A segunda parte é
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construçõ es de monumentos santuá rios, os jogos, os
espetá culos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condiçõ es
primitivas, têm em si mesmas seu fim94.

Há vá rias questõ es que poderíamos colocar a partir de afirmaçõ es desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruiçã o que, do
ponto de vista das exigências econô micas de produçã o e maximizaçã o, sã o
simplesmente irracionais. Mas, ao menos neste momento, gostaria de desdobrar
a ideia de que a atividade sexual seria um exemplo privilegiado de atividade
improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem expressa em
uma afirmaçã o como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual,


uma incompatibilidade cujo rigor nã o poderia ser negado. Na medida em
que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve nã o
apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo
o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideraçã o desviou o
homem, senã o da consciência dos objetos, ao menos da consciência de
si95.

93
Idem; O erotismo, p. 184.
94
Idem; A parte maldita, p. 21
95
Idem; O erotismo, p. 188
Notemos um ponto fundamental aqui, o erotismo é excessivo. Mas, com
isto, nã o significa dizer que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso
nã o é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo”
significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma
medida comum entre os dois fenô menos, sendo que um é apenas maior do que o
outro. Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de
medir, simplesmente porque é o que nã o se mede, o que colapsa toda medida,
porque sua ló gica nã o é a ló gica dos objetos mensurá veis. Neste sentido, mesmo
quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples
olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do
que nã o aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que
podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo
porque o que lhe caracteriza é exatamente aquilo que nã o entra na imagem atual
do humano, deste da sociedade do trabalho e da ló gica utilitá ria. Assim, quando
Bataille propor uma espécie de fó rmula ontoló gica ao afirmar que: “o ser é
também o excesso do ser, elevaçã o ao impossível”96, devemos entender com isto
que é pró prio da definiçã o do ser o reconhecimento de uma relaçã o constitutiva
com o que lhe determina. Neste contexto, “impossível” nã o significa inexistente;
“impossível” significa o que nã o se expressa na configuraçã o atual dos possíveis e
que, por isto, força tal configuraçã o a modificar-se.
Por isto, que Bataille irá procurar se apoiar em tudo o que parece
inumano no sexo:

A sexualidade, qualificada de imunda, de bestial, é mesmo o que mais se


opõ e à reduçã o do homem à coisa: o orgulho íntimo de um homem se liga
a sua virilidade. Ela nã o responde de modo algum em nó s à quilo que é o
animal negado, mas ao que o animal tem de íntimo e de incomensurá vel. É
mesmo nela que nã o podemos ser reduzidos como bois à força de
trabalho, ao instrumento, à coisa97.

Inumano é o que o humano precisou expulsar para ter uma imagem na


qual reconheça as normas aos quais a vida social o vinculou, como a animalidade.
Tal animalidade nã o é o selvagem, mas o incomensurá vel, o que nã o se descreve
como descrevemos um instrumento.
Isso explica, em nosso texto, a indignaçã o de Bataille com estudos “sobre a
vida sexual” como os Relató rios Kinsey. Alfred Kinsey foi um bió logo e “sexó logo”
norte-americano responsá vel por estudos sobre o comportamento sexual
masculino e feminino que marcaram os anos cinquenta. Seu estudos procuraram
criar escalas (como uma que definia tendências homossexuais e heterossexuais a
partir de uma escala de 0 a 6) e organizar comportamentos a partir de variá veis
de ocupaçã o, idade, religiã o, entre tantas outras. Bataille se insurge contra a ideia
de que poderíamos falar de sexo como se estivéssemos diante de um objeto do
mundo físico. Ou seja, uma ciência da sexualidade é, para Bataille, impossível.
Pois a ciência é um regime de descriçã o que nã o se diferencia do padrã o de
racionalidade que encontramos no mundo do trabalho.
Mas podemos dizer que, para Bataille, uma ciência da sexualidade é
impossível porque, primeiro: “nã o podemos em geral participar da pedra, da
96
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201
97
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 183
tá bua, mas participamos da nudez da mulher que enlaçamos” 98. Ou seja, nã o há
um observador indiferente aos fenô menos ligados à sexo, pois eles provocam
necessariamente nossa participaçã o. Olhar para eles, descrevê-los é entrar em
um regime de participaçã o e de implicaçã o, como participaríamos e nos
implicaríamos se descrevêssemos a dor ou a morte de alguém pró ximo. Por isto,
o discurso que crê descrever fenô menos sexuais como se fossem coletados por
observadores imparciais e imunes ao que veem só pode ser uma mistificaçã o.
Nossa descriçã o do que é da ordem do sexual sempre será uma descriçã o
sexualmente investida, libidinalmente interessada. Melhor procurar um regime
de discurso que possa lidar melhor com tal realidade.
Por isto, e este é o segundo ponto, falar de sexo nã o pode ser, para
Bataille, reduzi-lo a dados estatísticos. Nã o que eles nã o sejam precisos, eles sã o
simplesmente irrelevantes:

Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a


dar nú meros, medidas, classificaçõ es de acordo com a idade ou a cor dos
olhos? O que o homem significa a nossos olhos se coloca sem dú vida para
além dessas noçõ es: estas se impõ em à atençã o, mas nã o acrescentam a
um conhecimento já dado senã o aspectos inessenciais99.

O erotismo, a continuidade e a heterogeneidade

Mas se esses livros nã o falam da vida sexual, como entã o falar de sexo? O que
pode pois significar falar de sexo? A esse respeito, lembremos da definiçã o dada
por Bataille:

O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissoluçã o das formas


constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a
ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) Trata-se
de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade,
toda a continuidade que esse mundo é capaz (...) A pró pria paixã o feliz
acarreta uma desordem tã o violenta que a felicidade de que se trata, antes
de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tã o grande que se
compara a seu contrá rio, ao sofrimento100.

Falar de sexo é falar dessa dissoluçã o das formas constituídas, regulares, que
fundam a ordem descontínua das individualidades que somos. Ou seja, será
sempre uma fala estranha à nossa individualidade e nossa identidade.
Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo composto por
esses á tomos sociais que sã o os indivíduos modernos com seus sistemas
particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de interesses
através de contratos, de limites, de cá lculos. Interesses, por sua vez, submetidos
à ló gica utilitarista da maximizaçã o do prazer e do afastamento do desprazer, de
98
Idem, p. 179
99
Idem, p. 180.

100
BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43
distinçã o entre gozo e sofrimento, sendo que a mistura entre os dois só pode ser
compreendida como uma forma insidiosa de patologia. Por isto, do ponto de
vista da preservaçã o das individualidades, o erotismo sempre será violento e
invasivo: “o que significa o erotismo dos corpos, senã o uma violaçã o do ser dos
parceiros?” pois “A passagem do estado normal ao de desejo eró tico supõ e em
nó s a dissoluçã o relativa do ser constituído na ordem descontínua”101.
Nesse sentido, a fala que diz algo sobre o sexo sempre tentará introduçã o
toda a continuidade que esse mudo descontínuo é capaz, Daí afirmaçõ es como:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o pró prio ser se coloca


em questã o, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde
objetivamente, mas entã o o sujeito se identifica com o objeto que se
perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco102.

Essa mobilizaçã o entre experiência do sexual e continuidade, uma


continuidade que realiza processos de des-individuaçã o pode nos explicar
porque sua escrita será marcada pela noçã o de “transgressã o”. Há um modelo de
transgressã o privilegiado por seu pensamento, pois produtor de uma
experiência substantiva de heterogeneidade. A este respeito, Bataille censura o
pensamento materialista de, até entã o, ceder à “obsessã o de uma forma ideal da
matéria, de uma forma que se aproximaria, mais do que qualquer outra, daquilo
que a matéria deveria ser”103. A seu ver, trata-se de um falso materialismo,
incapaz de compreender o cará ter polimó rfico e promiscuo da matéria. Este falso
materialismo ainda é dependente de uma hierarquia pró pria ao cará ter elevado
da ideia. Mas a verdadeira transgressã o nos faz nos reconhecermos naquilo que
Bataille chama de matéria baixa ou baixo materialismo: “A matéria baixa é
exterior e estrangeira à s aspiraçõ es ideais humanas e se recusa a se deixar
reduzir à s grandes má quinas ontoló gicas”104. Uma matéria baixa que é a
afirmaçã o do cará ter informe da matéria, do cará ter “baixo” que uma certa
tradiçã o filosó fica sempre associou à matéria, a saber, cará ter do que se
decompõ e, do que se quebra, o que apodrece, o que nã o subsiste no interior do
tempo e por isto está em plasticidade contínua. A verdadeira transgressã o, dirá
Bataille, é reconhecimento de si na heterogeneidade radical do que se decompõ e,
do que se quebra e apodrece. E algo do erotismo se deixa tocar exatamente por
tal tipo de experiência material: pelo corpo que nã o se submete integralmente à
sua pró pria imagem, pela fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo,
pela matéria que sempre se perde e se decompõ e, pela reversibilidade contínua
dos corpos que perdem algo de suas formas.

Sade e a linguagem da violência

Tentemos entender melhor esse ponto através de um exemplo literá rio


importante que atravessa a escrita de O erotismo, a saber, Sade.:

101
Idem, p. 41
102
Idem, p. 55
103
BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179
104
BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224
Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor:
significa a recusa de uma subordinaçã o ao gozo menor, uma recusa a
condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o
á pice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressã o
que nã o para antes de ter atingido o á pice da transgressã o. Sade nã o
evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o
princípio inicial da negaçã o dos outros e da afirmaçã o de si. A negaçã o dos
outros se torna, no extremo, negaçã o de si mesmo (...) Há algo mais
perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido
por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?105.

A que Bataille alude aqui? Nã o compreenderemos nada da literatura de


Sade se imaginarmos que seus personagens sã o impulsionados pela simples
procura de maximizar seus prazeres individuais. Na verdade, Sade está à procura
de uma purificaçã o da vontade que a libere de todo conteú do empírico e
patoló gico. Blanchot fala do desejo de: « fundar a soberania do homem sobre um
poder transcendente de negaçã o »106. De onde se segue, por exemplo, o conselho
do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os homens,
todas as mulheres se assemelham: nã o há em absoluto amor que resista aos
efeitos de uma reflexã o sã ”107. Uma indiferença em relaçã o ao objeto que
pressupõ e a despersonalizaçã o e o abandono do princípio de prazer. Este é o
sentido de um outro conselho de Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se
isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas afeiçõ es"108. Esta experiência
de quem sacrifica seus gostos e afeiçõ es em nome de uma espécie peculiar de
imperativo é fundado na crença de aceder a um “gozo mais forte” que recusa sua
subordinaçã o a um gozo menor.
Este gozo mais forte nã o é, pois, a afirmaçã o dos interesses egoístas da
pessoa. Há algo no movimento do desejo sadeano que, como dirá Bataille,
“excede o princípio inicial da negaçã o dos outros e da afirmaçã o de si”. Se a
negaçã o dos outros se torna negaçã o de si mesmo é porque sacrifico tudo o que
me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e
gratuito de repetiçã o do gozo. Movimento que se dá para além do prazer. Um
pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio à s orgias produzidas por
Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito
com apatia e contençã o. O gozo dos personagens de Sade, como vá rios
observaram, é um gozo apá tico.
Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do á pice em direçã o ao
qual algo em nó s caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o
pró prio egoísmo acendeu. Daí uma afirmaçã o como:

Sade consagrou interminá veis obras à afirmaçã o de valores inaceitá veis: a


vida era, se acreditarmos nele, a procura do prazer; e o prazer era
proporcional à destruiçã o da vida. Dito de outro modo, a vida atingia o
mais alto grau de intensidade numa monstruosa negaçã o de seu
princípio109.
105
Idem, p. 202
106
(BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36)
107
SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172
108
SADE, ibidem, p. 83
109
Idem, p. 207
Em outro texto, Bataille descreve este “excessivo á pice daquilo que
somos”110, este “mais alto grau de intensidade” da vida como aquilo que define
algo que o excesso pró prio à vida subjetiva, a saber, a “experiência interior”: “A
experiência interior responde à necessidade na qual me encontro - a experiência
humana comigo – de colocar tudo em causa (em questã o) sem repouso
admissível”111. Esta é a descriçã o de uma experiência só cio-histó rica bastante
precisa, ligada à consciência de que a modernidade traz consigo uma modalidade
específica de sofrimento: o sofrimento de ser apenas um eu, com suas limitaçõ es
e defesas. Pois Bataille age como se nosso sofrimento mais aterrador fosse
resultante do caráter repressivo da identidade. Esta é a temá tica maior de um
certo pensamento francês contemporâ neo (Lacan, Deleuze, Derrida, Foucault).
Levando tal contexto em conta, poderemos compreender melhor uma colocaçã o
como:

Se alguém me perguntasse o que nó s somos, e, de qualquer modo, lhe


responderia: essa abertura a todo o possível, essa expectativa que
nenhuma satisfaçã o material poderá apaziguar e que o jogo da linguagem
nã o poderia enganar! Estamos à procura de um á pice. Cada um, se lhe
agrada, pode negligenciar a procura. Mas a humanidade em seu conjunto
aspira a esse á pice, que se ele a define, que só ele é sua justificaçã o e
sentido112.

Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter
colocado em cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal
sofrimento. No entanto, a posiçã o de Sade guarda algo de profundamente reativo,
e essa natureza reativa é sua limitaçã o. Bataille explora com exaustã o o fato
paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato,
um carrasco sá dico, há de se lembrar que carrascos nã o escrevem, pois: “a
violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definiçã o, a expressã o do homem
civilizado”113. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto, Bataille
pode dizer:

Na verdade, essas dissertaçõ es da violência, que incessantemente


interrompem os relatos de cruéis infâ mias de que os livros de Sade sã o
formados, nã o sã o as dissertaçõ es dos personagens violentos a que sã o
atribuídas. Se tais personagens tivessem vivido, sem dú vida teriam vivido
silenciosamente114.

Por isto, dirá Bataille, a linguagem de Sade é a de uma vítima. Linguagem


de quem estava preso na Bastilha pelo homem que nã o aceita mais a pró pria
desmesura de sua experiência interior. Vítima revoltada de uma injustiça que lhe
leva a transformar a violência naquilo que ela nã o é, no seu oposto, a saber: “uma
vontade refletida, racionalizada, de violência”115. Esta linguagem inventada por
110
Idem, p. 219
111
BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15
112
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 300
113
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214
114
Idem, p. 216
115
Idem, p. 219
Sade é, assim, uma linguagem reativa de quem procura criar uma violência que
teria a calma da razã o, linguagem de quem faz entrar na consciência exatamente
aquilo que revoltava a consciência, a desmesura que a consciência tudo fez para
esquecer. Daí porque os vínculos em Sade se constroem através da partilha da
revolta que procura a profanaçã o desenfreada. A revolta das vítimas da
incapacidade de uma sociedade fundada em fenô menos sociais que estejam à
altura do excesso pró prio ao ser.
Falar de sexo
Aula 9

Na aula de hoje, gostaria de terminar nosso segundo mó dulo, intitulado “Sexo e


revoluçã o” discutindo uma produçã o estética específica que se desdobra entre
cinema, mú sica e teatro. Fiz essa escolha por acreditar que se trata de uma obra
paradigmá tica a respeito da maneira com que a experiência estética será o
campo de emergência de novas formas de corporeidade ligadas ao sexual, assim
como da consciência tá cita do tipo de contradiçã o social que tal emergência
produz. Nã o será por acaso que uma das ó peras mais emblemá ticas do século XX
terá como eixo a insubmissã o feminina, a sexualidade livre e o verdadeiro pâ nico
social que tal circulaçã o provocará .
No século XVIII, a Europa foi atravessada por uma querela musical
chamada de Querela dos Bufõ es. No meio dessa querela, estava o destino da
ó pera, além da relaçã o entre mú sica e texto, autonomia e mimesis. Nã o erá por
acaso que a ó pera que suscitará tais controvérsias é uma ó pera buffa sobre a
insubmissã o feminina e a insubmissã o de classe, chamada La serva padrona, de
Pergolese. Como se o conteú do musical exigisse uma renovaçã o da forma em
direçã o à integraçã o de elementos, como o riso e a reversã o de classes. De certa
forma, sã o esses temas, agora em versã o trá gica, que retornam, quando o século
XX se perguntar para onde pode caminhar a ó pera. Por isso, se escolhi discutir
uma ó pera é porque gostaria de mostrar como essa insubmissã o do sexual irá
produzir modificaçõ es estruturais na forma estética, como essa nova economia
libidinal exigirá modificaçõ es formais que nos levarã o a outro regimes de
visibilidade e de sensibilidade.
A ó pera em questã o é Lulu, de Alban Berg. Apresentada pela primeira vez
em 1937, dois anos depois da morte de Berg, ela ficou incompleta, sendo sua
versã o completa estabelecida apenas em 1979. A ó pera se baseia em duas peças
de Franz Wedekind: O espírito da terra, de 1895, e A caixa de Pandora, de 1904.
Essa ú ltima teve sua ediçã o confiscada e censurada por ser considerado material
obsceno. Por sua vez, haverá uma versã o cinematográ fica de Lulu, intitulada “A
caixa de Pandora”, dirigida em 1929 por Georg Pabst e interpretada por Louise
Brooks. Considerado como “mú sica degenerada” e “bolchevismo cultural”, as
obras de Berg serã o cada vez mais recusadas com a ascensã o do nazismo e isto
vale principalmente para Lulu, devido a sua temá tica.
Se podemos resumir o eixo da ó pera, poderíamos dizer que ela conta o
destino de uma mulher sensual e amoral, o que nã o significa em absoluto imoral.
Há de se lembrar como Wedekind, no prefá cio a sua peça distinguia entre a
moral burguesa e aquilo que ele chama de “moral humana’. Ela passa de homem
a homem, que se desesperam até a auto-destruiçã o por nã o conseguirem possuí-
la. Nesse processo, Lulu terminará prostituindo-se nas ruas de Londres e será
assassinada por Jack, o estripador. Nesse sentido, o paralelo que devemos fazer, e
era o paralelo feito pelo pró prio Berg, é entre Lulu e Don Juan, ao menos no
sentido dos dois serem impulsionados por um desejo irredutível que nã o calcula,
mesmo que ele termine por leva-los à auto-destruiçã o.
A ó pera tem uma organizaçã o quase simétrica, descrevendo a ascensã o e
queda de Lulu. O ponto de viragem encontra-se no segundo ato, em um
interlú dio orquestral que deveria ser acompanhado por um filme no qual se vê a
prisã o de Lulu, seu julgamento e posterior liberaçã o. Dessa feita, a ó pera de Berg
será também a primeira ó pera a integrar, além do teatro e da mú sica, o cinema.

Emancipar a dissonância

Mas antes de falarmos sobre a ó pera, seria importante contextualizar,


nem que seja de maneira esquemá tica, o trabalho de Alban Berg e sua
importâ ncia. Berg foi um dos principais compositores da chamada Segunda
Escola de Viena, caracterizada pelo abandono do sistema tonal e pelo
desenvolvimento de uma forma de pensamento serial chamado
“dodecafonismo”. Normalmente, compreendemos a Segunda Escola de Viena
como uma espécie de certidã o de nascimento do modernismo em mú sica, isso
devido à consciência de seus compositores adentrarem um novo horizonte
estético no qual noçõ es musicais fundamentais como progressã o harmô nica,
centro tonal e, principalmente, resoluçã o da dissonâ ncia nã o desempenharã o
mais funçã o estrutural alguma.
Arnold Schoenberg, professor de Berg e figura central da Segunda Escola
de Viena, costumava dizer que a técnica dodecafô nica permitia a “emancipaçã o
da dissonâ ncia”. Essa ideia é central aqui. Como dirá o compositor Hans Eisler: “A
histó ria da mú sica é a histó ria da dissonâ ncia”116. Pois sua histó ria será a histó ria
de uma reversã o da ordem e da liberaçã o da circulaçã o livre do que desorganiza
a sensibilidade. A importâ ncia do problema da dissonâ ncia está ligada, entre
outras coisas, à compreensã o de como a mú sica lida com o que desorganiza a
sensibilidade, o que produz um estremecimento do sensível.
De certa forma, podemos dizer que todo o sistema tonal, esse sistema que
determinou as linhas hegemô nicas da mú sica ocidental a partir do século XVIII,
baseou-se na transformaçã o da dissonâ ncia em um momento no interior de um
sistema em contínua expansã o. Ela nã o será algo que a forma musical deve
evitar, mas algo que ela terá como tarefa integrar. Uma integraçã o através de
dinâ micas como : preparaçã o, antecipaçã o e resoluçã o.
A este respeito, lembremos por exemplo como o sentido de harmonia
entre os gregos nã o se referia à consonâ ncia de sons, mas à disposiçã o diacrô nica
dos sons em uma frase meló dica117. A aplicaçã o da noçã o de harmonia para
díades simultâ neas ocorre apenas com a consolidaçã o da mú sica polifô nica a
partir do século X europeu. É a partir de definiçõ es dessa natureza que a
dissonâ ncia aparecerá como discó rdia entre sons simultâ neos, como um
problema ligado ao instante musical e sua diacronia. Em tratados musicais a
partir do século XIV, nã o se deve usar dissonâ ncias em texturas de nota-contra-
nota, embora elas fossem permitidas em passagens desprovidas de tensã o
rítmica e através de notas de curta duraçã o. É apenas em meados do século XVIII
que a dissonâ ncia aparece como tensã o mó bil de um nota em relaçã o ao centro
tonal, ou seja, é dissonâ ncia em relaçã o à estrutura funcional que define a
unidade orgâ nica da obra.
Digo isso porque uma forma musical que se propõ e a emancipar a
dissonâ ncia, ou seja, a tratar de forma indiferenciada o que para nó s era
distinçã o entre elementos harmô nicos e disarmô nicos só pode ocorrer em um

116
EISLER, Hanns; Musique et société, Paris: Editions de Maison des sciences de l’homme, 1998, p.
32
117
TENNEY, James; A history of consonance and dissonance, p. 11
momento histó rico no qual o que aparecia entã o como discó rdia, como o que
estremece a sensibilidade, será o tecido fundamental de nossa experiência. Nã o
se modifica as formas musicais sem abalarmos os alicerces da cidade, já dizia
Platã o. E é nessa esfera que podemos apreender a dimensã o efetivamente
política da mú sica. Essa dimensã o nã o está na “mensagem” que ela veicula, nem
mesmo na posiçã o social de seus compositores e compositoras. Ela está na
maneira com que a forma musical torna possível relaçõ es de síntese, de unidade,
de diferença, de relaçã o até entã o impossíveis no interior da vida social. Essa é
uma ideia importante que vocês podem encontrar, por exemplo, em Theodor
Adorno, quando ele afirma:

A liberaçã o da forma, como quer toda arte autenticamente genuína, é


acima de tudo a marca da liberaçã o da sociedade, pois a forma, a coesã o
estética (ästhetische Zusammenhang) de todos singulares (Einzelnen)
representa na obra de arte as relaçõ es sociais; por isto, o estabelecido se
escandaliza com a forma liberada (befreite Form).118

Uma atmosfera de circo

Gostaria de começar com essa discussã o a respeito da emancipaçã o da


dissonâ ncia para tentar compreender porque um dos maiores compositores do
século XX comporá , como seu testamento musical, uma ó pera a respeito de uma
mulher que procura ser capturada por todos, homens e mulheres, que passa por
todas as classes sociais até a prostituiçã o, que parece movida por um desejo que
nã o se assenta em lugar algum e cuja circulaçã o provoca a expressã o de todo o
maquiná rio de violência social. Lulu é a pró pria dissonâ ncia emancipada cuja
circulaçã o expõ e todas as contradiçõ es do corpo social.
Alguns interpretam a histó ria de Lulu como a descriçã o de uma femme
fatale e de seu trajeto de destruiçã o de todos e de si. Como se fosse o caso de
referendar um dos mais fortes estereó tipos de sujeiçã o feminina, a saber, o
desejo feminino como figura maior da destruiçã o social. No entanto, como bem
lembra Adorno, a mú sica de Berg está do lado das vítimas. Ou seja, a mú sica nã o
sustenta o cará ter afirmativo da degradaçã o social. Ela expõ e a visã o de um
poder violento, baseado na posse, no controle e na conquista. Ela expõ e um
circuito de desejo que nã o tem outra forma de circulaçã o que através das frestas
pelas quais quais se passa de uma classe a outra, que parece conquistar lugares
para depois tudo perder, sem nunca se deixar se dobrar por imposiçõ es morais.
Há uma insubmissã o em Lulu que é, primeiro, a liberaçã o da forma à
multiplicidade de espaços diversos de organizaçã o.
Uma característica musical importante de Lulu é seu hibridismo. Ela passa
por zonas tonais, atonais e seriais, ela opera com citaçõ es de mú sicas de
programa, criando assim um imenso fluxo livre de formas. Berg se serve de
estruturas tradicionais, como a forma-rondo, a forma-sonata, musette, gavota,
além de formas operísticas tradicionais, como o recitativo, a arieta, a canzonetta,
o duettino, entre outros. Encontramos ainda formas de mú sicas funcionalizadas,
como mú sicas de circo, referências a entretenimento, ragtime. Ou seja, formas
antigas aparecem, mas completamente deslocadas de suas identidades iniciais.

118
ADORNO, Ästhetische Theorie, p. 379.
Elas estã o a organizar um material liberado do ponto de vista de seu
desenvolvimento imanente
A ó pera é também a liberaçã o dos corpos na força violenta dos desejos que
nã o aceitam mais os lugares sociais aos quais eles haviam sido submetidos. Por
exemplo, ela é praticamente a primeira ó pera a tratar abertamente do tema do
lesbianismo (a relaçã o entre Lulu e a Condessa Geschwitz). Essa liberaçã o nã o é
tratada de forma edificante e redentora, mas trá gica. As relaçõ es só podem ser
marcadas pela violência e pela decomposiçã o, sem que nenhuma possa se salvar.
Pois nã o há nenhuma referência social possível para que uma relaçã o na qual
desejo e preservaçã o possa se orientar. Além do que, uma situaçã o social
degradada e sua explicitaçã o só pode levar sujeitos a agirem inicialmente
levando em conta uma luta de preservaçã o violenta em suas açõ es e reaçõ es. Por
isso, ela é uma ó pera sem reconciliaçã o. A imagem da irreconciliaçã o é o negativo
da ausência de toda reconciliaçã o possível em nosso horizonte social.
Além disso, a ó pera expõ e de uma clara insubmissã o de classe. Ao poucos
descobrimos que Lulu vem das classes mais baixas e espoliadas. Sua histó ria
começa com ela tentando bater a carteira de um rico burguês que depois se
tornará seu amante, o Dr. Schö n. Seus companheiros do passado, como o pró prio
pai, aparecem na ó pera como mendigos. Como dirá Adorno, há em Berg a
atmosfera fruto da identificaçã o com o que é : “separado, desqualificado, excluído
da sociedade”
De fato, se isso ocorre dessa forma, é porque Lulu faz parte de uma série de
figuras que aparecem nas artes alemã s da Repú blica de Weimar, como o filme O
Anjo Azul, de Sternberg, filmado em 1930 e baseado no romance de Heinrich
Mann, Professor Unrat ou o fim de um tirano, de 1905. Sã o mulheres vindas das
classes populares cuja circulaçã o produzem desejos de posse e controle que
terminarã o por levar à destruiçã o, ou a degradaçã o. Mas esse processo, e nã o é
por acaso que eles aparecem em plena Repú blica de Weimar, ou seja, na
antecâ mara do fascismo, é a forma de um colapso prenunciado. Nã o mais
submetido aos sistemas de poder da moral, circulando livremente no interior do
corpo social, esse corpos femininos contam a histó ria de prostitutas que invadem
os lugares que elas nã o podiam estar. Elas se tornam nã o mais as amantes, mas
as paixõ es, as esposas, como se aquilo que havia até entã o ficado no lugar de uma
sexualidade compartimentalizada nos bordeis, nos cabarets invadisse todos os
poros da sociedade, mostrando o que essa sociedade realmente é, a saber, um
sistema de divisõ es que joga o desejo para os cantos escuros enquanto procura
preservar a ordem de sua devastaçã o. Nesse sentido, obras como Lulu sã o, de
fato, a encenaçã o de um processo inelutá vel de devastaçã o. Mas nã o porque elas
procuram acender alguma forma de alerta vermelho, como quem diz que
devemos parar antes de nos deixarmos afetar pelo que aparece como um desejo
de empuxo. Antes, elas sã o um sistema de explicitaçã o de violências que
demonstra como as representaçõ es sociais pró prias a nossa vida nã o saberã o o
que fazer diante de uma dinâ mica libidinal que parece vir com uma nova
configuraçã o de classes.
Tomemos um exemplo, logo na introduçã o da ó pera de Berg. A ó pera
começa, e isto nã o poderia ser mais sintomá tico, em um espaço de circo. Estamos
em uma Ménagerie, onde sã o apresentados os animais adestrados. A mú sica
começa com metais chamando a atençã o, como se faz em um espetá culo circense.
Logo, vemos o apresentador descrever as feras mais impressionantes enquanto a
mú sica começa com figuras rítmicas de entretenimento circense.
Isso até que ele apresenta a mais perigosa das feras, criada por deus para
seduzir, infectar e destruir. E nesse momento aparece Lulu. A ambiência de circo
é um signo de crítica social, de degradaçã o da humanidade à condiçã o de uma
animalidade enjaulada é adestrada. Como dirá Malkani: “Todas as dimensõ es
essenciais dessa ó pera estã o presentes desde o Pró logo: o reino da mascarada, a
aprisionamento da espontaneidade, o assujeitamento das pulsõ es elementares, o
primado da aparência e da simulaçã o, o desdobramento do poder e da
violência”119. Mas a mú sica apresenta uma dimensã o lírica anteriormente ausente
quando Lulu é apresentada. Ou seja, contrariamente ao resto do trecho,
Esse recurso a uma mú sica de circo parece-me uma maneira interessante
de introduzir a ó pera de Berg. Pois gostaria de lembrar a vocês de uma
característica importante do trabalho da Segunda Escola de Viena. A força
política da Segunda Escola de Viena leva muitos de seus compositores a
procurarem recuperar formas musicais “degradadas” transformando-as. Ou seja,
eles procuram associar-se nã o ao “originá rio” que poderia ressoar em uma
mú sica popular “da terra”, ainda mais em um momento de ascensã o da versã o
paranoica de corpo social, como era o caso da Alemanha dos anos 1920 e 1930.
Eles procuram o horizonte da mú sica “desclassificada” como a mú sica de cabaré,
deliberadamente sarcá stica e “mal cantada”, ou como o tango, tal qual faz Berg
em Der Wein (diga-se de passagem, outra mú sica de cabaré). Digo isso por que é
da mú sica de cabaret que Schoenberg tira o sprechgesang.
O recurso à mú sica de cabaré (e o momento mais impressionante é usá -la
para organizar o canto de uma “peça sacra” como Moisés e Arão) é quase o
inverso do que seria o recurso à mú sica folcló rica. Schoenberg procura o que está
fora da imagem do povo, do que é um corpo estranho, pois ligado à crítica social,
ao sarcasmo, à sexualidade “promíscua”, em suma, ao que há de menos
valorizado diante de certa imagem do que deve ser o “povo”. Essa sexualidade
insubmissa, que ressoa a revolta das classes populares contra um poder que fala
de deus, pá tria e propriedade enquanto procura tudo submeter a seus desejos,
reaparece como o eixo estruturador de Lulu.

Um problema de representação

Depois do Pró logo, a primeira cena do Primeiro Ato estabelece as


coordenadas da tensã o geral que atravessará a ó pera. Lulu é a modelo de um
pintor. Ela veste-se como um pierrot, ou seja, alguém inofensivo, infantil e alegre.
Junto ao pintor estã o o Dr. Schö n e seu filho, o compositor Alwa. A atmosfera é
clara; os três personagens masculinos estã o enfeitiçados pela beleza de Lulu. Os
três se disputarã o pela posse de Lulu. Ela se casará com os três e nã o se
entregará a nenhum. Notemos aqui a importâ ncia de um procedimento inovador
utilizado por Berg: o mesmo cantor representará vá rios personagens. Assim, por
exemplo, o barítono que representa Dr. Schö n será o mesmo que fará o papel do
assassino de Lulu, a saber, Jack, o estripador. O tenor que faz o pintor aparecerá
posteriormente como o segundo cliente de Lulu quando se tornar prostituta.
Apenas personagens masculinos sã o desdobrados pelos mesmos cantores. Como
se fosse o caso de explicitar as conexõ es de um mundo
119
MALKANI, Fabrice; Le libret de Lulu d’alban Berg: crise du sens et intérrogation sur l’art, p. 4
Desses três, dois sã o artistas. O outro é um grande burguês. Nenhum dos
três serã o capazes de representar Lulu. Na ausência dos outros dois
personagens, o pintor assedia Lulu, confunde seu nome, chamando-a de Nelly e
Eva. Como se nã o houvesse mais forma adequada de representaçã o artística,
como se fossemos assistir a expressã o da inadequaçã o entre o desejo e suas
representaçõ es. De fato, nunca sabemos qual o verdadeiro nome de Lulu que,
como se percebe, é um “nome artístico” vindo de sua época de dançarina de
cabaret, nome que ela mesmo estranha. Dr Schö n a chamará de Mignonne. A
ú nica resposta que ela dá sobre quem é nã o deixa de ser significativa: “um
animal”. Quando estiver casada como o pintor, Lulu dirá : “Eu nã o sou nada. Sou
apenas sua mulher”.
Nesse sentido, é sintomá tico o diá logo entre Lulu e o pintor depois da
morte do marido da primeira. Diante de vá rias questõ es como: “você pode dizer
a verdade? “, “você crê em um criador? “, “você nã o tem alma?”, questõ es
cantadas em voz ascendente apoiada pela primeira vez na ó pera por cordas que
repetem as notas do tenor, como se fosse questã o de reforçar seu tom imperioso,
as respostas de Lulu sã o sempre: “Eu nã o sei”. Como se fosse o caso de recusar
as interpelaçõ es que visam constituir um sujeito moral, cuja socializaçã o é
fundada no sentimento de culpabilidade. Dizer : “Eu nã o sei” é uma forma de
destituir a questã o, de nã o aceitar seus polos.
Musicalmente, Berg trabalhará com o dispositivo wagneriano de leitmotiv,
ou seja, cada personagem, paixã o, objeto é caracterizado por uma unidade
musical, que poderá ser uma série dodecafô nica ou intervalos, timbres, motivos,
temas, rítmicas. Esses leitmotiv circulam, criando uma rede de relaçõ es que
explicitam os processos, para além da identidade dos personagens. Assim, por
exemplo, no Pró logo, ao apresentar o tigre, ouvimos um leitmotiv que voltará
para caracterizar Dr. Schö n.
Falar de sexo
Aula 10

Depois da Segunda Guerra Mundial, o ocidente conheceu a ascensã o de um


discurso sobre a sexualidade que procurava classificar, catalogar, medir e
descrever a sexualidade com a frieza e distâ ncia que um físico descreve
fenô menos naturais. Tudo se passava como se enfim fosse possível tratar a
sexualidade, um fenô meno tã o ‘natural’ na vida humana como algo que nã o seria
mais objeto de determinaçõ es morais, teoló gicas e jurídicas. Como dirá o bió logo
Alfred Kinsey à época: “Do ponto de vista científico, sabemos mais do
comportamento sexual de animais em fazendas e laborató rios”120 do que sobre
humanos. Para mudar tal situaçã o era necessá rio a consolidaçã o de outra forma
de falar de sexo, uma forma mais adaptada à expectativas científicas de nosso
conhecimento e que seria nã o apenas uma característica do tipo de
conhecimento que circula em universidades e relató rios médicos, mas que
rapidamente modificaria a maneira com que as sociedades ocidentais falam de
sexo. Esse discurso seria a sexologia.
Atualmente, poucos sã o os profissionais que se autodesignam sexó logos,
mas é bom lembrar como durante as primeiras décadas do pó s-guerra, a
sexologia procurava se afirmar como a realizaçã o da tã o esperada e tã o
necessá ria ciência da sexualidade. Seus estudos, coisa absolutamente rara na
literatura científica, eram best-sellers que se vendiam em escala inimaginá vel.
Livros como : O comportamento sexual do homem, O comportamento sexual da
mulher, ambos de responsabilidade de Alfred Kinsey, O relatório Hite sobre
sexualidade masculina, O relatório Hite sobre sexualidade feminina, ambos de
responsabilidade de Shere Hite, Respostas sexuais humanas, Inadequações sexuais
humanas, de William Masters e Virginia Johnson, foram consumidos como
literatura de larga escala até os anos setenta.
Esses grandes relató rios sobre sexualidade eram o desdobramento dos
tratados sobre a sexualidade que, como vimos, apareceram no início do século
XIX. Livros como o Psychopatia sexualis, de Krafft-Ebing ou o livro com, o mesmo
título, de Heinrich Kaan serã o vistos como pioneiros nessa procura em dar à
sexualidade o estatuto de um objeto propriamente científico. Mas, como vimos,
essa estratégia devia ser analisada em um duplo eixo. Primeiro, a consolidaçã o
de um discurso científico sobre o sexual nã o implicava, em absoluto, eliminaçã o
de sistemas de valores morais e políticos. Ao contrá rio, vimos como noçõ es como
“progresso moral”, como a mobilizaçã o de conceitos anteriormente utilizados
para estabelecer distinçõ es entre “selvagens” e “civilizados” estavam presentes
em tais estudos, definindo claramente seu horizonte valorativo e sua funçã o na
sustentaçã o de formas hegemô nicas de vida.
Isso fica claro se lembrarmos, inclusive, de onde vem o termo “sexologia”.
De fato, o termo “sexologia” foi cunhado nos EUA por Elisabeth Willard que em
1867 publica o livro Sexologia como filosofia da vida: implicando organização
social e governo. A natureza das reflexõ es de Willard eram claras desde o início.
Tratava-se de defender a existência de leis referentes à sexualidade que se
120
KINSEY, Alfred; Sexual behavior in the human male, p. 23
inscreviam no interior de leis gerais que unificavam cosmogonia, fisiologia e
psicologia. Que lembremos de afirmaçõ es como:

Como sexo está presente em todas as formas de vida, e como a vida


depende de movimento, as leis do sexo devem necessariamente ser parte
das leis do movimento, subentendido em todos os poderes e forças; em
todas as evoluçõ es e revoluçõ es do universo. Para encontrar as
verdadeiras relaçõ es pró prias ao sexo, devemos encontrar suas causas e
origens, o que nos levará ao ponto de partida da progressã o da existência.
Como a conjunçã o das duas leis sexuais é o começo da vida e do
movimento orgâ nico, as leis do sexo devem estar na base da pró pria
constituiçã o da vida. Para resolver os mistérios do sexo, devemos resolver
os mistérios da vida121.

Ou seja, esse saber sobre o sexual nasce como a procura de inscrevê-lo na ordem
natural dos fenô menos físicos, em uma perspectiva holista para a qual a
modificaçã o na ordem do sexual só poderia mesmo equivaler a um abalo geral
das leis da existência.
No entanto, nã o será sob essa forma que encontraremos o
desenvolvimento da sexologia depois da Segunda Guerra. Na verdade, o
desenvolvimento de uma ciência da sexualidade nã o poderia ser indiferente a
tudo o que havia ocorrido entre o final do século XIX e as primeiras décadas do
século XX. E, como vimos, havia ocorrido fenô menos como: a transformaçã o da
sexualidade em campo de lutas sociais tendo em vista o aprofundamento de
processos de emancipaçã o social; o desenvolvimento de uma clínica da
sexualidade que rompia com relaçõ es estabelecidas entre sexualidade,
reproduçã o e normatividade naturalizada; uma reflexã o estética sobre a
sexualidade que insistia em seu cará ter disarmô nico, dissonante em relaçã o à s
exigências normativas da reproduçã o material de nossas sociedades, por isto,
uma algo que poderíamos chamar de “estética trá gica da sexualidade”. Por outro
lado, a experiência do fascismo e da guerra também foram questionadas a partir
da economia lidibinal que elas mobilizavam, ou seja, a partir da forma como
estruturas de personalidade autoritá ria enraizavam-se em dinâ micas repressivas
da sexualidade. Esse impacto da guerra nã o pode ser negligenciado na
reorientaçã o da sexologia em direçã o a um discurso que agora se serviria das
expectativas emancipató rias da vida social.
Assim, seus manuais, a partir da Segunda Guerra, serã o apresentados
como verdadeiras peças de uma “revoluçã o sexual” de outra natureza. Nã o mais
aquela revoluçã o que acompanharia a transformaçã o radical das estruturas e
instituiçõ es da vida social e que tematizavam o enraizamento profundo entre
processos de espoliaçã o econô mica, sofrimento social, divisã o sexual do trabalho
e miséria sexual. A revoluçã o sexual se daria a partir de entã o no interior mesmo
das sociedades capitalistas, como se fosse uma questã o de melhor ajustar a
potencialidade imanente a tais sociedades e a liberalidade de costumes e
comportamentos sexuais. Ou seja, tudo se passava como se o desenvolvimento
imanente das sociedades capitalistas e suas dinâ micas de consumo levassem
necessariamente as sociedades a se confrontarem com um aumento exponencial
das liberdades de escolhas e do desenvolvimento da autonomia individual. Nesse
121
WILLARD; Sexology ..., p. 7
contexto, as antigas restriçõ es sexuais perderiam paulatinamente o sentido para
dar lugar a indivíduos capazes de afirmar a singularidade de sua pró pria
sexualidade.
Dessa forma, o advento desses estudos de sexologia eram apresentados
como uma verdadeira liberaçã o que, nã o por acaso, acontecia inicialmente na
América. Para entender melhor essa dinâ mica, vamos nos deter por um
momento nesse que foi o mais emblemá tico e famoso dos estudos de sexologia:
os estudos desenvolvidos por Alfred Kinsey.

Os relatórios Kinsey

Alfred Kinsy foi um bió logo e sexó logo norte-americano responsá vel por
estudos que procuravam descrever através de surveys, entrevistas e estatísticas,
o comportamento sexual dos norte-americanos. Por exemplo, seu estudos sobre
o comportamento sexual dos homens norte-americanos foi composto de 12 mil
entrevistas: amostra nunca antes mobilizada em tal tamanho. A ideia bá sica de
Kinsey era descrever, como um taxonomista, o que as pessoas efetivamente
fazem quando fazem e pensam em sexo. Daí afirmaçõ es como essas a respeito da
diferença entre seus estudos e aqueles desenvolvidos anteriormente:

but none of the authors of the older studies, in spite of their keen insight
into the meanings of certain things, ever had any precise or even an
approximate knowledge of what average people do sexually. They
accumulated great bodies of sexual facts about particular people, but they
did not know what people in general did sexually. They never knew what
things were common and what things were rare, because their data came
from the miscellaneous and usually unrepresentative persons who came
to their clinics (Freud, Hirschfeld, et al.), or from persons from whom they
happened to receive correspondence (Ellis), or from limited numbers of
persons whom they interviewed in elaborate detail (as in the Henry
study)122.

De fato, o conhecimento disponível era baseado em duas fontes: casos clínicos de


atendimento a pacientes em consultó rio e casos clínicos de pacientes
hospitalizados. O que Kinsey procurava era, tal como um botanista, organizar e
classificar a taxonomia geral do comportamento sexual, e nã o simplesmente
generalizar a partir de situaçõ es acessíveis à clínica. Pois:

Medicine, psychiatry, psychology, sociology, economics, anthropology,


and the other social sciences are, after all, faced with the same problems
which have confronted biologists in their attempts to describe and
classify basic phenomena. They, similarly, need to secure such an over-all
understanding of their one, highly variable animal, the human, as will
“show the magnitude of the whole group” and make it clear “how large an
order must be satisfied if their generalizations are to apply to any
significant portion of that group.”123

122
KINSEY, p. 58
123
Idem, p. 40
Os dados forma levantados a partir de questioná rios, aplicados em
entrevistas, que iam a até 521 questõ es abordando desde memó rias de infâ ncia
até todas as formas de experiências e estímulos sexuais. Os métodos eram
compostos ainda de entrevistas em profundidade, além de aná lises de variaçã o
de comportamentos através da aná lise de relaçõ es sexuais reais. Em alguns casos
Kinsey desenvolveu escalas como aquela que classificava sujeitos em seis níveis:

0 – exclusivamente heterossexual
1- predominante heterossexual, apenas incidentalmente homossexual
2- predominante heterossexual, mas mais do incidentalmente
homossexual
3- igualmente heterossexual e homossexual
4- predominante homossexual, mas mais do que incidentalmente
heterossexual
5- predominante homossexual, apenas incidentalmente heterossexual
6- exclusivamente homossexual

O que aparecia a partir dessas pesquisas, de fato, colocavam questõ es a


respeito de distinçõ es estritas entre comportamento sexual ‘normal’ e ‘perverso’.
Lembremos, por exemplo, de alguns resultados aventados por Kinsey:

- 90 % dos homens norte-americanos se masturbam


- 37% já tiveram alguma relaçã o homossexual
- 10% sã o exclusivamente homossexuais
- 11% fazem ou já fizeram sexo anal com esposas
- 26% das esposas tiveram relaçõ es extra-conjugais
- 19% das mulheres praticaram sexo oral antes do casamento
- 13% tiveram alguma relaçã o homossexual

De fato, nú meros como esses (a continuação dessa aula foi perdida)


Falar de sexo
Aulas 11 e 12

Na aula de hoje , gostaria de retornar à psicaná lise, mas através de Jacques Lacan.
Gostaria de mostrar como Lacan tem uma compreensã o a respeito da fala do
sexual que se aproxima de uma matriz que nã o deixará de ressoar a experiência
trá gica que encontramos em certa tradiçã o estética pró pria ao século XX, como
vimos em aulas anteriores. Contrariamente ao que vimos na aula passada, com o
advento de um discurso como a sexologia que se colocava como saber científico
sobre o sexual, como discurso de condutas naturalizadas que permitiriam uma
vida melhor, a psicaná lise pelas mã os de Lacan insistirá que nã o há saber sobre o
sexual, que o sexual só se inscreve no horizonte do saber sob a forma do impasse
e que este nã o saber é condiçã o fundamental para uma fala portadora de verdade
em relaçã o ao que nã o se instrumentaliza nem se permite colonizar-se como
setor de uma procura de bem-estar. A psicaná lise nã o é um saber sobre o sexual,
mas uma operaçã o clínica que visa permitir ao sexual desdobrar-se para fora das
determinaçõ es sociais do saber. Por isso, ela poderá (ou ao menos deveria)
aparecer como uma clínica da disparidade entre a fala e o sexual.
Há vá rias formas de discutir a questã o do sexual em Lacan e, certamente,
uma articulaçã o mais cerrada nã o poderia ser feita em uma aula. Mas há um
caminho, a meu ver profícuo, que gostaria de apresentar hoje. Ele passa pela
transformaçã o do “gozo” em conceito clínico central por Lacan, assim como pelo
desenvolvimento de uma crítica social que visa expor a ló gica da vida social a
partir das dinâ micas de espoliaçã o e organizaçã o do gozo. Lacan desenvolve
uma clínica orientada à confrontaçã o do sujeito à experiências que nã o se
submetem integralmente aos cá lculos de maximizaçã o do prazer e do
afastamento do desprazer. Experiências que, seguindo uma via aberta por
Bataille, Lacan chamará de “gozo”. Ou seja, Lacan compreender que uma das
matrizes fundamentais do sofrimento está vinculada à incapacidade dos sujeitos
estabelecerem alguma forma de relaçã o a modalidades de gozo que os des-
identificam, que os deslocam de determinaçõ es sociais e lugares naturais, que os
deslocam de seu gênero e de suas identidades.

Comer miolos frescos

Se nos perguntarmos sobre como tal perspectiva funciona clinicamente, como


essa experiência do gozo emerge na clínica e o que é possível fazer com ela,
temos um exemplo privilegiado através do comentá rio feito por Lacan de um
caso clínico de Ernst Kris124. Trata-se de uma vinheta clinica apresenta por Kris a
respeito de um jovem cientista incapaz de publicar suas pesquisas. Tal
impossibilidade é derivada de uma compulsã o, que ele julga ter, ao plá gio. Assim,
encontramos um paciente que organiza sua posiçã o subjetiva a partir da
proposiçã o: “Eu nã o posso publicar o que escrevo, pois no fundo sou um
plagiador”. Ela nã o deixa de ressoar seu comportamento, na juventude, de
pequenos furtos de livros e doces. Ela nã o deixa, também, de colocar em cena um

124
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, pp. 393-398 e pp. 598-602. O caso se encontra em KRIS,
Ernst; “Ego psychology and interpretation in psychoanalytic theraphy”, Psychoanalytic Quartely, n. 10,
v.1, 1951
modo de relaçã o intersubjetiva por comparaçã o que remete à s relaçõ es com seu
pai e seu avô , um “grande pai” (grandfather), cientista reconhecido, que realizou
o sucesso que o pai nã o foi capaz de alcançar.
Um dia, o paciente chega à sessã o analítica afirmando ter encontrado um
livro que contém as ideias dos textos que escrevera, mesmo sem publicar. Kris
intervém pedindo para ler o livro. O que ele faz, concluindo nã o haver nada do
que o paciente temia. Ao contrá rio, dirá Kris, o paciente projetava no outro ideias
que ele gostaria de ter. Kris intervém assim no nível da “apreciaçã o da
realidade”, tentando levar o paciente a aceitar que: “sempre lidamos com as
ideias dos outros, trata-se de uma questã o de saber como lidar com elas”. Ao
apresentar sua interpretaçã o, Kris ouve do paciente a seguinte resposta: “Sempre
quando minha sessã o de aná lise termina, um pouco antes do almoço, eu gosto de
passear por uma rua onde encontro um restaurante que oferece um de meus
pratos preferidos: miolos frescos”.
Lacan dirá que tal resposta expõ e, na verdade, o fracasso da intervençã o
de Kris. Ela a compreende como um caso típico de acting out, ou seja, de uma
modalidade de açã o que apenas representa, de forma imaginá ria, o que deveria
ser realizado do ponto de vista estrutural. Pois mesmo que a aná lise de Kris nã o
estivesse incorreta, falta analisar o desejo de “comer miolos frescos”. Pouco
importa se ele é ou nã o plagiá rio, mas é certo que uma mistura confusa de desejo
de autoria e plá gio parece estruturador e intransponível. Isto nos leva a insistir
que há um gozo oral primordial e bruto (expresso no desejo de comer miolos
frescos ou ainda em um sonho edípico de uma batalha com o pai no qual livros
eram armas e livros conquistados eram engolidos durante o combate) que
aparece bloqueando uma dimensã o essencial do reconhecimento
linguisticamente estruturado, a saber, a dimensã o da “publicaçã o”, do tornar-se
pú blico, do assumir para o Outro a forma de suas ideias. Pois tal relaçã o oral tem
algo, para este sujeito, de nã o inscritível em uma forma reconhecida, algo de
profundamente fusional, algo de campo confuso no qual distinçõ es de
identidades nã o se sustentam mais. Esse gozo que nã o se submete a um primado
genital, quebra a possibilidade do sujeito “ter um nome”, “estar em um lugar que
lhe seja pró prio”. Dele, o Eu “nada quer saber”, pois é tal gozo o que foi expulso
como radicalmente para além dos limites do princípio do prazer.
Por isto, a ú nica forma possível de reconhecimento aparece através: “de
um ato totalmente incompreendido do sujeito”125. Um acting out que ele repete,
com se traduzisse em forma imaginá ria aquilo que deveria ser capaz de
apreender de forma simbó lica. Mas que o “nã o” do paciente, ao dizer “Eu nã o
posso publicar, eu nã o sou alguém que possa publicar suas pró prias ideias” seja
invertido pela analista em uma afirmaçã o do tipo “você pode publicar, nossas
ideias sempre vem de outros”, isto significa uma espécie de bloqueio na escuta
mais precisa deste “nã o”. Nã o foi possível ouvir como tal negaçã o era mais brutal,
pois pedia o desenvolvimento de uma experiência com a linguagem na qual a
confusã o das relaçõ es profundamente orais pudesse vir à tona e encontrar uma
forma. O que era impossível no interior de um uso da linguagem marcada pelas
fronteiras individualizadas de quem se sente, a todo momento, entrando
indevidamente no domínio de um outro, sendo desmascarado como um
plagiador. A aná lise deveria pois levar o sujeito a reconstituir seu modo de
existência a partir desse gozo, mesmo com o preço dele nã o saber mais quem é e
125
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, 398
quais os “limites”, quais “determinaçõ es” que definiriam claramente sua
presença no mundo. Pois esse gozo é uma forma de afirmaçã o do
descentramento e da despossessã o. Ele é o colapso das ilusõ es de identidade do
sujeito e a base libidinal para a abertura à quilo que nã o porta sua pró pria
imagem.
Uso essa vinheta clínica para mostrar um dimensã o fundamental do
horizonte para onde caminha a clínica lacaniana. Ela nã o é exatamente uma
clínica da simbolizaçã o, da verbalizaçã o e da rememoraçã o, como é o horizonte
hegemô nico da clínica psicanalítica. Ela é uma clínica do descentramento, e o
operador principal de tal descentramento é algo de nã o é completamente
simbolizá vel no interior da experiência do sexual. Algo que Lacan chama de gozo.

Como se goza no capitalismo

No entanto, a funçã o crítica do conceito de gozo se complexificará a partir do


momento em que Lacan procurar fornecer uma teoria da estrutura libidinal do
capitalismo. Pois essa nã o é apenas uma teoria dos processos subjetivos de
determinaçã o do desejo, mas principalmente uma teoria dos modos de sujeiçã o
social a partir dos modos de circulaçã o do desejo.
Lacan compreenderá que o capitalismo nunca poderia ser um modo de
existência baseado na simples renú ncia ao gozo. Na verdade, nã o há modo de
existência social que construa suas dinâ micas de adesã o através da simples
repressã o. O capitalismo se funda no que Lacan chama de espoliaçã o do gozo, ou
seja, na inscriçã o de seu excesso e desmedida no interior das dinâ micas de
reproduçã o social. Essa espoliaçã o produz, necessariamente, um forma de falar
de sexo, uma forma de gozar, de determinar o que é da ordem do sexual, que será
um dos motores da consolidaçã o das formas de poder. Se quisermos entender
efetivamente o poder, nã o basta nos perguntar como ele reprime e ameaça, mas
principalmente como ele promete e disponibiliza formas de gozo.
Nesse ponto, ganha relevâ ncia e interesse compreender como Lacan
articula, de maneira original, capitalismo e patriarcado. Sua ideia central é
compreender como uma certa forma de gozo pró pria ao capitalismo empurra
toda experiência insubmissa do sexual para uma dimensã o de radical
problematizaçã o dos modos atuais de existência. Tal experiência nã o tem figura
e deve nã o ter figura, pois caso tivesse figura, ela deveria se submeter a modos
de existência possíveis no presente, adaptá veis à ló gica de reproduçã o material
da vida que se desdobra no presente. Daí o fato dela mobilizar categorias como
“impossível” e “indeterminaçã o”. Isso significa que, de certa forma, a fala do
sexual é uma fala de desabamento, como fica claro em afirmaçõ es como: “A
sexualidade é exatamente este territó rio onde nã o sabemos como nos situar a
respeito do que é verdadeiro”. Essa desorientaçã o, no entanto, nã o é
simplesmente uma falha, mas uma condiçã o para que certa forma de
emancipaçã o possa se realizar.
Tenhamos isso em mente ao lembrarmos que Lacan dará um nome para
esse gozo que seria imanente ao capitalismo. Ele o chamará de gozo fá lico e sua
reflexã o sobre o primado do patriarcado irá se desdobrar a partir das
vicissitudes ligadas ao gozo fá lico. Nesse sentido, Lacan compreende o
patriarcado nã o apenas como um sistema de dominaçã o e opressã o ligado a
sujeiçã o de gênero e a constituiçã o de um regime de autoridade e poder ligado a
representaçõ es do masculino. Ele é, acima de tudo, uma forma de gozo. Uma
forma de gozo que determina tanto as possibilidades imanentes ao masculino
quanto ao feminino. Este ponto é fundamental porque o patriarcado nã o se
sustentaria apenas através das formas de violência que lhe sã o pró prias. Nã o é
possível explicar as dinâ micas e processos de poder sem se perguntar sobre
como eles produzem adesã o através de suas formas de gozo. Sujeitos nã o apenas
se sujeitam, eles gozam em um regime de servidã o voluntá ria daquilo que lhes
aprisionam. Isto significa que podemos mudar as figuras masculinas que ocupam
o poder, retirar o masculino do poder, sem que isto signifique que a estrutura do
patriarcado foi superada. Pois ela será superada apenas quando os regimes de
gozo que ele autoriza forem superados.
Como disse, tal gozo pró prio ao patriarcado está vinculado ao que Lacan
descreve como gozo fá lico. Dentro do regime patriarcal, segundo Lacan, tanto o
homem quanto a mulher referem seu desejo ao falo e organizam seu gozo a
partir das possibilidades imanentes ao gozo fá lico. Neste sentido, se Lacan terá
de dizer, em uma de suas proposiçõ es mais conhecidas que: “A mulher nã o
existe” é porque nã o há exatamente um “binarismo” de gênero em nossas
sociedades. Há , na verdade, algo muito mais brutal, a saber, um “monismo” de
gênero. Só o homem existe, só o modo masculino de organizaçã o da libido define
a integralidade do campo de inscriçã o social do gozo no interior de nossas
sociedades. Tanto o que nó s entendemos por “homem” e “mulher” se organizam
a partir das mú ltiplas formas do gozo fá lico. Mas esta inexistência aventada por
Lacan nã o é um mero limite à experiência. Na verdade, a modificaçã o da
economia libidinal do capitalismo será solidá ria da assunçã o de algo que deve
ser compreendido como impossível e inexistente em nossa situaçã o social, a
saber, uma forma de gozo nã o-fá lica. Há uma dialética aqui que o pensamento
crítico precisará saber manejar.

O patriarcado inerente ao Capital

Essa maneira de definir um monismo fá lico, pode nos levar a crer que
Lacan entende esta ordem patriarcal como intransponível. Afinal, ele dirá em
vá rios contextos que o falo: “é o significante fundamental através do qual o
desejo do sujeito pode se fazer reconhecer enquanto tal, quer se trate do homem
ou quer se trate da mulher”126. Isto demonstra como o falo permite a construção
de um Universal capaz de unificar as experiências singulares do desejo. Vá rias
foram as crítica contra este “monismo” fá lico lacaniano, vindas principalmente
de setores do feminismo. Lembremos, por exemplo, de como Nancy Fraser
sintetiza essas críticas ao afirmar:

Falocentrismo, lugar desprestigiado da mulher na ordem simbó lica, a


codificaçã o da autoridade cultural como masculina, a impossibilidade de
descrever uma sexualidade nã o-fá lica; em suma, grande nú mero de
estratégias historicamente contingentes de dominaçã o masculina
aparecem agora como características invariantes da condiçã o humana127.

126
LACAN, S V, p. 273
127
FRASER, Nancy; Fortunes of feminism: from state-managed capitalism to neoliberal crisis,
Londres: Verso, 2013, p. 146.
Neste sentido, a psicaná lise apareceria como uma tecnologia para preservar a
estrutura heteronormativa e biná ria que serviria de base para a colonizaçã o dos
corpos através da normalizaçã o das posiçõ es de homens e mulheres. No caso de
Lacan, teríamos um sistema de diferenças que nã o escaparia do binarismo sexual
e da genealogia patriarcal do nome.
Mas notemos inicialmente como há algo de singular nesse “para todos”
produzido pelo reconhecimento do desejo através do falo. Pois o falo é, ao
mesmo tempo, o significante por excelência do desejo e o significante que
encarna a falta própria à castração, “significante do ponto onde o significante
falta/fracassa”128. Estamos aí diante de uma contradiçã o, salvo se admitirmos a
existência de algo como um desejo de castração ou a sustentaçã o necessá ria de
uma inadequaçã o radical entre o desejo e os objetos empíricos. Nã o por outra
razã o, autores como Judith Butler acusarã o Lacan de uma : “idealizaçã o religiosa
da ‘falha’, humildade e limitaçã o diante da Lei”129 politicamente suspeita. Pois
Lacan teria insistido que a ú nica forma possível de reconhecimento do desejo
passaria pela sua inscriçã o simbó lica através de um significante que é a pró pria
encarnaçã o do fracasso em nomear o desejo, já que o falo é apenas: “um símbolo
geral desta margem que sempre me separa de meu desejo” 130 .
Ou seja, e esse ponto é muito importante, o falo nã o é a figura da
transformaçã o do desejo em vontade de controle e poder. Ele é uma maneira de
articular gozo e angú stia, procura de gozo e inadequaçã o de todo objeto
empírico. Por isso, o falo é sobretudo uma forma de movimento do desejo, é essa
maneira que o desejo tem de gozar da inadequaçã o, com suas dinâ micas de
degradaçã o do objeto do desejo e procura de um ponto contínuo de
ultrapassagem. Algo que mais pareceria uma teologia negativa travestida de
clínica do sofrimento psíquico com consequências políticas paralisantes. Como
seria paralisante a posiçã o de quem sustenta uma ordem que ele sabe ser
inadequada, mas sem ser capaz de superá -la. O que seria a mais astuta e perversa
forma de conservaçã o de uma lei que deveria há muito ter sido abandonada.
De fato, é para insistir na generalidade da castraçã o que Lacan defende o
falo como processo geral de socializaçã o do desejo. Ou seja, o falo nã o é um
norma generalizada, mas uma inadequaçã o generalizada. Se a castraçã o nã o
fosse um processo genérico e extensivo a todos, entã o teríamos que admitir que
a vida social preserva alguns da violência de seus modos de determinaçã o e
limitaçã o. Ou seja, deveríamos aceitar que há sujeitos que preservariam uma
relaçã o imanente ao gozo, sujeitos que entrariam na ordem social sem serem
marcados pela violência da alienaçã o. O que seria, talvez, a pior de todas as
fantasias de compensaçã o à violência social, a saber, a fantasia de que há algum
ponto no qual esta ordem social permite aos sujeitos que nó s somos, sujeitos
constituídos pela ordem social, nã o se sujeitarem. Ou seja, generalizar a
castraçã o é afirmar que nenhuma existência preserva-se da alienaçã o, mesmo
aquelas que, em nossas sociedades atuais, colocam-se como nã o-biná rias, como
mutantes. Nenhuma existência pode falar em nome de uma diferença atual em
meio à sociedade da violência capitalista ainda vigente. Isto será apenas uma
forma de impostura.

128
LACAN, S VIII, p. 277
129
BUTLER, Judith; Gender trouble, Routledge: Nova York, 1999, p. 72.
130
LACAN, S V, p. 243
No entanto, há ao menos dois tipos distintos de efeitos resultantes desta
passagem pela castraçã o: um produz os regimes de existência, outro abre espaço
à experiência do inexistente. O primeiro caso nos leva ao gozo fá lico, o outro nos
leva à s discussõ es sobre o gozo feminino. Esses dois efeitos, é sempre bom
lembrar este ponto, se dã o nos mesmos corpos. Os corpos humanos sã o
atravessados por esses dois efeitos. Nã o há nenhum corpo humano que tenha
sido submetido à s formas do gozo fá lico sem que isto nã o produza inadequaçõ es.
Uma das razõ es da violência extrema daqueles que lutam por se reconhecerem
no interior da ló gica do gozo fá lico é o fato deles nã o saberem o que fazer com
outra experiência de gozo que os assombra. Mais uma vez, nã o há binarismo em
Lacan. Há monismo, mas nã o há posiçã o sem uma pressuposiçã o que a nega. Por
isto, nã o há posiçã o que nã o seja instá vel e aberta a um devir.
Neste sentido, a insistência de Lacan em falar da irredutibilidade da
diferença sexual nã o é simplesmente a expressã o de sua dependência a um modo
de existência heteronormativo. Isto significaria confundir diferença opositiva-
representativa com diferente auto-referencial, o que só acontece em posiçõ es
anti-dialéticas, o que nã o é o caso de Lacan. A diferença sexual, em Lacan, é a
expressã o de uma distâ ncia irredutível que me separa de mim mesmo, é a
expressã o do modo de relaçã o que tenho em relaçã o à minha pró pria
“sexualidade”. A diferença é interna a mim, nã o uma relaçã o externa a outro. Ou
seja, ela é uma diferença auto-referencial, nã o a expressã o de oposiçõ es
caracterizadas por incompatibilidades materiais. Ela nã o é a diferença entre
homem e mulher, como dois conjuntos específicos de pessoas. E como ela
poderia ser se a mulher é um inexistente? A diferença sexual é uma diferença
interna entre a existência e aquilo que tal existência nega como inexistente para
poder existir. Afirmar tal distâ ncia interna a si tem uma forte razã o política e
transformadora.
Uma das críticas mais importantes do feminismo a Lacan foi feita por
Monique Wittig. Foi dela a afirmaçã o, a respeito da noçã o de diferença sexual tal
como Lacan a utiliza : “o conceito de diferença nã o tem nada de ontoló gico. E
apenas uma maneira que o mestre tem de interpretar uma situaçã o histó rica de
dominaçã o. A funçã o da diferença é mascarar, em cada nível, os conflitos de
interesse, incluindo os ideoló gicos”131. Pois “diferente” é aquilo sempre posto em
relaçã o de subalternidade. O que se trata é de decompor a naturalizaçã o da
relaçã o social obrigató rio entre “homem” e “mulher” levando tais categorias a
seu ponto de exaustã o.
De fato, nã o se trata de ontologizar a diferença, como se fosse possível sair
da situaçã o histó rica atual a fim de dar validade atemporal à quilo que é fruto de
coordenadas histó rico-sociais precisas. Mas faz-se necessá rio falar de uma
“ontologia para nó s”, ou seja, para nó s, tal experiência tem uma irredutibilidade
ontoló gica. Isto é dito tendo em vista impedir que se fale de uma existência que
ainda nã o tem figura, e nã o deve ter. Pois nã o é exatamente a diferença que
aparece como peso ontoló gico aqui, mas a inexistência. Compreender a funçã o
política de tal estratégia nos impediria de regredir a situaçã o de criticar Lacan
por ele nos colocar diante de necessidades que: “escapam do controle da
consciência e da responsabilidade dos indivíduos”132. Pois imaginar que alguma
forma efetiva de açã o política será produzida pela consciência e por indivíduos
131
WITTIG, Monique; The straight mind and other essays, Beacon Press, 1992, p. 13
132
WITTIG, Monique, idem, p. 15
agentes é desconhecer de onde pode realmente vir a agência emancipada. Ela
certamente nã o virá do que se conforma como propriedade e atributo de um
indivíduo. Pois toda e qualquer forma de indivíduo e consciência é determinada
pela pró pria estrutura que nos faz existir e nos oprime. Por isto, uma ontologia
do inexistente é politicamente necessá ria.

Gêneros de problemas

Mas tentemos compreender melhor a estratégia de Lacan. Para entender


o que é o gozo fá lico precisamos definir a forma com que a castraçã o funciona em
seu interior. Ela aparece inicialmente como a afirmaçã o de um “para todos”, ou
seja, sua dimensã o de norma que determina a integralidade dos existentes é
claramente assumida. Mas tal assunçã o exige um complemento. A experiência da
falta implicada pela castraçã o pede necessariamente um complemento
fantasmá tico. Como se fosse uma falta que simplesmente perpetuasse nossa
dependência à expectativa de uma completude. A castraçã o é reduzida assim a
uma falta que é apenas o campo de retorno à fantasia de que há um lugar, ha
alguém que nã o passou pela experiência da castraçã o, guardando para si a
soberania da identidade imediata entre vontade e açã o, entre querer e fazer. É
isto que significa a fó rmula da sexuaçã o masculina (x x x x), a saber
“todos passam pela castraçã o” e “existe ao menos um que nã o passa pela
castraçã o”. A contradiçã o entre as duas proposiçõ es é o eixo de organizaçã o do
gozo fá lico133.
O sujeito pode tentar ocupar tal lugar em uma passagem ao ato de suas
fantasias perversas ou ele pode ser ocupado por um Outro que aparecerá como
nã o-castrado, um Outro a quem nã o falta nada e ao qual o sujeito devotará uma
relaçã o de sujeiçã o. Esse Outro pode se encarnar em outro sujeito ou ser a Lei, a
Missã o, o Ideal, o Líder, o Pai, a Empresa, o Estado, a Mulher etc. Assim, se é
verdade que : “o homem sustenta seu gozo através de algo que é sua pró pria
angú stia”134, há de se lembrar que tal angú stia lhe leva a normalmente procurar
alimentar a representaçã o fantasmá tica de um lugar soberano de exceçã o. Sob o
primado do gozo fá lico, o sujeito estará assim sempre aberto ao investimento
superegoico em figuras autoritá rias que recuperam a estrutura do pai primevo
cuja vontade parece pairar acima de toda restriçã o. Ele gozará da falta (com a
depreciaçã o relativa dos objetos que se lhe apresentam) e da procura pela
completude (com a idealizaçã o imanente a tal procura). Será um gozo fundado
no jogo contínuo entre frustraçã o e idealizaçã o. Este desejo como falta e restriçã o
tem assim, necessariamente, um retorno catastró fico no campo do político (por
se realizar libidinalmente no investimento de figuras e instituiçõ es autoritá rias)
e subjetivo (por fazer o sujeito depender seu gozo de sua pró pria frustraçã o).
Mas há em Lacan algo a mais do que o gozo fá lico, e é neste ponto que
podemos entender a natureza política do gozo feminino. Notemos inicialmente o
gozo feminino é uma posiçã o, é um lugar, e nã o um predicado pró prio a um
grupo de sujeitos que entendemos como mulheres. Esses, segundo Lacan,
também gozam de forma fá lica.
O que o gozo feminino mostra é como é possível começar nã o exatamente
da afirmaçã o da castraçã o como funçã o de um “para todos” que constitui uma
133
Ver LACAN, Jacques; Le séminaire XX, op. cit., p. 73
134
LACAN, S X, sessão do 20/03/63.
universalidade normativa e restritiva, mas começar da castraçã o como impasse
de existência, como pressã o de um inexistente em direçã o à uma existência outra.
Por isto, a posiçã o feminina nã o tem como proposiçã o de base x x, mas x
x, ou seja, seu fundamento é a impossibilidade de existência de alguém que
nã o passou pela castraçã o. Esta recusa em vincular a castraçã o ao advento de
uma totalidade é feita porque, neste contexto, a “falta” funciona de outra forma,
produz outros efeitos. No caso da posiçã o feminina, assumir a falta do desejo é,
na verdade, a expressã o da recusa a uma falsa totalidade em nome de uma
totalidade outra que Lacan chama de “universal nã o-todo”. Isto é radicalmente
distinto do ato de reconhecer a falta para sustentar o complemente fantasmá tico
de um Outro nã o-castrado.
Assim, se esse gozo feminino é pró prio de uma posiçã o que “nã o existe”
(já que A mulher nã o existe), isto nã o é simplesmente culto da aporia ou teologia
negativa. A inexistência deve ser entendida aqui como processo ativo que visa
quebrar os limites do modos atuais de existência, os limites das formas de gozo
avalizadas pelo capitalismo e seu patriarcado. Esta inexistência é ativa pois ela
procura produzir uma outra ordem. A “impossibilidade de descrever uma
sexualidade nã o-fá lica” a qual alude Nancy Fraser é, ao contrá rio, força de
pressã o que procura dar corpo ao impossível. Isto é uma estratégia de
negatividade dialética, nã o uma mera contemplaçã o passiva do impasse.
Neste contexto, universal nã o-todo é a expressã o da possibilidade de uma
relaçã o entre o que nega a falsa totalidade (o que é nã o-todo) e o que procura
produzir um campo comum (o que sustenta ainda expectativas de
universalidade). Ele é forma da falta se servir do impasse, uma forma do gozo se
servir do desmedido e des-idêntico, para se realizar como experiência de
infinitude. E nã o é um acaso que, neste momento, encontremos os mesmos
exemplos que Bataille utilizava para falar do erotismo e do sagrado serem
recuperados por Lacan. Basta lembrar de sua leitura sobre o gozo de Santa
Teresa D’Á vila.
Alguns podem ver isto como uma forma insidiosa de empurrar o feminino
para um misticismo etéreo e inapreensível. Ú ltima estratégia de colonizaçã o do
feminino pelos fantasmas masculinos (uma mistura bastante usual de santa e
puta que só faria sentido no interior dos fantasmas masculinos). Mas isto seria
perder o eixo central da estratégia de Lacan, a saber, insistir que o poder (neste
caso, o poder religioso) tenta colonizar um gozo que pode ultrapassá -lo,
obrigando a vida social a lidar com o que quebra seus regimes de existência, de
hierarquia e produçã o. E para fazer esse gozo emergir, é necessá rio que a
experiência confronte-se a seu ponto extremo de contradiçã o, é necessá rio que a
linguagem encontre seu ponto de torçã o, até que ela seja obrigada a dizer:

Se houvesse outro, mas nã o há outro que o gozo fá lico – a nã o ser aquele


sobre o qual a mulher nã o diz uma palavra, talvez porque ela nã o o
conheça, esse que a faz nã o-toda. É falso que exista outro, o que nã o
impede que a continuaçã o seja verdadeira, a saber, que nã o deveria ser
este135.

Essa língua que fala “Nã o há outro gozo ... salvo este do qual nã o se fala,
salvo este que, se houvesse, seria outro”, língua que fala “É falso que haja outro, o
135
LACAN, S XX, p. 56
que nã o impede de dizer que nã o deveria ser este” é a fotografia de um processo
de emergência que leva a língua a seu ponto de torçã o. Processo que recusa
identificaçã o, que recusa nomeaçã o e identidade, fazendo colapsar a ordem por
dentro, como algo indescritível que nasce do que parecia o mais familiar. Esta é
uma estratégia política de produçã o de diferença que nã o poderia, em hipó tese
alguma, ser confundida com uma dinâ mica de restauraçã o.
Pode-se criticar Lacan por colocar a mulher em uma posiçã o na qual ela
nada fala sobre seu gozo, na qual ela nada conhece de seu gozo. Mas para tanto
seria necessá rio lembrar que esse desconhecimento é, para Lacan, constituinte
de nossos modos gerais de alienaçã o. A posiçã o masculina crê falar e se encontra
a todo momento em uma fala vazia que nã o é outra coisa que a simples repetiçã o
do có digo. Neste contexto, nada falar é o começo de uma verdadeira
transformaçã o.
Por outro lado, poderíamos dizer que a psicaná lise lacaniana é
absolutamente indiferente ao problema da performatividade de gênero. Ela nã o
tem problema algum em assumir mú ltiplas inscriçõ es de gênero. Pois sua
questã o central encontra-se em outro lugar, a saber, nas estruturas de
relacionalidade (que, é claro, nã o podem ser abstraídas das determinaçõ es de
gênero)136. Ela procura levar os corpos a assumirem uma forma de
relacionalidade na qual possa circular um gozo que nos desacostume do regime
identitá rio, acumulador e contá bil pró prio ao capitalismo. Essa forma pode
ocorrer em regimes mú ltiplos de relacionalidade, até mesmo entre uma mulher e
um homem.
Nesse sentido, poderíamos terminar lembrando que uma das ideais mais
fortes da psicaná lise a esse respeito, potencializada por Jacques Lacan, nos
lembra que relaçõ es sexuais nã o se dã o entre representaçõ es globais de pessoas,
mas entre objetos que circulam entre corpos, e que ele chama de objetos a.
Objetos que carregam traços de posiçõ es do desejo que desconhecem algo que
poderia ser chamado de “determinaçõ es de gênero”. Mas vivemos em uma
metafísica tã o empobrecedora que descrever relaçõ es sexuais como algo que se
dá entre objetos parece alguma forma de degradaçã o das “pessoas” envolvidas,
de instrumentalizaçã o do outro, de “fetichismo” e coisas do gênero. Como se só
houvesse força de açã o e decisã o em “pessoas”, nã o em “objetos”. Toda uma
concepçã o jurídico-metafísica de atividade acaba assim por colonizar até mesmo
a forma de compreendermos afecçõ es. Há também um fetichismo da pessoa do
qual deveríamos saber nos livrar.
Assim, dizer que relaçõ es sexuais se dã o entre objetos significa,
concretamente, que ninguém deseja “mulheres” ou “homens”, mas deseja objetos
que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos. Objetos esses que nã o sã o
projeçõ es de fantasmas individuais. O corpo do Outro nunca é uma tela de
projeçã o. Ele é um espaço de encontro e nunca se erra um encontro efetivo,
sendo a marca de sua efetividade a força bruta de duraçã o. Se um encontro
ocorre é porque há objetos que circulam, e a ideia de circulaçã o é importante
aqui. Eles tem a capacidade de passar de um lado para o outro porque eles fazem
reverberar as histó rias dos desejos dos sujeitos, a histó ria de seus desejos
desejados. Uma hora eles se encontram de um lado, outra hora eles se encontram
de outro. E tal circulaçã o é a expressã o de que tais objetos nã o se fixam em
136
Ver, a este respeito, LACAN, Jacques; S XX, p. 131 na qual Lacan fala de uma relação de
reconhecimento no interior da qual a relação sexual cessa de não se inscrever.
“gêneros específicos”. Por isto, eles podem levar um “homem” ou uma “mulher” a
pontos de indistinçã o, eles podem inverter posiçõ es, eles podem permitir
composiçõ es heteró clitas as mais variadas.
Quando um juiz da corte de apelaçã o de Dresden, no século XIX, cujo
nome era Daniel Paul Schreber, tem um surto paranoico depois de imaginar que
seria bom ser uma mulher “no momento do coito”, ele demonstrou que apenas
um paranoico sentiria tal posiçã o como exterior a si. Só um paranoico entenderia
isso como algo tã o invasivo que lhe levaria a construir um delírio que integraria
tal corporeidade, tais objetos associados por ele ao gozo feminino, apenas à
condiçã o de uma modificaçã o alucinató ria de seu corpo tendo em vista a sua
pró pria transformaçã o em “a mulher de deus”. Fora da posiçã o paranoica,
estamos a todo momento fazendo tais passagens em nosso inconsciente (que é
onde os encontros afetivos realmente se dã o), tanto em um sentido quanto em
outro.
Dito isto, é fato que a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada
como processo de reaçõ es fó bicas contra tais movimentos, contra tal circulaçã o
de objetos. Ela pode assim consolidar disposiçõ es produtora das piores
violências e negaçõ es, pois violências nas quais se mistura destruiçã o de si e
incorporaçã o, no outro, do que se quer destruir. Mas tais discursividades
descrevem apenas uma tentativa desesperada e brutalizada de lidar com
impasses típicos dos que compreendem e vivenciam o desejo no nível de
“pessoas” e “indivíduos”. Nesse sentido, é bem prová vel que a melhor forma de
desativar tais discursos seja mostrando, cada vez mais, que eles nã o descrevem
sujeito algum, que eles descrevem uma forma de disciplina que cresce
exatamente no momento em que as sociedades começam a classificar sujeitos a
partir das pretensas escolhas sexuais de pessoas que eles seriam.
Falar de sexo
Aula 13

Eu gostaria de terminar esse nosso terceiro mó dulo com consideraçõ es que nã o


vem do campo clínico, mas do campo literá rio. Esse deslocamento tem sua razã o
de ser. Nesse mó dulo vimos duas matrizes distintas de clínicas do sexual. A
primeira fora a sexologia com sua maneira de pensar o sexual como um botanista
que procura organizar uma taxonomia geral dos comportamentos. A segunda foi
a psicaná lise, agora retomada a partir de Jacques Lacan. A contraposiçã o entre
essas duas perspectivas clínicas era uma contraposiçã o entre dois regimes de
discursos daquilo que um dia Foucault chamou de scientia sexualis. Um desses
discursos procurou aplicar ao sexual um padrã o de racionalidade baseado na
mensuraçã o, na quantificaçã o e no cá lculo, como se tratasse de mais um objeto
digno de uma ciência. Já o outro discurso procurou compreender o sexual como o
nome que damos a um impasse de formalizaçã o, a uma experiência portadora de
sofrimento psíquico porque capaz de explicitar os regimes de disciplina e
violência que compõ e a vida social e suas estratégias de determinaçã o de
identidade.
Essa segunda estratégia à sua maneira partilhava um horizonte de época
marcado pelo questionamento constante dos regimes de naturalizaçã o pró prios
ao funcionamento normal de nossa linguagem. Nã o será por acaso que
encontraremos, nesse mesmo momento histó rico, uma reflexã o sobre o romance
que questionava noçõ es como: personagens providos de psicologia, objetos cuja
presença era apenas a reiteraçã o das características de seus proprietá rios,
narrativa que se organizavam a partir da noçã o aristotélica de começo, meio e
fim. Nesse sentido, a crise do romance aparecia como nã o apenas a crise de um
gênero literá rio específico, mas como a crise de um horizonte de significaçã o.

O nouveau roman

Nesse contexto, os anos cinquenta e sessenta do século passado


conhecerã o um movimento chamado “nouveau roman” no qual iremos encontrar
autores como Alain Robbe-Grillet, Claude Simon, Michel Butor, Nathalie Sarraute,
Samuel Becket e Marguerite Duras. Esses autores, muito diferentes entre si,
aproximavam-se pela procura em evitar aquilo que seria um sistema de
convençõ es do romance e que encontraria alguns de seus exemplos mais
significativos em autores como Balzac e Zola. Tal sistema de convençõ es tratava
como natural que exista uma histó ria a contar, um personagem a descrever, uma
interioridade a descobrir através dos gestos e das coisas. Ou seja, um mundo
ordenado com seus lugares e hierarquias.
No entanto, esses escritores procuraram posicionar o romance fora desse
mundo. Um mundo que se toma por “realista” (a referência a Zola está aí para
nã o mentir) mas que é simplesmente projetivo, que é apenas a projeçã o narcísica
de si. Lembremos, por exemplo, dessas colocaçõ es de Robbe-Grillet:

À chaque instant, des franges de culture (psychologie, morale,


métaphysique, etc.) viennent s’ajouter aux choses, leur donnant un aspect
moins étranger, plus compréhensible, plus rassurant. Parfois le
camouflage est complet : un geste s’efface de notre esprit au profit des
émotions supposées qui lui auraient donné naissance, nous retenons
qu’un paysage est « austère » ou « calme » sans pouvoir en citer aucune
ligne, aucun des éléments principaux. (...)“Et si quelque chose résiste à
cette appropriation systématique, si un élément du monde crève la vitre,
sans trouver aucune place dans la grille d’interprétation, nous avons
encore à notre service la catégorie commode de l’absurde, qui absorbera
cet encombrant résidu. Or le monde n’est ni signifiant ni absurde. Il est,
tout simplement. C’est là , en tout cas, ce qu’il a de plus remarquable. Et
soudain cette évidence nous frappe avec une force contre laquelle nous ne
pouvons plus rien137.

Essas colocaçõ es sã o importantes por associar a crise do romance ao


esgotamento de uma linguagem que procura, sobretudo, se fazer passar por
descriçã o, quando ela é produçã o. Mas ao invés de procurar enfim uma
linguagem descritiva, o romance deverá servir-se, por exemplo, da mais
implacá vel descriçã o para mostrar o que significa a construçã o de um olhar.
Assim, em O ciúme, romance de Robbe-Grillet, seguiremos uma descriçã o
exaustiva de uma fazenda, com a disposiçã o de suas plantaçõ es, com a estrutura
de sua sede, com as rachaduras na parede, com lagartos. Veremos essa descriçã o
repetir-se de maneira marcial, até que as repetiçõ es deixarã o evidentes
mudanças sutis, como se fosse questã o de repetir para assegurar algo que etá a
desaparecer, ou algo que está lá para encobrir algo. E paulatinamente percebe-se
que estamos vendo a construçã o de um olhar enciumado, que procura esquecer
algo, que procura apagar algo que julga ter visto. Assim, o mais patologicamente
descritivo se torna, na verdade, a descriçã o de um sentimento subjetivo, do
mundo atravessado por um olhar enciumado. Esse objetivismo é, na verdade, um
pseudo-objetivismo, um objetivismo farsesco.
No entanto, o caso de Marguerite Duras é diferente. Mesmo marcada pelo
horizonte do nouveau roman, ao qual ela se associa durante certo tempo,
Marguerite Duras desenvolve uma escritura que oscila entre romances
aparentemente autobiográ ficos e histó rias com personagens e intrigas fictícias.
Há a histó ria de sua vida que perpassa vá rios de seus romances. Ela conta sobre
sua juventude como filha de colonizadores no Vietnam, conta a fragilidade de sua
mã e, a auto-destruiçã o de seus irmã os, suas experiências sexuais, o casamento
com Robert Antelme, sua prisã o na Segunda Guerra, assim como vá rios outros
fatos que ocorreram. Mas tudo isso é continuamente reescrito, reconstruído,
vá rias inconsistências aparecem, como se ao final fosse o caso de narrar as
inseguranças da memó ria, os pontos de intersecçã o entre fantasia e memó ria.
Mas nã o se trata nessa aula de descrever a literatura de Duras e tudo o
que ela representou para a histó ria do romance no século XX. Na verdade,
gostaria de me concentrar em um ponto específico, a saber, a maneira com que o
romance, a partir de Duras, falará de sexo. Ou seja, trata-se de procurar entender
como um romance como esse, engajado de uma despsicologizaçã o radical da
escritura, em uma liberaçã o dos afetos de seu enquadramento psicoló gico, fala
de sexo. Uma questã o que poderia ser desdobrada para outros autores do
nouveau roman, a começar do pró prio Alain Robbe-Grillet, cuja literatura está
atravessada por sexo por todos os lados. Mas se escolhi falar de sexo através de
137
ROBBE-GRILLET, Alain; Pour un nouveau roman
Marguerite Duras é por acreditar que ela trará uma escrita absolutamente
singular, marcada pelo atravessamento das impossibilidades. Uma escrita que
recusa o lirismo e o êxtase. Nesse sentido, ela anda na contramã o de autores
como DH Lawrence ou mesmo Georges Bataille. Mas seria interessante nos
perguntarmos: por que uma escrita que fala tanto de sexo recusa o lirismo e o
êxtase? Qual o sentido dessa recusa e, principalmente, qual a funçã o social dessa
recusa em uma era na qual as imagens de sexo, os conselhos sobre sexo, os
manuais de sexo, os 40 tons de cinza sã o tã o abundantes ?

Sexo

In all Duras’s writings of the 1980s, relations between the sexes are of
vital importance, but they also prove to be intensely fraught and
precarious. In many instances, the prospect of union seems out of the
question from the outset; and for some of the partners even the
possibility of a shared present or future is excluded. To this extent, these
stories of incest, suicidal passion, male homosexuality, separation, or
divorce all display a prolonged and deepseated crisis affecting the inner
logic of sexual relations; and what Duras’s texts describe, rather than a
sequence of euphorically transgressive love idylls, is a series of sexual
relations that seem to be like so many failures of sexual relation138.

Essa afirmaçã o de Leslie Hill é, sob certos aspectos, precisa ao identificar


na escrita de Duras uma “profunda e prolongada crise afetando a ló gica interna
das relaçõ es sexuais”. Mas há uma espécie de inversã o de sinais diante de crises
dessa natureza quando se está a falar de Marguerite Duras. Pois longe de ser uma
escrita da melancolia da nã o-relaçã o ou do ressentimento advindo do colapso
dos encontros afetivos, o que temos em Duras é normalmente a descriçã o de
vidas que passam através das fendas. Ou seja, esses colapsos acabam por traçar
contatos imprová veis, permitir que vidas sigam trajetos que pareciam
interditados, mesmo que ao preço de quebras. Por isso, essa escrita será marcada
por uma impressionante economia e desafecçã o. Nesse sentido, ela guarda algo
de um dos escritores que maior influência teve sobre o nouveau roman, a saber,
Franz Kafka.
Vem de Kafka esse uso reiterado da atrofia e da contençã o. Uso que
aparece desde o contençã o da nomeaçã o dos personagens, muitas vezes
reduzidos a uma letra (Joseph K), a uma funçã o (o agrimensor), até a contençã o
da pró pria descriçã o. Nã o sã o poucas as vezes em que nos romances de Duras
cenas de sexo sã o reduzidas a uma frase: “Eles fizeram sexo”. Pois se trata-se de
descrever vidas que seguem caminhos até entã o interditados a partir de quebras,
a condiçã o para passar por tais fendas é reduzir a descriçã o ao mínimo, é falar
pouco.
Mas voltemos a esse tema da crise que afetaria a ló gica interna das
relaçõ es sexuais. A ideia de “ló gica interna” é adequada nesse contexto. Pois se
trata de descrever os impasses do desejo, a dinâ mica de suas colisõ es nã o como o
resultado de uma restriçã o externa, mas de uma ló gica interna. Raramente, os
personagens de Duras sã o contidos por alguma impossibilidade exterior. Antes, é

138
HILL, Leslie; Marguerite Duras: apocaliptic desires, p. 138
da pró pria ló gica interna do desejo que parecer vir os movimentos aberrantes
dos personagens:

It is only ever when there is no possibility of relation between self and


other that the other may be grasped as radically different, and thus
genuinely desirable. Desire here is no longer regulated by received
notions of sex or gender identity or by criteria of crude orgasmic
efficiency; instead, in Duras, it often turns out, as L’Amant most clearly
shows, that the most sexually desirable of other bodies is that very body
with which, for reasons of cultural custom, social or personal
circumstances, or even sexual orientation, no relationship is possible139.

O olhar de Lol V Stein

O deslumbramento de Lol V Stein, escrito em 1964, é um dos mais


paradigmá ticos textos da produçã o de Duras. Esse texto será objeto de leituras e
interpretaçõ es, como a da Jacques Lacan em um texto chamado exatamente
“Homenagem a Marguerite Duras pelo Deslumbramento de Lol V Stein”. De certa
forma, o livro lhe parecia, entre outros, uma elaboraçã o sobre o processo
analítica de travessia da fantasia. E há um interesse em pensarmos que uma das
poucas descriçõ es lacanianas sobre esse processo fundamental para o fim de
uma aná lise é fornecida por um romance.
Mas comecemos pelo título. Ravissement é uma palavra de difícil traduçã o.
Seu sentido normalmente é descrito como um sentimento provocado por alegria
ou admiraçã o intensa, como um estado de prazer intenso que nos retira do
contato com todo o resto. Ê xtase, arrebatamento, encantamento: sã o termos
possíveis de traduçã o. No entanto, em francês o termo também significa “rapto”,
“sequestro”. Esse segundo eixo de significaçã o nos remete à etimologia do termo.
Ravissement vem de ravir que, por sua vez, vem do latim popular rapire: uma
alteraçã o do latim rapere, que significa exatamente “tomar para si com força e
violência”. Há de, inicialmente, demorar-se diante da precisã o dessa palavra.
Uma palavra que unifica a violência e a entrega, o rapto e o arrebatamento,
criando um campo confuso entre o involuntá rio e o voluntá rio, o nã o consentido
e o consentido.
De fato, o livro tentará descrever esse ponto de mistura entre rapto e
êxtase, com toda a angú stia que o fato de habitar tal espaço provoca. Tudo gira
em torno de uma espécie de cena traumá tica. O livro começa in media res, essa é
a ú nica coisa realmente segura. Todo o que ocorrera antes é posto em dú vida
pelo pró prio narrador do livro. Como se essa cena traumá tica fosse também um
cena instauradora.
Lol, uma garota de 19 anos que “dava a impressã o de tolerar num tédio
tranquilo uma pessoa com quem ela julgava ter a obrigaçã o de parecer e de quem
perdia a lembrança na menor oportunidade”140, está em um baile com seu noivo a
quem ela ama. O noivo, Michael Richardson, se deixa fascinar pela beleza de
outra mulher, mais velha, Anne-Marie Stretter, com a qual ele dançará durante
horas. Lol assiste tudo muda e impassível, assim como assiste muda seu noivo
sair com a outra para nunca mais voltar. Desta cena, ela sai marcada por uma
139
Idem, p. 139
140
Marguerite Duras, O deslumbramento de Lol V Stein (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986), p. 8
longa angú stia emudecedora e catatô nica. Esse personagens reaparecerã o em
outros livros de Marguerite Duras, em outras situaçõ es e histó rias, sem sabermos
exatamente se eles sã o os mesmos, o que é certo e o que é inseguro. As vezes,
eles aparecerã o sem nome, as vezes só com iniciais (L.V.S., por exemplo). A
natureza insegura do estatuto da cena (o que de fato aconteceu? Quem fala a
verdade?) é uma marca fundamental da voz do texto:

Tinha olhado Michael Richardson de passagem? Tinha-o varrido com


aquele nã o-olhar que ela passeava pelo baile? Era impossível sabê-lo, é
impossível, portanto, saber quando começa minha histó ria de Lol V. Stein:
o olhar, nela – de perto compreendia-se que esse defeito provinha de uma
descoloraçã o quase dolorosa da pupila –, se alojava em toda a superfície
dos olhos, era difícil captá -lo. Era ruiva, cheia de sardas, Eva marinha que
a luz devia enfear141.

De fato, há vá rios raptos. O objeto de seu amor é raptado em uma dança


que se desdobra à sua frente. Ela mesma é raptada para o meio de uma cena que,
a partir de entã o, organizará sua vida. Aos poucos, Lol procura sair de seu
arrebatamento mudo e angustiante. Ela se casa, tem filhos, cuida da casa de
maneira ordenada, tudo sem nunca dar a impressã o de estar totalmente
presente. Dez anos depois, ela encontra um homem na rua e o segue. Logo, ela
descobrirá que este homem, Jacques Hold, é amante de sua melhor amiga,
Tatiana Karl. A mesma amiga que esteve ao seu lado na cena do baile e que,
depois disto, nunca mais foi vista.
Na primeira oportunidade, Lol declara seu amor por Jacques Hold, que é
também o narrador do livro, aquele que conta a histó ria de Lol V Stein. No
entanto, esta declaraçã o nã o é seguida de um pedido de ruptura entre ele e
Tatiana. Ao contrá rio, ele deve rever a amante no Hotel onde eles fazem sexo. Ele
deve revê-la porque Lol estará lá , escondida, vendo tudo pela janela. Agora, ela
nã o será mais aquela que estará excluída da cena do encontro entre dois
amantes. Ela será o olhar que suporta a cena, o olhar que veste os amantes em
uma imagem, que os constitui e os impulsiona a agir. Jacques Hold saberá estar
sendo olhado, estar atado ao olhar de um Outro, destinado a realizar o fantasma
de um Outro. Um saber que nã o o leva ao prazer de um jogo voyeurista, mas joga-
o na angú stia. Assim, a cena do rapto e do êxtase se repetirá , mas nã o com Lol em
uma posiçã o completamente passiva e atravessada. Agora, ela espera repetir a
cena, mas como quem a organiza, como se a ú nica forma de se confrontar com
algo de profundamente descentrado em si mesma, algo que em si mesma só se
experimenta como raptado, fosse repetindo a cena da descoberta traumá tica de
sue gozo.
Mas notemos um ponto importante. A angú stia de Jacques Hold produz-se
sobretudo porque o olhar que vem de Lol nã o tem a força de assegurar contextos
está veis de significaçã o. Quando ela diz ter visto Tatiana nua, sob seus cabelos
negros, Lacan insiste que tal nudez transforma-se, para Jacques Hold, em uma
“mancha intolerá vel”142, em algo “que a priva sempre mais do menor sentido
possível”, ou, segundo as palavras de Duras, na revelaçã o de um vazio. Ou seja,
Tatiana é agora aquela que presentifica o olhar de Lol, é com este olhar que
141
Idem,
142
Jacques Lacan, Outros escritos, p. 202
Jacques Hold faz amor. Mas Tatiana presentifica tal olhar em um ponto no qual o
desejo e a dor sã o indistinguíveis. Dor de quem só pode estar presente na cena
através do corpo de uma outra, só presente fora de si. Uma mistura entre desejo
e dor intolerá vel porque desprovida de sentido no interior de uma ló gica que
visa pautar a açã o pela procura do prazer e pelo afastamento do desprazer.
Notemos ainda o que diz Duras a respeito de Lol:

Quand elle est couchée dans le champ, derrière l’hô tel où se trouvent
Tatiana et son amant, elle ne cherche pas à les voir. Elle dort. Elle dort
dans l’ombre d’autres personnes. Son bonheur est là . C’est un état de la
pensée. Elle est obligée d’inventer tous les instruments de son bonheur.
Le monde de Lol V. Stein est un monde cohérent, qui devient cohérent143.

Essa é uma maneira de dizer que nã o há patologia alguma a procurar. Lol


nã o é uma voyerista, e poderíamos mesmo se perguntar sobre o sentido de
classificaçõ es dessa natureza. Ela é alguém que dorme na sombra de outras
pessoas. Que encontra alguma felicidade possível nessas sombras. Por isso, esse
sequestro para fora de si tem algo de um deslumbramento.

A cena final

Quando Jacques Hold fizer enfim amor com Lol, isto depois dos dois
voltarem ao vazio do salã o onde ela fora abandonada pelo noivo há dez anos, ele
fará amor com alguém que se entrega na cama em meio a uma decomposiçã o. Lol
só pode estar presente na relaçã o sexual, ela só pode sexualizar seu corpo
“impenetrá vel” e opaco através de Tatiana. Por sua vez, Jacques Hold, o narrador,
só pode descrever o que se passa através de uma narrativa cada vez mais
fragmentada e instá vel, como quem está diante de algo em vias de se dissolver.
Esta confrontaçã o com um objeto que no amor se revela dilacerado entre uma
imagem que o unifica (vinda de uma outra) e uma opacidade que o traga,
opacidade que, segundo Lacan, celebra, “as nú pcias taciturnas da vida com o
objeto indescritível”, é talvez a figura mais pró xima do que podemos entender
por “travessia do fantasma”.
Lembremos ainda que personagens como Lol trazem uma característica
maior do nouveau roman. Eles perderam toda substancialidade, toda densidade
psicoló gica, todo enraizamento em contextos só cio-culturais. No caso de Lol, isto
a reduz a estar ligada apenas a uma cena que formaliza tal situaçã o existencial de
abandono: a cena do baile. Suas açõ es consistem em repetir tal cena (por
exemplo, dando um baile em sua pró pria casa e “raptando” Jacques Hold sob os
olhos de Tatiana) ou em imitar uma outra que ela procura tomar o lugar.
No entanto, ao invés de simplesmente levar a personagem a reconstruir
vínculos substanciais (por exemplo, fugindo com Jacques Hold para “reconstruir
a vida” de maneira mais “autêntica”), o romance prefere nos levar a este ponto
onde a perda de substancialidade demonstra seu conteú do de verdade, ou seja,
onde Hold depara-se com a situaçã o de precisar inventar uma maneira de
conviver com aquilo que nã o pode mais ser submetido à s amarras seguras da
identidade. Por isso, creio valer a penar demorar um pouco na cena final. Ei-la:

143
DURAS, Marguerite; Le dernier des métiers, Paris: seuil, p.
Lol sonha com um outro tempo em que a mesma coisa que vai ocorrer
ocorreria de modo diferente. De outro modo. Mil vezes. Em toda parte. Em
outra parte. Entre outros, milhares que, da mesma maneira que nó s,
sonham com esse tempo, obrigatoriamente. Esse sonho me contamina.
Sou obrigado a despi-la. Ela nã o o fará por si mesma. Está nua. Quem está
lá na cama? Quem, pensa ela?
Estirada, nã o se mexe. Está inquieta. Está imó vel, fica onde a coloquei.
Acompanha-me com os olhos, como um desconhecido, pelo quarto
quando, por minha vez, tiro a roupa. Quem é? A crise está aí. Foi nossa
situaçã o neste momento, neste quarto em que estamos só s, ela e eu, que a
desencadeou.

— A polícia está embaixo.

Nã o a contradigo.

— Batem em pessoas na escada.

Nã o a contradigo.Ela nã o me reconhece, de modo algum.

— Nã o sei mais, quem é?

Depois ela me reconhece com dificuldade.

— Vamos embora.

Digo que a polícia nos prenderia.Deito-me junto a ela, a seu corpo


impenetrá vel. Reconheço seu cheiro. Acaricio-a sem olhá -la.
— Ai, você está me machucando!
Continuo. No tocar reconheço as ondulaçõ es de um corpo de mulher.
Desenho flores em cima. Ela nã o se queixa mais. Nã o se mexe mais,
lembra-se provavelmente de que está com o amante de Tatiana Karl.
Mas de repente ela duvida enfim dessa identidade, a ú nica que ela
reconhece, a ú nica que sempre alegou pelo menos durante o tempo em
que a conheci. Ela diz:

— Quem é?

Geme, pede-me que o diga. Digo:


— Tatiana Karl, por exemplo.
Extenuado, quase sem forças, peço-lhe que me ajude:
Ela me ajuda. Ela sabia. Quem fora antes de mim? Nunca saberei. Pouco se
me dá .
Depois, aos gritos, ela insultou, suplicou, implorou que a pegasse e
largasse ao mesmo tempo, acossada, procurando fugir do quarto, da cama,
voltando para fazer-se capturar, sabida, e nã o houve mais diferença entre
ela e Tatiana Karl, exceto em seus olhos isentos de remorso e na
designaçã o que fazia de si mesma — Tatiana, quanto a ela, nã o se designa
pelo nome —, e nos dois nomes que ela se dava: Tatiana Karl e Lol V.
Stein.
Foi ela quem me acordou.

— Temos de voltar.

Estava vestida, com o casacã o, de pé. Continuava a parecer a mesma que


tinha sido durante a noite. Sensata à sua maneira, uma vez que ainda
queria ficar, queria que tudo recomeçasse e achava que nã o era preciso.
Seu olhar estava baixo; a voz, que ela nã o elevava de modo algum, se
tornara mais lenta.
Ela vai à janela enquanto me visto e também eu evito aproximar-me dela.
Ela me lembra que devo encontrar Tatiana no Hotel des Bois à s seis horas.
Ela esqueceu muitas coisas, mas nã o esse encontro.
Na rua, nó s nos olhamos. Chamei-a por seu nome, Lol. Ela riu.
Nã o está vamos só s na cabine, era preciso falar em voz baixa.
Ela me fala de Michael Richardson a meu pedido. Diz-me o quanto ele
gostava de tênis, que escrevia poemas que ela achava bonitos. Insisto para
que fale dele. Pode dizer-me mais ainda? Pode. Sofro de todos os lados.
Ela fala. Insisto mais. Ela me prodigaliza dor com generosidade. Recita
noites na praia. Quero saber mais ainda. Diz-me mais ainda. Sorrimos.
Falou como da primeira vez, na casa de Tatiana Karl.
A dor desaparece. Digo-lhe isso. Ela se cala.
Acabou-se, verdadeiramente. Ela pode dizer-me tudo sobre Michael
Richardson, sobre tudo o que quiser.
Pergunto-lhe se ela acredita que Tatiana seja capaz de contar a Jean
Bedford que existe algo entre nó s. Ela nã o compreende a pergunta. Mas
sorri à mençã o do nome de Tatiana, à lembrança dessa cabecinha negra
tã o longe de imaginar o destino que lhe é forjado.
Ela nã o fala de Tatiana Karl.
Esperamos que os ú ltimos passageiros saiam do trem para sairmos
também.
Apesar de tudo, senti o afastamento de Lol como uma grande dificuldade.
Mas o quê? Um segundo. Pedi-lhe que nã o voltasse imediatamente, que
era cedo, que Tatiana podia esperar. Ela pensou na coisa? Nã o acredito.
Disse:

— Por que esta noite?

A tarde caía quando cheguei ao Hotel des Bois.


Lol tinha-nos precedido. Dormia no campo de centeio, fatigada por nossa
viagem.

Essa é a ú nica cena de sexo na qual encontraremos Lol. Ela começa com a
expectativa de que possa se abrir um “outro tempo” no qual “a mesma coisa que
vai ocorrer ocorreria de modo diferente”. Ou seja, como se tivéssemos enfim a
força bruta dos encontros que retiram sujeitos do horizonte de uma repetiçã o
fantasmá tica. Mas, entre dois amantas despidos, há o desencadeamento de uma
crise. Há o delírio de policiais a espreita, há a incerteza de quem está lá a seu
lado, há a escrita que se torna cada vez mais fragmentada.
E entã o há a cena de sexo, que nunca é diretamente descrita, que é sem
lirismo, que é como um vazio indescritível, sem adjetivos, uma sequência de
efeitos sem causa, mas que aparece como a confrontaçã o bruta com um ponto de
fuga. O corpo é inicialmente impenetrá vel, extenuante até o ponto que Hold pede
ajuda. De fato, ela ajuda. Algo ocorre, uma outra forma de arrebatamento. Mas
agora nã o mais o arrebatamento paralisante, e sim algo da ordem do que
provoca gritos, insultos, sú plicas, a desorientaçã o de quem procura, ao mesmo
tempo, fugir e se fazer capturar, até o momento de uma dupla nomeaçã o, quando
ela nomeia a si e a seu ponto de fuga, ao mesmo tempo. Como se houvesse aquilo
que só se nomeia através do deslizamento contínuo entre dois nomes pró prios.
E depois, eles acordam. Ou seja, houve o dormir juntos, o acalmar-se, que
também nã o se descreve, que é acolhido em silêncio. Depois do silêncio, há o
retorno, a tentativa de narrar, agora feita pelo pró prio amante que quer saber
como é a vida em casal de Lol. Ela fala, diz tudo o que ele quer saber, ela pode
dizer tudo, embora nada será dito no romance. Como se fosse apenas uma
possibilidade que nã o será usada, nunca, como quem descobre, ao mesmo tempo,
poder atravessar uma fronteira e nunc ter efetivamente tido o desejo de
atravessá -la.
Entã o eles voltam à mesma cena, com uma mudança substancial. A perda
mudou de lugar. “Senti o afastamento de Lol com uma grande dificuldade”, é o
que diz Jacques Hold. E nesse deslocamento da perda, nessa relaçã o com alguém
para quem ela pode ofertar a perda que lhe constituiu, uma outra funçã o do sexo
se desenha. Ela pode falar agora, mesmo que dessa fala exista apenas traços no
romance. Ele continuará a encontrar Tatiana, mas agora mais pró ximo da
devastaçã o que marcou Lol. E assim uma outra forma de falar de sexo apacerá :
nesse ponto entre despossessã o e deslumbramento, uma outra forma de falar de
sexo marcada por silêncios que nã o sã o censuras, por atrofias que nã o sã o
contençõ es, mas formas de ser raptado e arrebatado, entre a dor e o gozo.
Falar de sexo
Aula 14

Na aula de hoje, gostaria de discutir algo que poderíamos chamar de


tendência contemporâ neo a respeito do debate sobre sexo. Trata-se da maneira
com que a fala sobre o sexual tende atualmente a ser imediatamente descrita em
termos de lutas sociais. Isso nos coloca questõ es a respeito da maneira com que
um discurso clínico sobre o sexual deve se colocar, qual seu horizonte efetivo de
descriçã o e intervençã o. Isso também nos coloca questõ es a respeito do regime
estético de expressã o do sexual. Ou seja, as ú ltimas décadas viram um
deslocamento importante dos debates sobre o sexual para o campo direto das
lutas sociais, com a consequente retomada da problematizaçã o institucional dos
dispositivos disciplinares de conformaçã o da experiências do sexual.
Esse deslocamento das questõ es sobre o sexual para o campo direto das
lutas sociais foi fruto, entre outras coisas, da redescriçã o gramatical da
experiência do sexual a partir de uma reflexã o sobre a noçã o de gênero.
Diferentemente, por exemplo, da noçã o foucaultiana de “sexualidade”, que é,
acima de tudo, um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está
carregada de uma teoria da açã o política, teoria que procura entender a maneira
com que sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço
produzindo novas formas. Nã o se trata de entender apenas como sujeitos sã o
sujeitados à s normas e completamente constituído por elas.
De fato, o conceito de gênero ganhou importâ ncia decisiva nas ú ltimas
décadas devido à maneira que ele nos permite compreender as relaçõ es entre
sexo, identidade e política. No entanto, nada disto estava presente quando o
conceito apareceu no campo clínico pela primeira vez, através das mã os do
psiquiatra John Money, em 1957 e quando foi popularizado pelo psiquiatra
Robert Stoller em um livro de 1968 intitulado Sexo e gênero. Money queria
diferenciar sexo e gênero a fim de descrever o vínculo de um indivíduo a um
grupo de comportamento e expressã o corporal. Ë ele quem cunha termos como:
identidade de gênero e orientaçã o sexual. Money faz parte dessa vaga de
sexologia que ganha força no mundo anglo-saxã o nos anos cinquenta, como
vimos com o caso de Alfred Kinsey.
Por sua vez, Stoller procurava descrever as dinâ micas de construçã o de
identidades de gênero através da articulaçã o entre processos sociais, nomeaçã o
familiar e questõ es bioló gicas. Tratava-se de insistir na dinâ mica pró pria da
formaçã o das identidades sexuais, para além de seu vínculo estrito à diferença
anatô mica de sexo, embora Stoller nã o estivesse disposto a abandonar toda e
qualquer referência à biologia.
Foi, principalmente, a partir do final dos anos oitenta que o conceito de
gênero é sistematicamente explorado em sua dimensã o profundamente política.
Há coordenadas histó ricas importantes para tanto. Primeiro, há de se lembrar da
consequência do processo progressivo de despatologizaçã o de comportamentos
dissidentes em relaçã o à normatividade heterossexual. Por exemplo, os anos
setenta conheceram uma grande mobilizaçã o tendo em vista a retirada da
“homossexualidade” como categoria de transtorno mental, o que acabará por
ocorrer em 1973. A primeira versã o do DSM – III, de 1979, ainda preservará a
categoria de “homossexualidade egodistô nica” como transtorno psicossexual. Na
primeira ediçã o do DSM III, encontraremos uma definiçã o como:

(A) The individual complains that a persistent pattern of absent or weak


homo arousal significantly interferes with initiating or maintaining
wanted heterosexual relationships and (B) There is a sustained pattern of
homosexual arousal that the individual explicitly complains is unwanted
and a source of distress.

Mesmo colocaçõ es como essas desaparecerã o dos manuais psiquiá tricos


em suas novas versõ es. Processos como esses sã o incompreensíveis sem a clara
determinaçã o de seu campo originá rio de transformaçõ es. Pois devemos
entendê-los como parte de uma dinâ mica mais ampla de questionamento da
natureza disciplinar das patologias mentais que se desdobra com força a partir
do fim da Segunda Grande Guerra.
A partir do fim da Segunda Guerra, o saber psiquiá trico conhecerá
movimentos cada vez mais fortes de questionamento de sua pró pria natureza.
Algumas questõ es que nunca haviam sido postas começaram a aparecer: o que é
um hospital psiquiá trico e em que medida ele nã o é soluçã o, mas parte do
problema? As relaçõ es médico-paciente, neste caso, nã o deveriam ser também
compreendidas como relaçõ es de poder que reproduzem dinâ micas de poder em
outras esferas da vida social? Nã o haveria uma dimensã o fundamental de revolta
na loucura que deveria ser abordada em sua força produtiva, que diz muito a
respeito dos limites pró prios a nossas formas de vida? Pois se aceitarmos que a
vida psíquica é na verdade um setor da vida social, com suas dinâ micas de
internalizaçã o de normas, ideais e de princípios de autoridade, por que nã o se
perguntar como tais processos sociais nos fazem sofrer, como eles podem estar
na base das reaçõ es que irã o levar sujeitos a hospitais psiquiá tricos e
consultó rios?
Entre os anos cinquenta e setenta tais questõ es tiveram um
impressionante impacto no desenvolvimento da psiquiatria. Movimentos como a
anti-psiquiatria de David Cooper, Robert Laing e Thomas Szasz, a aná lise
institucional de François Tosquelles, do grupo de La Borde, de Enrique Pichon-
Rivière, as reformas propostas no sistema manicomial italiano por Franco
Basaglia: todos eles pareciam indicar a emergência de um processo irreversível
de reconsideraçã o do lugar social da loucura, assim como da relaçã o entre
normalidade e patologia. Isto implicava modificar radicalmente os modos de
tratamento. Lembremos, a este respeito, como entre 1950 e 1974 o nú mero de
sujeitos internados em hospitais psiquiá tricos cai pela metade (de 500 mil para
215 mil)144. A relação terapêutica e suas estruturas de poder tendia a ir para o
centro do tratamento, restringindo qualquer desenvolvimento do controle
farmacoló gico dos sintomas. A crítica ao lugar social da psiquiatria parecia leva-
la a uma certa “crise de legitimidade” que nã o deixava de ressoar certa
fragilidade do horizonte normativo em geral no interior de nossas formas de vida
sob o capitalismo. A liberaçã o da loucura de formas de internamento e
intervençã o disciplinar é figura maior de uma sociedade nã o mais comprometida
com os padrõ es regulares de reproduçã o material da vida.
144
DEMAZEUX, Steeves; Qu’est-ce que le DSM? Genèse et transformations de la bible américaine de
la psychiatrie, Paris: Ithaque, 2013, p. 27
Esse questionamento, como nã o poderia ser diferente, encontra um
campo fértil de desenvolvimento nas categorias ligadas a tipificaçã o do
comportamento sexual. Nesse sentido, como tentei mostrar nesse curso, a
desnaturalizaçã o dos diagnó sticos e das determinaçõ es sociais vinculadas a
gênero e comportamentos fora um processo que perpassou o campo das lutas
sociais desde o início do século XX. É dentro desse contexto que a consolidaçã o
de tais lutas deve ser inserida.
Nesta modificaçã o, categorias até entã o utilizadas para definir fronteiras
entre normal e patoló gico, entre humano e inumano, transformam-se em
categorias políticas para denunciar o conteú do fortemente normativo e
impositivo da “humanidade” normalizada. Transformaçã o esta que aparece como
acontecimento de forte ressonâ ncia filosó fica, pois nos coloca diante da
compreensã o de como nossa humanidade depende do reconhecimento de
alguma forma de proximidade com o que tendíamos, até entã o, a empurrar para
vala do inumano e, muitas vezes, do abjeto. Nesta compreensã o de como o
reconhecimento do “inumano” é condiçã o para quebrar a violência normativa do
conceito de “humanidade” encontra-se uma das contribuiçõ es políticas e morais
mais decisivas das teoria d. Pois tal reconhecimento do inumano como condiçã o
para a humanidade demonstra como a experiência de ter um gênero deve,
necessariamente, caminhar em direçã o a discussõ es mais amplas sobre como o
campo da ética e da política sã o redimensionados quando os reconstruímos a
partir do problema do reconhecimento daquilo que nã o se conforma à figura
atual do humano.
Por outro lado, há ainda um fator suplementar importante. Embora nã o
tenham sido geradas no meio acadêmico, é inegá vel que tais lutas ganharam uma
força suplementar devido a um conjunto de teorias que tomaram forma no
mundo acadêmico como fruto da recepçã o anglo-saxã das discussõ es pó s-
estruturalistas sobre identidade e desconstruçã o. Ao atravessar o Oceano
Atlâ ntico, teó ricos como Foucault, Derrida, Deleuze e Guattari acabarã o por
fornecer um horizonte teó rico fundamental para a inflexã o nã o essencialista das
teorias feministas. O construtivismo que seria pró prio a tais teorias, ao menos a
partir de suas leituras anglo-saxã s, que circula inicialmente nos estudos
culturais, irá aparecer como uma forte ferramenta de intervençã o política de
acadêmicos até entã o isolados em campi.

Gênero como categorias política

Uma dessas inflexõ es pode ser vista através da consolidaçã o do que hoje
compreendemos por “teorias de gênero”. Uma de suas teó ricas mais
emblemá ticas é Judith Butler. Dentre a multiplicidade de questõ es que tal teoria
levanta, eu gostaria de partir de um ponto específico, a saber, a maneira com ela
pensa as relaçõ es entre sexo, ética e política. Há uma importante discussã o sobre
estruturas de reconhecimento que perpassa tal reflexã o e ela tem consequências
para a configuraçã o dos embates políticos.
Por exemplo, partamos dessa ideia de que nã o se tratava de entender
apenas como sujeitos sã o sujeitados à s normas sociais e completamente
constituídos por elas. Pois de nada adiantaria abandonarmos uma noçã o
essencialista de natureza para cairmos em uma visã o identitá ria de
performatividade social. Por isto, pelas mã os de Butler, a teoria de gênero nã o
será apenas uma teoria da produçã o de identidades. Ela será uma astuta teoria
de como, através da experiência de algo no interior da experiência sexual que
nã o se submete integralmente à s normas e identidades, descubro que ter um
gênero é um “modo de ser despossuido”,145 de abrir o desejo para aquilo que me
desfaz a partir da relaçã o ao outro. Daí uma afirmaçã o como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao


ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientaçã o para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nó s somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nó s mesmos.146

Ou ainda:

somos despossuídos de nó s mesmos em virtude de alguma forma de


contato com outro, em virtude de sermos movidos e mesmo
surpreendidos pelo encontro com a alteridade. Tal experiência nã o é
simplesmente episó dica, mas pode e revela uma base da relacionalidade –
nã o apenas nos movemos, mas somos movidos por aquilo que está fora de
nó s, por outros, mas também por algo “fora” que reside em nó s.147

Assim, há algo no campo do sexual que aparece como o nome de um


evento marcado pelo advento das exigências de reconhecimento do que
desarticula as estruturas narrativas da primeira pessoa do singular, com seus
atributos e predicados capazes de fundar um espaço do “pró prio”. Isto porque o
sexual parece nos empurrar em direçã o a estes sistemas de afecçõ es que nos
colocam fora dos limites estritos da primeira pessoa.
Tal teoria nascia de uma tomada de posiçã o que procurava levar à s
ú ltimas consequências a distinçã o entre sexo (configuraçã o determinada
biologicamente) e gênero (construçã o culturalmente determinada). No caso de
Butler, nã o se tratava de fornecer uma nova versã o da distinçã o clá ssica entre
natureza e cultura, até porque gênero “é o aparato discursivo/cultural através do
qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ sã o produzidos e estabelecidos como
‘pré-discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na
qual a cultura age”.148 Esta suspeita profunda em relaçã o à dimensã o do pré-
discursivo, do anterior ao advento da lei, levava Butler a recusar toda ideia de
uma naturalidade reprimida pelo advento das normas sociais.
Isto talvez explique o que levou Butler a afirmar que “gênero” nã o deve
ser compreendido como uma identidade está vel. Assegurar algo em sua
significaçã o nã o é resultado de um gesto fundador, de uma espécie de batismo
originá rio para todo o sempre. Antes, trata-se de um processo continuo de
repetiçõ es que, ao mesmo tempo, anula a si mesmo (pois mostra a necessidade
de repetir-se para subsistir) e aprofunda suas regras. Sendo assim, assumir um
gênero nã o é algo que, uma vez feito, estabiliza-se. Ao contrá rio, estamos diante
145
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004, p. 19.
146
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004, p. 25.
147
BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political,
Cambridge: Polity Press, 2013. p. 3.
148
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. p. 11.
de uma inscriçã o que deve ser continuamente repetida e reafirmada, como se
estivesse, a qualquer momento, a ponto de produzir efeitos inesperados, sair dos
trilhos. Daí a necessidade de afirmar que: “a injunçã o de ser um gênero dado
produz necessariamente fracassos, uma variedade de configuraçõ es incoerentes
que, na sua multiplicidade, excede e desafia a injunçã o que as gerou”.149 Sã o
através de tais fracassos que se produzem singularidades.
Lembremo-nos de como o pró prio uso do termo “queer” é bastante
sintomá tico neste sentido. “Queer” aparece no inglês do século XVI para designar
o que é “estranho”, “excêntrico” , “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra
começa a ser usada como um xingamento para caracterizar homossexuais e
outros sujeitos com comportamentos sexuais aparentemente desviantes. No
entanto, no final dos anos oitenta do século passado, o termo começa a ser
apropriado por certos grupos LGBT no interior de um processo de
ressignificaçã o no qual o significado pejorativo da palavra é desativadou através
de sua afirmaçã o por aqueles a quem ela seria endereçada e que procuro excluir.
Sensíveis a tal inversã o, algumas teó ricas de gênero viram nesta operaçã o uma
oportunidade para descrever um outro momento das lutas por reconhecimento.
Momento nã o mais centradas na defesa de alguma identidade particular, mas na
identificaçã o de si com o que parece expulso do universo da reproduçã o
“normal” da vida. De onde se seguiu a produçã o do sintagma “Teoria queer”,
enunciado primeiramente pela feminista italiana Teresa de Lauretis.150

Poder e melancolia

Neste contexto, a crítica social se transforma em uma tentativa de


compreender como certos afetos sã o produzidos a fim de conformar sujeitos a
tipos fixos de comportamentos, a aceitarem certas impossibilidades de açã o
como necessá rias, a assumirem certos medos através de sistemas de repetiçõ es.
Uma teoria da sujeiçã o será necessariamente teoria dos afetos sociais. Que tipo
de afeto tem a capacidade de paralisar a variabilidade estrutural dos jogos de
força pró prios ao poder, transformando-nos em sujeitos por sujeiçã o? Neste
contexto: “sujeiçã o consiste precisamente nessa dependência fundamental em
relaçã o a um discurso que nunca escolhemos mas que, paradoxalmente, inicia e
sustenta nossa agência”.151 Ou seja, um discurso que se coloca em posiçã o
claramente exterior, mas que define a maneira com que defino minha açã o. Um
discurso que , de certa forma, está dentro de mim sem ser completamente
idêntico ao que entendo por minha identidade. No entanto, nã o é apenas a
exterioridade que define a sujeiçã o, mas principalmente a conformaçã o de si a
algo que tem a forma da vontade de um Outro.
A este respeito, a hipó tese de Judith Butler consistirá em mostrar como a
força da submissã o dos sujeitos, seja à identidades de gênero pensadas em uma
matriz está vel e insuperá vel, seja à pró pria forma geral da identidade, é
indissociá vel dos usos da melancolia. O poder age produzindo em nó s
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posiçã o necessariamente melancó lica.
Podemos mesmo dizer que o poder nos melancoliza e é desta forma que ele nos

149
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. p. 185.
150
Sobre os usos e críticas de Teresa de Lauretis a respeito do termo “queer”, ver DE LAURETIS,
Teresa. The Practice of Love: Lesbian Sexuality and Perverse Desire. Indiana University Press, 1994.
151
BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. p. 2.
submete. Esta é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos
clá ssicos de coerçã o, pois violência de uma regulaçã o social que internaliza uma
clivagem, mas clivagem cuja ú nica funçã o é levar o eu a acusar si mesmo em sua
pró pria vulnerabilidade. Desta forma, a melancolia aparece como uma das
mú ltiplas formas, mas a mais paralisante, de aceitar ser habitado por um
discurso que, ao mesmo tempo, nã o é meu mas me constitui. O poder nunca
conseguiria se impor sob a forma da sujeiçã o se nã o se apropriasse de um
princípio de abertura que constitui todo e qualquer sujeito.
O conceito de melancolia utilizado por Judith Butler vem de Freud. Neste
ponto, seu recurso a um texto de Freud, intitulado “Luto e melancolia”, é
fundamental. Ele será retomado como eixo de um de seus livros mais
importantes: The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. Butler vê, na
descriçã o freudiana sobre o luto e a melancolia, o regime geral de constituiçã o de
identidades sociais, em especial de identidades de gênero. Pois: “a identificaçã o
de gênero é uma forma de melancolia na qual o sexo do objeto proibido é
internalizado como uma proibiçã o”.152 Desta forma, uma teoria da constituiçã o
do Eu aparece como fundamento para reflexõ es éticas e políticas.
Se formos ao texto de Freud, veremos como um dos seus méritos está em
sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexã o
mais ampla sobre as relaçõ es amorosas. Freud sabe que o amor nã o é apenas o
nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos
de formaçã o da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as
verdadeiras relaçõ es amorosas colocam em circulaçã o dinâ micas de formaçã o da
identidade, já que tais relaçõ es fornecem o modelo elementar de laços sociais
capazes de socializar o desejo, de produzir as condiçõ es para o seu
reconhecimento. Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a
fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Por outro lado, isto nos explica porque Butler dirá : “nenhum sujeito emerge sem
um vínculo passional com esses com os quais ele ou ela é fundamentalmente
dependente”.153
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo: esta é,
para Freud, a base da experiência que vincula luto e melancolia. No entanto, o
melancó lico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do
sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse
contra si pró prio, através de autorrecriminaçõ es e acusaçõ es. Há uma
“reflexividade” na melancolia através da qual eu me tomo a mim mesmo como
objeto, clivando-me entre uma consciência que julga e outra que é julgada. Como
se houvesse uma base moral para a reflexividade, tó pico que Butler encontrará
em autores como Hegel e Nietzsche. Principalmente, como se houvesse uma
violência em toda reflexividade. Uma reflexividade que acaba por fundar a
pró pria experiência da vida psíquica, de um espaço interior no qual, como dizia
Paul Valéry, eu me vejo me vendo, criando assim uma estrutura de topografias
psíquicas. Tal violência, que encontra em certos regimes de discurso ético sua
expressã o mais bem-acabada, será o ponto de partida deste Relatar a si mesmo.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade,
uma identificaçã o de uma parte do Eu com o objeto abandonado de amor. Tudo
se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a
152
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. p. 80.
153
BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. . p. 7.
melancolia fosse a continuaçã o desesperada de um amor que nã o pode lidar com
a situaçã o da perda. Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo
colocar em questã o o pró prio fundamento da minha identidade. Mais fá cil
mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da
autoacusaçã o patoló gica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado. Daí
uma afirmaçã o como: “Freud identifica consciência elevada e autorreprimendas
como signos da melancolia com um luto incompleto. A negaçã o de certas formas
de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito assigna um luto
incompleto e nã o resolvido”.154 Assim, a sujeiçã o do desejo pode se transformar
em desejo por sujeiçã o. Butler insiste como tal vínculo melancó lico a um objeto
perdido funda a pró pria identidade do Eu, seu valor e seu lugar. É desta forma
que as identidades em geral sã o constituídas.

A importância ética da cegueira

Através desta teoria da melancolia como dispositivo de constituiçã o da


vida psíquica pelo poder, Butler pode expor o tema de como somos atravessados
por objetos que nã o conseguimos completamente integrar e que podem se voltar
contra nó s em uma reflexividade violenta e paralisante. Estes objetos
demonstram como nossa constituiçã o como sujeito de nossos atos é
indissociá vel da permanência de vínculos libidinais que aparecem a nó s de
maneira opaca, desestruturando a todo momento nossas identidades e as
narrativas que construímos sobre o que somos e quem somos. Daí uma ideia
importante como: “Se exijo ‘ter’ uma sexualidade, entã o isto poderia parecer que
uma sexualidade é o que está aqui para ser chamada de minha, para possuir
como um atributo. Mas e se sexualidade é o meio através do qual sou
despossuído?”.155 Ou seja, se há algo na experiência sexual que sempre parece
nos colocar diante de objetos que nos desestruturam, que nos despossuem, entã o
integrar o que tem a força de nos despossuir pode ter uma consequência política
importante. Pois isto significa reconhecer minha dependência em relaçã o ao que
nã o controlo. Nã o se trata apenas de um abandono de uma noçã o autá rquica de
autonomia em direçã o a uma forma mais elaborada de relacionalidade, ou seja,
de reconhecimento da natureza relacional do sujeito em sua agência. A ideia de
uma natureza relacional nã o capta o que significam as consequências da
compreensã o de que: “como corpos, estamos fora de nó s mesmos e somos para
outro”.156 Pois a principal consequência é a consciência de uma vulnerabilidade
estrutural pró pria à nossa condiçã o que pode fundar aquilo que um dia Derrida
chamou de “heteronomia sem sujeiçã o”.157 Heteronomia que aparece, por
exemplo, nã o como sujeiçã o à s normas dos modos de falar de si pró prios à
linguagem – sujeiçã o ao Outro como estrutura linguística ou como sombra de um
objeto internalizado de forma melancó lica – mas como abertura ao que
desconstitui minha narrativa de mim mesmo, quebrando com isto o vínculo
clá ssico entre ipseidade e narratividade.158 Butler está disposta a tirar as
154
BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection.. p. 23.
155
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004. p. 16
156
BUTLER, Judith. Precarious life: The Powers of Mourning and Violence. Londres: Verso, 2004. p.
27.
157
DERRIDA, Jacques. Voyous. Paris: Galilée.
158
“Minha intenção não é subestimar a importância do trabalho narrativo na reconstrução de uma vida
que, de modo geral, sofre de fragmentação e descontinuidade. Não se deve subestimar o sofrimento que
consequências éticas do fato de sermos sujeitos atravessados por relaçõ es
inconscientes que nunca serã o objetos de uma articulaçã o consciente plena. A
principal delas é afirmar a necessidade da morte de um certo tipo de sujeito: “um
sujeito que, para começar, nunca foi possível; a morte de uma fantasia do
domínio impossível, e por isso uma perda daquilo que nunca se teve. Em outras
palavras, uma afliçã o necessá ria”.159
Esta perda de um controle subjetivo que nunca tivemos permitiria
transformar a consciência da vulnerabilidade e da dor que sentimos diante de
objetos perdidos em elemento fundamental para a constituiçã o da açã o política.
Pois podemos temer tal vulnerabilidade, o que terá consequências evidentes:

Quando o luto é algo a ser temido, nossos medos podem nos levar ao
impulso de resolver isto rapidamente, bani-lo em nome de uma açã o
investida com o poder de restaurar a perda ou retornar ao mundo na sua
antiga ordem ou ainda revigorar a fantasia de que o mundo estava
anteriormente ordenado.160

Ou seja, quando nã o sabemos como se deixar habitar pela virtualidade de


objetos que nã o estã o mais em um regime identitá rio de presença (como o luto é
capaz de fazer), entã o entramos em um ló gica da restauraçã o e do retorno com
consequências políticas catastró ficas. Mas quando temos a força de compreender
como seremos sempre habitados por objetos que quebram a mestria da
presença, entã o poderemos caminhar em direçã o a:

uma certa leitura pó s-hegeliana da cena do reconhecimento em que


precisamente minha opacidade para comigo mesma gera minha
capacidade de conferir determinado tipo de reconhecimento aos outros.
Seria talvez uma ética baseada em nossa cegueira comum, invariá vel e
parcial em relaçã o a nó s mesmos.161

É possível falar em ética porque minha opacidade em relaçã o a mim


mesmo é uma forma de abertura à quilo que, no outro, implica-me sem que eu
possa controlar, abertura à quilo que, no outro, desfaz minhas ilusõ es de
autonomia e controle. O que se constitui assim nã o é a confirmaçã o de uma
espécie de comunidade moral previamente assegurada em sua segurança
transcendental. Se o sujeito moral sempre foi vinculado à ideia de ser capaz de
possuir a si mesmo, de submeter o desejo patoló gico à vontade racional
enquanto expressã o da minha capacidade de me autolegislar, com Butler o
sujeito moral aparece claramente como aquele capaz de assumir uma
“heteronomia sem sujeiçã o”, de se impulsionar a uma processualidade contínua

pertence às condições de dissociação. As condições de hipercontrole, no entanto, não são mais


salutares do que as condições de fragmentação radical” (BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica
da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 72).
159
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
p. 88.
160
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo : crítica da violência ética. Belo Horizonte : Autêntica, 2015.
p. 30.
161
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo : crítica da violência ética. Belo Horizonte : Autêntica, 2015.
p. 60.
pró pria ao que nã o se estabiliza completamente em imagem alguma da vontade.
Daí a necessidade de lembrar que:

sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primá ria, uma angú stia,
sem dú vida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados,
reivindicados, vinculados ao que nã o somos, mas também de sermos
movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nó s mesmos em outro lugar e,
assim, abandonamos o “eu” autossuficiente como um tipo de posse.162

Foi tal compreensã o que levou Butler a desenvolver sensibilidade à s


relaçõ es entre poder e visibilidade, ou seja, à maneira como o poder se impõ e,
criando mú ltiplas formas de zonas de invisibilidade nas quais os nomes que aí
circulam sã o formas de exclusã o e, principalmente, formas de desafecçã o, nomes
que procuram impedir qualquer tipo de vínculo de identificaçã o afetiva. Isto
permite a Butler operar como quem diz: dos travestis e queers aos palestinos
apá tridas e aos prisioneiros de Guantá mano – um só problema.

162
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.
171.
Falar de sexo
Aula 15

Na aula de hoje, continuamos nossa discussã o a respeito das dinâ micas


contemporâ neas de transposiçã o direta das falas sobre sexo para o campo das
lutas sociais. Na aula passada, vimos a consolidaçã o do gênero como dispositivo
central das modalidades contemporâ neas de articulaçã o entre sexo e lutas
sociais. Como havia afirmado, “gênero”, tal como usado atualmente, é um termo
que nasce no discurso médico a partir da Segunda. Quando John Money cunhou o
termo pela primeira vez, seu horizonte de atuaçã o visava poder intervir nos
corpos (em especial hermafroditas ou intersexo) a fim de conformá -lo a uma
ordem biopolítica que nos é hegemô nica. É apenas com o desenvolvimento das
discussõ es a respeito das teorias queers que o termo perde progressivamente
sua natureza médica e passa a designar dinâ micas sociais de crítica e contestaçã o
à ordem sexual.
Por essa razã o, achei por bem privilegiar nesse momento o pensamento
de Judith Butler a respeito do que está em jogo nos problemas de gênero. Ao
privilegiar a reflexã o de Judith Butler, procurei insistir em dois pontos. Primeiro,
tratava-se de mostrar como a categoria de gênero nã o traz necessariamente em
si a consolidaçã o do problemas da identidade social como dispositivo central de
reconhecimento e emancipaçã o. Como vimos, Butler insiste como ter um gênero
nã o é uma operaçã o solipsista, mas relacional. Uma relacionalidade que implica
abertura e transformaçã o em relaçã o a determinaçõ es de identidade que pode
ser claramente posta ema afirmaçõ es como:

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao


ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientaçã o para a
primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nó s somos
sempre algo mais, e algo outro, do que nó s mesmos.163

Ou seja, tornar-se um gênero é indissociá vel de dinâ micas que levam a


desorientaçã o de nossas identidades supostas. Isto nos levou ao segundo ponto,
a saber, como tais lutas sociais se realizam em uma reflexã o sobre a natureza
ética dos processos de reconhecimento. Ou seja, trata-se de lembrar do potencial
ético dos processos de reconhecimento que desorientam a primeira pessoa do
singular. Mas nã o se trata simplesmente de reconhecer a natureza social do Eu
em um rede de interaçõ es intersubjetivas. O que está de fato em jogo é a
compreensã o e como o reconhecimento daquilo que foi retirado da dimensã o
normativa do humano, ganhando o contorno de corpos invisíveis, abjetos,
inumanos tem forte potencial de transformaçã o dos vínculos sociais. Daí
afirmaçõ es como:

sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primá ria, uma angú stia,
sem dú vida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados,
reivindicados, vinculados ao que nã o somos, mas também de sermos
163
BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004, p. 25.
movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nó s mesmos em outro lugar e,
assim, abandonarmos o “eu” autossuficiente como um tipo de posse.164

Pois o outro que tem a capacidade de nos desfazer nã o é aquele que


aparece “como nó s”, mas aquele que nos desfaz por levar-nos a reconhecer algo
que tivemos que expulsar para nos adaptarmos a certas normatividades sociais
que definem a normalidade, o tolerá vel
Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa discussã o através da
apresentaçã o de certos aspectos do trabalho de Paul B. Preciado. Trabalho esse
que desenvolve certa genealogia contemporâ nea das relaçõ es entre sexo e
dominaçã o social que tem como horizonte a tematizaçã o de dinâ micas de lutas
políticas e de reconstruçã o política de si.

A era farmacopornográfica

As mudanças do capitalismo a que vamos testemunhar se caracterizarã o


nã o só pela transformaçã o do ‘sexo’, do ‘gênero’, da ‘sexualidade’, da
‘identidade sexual’ e do ‘prazer’ em objetos de gestã o política da vida
(como Foucault já havia intuído em sua descriçã o biopolítica dos novos
sistemas de controle social), mas também pelo fato de que esta gestã o em
si mesma será levada adiante por meio das novas dinâ micas do
tecnocapitalismo avançado, da midia global e das biotecnologias (...) As
técnicas necropolíticas da guerra progressivamente se tornarã o
indú strias biopolíticas para produçã o e controle de subjetividades
sexuais165.

Com afirmaçõ es dessa natureza, Preciado procura descrever uma histó ria
material de processos de produçã o e controle de subjetividades a partir da
normatizaçã o de suas sexualidades. Tal histó ria articula necropolítica e
biopolítica, pois ela nasce com as guerras mundiais. Na verdade, as guerras
aparecem como: “laborató rios privilegiados para a experimentaçã o em escala
global de drogas pesadas, estupros em massa, serviços sexuais obrigató rios nã o
remunerados e implementaçã o de programa de extermínio tecnobiopolítico”166.
Ou seja, laborató rio para o aprofundamento de gestã o libidinal das populaçõ es e
normatizaçã o. Normatizaçã o essa que passará pela descriçã o do
aprofundamento tecnoló gico do controle sobre os corpos. A esse campo
tecnoló gico de intervençã o nos corpos, Preciado dará o nome de
“farmacopornografia”. O termo alude a uma junçã o entre regulaçã o
farmacoló gica dos corpos e incitaçã o de desejos através do desenvolvimento
exponencial da indú stria pornográ fica. Uma espécie de sexdesign, que passa pela
invençã o da pílula anticoncepcional (as moléculas farmacêuticas mais usadas da
histó ria da humanidade) e pela transformaçã o da indú stria pornográ fica na
maior produtora de imagens de nosso sistema midiá tico, aparece como um dos
eixos fundamentais de sujeiçã o social. Pois, dentro dessa perspectiva, a
pornografia é sobretudo uma forma de vigilâ ncia e controle dos afetos e corpos.

164
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.
171.
165
PRECIADO, Paul; Testo Junkie p. 27
166
Idem, p. 331
Consolida-se assim uma série de novas tecnologias do corpo e da representaçã o
que permitem o aprofundamento de processos de controle que nã o se colocam
do exterior, mas que se diluem no pró prio corpo, criando o que poderíamos
chamar de “somatécnicas”. Daí colocaçõ es como:

Nossa economia mundial depende da produçã o e circulaçã o de centenas


de toneladas de esteroides sintéticos e ó rgã os, fluidos e células
(tecnossangue, tecnoesperma, tecno-ó vulo etc.) tecnicamente
modificados; depende da difusã o global de um fluxo de imagens
pornográ ficas; depende da elaboraçã o e distribuiçã o de novas variedades
de psicotró picos sintéticos legais e ilegais (bromazepam, Special k, Viagra,
speed, cristal, Prozac, ecstasy, poppers, heroína); depende do fluxo de
sinais e circuitos digitais de informaçã o; depende de que todo o planeta se
renda a uma forma de arquitetura urbana em que megacidades
miserá veis convivem com alta concentraçã o de capital sexual167.

Essas afirmaçõ es visam tanto lembrar o cará ter protético das


subjetividades contemporâ neas, ou seja, sujeitos que regulam suas funçõ es
orgâ nicas e a sua vida desejante através do uso reiterado de fá rmacos de toda
natureza e de modalidades de consumo de pornografia e imagens, quanto
lembrar de como esses setores sã o fundamentais para a extraçã o da mais-valia,
para a valorizaçã o contínua do Capital. Ao falar dos processos de internalizaçã o
da norma, Foucault pensava principalmente em dispositivos morais derivados do
modelo do Panopticon, de Jeremy Bentham. Dessa forma, desenvolve-se uma
espécie de instâ ncia moral de observaçã o que os sujeitos confundem com o
campo de produçã o de ideais de conduta. No entanto, Preciado insiste em um
processo suplementar que passa por intervençõ es nã o exatamente morais mas
corporais. No entanto, nã o estamos mais no modelo das puniçõ es corporais,
como vemos ainda na psiquiatria do século XIX:

Agora, o poder atua por meio de moléculas incorporadas ao nosso sistema


imunoló gico, o silicone toma a forma de seios, neurotransmissores
alteram nossas percepçõ es e comportamentos; hormô nios produzem seus
efeitos sistêmicos sobre a fome, o sono, a excitaçã o sexual, a agressividade
e a decodificaçã o social da nossa feminilidade e masculinidade168.

Esse processo é , ao mesmo tempo, o aprofundamento de uma dinâ mica


de vigilâ ncia social e de reconfiguraçã o dos processos de extraçã o da mais-valia,
que agora migram também para a relaçã o com nossos corpos e afetos. Como
lembrará Preciado:

a indú stria do sexo nã o só é o mercado mais rentá vel da internet: é


também o modelo de rentabilidade má xima do mercado cibernético
global – só compará vel à especulaçã o financeira: investimento mínimo,
venda direta do produto em tempo real e formato ú nico, satisfaçã o
imediata para o consumidor169.

167
Idem, p. 36
168
Idem, p. 86
169
Idem, p. 42
Essa alta rentabilizaçã o com mínimo de investimento, esse modelo de
empregabilidade no qual os fornecedores de trabalho aparecem como
empreendedores de si, sem vínculo algum ao que um dia foi chamado de
“emprego” forneceria um modelo para todas as outras formas de produçã o sob o
capitalismo avançado.
No entanto, as raízes dessa sexopolítica nã o devem ser procuradas nas
modificaçõ es tecnoló gicas do capitalismo a partir da Segunda Guerra, com sua
generalizaçã o de prá ticas de intervençã o de corpos submetidos à guerra para
toda a populaçã o. Na verdade, Preciado segue Foucault e define o século XIX e
sua consolidaçã o de uma clínica do sexual como momento decisivo para o
desenvolvimento de formas sociais de controle e disciplina que passam pela
regulagem do sexual. A esse respeito, Preciado lembra dos processos de
histerizaçã o do corpo feminino, de desenvolvimento do higienismo com sua
pedagogia sexual em relaçã o as crianças, de implantaçã o das perversõ es e de
regulaçã o das condutas de procriaçã o.
Dentro desses processos, o eixo fundamental é dado pelo fortalecimento
da heteronormatividade com toda a patologizaçã o dirigida aos comportamentos
ditos desviantes.

Política do hackeamento

Diante desse horizonte, Preciado defende uma espécie de reapropriaçã o do


aparato técnico-farmacoló gico para usos subversivos. Ou seja, trata-se de
assumir por desvio a condiçã o de seres protéticos, utilizando-se dos processos
de disciplina e intervençã o corporal como se se tratasse de alguma forma de
“pirataria” de gênero. Pois se trata de defender que certa potência libidinal, que
Preciado pensa a partir de apropriaçõ es da noçã o de potencia em Spinoza, é
destruída pela consolidaçã o biná ria de gênero. Daí afirmaçõ es como:

Homens e mulheres sã o unidades isoladas, criaturas condenadas a uma


autovigilâ ncia e a um autocontrole constantes por um rígido sistema de
classe-sexo-gênero-raça. O tempo que devotam à disposiçã o política de
suas subjetividades é compará vel à extensã o total de suas vidas. Uma vez
que toda sua vitalidade foi utilizada no trabalho de reduçã o da pró pria
multiplicidade somá tica, tornaram-se seres fisicamente fragilizados,
incapazes de encontrar qualquer satisfaçã o na vida, politicamente mortos
antes de terem deixado de respirar170.

Notemos dois traços políticos importantes. O primeiro é certa tendência a


privilegiar dimensõ es de açõ es sobre si. Nã o por outra razã o, Testo Junkie, um
dos principais livros de Preciado, apresenta uma escrita híbrida na qual
encontramos aná lise sobre a consolidaçã o das estruturas farmacopornográ ficas
e descriçõ es na primeira pessoa onde seguimos a transformaçã o de Beatriz
Preciado em Paul Preciado. A construçã o textual é clara. Trata-se de expor as
açõ es sobre si como um campo privilegiado da açã o política. Daí a proliferaçã o
do discurso na primeira pessoa do singular, como se fosse o caso de expor

170
Idem, p. 148
sistemas de implicaçã o que poderiam definir um espaço, imediatamente efetivo,
de açã o política ao alcance de todo indivíduo:

Trata-se de saber se o que queremos é mudar o mundo para experimentá -


lo com o mesmo sistema sensorial que temos, ou se é preciso mudar
nosso corpo como filtro somá tico da percepçã o através do qual passa o
mundo171.

Preciado insistirá em um princípio de autocobaia: “”quando se quer ser


médico, é preciso querer ser cobaia”. Isso ainda implica em criticar o monopó lio
dos biocó digos de produçã o de subjetividade, hoje controlado pelas
multinacionais farmacêuticas e pelos estados-naçã o.
Nesse sentido, tais reflexõ es se inserem em certa tendência
contemporâ nea de transformaçã o do que antes era considerado esfera da
intimidade como campo privilegiado de atuaçã o política. Essa estratégia deixa
questõ es que merecem reflexã o. Pois poderíamos nos perguntar sobre a força
política de açõ es sobre si indexadas a partir do uso extensivo do pronome
pessoal da primeira pessoa. Da mesma forma como é possível questionar a
naturalidade de dispositivos de subjetivaçã o que tem como objetivo a
classificaçã o e determinaçã o dos corpos e afetos, da mesma forma que podemos
problematizar a maneira com que dispositivos tecnoló gicos e representacionais
foram mobilizados para determinar a sexualidade possível, podemos
problematizar a maneira com que ilusõ es autá rquicas da individualidade
moderna permanecem, ilusõ es de autonomia e deliberaçã o permanecem quando
indexamos a açã o política a partir do uso extensivo do pronome pessoal da
primeira pessoa do singular.
Mas o outro aspecto consiste em operar de forma privilegiada com uma
versã o do que poderíamos chamar de política de detournement que nã o deixa de
ter uma de suas raízes na estética punk e seu desvio de objetos militares e
violentos para uma posiçã o anarquista. Ela fica clara, por exemplo, em
afirmaçõ es como:

A pornografia diz a verdade performativa sobre a sexualidade nã o por ser


o grau zero da representaçã o, mas porque revela que a sexualidade é
sempre performance, prá tica pú blica de uma repetiçã o regulada, uma
encenaçã o, bem como um mecanismo involuntá rio de conexã o ao circuito
global de excitaçã o-frustraçã o-excitaçã o (...) A indú stria cultural tem
inveja da pornografia. A pornografia nã o é simplesmente uma indú stria
cultural entre outras: é o paradigma de toda a indú stria cultural172.

Ou seja, há algo que a pornografia revela sobre toda forma de sexualidade,


a saber, seu regime de performance, sua dinâ mica de excitaçã o-frustraçã o. Mas
se ela releva uma verdade performativa, entã o nã o se trata de caminhar em
direçã o a um grau zero da representaçã o. Trata-se de desviar essa performance
em direçã o à quilo que ela procuraria negar, invertendo seus operadores. Pois
seria, ao menos para Preciado, impossível caminhar em direçã o a uma
sexualidade nã o-pú blica, obter um corpo privado e nã o industrializado. Antes:
171
Idem, p. 253
172
Idem, p. 287
Trata-se de inventar outras formas comuns, compartilhadas, coletivas e
copyleft de sexualidade que superem o estreito â mbito da representaçã o
pornográ fica dominante e o consumo sexual padronizado173.

Isso pode passar por transformar aqueles que foram objetificados em


sujeitos, criar uma superexposiçã o e supervisibilidade, usar a linguagem
pornográ fica para desestabilizar os có digos da pornografia. Nesse sentido, tais
prá ticas encontram certas tendências estéticas representadas em artistas como
Bruce LaBruce, Annie Sprinkle, Virginie Despentes, entre outras. Em muitos
desses casos, encontramos uma estética feita de alegorias, trá fico de signos,
recodificaçã o de có digos normativos que o feminismo tradicional julgava
impró prio à feminilidade. Daí um tipo de crítica da crítica da pornografia como:

As feministas abolicionistas pedem ao Estado para regular a


representaçã o da sexualidade, concedendo grande poder a uma
instituiçã o patriarcal cujo objetivo histó rico sempre foi a sujeiçã o do
corpo feminino e o reforço do olhar e do prazer masculinos. Os resultados
perversos do movimento antipornografia ficaram evidentes no Canadá ,
onde, ao se aplicarem medidas de controle da representaçã o da
sexualidade seguindo critérios feministas, os primeiros filmes e
publicaçõ es censuradas foram os procedentes de sexualidades
minoritá rias – especialmente as representaçõ es lésbicas, pela presença de
dildos, e as sexualidade sadomasoquistas, que a comissã o estatal
considerava violentas e nocivas para as mulheres. Por outro lado, as
representaçõ es estereotipadas da mulher no pornô heterossexual nã o
foram censuradas pela comissã o174.

Dessa forma, configura-se uma prá tica política que acaba por levar as
lutas sociais a um espaço que, até entã o, era ocupado pela clínica, a saber, o
espaço da açã o sobre si a partir dos deslocamentos e apropriaçõ es operadas
sobre có digos e dinâ micas criadas inicialmente para o aprofundamento da
sujeiçã o social.

173
Idem, p. 288
174
Idem, p. 357
Falar de sexo
Aula 16

Gostaria de terminar nosso curso falando de David Cronemberg. Essa escolha


tem uma razã o de ser. Foucault costumava dizer que o ocidente nã o inventou
uma ars erotica, ou seja, um discurso sobre o sexual que nã o se acomodaria à s
prescriçõ es normativas da clínica ou da ordem jurídica. Nó s vimos em nosso
curso como o século XX mobilizou a capacidade produtiva da arte para falar da
disparidade entre o sexual e suas possibilidades de inscriçã o na vida social.
Disparidade essa que produziu algo como uma experiência trá gica do sexual.
Bem, é sobre isso que gostaria de falar a partir do cinema de David Cronemberg.
Quem acompanha o cinema de David Cronenberg sabe como suas
imagens sã o atravessadas por corpos animados por um gozo que lhes leva aos
limites da decomposiçã o. Sã o corpos em contínua mutaçã o de suas formas, de
seus limites, de suas propriedades. Corpos que se tornam objetos de intervençã o
de toda ordem, de utopias mú ltiplas de junçã o entre o maquínico e o humano,
mas intervençõ es que normalmente sã o obras do acaso ou expressam a
insubmissã o do gozo à vontade, expressam o desajuste contínuo das má quinas.
Daí porque em tantos momentos nos deparamos em seus filmes com o tó pico
clá ssico da mutaçã o que sai do controle. Como se houvesse algo da ordem de um
encontro impossível que nã o apenas transforma, mas coloca os corpos em uma
dinâ mica de errâ ncia que deve a todo momento lidar com empuxos à auto-
destruiçã o.
Essa auto-destruiçã o aparece como destino, em vá rios momentos de seus
filmes, porque nã o há ordem social atual que possa dar lugar à insubmissã o dos
corpos. Sã o mú ltiplas as cenas de seus filmes que mostram a procura em criar
laços sociais que se coloquem à margem da vida social hegemô nica. A
comunidade de cultuadores de acidentes automotivos, de Crash, o grupo de
jogadores de videogame, de eXistenZ, a igreja cató dica, de Videodrome. Sã o
sempre novos laços que nã o se sustentam por muito tempo porque nó s mesmos
fazemos parte daquilo que deveria ser destruído. O que Max Renn, o protagonista
de Videodrome, mostra ao final do filme, quando, em uma espécie de assunçã o de
missã o político-teoló gica, enuncia: “Vida longa à nova carne”, levanta a arma que
tem nas mã os e atira contra sua pró pria cabeça.

A utilização deslocada das formas

Essa consciência de que somos o lugar no qual opera o gesto violento de recusa
de nó s mesmos perpassa, principalmente, a forma de seu cinema ou, ainda,
perpassa a relaçã o de Cronenberg com o cinema. Aquilo que é apresentado na
dimensã o do conceito também se realiza nas mú ltiplas dimensõ es da forma. Pois
sabemos como, em larga medida, Cronenberg passou à histó ria do cinema como
alguém que levou ao extremo o que poderíamos chamar de utilização deslocada
das formas. A grande maioria de seus filmes desenvolve-se forçando os limites
das formas estabelecidas pela tradiçã o da histó ria do cinema. Eles se aproveitam
de estruturas narrativas desgastadas de gêneros, como o horror, o filme de açã o
ou a ficçã o-científica, a fim de perverter suas referências centrais. Como diz o
pró prio Cronenberg: "Eu ‘protegi’ meus filmes através do gênero ".
Neste sentido, o melhor exemplo continua sendo  A mosca:
um remake aparentemente banal de um dos clá ssicos do gênero e que se
transforma na histó ria da lenta agonia da perda de identidade através da
mutaçã o do corpo, impulsionada pela emergência de um gozo que se desdobra
nos limiares da confusã o entre humanidade e animalidade. No filme,
acompanhamos o cientista Seth Brundle a começar com o desejo de
desmaterializar o corpo e teletransporta-lo. Esse desejo de desmaterializaçã o
será o disparador de um processo no qual vemos o protagonista ir da euforia do
encontro com um gozo nunca visto até a consciência desse gozo ser
acompanhado por uma contínua decomposiçã o de si e de sua expulsã o do mundo
dos humanos. O corpo que outrora parecia poder ser desmaterializado desnuda-
se em seu devir animal bruto. Mais uma vez, nã o restará outra coisa que o
suicídio. Um desconhecido filme de 1979, Chromosome III/ The Brood, também
leva esta ló gica ao extremo. Um psiquiatra faz com que seus pacientes somatizem
suas raivas e frustraçõ es. Nola, que acaba de se divorciar, vai mais longe e dá a
luz a uma série de pequenos monstros assassinos que a vingam de seus
familiares. Com este argumento de filme tipo B, Cronenberg cria uma espécie de
Medeia produzida em laborató rio que revela, na maternidade, uma forma bruta
de horror.
Como lembrará o crítico de cinema Serge Grü nberg, com Cronenberg
entramos em um momento da histó ria do cinema na qual a substâ ncia do que era
o “filme B” se torna, por razõ es comerciais, o material dominante175. Esses ditos
filmes B (terror, pornografia, ficçã o científica) parecem a transposiçã o mais
direta ou, se quisermos, uma intervençã o industrial mais direta no circuito
libidinal dos sujeitos. Se a nouvelle vague se caracterizou, entre outras coisas,
pela elaboraçã o a partir dos clichês do cinema de Hollywood (A bout de souffle,
de Godard, é um exemplo privilegiado nesse sentido), tudo se passa como se
Cronenberg representasse uma operaçã o que vai mais baixo, que capta o
subterrâ neo da produçã o cinematográ fica. Subterrâ neo que é, na verdade, o eixo
da produçã o cinematográ fica como negó cio. Para se ter uma ideia, segundo
dados da WebRoot, 68 milhõ es de procuras por dia sã o feitas apenas nos EUA
para acessar filmes pornográ ficos. Uma indú stria que mobiliza U$ 97 bilhõ es por
ano. A título de comparaçã o, o maior lucro fornecido por um filme na histó ria do
cinema vem de Avengers: Endgame e Avatar com U$ 2,7 bilhõ es.
Assim, o processo de criaçã o de Cronenberg consistirá em aparentemente
preservar a linguagem cinematográ fica, utilizando-se de elementos vindos
diretamente dos setores mais industrializados e fetichizados de sua produçã o.
eXitenZ se apropria do universo dos videogames, Videodrome se apropria dos
snuff-movies e coloca Debbie Harry, a cantora do Blondie, como protagonista
sadomasoquista. Vá rios sã o os filmes que partem do universo do cinema de
terror. Quem viu Rabid talvez se lembre da atriz principal, Marilyn Chambers: a
mesma das orgias de Atrás da porta verde, o primeiro sucesso de bilheteria,
juntamente com Garganta Profunda, da entã o emergente indú stria pornográ fica.
Mas essa preservaçã o visa, na verdade, a exposiçã o de como a linguagem
cinematográ fica está doente. Daí essa ideia de Grü nberg de dizer que, com
Cronenberg, encontramos o “grande cinema doente”176. Nesse sentido, vale a

175
GRUNBERG, Serge ; David Cronenberg : Entretiens avec Serge Grunberg, Paris : Editions du
Cahiers du Cinema, 2000, p. 32
176
idem, p. 35
pena lembrar de Rabid, de 1977 porque ele é, acima de tudo, uma espécie de
vingança, de reversã o cinematográ fica. Anos antes, Chambers tinha sido
sequestrada, levada a um clube chamado Porta Verde, para terminar livrando-se
de suas resistências e participando de uma orgia na qual ela era penetrada por
todos. Em Rabid, ela passa por uma cirurgia que acabará por lhe fornecer uma
espécie de pênis violento que sai de uma cavidade em sua axila e penetra o corpo
de todos e todas, inoculando uma sede incontrolá vel de sangue. “A” atriz porno
agora inverte os papéis, sai de sua cena original e, enquanto goza, contamina a
todxs com o descontrole que alcança o canibalismo. Como se a industrializaçã o
global do sexo produzida pelo advento da indú stria pornográ fica hardcore no
início dos anos setenta, como se essa dessublimaçã o repressiva que agora nã o
precisava mais se esconder em salas escuras, fosse necessariamente produzir
algo que as imagens fetichizadas nã o seriam mais capazes de controlar.

Figuras de corpos insubmissos

Nesse sentido, nã o é um acaso que o ponto mais sensível dessa gramá tica
industrial de nossos desejo diga respeito exatamente a sexualidade e que seja
exatamente por esse caminho que as anomalias começam e contagiam. Um pouco
como os protagonistas de Gêmeos, que sã o empurrados para fora de seus
circuitos controlados de médicos ginecologistas e pesquisadores do corpo
feminino devido ao encontro com Claire Niveau, uma mulher que tem uma
anomalia rara no ú tero e uma sexualidade sadomasoquista explosiva. Esse
encontro modifica o sistema de partilha e as distinçõ es de personalidade entre os
dois irmã os gêmeos, leva-os a uma luta entre o descontrole de si e a tentativa
violenta de reinstaurar o controle, nem que seja remodelando o corpo feminino
através de instrumentos cirú rgicos para mulheres mutantes. Ao final, os dois
irmã os se decompõ em e se suicidam.
Lembremo-nos como nesses filmes nã o há espaço para o erotismo, com
seus acordos tá citos de procura por um prazer cada vez mais completo e
harmonioso. O prazer se submete ao cá lculo, ao ajuste, à enunciaçã o consciente e
o cuidado de si. O que temos aqui é, ao contrá rio, algo que sempre acaba por
quebrar tal ordem econô mica. Na verdade, nã o há espaço sequer para algo
parecido à pornografia com sua funcionalizaçã o e ritualizaçã o das imagens do
sexual. Fato que Jacques Rancière entendeu muito bem ao dizer, a respeito de
Crash:

Ao negar o ró tulo pornográ fico aplicado a seu filme, Cronenberg opõ e suas
cenas sexuais à s habituais histó rias de amor e de seduçã o do cinema, que
no fundo, diz ele, sã o cenas de estupro. Poderíamos responder que a
histó ria de amor tem isto, de fato, em comum com a crueldade sá dica, que
ela está sempre, por menos que seja, fundada na desigualdade de dois
desejos. O que define ao contrá rio a cena pornográ fica é a pressuposiçã o
de que os atos de um sã o precisamente o objeto do desejo do outro. Assim,
a pornografia ilustra à sua maneira a versã o liberal do contrato social. Isso
se dá porque ela desenvolve seu império visual ao ritmo da evoluçã o do
neoliberalismo consensual177.
177
RANCIÈRE, Jacques; “O avião em terra firme”, Folha de São Paulo, 26/01/1997
Há uma historieta sintomá tica a este respeito. No começo de sua carreira,
Cronenberg precisava de dinheiro e resolveu fazer um teste para filmar filmes
eró ticos. Tempos depois, o produtor o chama no canto e diz, meio sem graça:
"Nó s sabemos que você tem um senso muito desenvolvido da sexualidade, só nã o
sabemos de que tipo ele é". O que nã o poderia ser diferente, já que vemos, na
verdade, um gozo obsceno, mas em um sentido radicalmente distinto de
“obscenidade”. Nã o nos sentido pretensamente moral, mas no sentido visual:
algo fora da cena, algo que nã o compõ e uma cena, algo que quebra essa “versã o
liberal do contrato social” com sua economia da produçã o. Algo que, na verdade,
é profundamente improdutivo, empurra sujeitos para o campo da anti-produçã o.
De certa forma, tal colapso ocorre por que, como dirá Cronenberg em uma
entrevista dedicada a divulgaçã o de Crash: “sexo é um força potente sem
propó sito”. Por ser habitado por essa força potente sem propó sito, já que desde
Freud sabemos que sexo só se submete a imperativos de reproduçã o depois de
um longo processo através do qual a polimorfia infantil é organizada a partir do
primado genital, os corpos serã o insubmissos. Pois nã o há lugar possível de
existência para algo sem propó sito em uma sociedade marcada pela
funcionalizaçã o extensiva de tudo, de todos e todas. Mas a questõ es que talvez
fique é: para onde irã o os corpos insubmissos? Onde eles poderã o habitar?

Colisão e Capital

Quando Crash saiu, o soció logo Robert Kurz escreveu um pequeno texto
polêmico onde tentava desqualificar o filme como se estivéssemos diante de uma
estetizaçã o fetichista do fetichismo da mercadoria, mas uma estetizaçã o marcada
pela reversã o da euforia em imposiçã o melancó lica do acidente. Daí afirmaçõ es
como:

Em "Crash", com toda boa vontade, nã o se entrevê nenhum momento


transcendente. Os personagens sã o tã o pouco dignos de crédito quanto a
realidade. Seria este entã o um filme sobre o fetichismo da modernidade ou
um filme fetichista? Ou quem sabe até uma reflexã o malsucedida sobre o
fetichismo? Talvez se trate, contudo, da arte de mostrar por que uma
consciência do mundo fetichista, cristalizada num vazio crítico absoluto, já
é incapaz de representar segundo os moldes artísticos178.
Essa crítica que denuncia o pretenso “vazio crítico absoluto” de Cronenberg é
sintomá tica. Ela desconhece, por um lado, a força de uma crítica do fetichismo
que passa pela saturaçã o do objeto fetiche e pela destituiçã o de sua segurança
fantasmá tica. Em um dispositivo que já vimos vá rias vezes na histó ria da arte
contemporâ nea, a saturaçã o acaba por produzir a diferença179.
Por outro, ao reduzir o que poderíamos compreender como “momento
transcendente” à exposiçã o de um horizonte radicalmente outro de relaçã o aos
sujeitos e ao mundo, ela acaba por cair em uma mistificaçã o mais grave do que
aquela que ela pretensamente denuncia. Pois ela nos leva a crer que teríamos a
nossa disposiçã o, já na situaçã o atual, as imagens de nossa emancipaçã o, as

178
KURZ, Robert; “O oco do fetichismo”, In: Os últimos combates, Petrópolis: Vozes, 1998
179
Ver a esse respeito, por exemplo, a interpretação sobre Death in America, de Andy Warhol, feita por
FOSTER, Hal; The return of the real, MIT Press, 1997
imagens da vida liberada dos resultados da colonizaçã o da imaginaçã o social
pelos processos de reproduçã o material do capitalismo. Imagens essas que
teriam, por magia, a capacidade de se preservar da contaminaçã o pelo fetiche em
uma era exatamente marcada pela sua generalizaçã o implacá vel.
Neste contexto, operaçõ es como essas mobilizadas por Cronenberg sã o
profundamente realistas e materialistas. Certamente, ela nã o segue uma outra
via possível: essa marcada pelo empuxo brutal à incomunicabilidade e
desfibramento. Mas ela é realista ao expor que a pura circulaçã o do fetiche nã o é
capaz de sustentar-se em seu pró prio circuito, que ela é obrigada a mover
processos que podem produzir colisõ es, podem transformar colisõ es na forma
bruta de um real, que como lembra Hal Foster a respeito de certos caminhos da
arte contemporâ nea, será a expressã o de um “realismo traumá tico”.
Quando J-G Ballard escreveu Crash, ele afirmava querer inventar uma
nova forma de pornografia. Isto deve ser compreendido como uma nova forma
de escrita da visibilidade exaustiva do desejo. Esta visibilidade exaustiva é a
matéria de Crash. Basta analisar a forma narrativa de um dos primeiros
pará grafos do romance, que se inicia pela fixaçã o de Vaughan por um acidente
automobilístico que teria ocorrido com Elisabeth Taylor:

Na sua visã o de um acidente de carro com a atriz, Vaughan estava


obcecado pelas mú ltiplas feridas e impactos – pelo cromo morrendo e
pelos anteparos em colapso dos dois carros encontrando-se de frente em
um complexo de colisõ es repetidas sem fim em filmes de câ mera lenta,
pelas feridas idênticas infligidas em seus corpos, pela imagem de névoa de
vidro de parabrisa em volta de sua face tal qual ela quebrara sua
superfície tingida como uma Afrodite morta-viva, pela fraturas expostas
de suas coxas impactadas contra os suportes do freio de mã o, e sobretudo
pelas feridas em suas genitá lias, o ú tero dela perfurado pelo bico
herá ldico da marca do produtor, o sêmen dele despejado através do sinais
luminosos que registraram para sempre a ú ltima temperatura e o nível
pleno de gasolina da má quina180.

Notemos o ritmo da descriçã o., sem pausas, uma ú nica frase ocupando todo o
pará grafo. Como se fosse questã o de criar um fluxo contínuo de imagens que
passam dos corpos mortos ao carro reduzido à condiçã o de ferragem. Como se
fosse questã o de um tempo parado pró prio à s colisõ es, essas mesmas colisõ es
que parecem paralisar os fluxos, quebrar os movimentos e produzir uma nova
forma, construída a partir de feridas e impactos. Percebamos essa escrita que
procura fazer do acidente alguma forma possível de encontro entre má quina e
humano. Nã o mais o encontro da má quina como extensã o das habilidades do
humanos, como promessa de desenvolvimento e progresso através do
fortalecimento da capacidade humana em intervir em um mundo desencantado a
partir das exigências da produçã o. O que temos é a “colisã o”, o crash que é o
crash do choque entre carros, mas é também o crash da bolsa de valores e do
colapso da economia.
Mas tentemos levar em conta que crash é exatamente este. Em um texto
para a revista automobilística Drive (Autopia, 1971), Ballard afirma que a
imagem fundamental do século XX nã o é o homem na Lua ou Churchill fazendo o
180
BALLARD, James; Crash, Londres; Fourth Estate, 2009, p. 2
V de vitó ria apó s o fim da Segunda Guerra, mas “um homem em um carro
motorizado, dirigindo em uma auto-estrada de concreto para algum destino
desconhecido”181. A auto-estrada como a pura expressã o do século, com toda sua
velocidade e violência. O que nã o poderia ser diferente, já que se trata de
compreender que o ponto fundamental de uma sociedade é dado pela maneira
com que ela organiza os fluxos e movimentos, a maneira com que ela opera a
circulaçã o. Ou seja, mais importante do que saber o que sociedades trocam, é
saber como elas trocam, em que velocidade, em qual ritmo e intensidade. E o
ritmo automotivo é o ritmo da fricçã o e da velocidade, da aproximaçã o dos
pontos no espaço através de um fluxo aparentemente desimpedido que, em
vá rios pontos, produz colisõ es.
Dessa forma, através do automó vel, Ballard forneceu uma bela metá fora
de uma sociedade fascinada pelo universo da circulaçã o. Tal como os
automó veis, as coisas no interior da vida social, os objetos de nosso desejo
circulam de maneira cada vez mais rá pida até se chocarem. Eles vã o se
equivalendo e criando uma estranha zona de indiferença, de des-identidade, até
que o choque aparece com a força das crises redentoras. Como se o choque fosse
a ú nica coisa capaz de quebrar a indiferença da circulaçã o. A sociedade do
automó vel é a melhor metá fora de uma sociedade para a qual a circulaçã o é o
fato social total. Em pleno momento da ascensã o do automó vel, das cidades
concebidas para o fluxo desimpedido (como Brasília e Los Angeles), momento
anterior a primeira grande crise do petró leo, em plena construçã o de paisagens
automotivas (já que a velocidade constró i paisagens, ela apaga contornos e cria
relaçõ es), Ballard resolve voltar sua atençã o para o que para o fluxo, para o que
congela os corpos em uma cena fria e clínica, como essa que descreve a imagem
que James Ballard (o protagonista do romance) vê logo apó s seu primeiro
acidente de carro, no qual ele se choca com o carro da Dra. Remigton:

Tudo o que eu pude ver foi a junçã o inusual de suas coxas, abrindo-se
para mim em seu jeito deformado. Nã o foi a sexualidade da posiçã o que
ficou em minha cabeça, mas a estilizaçã o dos eventos terríveis que nos
envolveram, os extremos de dor e violência ritualizados nesse gesto de
suas pernas, como a pirueta exagerada de uma garota mentalmente
retardada que uma vez vi representando uma peça natalina em uma
instituiçã o182.

A descriçã o é quase clínica, sem exposiçõ es psicoló gicas de sensaçõ es, a nã o ser
a analogia com algo que, inicialmente, está fora do universo dos investimentos
libidinais, a saber uma pirueta de uma garota com transtorno mental. Como diz o
protagonista, o que lhe faz fixar na cena nã o é a sexualidade da cena, mas a
possibilidade de estilizaçã o do que parece avesso a toda estilizaçã o.
Mas essa frieza é apenas uma forma segunda de recuperar uma
sexualidade que parece lutar para ir em outra direçã o, estranha a direçã o dos
fluxos de libido organizados pelos processos de gestã o de nosso gozo. Pois é uma
sexualidade que procura os pontos de colapso, que procura as colisõ es. Ou que
procura fazer o tempo do sexual quebrar a circulaçã o perfeita da sociedade dos
serviços. Como esse assédio feito por James Ballard com uma aeromoça no
181
Idem, p. 245
182
BALLARD, Crash, p. 14
aeroporto, impulsionado pela forma de suas saias e a fuselagem dos aviõ es.
Sexualidade que parece querer voltar para essas cenas nas quais a má quina, a
tecnologia nã o está mais a serviço dos humanos, mas a serviço do que parece nã o
poder ser reproduzido.

Uma história acidentada

A esse respeito, lembremos de qual é a base narrativa do romance. A histó ria


narra os caminhos do casal Catherine e J-G Ballard em direçã o a um gozo que é
descrito através da frase que terminará o filme: “maybe the next one”. Essa frase
nã o existe no romance. Mas ela é central para o filme. Porque o filme procura dar
uma volta a mais na crítica. Como se entre o início dos anos 70, quando o livro foi
escrito, e 1996, quando o filme aparece, algo tivesse ocorrido. Algo como o fim do
sonho automotivo, as crise do petró leo, o congestionamento ao invés da
velocidade. A paralisia ao invés das promessas de circulaçã o em uma Autobahn
alemã . Como dirá James, no filme, olhando para as marginais ao lado de seu
apartamento: “Parece haver três vezes mais carros agora do que antes do
acidente”. Porque o acidente é uma forma de nos fazer perceber o quanto a
promessa de velocidade se transformou em bloqueio. Assim, se o livro começa
imediatamente descrevendo como Vaughan morre e suas cenas de gozo, o filme
precisa começar com essa impossibilidade materializada no “maybe the next
one”.
Tal impossibilidade é suspensa pela primeira vez quando James
reencontra a mulher daquele que ele matou (Dra. Remington). Eles transarã o
pela primeira vez em um carro em tudo similar à quele que matou seu marido,
isto depois de quase se envolverem mais uma vez em outro acidente. É só dessa
forma que o gozo ocorre pela primeira vez. Depois disso, Remington levará
James para o mundo organizado por Vaughan. Mundo de réplicas de acidentes de
carros com celebridades. Mundo no qual se misturam dois fluxos fundamentais
de libido: as imagens de celebridades que “correm o mundo” em um espaço
aparentemente desimpedido e a circulaçã o de automó veis com suas colisõ es.
Pois nossa sociedade nã o esquece a maneira com que suas celebridades, estes
tipos ideias de conformaçã o fornecidos pela indú stria cultural, parecem
caminhar de maneira irresistível para o choque, para a colisã o.
Em torno dessas encenaçõ es reais há uma espécie de comunidade de
pessoas marcadas e atravessadas em seus corpos pelo prazer do acidente. Uma
outra classe social, pessoas que moram em carros, em casas semi-abandonadas,
Uma outra organizaçã o da vida, frá gil, sem maior perspectiva de duraçã o. Uma
comunidade que faz do acidente uma forma de “reconstruçã o do corpo humano
pela tecnologia”, como dirá Vaughan. Reconstruçã o essa que se faz através da
quebra dos corpos, da quebra de sua unidade, da funcionalidade de seus
membros e ó rgã os, mesmo que, depois do acidente, membros ficarã o
impossibilitados de serem usados, partes do corpo ficarã o submetidas a uma
interaçã o dolorosa com a tecnologia, movimentos aberrantes aparecerã o como
os ú nicos possíveis. Por fim, uma reconstruçã o que se faz através da abertura de
outros cortes, zonas eró genas, orifícios, em uma exposiçã o do corpo libidinal que
pode transbordar para todos os lados no ritmo dos acidentes.
A partir disso, Vaughan entra na vida de Catherine e James, primeiro
através da dimensã o das fantasias. É a presença fantasmá tica dele que permitirá ,
pela primeira vez no filme, que Catherine goze com James. Até entã o, sua relaçã o
aberta, a circulaçã o constante, feita pelos dois, parece nunca levar a encontro
algum. O primeiro encontro efetivo se dará através da confusã o produzida por
Vaughan. Primeiro, confusã o de gênero. Ë através da fala de Catherine forçando a
imaginaçã o de James em direçã o a uma relaçã o homossexual que os dois
conseguem enfim gozar. É se travestindo de Jane Mansfield que o motorista do
pró ximo acidente encenado irá aparecer.
No entanto, essa presença fantasmá tica nã o se sustenta por muito tempo.
Ela pede uma passagem cada vez mais explícita ao ato, como se fosse o caso de
mostrar nã o apenas o aprofundamento através de uma “psicopatologia
benevolente que acena para nó s”, como dirá Cronenberg, mas também um
desgaste. Os acidentes funcionam tanto como simbioses traumá ticas nas quais
ocorrem a mistura entre o vivo e o morto, entre carne e alumínio, entre o
humano e o maquínico, quanto como fetiches. Simbioses nas quais até a morte é
uma ocasiã o para continuar o fluxo de libido e gozo. Nem a morte funciona como
parada.
Mas se trata também de fetiches que atraem e se desgastam. Eles
aumentam em intensidade no mesmo ritmo em que perdem em força. Ao final,
encontraremos James provocando, no carro recomposto que fora outrora de
Vaughan, um acidente com o carro de sua pró pria mulher, que é arremessada
para fora da estrada, semi-morta. Ele realiza aquilo que Vaughan tentava
realizar. Enquanto ela está desfalecendo, enquanto seu corpo estiver entre a vida
e a morte, ele tentará transar com ela. A resposta que ela dará para seu desejo, a
resposta para esse ponto má ximo da encenaçã o fetichista, nã o poderia ser outra :
“Maybe the next time”. E assim termina os sonhos da sociedade da circulaçã o
infinita. Levar esse sonho ao fim é uma das tarefas maiores de todo cinema fiel a
seu conteú do de verdade.

Você também pode gostar