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MIRANDA - de Vladimir Capella

Direção Geral
Rafael de Castro

Músicas originais
Thiago Gimenes

PRÓLOGO – O NASCIMENTO

Tempestade. Escuridão. Relâmpagos clareiam, vez ou outra, um cenário


tenebroso e lúgubre, talvez o cais de um porto em ruínas num século distante.
Tudo silhuetado e pouco definido: um ambiente mais sugerido pela imaginação
do que propriamente visto pelos olhos. Caibros que tombam, árvores que
balançam, vozes que cantam em coro, arrastar de correntes, vento, fumaça.
Pessoas vestidas com capas longas e escuras atravessam o palco num clima de
pânico, carregando coisas, fugindo de algo, puxando redes, etc... Música
grandiosa de terror ou suspense acompanha toda a ação.

MÚSICA 1 – TEMPOS SOMBRIOS (rascunho para uma letra rs)

Ninguém sabe bem ao certo como nasce o horror


Só sabemos que ele chega e espalha toda a dor
São os tempos sombrios
São os tempos sombrios que nós temos que encarar

É como se todo o mal que estava adormecido


Começasse a acordar
É como se um gigante monstruoso
quisesse nos devorar

São os tempos sombrios


São os tempos sombrios que nós temos que encarar

Não adianta fugir, não tem porque se esconder


O perigo não está fora ele vive dentro de você
Vingança, inveja, o ódio e a ambição
Numa guerra que massacra pouco a pouco o perdão

São os tempos sombrios


São os tempos sombrios que nós temos que encarar
Cada um por si se quiser sobreviver
Pegue logo o que encontrar, não tem tempo pra escolher
Nessas horas tão cruéis salve-se quem puder
O carrasco não vai ver se é homem ou mulher.

Num determinado momento ouve-se, em meio a turbulência geral, o choro


frágil de um nenê. Aos poucos o choro insistente da criança vai chamando a
atenção das pessoas que passam. Elas então, lentamente, vão parando,
procurando ouvir de onde vem o som e se aproximam do local. Descobrem
entre os escombros (na frente esquerda do palco), um velho cesto com um
bebê recém-nascido enrolado num vistoso manto. Música retrai um pouco e a
tensão clareia muito levemente essa área do palco – como se a tempestade
desse uma trégua para favorecer o inusitado “encontro”. As mulheres do povo
apanham a criança e dirigem-se ao proscênio. Outros, mais ao fundo, ficam
acompanhando a cena. As mulheres encontram uma espécie de pergaminho no
meio da suntuosa capa que envolve a criança.

[POVO I] (lendo o manuscrito)


Se esta for encontrada
deve ser abandonada
largada a chuva e ao vento
para que morra ao relento
Filha do infortúnio e da desgraça
merece sucumbir
para que o fado da má sorte
não possa atrair
E se alguém a recolher
padecerá de miséria e desventura
pois com ela há de conhecer
o pranto e a amargura

Todos se olham assustados.

[POVO 2]
Uma bruxa

[POVO 3]
Uma fada

[POVO 4] (a que segura a criança)


Não, apenas uma criança indefesa.

[POVO 2]
Feiticeira!

[POVO 3]
Anjo!

[POVO 1]
Olhai… Tem um cordão no pescoço da desgraçadinha!

A mulher que segura a criança, delicadamente, pega o cordão nas mãos.

[POVO 2]
O que é isso?

[POVO 4]
Um amuleto, somente!
[POVO 3]
Um talismã mágico!

[POVO 1]
Fetiche da desgraça!

[POVO 4]
Vede, é só um peque brasão.

[POVO 1]
Parece uma caldeira…

[POVO 2]
Bruxa!!!

[POVO 1]
Feiticeira!!!

[POVO 2]
Tem algo em letras douradas escrito nele… (arranca o amuleto das mãos da outra)

Reações gerais e depois, silêncio.

[POVO 2] (lendo as pequenas letras)


Miranda…

Vai passando o cordão de mão em mão, até chegar nela novamente.

[POVO 2]
Feiticeira

[TODOS]
Bruxa!!! Bruxa!!! Bruxa!!!

Revolta e gritos gerais. A mulher que segura o cordão atira-o longe. Nesse
momento há uma pequena explosão. Silêncio total.

MÚSICA 2 – TEMPOS SOMBRIOS (CONTINUAÇÃO)

São os tempos sombrios


São os tempos sombrios que nós temos que encarar
Cada um por si se quiser sobreviver
Pegue logo o que encontrar, não tem tempo pra escolher
Nessas horas tão cruéis salve-se quem puder
O carrasco não vai ver se é homem ou mulher.

Música cresce com a explosão e depois modifica-se para uma melodia muito suave e
angelical. Luz vai – sincronizada com a música – abrindo-se lentamente e descortinando
um cenário de fantasia e sonho. O que parecia, durante a tempestade, um cenário em
ruínas, agora se mostra um lugar bonito e aprazível. Pode ser uma noite estrelada de lua
cheia, árvores floridas, uma chuva de pétalas, enfim, o que plasticamente melhor se
apresentar para a resolução da cena. O povo todo incrédulo, vai se afastando, abrindo
em círculo, até sair de cena. Todos vão saindo estupefatos diante do acontecimento, um
feito extraordinário que julgam ser magia ou bruxaria da menina.

CENA 1 – A MÃE QUE NÃO ERA MÃE

Palco vazio de gente. Mata: Noite de lua e estrelas. Entra em cena uma velha,
pobremente vestida, chamando pela menina. Procura-a exaustivamente pelo
espaço todo.

[VELHA]
Miranda…! Miranda…! Miranda…!

A velha, cansada de chamar e procurar, senta-se no chão, desfalecida, no


centro do palco.

[VELHA]
Estou morrendo… Ai estou morrendo, Mirandaaaaa! Vais me deixar aqui morrendo
sozinha, minha menina…?

Abaixa-se e chora copiosamente. Pelos fundos entra a menina, já agora uma


adolescente, de beleza rara e selvagem, parecendo uma pequena princesa da
mata. Traz nas mãos um pedaço de rede cheia de pirilampos.

[MIRANDA] (dos fundos)


Estava colhendo pirilampos, mãezinha.

[VELHA](sem se virar, rude)


Não sou tua mãe.

[MIRANDA]
Olha, parecem diamantes na noite.

[VELHA]
Não suporto mais o fardo de criar-te.

[MIRANDA]
Coisinhas luminosas…

[VELHA]
Só me trouxeste infortúnio e desgraça.

[MIRANDA] (chegando até a velha e abaixando-se junto dela)


São as estrelas da mata, mãezinha.

[VELHA]
Não sou tua mãe, já disse!

Tempo. A menina brinca um pouco com a rede de pirilampos como quem faz
que não ouviu o que foi dito. A velha chora. Depois de um tempo a menina
ganha coragem e, ainda meio assustada, lhe dirige a palavra.

[MIRANDA]
Por que estás me dizendo isso?

[VELHA]
Por que chegou a hora de te contar a verdade.

[MIRANDA]
Não precisa mãezinha, sou muito feliz assim…

[VELHA]
Feliz? És uma pobre coitada, igual a mim.

[MIRANDA]
Não me contes nada. Prometo que nunca te farei perguntas, minha mãe.

[VELHA]
Sou uma velha, não vês? Como poderia ser tua mãe?

[MIRANDA] (cabeça baixa, sempre mexendo nos pirilampos)


[VELHA]
Ah! Como fui tola quando imaginei que um dia poderia ser recompensada pelo trabalho
que tive em criar-te.

[MIRANDA]

[VELHA]
Quem há de me pagar as noites em claro, quando choravas e gritavas como se o mundo
fosse acabar? As incontáveis horas de vigília quando adoecias em febre de quase morrer?
O pão que por milhares de vezes me roubaste da boca?

[MIRANDA]
Por favor, mãezinha, não…

[VELHA]
Eu não sou tua mãe! És filha de um diabo qualquer!

Relâmpagos. Luz altera-se e entra música. A menina tapa os ouvidos com as


mãos e balbucia uma cantiga qualquer de criança, como para não ouvir o que a
velha cruelmente lhe diz.

MÚSICA 3 – SOLO DA VELHA COM CORO DAS VELHAS ANCIÃS.

[VELHA] (aos berros)


Achei-te, ali! (aponta) No meio do mato! Feito um lixo! Ninguém te queria. Foste enjeitada
por todos. Diziam que eras um pequena bruxa. Amaldiçoaram-te. Todos. Mas eu não,
gananciosa e crédula, achei que fosses uma princesinha perdida num naufrágio, roubada
por salteadores… A ambição me cegou! Imaginei, em santa inocência, que um dia viriam
procurar-te… E então eu pediria uma bela fortuna por ter cuidado de ti como uma boa
mãe. Ah! Seria dona de um castelo só meu! (Tempo. N'outro tom, quase doce) Parecias
mesmo uma pequena princesa embrulhadinha naquele manto real. Eras tão linda…

A velha ajeita-se como quem vai dormir e, serenamente, morre. A música


termina. Silêncio. A menina percebe o que aconteceu e desesperada sacode a
velha. E chora sobre o seu corpo. Vão surgindo então, por todos os lados, várias
velhas vestidas de preto, esfarrapadas, guarda-chuvas abertos e sacolas nas
mãos, como se fossem mulheres-corvos, emissárias da morte, com a missão de
recolher o corpo da morta. E feito figuras mitológicas, entram balbuciando
palavras ininteligíveis, sem nexo aos nossos ouvidos, algo que soe como uma
espécie de latim. Riem e conversam entre si, estridentemente, feito gralhas,
abutres, urubus… Entre os sons que elas emitem deve-se ouvir nitidamente,
vez ou outra, no meio da confusão de sons, algumas frases como “pobrezinha
ficou sozinha”, “tão menina e tão só”, “não terá força para enfrentar o mundo”,
“só mesmo um homem para conseguir”, “são tantos os perigos do mundo”, “tão
pequena e tão sozinha”, “só mesmo um homem”, “ah! Pobrezinha”, “só um
homem”, “ai os perigos são tantos”. Elas vão dizendo essas falas
intercaladamente enquanto recolhem o corpo da velha numa velha padiola e
saem de cena deixando a menina sozinha. Miranda tem tempo ainda de cobrir o
corpo da velha com a rede de pirilampos e, feito isso, atira-se chorando no
chão. Entra música suave, a luz ganha um tom onírico e começa a nevar. Ela
levanta o rosto e percebe que em sua testa surge uma pequena estrela de
prata. Pelos fundos entra um belo cavalo branco (que deve ser feito por um
ator com dorso nu e máscara, através de expressão corporal) e lentamente se
aproxima da menina. Mexe com ela e lhe atira um saco de roupas. Ela abre o
saco e vai tirando roupas-de-homem de dentro dele: botas, camisa, casaco,
espada e chapéu. E diante da insistência do cavalo, que a rodeia escoiceando o
chão, vai tirando as velhas roupas de menina do corpo e vestindo os novos
trajes masculinos. Depois de pronta, semelhante a um verdadeiro garoto, ergue
a espada e, sob a luz da lua, cavalo ao lado, fala num tom profético, como quem
faz um pacto em silêncio na mata.

[MIRANDA]
Sob a luz das estrelas desta noite triste, que me roubou pra sempre a mãe que não era
mãe e me deixou sozinha na vida, escondo-me dentro destas vestes de homem. E, assim,
parto mundo afora em busca do meu destino!

MÚSICA 4 – PRA ONDE EU VOU?

Embainha a espada, segura as rédeas do cavalo e parte como quem sai a


procura da própria sorte. Entra música grandiosa, os dois dão algumas voltas
pelo palco inteiro, simulando uma caminhada pelo mundo, enquanto vai
amanhecendo e o cenário vai se transformando.
CENA 2 – O SARGENTO MIRANDA

Durante essa caminhada e, enquanto o cenário vai lentamente se


transformando, Miranda deve passar por vários personagens cruzando o palco
de lado a lado. Ora de um lado, ora do outro: Camponesas carregadas de cestos
de flores e trigo; soldados em marcha; um homem puxando uma carroça;
crianças correndo numa brincadeira qualquer; uma banda de músicos, um casal
de namorados; anciãos; uma trupe circense; camponeses com pás, enxadas,
coisas do campo; nobres, princesas e príncipes, carruagens. (dentro desse
universo de plebeus e nobres de conto-de-fadas) Para ampliar a dimensão da
caminhada de Miranda que deve representar o seu conhecimento do mundo.
Uma coisa assim quase cinema. A música deve criar o clima exato para que essa
ideia se realize, algo entre aventuresca, misteriosa e de pulsação marcante. No
final, o cenário deve terminar formando uma praça pública de um reino
qualquer. E, espalhados por ela, vários personagens do universo proposto.
Miranda e seu cavalo devem estar no meio do palco quando a música terminar.
Todos, então, largam suas ocupações e, curiosos, olham pra ela.

[FIG. 1]
Um forasteiro!

[TODOS]
Ohhhhh!!!

Num grupo de rapazes:

[FIG. 2]
Parece um sargento desgarrado da tropa.

[FIG. 3]
Desviado do rumo…

[FIG. 4]
Sargentinho tresmalhado! (riem)

Num grupo de moças:

[FIG. 5]
Hum… Belo sargento, diga-se de passagem.

[FIG. 6]
É… Como há muito não se via por aqui.

[FIG. 7]
Sejas muito bem vindo, sargentinho.

[TODAS]
Hum… (riem)
No geral:

[FIG. 1]
Que viestes fazer nestas terras, estrangeiro?

[FIG. 5]
Procuras por algo, jovem peregrino?

[MIRANDA]
Sou um simples andante em busca do meu destino. Eu e mais o meu cavalo.

[FIG. 4]
Hum… Belo cavalo também, diga-se só de passagem.

[FIG. 7]
E como te chamas, gentil romeiro?

[MIRANDA]
Miranda, ao vosso dispor.

[FIG. 3]
Miranda…?

Tempo. Silêncio e entreolhares gerais, como se ela estivesse sendo avaliada.

[FIG. 2]
Então… Viva o Sargento Miranda, não é?

[TODOS]
Viva!!!

Um grupo de musicos presente inicia uma alegre cançoneta típica de


campesinos e todos dançam ao som de sanfona, violão e gaita-de-boa. Logo
após, misturando-se à pequena festa, entra uma carroça com atores
mambembes, ciganos – espécie de trupe itinerante. Entram
espalhafatosamente anunciando, numa espécie de megafone, coisas como
pregões, proclamas e editais da corte. (podem haver malabaristas, palhaços,
mágicos, uma bandinha, etc…)

MÚSICA 5 – SUGESTÃO DE TRANSFORMAR O TEXTO EM MÚSICA

[ATOR 1] (no megafone)


Senhoritas elegantes, cavalheiros corajosos, crianças travessas, gentis senhoras e
senhores, abandonai vossos afazeres e correi para a praça. Vinde todos ouvir os novos
proclamas do reino e divertir-vos com os mais extraordinários artistas da terra.

Enquanto isso a carroça vai entrando até o meio do palco e os “artistas” se


espalham ao redor dela, fazendo pequenas demonstrações de suas artes.
Depois disso rufar de tambores e silêncio.
[ATOR 1] (assumindo histrionicamente o papel de narrador)
Bem sabeis vós, por ser fato conhecido de todos, que nosso venerado e bondoso rei,
outrora o melhor rei de que já se teve notícia, não é mais o mesmo rei. Padece, o nosso
generoso soberano, de uma tristeza sem fim que há anos que fazendo-o definhar dia após
dia.

Durante a narração, os demais atores vão encenando farsescamente a história


que vai sendo contada.

[ATOR 1]
Vive enclausurado em seu quarto, sem comer nem beber, olhando com melancolia infinita
pela janela afora. Parece até que espera algo misterioso acontecer…

[TODOS] (em coro)


O que será que espera o rei?

[ATOR 1]
Talvez espere por alguém!

[TODOS]
Por quem será que espera o rei?

[ATOR 1]
Pela morte, dizem uns. Pela vida, outros dirão.

[TODOS]
Pela morte ou pela vida uns e outros dirão.

[ATOR 1]
Sua esposa, a rainha má, como é chamada pelo povo, aguarda ansiosamente a sua morte
pois quer ver o filho vestindo a coroa real.

[ATRIZ 2] (interpretando a rainha)


Sim! Porque um rei neste estado de demência não serve pra nada.

[TODOS]
Uuuuuuuu!!!

[ATOR 1]
E o povo vaia a rainha.

[TODOS]
Uuuuuuuu!!!

[ATOR 1]
E o povo rejeita a rainha má!

[TODOS]
Foraaaaa!!!
[ATOR 1]
Mas seu filho, o príncipe herdeiro, que também é dono de um generoso coração, não
concorda com a mãe. Deseja a qualquer custo salvar o rei da longa angústia que o
aprisiona nas trevas do esquecimento. Quer descobrir o mistério que se esconde nos olhos
tristes do pai.

[TODOS]
Que mistério se esconde nos olhos tristes do rei?

[ATOR 1]
Quer descobrir o segredo do pai.

[TODOS]
Qual o segredo do rei?

[ATOR 1]
Para tanto, resolveu o belo príncipe proclamar.

[ATOR 3] (interpretando o príncipe lendo um pergaminho)


“Eu, vosso príncipe e, por direito, futuro herdeiro do trono real, convoco todos os
habitantes, destas terras e de outras, ou ainda qualquer aventureiro que possa se
interessar, a descobrir a doença do meu pobre pai. A causa de sua lenta agonia. O mal
que o acometeu. E como recompensa, o herói de tal façanha, receberá metade de todo o
ouro, de todos os bens e de tudo o mais que por lei e justiça a mim pertencerão.”

Todos aplaudem.

[ATOR 1]
Mas a rainha má, por ora detentora absoluta do poder, só permitiu que o filho anunciasse
aos quatro cantos o edital que acabastes de ouvir, com uma condição:

[ATRIZ 2]
Um adendo de minha própria autoria.

[ATOR 1]
Escrito em letras bem pequenininhas, para ninguém prestar atenção:

[ATRIZ 2]
Fica decretado também, que aquele que não conseguir a solução do problema será por
mim severamente punido e condenado a morte.

[TODOS]
Uuuuuuuu!!!

[ATOR 1]
Bem… É preciso acrescentar aos incautos, que todos os jovens destemidos que até agora
ousaram a proeza, morreram. Todos.

[TODOS]
Ohhhhh!!!
[ATOR 1]
Alguém deseja candidatar-se?

Burburinho geral. Depois, silêncio.

[ATOR 1]
Algum candidato?

Silêncio. De repente, do meio das pessoas aglutinadas na praça, surge o cavalo


de Miranda empurrando-a com a cabeça até a frente. Ela resiste, mas uma
cabeçada mais forte do cavalo termina jogando-a no chão, na frente de todos.

[ATOR 1]
Muito bem, jovem sargento, desejas candidatar-te?

[MIRANDA] (levantando-se atrapalhada, limpando-se toda)


Eu?

[ATOR 1]
Sim. Qual o teu nome?

Miranda, embaraçada, olha para o cavalo que acena um “sim” com a cabeça.

[ATOR 1]
Como te chamas destemido guerreiro?

[MIRANDA]
Miranda…

[ATOR 1]
Então, Miranda? Aceitas o desafio?

Ela olha novamente para o cavalo que confirma insistentemente com a cabeça.
Depois olha para todos e, por fim, decide-se.

[MIRANDA]
Aceito. Digo que sim. Vou descobrir o segredo do rei.

Entra música, todos irrompem em aplausos e vão saindo de cena cantando,


acenando lenços coloridos e aclamando o nome de Miranda, por sua coragem e
determinação.

CENA 3 – A ENTREVISTA

Enquanto todos saem, o cenário vai se transformando numa área externa


qualquer do palácio. Miranda e seu cavalo ficam sozinhos em cena. Ela fica
olhando em torno de si, observando o requinte do lugar, enquanto dos fundos
vem entrando a rainha má. Silenciosa, sorrateira e olhar inquisidor. Aproxima-
se e da uma volta em torno da menina, analisando-a com desdém.
[RAINHA]
Ah! Então és tu, o pobre coitado que o povo elegeu pra ser o seu novo herói?

Miranda cabeça baixa nada diz.

[RAINHA]
É o teu nome que clamam pelas ruas, vilas e aldeias? Mas o que viram em ti? És franzino,
pobre, mal vestido. E tens ares de estúpido.

[MIRANDA]

[RAINHA]
Deixa-me ver os teus dentes… (agarrando seu rosto como quem investiga um animal)
Hum… (empurrando-a) Cheiras a cavalo! Francamente: Não entendo! És nojento, mal
apessoado e ainda fedes! Afinal, o que viram em ti?

[MIRANDA]

[RAINHA]
Vamos, agora mostra-me as mãos!

[MIRANDA] (com medo de ser descoberta)


Não… Não posso.

[RAINHA]
O que?

[MIRANDA]
Não vim aqui para ser examinado.

[RAINHA]
Como? És petulante e insolente, além de fétido?

[MIRANDA]
Perdão, senhora. Não foi o que eu quis dizer…

[RAINHA]
Acaso tens o consentimento dos teus pais para morreres tão rapazinho ainda?

[MIRANDA]
Não vim aqui para morrer.

[RAINHA]
É o que veremos. Tens, ou não tens, o consentimento?

[MIRANDA]
Não tenho pai nem mãe. Sou sozinho no mundo.
[RAINHA]
Oh, pobrezinho. Por isso é que cheiras mal. Também pudera: enjeitado de pai e mãe!
Deves ter sido criado dormindo na lama entre caranguejos e escorpiões.

[MIRANDA]

[RAINHA]
Deves ter sobrevivido comendo mato e animais peçonhentos, não é?

[MIRANDA]

[RAINHA]
Afinal, o que queres na minha casa?

[MIRANDA]
Vim para falar com o príncipe.

[RAINHA]
Ah! Então não sabes que tens que obter a permissão da rainha? Esqueceste que neste
palácio quem dá as ordens sou eu?

[MIRANDA]
Desculpai-me, senhora. Submeto-me a todas as provas, tarefas e tudo o que Vossa Alteza
determinar.

[RAINHA]
Não sejas ridículo. Não passa de uma lástima!

[MIRANDA]
Vim para salvar o rei, senhora.

[RAINHA]
Presunçoso! Orfãozinho maltrapilho! Não te enxergas? Não vês que não tens préstimo pra
nada?

O cavalo de Miranda, que por várias vezes conteve o desejo de avançar sobre a
rainha, nesse momento, já não aguentando mais a humilhação sofrida pela
menina, começa a escoicear o chão, bem próximo da rainha.

[RAINHA]
O que é isso? O que se passa com teu cavalo?

[MIRANDA] (irônica, indo à forra)


Ele está furioso, não vês?

[RAINHA]
Então contenha-o!
[MIRANDA]
Não posso. Ele não suporta o perfume doce da aristocracia.

[RAINHA] (olhando para Miranda sem saber ao certo se entendeu o que ela
disse)
O quê?!

[MIRANDA]
Ele tem alergia a hipocrisia e falsidade. (diz isso e se diverte com a própria resposta)

[RAINHA] (possessa)
Desaparece da minha frente! Fora! Rua!

Miranda pára de rir diante da cólera da rainha.

[RAINHA]
Vou chamar os guardas. Fora do meu palácio, os dois, já!!!

Tempo. Miranda toma as rédeas do cavalo e, consciente de que pôs tudo a


perder, vai saindo lentamente. Nesse momento ouve-se, em off, o barulho de
uma multidão gritando sem parar o nome de Miranda, do lado de fora dos
muros do castelo. A rainha apavora-se.

[RAINHA]
Mas o que é isso agora?

[MIRANDA]
É a voz do povo nas ruas.

[RAINHA]
Mas o que querem gritando assim na minha porta?

[MIRANDA]
Clamam por justiça. Querem o rei no trono novamente.

[RAINHA]
Ora, o rei está maluco, não pode mais governar.

[MIRANDA]
Eles acreditam que o rei pode curar-se.

[RAINHA]
Ah, é? E quem vai operar esse milagre?

[MIRANDA]
Vosso povo me elegeu para realizar essa tarefa.

[RAINHA]
Tu? Não é possível! O que será que essa gente viu em ti…? Um João ninguém sem eira
nem beira que cheira a cavalo!?

O cavalo, novamente indignado pelas ofensas, começa a dar coices no chão e


perseguir a rainha. Enquanto isso as vozes, lá fora, crescem em volume como se
o povo já estivesse quase que entrando no palácio. A rainha vai ficando
assustada e enlouquecida, dando voltas pelo espaço. E o cavalo atrás.

[RAINHA] (tapando os ouvidos e gritando)


Guardas! Guardas! Onde será que se meteram esses palermas inúteis?

[MIRANDA]
Acho melhor que me deixes tentar curar o rei…

A rainha não responde. Olha-a furiosamente achando absurdo o pedido.

[RAINHA]
Guardas! Guardas!

[MIRANDA]
Talvez assim os ânimos se acalmem…

A rainha começa a analisar a possibilidade.

[MIRANDA]
Caso contrário, revoltados, poderão querer pular os muros… Invadir o castelo…

Tempo.

[RAINHA]
Está bem, está bem! Mas fica longe de minhas vistas. Hospeda-te na estrebaria junto dos
teus amigos cavalos. E some daqui com esta besta-fera antes que eu…

Faz um gesto de quem vai esmurrar o companheiro da menina, mas ele ameaça
dar-lhe um coice e ela, histérica, grita e sai correndo. Miranda suspira, sorrindo
pela vitória conquistada, toma a rédea do cavalo e vai saindo de cena. Durante
a saída de Miranda, o cenário vai se transformando na estrebaria do castelo
enquanto uma multidão de camponeses atravessa o palco, de lado a lado,
carregando brasões, lenços e bandeiras coloridas, numa espécie de marcha
coletiva, sempre gritando o nome de Miranda.

CENA 4 – A DESCOBERTA DO AMOR

Miranda e seu cavalo encontram-se na estrebaria do palácio, em meio a vários


outros cavalos espalhados pelo local. (Os atores devem estar caracterizados na
maneira já mencionada) A iluminação, meio baixa e levemente azulada, deve
ter vários fachos de luz cruzados, como se a luz de uma noite muito clara
entrasse através das frestas do telhado. Se possível ainda, deve se entrever
fragmentos de um céu estrelado e talvez uma nesga de lua. A menina caminha
por entre os animais, com um balde e pano nas mãos, como se os tivesse
limpando ou algo assim. Depois vem para frente, junto com seu cavalo e,
acarinhando-o docemente, conversa com ele.

[MIRANDA]
Vou te chamar de… “amigo”. Gostas? Tens que gostar porque és o meu único amigo
mesmo, não é? És o único que conhece minha verdadeira identidade e partilha do meu
segredo mais íntimo. (tempo) Mas me botaste numa enrascada feia. Não sei se isso é
coisa de amigo, não. Amigo é quem nos tira dos apuros e não quem nos joga neles. E
agora? O que que eu vou fazer? Podes me dizer como se cura um rei? Hã? (tempo) Que
bonito! Não tens resposta pra isso, não é? Tu que arranjaste o problema e eu é que tenho
que resolver?! Nem sei se mereces o nome que te dei…

Nesse momento os cavalos agitam-se e ouve-se um pequeno barulho no


estábulo. Miranda afasta-se do cavalo e põe-se logo de prontidão.

[PRÍNCIPE] (entrando pelos fundos com uma lanterna na mão)


Tem alguém aqui?

Miranda vai se escondendo e o príncipe procurando. Os dois, por entre os


cavalos. Num dado momento o príncipe a vê, de costas e, silenciosamente
aproxima-se dela.

[PRÍNCIPE]
Achei-te herói do meu reino. Vira e deixa-me ver o teu rosto. Quero conhecer o homem
que o meu povo exalta e festeja.

Ela vira-se lentamente e, então, os dois ficam frente a frente e muito próximos.
Entra música suave. Eles se olham intensamente, surpresos e embevecidos, por
alguns segundos. (esse momento deve ser sutilmente sublinhado pela
encenação)

[MIRANDA] (recompõe-se rapidamente e ajoelha-se aos pés dele)


Sou Miranda. Chamam-me de sargentinho. Venho até vós para pedir permissão para curar
vosso pai.

[PRÍNCIPE]
Trata-me por tu. E levanta-te. Temos quase a mesma idade, podemos nos tratar como
iguais.

[MIRANDA]
Não sei se devo, senhor…

[PRÍNCIPE] (ríspido)
Levanta-te! É uma ordem sargento!

[MIRANDA]
Sim, senhor!

Miranda levanta-se atabalhoadamente, faz uma desajeitada continência e fica


dura como uma estátua, sem perceber que o príncipe brinca com ela.
[PRÍNCIPE] ( sempre ríspido, brincando)
O que? O que dizes sargento?

[MIRANDA]
Não, senhor!

[PRÍNCIPE]
Como?

[MIRANDA]
Sim, senhor!

[PRÍNCIPE]
Não, senhor!

[MIRANDA] (mudando de mão a cada continência)


Estou confuso, senhor! Não sei o que digo, senhor! O que queres que eu diga, senhor? Me
sinto um idiota, senhor!

O príncipe começa a rir do jeito atrapalhado dela e acaba por contagiá-la.


Terminam, então, feito duas crianças, rindo juntos. Depois das risadas, ficam
olhando-se novamente de uma forma apaixonada e embaraçosa ao mesmo
tempo.

[PRÍNCIPE]
Podes não ser, de fato, um sargento mas és, sem dúvida, um belo rapaz.

Miranda fica envergonhada e afasta-se um pouco dele, dando-lhe as costas.

[PRÍNCIPE]
Venha, senta-te aqui comigo. Vamos conversar.

[MIRANDA]
Sou de origem humilde, senhor. Sei como portar-me diante de um nobre.

[PRÍNCIPE]
Oh! Então certamente me recriminas por estar sentado sobre o feno de uma estrebaria?

[MIRANDA]
Queres que eu diga a verdade?

[PRÍNCIPE]
Não te vejo capaz de mentir. És mais nobre do que eu porque tens a nobreza no coração.

[MIRANDA]
Bem pouco me conheces ainda.

[PRÍNCIPE]
Basta um olhar para que a alma se revele. Tenho certeza que és um bom sujeito, embora
meio atrapalhado. Mas não fujamos do assunto: E então? Não vais responder a minha
pergunta?

[MIRANDA] (virando-se para ele)


Acho que ficas muito bem aí, do jeito que estás.

[PRÍNCIPE]
Então vem. Senta-te do meu lado. Conversamos como bons amigos.

O cavalo dá uma empurradinha em Miranda que, sem jeito, vai sentar-se perto
do príncipe.

[PRÍNCIPE]
Então achas que podes curar meu pai?

Miranda fica sem saber o que responder, olha para o cavalo que se agita como
que lhe dando sinais e ela termina por balançar a cabeça afirmativamente.

[PRÍNCIPE]
És tão meinino… E bonito. Devias estar preocupado em namorar.

[MIRANDA]
Tudo tem o seu momento certo.

[PRÍNCIPE]
Queres ficar rico, então, é isso?

[MIRANDA]
Não, não… Por favor. Peço-te que não me interpretes mal.

[PRÍNCIPE]
Se me explicares, posso tentar entender.

Miranda fica meio perdida, olha pro cavalo, procura respostas.

[MIRANDA]
Como explicar-te o que nem eu mesmo sei? Tudo aconteceu tão de repente.

[PRÍNCIPE]
Estas dizendo que são coisas do destino, é isso?

[MIRANDA]
Coisas de fé, também. Achas que posso enganar um povo todo que agora acredita em
mim?

[PRÍNCIPE]
Mas o que pretendes fazer?

[MIRANDA]
Não sei ainda, estou desesperado. Preciso de ajuda.
[PRÍNCIPE]
Minha mãe é dona de um coração de pedra e não tem sido benevolente com ninguém. É
preciso que fujas de sua ira que pode ser mortal.

A menina, assustada, abaixa a cabeça.

[PRÍNCIPE]
Miranda… (levantando seu rosto e secando a lágrima que corre dos seus olhos) Não
chores… Se precisares de mim, aqui estarei pra te ajudar.

[MIRANDA]
Preciso apenas de uma noite para colocar as ideias no lugar.

[PRÍNCIPE]
Terás essa noite inteira. Amanhã, bem cedo ainda, antes que o sol desponte, antes que
minha mãe se levante, virei a tua procura. E então veremos o que fazer.

O príncipe levanta-se e vai saindo mas, antes disso, pára e volta-se para ela,
tentando confortá-la.

[PRÍNCIPE]
Anima-te. Um herói precisa de muita confiança. Certo, sargento?

Miranda, ainda no chão, sorri e balança a cabeça afirmativamente. Olham-se


intensamente ainda mais uma vez e o príncipe se retira do local.

CENA 5 – O SONHO DE MIRANDA

Miranda permanece sentada no chão e o cavalo, seu companheiro, se aproxima


dela. Rodeia-a de forma carinhosa.

[MIRANDA]
E agora? O que é que eu vou fazer, amigo?

Vendo o desespero da menina, o cavalo se movimenta pra lá e pra cá, agoniado,


como quem quer dizer alguma coisa, ajudar de alguma maneira.

[MIRANDA]
O que vai ser de mim? Tu bem ouviste o príncipe falar da maldade da rainha. Se até
amanhã eu não descobrir como curar o rei, estarei morto. Não, morta. Estás vendo? Estou
confusa, confuso… Já nem sei mais quem sou. (tempo. N'outro tom.) Sabe… Tenho
saudade dos pirilampos que eu colhia na mata. (entra música suave). A vida era tão
simples e bonita quando eu tinha o brilho daquelas estrelas nas mãos. Me sentia dona de
um pedaço do céu. Saudade dos pirilampos… Da mata… Da minha vida de menina…

Miranda adormece no feno no chão, a música vai alterando-se e vários


pirilampos começam a brilhar no escuro da estrebaria. Momento mágico onde
os cavalos também parecem brilhar enquanto movimentam-se numa
coreografia estranha e lenta que sugira uma atmosfera onírica. O cavalo de
Miranda chega bem próximo da menina e conversa com ela adormecida.
[CAVALO]
Miranda…

Os outros cavalos repetem como um eco sussurrado: Miranda… Miranda…


Miranda…

[CAVALO]
Amanhã esquecerás tudo o que viste e tudo o que ouviste neste sonho. Mas acordarás
com uma certeza muito forte: a de querer falar com o rei. Vai. E se conseguires que o rei
te receba, olha-o bem nos olhos e tenta entender a tristeza do seu coração. Verás que
não é diferente da tristeza que tu, tão bem, conheces. Só isso bastará. Deixa que todo o
resto aconteça por desejo do destino. Não te lamentes nem te preocupes, mas também
não esmoreças e nem desanimes. Vou esconder em teu bolso este cordão que trazias no
pescoço quando foste abandonada. (mostra o amuleto, o mesmo que foi visto no prólogo,
e coloca-o na roupa da menina). É teu e volta pra ti novamente. Guarda-o. Talvez venhas
precisar dele em algum momento. Agora, dorme. E só acordes quando a voz daquele a
quem amarás te chamar.

[CAVALOS]
Miranda, Miranda, Miranda…

A luz vai clareando. Amanhece. Os pirilampos e as estrelas desaparecem mas as


vozes dos cavalos continuam chamando por Miranda até fundirem-se com a voz
do príncipe entrando.

[PRÍNCIPE]
Miranda!

A menina acorda num sobressalto.

[PRÍNCIPE]
Perdão. Gostaria de acordar-te de forma mais branda, mas já amanhece e preciso saber o
que resolveste, para que possas agir antes que minha mãe se levante.

[MIRANDA]
Quero que me leves até o rei.

[PRÍNCIPE]
Estás certo do que me pedes?

[MIRANDA]
Quero estar a sós com ele.

[PRÍNCIPE]
Já sabes então o que fazer?

[MIRANDA]
Quero falar com o rei.
[PRÍNCIPE]
Miranda, não te desanimes, mas é importante que saibas que meu pai vive alheio a tudo.
Nem a mim reconhece. Vive fechado dentro de si mesmo. Não creio que conseguirás
arrancar uma palavra ou sequer um gesto dele.

[MIRANDA]
Preciso que confies em mim.

[PRÍNCIPE]
Está bem. Tens a minha promessa.

[MIRANDA]
Então leva-me até o rei!

Tempo.

[PRÍNCIPE]
Vem. Vou te conduzir aos seus aposentos.

O príncipe estende a mão para Miranda e, quando toca na mão dela, sente a
maciez de sua pele. Ela percebe (lembra-se) e retira bruscamente a mão,
escondendo-a. Os dois saem pela direita. Dos fundos, pela lateral esquerda,
surge a rainha. Entra com um olhar transtornado como se, escondida, houvesse
presenciado tudo. Vem para a frente enquanto toda a luz vai se apagando
deixando apenas um foco fechado sobre ela.

[RAINHA] (colérica)
GUARDAS!!!

No escuro entram alguns guardas e se posicionam atrás dela. Aí, então, abre-se
um corredor estreito de luz que vem dos fundos até eles.

[RAINHA]
É aquele! (aponta para a frente)

Entram acordes de uma música “forte”, ela vira-se de costas e vai caminhando
para os fundos, seguida dos guardas, através do corredor de luz. Saem de cena.

CENA 6 – O COLÓQUIO COM O REI

Pelo mesmo corredor de luz que saiu a rainha, entra o rei. Ele vem sentado
numa espécie de poltrona ou trono, empurrado por um guarda do palácio. A luz
vai se abrindo enquanto o rei é deixado na frente do palco, que agora já tem
por cenário o aposento privativo onde ele vive sua clausura. Tem cabelos
esparsos, aspecto sombrio de quem vive alienado do mundo e olha para frente,
o tempo todo, como se olhasse o vazio. Miranda entra pelos fundos e vai se
aproximando dele.

[MIRANDA]
Senhor…
Vendo que ele não se volta, vai falando dos fundos, às suas costas, enquanto
caminha lenta e cautelosamente até ele. A “fala” inteira de Miranda é feita de
silêncios longos e embaraçosos. Ela fica como que investigando e buscando a
melhor maneira de estabelecer contato.

[MIRANDA]
Sou um pobre sargentinho sem pai nem mãe, senhor, perdido no mundo, atrás do meu
destino… (tempo) Contam que Vossa Alteza tem um segredo triste que vos deixou assim a
olhar pela janela a espera de alguém… (tempo) Me armei de uma coragem que julguei
que não tivesse só pra vir até aqui e dizer-vos que… Se quiserdes contar a vossa história
infeliz encontrareis em mim, ouvidos pra ouvir e coração para compreender (tempo) Não
sei se Vossa Alteza tendes um cavalo tão amigo como o meu. Às vezes, até mesmo um rei
pode não ter alguém para repartir a dor de viver… (já perto dele, falando sempre com
muito tato) Tenho dezessete anos, senhor, sou muito criança ainda, eu sei, mas posso
garantir-vos que conheço a mágoa do abandono e do desamor…

Vendo que ele nem sequer a percebe, ajoelha-se ao seu lado e, em silêncio,
acaricia os seus cabelos. Tempo.

[MIRANDA]
Fui encontrado no meio dos escombros e criado por uma boa velha que mal tinha o que
comer. (tempo) Disse-me, a velha, que eu devia ser filha… (percebendo o engano e
corrigindo-se) filho do diabo, porque fui achado envolto num manto de rara beleza. Disse,
e morreu nos meus braços. Nem sequer notou os pirilampos que eu tentava mostrar-lhe…
(Dando-se conta que devaneava) Mas… O que faço? Vim para ouvir a vossa história e
estou quase chorando com a minha.

Tempo. Acaricia-o novamente.

[MIRANDA]
Que desgosto profundo esconde-se em vosso silêncio de morte? (tempo) Não quereis
contar-me a vossa tristeza…? (tempo) Não confiais em mim?

Tempo. Miranda cai em si e percebe a inutilidade da insistência.

[MIRANDA]
Não me ouvis, não é mesmo, senhor? Nem percebeis a minha presença… Fui mesmo um
tolo quando pensei que pudesse ajudar-vos a recuperar o sentido da vida.

Sentindo-se vencida, levanta-se para sair.

[MIRANDA]
A rainha estava certa quando julgou-me uma lástima. E por isso mereço morrer, na forca
ou numa fogueira, exposto em praça pública.

Derrotada, caminha em direção à porta e, de repente, pára. Volta-se para o rei


que continua inerte.
[MIRANDA]
Perdoai-me, senhor. Vosso silêncio me fez compreender o sentido da vossa reclusão.
Descobristes que o mundo em torno de vós é feito de falsidade e mentira. É por isso que
vos escondeis! Perdoai-me por ter falado em confiança, quando tive a imprudência de vir
até aqui vestido com a mesma hipocrisia que ouso condenar. Quero me redimir diante de
vós. Não sou um sargentinho como me apresentei. E estas roupas falsas que visto não
pertencem ao meu corpo de menina.

Dizendo isso, arranca o chapéu e mostra-se de cabelos longos. Depois vai


retirando, uma a uma, as roupas de homem que veste até ficar nua diante do
rei. E, envergonhada, cobre-se com as mãos. O rei, então, lentamente, vira o
rosto para olhá-la. Nesse momento ouve-se, em off, a multidão, lá fora,
gritando o nome de Miranda. Clamam seu nome de forma viva e ardente num
clima de exaltação. O rei levanta-se e, perturbado e delirante, vai dando voltas
pelo espaço todo, instigado pelo som que vem das ruas, como se procura-se
algo distante, uma lembrança ou até mesmo a própria memória. Miranda,
assustada, recolhe suas roupas do chão e vai vestindo-as rapidamente.

[MIRANDA] (falando enquanto se veste)


Não vos assustais, senhor… É apenas o povo nas ruas gritando pelo meu nome… Não
temeis, senhor… Eles gritam porque querem Vossa Majestade de novo no trono.

O rei, num acesso de delírio crescente, termina por gritar: “Mirandaaaaaaa!!!”


“Mirandaaaaaaaa!!!”. A menina, apavorada, sai correndo da sala. Silêncio. As
vozes lá fora também se aquietam. O rei vai, aos poucos, controlando-se e
depois dirige-se calmamente para sua cadeira. No caminho tropeça com um
objeto no chão: o amuleto de Miranda que deve ter caído no momento em que
despiu-se. Abaixa-se, pega-o e olha-o. Entra música de ritmo eletrizante (que
deve ser contínua e durar as próximas três cenas). Dos fundos aparecem a
rainha e mais alguns guardas, atraídos pelos gritos do rei. Os guardas vão até
ele, colocam-no no trono e vão saindo de cena.

CENA 7 – A REVELAÇÃO CASUAL

Enquanto o rei, os guardas e a rainha estão saindo, o cenário vai se


transformando. E ao mesmo tempo, cruza a cena novamente, a marcha do povo
nas ruas: multidão de camponeses com bandeiras, etc., gritando o nome de
Miranda. Quando a marcha passar, fazendo o efeito de cortina humana,
descobriremos Miranda e o Príncipe, cada um de um lado, entrando correndo e
encontrando-se no centro do palco.

[PRÍNCIPE]
Miranda!

Abraçam-se.

[MIRANDA]
Acho que pus tudo a perder… Ajuda-me!
[PRÍNCIPE]
Depressa. Minha mãe está furiosa a tua procura.

[MIRANDA]
O rei se pôs a gritar alucinado pelos aposentos…

[PRÍNCIPE]
Não há tempo pra me contares nada.

[MIRANDA]
Tudo aconteceu de uma maneira tão imprevista…

[PRÍNCIPE]
Já estão armando o cadafalso no meio da praça.

[MIRANDA]
Olhou-me de um modo tão assustador…

[PRÍNCIPE]
Depressa, Miranda, precisas fugir!

[MIRANDA]
Ah, tive tanto medo! (abraça-o)

[PRÍNCIPE] (sacudindo-a, fazendo-a voltar a si)


Miranda, me escuta! A rainha está no teu encalço. Foge!

[MIRANDA] (reagindo)
Meu cavalo! Preciso buscar o meu cavalo!

[PRÍNCIPE]
Tarde demais! Esquece teu cavalo, Miranda!

[MIRANDA]
Não se esquece um amigo, nunca!

[PRÍNCIPE] (incisivo, segurando-a firme pelos braços)


Morrerás se não fugires agora!

[MIRANDA]
Vou buscar o meu cavalo, me larga!

Ela tenta se desvencilhar dele num gesto brusco, o chapéu cai e seus cabelos
soltam-se revelando sua identidade feminina. Tempo. O príncipe a olha,
atônito, e passa delicadamente a mão no seu rosto de criança.

[PRÍNCIPE]
És uma menina…
[MIRANDA]

[PRÍNCIPE]
E tens a estrela da bem-aventurança na testa…

Miranda sai correndo deixando-o abismado e sozinho no meio do palco (que


pode ser agora um lugar indefinido qualquer) A música eletrizante retoma
andamento frenético. (No encontro dos dois ela pode ter sido amenizada em
volume, ritmo ou melodia.) E o povo em marcha entra novamente, sempre
gritando o nome de Miranda, fazendo transição da cena.

CENA 8 – UMA IMAGEM CRUEL

Quando a multidão passar, veremos no fundo do palco vazio, o cavalo de


Miranda pendurado por duas cordas, a mais ou menos um metro do chão, com
várias lanças trespassando-lhe o peito. Uma imagem forte para provocar,
intencionalmente, uma sensação forte de dor e beleza cênica. Miranda entra
por uma lateral, vê seu amigo morto, corre gritando até ele e se agarra aos seus
pés. Logo após entra o príncipe e mantêm-se a distância, olhando o triste
quadro que, em vão, tentou impedir que acontecesse. Pouco depois entra a
rainha, acompanhada de alguns guardas palacianos. Elas assiste um pouco a
cena, com prazer mórbido, e depois faz um gesto de ordem apontando Miranda.
Dois guardas dirigem-se até a menina e a arrancam à força dos pés do amigo.
Acorrentam-na e vão saindo, atravessando o palco, arrastando-a pelo chão.
Entra, mais uma vez, a multidão de gente exaltada gritando, fazendo a
transição da cena. Desta vez, porém, não saem do palco. Vão fazendo evoluções
coreográficas e espalhando-se por ele todo, até formarem a praça pública. E em
meio a esse turbilhão de gente, música e barulho, entra também o patíbulo
onde Miranda será guilhotinada. Posicionam-no no centro-fundo do palco.

CENA 9 – A EXECUÇÃO INTERROMPIDA

Entram os guardas arrastando Miranda. Música termina. Silêncio geral e


absoluto. Ouve-se apenas o barulho do vento no mormaço da tarde. Os guardas
levam Miranda até o cadafalso sob o olhar perplexo da multidão. Entram a
rainha, depois o príncipe e, por fim, um carrasco encapuzado que dirige-se ao
local da execução. Momento de muita tensão. Miranda é colocada de joelhos,
na posição do sacrifício, enquanto a rainha sobe, num plano mais alto do
próprio cadafalso, para falar com o povo.

[RAINHA]
Súditos do meu querido reino! Ouvi com respeito e obediência a vossa dedicada rainha:
Eis, diante de vós, um foragido, um vândalo sem pátria que ousou transpor os muros do
palácio real e perturbar o sono e a paz do nosso amado rei. Um estrangeiro errante que
sequer respeitou a doença incurável do nosso infeliz soberano. Por esta razão, e para que
ninguém mais repita essa irresponsável façanha, decreto, em nome da lei e da ordem, a
pena máxima e exemplar para este reles forasteiro: a morte em praça pública!

Burburinho geral.
[PRÍNCIPE] (do meio do povo)
Senhora…! Senhora…!

[RAINHA]
Quem ousa interromper-me no momento solene em que declaro a sentença de um
condenado?

[PRÍNCIPE]
Sou eu, o vosso filho, senhora rainha!

[RAINHA]
Não haveria ocasião mais propícia para importunar-me? O que queres? Dize rapidamente!

[PRÍNCIPE]
Perdão, senhora minha mãe. Mas desejo interceder em nome desse pobre rapaz que
condenas a morte.

[RAINHA]
Interceder por este bandido? Acaso ele cumpriu o que prometeu diante de todo o povo?

[PRÍNCIPE]
Não, sei que não. Mas é uma criança ainda.

[RAINHA]
Queres intervir por um falso herói que a todos iludiu com mentiras?

[PRÍNCIPE]
Não. Quero salvar um inocente que, com a humildade dos puros, acreditou na vitória do
bem sobre a maldade.

[RAINHA]
Ah! E premiar com a liberdade a ganância de um impostor?

[PRÍNCIPE]
Perdoai-o senhora, por piedade, vos peço!

[RAINHA]
Não ia ele curar o vosso pai da demência? E não sabia, por acaso, o inocente, do que lhe
aconteceria se não conseguisse o seu intento?

[PRÍNCIPE]
Afastai-o de vossas terras, então! Mandai-o para longe! Desterrai-o! Mas não o deixes
morrer assim na flor da idade…

[RAINHA]
Minhas leis serão cumpridas com rigor e mãos de ferro!

[PRÍNCIPE] (ajoelhando-se, quase chorando)


Rogo-vos! Suplico-vos! Tendes piedade, senhora minha mãe!
[RAINHA]
Já chega!!! E sai desse papel ridículo, antes que tu sejas encarcerado numa masmorra
também! (para os guardas e carrasco) Preparai-vos para a execução!

O príncipe, desesperado e inconformado, vai até onde está a menina e ajoelha-


se ao seu lado.

[PRÍNCIPE]
Miranda… Já que não posso impedir que morras, escreverei a tua história pra que ela seja
contada nas praças, nas aldeias, vilas e cidades. Para que seja levada pelo vento, até
onde quer que haja alguém que acredite na justiça dos homens. Farei a mais bela história
que jamais se ouviu. E então não morrerás nunca na lembrança e na memória de todos:
será para sempre o nosso herói!

O povo todo, inflamado pela paixão das palavras do príncipe, grita com
veemência: Miranda, Miranda! Um tiro, dado para o alto, ordenado pela rainha
encolerizada, põe fim no tumulto. Silêncio aterrador novamente. Ela vai até o
carrasco, tira-lhe o capuz e depois aproxima-se do filho.

[RAINHA]
Conseguiste bem mais do que tencionavas, filho amado. (entregando-lhe o capuz) Veste-
o. Tu serás o carrasco de Miranda!

O príncipe olha para o capuz e meneia a cabeça sentindo-se incapaz de pegá-lo.

[RAINHA]
Se me desobedeceres, terás o mesmo fim!

Silêncio. O príncipe fica relutante.

[MIRANDA]
Faze-o, senhor meu príncipe. Não tenhas medo de ferir-me. Faze-o por amor.

[PRÍNCIPE]
Não posso… Prefiro morrer de igual maneira.

Tempo. A rainha permanece com o capuz estendido.

[MIRANDA]
Se não o fizeres, senhor, também não haverá mais aquela história bonita sobre um tal
sargentinho chamado Miranda…

Ele, então, decide-se. Pega o capuz das mãos da mãe e, lentamente, coloca-se
no lugar do algoz. Tempo grande.

[RAINHA]
Que seja cumprida, sem mais interrupções, a minha irrevogável sentença!

Rufar de caixa. Segundos de muita tensão. Pela lateral, sem que ninguém
perceba, em meio ao povo, surge o rei vestido com a suntuosidade dos velhos
tempos.

[REI]
Um momento!

Tudo pára.

[REI]
Está suspensa a execução, por desejo e ordem do rei!

Todos se voltam para olhar o local que o rei se encontra.

[PRÍNCIPE] (tirando o capuz)


Pai?

[REI]
Apresento-me diante de vós, meus súditos fiéis, em pleno domínio da minha faculdade de
amar e governar com justiça, para dizer com o coração transbordando de felicidade que o
vosso rei está de volta!

[ALGUÉM]
Viva o nosso rei!

[TODOS]
Viva!!!

[ALGUÉM]
Salve o nosso rei!

[TODOS]
Salve! Salve! Salve!

[REI] (apontando para Miranda)


E lá está o herói de tal proeza. Aquele que livrou-me da prisão do esquecimento, onde eu
vivia enclausurado. Nosso benfeitor e amado: Sargento Miranda!

Todos aplaudem.

[REI]
Vem! Podes descer, sargentinho. Estás livre e rico, pois terás como recompensa a metade
de todos os bens deste reino. Terás também o meu eterno agradecimento e a admiração
de todo o meu povo.

[TODOS]
Miranda! Miranda! Miranda!

A menina, vitoriosa, desce do cadafalso e se dirige ao centro do palco sob os


aplausos e a aclamação de todos.
[REI]
Posso pedir-te um favor, senhor sargento?

[MIRANDA] (fazendo continência)


Vosso desejo é uma ordem, senhor meu rei!

[REI]
Tira então o chapéu que vestes e revela-nos quem de fato és!

Miranda atende o seu pedido deixando aparecer seus longos cabelos e a estrela
de prata na testa. Burburinho e comentários gerais.

[REI]
E agora que revelaste a tua verdade, creio que devo revelar a minha também. Desvendar
o segredo que me fez permanecer por tantos anos apartado da vida, olhando pela janela à
espera de alguém. (tempo) Esperava por ti, Miranda… Porque és minha filha.

[TODOS]
Ohhhhhh!!!

[REI]
Vem! Abraça teu velho pai que te julgava morta e, mesmo assim, por tanto tempo e
sempre, te esperou…

Reações gerais do povo. O rei e a menina se abraçam comovidos enquanto


todos festejam igualmente emocionados. O príncipe, transtornado pela
revelação, avança pra frente (à esquerda do palco) e, alheio a manifestação
geral, deixa transparecer no rosto o desespero do seu sofrimento. Miranda
percebe, desvencilha-se dos braços do pai e vai até ele.

[MIRANDA]
Não me dás um abraço… irmão?

[PRÍNCIPE]
Não. Queria beijar-te como mulher, porque me apaixonei por ti.

[MIRANDA]
Esse será o nosso desejo secreto.

[PRÍNCIPE]
Então me amas também?

[MIRANDA]
Sigo o impulso do meu coração, mas não ouso contrariar os caprichos do destino.

[PRÍNCIPE]
Oh! Não! Que sorte infeliz! O que será de nós?

[MIRANDA]
Se não puder amar-te como a um homem, amar-te-ei fervorosamente como a um irmão.
Nesse momento o rei aproxima-se dos dois.

CENA 10 – A HISTÓRIA VERDADEIRA

[REI]
Vinde meus filhos! Juntai-vos a mim para que possamos desvendar a história que até aqui
nos trouxe e que, na verdade, ainda mal começou.

Nesse ínterim, os camponeses já espalharam pelo espaço alguns bancos e/ou


cadeiras, ao fundo, onde os nobres vão se colocar. No alto, no praticável do
cadafalso, a rainha permanece imóvel como uma estátua, impassível, desde a
entrada do marido. O rei senta-se no centro e os filhos, cada um de um lado. O
povo todo se ajeita, ao redor, para ouvir a história.

[REI]
Houve uma bela jovem, uma simples camponesa de sorriso fácil e olhos cor de mel, por
quem me apaixonei perdidamente.

Entra música.

[REI]
Seu nome era Miranda e nos amamos com tal intensidade quem nem o mais hábil de
todos os poetas poderia descrever. Éramos jovens, impetuosos, e antes mesmo de nos
casarmos, nos entregamos à fúria de um incontrolável amor. Foi quando se deu a guerra
e tive que ausentar-me do reino, deixando-a esperando por um filho, fruto de nossa
paixão. Confiei-a aos cuidados de sua irmã mais velha, que me prometeu ampará-la até a
minha volta. Quando retornei, recebi a notícia que a minha doce amada havia morrido. E a
criança também, na hora em que nasceu. Desamparado e sem a menor razão para viver,
deixei-me levar pelas mãos da malvada irmã que, ardilosamente, tudo arquitetou. Só
agora começo a compreender.

A música termina. O rei levanta-se e aponta com raiva para a rainha no alto do
cadafalso.

[REI]
Aquela! Que vedes usando a coroa real, é a irmã perversa da minha amada! Aquela! É a
nefasta e impiedosa irmã que fez com que a mentira se tornasse uma verdade tão
insuportável que me pus doente e me exilei da vida!

Todos vaiam a rainha e lhe atiram coisas.

[REI]
Acalmai-vos, senhores. Acalmai-vos para que a história possa se completar. Faltam ainda
muitos nós para serem desatados neste enredo: O que aconteceu, de fato, então? O que
fizeram com minha filha, a pobrezinha, assim que nasceu? E minha amada Miranda? Teria
mesmo morrido no parto, ou teria sido morta pelas mãos da própria irmã? E meu filho?
Será que a este, que senta-se ao meu lado, posso chamar de meu filho? Ou seremos
vítimas de mais uma perversa cilada?
Tempo. O rei caminha pelo espaço e depois dirige-se à rainha.

[REI]
Pois bem, senhora rainha. Encontro-me mais uma vez em vossas mãos. Só vós podereis
responder a tantas a tantas questões porque sois a autora de toda essa odiosa trama. O
que tendes a me dizer?

[RAINHA]
Nada. Não tenho coisa alguma a vos declarar.

[REI]
Negai-vos a me dar explicações?

[RAINHA]
Já vos disse que não tenho nada a dizer!

[REI]
Ousais desobedecer o rei?

[RAINHA]

[REI]
Sabeis que vosso silêncio pode levar-nos à forca?

[RAINHA]
Não tendes prova nenhuma para acusar-me!

[REI]
Por isso espero vossa confissão!

[RAINHA]
Puni-me e torturai-me de todas as maneiras. Por fim, matai-me da forma que quiserdes,
mas de minha boca não arrancareis uma palavra!

Reação indignada de todos, quase uma pequena revolta. Em meio a esse ligeiro
tumulto, uma estranha mulher, vestida de andrajos, surge por entre as pessoas
e aproxima-se do rei.

[MULHER]
Senhor! (ajoelhando-se aos seus pés) Peço-vos que me escuteis, honrando senhor. Tenho
muito a vos falar.

Todos vão se aglutinando para olhar a andrajosa figura aos pés do rei.

[MULHER]
Peço-vos permissão para relatar alguns fatos que em muito poderão vos esclarecer.

[REI]
Mas quem és? De onde saíste, pobre mulher?
[MULHER]
Sou apenas uma coitada infeliz que perambula pela vida.

[REI]
Bem… Sejas tu quem fores, levanta-te, bondosa mulher, e conte-nos o que tens para
contar.

A mulher levanta-se. Silêncio absoluto.

[MULHER]
Do que aconteceu a vossa filha pouca coisa tenho a dizer. Sei apenas que, ao nascer, foi
arrancada brutalmente dos braços da mãe, que mal teve tempo de colocar-lhe ao redor do
pescoço o cordão com o nome escrito em letras douradas, presente que o rei havia lhe
dado como prova de amor.

[REI] (emocionado)
Vejo que falas a verdade. Conheces detalhes. E minha amada mulher? O que aconteceu a
ela?

[MULHER]
No mesmo dia ainda, na calada da noite, a pobre mãe foi amarrada por dois homens da
confiança da irmã e jogada no rio.

Reações indignadas do povo.

[REI]
Prossegue, minha boa senhora.

[MULHER]
Planejava, a malvada, por inveja e ganância, tomar o lugar da irmã que mandara matar. E
assim o fez! Quando vós regressastes da guerra, diante de acontecimentos tão funestos,
fostes apunhalado pela dor e dominado pelo esquecimento. A ardilosa irmã, então,
aproveitando-se disso, tramou o casamento, tomou a coroa e o trono, e tudo o mais que
já sabeis.

[REI]
E meu filho? Sabes alguma coisa sobre ele?

[MULHER]
Nosso bondoso príncipe, não é vosso filho. Nem tampouco filho da rainha. Foi roubado,
ainda recém-nascido, de um casal de camponeses muito pobres que foram mortos,
também por ordem da rainha, para que ninguém viesse a saber de sua origem.

Nesse momento, o príncipe levanta-se e dirige-se a frente do palco novamente,


agora com brilho e esperança nos olhos. Miranda faz o mesmo, colocando-se do
outro lado. Durante esse último trecho do depoimento da mulher, a rainha vai
saindo lentamente do lugar onde estava até aproximar-se dela.
[RAINHA]
Mentirosa! Enganadora! Bruxa! Como podes relatar fatos que desconheces porque não
estavas presente?

A mulher de cabeça baixa nada diz.

[RAINHA]
Responde víbora! Andrajosa, maltrapilha! Queres tirar proveito da insanidade do rei
pondo-te a destilar mentiras sórdidas sobre nossas cabeças?

[REI]
Calai-vos! Até o presente momento, vós sois a víbora. Portanto não tendes direito algum
de questionar quem quer que seja diante da minha presença!

Tempo. Silêncio.

[REI] (dirigindo-se a mulher)


Como podes ter conhecimento de tantos fatos e tantos detalhes?

[MULHER]
Porque investiguei. Gastei os dias e as horas todas da minha vida acompanhando o
desenrolar dessa história, escondida nestes farrapos para não ser descoberta e levada à
morte.

[REI]
Por quê? Que razão terias pra isso? Esperavas uma recompensa? De quem? Do príncipe,
talvez, um dia…?

[MULHER]
Ainda não terminei o meu relato para que possais me julgar e então chegardes a uma
conclusão.

[REI]
Termina-o, pois. Terei ouvidos atentos pra tudo o que disseres.

[MULHER]
Vossa amada Miranda foi amordaçada, amarrada e lançada como um traste sem préstimo
num lamacento rio.

[REI]
Não me tortures mais. Já disseste isso!

[MULHER]
Mas quis o destino, porém, que ela sobrevivesse. Foi encontrada, desfalecida, por dois
pescadores que a recolheram e a trataram até que ficasse de todo curada.

[REI]
E então? Dize-me! Onde ela se encontra agora?
[MULHER]
Vestiu-se de andrajos e se pôs a perambular pelas ruas esperando seu amado rei voltar a
vida.

[REI]
Miranda?

Sob uma comoção geral, ela retira a capa de trapos e se mostra ao rei que,
emocionado, joga-se aos seus pés.

[REI]
Ah! Minha doce amada, pudesse ser de pedra ou de ferro esse meu coração, pra não
sentir a dor de tanta felicidade. Não te perderei outra vez, te prometo, amor de mim
roubado. (coloca em seu pescoço o cordão com o amuleto) Serás para sempre a minha
bela rainha! A rainha Miranda de todos nós!

Abraçam-se sob os aplausos de todos. Miranda corre até eles e abraçam-se os três. O
príncipe faz o mesmo e abraçam-se, então, os quatro. Entra música, o povo
grita o nome de Miranda e todos vão saindo de cena. Resta, no centro do palco,
impávida, altiva, soberba e solitária, a rainha má.

CENA 11 – UM CASTIGO EXEMPLAR: A VINGANÇA DOS CAVALOS

Entra uma música de caráter misterioso que sugira a estranheza de uma


espécie de culto ou ritual. A iluminação deve ressaltar uma ideia de algo entre
cerimonioso e opressivo. E, nesse clima meio que assustador, vão entrando, um
a um, os cavalos da cena da estrebaria. Entram e vão como que rodeando a
rainha má, que vai esgueirando-se sorrateira por todo o espaço e esquivando-
se deles, com o pânico de quem não tem saída. Fazem uma coreografia, uma
sequência de movimentos que deve resultar, por fim, num círculo de cavalos
em torno da rainha. O círculo, então, vai se fechando até culminar com o grito
da malvada sendo esmagada por eles. O grito deve se dar junto de um black-
out.

EPÍLOGO – O FINAL FELIZ

No escuro devem surgir duas lanternas acesas. Ou melhor, duas luzes


movimentando-se. As duas pequenas luzes dirigem-se a frente do palco e aí, já
então um pouco mais claros, distinguiremos Miranda e o príncipe sentados com
as lanternas nas mãos. Pequeno foco de luz amarelado sobre eles.

[PRÍNCIPE]
Não achas muito escuro para uma menina indefesa como tu?

[MIRANDA]
Há coisas muito piores que a escuridão.

[PRÍNCIPE]
Acho-te bonita e corajosa.
[MIRANDA]
Não é preciso coragem alguma quando se está do lado de quem se ama.

[PRÍNCIPE]
Retiro então o que eu disse. Acho-te só bonita.

[MIRANDA]
Psiu! Silêncio. Eles estão chegando…

[PRÍNCIPE] (sussurando)
Acho-te mais bonita ainda no silêncio da escuridão.

Ela sorri, olha para ele e os dois aproximam-se para beijar-se. Nesse momento,
entra música grandiosa e com ela mil luzes-piscantes tomam todo o espaço.
São os pirilampos de Miranda que chegam para clarear a noite fechada. Os dois
param para, extasiados, assistirem ao espetáculo das luzes. Riem e depois
voltam a se olhar. E então beijam-se apaixonadamente. Música cresce e luz
vem se apagando lentamente. Ficam piscando apenas as estrelas da mata.

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