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METODOLÓGICAS EM PSICANÁLISE
Fernando Aguiar*
RESUMO
com concisão e clareza admiráveis o que forma as teorias próprias àquela disciplina
parece pertinente sobre o tema. Ele co- (Mezan, 2002, p. 438).
meça por assinalar como nessa discussão
sobre a cientificidade da psicanálise estão Este artigo visa destacar alguns
embutidos inúmeros pressupostos, sobre elementos que interessam à epistemolo-
os quais “reina uma considerável confu- gia e à metodologia psicanalíticas, e que
são”. Ao tentar formulá-los mais precisa- foram antes objeto de reflexão sistemáti-
mente, diz ele, “percebemos que o mais ca da parte de autores. Como tal, ele tem
das vezes os interlocutores não se enten- a função e a estrutura de um compte
dem porque não falam a mesma língua — rendu (não-exaustivo) do estado atual
termos como ‘ciência’, ‘realidade’, ‘ver- dessas discussões. Essas discussões in-
dade’ e outros significam coisas diversas dagam sobre o lugar da clínica na pesqui-
para cada um deles”, e o resultado “é a sa psicanalítica. Verificam quando e sob
babel que conhecemos” (p. 436). Mezan que forma se pode falar de pesquisa no
apóia-se no artigo “L’idée d’épistémo- domínio da psicanálise, e indagam sobre o
logie”, do filósofo Gerard Lebrun, no qual lugar ocupado por tal pesquisa no seio da
o autor francês sugere em que consiste a comunidade científica, em particular a
especificidade da abordagem epistemo- universitária. Examinam as bases das
lógica. Segundo Lebrun, cada ciência interações da psicanálise com outros cam-
constrói a sua própria racionalidade, pos do saber, e o método próprio psicana-
e isso se diferencia profundamente da lítico de pesquisa.
idéia de uma razão universal que se ex-
pressaria em todas as construções inte- Primeiras delimitações
lectuais realizadas pelo homem.
Para Freud, como se sabe, a
A esse tipo de abordagem, Lebrun Weltanschauung da psicanálise é cientí-
denomina “reflexão racionalista sobre as fica. Ele quis mesmo registrar sua disci-
ciências”, e afirma que a epistemologia plina no quadro das ciências da natureza
não trabalha da mesma forma. Ele postula de seu tempo, as Naturwissenschaften
que a originalidade de um saber implica — na divisão clássica de T. Droysen, em
uma racionalidade própria àquele saber, e 1854, as que pretendiam explicar, e que se
deseja precisamente pôr a nu as estruturas
opunham às ciências do espírito, as
daquela racionalidade [...]. É o caráter
autóctone dessa montagem, implicando Gesteswissenschaften, que pretendiam
decisões e escolhas, que permite determi- compreender. A partir da asserção de
nar objetos até então inéditos, tornando- Assoun, que associa às ciências do espí-
os passíveis de serem conceituados por rito uma “valorização dos fatos” e às
noções igualmente inéditas, as quais se ciências da natureza “juízos de realida-
disporão em enunciados cujo conjunto de”, Mezan (2002) entende a recusa de
Freud em incluir a psicanálise entre as p. 132). Mais tarde Lacan optaria por
primeiras, em parte porque era “seu obje- situar a psicanálise num lugar específico
tivo [...] descrever uma região da realida- fora da ciência, o que não quer dizer fora
de (o inconsciente, tal como ele se apre- de rigor (De Neuter, 1988). Enfim, a
senta nas condições do setting analítico), psicanálise foi tomada por uma herme-
e nessa condição está implícita a neutra- nêutica (Paul Ricoeur é disso o exemplo
lidade em relação à natureza desses pro- mais ilustre) e até por uma ética — ainda
cessos”. Por outro lado, ele acrescenta, que, alheia a uma visão de mundo e uma
“a interpretação — ferramenta psicana- visão do homem (Marie, 2004), ela não
lítica por excelência — consiste numa possa fazer mais do que se alinhar a uma
explicação (...) e de forma alguma num ética que leve em conta a hipótese do
exercício de compreensão” (p. 483). inconsciente.
Inscrevendo-se na subversão ci- Há de outra parte aqueles que
entífica operada no início do século XX, o acusam os psicanalistas de praticar uma
fundador da psicanálise professou um “ciência secreta” (Geheimwissenschaft)
agnosticismo radical. Segundo Marie (Assoun, 1997). De fato o próprio Freud,
(2004), seu agnosticismo foi ao mesmo imbuído da idéia de um “movimento”,
tempo uma posição técnica — essa teria utilizado a expressão Geheim-
neutralidade que o psicanalista deve as- bündler para nomear os psicanalistas; ou
sumir e que o obriga, na clínica, a abster- seja, membros de “associações secretas”
se de todo julgamento de valores — e uma (Geheimbünden), associações de indiví-
posição epistemológica — a renúncia a duos unidos por “objetivos” comuns —
qualquer concepção do homem e do mun- sendo que o termo pode mesmo conotar a
do, preservando-se de qualquer pressu- idéia de conspiração. Geheimwissens-
posto metafísico. chaft designa assim um saber ou uma
Lacan, com sua hipótese — o in- doutrina (Geheimlehre) que não é desti-
consciente estruturado como uma lingua- nada à divulgação, mas antes reservada
gem —, também chegou a pensar em aos “iniciados” (Eingeweihten). Ora,
sustentar a psicanálise, no campo das para ele, muito ao contrário, tornar públi-
ciências, como “ciências conjecturais” cas as aquisições psicanalíticas (e, por
(De Neuter, 1988). A posição conjectural conseguinte, validá-las) foi uma de suas
diz respeito a uma asserção hipotética e, tarefas mais constantes, e com o afinco e o
de fato, “uma hipótese como a do incons- zelo próprios e legítimos de um fundador.
ciente não está de modo algum na mesma A prática psicanalítica, embora eli-
situação epistemológica de um postulado: tista no que se refere aos custos de uma
a hipótese é um operador técnico, o pos- formação e tenha sua representação po-
tulado, um princípio que governa certa pular confundida com a do psicólogo, do
representação do mundo” (Marie, 2004, psiquiatra ou, mais particularmente, com
1
Deve-se ao Autor a tradução de trechos de obras referidas em língua estrangeira.
seu método. Por um lado, ele deve reafir- baseia numa única observação, lembra
mar que a pesquisa em psicanálise, con- Freud (1913/1973) em “A predisposição
temporânea ao tratamento, é parte inte- à neurose obsessiva”, de 1913, preocupa-
grante da formação e da atividade clínica do em diferenciar sua invenção das dissi-
do psicanalista. Por outro lado, deve levar dências adleriana e jungiana: “Na realida-
em conta que, na academia, a atividade de de, [este pequeno novo fragmento da
pesquisa adquire por inúmeras razões teoria] concentra um grande número de
outros significados: nesse caso, contrari- impressões mais antigas, cujo sentido só
amente ao que ocorre no setting analítico, advém depois da última experiência” (p.
em que “o psicanalista não explicita nada 192). O conhecimento psicanalítico dá-
além de que ele é um psicanalista, [...] é se, portanto, a posteriori — isto é, no
necessário que ele acrescente especifici- sentido clássico, filosófico, como resulta-
dade e clareza em sua atividade de pes- do da experiência ou dela dependente.
quisa” (Berlink & Magalhães, 1997, p. 3). Contudo, recomenda-se ler os pa-
Esta é a tradição universitária. rágrafos iniciais de “Pulsões e destinos de
A teoria em psicanálise possui um pulsões”, de 1915, apontados por Assoun
estatuto próprio: ela é ao mesmo tempo (1981) como a plataforma epistemológica
saber constituído e saber sempre sujeito a da psicanálise freudiana, e onde se pode
remanejamentos. Toda investigação psi- observar o caráter relativo, nuançado e
canalítica é de tipo qualitativo, e é esta jamais ingênuo e fundamentalista de sua
imersão profunda “na singularidade de opção empirista. Ali, amparado em E.
um caso que permite extrair dele tanto o Mach (cf. Mezan, 2002), Freud afirma
que lhe pertence com exclusividade quanto que a ciência começa por observar fenô-
o que compartilha com outros do mesmo menos e descrevê-los, para em seguida
tipo”; como tal, “o caso ganha um valor tentar explicá-los por meio de “idéias
que se pode chamar de exemplar” (Me- tiradas daqui e dali”, que aos poucos vão
zan, 2001, p. 157). Disciplina que lida com formando um sistema, por definição pro-
fenômenos ou processos que não se apre- visório e aberto às modificações impostas
sentam de maneira unívoca e comportam pela experiência, pois, se a imaginação
diferentes apreciações, a psicanálise tra- especulativa sugere nexos e relações “que
balha igualmente no plano da singulari- não se reduzem apenas à experiência
dade, segundo o ponto de vista de que “o atual” (Freud, 1915/1988), o primado per-
‘caso’ singular é ao mesmo tempo o tence ao teste de realidade (que ele, na
acesso ao universal e seu ‘avalista’ correspondência com Ferenczi, chama
(garant)” (Assoun, 1997, p. 14). Tal de “crítica impiedosa”). Na pesquisa psi-
posição certamente não exclui um efeito canalítica trabalha-se assim no plano da
cumulativo. Apenas na aparência um generalidade, num “processo de cons-
“pequeno novo fragmento da teoria” se trução do conhecimento por generaliza-
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A implicação transferencial do pesquisador em psicanálise na sua pesquisa, se intensa, não chega a ser
necessariamente uma experiência tão dramática como a descrita pelo historiador inglês Anthony Beever,
na revista Veja (04/05/2005), a respeito de suas pesquisas sobre a Segunda Guerra e, em particular, sobre
“as atrocidades cometidas pelo soldado comum”. “Quando estava analisando um documento histórico,
eu me concentrava em fazer uma seleção não emocional das informações que podiam servir ou não para
o livro. Só no dia seguinte à noite, às 3 ou 4 horas da madrugada, eu acordava subitamente angustiado pela
lembrança dos horrores sobre os quais eu tinha lido, e não conseguia voltar a dormir. Isso acontecia com
maior freqüência quando eu lia sobre as descrições dos casos de canibalismo. Em Stanlingrado [São
Petersburgo], os soldados alemães deixavam os prisioneiros russos sem comida e eles tinham de comer
carne humana para sobreviver. Às vezes, eu me sentia mal no almoço ou no jantar só de olhar para a comida
e imaginar o que seres humanos foram forçados a fazer para não morrer de fome. Tive a mesma reação quando
fiz a pesquisa sobre a queda de Berlim. Ao terminar o livro, eu estava próximo de um colapso nervoso”
(p. 137). A noção (clínica) de “neurose de transferência” talvez fosse a mais adequada para descrever tais
experiências — mas sua condição (de grau), parafraseando Freud, depende dos fenômenos transferenciais
possíveis em cada caso.
próprio pensamento, “interessado” por não têm evidentemente nada a fazer com
todas essas disciplinas. “A aplicação da as interpretações de Freud. Em troca, a
psicanálise fora do campo do tratamento teoria psicanalítica tem muito a ganhar
parece-lhe então quase natural. Assim, com o que Freud nos fala deles, e não
quando escolhe trabalhar sobre Leonardo apenas de seus pacientes, porque, frente
da Vinci, como dissemos, Freud está em a Leonardo ou Michelangelo, nós esta-
via de refletir sobre as ‘teorias sexuais mos na mesma situação de exterioridade
infantis’ e os efeitos de inibição que elas em que se encontrava o próprio Freud”.
comportam” (Mijolla-Mellor, 2004, p. 44). Como resultado, o estudo de uma obra de
Diversas fontes coincidem para levá-lo a arte ou de uma obra literária desenvolve
trabalhar sobre este pintor: primeiro, seu e coloca à prova o método psicanalíti-
interesse pela inibição, que não é jamais co. “Ela o impele aos limites de sua
uma falta de desejo, mas o resultado de compreensão, mas também o torna mais
um conflito de desejos (para Leonardo, o facilmente comunicável que um caso clí-
conflito entre a arte e a ciência). Segundo, nico, por definição, apenas conhecido pelo
seu encontro com um paciente que se analista que fala dele” (Mijolla-Mellor,
parece com Leonardo, ainda que, como 2004, p. 45).
ele escreve a Jung, sem ter o gênio do Eis então uma das razões pelas
mestre italiano. quais Mijolla-Mellor propõe o termo “in-
A aplicação da psicanálise a Leo- terações da psicanálise”, diferente de
nardo da Vinci não é gratuita, afirma a “aplicações” da psicanálise. O termo “in-
autora. Há uma lógica que impele Freud teração” sublinha que, antes de interessar
para este trabalho, e por isso ele ocupa um os outros campos do saber ou da cultura,
lugar nos prolongamentos da teoria freu- a própria psicanálise está interessada
diana. Mas há mais do que isso. “É prová- nesses campos, na medida em que eles
vel que Freud, como descobridor, sentisse são parte constitutiva dela própria. Toma-
afinidades profundas com Leonardo da da assim, a aplicação da psicanálise fora
Vinci, assim como dizia de Copérnico ou do campo do tratamento não é uma ocu-
de Darwin, que, como ele próprio, infligi- pação estéril ou um exercício arriscado e
ram grandes feridas narcísicas à humani- perigoso no qual não se encontraria nada
dade com suas descobertas” (Mijolla- além do já posto desde o início.
Mellor, 2004, p. 44). Tais afinidades, mais A autora considera que se pode ir
ainda a dimensão narcísica nelas implica- ainda mais longe. Ela retorna ao já refe-
das, diriam respeito a esta dimensão auto- rido sobre inter ou transdisciplinaridade
analítica indissociável de toda pesquisa para afirmar que se pode tomar um objeto
em psicanálise. de estudo — um fato de sociedade, ou
A argumentação da autora é preci- uma noção geral — e examiná-lo através
sa: “Leonardo da Vinci, ou Michelangelo, dos pontos de vista específicos de diver-
SUMMARY
The article deals with some elements that concern to epistemology of psycho-
analysis, and that are usually object of systematic reflection in psychoanalysis. The
article is a compte rendu of the present state of discussions about the scientific status
of psychoanalysis. The role of clinic in psychoanalytic research. When and how can we
speak about research in the psychoanalytic domain. The role of that kind of research
in the center of the scientific community. The interactions of psychoanalysis with others
areas of knowledge. The psychoanalytic research method.
RESUMEN
Fernando Aguiar
R. do Calafate, 79/204 — Pantanal
88040-008 Florianópolis, SC
E-mail: fabs@cfh.ufsc.br