Você está na página 1de 5

Tudo começa no cérebro.

Cientistas
descodificam como interações do sistema
nervoso e imunitário queimam gordura
visceral
Marta Pedreira Mixão

18 ago 2021 16:52

Um estudo pioneiro, feito em ratinhos, revela novas alternativas terapêuticas para


reduzir as reservas de gordura visceral, que têm sido associadas a doenças
cardiovasculares e vários tipos de cancro.

O estudo, hoje publicado na revista científica Nature - e que conta com a participação de
cientistas portugueses - apresenta aquele que é o primeiro processo neuro-imune
conhecido, através do qual sinais cerebrais comandam a função imunológica nos
depósitos de gordura visceral. A descoberta oferece novas abordagens ao combate à
obesidade e, consequentemente, doenças associadas.

Os resultados do estudo, realizado em ratinhos e publicado esta quarta-feira, na revista


Nature, apresenta aquele que é o primeiro processo neuro-imune conhecido, através do
qual sinais cerebrais comandam a função imunológica nos depósitos de gordura
visceral. Esta descoberta oferece novas abordagens ao combate à obesidade e às
doenças a ela associadas.

A gordura visceral encontra-se na cavidade abdominal e envolve órgãos vitais como o


fígado, o estômago, o intestino. E embora seja uma importante reserva de energia, útil
para o desempenho de várias funções fundamentais, e proteja os órgãos situados no
abdómen, quando começa a acumular-se causa vários problemas de saúde - devido à
produção de níveis prejudiciais de proteínas e hormonas que afetam negativamente os
tecidos e órgãos próximos. Outra consequência negativa é a produção de substâncias
pró-inflamatórias - é propensa a aumentar a inflamação dentro do próprio tecido e é essa
inflamação constante e crónica, que está na base de vários problemas.

Além disso, existe uma relação entre a obesidade e pelo menos 13 tipos de cancro,
incluindo dois dos mais prevalentes (cancro da mama e cancro colorretal), bem como
doenças cardiovasculares que continuam a ser uma das principais causas de morte em
todo o mundo. O tipo mais prejudicial de obesidade é causado pela acumulação
excessiva de gordura visceral.

“O excesso de gordura visceral, além de muito perigoso, é também muito difícil de


eliminar”, explica Henrique Veiga-Fernandes, investigador principal e codirector da
Champalimaud Research, acrescentando que “neste projeto, a nossa equipa propôs-se a
explorar os mecanismos que o reduzem naturalmente, na expectativa de descobrir
potenciais aplicações clínicas”.

A gordura visceral pode aparentar ser uma massa amarela uniforme, mas, na verdade, é
um tecido complexo e heterogéneo. E, além das células de gordura, contém fibras
nervosas e muitos tipos de células diferentes, incluindo células do sistema imunológico.
E a equipa de investigação estava particularmente interessada num tipo específico de
células imunes - as células linfoides inatas do tipo 2 (ILC2).

"As ILC2 são essenciais a várias funções imunológicas, em muitos tecidos e órgãos,
incluindo a manutenção do bem-estar geral do tecido adiposo. No entanto, até aqui, não
sabíamos que células controlavam as ILC2 na gordura visceral ou quais as mensagens
moleculares que utilizavam para comunicar entre si", explica Ana Filipa Cardoso,
primeira autora do estudo, citada em comunicado.

Resultados anteriores revelaram que, no pulmão, é o sistema nervoso que controla


diretamente a atividade das ILC2 e, por isso, a equipa esperava encontrar aqui um
mecanismo semelhante. No entanto, descobriu algo completamente diferente. “Os
neurónios e as células do sistema imunológico não comunicavam”, lembra Ana Filipa
Cardoso. “Então, ao investigar outros candidatos no tecido, encontrámos finalmente um
'intermediário' bastante inesperado”.

Descobriu-se assim que as células mesenquimais [MSC] que, segundo Henrique Veiga-
Fernandes, eram “amplamente ignoradas até há cerca de uma a duas décadas”, são
afinal um mediador crítico da comunicação neuroimune na gordura visceral. "A opinião
generalizada era que estas, essencialmente, produziam a estrutura do tecido sobre a qual
outras células depois 'trabalhavam'. No entanto, os investigadores descobriram que as
MSC desempenham várias funções ativas essenciais."

E, mediante uma série de experiências complexas, identificaram a cadeia de comando e


as mensagens moleculares que são trocadas em cada etapa. "Começa com sinais
neuronais para as MSC. Estas enviam depois uma mensagem para as ILC2, à qual estas
últimas respondem ordenando que as células de gordura acelerem o seu metabolismo",
resume Ana Filipa Cardoso.

“O que acontece é que há um tipo de células imunitárias, são as ditas células linfoides,
que estão muito abundantes na nossa gordura visceral – aquela gordura que é altamente
prejudicial para a nossa saúde e que se acumula à volta dos órgãos e, portanto,
normalmente dá uma barriga. Além de altamente prejudicial, esta gordura aumenta
muito significativamente o risco de desenvolvimento de cancro – e há 13 cancros
altamente associados a essa gordura visceral – e também doenças cardiovasculares”,
explica Henrique Veiga-Fernandes ao SAPO24.

Essas células do sistema imunitário são muito abundantes na gordura visceral e o que
acontece é que há mensagens do sistema nervoso que estão sempre presentes nessa
gordura, mas o sistema imunitário não as percebe. Assim, a função das células
mesenquimais [MSC] é, de certa forma, funcionarem como um tradutor. Vão traduzir as
mensagens do sistema nervoso para que as células do sistema imunitário possam
aumentar o metabolismo.
“É como se as células neuronais e imunológicas não falassem a mesma língua e as MSC
fossem o seu intérprete”, refere o investigador. "Se olharmos para o ambiente macro,
faz sentido. As MSC são efetivamente o 'ecossistema' do tecido e, portanto, estão na
posição ideal para ajustar a atividade de outras células."

Henrique Veiga-Fernandes explicou ainda que “esse eixo de comunicação [entre o


sistema nervoso e o sistema imunitário] é extremamente importante para manter o corpo
saudável” e que este processo de comunicação acontece em todas as pessoas, “poderá é
acontecer de forma mais ou menos eficaz de indivíduo para indivíduo”.

“Esta comunicação acontece mesmo em pessoas saudáveis. Aliás, é importante que


aconteça justamente para preservar a saúde, mas também há uma primeira linha [de
defesa] em caso de infeção –  uma vez que são células que estão muito presentes nos
tecidos periféricos, no interior dos próprios tecidos e são, normalmente, a primeira linha
de defesa, quer contra infeções quer contra alterações que aconteçam nos órgãos, quer
por situações normais. Por exemplo, no pulmão, este tipo de células são relativamente
abundantes e são muito importantes como primeira linha, por exemplo, num contexto de
infeções parasitárias ou alergologia”, esclarece.

O investigador refere ainda que “há muito tempo que há um grande interesse em
compreender a comunicação destes dois sistemas – nervoso e imunitário”.

“Essencialmente, há uma razão, diria, quase... não é filosófica, mas anda lá perto,
porque são os dois sistemas no nosso organismo que nos permitem interagir de forma
mais eficiente com o mundo exterior. O sistema nervoso, não é preciso explicar porquê,
é a forma como temos a perceção do nosso meio exterior com todos os sentidos e
reagimos. Portanto, há uma ação – reação. O sistema imunitário é exatamente a mesma
coisa, faz exatamente a mesma coisa. Mas o que o sistema imunitário vê é aquilo que os
olhos e os nossos sentidos não veem, são as pequenas coisas: os vírus, as bactérias,
componentes da nossa dieta, são instruções dadas por outras células do nosso corpo que
quando não estão saudáveis dizem ao sistema imunitário: ‘estou doente, elimina-me,
trata-me’. É exatamente a regra básica, o pilar, a lei pela qual eles se gerem é
exatamente a mesma”, explica Veiga-Fernandes.

“Estas semelhanças fizeram-nos, já há alguns anos, pensar que talvez eles pudessem,
entre os sistemas, cooperar em situações de doença ou cooperar no sentido de preservar
o nosso organismo num estado saudável e esta questão da gordura abdominal surgiu há
já alguns anos quando nós detetámos que no tecido adiposo visceral havia uma grande
predominância deste tipo de células imunitárias – as ditas células linfoides de tipo 2 – e
no sistema nervoso simpático”.

Tudo começa no cérebro

Uma vez identificado o circuito local para o processo de queima de gordura, os


cientistas deram um passo atrás para questionar o que, à partida, desencadeia a atividade
neural nos depósitos de gordura visceral.

“As fibras nervosas dentro da gordura visceral pertencem ao chamado sistema nervoso
periférico. Este é responsável por vários processos fisiológicos, como a regulação da
pressão arterial”, explica Ana Filipa Cardoso. "Mas o sistema nervoso periférico não é
quem manda, apenas obedece ao sistema nervoso central, ao qual o cérebro pertence.
Então, a pergunta que fizemos a seguir foi 'qual é a estrutura do cérebro que está no
topo da cadeia de comando?'"

Segundo explica o comunicado a Fundação Champalimaud, a equipa identificou uma


região, dentro do hipotálamo (chamada PVH - Núcleo paraventricular do hipotálamo),
como a origem. Esta estrutura, situada perto da base do cérebro, é o centro de controlo
de um conjunto diversificado de processos que vão do metabolismo à reprodução e às
funções gastrointestinais e cardiovasculares.

“Esta descoberta é muito significativa”, diz Veiga-Fernandes. “É o primeiro exemplo


claro de um circuito neuronal cruzado que traduz as informações do cérebro numa
função imunológica relacionada com a obesidade. E também levanta muitas outras
questões. Por exemplo, o que leva o PVH a emitir a ordem para 'queimar gordura'? Está
relacionado com o comportamento, como comer certos alimentos ou fazer exercício?
Ou depende de sinais metabólicos internos? Ou ambos? É uma tela em branco - não
sabemos o que é, e isso é fascinante."

A possibilidade de abrir novos caminhos na luta contra a obesidade

Segundo a equipa, estes resultados apresentam várias abordagens potenciais para a


manipulação do processo de queima de gordura visceral. “Este novo eixo de regulação,
marcado por etapas, que identificámos agora, revela muitos pontos de acesso ao
metabolismo da gordura visceral. Agora podemos começar a pensar em formas de usar
este novo conhecimento para combater a obesidade visceral e, assim, reduzir o risco de
doenças cardiovasculares e cancro”, salienta Cardoso.

O investigador Veiga-Fernandes acrescenta que vários esforços nesse sentido já estão


em curso. "Isto é algo que estamos ativamente à procura. Não no laboratório, que
continua a concentrar-se em questões de investigação fundamentais, mas no contexto de
uma startup chamada LiMM Therapeutics, sediada aqui, no Centro Champalimaud."

“O que nós já sabemos é que, por exemplo, em pessoas obesas, a gordura visceral destas
pessoas tem menos células do sistema imunitário. Há uma associação, o que não
demonstra causa-efeito, mas há uma boa correlação. O facto de terem menos células
imunitárias, que já sabemos que são responsáveis por dar a indicação para queimar a
gordura, poderá indiciar que efetivamente esta comunicação dos neurónios com o
sistema imunitário poderá ser diferente de indivíduo para indivíduo. Mas isto são coisas
que teremos de ver mais para a frente em humanos, para já sabemos que as células
imunitárias são menos abundantes em indivíduos obesos”, acrescenta.

Os investigadores conseguiram assim perceber “a linguagem que estas células ‘falam’”


e, por isso, agora podem ‘meter-se na conversa’ que estas estabelecem numa situação
normal. Mas como podem fazê-lo? “A linguagem que falam, no essencial, é através de
substâncias químicas, um determinado tipo de proteínas que produzem e que permitem
que elas ‘conversem’ entre si. Agora, sabemos, por um lado, quais são os sinais
químicos que os neurónios utilizam para dar uma mensagem às células mesenquimais.
Por outro lado, já sabemos qual é a língua que as células mesenquimais falam para
comunicar com as células imunitárias”, esclarece Henrique Veiga-Fernandes.
Desta forma, o investigador explica que o que se pode fazer, pressupondo que se
pretende aumentar a atividade destas células imunitárias no tecido visceral, seria “de
uma forma terapêutica, introduzir ‘palavras’ ou uma ‘língua’ no nosso organismo que
seja falada pelas células mesenquimais.

“O que acontece é que essas células imunitárias na gordura visceral vão interpretar isso
com uma mensagem de ação e passam a estar ativadas e aumentam a atividade
metabólica e vão aumentar a queima de gordura visceral. Aliás, no artigo nós temos
exatamente experiências desse tipo, quer do ponto de vista genético, quer do ponto de
vista farmacológico”.

“Melhor do que curar o cancro é preveni-lo”

Para Henrique Veiga-Fernandes, “esta descoberta [do estudo] muda radicalmente o


paradigma da nossa compreensão da obesidade, porque, vem realmente demonstrar que
há outras formas de, possivelmente, completarmos aquilo que é a ação terapêutica e
compreendermos também o processo que está inerente ao desenvolvimento da
obesidade ou acumulação de gordura visceral, que permite, na realidade, a manutenção
de níveis saudáveis de gordura visceral ou mesmo a redução dessa gordura e isso é de
facto definido (conseguido) por esta ‘coreografia’ entre o sistema nervoso e imunitário”.

Porque o seu tempo é precioso.

Subscreva a newsletter do SAPO 24.

“A importância da descoberta prende-se também, além da prevenção de doenças


cardiovasculares, com a associação deste tipo de gordura a treze tipos de cancro
“altamente associados à obesidade”, duas dessas formas de cancro são extremamente
prevalentes em Portugal – da mama e colorretal –, portanto, melhor do que curar o
cancro é preveni-lo”, relembra.

"O mais desafiante num projeto desta natureza é que estamos realmente a trabalhar
numa fronteira. Já não é imunologia, mas também não é neurociência. Temos de
dominar tecnologia, métodos e abordagens que são interdisciplinares ou
multidisciplinares. Alguns deles não existem mesmo havendo a necessidade de os
desenvolver do zero. Mas, ao mesmo tempo, o desafio conceptual é muito estimulante;
estamos mesmo a aventurar-nos no desconhecido”, conclui Veiga-Fernandes.

Você também pode gostar