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Cientistas
descodificam como interações do sistema
nervoso e imunitário queimam gordura
visceral
Marta Pedreira Mixão
O estudo, hoje publicado na revista científica Nature - e que conta com a participação de
cientistas portugueses - apresenta aquele que é o primeiro processo neuro-imune
conhecido, através do qual sinais cerebrais comandam a função imunológica nos
depósitos de gordura visceral. A descoberta oferece novas abordagens ao combate à
obesidade e, consequentemente, doenças associadas.
Além disso, existe uma relação entre a obesidade e pelo menos 13 tipos de cancro,
incluindo dois dos mais prevalentes (cancro da mama e cancro colorretal), bem como
doenças cardiovasculares que continuam a ser uma das principais causas de morte em
todo o mundo. O tipo mais prejudicial de obesidade é causado pela acumulação
excessiva de gordura visceral.
A gordura visceral pode aparentar ser uma massa amarela uniforme, mas, na verdade, é
um tecido complexo e heterogéneo. E, além das células de gordura, contém fibras
nervosas e muitos tipos de células diferentes, incluindo células do sistema imunológico.
E a equipa de investigação estava particularmente interessada num tipo específico de
células imunes - as células linfoides inatas do tipo 2 (ILC2).
"As ILC2 são essenciais a várias funções imunológicas, em muitos tecidos e órgãos,
incluindo a manutenção do bem-estar geral do tecido adiposo. No entanto, até aqui, não
sabíamos que células controlavam as ILC2 na gordura visceral ou quais as mensagens
moleculares que utilizavam para comunicar entre si", explica Ana Filipa Cardoso,
primeira autora do estudo, citada em comunicado.
Descobriu-se assim que as células mesenquimais [MSC] que, segundo Henrique Veiga-
Fernandes, eram “amplamente ignoradas até há cerca de uma a duas décadas”, são
afinal um mediador crítico da comunicação neuroimune na gordura visceral. "A opinião
generalizada era que estas, essencialmente, produziam a estrutura do tecido sobre a qual
outras células depois 'trabalhavam'. No entanto, os investigadores descobriram que as
MSC desempenham várias funções ativas essenciais."
“O que acontece é que há um tipo de células imunitárias, são as ditas células linfoides,
que estão muito abundantes na nossa gordura visceral – aquela gordura que é altamente
prejudicial para a nossa saúde e que se acumula à volta dos órgãos e, portanto,
normalmente dá uma barriga. Além de altamente prejudicial, esta gordura aumenta
muito significativamente o risco de desenvolvimento de cancro – e há 13 cancros
altamente associados a essa gordura visceral – e também doenças cardiovasculares”,
explica Henrique Veiga-Fernandes ao SAPO24.
Essas células do sistema imunitário são muito abundantes na gordura visceral e o que
acontece é que há mensagens do sistema nervoso que estão sempre presentes nessa
gordura, mas o sistema imunitário não as percebe. Assim, a função das células
mesenquimais [MSC] é, de certa forma, funcionarem como um tradutor. Vão traduzir as
mensagens do sistema nervoso para que as células do sistema imunitário possam
aumentar o metabolismo.
“É como se as células neuronais e imunológicas não falassem a mesma língua e as MSC
fossem o seu intérprete”, refere o investigador. "Se olharmos para o ambiente macro,
faz sentido. As MSC são efetivamente o 'ecossistema' do tecido e, portanto, estão na
posição ideal para ajustar a atividade de outras células."
O investigador refere ainda que “há muito tempo que há um grande interesse em
compreender a comunicação destes dois sistemas – nervoso e imunitário”.
“Essencialmente, há uma razão, diria, quase... não é filosófica, mas anda lá perto,
porque são os dois sistemas no nosso organismo que nos permitem interagir de forma
mais eficiente com o mundo exterior. O sistema nervoso, não é preciso explicar porquê,
é a forma como temos a perceção do nosso meio exterior com todos os sentidos e
reagimos. Portanto, há uma ação – reação. O sistema imunitário é exatamente a mesma
coisa, faz exatamente a mesma coisa. Mas o que o sistema imunitário vê é aquilo que os
olhos e os nossos sentidos não veem, são as pequenas coisas: os vírus, as bactérias,
componentes da nossa dieta, são instruções dadas por outras células do nosso corpo que
quando não estão saudáveis dizem ao sistema imunitário: ‘estou doente, elimina-me,
trata-me’. É exatamente a regra básica, o pilar, a lei pela qual eles se gerem é
exatamente a mesma”, explica Veiga-Fernandes.
“Estas semelhanças fizeram-nos, já há alguns anos, pensar que talvez eles pudessem,
entre os sistemas, cooperar em situações de doença ou cooperar no sentido de preservar
o nosso organismo num estado saudável e esta questão da gordura abdominal surgiu há
já alguns anos quando nós detetámos que no tecido adiposo visceral havia uma grande
predominância deste tipo de células imunitárias – as ditas células linfoides de tipo 2 – e
no sistema nervoso simpático”.
“As fibras nervosas dentro da gordura visceral pertencem ao chamado sistema nervoso
periférico. Este é responsável por vários processos fisiológicos, como a regulação da
pressão arterial”, explica Ana Filipa Cardoso. "Mas o sistema nervoso periférico não é
quem manda, apenas obedece ao sistema nervoso central, ao qual o cérebro pertence.
Então, a pergunta que fizemos a seguir foi 'qual é a estrutura do cérebro que está no
topo da cadeia de comando?'"
“O que nós já sabemos é que, por exemplo, em pessoas obesas, a gordura visceral destas
pessoas tem menos células do sistema imunitário. Há uma associação, o que não
demonstra causa-efeito, mas há uma boa correlação. O facto de terem menos células
imunitárias, que já sabemos que são responsáveis por dar a indicação para queimar a
gordura, poderá indiciar que efetivamente esta comunicação dos neurónios com o
sistema imunitário poderá ser diferente de indivíduo para indivíduo. Mas isto são coisas
que teremos de ver mais para a frente em humanos, para já sabemos que as células
imunitárias são menos abundantes em indivíduos obesos”, acrescenta.
“O que acontece é que essas células imunitárias na gordura visceral vão interpretar isso
com uma mensagem de ação e passam a estar ativadas e aumentam a atividade
metabólica e vão aumentar a queima de gordura visceral. Aliás, no artigo nós temos
exatamente experiências desse tipo, quer do ponto de vista genético, quer do ponto de
vista farmacológico”.
"O mais desafiante num projeto desta natureza é que estamos realmente a trabalhar
numa fronteira. Já não é imunologia, mas também não é neurociência. Temos de
dominar tecnologia, métodos e abordagens que são interdisciplinares ou
multidisciplinares. Alguns deles não existem mesmo havendo a necessidade de os
desenvolver do zero. Mas, ao mesmo tempo, o desafio conceptual é muito estimulante;
estamos mesmo a aventurar-nos no desconhecido”, conclui Veiga-Fernandes.