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Formação,

ciência e arte
(Autobiografia, arte e ciência na docência)
SÍLVIA NOGUEIRA CHAVES
MARIA DOS REMÉDIOS DE BRITO
(Organizadoras)

Formação,
ciência e arte
(Autobiografia, arte e ciência na docência)

2016
Copyright © 2016 Editora Livraria da Física
1ª Edição

Direção editorial José Roberto Marinho

Revisão As organizadoras

Projeto gráfico e diagramação Fabrício Ribeiro

Capa Erasmo Borges de Souza Filho

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Formação, ciência e arte: (autobiografia, arte e ciência na docência) / Sílvia Nogueira Chaves, Maria
dos Remédios de Brito, (organizadoras). – São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016.

Vários autores.
ISBN 978-85-7861-449-2

1. Arte - Estudo e ensino 2. Ciência - Estudo e ensino 3. Educação 4. Pedagogia 5. Práticas


educacionais 6. Professores - Formação I. Chaves, Sílvia Nogueira II. Brito, Maria dos Remédios de.

16-00111 CDD-370.71

Índices para catálogo sistemático:


1. Práticas educativas: Formação docente: Educação 370.71

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sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora.
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da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

Editora Livraria da Física


www.livrariadafisica.com.br
“Que jamais a voz da criança nela se
cale, que caia como um presente dos
céus oferecendo às palavras ressecadas
o brilho de seu riso, sal de suas lágri-
mas, sua toda-poderosa selvageria”
(Louis-René Forêts)
SUMÁRIO

O começo nunca é um fim..................................................11

Prefácio...............................................................................19

ENTRE POLÍTICA, ESTÉTICA E RESISTÊNCIA:


MODOS DE EXISTÊNCIA
O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e
estética...............................................................................27
Emanuela Mancino

Notas sobre um encontro intempestivo:


Foucault e Matta-Clark.....................................................43
Jorge Vasconcellos

Correndo risco de vida: uma história para contar de si.......57


Wladilene de Sousa Lima

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros


espaços para a docência......................................................71
Luciana Gruppelli Loponte

Como escrever com os ruídos do mundo?..........................89


Leandro Belinaso

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e


contemporaneidade..........................................................103
Joel Cardoso
Mídia, Produção de Saberes e Educação..........................115
Erasmo Borges de Souza Filho

O Facebook como produção de subjetividade: maquinações e


dobras...............................................................................129
Helane Súzia Silva dos Santos e Maria dos Remédios de Brito

ESCRITAS, BIOGRAFIAS E FABULOGRAFIAS


Formação e docência: o desafio de ser semente................141
Sílvia Nogueira Chaves

Por uma formação baseada em artes ou três modos de


fuga dos modelos ideais....................................................153
Renata Ferreira da Silva

Narrart: autobiografia de formação...................................171


Joana D’arc Chaves de Campos e Sílvia Nogueira Chaves

Do movimento fugitivo ao criador – a metodologia


elemental aplicada à minha pesquisa poética....................181
Breno Filo Creão de Sousa Garcia

Con/trans/des figurando corpos.......................................193


Carlos Augusto Silva e Silva e Maria dos Remédios de Brito

Confissões de um jaleco: metamorfoses e resistências!.....203


Luciane de Assunção Rodrigues e Sílvia Nogueira Chaves
VARIAÇÕES: FOTOGRAFIAS, LITERATURA E SONS
Fotografias infames...........................................................229
Amanda Maurício Pereira Leite

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal..........251


Alda Romaguera, Alik Wunder e Marli Wunder

A experiência da escrita em A paixão segundo G. H


de Clarice Lispector.........................................................267
Debora Souza e Alberto Amaral

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas


obras de Keyla Sobral.......................................................283
Alberto Amaral

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em


Clarice Lispector..............................................................305
Maria dos Remédios de Brito

Modulações em ritornelos de sons e luzes........................319


Marcus Pereira Novaes e Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações


míticas e místicas ameríndias...........................................333
Rafael Cabral

Sobre as organizadoras.....................................................345

Sobre os autores................................................................347
O começo nunca é um fim

“Acreditar no mundo é o que mais nos


falta; nós perdemos completamente o
mundo, nos desapossaram dele”
(Gilles Deleuze)

...Uma narrativa... Uma apresentação, um discurso,


um diálogo... Entre dois, entre encontros...

Silvia:
Parafraseando Gabriel Garcia Marques eu direi que não vim
fazer um discurso. Talvez tenha vindo contar-lhes uma história
que ainda está em curso, incompleta, inconclusa. E, de antemão
aviso, não serei eu a dar-lhe um ponto final.
Essa história se escreve em duas línguas e se passa simul-
taneamente em dois continentes unidos pelo oceano Atlântico.
Sim! Disse unidos e não há nenhum equívoco nisso, pois que
águas formam ruas e ruas conectam. Mas voltemos a nossa his-
tória, que se inicia no ano de 2011, sediada nas noites quentes da
“primavera” amazônica e nas madrugadas frias do outono mila-
nês. Eis que no silêncio daquelas noites/madrugadas 5 mulhe-
res confabulam. Leem, escrevem, falam, riem, contam, cortam,
copiam, colam, tecem e por fim montam um patchwork de ideias,
planos, sonhos que se materializam em um projeto de pesquisa
que experimenta composições entre autobiografia, arte e formação
docente. O projeto naufraga, não no Atlântico, mas na burocracia
institucional, esse território pantanoso que engole planos, mas
felizmente não foi capaz de sugar sonhos.
Sonho retocado, reelaborado, agora por outros tantos que
resolveram sonhar junto, o projeto navegou, atravessou o oce-
ano e reuniu todos vocês que estão aqui presentes com aquelas
cinco mulheres, Emanuela Mancino, Isabel Lucena, Maria dos
Remédios de Brito, Ana Sgrott e Silvia Chaves.

Silvia:
Mia Couto nos conta que certa vez perguntado ao líder
comunista vietnamita Ho Chi Minh como ele havia conseguido
escrever versos tão cheios de ternura em uma prisão tão violenta e
desumana, ele respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”. Pois bem,
creio que muitos de nós que estamos hoje aqui temos desvalo-
rizado paredes e ousado escrever a educação, a arte e a ciência à
revelia das fronteiras. Temos operado como elas não como cam-
pos disciplinares, mas como espaços de criação, potência, energia
vital indomável, vida, enfim. E a vida está sempre em estado de
rascunho. Quando algo se cristaliza já deixou de ser vida. Pensar
a formação como campo de vitalidade é pensá-la como movi-
mento inventivo como escrita de si cambiante, que não cessa de
(re)criar-se. Por isso essa história que hoje conto não se encerra
aqui, ela continua nessa Belém quatrocentona e se prolongará em
cada um de nós com ritmos e durações diferentes.
Contudo, este momento é especial, porque estamos todos
juntos e mobilizados a pensar na tríade formação, ciência e arte
numa perspectiva menos codificada, menos submissa às nor-
mas. Estamos dispostos a experimentar um pensamento em

12 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


zigue-zague que flerta com as sinuosidades e capilaridades das
ruas de água amazônicas.
Experimentaremos abortar binarismos e provar um pouco
de tudo aquilo que nos multiplica e potencializa. Ousaremos libe-
rar a imaginação, “fugir dos traços acostumados, olhar as coisas
de azul e sem eternidades”, como nos convida Manoel de Barros.
Trataremos das grandezas do ínfimo, do miúdo, das raspas
e restos esquecidos pelas racionalidades credenciadas. E, quem
sabe (?), sairemos daqui desejosos de atingir a pureza de não saber
mais nada, como o Miró, de Manoel de Barros, e talvez como ele
alcançar iluminuras na escuridão.

Silvia:
Em fevereiro de 1975 (nove meses antes de sua morte) o
cineasta Pier Paolo Pasolini publica no jornal italiano Correio da
Tarde um artigo sobre a situação política da Itália. Mais tarde,
esse artigo foi publicado em Escritos Corsários e ficou conhecido
como “O artigo dos vagalumes”. Nele, metaforicamente, Pasolini
lamenta o desaparecimento dos vagalumes (lucciole, lucciola),
referindo-se ao triunfo do fascismo que, para ele, apenas se con-
tinuava no novo regime democrata-cristão que se instaurara na
Itália. Para Pasolini os vagalumes, as “pequenas luzes” que resis-
tiriam à política e à massificação cultural de seu tempo haviam
desaparecido sob os holofotes dos “shows políticos, dos estádios
de futebol, dos palcos de televisão” (DIDI-HUBERMAN, 2014,
p. 30). Pasolini dizia que

O verdadeiro fascismo é aquele que tem por alvo os valo-


res, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É

O começo nunca é um fim 13


aquele que conduz, sem carrascos nem execuções em massa,
à supressão de grandes porções da própria sociedade (apud
DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 29)1.

Não foi a escuridão que espantou os “vagalumes”, mas o


excesso de luz, a ofuscante claridade da razão única (e nunca
antes se reivindicou tanto a razão), essa forma de fascismo que
atravessa a educação, a ciência, a arte, cristalizando, petrificando
aquilo que já foi vida, ao menos parte dela, e viver pela metade é
tão somente uma forma de estar morto.
Em tempos de espetáculos televisivos, de binarismos políti-
cos, de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) –, esse novo
holofote no campo da educação brasileira que tenta ofuscar as
bioluminescências locais (lucciole), as “pedagogias menores”, no
sentindo deleuziano, as micropolíticas anunciadas por Foucault
– suspiramos pelas trevas, que nos farão apreciar a dança dos
pirilampos, e pelo silêncio que nos devolverá a sensibilidade aos
ruídos, aos pequenos gestos que nos gritarão: Sim! Aqui tem vida
e ela pulsa com a intensidade de quem experimenta o presente
para viver o presente, para recriá-lo todos os dias, sem esperar um
incerto amanhã.

1 DIDI-HUBERMAN, Georges Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte, Editora


UFMG, 2014.

14 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Remédios:
“Um mosaico para resistir à
brutalidade”
(Maria dos Remédios de Brito)

Fragmentos, multiplicidade, corpo, mobilidade, afeto...


disperso, concreto, formigamento da diferença... intensidades,
mundo incompleto, aberto, modos de existir, pedaços, mundo em
abreviações, condições, perspectivas, acontecimentos, traçar um
diagrama, porções do mundo, sílabas, palavras, conexão, descone-
xão.... Um mosaico para resistir à racionalidade universal.
EXPERIMENTAÇÕES! EXPERIMENTAÇÕES... o
universo de composição que a Mostra Focar trouxe de forma desi-
nibida e descontraída, que pode ser aberto pelas fendas das Artes,
Ciência, Educação, Formação e Autobiografia, lançando provações
de indiscernibilidade entre esses saberes. O livro que temos em
mãos é fruto da potência inventiva de ideias e de pensamentos
realizados entre 6 a 8 de abril de 2016, na tentativa de sentir a for-
mação e fomentar práticas educativas por outras linhas vitais. Mas
não é possível desconsiderar que se vive um profundo mal-estar
na educação. Por todos os lados, o campo da Pedagogia passa por
desencanto, por uma atmosfera sombria, atravessado pelo efeito
da naturalização da banalidade que fustiga em seu corpo um sin-
toma de decadência. Pensadores como Schopenhauer e Nietzsche
denunciaram com todas as letras o quanto a educação e a forma-
ção estavam enredadas pela fraqueza da vida. Imaginem como
anda a educação na atualidade. Desafios!

O começo nunca é um fim 15


Remédios:
Por contraste a essa rostidade, há fios menores que atra-
vessam as paredes, as salas de aulas, os desenhos curriculares, os
mapas estatísticos escolares, os corpos doentes e desacreditados
dos professores banalizados pela miserabilidade de um sistema
em ruínas. Resistências...
Nas páginas deste livro, há gritos vitais, frutos da Mostra
Arte, Ciência e Formação, que deslizam por entre grafias, narrati-
vas, que escorregam às mais variadas composições do pensamento
com o poder intensivo das sensações e dos afetos, desencadeando
um estilo que perpassa pela alegria.
O livro está minado por cores diversas, levando o pensa-
mento para universos performáticos, fabuladores, biografemas,
cinebiografias, escrituras, literatura, filosofia, pedagogia, fotogra-
fias e ensino de ciências. O leitor o tomará em mãos como bloco
de sensações e encontrará textos, interpretações, que estão fora
das perspectivas pedagogizantes e moralizantes, do mesmo modo
ele não encontrará nenhuma arte do absoluto ou da semelhança,
nenhuma ciência objetivista ou formação linear. A única defesa
destes escritos reside em dar acesso a uma visão crítica à viru-
lência do apagamento do pensamento criador, que tem minado
a educação, as salas de aulas. Por outro lado, este livro busca a
jovialidade de práticas formativas que dancem com os pés leves.
Assim, ele desafia os espectros sombrios e tristes que se vestem
com as roupas do sistema de julgamento no campo da educação.

16 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Sílvia e Remédios:
Este livro respira a presença de todos que estiveram presen-
tes na Mostra FOCAR e que se deslocaram dos mais diferen-
tes pontos deste país e também de fora dele, como uma nuvem
de pirilampos, minúsculos coleópteros, que não têm a pretensão,
tampouco o desejo de tornar-se holofote, mas querem fazer apa-
recer as pequenas luzes (lucciole) de uma constelação que acredita
que liberar a imaginação é um modo de fazer política. Política de
formação de pessoas, professores, artistas, cientistas, gente. Gente
feliz que transforma o hoje em um tempo esperançoso de viver.
É uma pena que Pasolini não esteja hoje entre nós para se
alegrar e ver que os vagalumes sobreviveram e continuam a relu-
zir. Para ver que é possível atravessar as fronteiras e abrir fendas,
compor ritornelos, e convidar a educação a inventar rosto de um
devir-criança. Que a viagem não encontre portos, mas partidas...
Boa leitura!

Silvia Nogueira Chaves


Professora da Universidade Federal do Pará

Maria dos Remédios de Brito


Professora da Universidade Federal do Pará

O começo nunca é um fim 17


Prefácio

... apenas para continuar, afinal escrever textos de apresen-


tação para outros textos, por vezes, pode tornar-se tarefa difícil,
pois escrever acerca/a partir do já escrito é desafio penoso. De
outra parte, nos parece que uma questão atravessará sempre àque-
lxs a que isso se arrisca: estamos capazes a fazer jus à grandeza
dos textos de outrem? E dizemos mais: a tarefa se torna ainda
demasiada delicada de quando os textos são de autoria de muitas
vozes, perfazendo um não conjunto a dizer de coisas próximas
e distantes. Entretanto, toda a dificuldade e o cuidado que uma
introdução/apresentação de textos de outrem (um escrito que
costumamos chamar de PREFÁCIO) pode ser também: a alegria
da celebração; o prazer de estar junto com muitxs novxs compas
que sequer conhecemos; o gozo de reencontrar queridxs amigxs
que não vemos há muito (Antonio & Alberto); o jubilo de encon-
trar e estar presente com uma mais que querida, para além das
teclas da rede (Maria).
... por isso o texto, que ora se faz de PREFÁCIO, apresenta
a todxs os seus futuros leitores um conjunto instigante de escri-
tos que serve de arquivo/memória fabulatória às intervenções da
Mostra FOCAR. Então, o que se passou na referida Mostra que
os escritos que são aqui atualizam os leitores porvir têm mãos?
FOCAR foi Mostra Internacional, foi Fórum de debates con-
trapedagógicos, foi Acontecimento acadêmico indisciplinar (nem
inter nem trans disciplinar, mas como querem a organização do
Evento) que articulou formação docente, ciência e arte no mês
de abril deste ano em curso. Foi alvissareiramente urgida sobre
urgente temática: “Autobiografia. Arte e Cinema na Formação
Docente”. Na Federal do Pará, na feérica Belém, o lugar no qual
os corpos dissidentes (articulação transversal dos corpos docente
e discente universitário) apresentaram suas intervençAções. Texto,
como foi dito, daí se fizeram... Textos que pretendemos (des)
apresentar.
... mas, o que dizem essas vozes? Muitas palavras, muitas
coisas. O livro que destina a todxs tomou a temática para seu
título, fazendo-se: Formação, Ciência e Arte (Autobiografia, arte e
ciência na formação docente). Já na apresentação as organizadoras
e propositoras, as professores, Silvia Nogueira Chaves e Maria
dos Remédios de Brito nos mostram o quanto O COMEÇO
NUNCA É UM FIM ao referirem-se ao trabalho investigativo/
criativo à prática docente e o quanto ele pode e deve ser cole-
tivo e colaborativo. Desse modo, poderemos singrar este oceano
de textos a partir de três sugestivas searas ou partes, se quiser
assim chamá-las: “Entre Política, Estética e Resistência: Modos
de Existência”; “Escritas, Biografias e Fabulografias”; “Variações:
Fotografias, Literatura e Sons”.
... então, talvez seja mais interessante àquelxs que o lerão,
que o façam (ou não ) de modo contínuo, escolhi de minha parte
apresentar pequenas notícias desses escritos de modo quase ran-
dômico. Digo que, Emanuela Mancino nos apresenta um belo
texto que incita a pensar a educação como experiência de alteri-
dade, como elogio à amizade. Luciana Grupelli Loponte escreveu
um dos textos que mais atenção chamou deste prefaciador, por
afinidades eletivas: arte, artes visuais em seu campo expandido,
pedagogia e sensibilidade, partindo de pequenas e preciosas aná-
lises de práticas de artistas de fazem do pessoal algo de universal
para propor com sua pena: uma pedagogia em campo expandido
nas práticas docentes das artes. Gostei muito! Breno Filo Garcia

20 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


relata sua experiência dissidente em curso na Pós de Artes, sob o
sugestivo título “Movimento Criador do Ato Teórico”, articulando
criação e pesquisa acadêmica, pensando com Deleuze&Guattari,
com Jesus Martín-Barbero. Leandro Belinaso fez de seu texto
uma meditação da relação que por vezes tende a ser tensa entre
escrever e viver. Wladilene de Sousa Lima apresenta um artigo-
-dramaturgia, na palavra da autora, na qual o texto de verve tea-
tral nos leva a vislumbrar a dramaturgia completa do espetáculo
Correndo risco de vida. Amanda Maurício Pereira Leite escre-
veu belo texto acerca da poiésis do fotográfico, o qual batizou de
“Fotografias Infames”. Renata Ferreira da Silva seguindo uma
potente perspectiva spinozista nos incita a problematizar a prá-
tica docente a partir de linhas de fuga ao Maior e seus derivados
mais ardilosos: os preconceitos. Texto URGENTE aos nossos
dias. Joana D’Arc Chaves de Campos e Silvia Nogueira Chaves
escrevem a quatro mãos que é fruto de pesquisa de Iniciação
Científica intitulada “A linguagem artística e cinematográfica na
pesquisa autobiográfica de formação”. Joel Cardoso no apresenta
a mídia radiofônica como ponte entre tradição e contempora-
neidade. Debora Souza e Alberto Amaral dissertam acerca da
escritura lispectoriana a partir de chave deleuziana-foucaultina-
-blanchotina, na qual a escrita pode/deve ser pensada/ativada
como exercício prático da liberdade. Continuamos com Amaral,
num dos mais belos textos deste livro. Alberto utilizando-se de
ferramentas conceituais deleuzianas e, principalmente, sob uma
inflexão à moda de Maurice Blanchot nos convida neste texto
ensaístico a uma crítica imanente à obra da artista Keyla Sobral.
Erasmo Borges de Souza Filho em seu artigo nos parece querer
introduzir a uma espécie de fenomenologia da experiência midiá-
tica, este um projeto alvissareiro. Helane Súsia Silva dos Santos e

Prefácio 21
Maria dos Remédios de Brito em um texto intitulado “Facebook
como produção de subjetividade: maquinações e dobras” nos
apresentam uma interessante e muito oportuna reflexão acerca
dos discursos de subjetivação e suas relações como os modos de
vida contemporâneos, partindo da análise rigorosa de posts da
mais acessada das redes sociais. Marcus Pereira Novaes e Antonio
Carlos Rodrigues de Amorim neste artigo a quatro mãos apre-
sentam uma pesquisa de inflexão deleuziana acerca das relações
entre a ideia (proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu
Mil Platôs) de “Ritornelo” e determinadas instalações audiovisuais
gestadas e realizadas pelo Grupo de Pesquisa Humor Aquoso da
FE da Unicamp. “Escavações: dobras, rasuras e vazio no papel
jornal” é um texto criado colaborativamente, exercido plenamente
pelo Coletivo Fabulografias, Alda Romaguera, Alik Wunder,
Marli Wunder, no qual a fotografia é despida de sua contade
verdade e sobre se exerce dispositivo engenhoso por práticas
fabulatórias poéticas: o poeta Manoel de Barros e a artista Leila
Danziger são intercessores desse texto-trabalho. Carlos Augusto
Silva e Maria dos Remédios de Brito fazem texto-experiência,
ativada e ungida por apresentação performática; trata-se disso que
o corpo, ou precisamente: o que pode um corpo? Rafael Cabral,
que finaliza com seu texto o Livro aqui resenhado, apresenta um
artigo no qual a performance como ritual é apresentada a partir
de experiências ameríndias, trata-se de pesquisa investigativa que
tem o saudoso Renato Cohen como intercessor privilegiado. No
13º dos textos desta publicação, a professora, educadora e ensaísta
Maria dos Remédios de Brito escreve aquele que, talvez, de certo
modo sintetize todos os escritos deste livro, pois esse artigo se faz
como um experimento poético-investigativo que parte de Clarice
Lispector, novamente ela, para de fato, exercer liberação de sua

22 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


própria escritura de escritora, perdoe-nos a suposta redundância.
Mas, continuamos... Clarice está presente na pena ensaística de
Maria, presente ali como escritora fetiche de uma suposta “lite-
ratura feminina” que, porém, verga o arco tenso do discurso do
binarismo de gênero a ser mais que ela: trata-se de devir, de devir-
-mulher. Muito bom esse texto!!! O inusitado e diga-se muito
bem-humorado título “Confissões de um Jaleco: Metamorfoses
e Resistências!”, artigo escrito a quatro mãos por Luciane de
Assunção Rodrigues e por Silvia Nogueira Chaves se inicia com
um texto poético que nos dá claramente o tom do escrito aqui em
questão: trata-se de pesquisa acadêmica (tese de doutorado) sobre
o fazer da docência e sua relação com a investigação científica;
em outra medida, nos faz pensar acerca da produção de subjetivi-
dade em nossos tempos, da vida de laboratório e seus trajes-vida.
E continuando com Silvia Chaves, uma das organizadoras do
Livro que tens em mãos, diremos acerca e seu texto “Formação,
Docência e Arte: O desafio de ser semente”: que de certo modo
ele, seu escrito, sintetiza os esforço de pensar e praticar a docência
de modo partilhado/engajado e a um só tempo solitário de seu
fazer. Isso porque o artigo de Silvia que parte de uma reflexão
acerca da memória nos mostra seus esforços com os estudantes da
Licenciatura integrada em decifrar ao avesso os signos do mundo,
do pixo ao cinema. Por fim, Jorge Vasconcellos, esse professor
mascarado de prefaciador, apresenta um artigo, fruto de pes-
quisa alentada acerca das relações entre arte e ativismo e filosofia
contemporânea e participação política radical, aliança poderosa
e inusitada entre o filósofo Michel Foucault e o artista-ativista
estadunidense Gordon Mata-Clark. Esse professor-prefaciador
infelizmente, por forças de inúmeros acasos acabou por não par-
ticipar de corpo presente da Mostra FOCAR, mas esteve nela e

Prefácio 23
participou de direito, por intermédio dessas interlocuções que um
texto de PREFÁCIO nos pode dar.
... mesmo que seja para não terminar, diríamos Obrigado a
todxs amigxs, pois posso afirmar que vale muito à pena se aven-
turar neste Livro e Focar em frente para além das conjunturas
Temerosas pelas quais passamos hoje no Brasil.

Jorge Vasconcellos, Leme-Rio de Janeiro,


setembro de 2016.

24 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


ENTRE POLÍTICA, ESTÉTICA E
RESISTÊNCIA: MODOS DE EXISTÊNCIA
O logos sensível da educação:
arte como experiência, ética e estética

Emanuela Mancino

Devemos ir para o lado onde pensamos mais,


onde a razão ama sentir-se em perigo […]
para as regiões da imprudência intelectual […]
Reconhecer o carácter metodológico das transmutações […]
dito de outra forma, no reino do pensamento,
a imprudência é um método.
(G. Bachelard)

N
ão é por retórica, nem para dar forma a um incipit que dê
o início a um pensamento sobre a educação como caminho
para abrir a existência ao mundo, que as minhas primeiras
palavras descreverão os elementos de uma amizade.
Se educar significa permitir construir e compartilhar repre-
sentações, figuras e mundos simbólicos que possam abrir à emo-
ção e ao conhecimento, então a dimensão estética da paideia não
poderá nunca prescindir do encontro.
Não se conhece e não se pensa se não em um regime de
troca. A noção de alteridade, em âmbito filosófico, assumiu, nas
Meditações Cartesianas de Husserl, a possibilidade de superar o
“cogito ergo sum” através da perspectiva fenomenológica na
qual existência e conhecimento podem realizar-se unicamente
mediante a dimensão do “como-ser”, do ser e existir com o outro.
O que mais nos interessa aqui é que essa alteridade tem um
elemento educativo não só dentro de um espaço de tipo gnosio-
lógico, fundando o processo intersubjetivo. Essa alteridade, que
produziu este livro, tal como o projeto que o criou, é uma relação
que conciliou o aspecto do conhecimento com aquele da emoção,
da sensação, da amizade, que são os ingredientes originários e
fundantes do aithesis.
Graças à experiência ética e estética de uma amizade, a
alteridade torna-se principalmente um gesto para reconhecer
a diferença entre elas, sem tentar englobá-la na nossa imagem
identitária.
Trata-se de um espaço sensível da alteridade, que exprime-
-se na relação entre duas amigas que vivem em dois lugares opos-
tos do oceano, como exprime-se na acepção que tais amigas têm
dos processos educativos, dos processos de aprendizagem, das
relações pedagógicas tão como das relações tout coeur, uma alte-
ridade que é mundo, que é experiência artística, poética, criativa.
Trata-se de um espaço sensível da alteridade que relaciona-
-se com uma respeitosa, curiosa, próxima distância. Aquilo que
a amizade entre mim e Silvia Nogueira Chaves produziu tem
muito a ver com a dimensão que liga a arte à educação: o impulso
epistemológico que cria emoção e conhecimento, que cria mun-
dos e possibilidades, em um diálogo que dura e cresce há vários
anos, pertence àquele mundo possível que esclarece os conceitos
não através de um laborioso atarefar-se do pensamento e nem
através de um refúgio no mundo das meras sensações, mas através
da criação de espaços para uma nova experiência.

28 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


É isso que, para Dewey, é arte2. Arte e amizade, por sua vez,
criam um espaço entre duas outras experiências, entre aquela do
real, onde somos imersos, e o mundo do possível, caraterizado
pelo mundo dos contos.
A experiência artística é um conjunto de coisa e texto.
Possui aquela função metamorfoseante que Husserl indicava como
produtiva e que a reflexão pedagógica individua nos processos
transformativos de aprendizagem e relação.
Minha ligação com Silvia sempre nos permitiu viver recí-
procas transformações, de fazê-las acontecer e sobretudo de
aumentar o espaço delas, graças à reflexão e à troca.
Por esse motivo só posso dar início às minhas páginas se
for com palavras de gratidão. Primeiramente, desejo agradecer
à profa. Silvia Nogueira Chaves, por ter-me convidado a vir a
Belém, para a FOCAR, Mostra que reúne pesquisadores, artistas,
interessados em diferentes campos do saber/sabor da experiência.
Para mim é uma grande honra voltar a Belém, e ser a pessoa
que fala primeiro, abrindo uma aventura que tem todas as carac-
terísticas e as promessas de que consegue criar e promover, sobre-
tudo, possibilidade, acontecimento, encontros, transformações.
E tudo isso não pode não ter um nome, que é educação,
aprendizagem, formação. Aprender é transformar, e transformar-
-se. Por isso, e não só por isso, o meu agradecimento e minha
gratidão à Silvia são profundas e cheias de alegria.
Nos encontramos numa conferência do Congresso
Internacional sobre Pesquisa Autobiográfica – CIPA, oito
anos atrás, e eu acho que nasceu naquele momento uma afi-
nidade intelectual, emocional, de sensibilidade (no final, uma

2 J. Dewey (1934), Arte come esperienza, Aesthetica, 2010.

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 29


afinidade pessoal) muito rica e para mim sempre inesgotavel-
mente transformadora.
Obrigada também pela oportunidade de encontrar em
Belém do Pará tantos amigos e colegas que eu conheci seis
anos atrás na ocasião da minha primeira viagem ao Pará e que
me deram a possibilidade de comparar o meu trabalho, minhas
pesquisas e perspectivas com olhares tão ricos, “indisciplinados”,
cheios de multiplicidade e entusiasmo.
A minha pesquisa sempre teve a intenção de dar conta da
multiplicidade de olhares que eu tento trazer juntos e que a minha
produção editorial e os meus trabalhos formativos testemunham,
no convencimento de que “pensar confunde as ideias”3 e como
eu ensino filosofia da educação, sempre vou tentando confundir
ideias. As minhas e as dos outros.
Minha contribuição pretende abordar a questão do logos
sensível da educação. Eu pretendo fazer isso a partir de um logos
(λογος) que é «focar», que tem a ver com focalizar. A força da
língua é mostrar as possibilidades.
Focar é um verbo transitivo. É um verbo que constrói
relações.
É uma atividade do olhar, tem uma intencionalidade. Olhar
é um verbo da educação. Falar sobre o olhar é como falar de uma
gramática dos processos educativos.
Focar precisa de uma pesquisa sobre o olhar como um dis-
positivo de poder. Ou seja, nas palavras do Foucault, percorrer
uma verdadeira arqueologia do olhar em relação às formas da
construção do saber.

3 B. Munari, Pensare confonde le idee, Corraini, 2008.

30 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Um dos desafios da educação através da estética é transfor-
mar o gesto de focar em mirar, pegando toda a força do primeiro
pensamento filosófico, o que dá a definição do olhar/pensar como
maravilha, como sugerido por Aristóteles.
A necessidade de abertura e valorização da imaginação cria-
dora, que é ao mesmo tempo vislumbre de novas estratégias do
saber e vetor de um saber estético, conduz até a possibilidade da
experiência da maravilha como olhar que produz, como imagina-
ção. Essa função, morando na oposição, entre o domínio do lógico
e o do ilógico, desorienta e impulsiona a encontrar novas moda-
lidades da experiência, do pensamento e da linguagem, que é um
“instinto fundamental do homem, de que não se pode fazer abs-
tração um único instante4, pois a consciência fala por metáforas.
Aquele impulso procura sempre um novo campo de ação,
outro álveo para seu impulso, e encontra tudo isso no mito, e em
geral na arte.
Estando na dimensão do impulso e do fogo, o fogo é o resul-
tado de um raio que o homem levou aos divinos. O milagre celeste
passa das mãos dos deuses aos homens, não como um resultado
ou um objeto, mas como um método, uma possibilidade. É uma
chance de olhar, de re-presentificar. Além disso, o fogo vem de
invisibilidade olímpica e invisibilidade da matéria.
Tenho em minhas mãos uma pedra que, por atrito com
outro mundo e por conexão poética (sendo a poesia um “fazer”,
porque é conexão ativa, gestual) pode produzir faíscas e pode
fazer acontecer o invisível através de um gesto que coloca e cria o
mundo porque ele se conecta com partes já existentes, mas agora
na abertura de uma nova maneira.

4 F. Nietzsche, Su verità e menzogna in senso extra-morale, editora e ano p. 241.

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 31


Quem tem acesso a esse tipo de trânsito, entre a invisibili-
dade e a visibilidade, entre o ainda não e o agora, ele é o poeta:
aquele que faz, que age, que esfrega suas palavras como pedras de
sílex (focais), que liga mundos para criar o corpo.
Todos nós conhecemos o mito de Prometeu: a sua história
constitui uma daquelas narrações que mais fascinou o homem
na história da literatura. A partir de Hesíodo, o conto do titã
que roubou o fogo para doá-lo aos homens foi recuperado por
Esquilo, Ovídio e repetidamente no século dos lumes e na idade
romântica. A invenção do fogo, de fato, determinou um grande
desenvolvimento para a humanidade. Além de fazer com que o
homem pudesse aquecer-se de noite e afastar os animais, também
tornou possível assar a carne, melhorando a nutrição e a digestão.
O primor em campo gastronômico pode nos levar a pensar em
um primor parecido também no âmbito verbal. Poderíamos pen-
sar que com o fogo Prometeu tenha doado ao homem também a
possibilidade da narração, da literatura. Mas talvez tenha algo que
a uma visão evolucionista, científica e biológica possa conectar
uma visão mais simbólica e filosófica.
Podemos fazer isso a partir de uma pergunta e inclusive a
filosofia move-se por maravilha e interrogações: por que Zeus
puniu Prometeu roubando o fogo? Por que ele, que conhece e
pensa antes (pro-metis, no grego) tornou-se um mestre do desve-
lamento, uma re-velação que não procede na direção da verdade,
mas ele cria um olhar, uma possibilidade de repetir a maravilha, a
criatividade, a poesia.
E a poesia é sempre produtora.
É sempre um fazer.
Não é só abstração, inspiração. Prometeu é um mestre.

32 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Vemos porque, através do pensamento de um cientista filó-
sofo, Gaston Bachelard. Na obra Psicanálise do Fogo, Bachelard
escreve que ele não aceita a ideia que a descoberta do fogo pelos
primitivos foi causada pela fricção casual de dois pedaços de
madeira ou pedra. Para ele “o amor é a primeira hipótese cien-
tífica para a reprodução objetiva do fogo”5. A contraposição é
entre uma criação provocada pelo desejo e uma criação nascida
da necessidade.
Ocorre frequentemente que entre duas contraposições é
mais fértil escolher o diálogo e a composição de opostos e tentar
imaginar a tentação do titã Prometeu como aquela que traz seu
nome, ou seja conhecer antes, conhecer antes dos outros, antes
do tempo. Se roubando o fogo Prometeu se liberta da absoluta
dependência do princípio de utilidade, o que ele deseja é saber o
que os deuses sabiam: o desejo dele – afirma Bachelard – é alcan-
çar e superar o saber dos padres, dos mestres, aperfeiçoando o
conhecimento objetivo e aproximando-se daquele mais abstrato.
Como a poesia produz e o fogo pode transformar, como
Prometeu é um mestre de transformação criadora, a magistrali-
dade do fogo é magistralidade de ritmo, de escansão. Ligação entre
o visível, mas possível e um visível que se cala, não se manifesta.
Para compreender a possibilidade vital da ligação entre arte,
experiência, aprendizagem e, portanto, visível e invisível, será
oportuno mover-se explorando um elemento de Prometeu que
faz parte da complicada história da sua família.
Vamos ver o irmão do Prometeu. Um irmão que foi filho
não desejado. É ele que pode nos explicar outro aspecto da pro-
dutividade educativa. Vamos ver outro mestre.

5 G. Bachelard, 1999, p. 47.

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 33


Hefesto nasce porque como Athena nasceu do cérebro de
Zeus e Zeus gerou sozinho, assim Era, batendo a mão no chão,
gerou Hefesto.
Ele tem um andar claudicante, vive a condição que Heidegger
chama de “lançadidade” (ter sido lançado).
É uma noção do existencialismo; somos lançados no mundo
sem querer e a partir daí estamos por conta própria. Ele é e foi
jogado fora da janela. Athena tinha sido gerada como projeto,
como inteligência projetual. Isso era em oposição a Era, que pre-
sidia a sedimentação na consciência, a parte reflexiva da relação
do homem com a natureza.
Por isso Era tinha gerado Hefesto, ela também sem unir-se
com ninguém. E Hefesto é força que obriga a re-projetar-se. Traz
novos equilíbrios, nova harmonias.
Zeus não o aceita e o joga longe do Olimpo. Ele é rejeitado,
mas a sua inteligência torna-se adaptação, transformação de um
corpo físico manco para um corpo luminoso capaz de criar beleza
e de “focalizar” o desejo de focalizar-se através de uma relação
poiética com a natureza e consigo mesmo.
O que ele faz é transformar a existência de um ser jectado,
jogado, lançado como em um lixo, re-jectado, para evoluir, até se
tornar pro-jectado.
A aprendizagem é o meio para um projeto. Agora, mudando
um termo que é mesmo da física e indica a capacidade de um
material de resistir às solicitações impulsivas e na psicologia como
a capacidade de um sujeito de enfrentar eventos traumáticos e
continuar acrescentando os próprios recursos com uma reor-
ganização positiva da vida, agora podemos dizer que Hefesto é
um deus que tem resiliência. Ele aprende a trabalhar o metal,

34 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


transformando-o em linguagem, uma linguagem que se torna
arte. Ele é o deus do artesanato, da metalurgia.
A resistência não é força, mas potencialidade. Eu aprendi
isso dos meus mestres filosóficos, da filosofia da educação. Um
deles era o primeiro filósofo da fenomenologia pedagógica, Piero
Bertolini6, outro era o filósofo do problematicismo pedagógico, o
mestre da utopia pedagógica, Giovanni Maria Bertin7.
Os passos diferentes do Hefesto, que constrói armas, colares
de ouro e consegue até casar com a mais bela do Olimpo, Afrodite
(que o traiu com Ares, o deus da guerra, gerando Harmonia, que
então é filha da beleza e da guerra) nos indicam direções de pen-
samentos sobre a parte sensível da educação e da aprendizagem
numa perspectiva poética.
Como ele aprende? Como ele trabalha? Como ele ensina
(pois ele tem aprendizes, na cratera do vulcão escuro)? Ele
aprende, trabalha e ensina através da intuição mesclada com o
pensamento transformador.
Por que ele pode isso? O que é a criatividade dele?
O que é a criatividade? Por que tem a ver com a matéria?
Com o fogo do Prometeu, com o fogo e o metal e o corpo do
Hefesto? Por que tem a ver com os limites? Por que a arte nos
ensina a enfrentar os limites (da obra e sobretudo do outro)?
Porque a arte e a criatividade têm uma energia, um impulso.
Spinoza falou do “conatus existendi”, Nietzsche falou
da tendência a perseverar na existência, Freud falou da libido.
Aristóteles falou da “energheia”. Uma “energheia” que é poder,
mas que temos que aprender que não pode tudo.

6 P. Bertolini, L’esistere pedagogico e outros textos


7 G. M. Bertin…

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 35


Por isso a arte nos ensina que não é suficiente ter criati-
vidade. Há vínculos, há situações, há um nascimento que não é
decidido. Nós podemos criar, fazer arte e usar a arte como apren-
dizagem (seja como meio expressivo, seja como meio a receber),
se a arte é poética, então transformadora. Se não, o poder chega a
ser pre-potência, ou onni-potência, e quando não podemos reali-
zar os desejos, o poder devém im-potência.
Nós, normalmente, nas escolas, não somos educados a gerir
o poder, as nossas possibilidades. A arte nos ensina isso. Porque
é um pensamento tocável, visível. É transformação não abstrata.
O ensino tenta promover uma ciência abstrata; Descartes e
o iluminismo nos ensinaram a favorecer a res cogitans e a desva-
lorizar os produtos materiais, os sentidos, o corpo, a res extensa.
Tem uma prova disso olhando as crianças fazendo cálculos
(se eles não encontraram professores que pesquisaram sobre uma
matemática que deixe de ser alheia ao pensamento e à experiên-
cia, que não seja percebida só como uma disciplina para procurar
e buscar o conhecimento abstrato), contando embaixo das mesas
da escola, escondendo os dedos.
Ensinar com o corpo é uma maneira de que aquela impo-
tência ou omnipotência o prepotência ganhe uma maneira de
se-medir.

A filosofia fala da temperança


Quando, alguns meses atrás, faleceu Oliver Sacks, observei
diferentes reações nos artigos e na crítica, assim como ao longo da
vida profissional e pessoal dele. Havia quem se afastava da ideia
de ele ser um cientista, um médico. E quem valorizou o método
que ele criou. Ele gostava do poder narrativo e afetivo da ciência.

36 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


A narração que ele promoveu nasceu quando a mãe dele deu
para ele, para experimentar, o anel de casamento. Era de ouro, era
circular, ele anota na autobiografia dele8.
E falando de uma ferramenta enferrujada e pesada no jar-
dim que apenas o pai era capaz de levantar, ele fala de afeto, no
entanto, que fala de metal. E ele percebe que sempre tomou conta
e cuidado de coisas por medo delas quebrarem.
O conhecimento científico dele tem aquele focar. Focalizar
não é só um olhar específico, mas é um olhar apaixonado. É um
olhar de chama, faísca.
Mas é só quando o outro é deixado livre e considerado
como inatingível, incognoscível, a ser respeitado, como nos ensina
Levinas, somente quando o outro é rosto, que a visão é chama,
fogo. Porque é possibilidade.
O caminho da arte e da poesia não são práticas que, enquanto
emocionais, resultem em pré-lógicas ou intuitivas. Ou, pelo
menos, não somente. Os caminhos da arte e da poesia, percursos
de disciplina do olhar e do ouvir. Uma disciplina que se aprende
mudando a ordem do discurso, comparando-se com o limite e a
inacessibilidade de uma compreensão total, exaustiva, resolvível.
As ideias claras e distintas ou a ciência que não dialogue
com seus logos mais sensíveis não conseguem operar as desejadas
fissuras na opacidade do silêncio ou da palavra do outro (nem nas
próprias opacidades).
Uma abordagem somente lógica fatiga na tentação de com-
preender o todo. Nesses casos cada palavra nossa, cada logos nosso
torna-se não aquilo que deveria ser, ou seja espaço de encontro,
mas pretensa demonstração.

8 O. Sacks, Zio Tungsteno.

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 37


Quando demonstramos ou procuramos confirmações, não
conseguimos estar naquela “noite do sentido” que serviu para
Prometeu se mover, para Hefesto construir-se um destino, para
Oliver Sacks entender que a matéria que ele tinha nas mãos e que
estava estudando era sua pesquisa de elementos que não o traís-
sem, que não o deixassem só.
É na espera e no respeito da alteridade como silêncio, como
espaço secreto, que aprendemos a lidar com nossos limites, per-
ceber que o mundo acontece, que nós somos presentes e estamos
participando.
A arte, a poesia, a experiência estética podem nos ensinar os
limites do outro, a espera, a trégua9.
O logos se faz sensível quando aprende a acender-se como
uma chama, como escreve Maria Zambrano:

[...] tudo é revelação, tudo o seria se fosse acolhido ao estado


nascente. A visão que vem de fora quebrando a obscuridade
do sentido, a vista que se fecha e que se fecha realmente
somente se em baixo dela e com ela se fecha junto à visão.
Quando o sentido único do ser se acorda em liberdade, em
conformidade com a sua própria lei, sem a opressiva pre-
sença da intenção, desinteressadamente, sem outra finali-
dade que é a fidelidade ao seu próprio ser, na vida que se
abre. Acende-se, portanto, quando a realidade visível se
apresenta livre de quem a olha, a visão como uma chama.
[…] porque não vem como uma estranha que precisa assi-
milar, nem como uma escrava que precisa libertar, nem com
potestade a possuir10.

9 E. Mancino, Il segreto all’opera


10 M. Zambrano, Chiari del bosco, p. 55.

38 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Temos diferentes instrumentos para ensinar a chegar atra-
sado no outro, para não cobri-lo com nosso sentido, para fazer
com que cada encontro seja maravilha, descoberta, mundo que
acontece. Temos a arte, a poesia, as imagens, a palavra, o teatro, o
cinema11.
O cinema, particularmente, é um meio estético para
aprender:
- o limite
- o segredo
- o espaço do outro

Permitindo, como a escritura12, aquela particular condição


de deslocamento cognitivo, nos torna possível olhar juntos a
mesma história projetada na tela, mas sentir que cada um conta e
se conta histórias diferentes.
Isso aconteceu no encontro com a minha perspectiva de
estudo do cinema para a formação, com premissas filosóficas, com
abordagem pedagógica e metodologia autobiográfica, quando tive
a sorte de conhecer a visão de uma cientista que no cinema tinha
visto uma história humana que a biologia também podia contar.
Cinema, arte, poesia, imagens, tornam tangíveis aqueles
encontros que geralmente são raros e que, de qualquer forma, são
preciosos e nos fazem experimentar aquilo que a filosofia espa-
nhola, que parece conduzir os meus pensamentos e os meus sen-
timentos, me ensina.
Maria Zambrano fala de uma ética, de uma estética, de
uma existência e de uma educação do exílio, condição que ela

11 collana bellezza.
12 rif. Bibliografici.

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 39


– experimentou na Europa e na América longe da Espanha fran-
quista – viveu realmente como uma necessidade existencial de
cada um.
Através do exílio podemos experimentar a condição de uma
existência em relação com o que está fora; uma existência que
pode realizar. Isso também me ensinou outro mestre da palavra,
Fernando Pessoa, escrevendo que olhando, nós podemos nascer
em cada momento para a eterna novidade do mundo.
Exílio é o encontro autêntico com o outro, exílio é observar
o próprio mundo e a própria maneira de olhar, para perceber as
perspectivas, as distâncias e as proximidades.
O exílio é a cifra de um logos sensível que temos o dever,
como docentes, de promover para que possamos experimentar
fronteiras e conhecer o que é longe com os olhos da nostalgia
e da consciência para aprender que não há conhecer se não há
co-nascer.

Referências
BACHELARD, G. L’intuizione dell’intante: La Psicoanalisi del fuoco.
Roma, Dedalo, 1999.
BERTOLINI, P. L’esistere pedagogico. Firenze: La Nuova Italia, 1988.
DEWEY, J (1934). Arte come esperienza, Palermo: Aesthetica, 2010.
MANCINO, E. Il segreto all’opera: Pratiche di riguardo per un’educazione
del silenzio. Milano, Mimesis, 2013.
MUNARI, B. Pensare confonde le idee, Milano, Mandadori/Corraini,
2008.
NIETZSCHE, F. Su verità e menzogna in senso extra-morale. Milano:
Rizzoli, 2006.

40 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


SACKS, O. Zio Tungsteno: Ricordi di un’infanzia chimica. Milano:
Adelphi, 2002.
ZAMBRANO, M. Chiari del bosco. Milano: Mondadori Bruno, 2004.

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética 41


Notas sobre um encontro intempestivo:
Foucault e Matta-Clark

Jorge Vasconcellos

1. Fazer filosofia talvez seja conseguir confeccionar boas


máscaras, produzir outras faces, inventar outros rostos para si:
criar rostidades. Michel Foucault era um exímio artesão de más-
caras. O pensador francês foi capaz de produzir inúmeras ima-
gens de si e de seu pensamento. Poucos executaram com tanta
argúcia tal estratégia de invenções de imagens de si mesmo na
história da filosofia; talvez apenas Nietzsche, nesse aspecto, pode-
ria ser comparado ao autor de Le mots e le choses. De ilusões retros-
pectivas na interpretação de sua obra à produção de pseudônimos
– como, por exemplo, o caso Maurice Florence13 –, passando por
outros ardilosos usos do falso, nosso pensador foi um mestre em
“ludibriar” seus leitores na arte de ficcionalizar sobre si e sobre sua
prática filosófica. Propomos aqui utilizar o mesmo procedimento
em nossa interpretação de Histoire de la folie. Assim, partimos

13 Trata-se do já célebre caso protagonizado por Michel Foucault. À guisa de um verbete


para o Dicionário dos Filósofos (Dictionnaire des Philosophes. Paris, PUF, 1984), organiza-
do por Denis Huisman (traduzido no Brasil pela Editora Martins Fontes, SP, 2001), no
qual Foucault esconde-se por trás de uma máscara de um heterônimo filosófico – um cer-
to Maurice de Florence – para escrever sobre ele próprio. Daí as letras MF: Maurice de
Florence/Michel Foucault. Nesse texto Foucault apresenta seu próprio pensamento inseri-
do na tradição crítica kantiana o qual ele denominou de “História crítica do pensamento”.
Nela sua prática filosófica se daria por intermédio de rigorosa investigação histórico-pro-
blemática, privilegiando a constituição do sujeito e a produção dos processos de subjetiva-
ção a partir de experiências históricas singulares. Ele exemplifica como o caso História da
Loucura e da própria História da Sexualidade1, A Vontade de Saber.
de algumas questões: será possível ler o primeiro Foucault sob a
perspectiva dos conceitos do terceiro?14. Dito de outro modo: é
possível pensar a experiência trágica da loucura a partir de uma
leitura da concepção foucaultiana de “vida artista”? É rigorosa-
mente cabível ler a arqueologia da percepção da loucura como
uma espécie de estética de si? Vejamos se será satisfatório esse
exercício de ficção filosófica.

2. Fazer filosofia para Michel Foucault talvez fosse bem


mais que propor um diagnóstico do presente, como muito vezes
ele fez assim pensar acerca de seus procedimentos investigativos,
teóricos e conceituais, a despeito da sabida importância do diag-
nóstico do tempo presente para sua démarche. Mas, não é essa a
perspectiva que apontamos para a orientação geral da filosofia de
Michel Foucault. Talvez, quem sabe, possamos propor um sentido
outro para o pensar foucaultiano em seu conjunto, qual seja: fazer
filosofia seria, antes de tudo, tomar posição diante do mundo e
do campo social, produzindo ações sobre as coisas do mundo e
sobre si, reinventando a si para, assim, reinventar o mundo; tor-
nar-se aquilo o que chamaremos aqui de um “intelectual radi-
cal”. Dito isso, então, nos indagaríamos nestas notas ensaísticas:

14 A despeito de estarmos utilizando a periodização e divisão de passagens na obra foucaultia-


na, qual seja: de um chamado “primeiro Foucault” (os anos 1960), passando pelo “Foucault,
arqueólogo do saber” (os anos 1970, até 1977), até o denominado “último Foucault” (da
publicação de A história da sexualidade II: o uso dos prazeres até seus textos de interven-
ção, entrevistas, cursos e 3° volume da história da sexualidade que fora publicado em vida),
entendemos que essa divisão não esgota a complexidade do pensamento foucaultiano e,
de certa forma, a recusamos radicalmente. Isso porque entendemos que ler um pensador
é,justamente, lê-lo pelo conjunto de sua obra e pelos efeitos que essa mesma obra pro-
duziu em seus contemporâneos, além dos impactos que esse pensamento produz em seus
extemporâneos. A problemática do “Foucault arqueólogo”, do “Foucault genealógico”, ou
do “Foucault dos processos de subjetivação”, reduz em demasia, como dissemos, a com-
plexidade do pensamento foucaultiano. De todo modo, utilizaremos aqui essa suposta di-
visão periodização para que possamos produzir no leitor o efeito que esperamos em nossa
interpretação.

44 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


qual a relação possível entre o Foucault dos anos 1960, aquele da
denominada arqueologia do saber e, também, daquele que pre-
figurava a imagem do intelectual específico (nos idos de 1970),
para esse novo deslocamento da figura do filósofo/pensador que
articularia seus estudos dos modos de existência greco-romanos
com a problemática da autonomia e da heteronomia que calca-
ram a modernidade (tal como Kant a postulou)? E ainda, como
essa problemática se articularia à dita ontologia de nós mesmos
ou estética da existência, também denominada de “vida artista”?
Essa figura e posição frente ao pensamento, essa nova forma de
prática filosófica seria, justamente, aquela que postulamos como
hipótese: o nascimento de um novo tipo de intelectual, o intelec-
tual radical.

3. Nossa questão é problematizar essa passagem da ideia


desenvolvida por Foucault de “experiência trágica da loucura”,
inspirada entre outros em Antonin Artaud, que norteou suas
pesquisas que culminaram na elaboração de sua tese doutoral A
História da Loucura na Idade Clássica nos já citados anos 1960,
para a figura do intelectual radical por nós aqui proposta, que
ora defendemos, estaria subjacente, no momento derradeiro da
obra foucaultiana. E mais, ainda, ousamos defender que vemos
em algumas práticas artísticas, justamente destes anos 1960, rea-
lizadas por alguns pensadores-artistas, e também artistas-pen-
sadores, aos quais poderíamos, não sem um certo risco, apontar
como constitutivos disso que nomeamos como intelectual radical.
Exemplifiquemos: o francês Guy Debord, pensador-artista, pra-
ticante do autonomista libertário, fundador do movimento polí-
tico-filosófico denominado de “Internacional Situacionista”, além
de cineasta experimental; e, o artista-pensador estadunidense

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark 45


Gordon Matta-Clark, arquiteto, artista visual, criador do coletivo
de intervenções urbanas denominado por ele de “Anarquitetura”.
3. 1. Nossa ambição é aquela de mostrar mais que ressonân-
cias entre o primeiro e o último Foucault em relação ao papel do
intelectual (seja ele um filósofo, um artista, ou mesmo um pensa-
dor em geral), mas, de defender que já havia elementos de con-
tato daquela que Foucault chamou de “estética de si”, presente
como categoria de pensamento nos trabalhos dos anos 1980, com
a ideia de “experiência trágica da loucura”, gestada em Histoire
de la folie. Acreditamos que Antonin Artaud, talvez seja, aquele
pensador, e simultaneamente figura do pensamento foucaultiano,
capaz de fazer o liame deste que seria o Foucault da dita arqueo-
logia para o Foucault da chamada estética da existência.

4. Foi dito pelo próprio Foucault, no prefácio à História da


Loucura na Idade Clássica, que aquela pesquisa havia sido reali-
zada sob a luz do sol nietzschiano, pois, justamente teria sido o
pensamento da tragédia de Nietzsche aquele o qual iluminou sua
leitura da experiência trágica da loucura. E não só a concepção do
trágico nietzschiano, mas, também, a relação da arte com a vida
neste que acabou por ser denominado de “jovem Nietzsche” foi
um determinante farol às investigações que culminaram naquela
que seria a tese de doutoramento de Michel Foucault. Trata-se,
como é sabido, especialmente da obra O Nascimento da tragédia
e o espírito da música, posteriormente renomeada pelo filósofo de
O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Nesse texto o
pensador alemão ainda é profundamente marcado pela filosofia
da música de Richard Wagner, pela literatura romântica alemã,
especialmente Hölderlin, e pelas ideias filosóficas de Arthur
Schopenhauer.

46 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


5. A tese principal de O Nascimento da tragédia apresenta o
trágico como o processo de apolinização dos rituais dionisíacos
na Grécia Antiga; que teria, assim, dado condição de possibili-
dade para o nascimento da tragédia ática e do teatro grego, além
de ocasionar dessa feita o surgimento do herói trágico. Nesse
momento de sua obra, Nietzsche entende a concepção do trágico
e a relação entre arte e vida como uma metafísica de artista. A
arte seria uma forma de consolação metafísica. Afirmar a vida
aqui seria, de fato, uma forma de chegar ao âmago da existência
por intermédio da fruição e da experiência estética, em especial
da música, a mais potente das expressões artísticas para o filósofo
àquele momento de sua obra filosófica. Nietzsche afirma com
veemência essa prerrogativa da arte como processos de criação de
obras e a vida como modo de existir. Arte e vida nesse ponto da
obra nietzschiana ainda estariam, de certo modo, ainda distantes,
mediados por uma vontade consolativa tal aqui dissemos. Em um
segundo momento, Nietzsche opera um sutil deslocamento em
sua perspectiva, como o próprio o assinala no aforismo 174 do
livro Miscelânea de opiniões e sentenças, intitulado “Contra a arte
das obras de arte”; a arte passa doravante a ser elemento embele-
zador da existência: “A arte deve antes de tudo e primeiramente
embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos torne-
mos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros...”. Por
sua vez, em Humano demasiado humano, especialmente em seu
segundo volume, essa concepção começa também a se modificar.
A relação entre arte e vida que deixou de ser fator exclusivamente
consolatório como em O Nascimento da Tragédia, começando a
ganhar um estatuto mais estético no texto supracitado; agora a
relação entre arte e vida também começa a ser pensada para além
de sua recepção ou fruição. Entretanto, apenas no derradeiro

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark 47


Nietzsche, precisamente em Ecce Homo, que uma concepção de
estética da existência pôde de fato se constituir. É nessa obra que
a ideia pindaroliana (tal qual Píndaro), enfim, se faria: precisamos
tornamo-nos aquilo que justamente somos. “Como tornar-se
aquele que se é!”, transformado na fórmula nietzschiana: “tornar-
-te quem és!”.

6. Em Nietzsche, as relações entre ética e estética/arte e vida


remetem a essa ideia citada anteriormente, apropriada de Píndaro
pelo filósofo alemão, do “Tornar-se quem se é”. Logo, em relação
à prática do pensamento e à prática da escritura: escrever torna-
-se, de algum modo, fazermo-nos a um só tempo um mesmo e
um outro: um “outramento” de si. Escrever nos faz tornarmo-
-nos quem já o somos. Todavia, esse processo do “tornar-se” deve,
necessariamente, ser transformador. É preciso que nos entregue-
mos aos encontros, aos devires, para afirmar em nós, o que somos.
“Tornar-te quem tu és!!!” constitui-se paradoxalmente na ideia
de que para se chegar a ser o que se é, há de se combater o que já
se é. Trata-se, no limite, de escrita de si. Essa ideia foi apropriada
por Foucault na constituição de um pensamento da arte. Esse
pensamento da arte em Foucault estaria para além de suas argutas
análises da ontologia da linguagem formuladas nos anos 1960 na
seara inaugurada por Georges Bataille (a transgressão) e Maurice
Blanchot (a experiência-limite), na qual se formularia as princi-
pais teses da História da Loucura, entre as quais de que a loucura é
ausência de obra. Esse pensamento da arte em Michel Foucault,
exatamente aquele que nos possibilita pensar as práticas artísticas
contemporâneas, está assentado nas ideias e conceitos de estética
da existência e do sentido de invenção para si de uma vida artista:
a vida como obra de arte. Foucault, leitor de Nietzsche.

48 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


7. A despeito das análises foucaultianas terem se debruçado,
especialmente na derradeira fase de sua obra, em investigar os
estilos de vida, os modos de existência e a subjetividade greco-
-romana antiga, as noções de “estética da existência”/“estética de
si” e “ontologia de nós mesmos”, apenas para ficar nessas duas que
de certo modo representam o mesmo campo semântico-concei-
tual, são de certa maneira produtos de um sopro nietzschiano.
Essas são, no limite, tentativas engendradas pelo pensador fran-
cês de pensar novas formas de subjetividade e, por conseguinte,
formas de resistências aos processos de subjetivação e assujeita-
mento engendrados pelas formas do biopoder das sociedades do
capitalismo contemporâneo. Daí o porquê de nossa questão ser
aquela de mostrar como determinadas práticas artísticas dos anos
1960-70 articulam as relações entre arte, política e resistência,
notadamente as práticas estético-políticas de um dos mais sin-
gulares artistas deste período: o estadunidense Gordon Matta-
Clark (1943-1978), especialmente, o coletivo artístico fundado e
por ele intitulado de Anarquitetura.

8. Qual, então, o campo comum que articula o Michel


Foucault, tanto da “experiência trágica da loucura” e da “esté-
tica de si”, com as práticas artísticas de Gordon Matta-Clark?
Destacamos que os experimentos estéticos e as políticas da arte
praticadas por Matta-Clark, como suas ações autonomistas e suas
intervenções urbanas desenvolvidas pelo artista estadunidense
na cidade de Nova York, no bairro do Soho – então em com-
pleta decadência imobiliária – em meio aos idos de 1960 e 1970,
mostra que o artista novayorkino em suas ocupações em prédios
abandonados, cissuras em edifícios, grafitagens em muros e veí-
culos, rupturas em paredes de casas, praticava uma forma de luta

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark 49


revolucionária. Essas lutas constituem-se como práticas de pensa-
mento e práticas políticas. Essas práticas podem, em certa medida,
serem chamadas de uma espécie de anarquia coroada, à moda de
Antonin Artaud15, como forma contemporânea de autonomismo
político libertário e ativismo estético nomádico. Entretanto, essas
lutas revolucionárias não se configuravam como a cartilha revo-
lucionária típicas dos anos 1960-70, isto é, aquela que orientava
que fazer a revolução se daria a partir da tomada do aparelho de
Estado, da chegada ao poder constituído para construir doravante
uma nova forma de sociabilidade. Tratava-se, isso sim, de viver
existencialmente, a partir de um Comum (como Jacques Rancière
o formula)16, uma forma radical de devir-revolucionário da arte
(tal qual o propõe Gilles Deleuze e Félix Guattari)17, que se faz

15 Antonin Artaud, em sua célebre novela Heliogábalo, o anarquista coroado, fabula sobre o
poder de modo radical, na figura do personagem título.
16 Jacques Rancière em seu livro A partilha do sensível. Estética e Política nos aponta que esta-
ríamos em grande medida cercados, no campo das artes visuais especialmente, por práticas
artísticas que se caracterizam pela múltipla heterogeneidade do sensível, chamadas por ele
de regime estético da(s) arte(s), distinto dos regimes ético das imagens (emblematizado
pelo pensamento metafísico de Platão – arte grega, especialmente) e o mimético/poético ou
regime representativo das artes (conforme as concepções da filosofia da arte de Aristóteles
– arte renascentista, exemplarmente). Para Rancière o regime estético das artes coloca o
problema de “O que é o Comum? E como ele nos constitui politicamente?” no campo
ampliado das artes; ou dito de outro modo: não é mais possível na contemporaneidade
pensar as artes apenas a partir das obras e das formas de realização das práticas dos artistas.
Mas, isso sim, procurando pensar e realizar de que modo esse “fazer” dos artistas em nosso
presente, inseridos em suas comunidades, produzem implicações éticas e ativismos sociais
nas mais variadas formas de participação política.
17 Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, especialmente em O que é a filosofia? (mas primeira-
mente no livro deleuziano Cinema 2: A imagem-tempo), a ideia de um “devir-revolucionário
da arte” está presente, mesmo que de modo subjacente, em toda e qualquer obra de arte, e
também nas práticas dos artistas que possam ser chamados de radicais. Nessa concepção de
pensamento, a arte não responde ao chamado da doxa, do senso comum e, principalmente,
dos clichês. Ela, isso sim, clama pelo diferente, pelo heterogêneo e pelo múltiplo. Essa arte
radical teria como um de seus objetivos, e sentido, retirar-nos de nossa zona de conforto,
confrontar-nos diante do caos, sem, contudo, deixar de traçar meios de escape, linhas de
fuga (produzir derivas, como nos aponta Guy Debord), que nos faça resistir aos modelos
predeterminados pela forma-Estado... resistir aos microfascismos da vida cotidiana. Nessa
concepção estética ou pensamento da arte, que de fato é uma articulação de arte e políti-
ca, aspira-se simultaneamente às mais radicais e (im)possíveis das experiências estéticas;

50 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


por intermédios de fabulações criadoras, partindo de atos de cria-
ção, que são, ao fim e ao cabo, atos de resistência. Essas formas
de resistência(s) não poderiam ser dissociadas de um vigoroso
processo de reconstituição subjetiva, uma ressubjetivação radical,
ao qual Mata-Clark se submeteu. Esses experimentos estéticos
políticos matta-clarkianos, nos anos 1960-1970, e as ideias fou-
caultianas de “experiência trágica da loucura” e “estética da exis-
tência”, ao longo de sua obra, nos incitam a pensar neste encontro
intempestivo entre Michel Foucault e Gordon Matta-Clark, dois
intelectuais radicais de nossa atualidade.

9. Problematizar o papel do intelectual em nosso tempo


é, em certo sentido, colocar a necessidade de repensar a política
em outras bases. Talvez não seja mais, como se fez urgência nos
anos 1980-1990, tecer o fio que relacionava e ligava, fundamen-
talmente, política e ética; mas, retomar o rumo da nau e arti-
cular vigorosamente, agora, também, política e arte. Ou ainda,
pensar a política como um campo aberto às experimentações.
Experimentações/experiências de ações coletivas fundadoras de
novas possibilidades ao existir... Política hoje, no contemporâneo,
talvez nada mais seja que inventar novas subjetividades em deriva,
isto é, constituir processos biopolíticos de resistência aos poderes
instituídos, seja eles processos globais e coletivos, ou processos
de refundações de si mesmo. O político, pode-se dizer, é o mais
alto momento da ética, mas, também, processo singular de cons-
tituição estética de si. O político em Michel Focault (mas, parti-
cularmente em Gilles Deleuze & Félix Guattari) é a capacidade
e mais, à invenção de modos de vida não fascistas. No que aqui é denominado de “devir-
-revolucionário da arte”, o artista evoca suas potências criadoras ao invocar as potências
transformadoras de um povo que não está de antemão dado, de um povo que está por vir,
um povo que “ainda” não existe, um povo que não-há... Esse “povo por vir” é um dos proces-
sos constitutivos do que poderíamos chamar de uma estético-política deleuze-guattariana.

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark 51


de afirmar a singularidade, toda e qualquer singularidade como
potência absoluta de existir. E mais, acolher o que é o Comum
(tal qual propõe Jacques Rancière). Precisamente: não só buscar o
espaço desse Comum, como, também, reverter as correlações de
força que constituem o biopoder e suas tecnologias de dociliza-
ção, disciplinarização, assujeitamento e controle... Fazer política
da diferença, politizar a estética, instaurar o campo do Comum,
seja no plano macrosocietário capitalístico – não só a partir do
ultrapassamento das sociedades disciplinares para as sociedades
de controle (Foucault/Deleuze) e empreender lutas a partir daí
– seja no plano microssocietário dos grupelhos e hordas nôma-
des que se fazem deslizar por “Zonas Autônomas Temporárias”
(TAZ, como Hakim Bey), implicando, segundo defendemos
nesse novo tipo de intelectual-ativista, aquele que pratica ações
pontuais e ativismos instantâneos.
9.1 Isso porque, como já dissemos, se Foucault apontou em
sua obra um deslocamento fundamental de um certo intelectual,
típico da época do Esclarecimento que ele denominou de “inte-
lectual luz” (aquele que pode ver pelo outro e iluminar doravante
seus caminhos), para um intelectual público que fala em nome
do outro defendendo posições humanistas e imbuído de suposta
correção ética e de reputação ilibada (o caso Dreyfus), nosso filó-
sofo apresentou o nascimento de um novo tipo de intelectual
que sucederia o militante partidário que ocupou contemporane-
amente o papel de intelectual luz, pelo ele denominou intelectual
específico; que sua prática de pensamento, justamente ocorre no
seio das lutas das quais ele(a)s são participantes: são vários aqui os
ativismos (negros – ações e práticas afirmativas, homoafetividade
– movimento Queer, mulheres – pós-feminismo etc.).

52 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


10. De nossa parte apontamos a necessidade de um inte-
lectual de outro tipo, que temos aqui chamado de “intelectual
radical”. Esse pensará o presente no presente, mas, pensando-o
a contrapelo das leituras hegemônicas e hegemonizadoras desse
mesmo presente. Trata-se de um ativismo, entretanto, de um ati-
vismo da diferença. Trata-se de empreender lutas, mas lutas que
não apenas reformem as leis do estado, na busca de bem-estar e
conforto para os auspícios de uma boa vida burguesa, pois é, jus-
tamente, de lutas incessantes contra a forma-estado é do que se
trata. Ir à raiz e decepá-la... a forma-Estado é raiz; daí nossa luta
em nome de práticas políticas-estéticas de modo rizomáticas. O
intelectual radical não é somente um indignado... pois, ele não
apenas se indigna, ele revolta-se-e-age... E além de ocupar, atua
e reterritorializa o que foi antes desterritorializado, pois, atuação
e ativismo político devem necessariamente ser radicais: produz
AÇÃO DIRETA!, propriamente o que estamos aqui ensaiando
denominar de ações diretas estético-políticas.
10. 1. Entendemos que o coletivo Anarquitetura de Gordon
Matta-Clark atuou a partir de proposições e intervenções que
se constituíram como ações diretas de sentido estético-político.
Essas ações diretas são no limite práticas artístico-libertárias de
recusa e enfrentamento ao poder instituído, além de postularem
a total insubordinação à própria forma-Estado. O Anarquitetura
se articulou e se constituiu em suas práticas estético-políticas em
uma perspectiva que almeja/realiza uma relação com o comum:
aqui entendido como horizontalidade libertária de autogestão da
vida em uma sociedade qualquer, privilegiadamente nos gran-
des centros urbanos. Enfim, uma adesão à ação artística coletiva,
desautorizada e anônima, na qual esse processo artístico (ou não)
apenas pode se dar simultaneamente como ação estética e como

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark 53


modo vida, propondo, assim, um elogio à vida comunitária; e,
como tal, somente se realiza a partir de práticas colaborativas.
Deleuze nos auxilia aqui como intercessor filosófico à formulação
dessa noção. Isso porque entendemos que uma ação estético-polí-
tica somente pode ser pensada de modo plural, isto é, enquanto
atos que são a um só tempo como atos de criação e como atos
de resistência. Uma ação direta estético-política é um rigoroso e
vigoroso NÃO aos poderes instituídos/constituídos. Essas ações-
-proposições somente se realizam plenamente, entendemos, se
realizadas radicalmente, isto é, de modo Coletivo, Comunitário
e Colaborativo... como o fez o Anarquitetura de Gordon Matta-
Clark nos idos dos nos 1970 em Nova Yorque, lido aqui sob chave
foucaultiana.
10. 2. Gordon Matta-Clark, lido sob essa perspectiva, era, de
fato, um artista-intelectual radical.

Referências

a) Bibliográficas
FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
GORDON MATTA-CLARK. Desfazer o Espaço. Catálogo. Museu de
Arte de Lima-Peru/Paço Imperial, Rio de Janeiro-Brasil, julho de 2010.
GORDON MATTA-CLARK. Editado por Corinne Diserens. 3. ed.
2010. Nova Iorque: Phaido Press Inc, 2003.
VASCONCELLOS, Jorge; CASTELO BRANCO, Guilherme. Arte,
Vida e Política: ensaios sobre Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Edições
LCV/SR3-UERJ, 2010.

54 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


b) Videográficas
Food (1972), filme de Gordon Matta-Clark.
http://www.ubu.com/film/gmc_food.html

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark 55


Correndo risco de vida: uma
história para contar de si

Wladilene de Sousa Lima

A
publicação das dramaturgias construídas a parte das his-
tórias de vidas dos atuantes é por si, atos de profanação. A
natureza desse tipo de dramaturgia, onde a própria vida é
encenada como obra de arte é resistência que se revela na fron-
teira entre o factual e o ficcional.
O importante de publicações como o da FOCAR é colocar
essas dramaturgias no jogo da vida contemporânea como forma
ética-estética de estar no mundo, criando mundos.
Com vocês, Correndo risco de vida – não, de morte não, de
vida.

Na parada de ônibus, controlando a adrenalina...


Ônibus para, a porta se abre e o náufrago sobe.

NÁUFRAGO: Aí motora, segura esse busão que eu vou subi.

(Canta, conta e joga com todos os passageiros do ônibus).

Ó cantador canta aí, uma canção (bis).


Que ela seja uma história de paixão (bis).
Ó cantador cante aí, minha paixão (bis).
Que ela seja um conforto ao coração (bis).
Eu podia estar roubando...
Eu podia estar sufocando...
Eu podia estar matando...
O amor que existe aqui, dentro de mim.
Mas não, estou aqui para celebrar esse amor.
Porque amar é correr risco de vida.
Não é risco de morte, não.
É risco de vida.
E essa história que vou contar,
Vem das entranhas do si-mesmo.
É a história de uma criatura apaixonada!

(Mudança de estado, de corpo).

Minha história, não começa com essa iluminação toda.

(Desaparece toda a iluminação do ônibus).

Começa assim... Como se fosse escuridão.

(acionar a imagem-força da autoestrada atravessada no peito).

Durante dois anos, meu coração se trancou num quarto escuro,


triste, como se fosse luto.
Com toda aquela tristeza, ele não se permitia bater forte.
Eu disse a ele: coragem!
Pensa coração: por que não?
Aí, ele tentou.

58 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Bum Bum...
Ai... (respira fundo)
Bum Bum...
Ai... (respira mais fundo)
Bum Bum...
Ai, num vou conseguir... Estou com medo! (como se fosse desfalecer)
Eu insistia: abre os olhos de ver, tenta enxergar, assim mesmo no
escuro, o que restou de você para um novo amor.

(movimento dos braços como pálpebras \


Mudança de estado, de corpo).

E num foi que ele abriu os zolhão?


E sabem o que ele viu?
Ele viu, vindo do fundo da memória, dois olhos petecudos, lindos
e brilhantes. Uma imagem de menina.
Não! Uma imagem de mulher que lhe chegava às vistas.
Que surpresa o coração sentiu!

(uma luz, lá na cabine do motorista, vai surgindo...)

Ele sentiu o peito esquentar, ele vislumbrou um lume, lá, na linha


do horizonte... Como quem amanhece.

(Mudança de estado, de corpo).

Ai, ai, ai. O amor!


O amor é um ser danado de bom, né?
Adora dar corda na gente!

Correndo risco de vida: uma história para contar de si 59


E assim foi... Meu coração foi logo pegando corda.

(trabalha com a corda,


estica-a por toda a extensão do ônibus
e a luz vai aumentando lentamente).

Meu coração dava corda ao amor.


E o amor dava corda ao meu coração.
E dava corda, e dava corda e dava, dava muito, muita corda.

(entrega a outra ponta para o(a) passageiro(a),


que estiver sentado(a) no acento do meio do fundão
e fala direto com ele, o espectador escolhido)

Pegue aí, coração.


O teu papel, nessa viagem, é ser o amor do meu coração.

(voltando para a narrativa e a luz aumentando)

Quando o amor entrou, manhã adentro,


Meu coração foi logo cantarolando...
“Eu já sinto um calor de amor, de amor...
Quando você chega aqui” (bis).

(um aparte)

Há tantas formas de amar que num dá pra julgar, se certo, se


errado.
Amor num carece julgamento.

60 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


(voltando para a narrativa)

Acompanhem...
Com toda a sua luz, como um sol nascente...
O amor foi logo se instalando, sentando à mesa, pronto pra tomar
café da manhã.
Ele ali, se alimentando de mim; eu me alimentando dele.
A casa toda ficou em festa!
Os passarinhos cantavam no quintal.
As plantas se en-verde-aram com o verde mais lindo.

(um aparte)

Mas também olhar o mundo com lentes verdes é deixar tudo mais
bonito.
Lavar roupa, varrer casa, cozinhar... Tudo, absolutamente tudo,
vira divina comunhão.

(a luz aumentando)

Sabem vocês porque tanta luminosidade?


Porque às dez e meia da manhã
O amor já estava estirado na cama do quarto de dormir. Sim, na
minha cama de dormir!!
Hum!!! Quando o amor é assim, manhosinho, safadinho...
Fica difícil manter a rotina da vida.
A vida fica em suspense... Só murmurando: Ai, meu Deus, como
é bom!
Isso sim é sabedoria!

Correndo risco de vida: uma história para contar de si 61


Vale mais que mestrado, doutorado, pós-doc. (gesto de vômito,
risos).

(Mudança de estado, de corpo).

O tempo não para. Dias sim, dias não... (cantarolando).


E o glorioso amor atinge o seu meio-dia.

(a iluminação do ônibus chega ao ápice).

O amor ao meio-dia ferve a cabeça da gente.


Ele é sol pleno, ardente.
Não tente agarrá-lo muito, porque ele te queima.
Ele diz logo que acaba contigo.
Não é só ameaça, não!
Mas eu teimosa e com a luz à pino, eu me queimei todinha.
Queimaduras de 1º, 2º e 3º graus.
Foi, eu juro!
Eu tive até que ir pro hospital!
E hospital de amor é braço de amigo.
No meu caso, amigas.

(um aparte)

Entram agora, nessa cena, as Xoxós, meu grupo de amigas do


peito.
E aqui entre nós, as Xoxós, são como uma fritada de corações;
uma espécie de mexido.
Umas dizem: SIM, vai lá, ama livremente essa mulher.

62 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Outras dizem NÃO, não te mete, que esse amor vai aprontar
contigo.
E outras...NEM AÍ, SEU SOUZA.
Olhando pra cada uma delas, eu penso: TÁ, o que é teu tá
guardado.
Te espero na “dobra da esquina”.

(Mudança de estado, de corpo).

Ao meio-dia chega toda a falange do Amor.

(sons de tambores)

Salve o povo cigano!


Meu querido cigano Wladimir, o Wlad, meu xará.
Salve o povo da rua!
E Salve a minha querida Maria Padilha.

(falando um aparte diretamente com a entidade)

Eu estou aqui, minha mãe, brincando na vida como a senhora me


mandou.

(Mudança de estado, de corpo).

Como eu ia dizendo, o amor vem sempre acompanhado.


Vem amigos, de um lado e de outro.
Vem parentes, de um lado e de outro.
Vêm agregados... Gato e cachorro.

Correndo risco de vida: uma história para contar de si 63


E olha que bicho, conta muito nos casos de amor. Às vezes mais
que gente.
Vem o ex, a ex. Vem o atual, ficante ou namorado.
Vem até os possíveis amores...
Normal! É o presente querendo antecipar o futuro.
Eu posso com tamanha confusão!? Amorosa, mais confusão.
Eu só sei que o meu amor foi ficando...
Almoçou tudo que quis, do jeito que quis.
Tranquilo, fez questão de fazer a sesta.
Isso!
Dar a dormidinha das 2 horas da tarde.
Enquanto o amor tirava uma soneca,
Eu me transformei em beijos, afagos, sexo, gozo...
Olhando ela ali deitada, meu peito se dilatava.
Dentro de mim parecia que havia dois corações batendo no meu
peito

(entra o acompanhamento da música Dobrado)

Ao amar tenho sempre a sensação


De que bate mais de um coração dentro do peito
Feito mar e céu de noite ao luar
Um reflexo sobre a pele
E depois dele, um fundo nu do mistério do amor

Coração é um balão pelo ar


Vaga ao vento, se espalha por toda parte
Como fosse um par

64 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Segue vivendo
Renovado a cada abraço,
Aberto ao outro coração
Multiplicado
Pulsa agora
Nesse dobrado
Dois corações
Feito aurora
E o fim da tarde
Lua e sol

(repete toda a estrofe e 3X a última frase)

Acorda! Acorda, mulher!


Esse amor, nem te deu tempo para isso!

(Mudança de estado, de corpo).

Aí, o amor levantou da cama,


Lavou o rosto, tomou um golinho de café, e foi!
Nem ficou pra conversar. E logo eu, que adoro conversar na mesa
do café da tarde.
Ele foi e não disse quando volta.

(Mudança de estado, de corpo).

Eu, Wlad, nasci às cinco horas da tarde.


O entardecer sempre me deixa espantada e mole.
É uma sensação de desmaio, de morte quase.

Correndo risco de vida: uma história para contar de si 65


Sabem por quê? Porque essa hora já anuncia a hora que se
avizinha.
Para a minha personagem, o náufrago, é uma hora de crise.

(no som do ônibus as badaladas do sino ao som da Ave-Maria)

A hora da Ave-Maria é sempre muito impactante.


Talvez seja o som das badaladas, tão melancólico e profundo
dessa hora, que chega a doer na alma da gente.
Ainda mais no peito do coração apaixonado.

(lamento profundo do náufrago)

Mas me religar a quem, meu Deus?


A noite chegou...
Quem me chamar pra ver a lua?
Vi sozinha a Lua Vermelha; a Lua de Sangue.
Saio de casa e escuto uma voz aqui, outra ali.
São só vozes soltas num bar.
Quem não tentou afogar um amor na mesa de um bar, de dois?
Eu me afogo lá, no Dois Irmãos e no Dois Carlos.
São esses os meus infernos favoritos.
Do meio desse mar de afogamento,
Eu lanço ondas de amor em direção à praia, em direção a ela.
Oi... Estou com saudades.
Mas parece que minhas mensagens não chegam.
São como ondas que batem nas pedras que ela colocou entre nós.
Não resisto... me perco.
Ah, solidão, me leve para o mais alto mar.

66 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


No fundo de mim mesma, um tsunami se forma, me lançando
contra as muralhas da terra.
Por tamanho e pesado esforço, eu afundo.

(Mudança de estado, de corpo).

Ao assistirem todo o meu desespero, as Xoxós se lançam ao mar


para o resgate.
Olinda não resiste, pula na água e vai na frente, a nado, tentando
me encontrar.
Flores vem na proa com o lampião na mão, gritando: “Tem
alguém aí? Tem alguém aí?”.
Sônia pega o remo e jura que remará até o fim de suas forças.
Marluce marca no tambor o ritmo do coração para, quem sabe, o
meu coração escute e não pare de bater.
Patrícia, que no fundo do barco já estava em orações, transforma o
próprio corpo em uma “Laterna dos Afogados” e anuncia: “Parem
o barco, o corpo dela está aqui!”.

(quebrando todo o clima, o jogo)

O corpo dela está aqui? Corpo, que corpo, suas doidas?


Eu não estou morta; não tem corpo nenhum.
Essa história é de vida, não de morte. Eu disse isso lá no início
da cena.
Não é história de amor não correspondido.
É de amor dramatizado, feito teatro!
Ai, Xoxós! Olha o que vocês fizeram: rasgaram meu colete
salva-vidas.

Correndo risco de vida: uma história para contar de si 67


Me deixem morrer de amor.

(falando pro público/passageiros do ônibus)

Hum... (som de navio).


Vocês estão ouvindo?
Hum...Hum... (sons de navio).
É um navio!
Vou tomar um navio e cair no mundo, por engano.
Ei! Ei! Náufrago ao mar!
Ei, aqui!

(como se estivesse vendo um transatlântico se aproximar do seu


barquinho)

Caralho!
Peço desculpas. Mas esse bicho é enorme.

(começa a gritar ao capitão do navio)

Ei, meu capitão!


Náufrago, pedindo autorização para embarque.
Mas, antes de subir, posso perguntar pra onde o senhor está indo?
Ah, está viajando em direção ao mar mediterrâneo?
Como?
O senhor vai transportar refugiados.

(à parte)

68 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Refugiados. Refúgio. Fuga. Exílio.
É velha Europa, o mar devolve vítimas SUAS.

(volta ao jogo)

Capitão, são os refugiados vivos, ou são os mortos?


Ah, compreendo... meu capitão.
Como?
Se eu aceito ir a reboque?
Sim, meu capitão, eu aceito (aceitando de imediato).

(à parte)

Nessa história, eu aceito ir a reboque.


Não tenho escolha, queridos passageiros.
Sou toda amor!

(volta ao jogo)

Capitão!
Posso fazer meu último pedido ao senhor, que tudo vê e tudo
sabe, aí de cima?
Quero pedir coragem, para mim ou para ela.
Que uma de nós tenha a coragem de cortar a corda na hora certa,
na hora grande.
No nosso amor, já vai dar meia-noite. É a hora da virada.

(falando com o(a) espectador(a) que segura a outra ponta da


corda).

Correndo risco de vida: uma história para contar de si 69


Eu não sei se vou conseguir.
Você pode me ajudar?
Me deixe ir, meu amor.
Solte a corda.

(recolhe a corda, enquanto canta, final do jogo)

Navegar é preciso.
Viver, não é preciso (2X).

(permanece ao fundo, na rádio do ônibus,


a música tocada com a viola portuguesa)

FIM

Após a organização desse texto-dramaturgia para a publica-


ção no livro da FOCAR – texto nascido no jogo da improvisação
e fundamental à vida do ator e de seu papel – a sensação mais
acentuada é de partilhamento íntimo. Isso parece paradoxal, e o é.
A vida como obra de arte é um paradoxo a ser experenciado por
todo artista; toda criação artística traz em seu corpo este para-
doxo: vida e ficção.

Referências
LIMA, Wlad. Dramaturgia Pessoal do Ator. Belém: Edição Independente
Cuíra do Pará, 2005.
______ . Teatro ao Alcance do Tato: uma cartografia encravada nos porões
da cidade de Belém do Pará. Belém: Editora do PPGArtes, 2015.

70 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Artes visuais como plataforma
para pensar e viver: outros
espaços para a docência

Luciana Gruppelli Loponte18

Díptico da série Where we come from?, Emily Jacir, 2001-2008

A
artista Emily Jacir fez uma simples pergunta a compatrio-
tas palestinos que, diferente dela, portadora de um passa-
porte norte-americano, não podem voltar a seu país: “Se

18 Doutora em Educação, professora associada da Faculdade de Educação da Universidade


Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando no Programa de Pós-graduação em
Educação, na linha de pesquisa Arte, linguagem e currículo.
eu pudesse fazer qualquer coisa para você, em qualquer lugar da
Palestina, o que seria?. Por vários meses, a artista procurou rea-
lizar desejos tão singelos e significativos como os que seguem:
“Vá a Haifa e jogue futebol com o primeiro menino palestino
que você vir na rua”; “Visite minha mãe, e lhe dê um abraço e
um beijo por mim”, “Vá ao túmulo da minha mãe em Jerusalém
no seu aniversário, coloque flores e reze”; “Vá até o correio israe-
lense em Jerusalém e pague minhas contas de telefone”. O con-
junto dos registros dessa viagem, fotografias e relatos escritos em
inglês e árabe, compõe a obra Where We Come From, realizada
de 2001 a 2003. Exposta em vários lugares do mundo, como o
Museu Guggenheim, em Nova Iorque, a Bienal de Istambul ou a
Bienal de São Paulo, o trabalho pôde ser visto em Porto Alegre,
no âmbito da exposição “Liberdade em Movimento”, realizada de
30 de maio a 10 de agosto de 2014, na Fundação Iberê Camargo.

When Faith Moves Mountains, Francis Alÿs, 2002 (fragmento de video)


Disponível em: http://www.artslant.com/global/artists/
show/5116-francis-al%C3%BFs

Francys Alÿs, artista belga radicado no México, produz


obras que, de algum modo, afetam o contexto da vida ao seu redor.
Muitas de suas obras são ações efêmeras registradas em vídeos
ou fotografias como a grande performance “Quando a fé move

72 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


montanhas”, realizada em Lima, no Peru, em 200219. Em um
contexto social e político desfavorável no país, que afetava grande
parte da população, o artista, com vários colaboradores, conseguiu
arregimentar 500 pessoas voluntárias para mover uma duna de
areia de mais de 500 metros de diâmetro, por alguns centímetros.
Como diz Moacir dos Anjos (2007, p. 30), “embora não promo-
vesse um comentário direto sobre a situação vivida por eles, era a
afirmação de um desejo genérico de mudança compartilhado por
muitos peruanos”. Não havia na obra um conteúdo ideológico
explícito, mas, sem dúvida, constituiu-se como um ato político e
poético de resistência frente a um contexto de vida desfavorável.
Do que somos capazes quando agimos coletivamente? O docu-
mentário sobre a obra “Quando a fé move montanhas” esteve pre-
sente na 6ª Bienal do Mercosul, na mostra Zona Franca, realizada
de 01 de setembro a 18 de novembro de 2007, em Porto Alegre.
Hicham Benohoud, artista marroquino, na série fotográfica
La salle de classe20 produz ficções com intervenções inusitadas na
sala de aula em que também atua como professor. Em meio a uma
sala de aula aparentemente normal, o artista transforma seus alu-
nos em personagens pouco usuais, agregando novas significações
a um espaço tão árido como pode ser uma sala de aula ou mesmo
uma escola.

19 O making off da realização da obra está disponível em https://www.youtube.com/


watch?v=4eNuqLnFaYA e no site do artista http://www.francisalys.com/public/cuandola-
fe.html .
20 Ver mais no site: http://www.hichambenohoud.com/benohoud/index.php?option=com_co
ntent&view=article&id=47&Itemid=48

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 73
Foto da série La salle de classe, Hicham Benohoud, 1994-2000.

Inicio um texto sobre arte e formação docente tratando de


desejos humanos, contextos políticos difíceis, produção de metá-
foras para a vida, a partir de produções artísticas que saem das
molduras e galerias (ainda que seus processos possam estar ali
expostos), para fincar suas bases na vida mesma, na vida cotidiana
e corriqueira de cada um de nós. Com suas obras, Emily Jacir,
Francis Alÿs e Hicham Benohoud não trazem soluções para os
complexos problemas políticos com os quais seus trabalhos dialo-
gam, mas inserem ali momentos de ficção, tão poderosos quanto
as “verdades” que assolam cada um dos envolvidos. De algum
modo, essas obras e artistas, “dramatizam a agonia das utopias
emancipadoras, renovam experiências sensíveis comuns em um
mundo tão interconectado quanto dividido” (CANCLINI, 2012,
p. 18).

74 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O que obras como essas nos dizem, de que modo elas podem
perturbar nossos modos de pensar nossa formação docente? Anos
atrás, ao falar bastante empolgada sobre uma das edições da Bienal
do Mercosul aos meus alunos de várias licenciaturas, em uma dis-
ciplina da área da Didática, um estudante do curso de Ciências
Sociais respondeu estupefato a minha pergunta sobre a ida deles
a mostra: “Mas não tem nada a ver com a gente, né, professora?”.
Sim, tinha tudo a ver, respondi, sem saber se alguém de fato me
entenderia. Essa pergunta foi disparadora de muitos questiona-
mentos que persigo até hoje em minhas pesquisas21, e que talvez
possam se resumir na crença de que a formação docente, em qual-
quer área de conhecimento, pode ser ampliada a partir de uma
formação ancorada esteticamente e que, sim, o que muitos artis-
tas pensam e fazem tem muito a ver conosco, com nossos desejos
e dramas humanos, com nossas vontades pedagógicas e docentes.
Foucault, de certa forma antecipando ou reforçando os
novos rumos que as artes tomam no século XX, pergunta: “[...]
não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte?
Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte,
e não a nossa vida?” (FOUCAULT, 1995, p. 261). A indagação
se insere no contexto do estudo do filósofo sobre os modos de
subjetividade da Antiguidade, o instigando a pensar na ética de
nosso tempo, tão afastada de uma estética da existência. Muitos
anos antes, Nietzsche já pensava na relação potente entre arte e
vida, dizendo que “devemos aprender com os artistas” sendo mais
sábios do que eles, nos tornando “poetas-autores de nossas vidas,
principiando pelas coisas mínimas e cotidianas” (NIETZSCHE,

21 Nos últimos anos, em pesquisas financiadas pelo CNPq: “Arte e estética na formação do-
cente” (2007-2010), “Arte contemporânea e formação estética para a docência” (2010-2013)
e “Docência como campo expandido: arte contemporânea e formação estética” (em anda-
mento). Ver algumas publicações a respeito (LOPONTE, 2012, 2013).

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 75
2001, §299, p. 202). Apesar de terem vividos em épocas diferen-
tes, os dois filósofos se encontram a partir de seus pensamentos
e ideias, conversando e instigando-se mutuamente, pelo menos
através de nós, privilegiados leitores contemporâneos. Com eles,
tenho conversado sobre docência e arte, pensando que a docência
pode ser uma obra de arte, no sentido mais expandido que essa
expressão pode ter, abarcando a intensa experimentação que a
produção artística contemporânea pode nos oferecer. Nesse sen-
tido, é possível pensar em uma docência artista ou em uma ético/
estética para a docência na educação básica.
Para povoar esse pensamento sobre docência contaminado
com arte, tenho me aproximado de modo crescente com pro-
cessos e práticas artísticas contemporâneas. Canclini, ao falar de
algumas obras do artista Gabriel Orozco22, afirma que ele próprio
chama suas casas-estúdio de “plataformas para pensar” (2012, p.
91). Aproveito o mote de Canclini para afirmar que a arte pode
ser uma “plataforma para pensar”, um lugar do qual partem
inquietações, angústias não nomeadas, perguntas sem resposta, e
uma atenção constante sobre os movimentos da sociedade que
nos cerca. Inquietações que podem incluir as nossas preocupações
pedagógicas, nossos modos de pensar esse espaço que chamamos
de escola e essa singular ocupação que chamamos de docência.
Em geral, pouco acostumados com os modos artísticos
e subversivos de pensar, colocamos a arte, e aqui vou me refe-
rir especialmente às artes visuais, como algo ilustrativo, expli-
cativo, ou, por outro lado, um capricho estético e ornamental,
perfeitamente dispensável diante da seriedade e urgência da vida

22 Ainda sobre a obra de Orozco, ver texto de Nestor Canclini. Disponível em: <http://nestor-
garciacanclini.net/index.php/estetica-y-antropologia/79-articulo-qique-se-necesita-para-
-no-ser-un-artista-mexicanoq>.

76 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


cotidiana e mesmo do que deve ser ensinado em uma escola. É
um certo olhar pedagógico que relega à arte a horas de lazer ou
forma de tornar conteúdos escolares mais palatáveis e divertidos.
Teria esse olhar contaminado a pergunta do meu estudante de
licenciatura? Talvez sua pergunta pudesse ser traduzida de outra
forma: por que eu iria a uma exposição de arte contemporânea se
não há nenhuma ligação explícita com a minha área de conhe-
cimento específica e isso que se chama arte não diz respeito às
questões mais sérias da existência? Tergiversações à parte, o que
está em jogo é como lidamos com as artes e sua possível relação
com a educação, na sua forma mais ampla de pensar.
Camnitzer tensiona radicalmente essa relação, afirmando
que a educação teria que ser absorvida pela arte e condicionada
por ela. Ele considera (e eu também!) que “a arte é uma forma
de pensar. E acredito que a educação como se utiliza hoje, é uma
forma de treinar” (CAMNITZER, 2015, p.?). O autor, artista e
curador pedagógico, vai mais adiante:

Se aceitamos que a arte é uma forma complexa de pensar, de


especular e de fazer conexões, a pergunta que nos confronta
novamente é: deveria a arte formar parte da educação ou a
educação formar parte da arte? Estou referindo-me a uma
integração completa, assim que a pergunta é sobre quem
deveria informar ou condicionar a quem (CAMNITZER,
2015, p. 2).

É nessa direção que trago a discussão sobre arte neste texto,


como plataforma de pensamento, como ponto de vista privile-
giado para se pensar sobre a complexidade da vida e, por conse-
guinte, sobre educação e formação docente.

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 77
Arte e docência: campos expandidos
Minha atuação como docente e como pesquisadora tem
habitado esse entremeio, esse lugar fronteiriço entre arte e educa-
ção, olhando de um lado a outro, aprendendo a partir do ponto de
vista de cada campo de conhecimento, tentando encontrar novos
pontos de contato, novas conversações, novos modos de pensar.
Como formadora de docentes, percebo o quanto a docência, mui-
tas vezes imersa em um discurso pedagógico prescritivo e sensato,
deixa-se impregnar pouco pelas provocações da arte, descrente
das suas potencialidades além do tempo espremido e mal utili-
zado a ela destinado no currículo escolar. No âmbito da educação,
procuramos respostas para a desmotivação de docentes e estu-
dantes, para nossas escolhas curriculares, para a precarização do
trabalho, especialmente em escolas públicas, ou para os sentidos
que a escola têm hoje em uma sociedade hiperconectada. Como
formadores de docentes ou como docentes iniciantes, nos per-
guntamos: para qual escola, afinal, estamos formando professores
e professoras? Que lugar ocupar nesse modo escola, já tão defi-
nido, formatado, encaixado? Que brechas para criação docente
haverá nesse espaço, que tem operado “como máquina produtora
de sensatez mais do que de sensibilidades” (OBREGÓN, 2007, p.
74)?
É a partir de questões como essas que atualizo várias de
minhas indagações, acreditando que a arte e a experiência esté-
tica podem alimentar a constituição da docência. A partir das
minhas últimas pesquisas e de um trabalho de formação docente
em vários âmbitos, persigo a ideia de que a arte (e principalmente
a partir do pensamento proposto por algumas produções artísti-
cas contemporâneas) pode potencializar a docência como prática
de criação (LOPONTE, 2005; 2012; 2013a; 2013b). Indo um

78 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


pouco além, agrego novos elementos a partir de experiências de
pesquisa e de formação produzidas nos últimos anos, tratando
da discussão a respeito da docência como um campo expandido,
tomando emprestada uma expressão cunhada pela crítica de
arte Rosalind Krauss e já utilizada no campo das artes há algum
tempo (KRAUSS, 2008)23.
O mote de Krauss tem sido associado a várias propostas
curatoriais e discussões atualizadas sobre o que se faz hoje em
artes visuais. E, mais recentemente, a expressão “campo expan-
dido” foi parafraseada por Pablo Helguera, curador pedagógico
da 8ª Bienal do Mercosul24, na sua proposta de “pedagogia como
campo expandido”, concebendo a pedagogia como um território
que possui diferentes regiões:

No campo expandido da pedagogia em arte, a prática da


educação não é mais restrita às suas atividades tradicio-
nais, que são o ensino (para artistas), conhecimento (para
historiadores da arte e curadores) e interpretação (para o
público em geral). A pedagogia tradicional não reconhece
três coisas: primeiro, a realização criativa do ato de educar;
segundo, o fato de que a construção coletiva de um ambiente
artístico, com obras de arte e ideias, é uma construção

23 Em artigo publicado originalmente em 1979, a crítica de arte discute o quanto uma cate-
goria cara ao campo das artes visuais, a escultura, pode ampliar seu significado em relação
às associações tradicionais mais comuns de escultura com bustos, monumentos ou retratos
de personalidades. Os experimentos artísticos da arte contemporânea têm cada vez mais,
como já anunciava Krauss, tensionado qualquer pretensão de categoria universal e fixidez de
conceitos como escultura, pintura, desenho e fotografia, para citar alguns exemplos. Mais do
que categorias ditas universais, essas palavras remetem a um grupo de singularidades, esgar-
çando convenções, reinventando e expandindo antigas noções sobre o que pode configurar-
-se como um objeto ou ação artística.
24 A 8ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul teve como tema “Ensaios da geopoética” e foi
realizada em Porto Alegre, RS, de 10 de setembro a 15 de novembro de 2011. Ver site:
http://bienalmercosul.siteprofissional.com/

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 79
coletiva de conhecimento; e, terceiro, o fato de que o conhe-
cimento sobre arte não termina no conhecimento da obra
de arte, ele é uma ferramenta para compreender o mundo
(HELGUERA, 2011, p. 12).

Há certo movimento por parte de alguns artistas e curadores


contemporâneos em direção aos processos pedagógicos25, princi-
palmente em contraposição a um modo de educação mais tradi-
cional, ou de outra maneira, pensando a arte como um veículo
pedagógico para algum tipo de mudança social (HELGUERA,
2011). O que interessa neste texto, especialmente, é pensar a arte
como ferramenta para compreender e perguntar sobre o mundo
e suas complexas relações. Entendo que a aproximação das artes
visuais e, de modo mais atento, de certas produções artísticas
contemporâneas com a formação docente não precisa necessaria-
mente acontecer apenas através do “ensino de”, tendo como foco
estratégias metodológicas para aulas específicas de arte26. A apro-
ximação que visamos é em outra direção, pensando nos contágios
possíveis na formação de qualquer docente, independente da sua
área de conhecimento. Pensamos assim em educação, pedagogia
e docência como campos expandidos, permeáveis a modos de
pensar que não se restrinjam apenas a campos de conhecimento
já escrutinados e legitimados como pertencentes à “grande área”
da educação. No campo da arte, trago para esta conversa o que
Camnitzer chama de “boa arte”, cuja função é justamente ser
subversiva:

25 Esse movimento tem se chamado “Virada educativa”, no qual artistas e curadores de arte de
várias partes do mundo têm se voltado de diferentes formas para a educação como temática
de produções e exposições (O’NEILL, WILSON, 2010; BISHOP, 2012).
26 Em relação a abordagens contemporâneas e emergentes para o ensino de arte, ver Barbosa
(2005).

80 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


A boa arte se aventura no campo do desconhecido; sacode
os paradigmas fossilizados, e joga com especulações e cone-
xões consideradas ‘ilegais” no campo do conhecimento dis-
ciplinar. O enfoque que se reduz a fabricação de produtos
evita esses temas; se confirmam as estruturas existentes e a
sociedade permanece calma e embotada. Se gera assim o que
gosto de chamar de artevalium. (CAMNITZER, 2012, p. 2).

As provocações do artista e professor fazem pensar o quanto


estivemos, em grande parte em nossa formação escolar, em con-
tato apenas com certa artevalium, uma arte que pretende ape-
nas aliviar nossas tensões e ansiedades, tal como uma indicação
farmacológica. As implicações disso é que, por um longo tempo,
perdemos a oportunidade de aprender que “a arte é um lugar onde
se podem pensar coisas que não são pensáveis em outros lugares”
(CAMNITZER, 2012, p. 4). Além de uma função ornamental
e decorativa em nossas escolas e em nossas experiências, há uma
potencialidade da arte que tem sido constantemente esvaziada
diante de todos os conhecimentos mais “sérios” como os quais a
educação escolar de algum modo comprometeu-se. Viviane Mosé
tem nos feito indagações contundentes nesta direção:

Por que a escola prepara para a vida, em vez de ser a vida


exercida no presente? E por que o presente das crianças
na escola não é também um exercício de cidadania, de res-
peito a si mesmas, à vida e ao outro? Por que a escola não
é um espaço democrático, de produção de conhecimentos,
de debates, de criação? Em vez disso, tem sido um presídio
de alunos, um depósito de conteúdos impostos sem muito
sentido, um desrespeito aos saberes que os alunos já trazem,

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 81
um lugar onde as crianças não têm direito a voz (MOSÉ,
2013, p. 47).

É no contexto da escola que temos tido, ainda pouco aberta


à criação de outras possibilidades de vida e atuação no mundo,
que tenho buscado demarcar o espaço para a dimensão esté-
tica no âmbito da formação docente, com ênfase cada vez maior
em perspectivas contemporâneas de estética, em que as noções
modernas de “beleza” e de apreciação estética não sejam tão cen-
trais (HERMANN, 2005, 2010). Muitas escolas, presas ainda em
papéis determinados secularmente, não preparam de fato para o
futuro e muito menos para a vida que pulsa agora, no presente.
Que lugar tem ocupado a docência nesses espaços? É apenas
“refém” e “vítima” de um sistema predefinido e imutável, ou pode
encontrar brechas respiráveis em que outras atitudes são possí-
veis? Cabe, assim, buscar estratégias para a formação estética de
docentes considerando a arte de nosso tempo, em especial, produ-
ções artísticas contemporâneas que sacodem nossos “paradigmas
fossilizados”, que realizam intervenções nos modos mais habitu-
ais de pensar no mundo em que vivemos. Pensando a partir das
produções artísticas contemporâneas, tais como as de Emily Jacir,
de Francis Alÿs e Hicham Benohoud, criamos a nossa própria
“coleção de exemplos” (DE DUVE, 2009) para instigar a docência
como campo expandido, mais aberta para a dúvida em relação a
propostas pedagógicas cristalizadas, a invenção de práticas edu-
cativas contemporâneas ao nosso tempo e aos alunos que temos,
às novas relações entre escola e produção de conhecimento, con-
siderando afinidades inusitadas entre arte, educação e docência.
Na tentativa de materializar e compartilhar a nossa “coleção
de exemplos” de práticas artísticas contemporâneas, foi criado o

82 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


site ArteVersa (www.ufrgs.br/arteversa/wordpress) em que dispo-
nibilizamos uma coleção peculiar de artistas e produções artísticas
que tem nos feito pensar sobre arte, educação e as mais variadas
problemáticas contemporâneas. A produção do site e a sua ali-
mentação faz parte do projeto de pesquisa “Docência como campo
expandido: arte contemporânea e formação estética”, com finan-
ciamento do CNPq e é uma das ações do grupo ARTEVERSA
– Grupo de estudo e pesquisa em arte e docência (CNPq/UFRGS).
Ao versarmos sobre arte e suas possibilidades, queremos convidar
docentes a pensar conosco.

Docência: uma vida artista?


Como professora há muitos anos em vários níveis de ensino,
muitos alunos já passaram por minhas aulas27. Há, no entanto,
situações marcantes em algumas turmas, perguntas que ficaram
no ar ou que ainda continuam sendo respondidas. Talvez nunca
mais encontre o aluno que me dizia que aquela exposição artística
não tinha nada a ver com ele e com sua intenção de ser profes-
sor. No entanto, continuo respondendo a ele, fortalecendo meus
argumentos, construindo minhas convicções em torno da minha
resposta, que talvez tenha sido frágil e pouco convincente à época.
Compartilho com Branco (2009) a ideia de que a arte é
bem mais do que uma vocação pessoal de artistas, agraciados com
algum talento superior que os diferenciam dos demais: “Para uma
certa modalidade de interpretação personalista e inspirada na

27 Iniciei no magistério em 1988. Nesse período, fui professora de artes no ensino funda-
mental e médio e, no ensino superior, atuei no curso de Pedagogia e em diferentes licen-
ciaturas com disciplinas da área de Didática. Atualmente, atuo na supervisão de estágio da
Licenciatura em Artes Visuais e também no Programa de Pós-graduação em Educação da
UFRGS.

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 83
‘teoria do gênio’, o lugar da arte é topos singular e subjetivo que se
desvela apenas no percurso pessoal e na obra única de um artista”
(2009, p. 143). Esse, sem dúvida, é um pensamento muito comum
entre docentes de diversas áreas de conhecimento, quando a arte
é vista como algo distante, que pertence a iluminados e geniais
artistas ou conhecedores de arte. Por outro lado, podemos con-
vocar Foucault para pensarmos em arte a partir de uma “estética
da existência”:

O filósofo francês afirma que a estética da existência,


enquanto atitude pela qual nos tornamos artífices da beleza
de nossa própria vida, é um estilo de vida de alcance comuni-
tário, por ele também denominado de modo de vida “artista”,
realizável por todo aquele que seja capaz de questionamento
ético [...]. (BRANCO, 2009, p. 143).

Trata-se de pensar aqui em arte e estética como atitudes


diante da vida, recusando todas formas de assujeitamento. Uma
vida artista é uma vida inconformada, uma vida não fascista,
como aponta Foucault (1977), “essa arte de viver contrária a todas
as formas de fascismo”. (BRANCO, 2009, p. 150) ressalta a rele-
vância da questão aberta por Foucault, nos instigando, a partir
do seu estudo sobre as subjetividades da Antiguidade, a produzir
“um modo de vida incansavelmente criativo, onde nos fazemos e
desfazemos sempre que algo nos impulsione”, fissurando estrutu-
ras rígidas de poder.
Vivemos um tempo suscetível a fundamentalismos, a
ausência de diálogo e escuta, a um individualismo exacerbado,

84 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


a intolerância ao outro28 e certa paralisia no modo de pensar a
escola e todos os seus processos envolvidos, que incluem a atuação
docente e suas práticas pedagógicas já tão estabelecidas. Insisto,
assim, para que usemos a arte “como plataforma para pensar”,
como subterfúgio potente para pensarmos que o que fazemos
poderia ser de outra maneira, que as nossas certezas sobre o que
ensinamos e pensamos são frágeis e não imutáveis. Alguns artis-
tas talvez ajudem nessa tarefa de invenção de nós mesmos e da
criação de uma vida menos conformada. Mais do que o esforço
de compreender obras artísticas, a maior tarefa pode ser pensá-las
como “experiências epistemológicas que renovam as formas de
perguntar, traduzir e trabalhar com o incompreensível e o surpre-
endente” (CANCLINI, 2012, p. 50). O que pode ser mais para-
doxal, incompreensível e surpreendente do que uma escola e o
exercício da docência?
Volto à artista Emily Jacir, ao artista Francis Alÿs e ao artista
Hicham Benohoud citados no início deste texto. Esses artistas
desafiam contextos políticos difíceis e complexos, sem buscar
propriamente soluções, mas introduzindo novas indagações que
dizem respeito diretamente aos desejos e vontades humanas, por
vezes invisíveis e quase desprezadas diante dos grandes fatos, das
verdades totalizantes, das explicações racionais. O que somos
capazes de aprender com eles?
Muitas produções artísticas fascinam por nos oferecer,
de forma generosa e inusitada, modos poéticos de inserção no
mundo, como fazem artistas como a japonesa Chiharu Shiota,

28 Nos últimos anos, em meio a uma grande crise política e econômica, temos convivido no
Brasil com discussões sobre a redução da maioridade penal, a retirada de temas como gêne-
ro e sexualidade de planos nacionais e regionais de educação, notícias sobre linchamentos
sumários, estupros coletivos e a exacerbação de posições fundamentalistas e de intolerância
às diferenças sociais e econômicas, entre outras questões, que encontram nas redes sociais
uma maior visibilidade.

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 85
e sua belíssima instalação chamada “The key in the hand”, em
que milhares de chaves doadas por várias pessoas compõe com
dois grandes barcos e fios vermelhos que pendem do céu, uma
chuva de memórias. Objetos tão cotidianos como velhas chaves
tornam-se metáforas para a condição humana29. Ou podería-
mos falar ainda de artistas como Rosana Paulino, Ai Wei Wei,
Jonathas de Andrade, El Anatsui e tantos outros, cujas produções
podem nos inspirar a inventar outros modos de viver e pensar. As
obras desses artistas estão acessíveis a poucos cliques em qualquer
ferramenta de busca na internet, experimente encontrá-las.
A discussão inicial que pretendi trazer neste texto permite
sublinhar que a ficção e a arte são tão necessárias para a sobrevi-
vência humana tanto quanto o intelecto e a racionalidade. Como
humanos em um mundo marcado pela vontade de verdade, e pela
crença de que a ciência e o conhecimento racional têm a resposta
para todas as coisas, esquecemos que a necessidade de invenção
está no germe de todos os conceitos e verdades que nos configu-
ram, e “para que o homem acreditasse na verdade de suas constru-
ções, de seus signos, foi preciso que esquecesse de si mesmo ‘como
sujeito da criação artística’” (MOSÉ, 2005, p. 83).
Esquecemos milenarmente que somos capazes de criar, que
somos capazes de inventar novas formas de pensar, que necessa-
riamente não fomos feitos apenas para aceitar regras, acomodar-
-se ao que está dado, conformar-se com o estabelecido. Docentes
envolvidos burocraticamente nos processos pedagógicos, esque-
cemos que o nosso trabalho também pode ser um ato de criação30.

29 Esta obra foi apresentada na 56ª Bienal de Veneza (realizada de 09 de maio a 22 de no-
vembro de 2015). Mais detalhes e informações sobre a obra e a artista, ver em http://2015.
veneziabiennale-japanpavilion.jp/en/ e http://www.chiharu-shiota.com/en/.
30 Uma grande novidade no campo da educação no Brasil acontece desde 2015 em várias
escolas públicas de diferentes estados brasileiros: a ocupação de escolas pelos alunos,

86 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O que os artistas fazem, de forma múltipla e desordenada é,
simplesmente (ou de forma não tão simples), nos lembrar disso.
Preste atenção.

Referências
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Moacir dos et al. Zona Franca. Porto Alegre: Fundação Bienal do
Mercosul, 2007.
BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of
Spectatorship. Brooklyn, Nueva York, EUA: Verso, 2012.
BRANCO, Guilherme Castelo. Anti-individualismo, vida artista:
uma análise não fascista de Michel Foucault. In: RAGO, Margareth,
VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Para uma vida não fascista. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009. p. 143-151.
CAMNITZER, Luis. Arte y pedagogia. 2015. Disponível em: <http://
esferapublica.org/nfblog/arte-y-pedagogia/>. Acesso em: 16 jul. 2015.
______. La ensenanza del arte como fraude. 2012. Disponível em: <http://
esferapublica.org/nfblog/la-ensenanza-del-arte-como-fraude/> Acesso
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CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e
estética da iminência. São Paulo: EDUSP, 2012.
DE DUVE, Thierry. Cinco reflexões sobre o julgamento estético.
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FOUCAULT, Michel. Introdução à vida não fascista. 1977. Disponível
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vida_nao_fascista.html>. Acesso em: 7 ago. 2015.
______. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In:
DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória

reivindicando melhores condições para a educação pública. Em maio de 2016, quando fina-
lizo este texto, existem 146 escolas públicas estaduais ocupadas por alunos no Rio Grande
do Sul. O que esses alunos nos dizem em relação às possibilidades de criação em uma esco-
la? Ainda precisaremos de um tempo maior para reverberar esse acontecimento.

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência 87
filosófica: Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 253-278.
HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre
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88 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Como escrever com os
ruídos do mundo?

Leandro Belinaso31

Escrever é uma tarefa de devir, sempre


inacabada, sempre a fazer-se, e que
extravasa toda a matéria que se pode
viver ou vivida.
(Gilles Deleuze, Crítica e clínica)32.

G
ostaria de agradecer muito a oportunidade de estar em
Belém, participando deste instigante, relevante, rebelde,
ruidoso encontro que é a Mostra “Focar”. Estive pela pri-
meira vez na cidade em dezembro do ano passado, e foram dias
ótimos. Quando recebi o convite de Silvia Chaves para retornar,
fui tomado por uma alegria efusiva. Viajar para Belém se traduziu
em uma oportunidade de deixar vibrar intensamente no corpo
uma pergunta vital e com ela tecer, ensaiar, rascunhar um texto.
Podemos entrar de diferentes formas na indagação: como
escrever com os ruídos do mundo? Prefiro deixar de lado a perti-
nente suposição de que vivemos em um mundo demasiadamente

31 Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Contatos: lebelinaso@gmail.com ou www.facebook.com/tecendo.
32 Agradeço à Juliana Crispe pela lembrança do conceito de “devir”, levando-me a estudar
o texto de onde extraí a epígrafe. Deixo também meu muito obrigado à Alessandra Klug,
Amanda Leite e Karina dal Pont pelos pertinentes comentários sobre a primeira versão do
texto.
barulhento e perturbador, que nos subtrai a tranquilidade neces-
sária à escrita. Já não podemos mais, creio eu, retornar a um
tempo desacelerado ou, então, ficarmos reclusos em algum canto
acolhedor e não ruidoso para conseguirmos, de modo satisfatório,
encher de palavras uma folha de papel em branco, tornando-a
repleta de sentidos para nós e para quem nos lerá. Em vez de
clamar, aqui, por calmaria, desejo pensar na potência do ruído que
nunca cessa. Refletir sobre o que prestamos pouca atenção em
nosso cotidiano, mas que está soando de modo muito presente
e vivo. Ruído arrítmico, instável, variante, desorganizador, que,
como pontua José Miguel Wisnik (1989), produz uma interfe-
rência na comunicação, por vezes a bloqueando. Nesse processo,
o ruído pode se tornar um elemento criativo, “desorganizador de
mensagens/códigos cristalizados e provocador de novas lingua-
gens” (WISNIK, 1989, p. 33). Interessa-me refletir sobre como
fazer desses estilhaços cotidianos, dessas desordens ruidosas,
munições criativas para o pensamento e, portanto, para a escrita.
Talvez, para isso, seja necessário um bom tanto de tempo
livre. Mas importa menos, para mim, fazer durar o estado de
contemplação silenciosa de uma paisagem (algo importante, sem
dúvida)33. Desejo, simplesmente, lentidão para ouvir e escrever
sobre o que efetiva e afetivamente me instiga, arrebata, alucina,
ensurdece. Encaro este texto como uma oportunidade de exer-
citar, de ensaiar esta escrita que me exige, quem sabe, um outro
tempo e um modo diferente de ver e criar mundos.
Inspirado nos apontamentos de Regina Kohlrausch (2013)
sobre duas crônicas de Caio Fernando Abreu, ambas publicadas
nos anos 1980, no jornal O Estado de São Paulo, penso que minha

33 Em outro ensaio, produzido em 2009, mas só publicado recentemente, escrevi sobre a im-
portância do silêncio em processos formativos. Ver Guimarães (2015).

90 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


viagem para Belém trouxe a possibilidade de uma “circunstância”
para voltar a ensaiar a escrita. E a Mostra “Focar” chegou no exato
momento de finalização de trabalhos técnicos que me solicitaram
muita energia em textos ligeiramente afastados de mim. Uma vez
finalizados, pude me entregar a um outro começo, a alguns exercí-
cios ficcionais de escrita34, para com eles abrir algumas perguntas,
no jogo proposto pelo evento, entre a autobiografia, o cinema e a
formação.
Quero marcar desde já que, embora eu tenha começado
rabiscando notas sobre a escrita, e ainda seguirei um pouco mais
nesta toada, este ensaio se esforça em apresentar, através de duas
brevíssimas autobiografias ficcionais, cada qual de uma persona-
gem diferente, elementos que nos permitiriam pensar a respeito
das relações entre o cinema e a formação. Pelo menos essa é a
minha aposta. Os artefatos midiáticos, questão maior da mesa-
-redonda da qual participo, estarão em cena nos textos. Na parte
final do ensaio, comento rapidamente o modo como a mídia
atuou nos exercícios ficcionais que rascunhei.
Em uma de suas muitas crônicas, Caio Fernando Abreu
(1987) problematiza a escrita como uma tarefa, uma obrigação,
um trabalho. O autor questiona a escrita que nos exige um tempo
acelerado, distante da lentidão necessária para “pensar, reler,
reescrever”. Quem atua na Universidade conhece muito bem
esse modo ligeiro de compor com palavras! Na crônica, o escri-
tor anuncia a falta de tempo para sair de casa, para ler os livros
nunca terminados, para escutar alguns discos com calma, para, eu
acrescentaria, deixar-se afetar pelos ruídos cotidianos. “O mais

34 Foi fundamental para esse processo o curso que fiz sobre escrita com Adriana Lisboa (auto-
ra dos belíssimos romances: Rakushisha, Azul Corvo, Hanói, entre outros) de janeiro a abril
de 2016. As autobiografias inseridas, logo adiante, no ensaio, foram compostas, primeira-
mente, como respostas a uma proposição do curso.

Como escrever com os ruídos do mundo? 91


complicado [nos alerta Caio] é que, para escrever, é preciso ver
o mundo”. O autor finaliza seu breve texto fazendo uma feroz e
ácida autocrítica: “escrevendo assim, para sobreviver, não escrevo
o que me mantém vivo”.
Estou muito interessado em algumas questões que perpas-
sam este curto e esquecido texto de Caio Fernando Abreu. A
primeira diz respeito ao modo como ele anuncia a inquebrantável
relação entre a vida cotidiana e o ato de escrever. Questão que
podemos encontrar em outros textos, de outros autores, como,
por exemplo, no cinematográfico livro A tarde de um escritor, de
Peter Handke (1993). Nele, podemos ler:

Assim como precisava da máquina de escrever, ele [o escri-


tor] carecia, em dado momento, dos ruídos do mundo exterior:
uma vez, após meses de escrita em um arranha-céu quase à
prova de som, bem próximo às nuvens, portanto, ele havia se
mudado para um quarto de rés-do-chão em uma rua prin-
cipal de tráfego muito barulhento, a fim de poder continuar
trabalhando... (HANDKE, 1993, p. 13, grifos meus).

O autor finaliza o primeiro capítulo do romance com uma


passagem que considero delicada, magistral, retumbante. Para
conseguir continuar escrevendo, foi preciso que o escritor se dis-
pusesse a caminhar pela cidade (e isso efetivamente acontece, já
a partir do segundo capítulo). Ele se arrumou e saiu. Entretanto,
bastou que estivesse a caminho do portão, a passos de chegar à
rua, para que voltasse correndo para dentro de casa: “irrompeu
escritório adentro e substituiu uma palavra por outra. Só então
sentiu o cheiro de suor no cômodo e viu o vapor nos vidros”
(HANDKE, 1993, p. 14).

92 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O escritor Julio Cortázar (2015), em um livro que reúne
suas aulas ministradas em 1980, em Berkeley, na Califórnia, tam-
bém pontua, logo no começo do seu curso, que para escrever lite-
ratura é preciso ter contato com as ruas, “com tudo o que faz de
uma cidade uma espécie de cenário contínuo, variável, maravi-
lhoso para um escritor” (CORTÁZAR, 2015, p. 16). Em outro
ensaio, no qual Cortázar (2008) expõe alguns aspectos relativos
ao conto, o autor argumenta que para escrever é imprescindível
uma motivação entranhável (assim mesmo, advinda das entra-
nhas do corpo), pois “se os seus contos não nasceram de uma
profunda vivência, sua obra não irá além de um mero exercício
estético” (CORTÁZAR, 2008, p. 160).
Nos textos citados, transparece uma necessidade vital: para
uma escrita que não seja mera sobrevivência, há que se ter tempo
para viver a cidade, para ver o mundo, para escutar e se deixar
afetar por seus ruídos mais sutis. Algo cada vez mais difícil em
algumas cidades latino-americanas, seja pelas dificuldades gigan-
tescas de mobilidade, pelas violências física e simbólica avassala-
doras, pelo esvaziamento dos espaços públicos como lugares de
convivência. Néstor Garcia Canclini (1995) nos alertava, já no
início dos anos 1990, para a transformação das grandes cidades
(ele pensava sobretudo na Cidade do México) em espécies de
videoclipes fragmentários, atomizados, desconexos, velozes; e se
perguntava sobre como tecer histórias, criar narrativas com essas
cidades pós-modernas, que nos permitam construir uma ideia
de pertencimento e uma possibilidade de participação cidadã.
Contudo, deixo essa questão específica, relativa às cidades, para
ser mais e melhor elaborada em um próximo ensaio.
Gostaria, agora, de retomar a crônica de Caio Fernando
Abreu (1987) para chamar atenção para um detalhe presente

Como escrever com os ruídos do mundo? 93


nela, este que me interessará desenvolver um pouco mais neste
ensaio através das breves ficções autobiográficas que rascunhei.
O escritor nos presenteia com seus repertórios, com o que estava
desejando ler e escutar no momento de escrita de sua crônica
jornalística: Susan Sontag, Edmund Wilson, U2, Raul Seixas.
Cortázar (2008), em seus ensaios, também nos indica seus contis-
tas preferidos: Edgar Allan Poe, Ernest Hemingway, Juan Carlos
Onetti, Guy de Maupassant. Com esse apontamento, quero mar-
car que sair para ver o mundo e ouvir seus ruídos para poder
escrever passa, também, pelo tempo que destinamos à leitura, à
escuta das textualidades que nos levam a olhar o cotidiano de
modos diferenciados, com outras lentes. E essa parece ser uma
das contribuições da ficção: levar-nos a enxergar o mundo de uma
maneira nunca antes vista e imaginada por nós. Ficção, aqui, deve
ser entendida na acepção de Jacques Rancière (2009), como o
(re)arranjo, a (re)articulação inusitada dos ruídos, dos rastros, dos
materiais, dos signos e das imagens. “O real precisa ser ficcionado
para ser pensado” (RANCIÈRE, 2009, p. 58), vaticina o filósofo.
Ao sairmos à rua, ao tocarmos o cotidiano acompanhados
pela delicadeza da palavra demoradamente escolhida pela poe-
tiza, pela imagem sutilmente construída para aquele filme lento e
arrebatador, pode ser que já não enxerguemos o mundo (e a nós
mesmos) do mesmo jeito que havíamos feito ontem.
Se concordarmos com tal relação indelével entre vida e
escrita, podemos passar, agora, a indagar sobre os modos pelos
quais temos escrito sobre e com o cinema (começar, portanto,
a entrar em um dos temas da Mostra “Focar”) como pesquisa-
dores em educação envolvidos com uma formação para, com, e
sobre a imagem. Será que o fato de nos relacionarmos cada vez
menos com a cidade, quando vamos a uma sala de cinema, tem

94 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


impactado o modo como escrevemos sobre e com os filmes? Ir
cada vez menos a pé, de bicicleta, de transporte público, sozi-
nhos ou acompanhados, a uma sala de cinema na rua faz com que
tenhamos outras apreensões dos filmes que, cada vez mais, assis-
timos em salas de shoppings, na televisão de casa, nas telas móveis
que nos acompanham por todos os lados? O que perdemos com
essas práticas em desuso, que nos mergulhavam mais lentamente
na cidade e em seus ruídos? Quando escrevemos sobre filmes ou
ministramos aulas com eles, os modos como nos encontramos
com a imagem têm sido problematizados por nós? Estou me
perguntando pela performance, pela atuação do cinema no espaço
formativo e pelo cinema como provocador de encontros com a
cidade, com a vida cotidiana (papel que, hoje, pode estar nas mãos
dos cineclubes).
Abrir essas questões é o meu intento com este ensaio. E elas
passam pela relação entre a vida cotidiana, a escrita e os modos
pelos quais temos visto as imagens cinematográficas. Já conse-
gui minimamente conectar até aqui duas das temáticas propostas
pela Mostra “Focar”: o cinema e a formação. Estou pensando esta
última – vale a pena marcar mais claramente – em sintonia com
os modos como exercitamos a escrita, a partir dos ruídos que nos
chegam pelas nossas andanças nos mundos da cidade, da litera-
tura, do cinema, da fotografia, do cotidiano. Porém, resta articular
ainda a questão da autobiografia. E faço isso a partir, então, de
dois textos ficcionais, conforme já anunciei mais de uma vez (e
peço desculpas por isso). Retomando, são duas autobiografias, de
duas personagens distintas. Ambas se pensam na relação com um
“outro” e têm com o cinema uma história que merece ser contada.
Vamos aos textos. Depois, tecerei brevíssimos comentários con-
clusivos, mas abertos às conversas que nunca cessam.

Como escrever com os ruídos do mundo? 95


AUTOBIOGRAFIA 1
Sempre me faltou chão! Pensar desse modo pouco implicou
em me enxergar flutuando no espaço. A sensação da falta de um
lugar, paradoxalmente, me enraizou nas responsabilidades da vida
de adulto desde muito cedo. De repente, as brincadeiras cessaram.
Queria, acho, fazer caber em mim a ideia de ser alguém. Minha
bicicleta testemunhou tudo – presente chegado de surpresa no
aniversário de doze para treze anos. Lembro-me da cena como
se fosse hoje. Ela ali, quietinha, no pequeno pátio da casa, me
esperando. Foi amor à primeira vista. Tudo aconteceu naquela
cidade quente e perdida, onde morei por alguns meses. O selim
lembrava uma Harley-Davidson. Quanto orgulho de ir com ela
para a escola cantarolando Billie Jean, fingindo saber a letra. Os
meses por lá foram intensos e poucos. Naquele lugar, obtive meu
passaporte para a vida adulta. Era inebriante ir de ônibus urbano
ao centro, para ver um filme qualquer no cinema da praça, em
domingos ensolarados. Tal lembrança me faz rememorar um
tempo mais espichado, vivido em uma outra cidade. Nela, havia
um cinema gigante na mesma quadra em que eu morava. Não me
deixavam sair sozinho. Estava sempre acompanhado nas matinês.
Nem filme dos Trapalhões podia ver sem alguém. Já na cidade da
bicicleta, algumas vezes, ia sozinho ao cinema, outras, com meu
irmão mais novo. Estava prenhe de algumas responsabilidades,
mas as brincadeiras existiam. Minha bicicleta testemunhou tudo.
Sempre me faltou chão! Em uma outra cidade, onde a rua e a
noite passaram a ser muito vivas, ela assumiria comigo mais e mais
responsabilidades. O trabalho de office-boy abalou nossa relação.
Cansamos um do outro e nos abandonamos, pouco tempo depois.
As brincadeiras foram cessando. Mas com a grana do trabalho,
quanta alegria, dava para comprar o último disco do Ira! ou dos

96 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Titãs. Aquele livro do Ken Follett ou do Stephen King. E podia
ir livremente me deliciar na locadora de vídeo. Como gostava
daquela ansiedade pela chegada da cópia pirata do último filme
do John Hughes. Dirigir o fusca do meu pai fazia minhas pernas
tremerem. As sextas de cinema e as madrugadas de sábado no
“Porão” foram inesquecíveis. Elas me ensinaram que eu tinha um
corpo. Sempre me faltou chão! Quando me dei conta, estava lá,
sozinho na cidade que tinha prédios, cursando biologia. Por que
mesmo? Busquei respostas bem longe de mim. Na zoologia, na
paleontologia, na botânica. Quando me vi sozinho dentro de uma
mata com uma espécie de arpão para caçar flor em copa de árvore,
me desesperei. Fui pertencer ao centro acadêmico, cursar discipli-
nas de humanas e dar aulas. A biologia jamais me abandonou. E
nunca mais parei. Intervalei o professor em mim só por um curto
período. Sempre me faltou chão! Quando cheguei naquela outra
cidade distante e de muitos mais prédios, logo comprei um CD
do Nei Lisboa. Foi escutando aquele som e entregando currícu-
los pelas escolas particulares que me dei conta: era preciso fazer
com que as brincadeiras voltassem a estar presentes. E encontrei
um amor e comecei a viajar e a conhecer um pouco dos chãos do
mundo que nunca havia pisado. Depois de anos, já na cidade onde
hoje moro, sem saber se vou ficar, comprei, finalmente, uma bici-
cleta. E, ao som de Camila Honda, prometi levá-la para passear
no novo ano que acabou de chegar.

AUTOBIOGRAFIA 2
Vivi tempos áureos! Naqueles dias esplendorosos, todos na
casa me desejavam. Reinaria absoluta, talvez, se não houvesse
a televisão. Quando o videocassete chegou, assustei-me com o

Como escrever com os ruídos do mundo? 97


encanto que causou. Mas segui poderosa. Agora estou ali, sem
forças, sem pedaços de mim, sem minha linda caixa protetora.
Naquele canto empoeirado do quartinho das inutilidades, passo
os dias que já não são meus. Nunca imaginei que uma enceradeira
se tornaria minha única amiga. Logo ela, que sempre achei escan-
dalosa e demasiadamente solar. Nunca entendi porque repenti-
namente saía dançando e “cantando” pela casa. O videocassete,
coitado, que vida curta. Nunca mais tivemos notícias. Vivi tempos
áureos! Eu prezava pela discrição. Sabia da minha importância.
Era convidada a atuar na seriedade das questões da casa. Não
importava a hora. Sempre fui íntima da madrugada. Depois que
um fim me foi decretado, esqueci algumas das delícias de um
cotidiano agitado. Dia desses, a enceradeira me confidenciou um
pensamento que compartilho com ela. Todos deveriam ter uma
chance de se reinventar, de ganhar uma vida distante daquela que
fora, antes, traçada. A escuridão daquele quarto de ninguém dói.
Vivi tempos áureos! Testemunhei lágrimas, alegrias, raivas, sor-
risos, delicadezas, sofrimentos. Vivi cada segundo como se em
cada um coubesse mundos vastamente inimagináveis. Nem todo
mundo gostava de mim. Alguns, escutei certa vez, diziam que
havia uma forma correta de lidar comigo, porque eu era tempe-
ramental, soturna até. Soube que davam cursos para aprenderem
a se relacionar comigo. Nunca compreendi isso. Confesso que até
desejei ter em mim a simplicidade alegre da enceradeira. Eu não
era dessas que estavam fadadas a viver para sempre trancafiadas
em um escritório de contabilidade ou em uma sala de aula dos
cursos sobre mim. Nasci para ser portátil, única. Vim ao mundo
para viajar e poetizar. Queria ser a companheira para todas as
horas. Através de mim, sentimentos aflorariam, sentidos brota-
riam, o inimaginável se criaria. Esses eram meus desejos desde

98 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


pequena. Aliás, sempre fui pequenina. Menor que a maioria.
Diziam que era metida, só porque tinha uma caixa aveludada para
me proteger. Saudade dela, aliás. Sempre fui avessa às burocracias
que, vira e mexe, insistiam em me fazer produzir. Vivi tempos
áureos! Viajava e voltava contando tudo à enceradeira. Ela não se
importava muito. Só fingia prestar atenção. Dançar e “cantar” seu
zunido de sempre lhe bastava. Eu não: sonhava com as histórias
que ajudava a criar. Pareciam minhas. Será que me reconhece-
riam pelas marcas que eu deixava? Um dia a enceradeira parou de
dançar. Passei anos sem a ver. E nos reencontramos no quartinho
das coisas inúteis. O videocassete não estava lá. Acho que teve
outro destino. Ela ficou surpresa em me ver ali. Tão pequena, tão
tristonha, tão sem nada. A enceradeira me confidenciou que pas-
sou a desejar poder ajudar alguém a sonhar, a criar outras vidas.
Eu – disse a ela – só queria ter a oportunidade de um dia poder
dançar e “cantar”, nem que fosse uma música gritada e irritante.
Ficaríamos muito contentes se tivéssemos notícias do videocas-
sete. Que elas pudessem chegar por carta (datilografada, quem
sabe), em uma casa cujo piso antigo e lindo estaria brilhando de
tão bem encerado e lustrado.

Com este ensaio procurei tatear a questão: como escrever


com os ruídos do mundo? Abri uma breve discussão sobre a
escrita e sobre a potência da ficção para lidarmos com as pergun-
tas que criamos no campo da educação. Ao escrever as autobio-
grafias de dois narradores inventados e sem nomes, pensei que
deveria fazê-lo pondo em cena outras personagens: a bicicleta, a
enceradeira, o videocassete.
Os acontecimentos nas duas narrativas autobiográficas vão
sendo contextualizados pelos artefatos midiáticos. Eles atuam

Como escrever com os ruídos do mundo? 99


nelas (sobretudo na primeira) como se fossem pequenos ruídos
que nos indicam algo sobre as personagens e sobre o tempo da
própria narrativa. Em um outro ensaio (GUIMARÃES, 2014),
perguntei-me sobre como escreveríamos, como planejaríamos
uma aula ou organizaríamos um processo formativo se as noções
acadêmicas, científicas ou filosóficas se equivalessem em impor-
tância aos filmes assistidos, às músicas escutadas, às narrativas
lidas, às conversas mínimas e cotidianas vividas. E, inspirado
em Denílson Lopes (2012), pontuei que os artefatos midiáticos
podem ser vistos como propulsores de afetos e de memórias. Foi
com esse entendimento que procurei costurar positivamente refe-
rências advindas das culturas pop e midiática às autobiografias.
Ao ler o primeiro texto, encontramo-nos com o cinema
de rua. Impossível deixar de lembrar do cheiro da sala que fre-
quentava assiduamente, todas as semanas, lá nos longínquos anos
1980. Daquela árvore na calçada, ao lado da entrada, que exalava
um perfume até hoje identificado como “de cinema”. E a imensa
cortina que cobria a tela? Difícil pôr em palavras o que sentia
quando ela abria e as luzes se apagavam. E o que dizer da irrita-
ção com o “lanterninha” buscando, quando o filme já transcorria,
um lugar vazio para o atrasado da vez? Sem querer romantizar
um tempo que já não está em sua inteireza, resta insistir na per-
gunta sobre como temos visto filmes cinematográficos hoje. Eles
têm relação com as maneiras pelas quais nos relacionamos com
as cidades no tempo presente? E como temos convivido com as
cidades e nas cidades?
O segundo texto rememora a chegada do videocassete
às nossas casas de classe média naqueles anos 1980, fazendo o
cinema estar presente na sala de estar, em um tempo em que a
internet era apenas uma promessa. A narrativa relembra este

100 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


momento sob o olhar de dois objetos obsoletos na atualidade.
Fico me perguntando o que uma enceradeira diria para nós, hoje,
se nos dispuséssemos a ter com ela uma conversa. O que será que
a ausência de seus ruídos em nosso dia a dia produziu em nós?
Sem ela nos transformamos em sujeitos mais produtivos, mais
acelerados, mais consumidores de materiais que fazem o chão
brilhar sem esforço e barulho?
Vou chegando ao fim do ensaio, e acho que ainda há muito a
ser dito a propósito de sua pergunta-título. Como conviver – com
as cidades, com os outros, com o cinema, com os objetos – é uma
questão para seguirmos pensando em outros tantos ensaios, fic-
ções e conversas. Que possamos escrever ruidosamente, sem calar
a vida que fervilha. E, nesse movimento, criar mundos repletos
de encontros alegres, éticos, rebeldes, como estes que a Mostra
“Focar” nos propiciou. Obrigado!

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São Paulo, 29 de abril de 1987, Caderno 2.
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Como escrever com os ruídos do mundo? 101


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102 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O rádio: diálogo entre mídias,
tradição e contemporaneidade

Joel Cardoso

Temos primeiro as utopias. As utopias


são os lugares sem espaço real. São os
lugares que mantêm com o espaço real
da sociedade uma relação geral de ana-
logia direta ou invertida. É a própria
sociedade aperfeiçoada ou é o contrário
da sociedade, mas de qualquer forma
essas utopias são os espaços que são
fundamentais e essencialmente irreais.
Michel Foucault35

E
u queria celebrar a oportunidade de estar aqui e, como de
praxe, agradecer.
Agradecer a iniciativa tão rica e, ao mesmo tempo, tão bela
deste evento. Agradecer, entre outros nomes, a parceria e cum-
plicidade com Silvia Chaves, Leda Alves. Naturalmente outros
nomes também estão na base, no cerne deste acontecimento.
Agradecer o privilégio de compor esta mesa com meus compa-
nheiros de jornada acadêmica, Leandro Belinaso Guimarães e
Erasmo Borges, com a mediação desta minha amiga dos meus
tempos bragantinos, Sandra Bastos.
35 FOUCAULT, M. 1984, p. 16.
Fico feliz por poder, aqui, falar sobre esse meio de comu-
nicação, o Rádio, que, na contemporaneidade, ganha outros
contornos. Em franca desvantagem na competição com outras
mídias, o rádio procura reassumir sua importância, seu valor, sua
potencialidade, voltando a se constituir como veículo transmissor
de informações e, inclusive retomar um viés que o caracterizou
inicialmente como transmissor de arte, de lazer, de ludicidade,
reafirmando-se no âmbito das novas tecnologias como arte midi-
ática transmissora de cultura e como possibilidade de criação
acústica.
O rádio fala, veicula sons, vozes. Basicamente é essa a sua
função. Nós, seres humanos, em permanente estado de interação,
somos essencialmente seres do discurso. Somos histórias que cir-
culam num mundo de histórias. Somos seres que narramos, que
contamos histórias, que interpretamos e consumimos histórias.
Uma história sempre se remete a outra, que, por sua vez, leva
outras tantas histórias. Transitamos, cultural e intertextualmente,
entre elas. As notícias que nos chegam tornam-se histórias. Por
mais reais que sejam, tais notícias, no ato de narrar, quando são
recebidas e apreendidas, se convertem em histórias, oscilando
entre o real e o imaginário. Lembramos com Walter Benjamin
(1994, p.203), que a “cada manhã recebemos notícias de todo o
mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes.
A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de expli-
cações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a
serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação”.
Vale ainda ressaltar que Benjamin, à sua época, sentiu-se fasci-
nado pelo impacto das novas tecnologias sobre a cultura. Mais do
que as próprias histórias em si mesmas, a maneira como elas são
contadas é o que importa. Todo discurso constrói um percurso

104 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


de aceitabilidade, de convencimento, de verdade. Busca elos.
Estabelece uma gama de conexões com a realidade, com os diver-
sos contextos. Há que se saber contar histórias. Quando falamos
de rádio, em suma, recebemos e decodificamos textos. A teoria
semiótica pode, talvez, nesse sentido, nos auxiliar.

A semiótica [...] procura hoje determinar o que o texto diz,


como o diz e para que o faz. Em outras palavras, analisa
os textos da história, da literatura, os discursos políticos e
religiosos, os filmes e operetas, os quadrinhos e as conversas
de todos os dias, para construir-lhes os sentidos pelo exame
acurado de seus procedimentos e recuperar, no jogo da inter-
textualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da histó-
ria. Se os estudos do texto buscam, em geral, os objetivos
comuns de conhecimento do texto e do homem, a semiótica
pode, quem sabe, somar a outros os passos que tem dado
nessa direção (Diana Luz Pessoa de Barros).36

O rádio, naturalmente, se insere nesse contexto.

36 BARROS, D. L. P. 2005, p. 83.

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e contemporaneidade 105


O rádio no cinema
[...] o cinema e o rádio constroem seu
discurso com base na continuidade o
imaginário da massa com a memória
narrativa, cênica e iconográfica popular,
na proposta de uma imaginária e uma
sensibilidade nacionais.
Jesus Martin-Barbero

Contrapondo poeticamente aspectos relativos ao sonoro


e ao imagético, Walter Alves (2005, p. 303) afirma que “o sol é
visual”. E, continuando, nos convida a pensar “nas muitas imagens
que evocam o barulho do vento, do mar, o ruído de uma porta”.
Mais que isso, nos incita a pensar “na linguagem da música, mais
abstrata que o som” uma vez que “ela desenha imagens na alma”.
Arte da Contemporaneidade, o cinema, talvez mais que qualquer
outra linguagem artística, alia imagens (com a ilusão do movi-
mento) a sonoridades.
O cinema, tão popular em nossos dias, entre os anos 1930,
1940, época do apogeu do rádio, até os anos 1950, com a chegada
da televisão, era nas rádios que ia buscar os seus astros. Vamos,
pois, ilustrar isso melhor, exemplificando. Quando estabelecemos
esse diálogo entre cinema e rádio, não há como não nos reportar
a alguns filmes e, naturalmente, aos seus criadores.
Sem negar sua origem judaica, Wood Allen é um cineasta
polêmico, extremamente dinâmico e irreverente, que se quer e se
sabe norte-americano. Nos seus trabalhos imprime a sua marca
autoral e, embora autônomos, independentes, tais trabalhos refle-
tem, de certa forma, vivências autorais.

106 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


De 1987, A era o rádio é, sem dúvida, um filme peculiar no
conjunto da obra desse cineasta. Retrata o período áureo da era
das rádios, em toda a sua multiplicidade e abrangência. Passa
pelos noticiários, pelas informações, e, naturalmente, pelos musi-
cais. Retrata, com um olhar carinhoso, os bastidores do Radio.
Joe, a personagem central do filme, apresenta diversos persona-
gens, pais, irmãos, parentes, amigos.
Nos Estados Unidos, as décadas de 1930 e 1940 foram os
momentos áureos do rádio como veículo comunicador e de entre-
tenimento. Flashes desses momentos foram aproveitados por
Woody Allen quando escreveu e dirigiu Radio Days. O filme narra
as lembranças de um garoto e sua família de ascendência judia,
numa Nova Iorque ambientada na Segunda Guerra Mundial.
Traz episódios fictícios dessa fase áurea do rádio norte-ame-
ricano. O garoto conta histórias, como se fosse o protagonista,
relembrando os tempos da infância, regada com os programas
radiofônicos da época.
Como ainda ocorre ainda hoje em muitos lugares mais afas-
tados dos grandes centros, a melhor maneira de se manter infor-
mado sobre os acontecimentos de sua cidade e do mundo era,
também, à época da narrativa fílmica, através do rádio. O filme
mostra a apreensão da população norte-americana ao acompa-
nhar a narrativa do ataque à base naval de Pearl Harbor, bem
como o resgate de uma menina que ficara presa no fundo de
um poço. No filme, a atriz brasileira Denise Dummont faz uma
pequena participação, atuando como uma cantora latina.
O diretor explora paralelamente o lado lúdico do rádio
como forma de lazer, quando mostra a reunião dos membros da
família do pequeno Seth escutando seus artistas e programas de
rádio favoritos. Outra demonstração da influência do rádio na

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e contemporaneidade 107


vida das pessoas, e que realmente aconteceu e acabou sendo apro-
veitado no filme, foi o programa do cineasta Orson Welles, rea-
lizado a partir do livro A guerra dos Mundos, de H. G. Wells. Na
ocasião, Orson Welles transmitiu um programa especial do Dia
das Bruxas, em 1938, simulando uma série de relatos sobre inva-
sões alienígenas à Terra. O programa foi de tal modo impactante
que até mesmo a Bolsa de Nova Iorque despencou e, assustados
com a notícia, alguns cidadãos norte-americanos se suicidaram.
A força do rádio também é apresentada através da perso-
nagem Sally White. Ela quer ser locutora, mas só consegue uma
oportunidade quando melhora sua dicção. O rádio é só voz, é só
som. A aparência das pessoas não importa. As radionovelas cria-
ram ídolos. Muitos ouvintes se decepcionavam quando conhe-
ciam os seus ídolos. Pela sugestão da voz, criavam imagens e a
aparência real dos artistas de rádio não correspondia à imagem
que haviam criado.
A novela das 18 horas da Rede Globo de Televisão, Êta
mundo bom, de Walcyr Carrasco e Jorge Fernando, mostra, com
muito humor, numa trama exagerada e caricata, um pouco disso.
Há uma radionovela dentro da novela. A personagem Olímpia
Castelar, interpretada na trama televisiva pela atriz Rosane
Gofman, é uma artista famosa e com sua bela voz, protagoniza a
trama radiofônica. Na vida real, no entanto, trata-se de uma per-
sonagem em franca decadência, que foge aos padrões de beleza
que os ouvintes da rádio imaginam.
O ator e escritor Mario Lago, em Bagaço de beira-estrada,
lembra que “o rádio permitia [...] exercícios de imaginação: che-
gava como uma voz envolta em mistério. As meninas davam aos
galãs o tipo físico que elas gostariam de ouvir dizendo aquelas
coisas melosas”. Os ouvintes, através das palavras ouvidas, davam

108 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


asas à imaginação. Envolvidos pelas tramas das radionovelas, “o
jardim de que estavam falando era o jardim que a gente gostaria
de ter, a casa era a dos nossos sonhos, com as flores da nossa pre-
ferência. Tudo no rádio era nosso...”.
Voltando ao filme de Wood Allen, ele é interessante por
sua forma de relatar com um misto de humor e nostalgia e regis-
tra esse período de maior impacto social causado pelo rádio, que,
na década seguinte, perderia espaço para televisão. No entanto,
mesmo com a sua decadência, podemos dizer, ao assisti-lo, que,
de certa forma, seu apelo foi mais decisivo e profundo que o cau-
sado pela televisão. Por ser um veículo que se apoia somente no
som, ele exige mais atenção. Dessa forma, naquela época, ele tal-
vez estimulasse de forma mais criativa os ouvintes.
Na Alemanha, por exemplo, nas décadas de 1980 e 1990,
as novelas radiofônicas faziam sucesso. Os maiores nomes da
Literatura escreviam para as rádios. Vale mencionar, entre eles,
Heinrich Boll (1917-1985), prêmio Nobel de Literatura.
Articulando presente e passado, narração oral que remete
ao visual, o narrador autorreferente de A era do rádio é um expert
na arte de narrar. O passado é recuperado através da memória.
Assim, como quer Walter Benjamin, a história não é um acon-
tecimento acabado, demarcado, delimitado, mas traz a marca do
inacabado, do subjetivo, de algo libertário.
Baseado em fatos reais, mas subvertendo alguns fatos histó-
ricos, o filme Bom dia Vietnam, ambientado no ano de 1965, narra
a história de Adrian Cronauer, vivido pelo ator Robin Williams,
que, pelo papel, angariou o Oscar de 1988. Adrian é recrutado
como radialista para capitanear um programa radiofônico cujo
público-alvo é representado pelos soldados das forças armadas
norte-americanas, alistados para servirem a Pátria no conflito

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e contemporaneidade 109


do Vietnã. Com sua forma irreverente, o radialista apresenta um
repertório leve e vibrante que privilegiava os sucessos dos anos
1960. Tal repertório não é aprovado pelos superiores. As trans-
missões vêm eivadas de piadas e agrada aos soldados, mas enfu-
rece Steven Hauk, um segundo-tenente, o chefe imediato de
Adrian. Hauk sentia uma necessidade ostensiva de evidenciar sua
superioridade hierárquica. Movido pela inveja e ciúme, ele tenta
prejudicar Adrian, mas a força do rádio que promove a populari-
dade do artista faz com que ele caia nas graças do alto comando
da guerra.
Os dois filmes são clássicos no gênero. Embora sejam comé-
dias, têm ambos, como pano de fundo, o ambiente conflituoso e
trágico da guerra. Ambos se valem da potencialidade do rádio para
transmitir, de forma leve, divertida, arte, informação e música.
Diferente dos dois filmes já mencionados, A menina da
Rádio (1944), é uma película portuguesa, dirigida por Arthur
Duarte. O filme tem início com a voz de um locutor anunciando
as delícias disponibilizadas em um estabelecimento comercial,
uma pastelaria que, como adverte o letreiro na abertura do filme,
do tempo em que se serviam bolos nas pastelarias. Com diálogos
inteligentes, no filme, Cipriano Lopes, proprietário da pastelaria,
apaixonado pelo progresso, sonha criar uma rádio no seu bairro.
Quer trazer música de qualidade, e até mesmo uma orquestra
sinfônica. A estrela seria sua filha Maria Eugénia e o compositor,
seu genro Óscar.
UFPA e Rádio WEB

O velho fantasma da extinção do rádio ronda mais uma vez


os nossos estúdios, trazendo angústias e incertezas a seus
profissionais e gerando confusão entre os estudiosos do

110 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


meio. Agora, a ameaça se chama internet, o fenômeno que
parece querer subjugar o mundo nesta virada do milênio,
devorando todas as mídias que o antecederam, até mesmo
a televisão, até há pouco tão garbosa no seu domínio sobre
a civilização. Diante de tal poder e voracidade, quem tem
chance de sobreviver? Alguém é louco de apostar no rádio?
(MEDITSCH, 2001, p. 1).

Como sempre ocorre quando do surgimento de novas tecno-


logias, houve quem decretasse a morte das rádios com o advento
da televisão. Mas o rádio resistiu bravamente. Com a consolida-
ção e popularização da Internet, novas ameaças afetaram todos os
meios de comunicação. O rádio, de certa forma, se tornou, para
muita gente, obsoleto. No entanto, ainda uma vez mais, resiste
bravamente. As novas gerações, na vanguarda das tecnologias
digitais, se conectam com as novas mídias de múltiplas formas.
A nossa Rádio WEB, criada experimentalmente em 2008 e
consolidada em 2009 por um grupo de pessoas da Faculdade de
Comunicação, liderado pela professora Luciana Miranda, viabili-
zou, de forma regular, as transmissões radiofônicas pela Internet.
Há, hoje, uma grade de programação variada que aponta para
diversas tendências, procurando, num processo interativo, atender
às demandas da comunidade de ouvintes.
Desde o início em 2009, apresentamos programas que pro-
curam dar a nossa contribuição nesse veículo de comunicação.
Assim, semanalmente, às terças-feiras, vai ao ar um programa
intitulado Universidade Multicampi, cujo objetivo é divulgar pro-
jetos de pesquisa e extensão elaborados por professores e pesqui-
sadores da nossa instituição, principalmente os projetos que são

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e contemporaneidade 111


criados nos inúmeros campi do interior. É um meio de socializar
essas pesquisas para a comunidade acadêmica.
Apaixonados pelo mundo do Cinema, estamos, também, à
frente de um outro programa, No Escurinho do Cinema, que traz
para as ondas do rádio o mundo da Sétima Arte. Procuramos
veicular informações artísticas e técnicas sobre o fazer cinema-
tográfico. A estética, a história, a crítica, as técnicas, as trilhas
sonoras, o fazer cinema (direção, produção, edição etc.) são temas
enfatizados por convidados que estejam de alguma forma em sin-
tonia com esse universo de sonho e magia.
A palavra, para além do processo comunicativo, pode transi-
tar de forma artística. Palavra é som, é cadência, é ritmo, sugestão,
é, enfim, poesia. Pensando nisso, na nossa necessidade da palavra
em sua potencialidade poética, disponibilizamos um interpro-
grama, que – de forma similar aos comerciais, quase um jingle
– funciona como elo entre a programação apresentada. Referimo-
nos às Pílulas Poéticas, cujo objetivo é divulgar poemas de nomes
que se dedicam à arte literária não só da nossa região, mas, tam-
bém, de grandes nomes ligados à poesia, à literatura, em âmbito
nacional e internacional.
Se, por um lado, o rádio perde, na internet, a sua concep-
ção que o caracterizou originária e massivamente, por outro, abre
possibilidades para outras modalidades interativas que buscam
direcionamentos alternativos para um público insurgente que
aposta em novas possibilidades de intercâmbios participativos.
Referimo-nos, nesse sentido, aos blogs, correios eletrônicos, chats,
listas, foros eletrônicos etc., que, rompendo fronteiras, nivelando
o público e o privado, se sobrepõem, principalmente com a proli-
feração de tecnologias móveis, às formas de comunicação predo-
minantes anteriormente.

112 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Para Aurora Garcia González (2001, p. 89), fica mais do que

evidente que a internet estabelece uma forma de radiodi-


fusão diferente da conhecida. Para a audiência é uma nova
forma de consumir o mesmo rádio, oferecendo a possibili-
dade de acessar bancos de dados de programas e definir sua
própria oferta radiofônica na hora e no lugar em que o usu-
ário escolha, transformando-se em um radio sob demanda.

Ouvir rádio pela Internet é algo ainda inusitado para o


público brasileiro. Não temos, mesmo na comunidade acadêmica,
esse hábito. Sem descartar ou descaracterizar as modalidades de
transmissão radiofônicas tradicionais, trata-se, agora, de uma
conquista de público (para quem ouve) e um aprendizado (para
quem faz) que, aos poucos, vamos, em parcerias solidárias, tor-
nando possível.

Referências
ALVES, Walter. A cozinha eletrônica. In: MEDITSCH, Eduardo
(Org.). Teorias do rádio. Florianópolis: Insular, 2005.
BARROS. D. P. B. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
FOUCAULT, Michel. Espaços Outros: Utopias e Heterotopias. Outra
– Revista de Criação, v.1, n. 1, 1984 pp. 16-19.
GARCÍA GONZÁLEZ, Aurora. “Radio en la red”. In: MARTINEZ-
COSTA, María Del Pilar (Coord.). Reinventar La Radio. Pamplona:
Eunate, 2001.

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e contemporaneidade 113


LAGO, Mário. Bagaço de Beira-Estrada. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1977.
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: Comunicação,
cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
MEDITSCH, Eduardo. O ensino do radiojornalismo em tempos
de internet. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2001.
Campo Grande/MS. CD-ROM.

114 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Mídia, Produção de
Saberes e Educação

Erasmo Borges de Souza Filho37

Introdução
“Naturalmente, todo homem pensa
que a sua própria opinião é a mais
acertada”.
Thomas More (1478-1535)

“A medicina é minha esposa legítima,


porém a literatura é a minha amante.
Quando me aborreço com uma, passo a
noite com a outra.”
Anton Chekhov (1860-1904)
Médico, contista e dramaturgo russo.

P
or ocasião da Mostra Internacional de Formação, Ciência e
Arte, ocorrida em Belém, em abril de 2016, com o propósito
de reunir, apresentar e compartilhar variadas produções de
diferentes campos do saber voltados para a formação docente, por

37 Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, docente e Vice-Diretor da Faculdade


de Artes Visuais, e docente do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e
Matemáticas (PPGECM) da UFPA, e do Programa de Doutorado da Rede Amazônica de
Educação em Ciências e Matemática (REAMEC/UFPA). E-mail: erasmo@ufpa.br
meio da arte e da ciência, com abertura para outros experimentos
criativos que possam ressignificá-las, diversas foram as experiên-
cias e debates apresentados, que nos levaram a refletir nas inúme-
ras possibilidades de diálogo entre o cinema, a fotografia, o vídeo,
a animação, a performance etc.
Tais expressões da arte, cujas linguagens não se resumem
somente ao fazer artístico e muito menos às aulas de arte, estão
cada vez mais inseridas na experiência existencial do ser, facilita-
das e intensificadas no cotidiano das pessoas, pela convergência
das mídias, interferindo e determinando necessidades e modos
de vida.
Isso tem tornado evidente os desafios que se apresentam
aos educadores que desejam se reinventar em suas práticas peda-
gógicas, ou mesmo no enfretamento da seguinte questão: como
acessar esse universo de linguagens na construção de novos sabe-
res (MORIN, 2000), na superação de modelos extemporâneos de
educação, e no enfretamento de suas próprias certezas e incerte-
zas? As reflexões aqui apresentadas são algumas entre as muitas
possibilidades na experimentação de práticas pedagógicas em um
tempo que as informações pululam por toda parte.

ENTREMíDIAS: A IMAGEM, O VIDEO E A EDUCAÇÃO.


Do ponto de vista da Semiótica Discursiva (BARROS,
2014; FIORIN, 2013; SOUZA FILHO, 2008; 2006), o texto
enquanto tessituras de relações que se entrelaçam dando origem
às significações é ao mesmo tempo um objeto de comunicação e
de significação, uma miríade de possibilidades, desde a sua confi-
guração singular a uma complexidade de linguagens.

116 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Isso exige um olhar atento e uma busca de competência
cognitiva para a sua interpretação, reflexão, compreensão e uso.
Reduzi-lo à condição de verbal e não verbal é limitar em muito
essas possibilidades.
Cada texto, seja ele linguístico, visual, sonoro, gestual ou sin-
crético, tem a sua especificidade de linguagem, independente do
suporte no qual se apresente como uma das possibilidades discur-
sivas, na construção da narrativa. O texto quanto mais próximo
do universo de significados com os quais estamos “acostumados”
mais nos conecta com uma “zona de conforto” do existente, do
sabido, e pode se tornar em um significativo mediador na reflexão
de mesmo existir, desse mesmo sabido, e da possível elaboração
do conhecimento. Sua experimentação com recursos midiáticos
amplia as possibilidades sensoriais de “fixação” da informação, do
conhecimento, estimulando e reativando recursos importantes da
memória, e ressignificando no nosso agir as certezas e incertezas
com as quais lidamos todos os dias.
No entanto, quando nas experiências em sala de aula traba-
lha-se com imagens, ou mais precisamente textos visuais, como o
desenho, a pintura, a fotografia etc., sejam elas digitalizadas ou não,
e algo na imagem escapa à nossa percepção, ao nosso raciocínio
em relação à referência esperada, impedindo-nos de processá-la
de imediato, de compreendê-la; ocorre o natural estranhamento
do “novo” que se apresenta. Tal estranheza impele-nos ao tenden-
cioso percurso de “corrigir” continuamente a imagem, intentando
formatá-la ao acervo do conhecimento que se possui ou encontrar
referencial correspondente no repertório que nos é próprio.
Uma vez esgotada essas possibilidades, sem a obtenção da
compreensão almejada, o que fazer? Nesse sentido, a imagem
pode ser geradora de comportamentos instigativos, quando o

Mídia, Produção de Saberes e Educação 117


espectador experimenta o desconforto da inquietação pela desco-
berta, pelo saber, fato que promove nele uma tomada de decisão,
ou seja, uma mudança de atitude. Na perspectiva da sala de aula,
isso tende a alavancar a aprendizagem, tornando-a significativa
quando compreendida, aplicada e mediada pelo professor, auxi-
liando o aluno na apreensão do discurso instaurado na imagem.
Diversamente a isso, o embotamento do processo de ensino-
-aprendizagem se instala pela aceitação pura e simples do conte-
údo ofertado, mesmo quando esse se apoia no texto visual. Sem
a apropriação devida da funcionalidade educativa do recurso, as
imagens assumem, no processo educativo, papel de meras repro-
dutoras de conteúdos, de ilustração, tal qual ocorre nos livros
didáticos, que não estabelecem um link lógico e necessário entre
o texto linguístico e o visual nele dispostos, limitando a aprendi-
zagem e, muitas vezes, prejudicando a compreensão.
É grande o acervo de autores e obras que abordam o texto
visual e propõem roteiros de usos a partir de noções de sua sintaxe
e semântica. Alguns são articulados como “manuais”, ou “quase
receitas” que prescrevem o “como usar isso ou aquilo em sala de
aula”, provocando uma avalanche de informações sem base pre-
cisa dos fundamentos dessas linguagens. Isso mais dificulta o seu
uso do que propriamente facilita sua apreensão, ao tempo que
compromete o processo espiral-ascendente da educação, uma vez
que a utilização da linguagem visual é feita sem a respectiva pro-
priedade, atestando a falta de consistência e verdadeiros equívo-
cos em sua abordagem e utilização.
O mesmo ocorre com o uso dos quadrinhos, do cinema,
do vídeo e da animação, que muitas vezes assumem o aspecto
“lúdico”, “sedutor”, e com um “rico” potencial de uso, sem, no
entanto, ressaltarem que tanto na imagem estática quanto em

118 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


movimento ambas são criadas a partir da intencionalidade de
sujeitos que concretizam discursos em narrativas textuais no uso
de uma ou mais linguagens específicas para esse fim.
Nesse sentido, o uso de imagens e de mídias que propiciam
a sua materialidade como recursos pedagógicos na produção de
saberes implicam em compreendermos que
1. O mundo enquanto tessituras de relações e conexões de
fenômenos é o que eu vivo e percebo por meio das suas
significações;
2. As imagens são o que formamos ou construímos em nossa
consciência a partir do mundo experienciado, apreendendo
significados nem sempre correspondentes à real intenciona-
lidade dos sujeitos que as criam38;
3. As imagens, independentes de seus processos de criação,
são unidades de manifestação autossuficiente, um todo de
significação, um objeto semiótico capaz de ser submetido à
análise;
4. Cada mídia, ou mais precisamente cada texto, possui espe-
cificidades de linguagens, com seus repertórios, regras de
uso e de combinação, que podem ser alterados de acordo
com a materialidade do discurso. Por isso a necessidade de
conhecê-las e de saber como trabalhá-las;
5. O uso dos recursos midiáticos por si só não são garantias
de êxito na construção do conhecimento e elaboração de

38 Um significativo exemplo dessa relação é o trabalho do fotógrafo espanhol José Maria


Rodriguez Madoz, conhecido como Chema Madoz, e sua exposição itinerante “Nem tudo
é o que parece”, explorando metaforicamente o oculto no cotidiano, ressignificando a per-
cepção da realidade paradoxalmente.

Mídia, Produção de Saberes e Educação 119


saberes na sala de aula e fora dela. São importantes instru-
mentos de mediação39 na produção de saberes;
6. A tecnologia não deve subjugar a educação ou o processo
educativo, impondo-lhe um papel secundário, nem tam-
pouco uma inversão no foco pelo excesso de uso de mídias;
7. O uso de mídias na sala de aula ou no processo educa-
tivo é um recurso pedagógico que deve ser pensado de
forma articulada com a construção de novos sentidos na
cotidianidade40.

Assim, se por um lado, ao pensarmos no uso de mídias no


processo educativo, devemos ter em conta que cada uma tem
sua especificidade de linguagem, cujo domínio é tão importante
quanto os conteúdos a serem ministrados; e que devem ser apre-
endidas pelo educador, somando-se aos propósitos aos quais ser-
virá, seja em uma aula de ciências, matemática e linguagens no
ensino fundamental, sejam nas demais áreas do conhecimento do
ensino médio.
Por outro lado, se pensarmos em plataformas digitais, esse
processo se amplia com inúmeras outras possibilidades e que exi-
girá do educador outras competências e habilidades como, por
exemplo, na produção e disponibilidade de material bibliográfico,
tutoria personalizada, espaço de trabalho cooperativo e atividades
on-line (RABASCO; CORREA, 2005), com o uso recorrente da
internet e de um aparato necessário a esse fim.

39 Cf. PONTES, 2012, que aborda a categoria mediação como central na possibilidade da
passagem entre o imediato e o mediato, na articulação entre as partes de uma realidade
complexa, na apreensão do real e na capacidade de transformá-lo.
40 A esse respeito cf. CARVALHO (In: NETO; CARVALHO, 2012, p.14) no qual afirma
que a vida cotidiana “[...] esta vida de todos os dias e de todos os homens, é percebida e
apresentada diversamente nas suas múltiplas cores e faces [...]”, mas também “[...] como
um espaço onde o acaso, o inesperado, o prazer profundo de repente descoberto num dia
qualquer, eleva os homens dessa cotidianidade, retornando a ela de forma modificada”.

120 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


A PRODUÇÃO DE SABERES ENTREMíDIAS
Monique Deheinzelin, em seu livro A fome com vontade de
comer (1995), afirma que “os artistas celebram o invisível, per-
cebendo e doando ao mundo o que sabem sobre as coisas, e não
o que veem na realidade” (1995, p. 121). Essa afirmação guarda
relação com os primeiros anos da criança e a forma que dese-
nha o mundo, nesse estágio: ela desenha o que sabe e não o que
vê (MÈREDIEU, 2006), como também, ao processo criativo do
pintor Pablo Picasso até chegar a sua fase madura, ao afirmar:
“Quando eu tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas pre-
cisei uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças”
(Vasconcellos, 2007, p. 69).
Essas três citações reiteram os aspectos de que as imagens
são o que formamos ou construímos em nossa consciência a partir
dos seus significados culturais, e que os saberes não se resumem
aos vinculados à escolarização. Nesse sentido, entram em questão
dois sistemas de comunicação, a representação e a figurativização.
Entre as várias abordagens que o termo representação com-
porta, de um modo geral remete ao ato ou efeito de presentificar
algo ausente ou imaginado. Seguindo esse raciocínio, a represen-
tação apresenta um caráter de iconização, que guarda semelhança
com as coisas do mundo natural, produzindo uma ilusão referen-
cial ou de verossimilhança com a realidade.
A figurativização, por sua vez, “é o procedimento semân-
tico pelo qual conteúdos mais ‘concretos’ (que remetem ao mundo
natural) recobrem os percursos temáticos abstratos” (BARROS,
2014, p. 83). Esse procedimento semântico tem como ponto de
partida a figuração que é tipificação figurativa do tema, na mate-
rialidade do discurso, por meio da figura, que é a resultante do

Mídia, Produção de Saberes e Educação 121


processo de figurativização, criando um efeito sentido ou ilusão
de realidade. Essa dimensão está presente no cotidiano, num
exercício contínuo de compreensão do mundo, naquilo que ele
nos “apresenta”, conforme nos mostra Landowski.

Imagens ou edifícios, objetos manufaturados, obras de arte


ou figuras do mundo natural, as coisas estão aqui, visíveis.
Visíveis, reconhecíveis, nomeáveis e ao mesmo tempo indi-
ferentes ou, no limite, pior ainda, pesadas e entediantes:
peças de museu, “maravilhas” arqueológicas pelas quais o
olhar vagueia, mas que nada nos dizem; catedrais, paisagens
e castelos massivamente colocados diante de nós e, enquanto
tais, impenetráveis – paralisantes. Lembranças da infância e
de domingos! De forma tal que, diante disso tudo, o sujeito
se desejaria presente de outro modo: pressentimento, para
além do visível, não de algo invisível, mas de um suportá-
vel que restituiria sentido a todas essas coisas e lhes daria
presença diversa. Como se o mundo, além das significações
pontuais que lhe atribuímos, como conjunto de elementos
que depende de princípios de leitura combinados e (bem
ou mal) assimilados, começasse repentinamente – ou quem
sabe, aos poucos, de bom grado – a fazer sentido de uma
maneira toda outra: enquanto “presença efetiva, envolvente,
imediatamente acessível” [...] (LANDOWSKI, 2004, p.
97-98).

Nos textos visuais, esses modos de presença do visível


pressupõem um percurso do sensível, desde a sua concepção (e
mesmo antes) à sua materialidade, a partir dos sucessivos recobri-
mentos semânticos aos conteúdos abstratos. Assim, as imagens

122 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


não esgotam, à primeira vista, todas as possibilidades de apreen-
são dos sentidos e sua conversão em significados. Para isso não
se deve deter na sua superfície, nem tampouco naquilo que ela
possivelmente representa. Precisamos ir além, a um plano mais
profundo na sua análise.
É sabido que a aprendizagem se torna mais significativa
quanto mais as iniciativas pedagógicas do educador se aproxi-
mam da realidade dos educandos, envolvendo contextos culturais
próprios naquilo que eles atribuem significados cotidianos e são
mediados pelo educador. Esse é um ponto de partida, e alguns
dos requisitos necessários à produção de saberes, cujo procedi-
mento não deve nele se encerrar.
De forma diversa, à medida que se avança e se conquista um
espaço inovador e efetivo na educação, torna-se possível perceber
que a associação, ao processo educativo, de textos visuais mais
“provocativos” à elaborações mais profundas e que demandem
maiores esforços do aluno, permite que se estabeleça a interse-
ção com imagens aparentemente “estranhas”; isso tende a gerar
comportamentos instigativos, expressos em mudanças de atitudes
para outras dimensões do sentido, implicando no desvelamento
de “saberes próximos” e na possibilidade de produção de “novos
saberes”.
Devemos atentar que se uma imagem pode articular cer-
tas atitudes como persistência, flexibilidade, atenção, percepção
etc., ela também poderá gerar ansiedade, conflito, incerteza, desâ-
nimo, imediatismo etc. A mediação do educador nesse processo
é fundamental para estabelecer articulações entre esses extremos
que coexistem no ser humano e se revelam com mais intensidade
frente ao novo.

Mídia, Produção de Saberes e Educação 123


A interseção entre essas duas estratégias possibilitará maior
reflexão, apreensão e elaboração de novos discursos sobre os mes-
mos temas abordados. Consequentemente, ampliar-se-á nos pró-
prios educandos a percepção dos textos visuais e a capacidade
de articulá-los sintática e semanticamente, considerando-se que
os elementos constitutivos da imagem são indissociáveis da sua
especificidade de linguagem. Isso contribuirá para a memoriza-
ção e articulação das informações e conhecimentos a partir do
próprio desvelamento do discurso.

Entremídias finais
A relação entre mídia e educação na produção de sabe-
res implica na inversão do percurso de formação e no diálogo
entre as várias possibilidades de mídias e suas especificidades de
linguagens.
O educador, sem se tornar um “especialista”, deverá se dotar
de “competência midiática” capaz de utilizar textos visuais e sin-
créticos (como o cinema, o vídeo e a animação, por articularem
a interseção de várias linguagens) na mediação da construção de
saberes, ou correr o risco de ficar à margem do processo educativo.
Isso se deve ao acesso que as novas gerações têm aos meios
e recursos midiáticos, com a convergência das mídias e a facili-
dade na apreensão de informações. É nesse contexto que ocorre
a absorção de linguagens nem sempre acessíveis no processo
de escolarização. O fato de existir nas escolas laboratórios de
informática ou espaços de multiusos midiáticos já é um aspecto
importante, porém, pouco adiantará se não se configurarem
como espaços de experimentações. Espaços esses que possibili-
tem a interseção entre disciplinas articuladas com os conteúdos

124 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


ministrados, e ainda possam absorver nesse processo os recursos
utilizados pelos próprios alunos como celulares, smartphones,
tablets etc., primando pela interatividade.
Isso implica em proceder a desconstrução da nossa pró-
pria prática formativa, ressignificando modelos com os quais nos
acostumamos a reproduzir, imitar ou mesmo em assumir papéis
preestabelecidos em nossas ações pedagógicas. Esses são fortes
indícios de quem evita a autoformação (KELEMAN, 1996).
Permitir-se a satisfação na expressão do novo é força motriz que
nos conduz ao processo de autoformação diante do imprevisível,
do singular e do coletivo, das incertezas e do involuntário.
A busca do conhecimento é que nos faz sensorializar
o mundo, de senti-lo com toda a nossa capacidade, ainda que
limitada de percepção. Esse é um movimento que se estabelece
quando se rompe com os fazeres instituídos em nossas buscas,
nas experimentações e no exercício contínuo de enfretamento do
novo nas suas mais diferentes linguagens. Sensorializar é antes
de tudo arriscar-se sem perder o foco, perder-se sem medo de
reencontrar-se, e o de viver sem medo de errar. De significar e
ressignificar os saberes do cotidiano presente na nossa cultura e
na cultura do outro para perfazer um caminho de aproximação
e interação entre os vários aspectos envolvidos. É nesse universo
que despontam considerações e rumos possivelmente novos, nos
quais afeto aliado ao prazer de formar e autoformar-se sempre
exigirá de nós maior disponibilidade para o encurtamento da dis-
tância imposta pelas redes sociais e o isolamento que as novas tec-
nologias produzem. Esse é e será o desafio que nos ronda a todos,
sem exceção, nesse mundo pretensamente globalizado, para além
das palavras e das imagens.

Mídia, Produção de Saberes e Educação 125


Referências
BARROS, Diana P. de Barros. Teoria semiótica do texto. 5. ed. São Paulo:
Ática, 2014.
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professores: uma construção na relação teórico-prática do “chão” da sala
de aula. São Paulo: SESI-SP Editora, 2012.
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de Janeiro: Vozes, 1995.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 15. ed. São Paulo:
Contexto, 2013.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Trad. Susana Alexandria. 2.
ed. São Paulo: Aleph, 2009.
KELEMAN, Stanley. O corpo diz sua mente. Trad. Maya Hantower. São
Paulo: Summus, 1996.
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Ana Claudia de (Org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker editores,
2004.
MÈREDIEU, Florence de. O desenho infantil. Trad. Álvaro Lorencini e
Sandra M. Nitrini. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad.
Catarina Eleonora F. da Silva; Jeanne Sawaya. 2. ed. São Paulo: Cortez;
Brasília: UNESCO, 2000.
MURALT, André de. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e
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Paulo: Editora 34, 1998.
NETO, José Paulo; CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. Cotidiano.
Conhecimento e Crítica. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2012.
PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social. 8. ed. São Paulo:
Cortez, 2012.
RABASCO, Francisco Pavón; CORREA, Juan Casanova. ¿Plataformas
virtuales en educación de personas mayores? Revista Latinoamericana de

126 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Tecnologia educativa, v. 4, n.1, p. 25-36, 2005. Disponível em: <http://
relatec.unex.es/article/view/175>. Acesso em: 31 mar. 2016.
SOUZA FILHO, Erasmo Borges de. Códigos Visuais e Artes
Visuais sob o olhar semiótico. Linguagens: Estudos Interdisciplinares e
Multiculturais: Leituras Intersemióticas. In: TEIXEIRA, Luci (Org.).
Belém, Unama, v.3, 2006.
______. “Chronos”: A semiótica que não para no texto. In: TEIXEIRA,
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Estudos Intersemióticos. Belém, Unama, v. 3, 2008.
VASCONCELLOS, Marina da Costa Manso (Org.). Quando a
Psicoterapia Trava. São Paulo: Ágora, 2007.

Mídia, Produção de Saberes e Educação 127


O Facebook como produção de
subjetividade: maquinações e dobras

Helane Súzia Silva dos Santos


Maria dos Remédios de Brito

Os organismos...

A
história da tradição teoriza uma suposta natureza humana
unificada, essencializada e normalizada. Processos de sub-
jetivação parecem reforçar essa concepção, como algumas
imagens postadas na rede social Facebook, que se configuram
como maquinações produtoras de subjetividades.
A subjetividade é maquínica, essa maquinação muda no
tempo e na história. No capitalismo globalizado o Facebook é
uma indústria de produção de subjetividade instantânea. A cada
segundo, a subjetividade é modelada e consumida. Há um pacote
de consumo e de distribuição adjacente em permanente multipli-
cidade de agenciamentos sociais envolvidos nas tecnologias inte-
rativas, que, de algum modo, passam pela observação e reflexão do
pensamento crítico.
Alguns questionamentos sobre as tecnologias virtuais a par-
tir da problemática filosófica são demandados: Que subjetivida-
des são maquinadas e distribuídas no Facebook no que diz respeito
ao gênero e à sexualidade? Quais as vantagens dessas produções?
Essas questões são movimentadas tomando como suporte
algumas postagens veiculadas pelos usuários da rede social. O
ensaio foi maquinado por alguns fragmentos compostos por ima-
gens, que são utilizados para um exercício do pensamento, a partir
dos questionamentos sobre aquilo que promove o embotamento
da vida e suas relações.

Topologias...
Problematizar os processos de subjetivação, sobretudo na
nossa atualidade, é colocar em visibilidade os mecanismos capi-
talistas e tecnológicos em evidência. As tecnologias e o capital
compõem uma relação com a vida, com o corpo e, efetivamente,
com a produção do desejo. As tecnologias são poderosas fontes
de assujeitamento e captura do que difere. O jogo não é passivo,
desinteressado ou mesmo espontâneo. Há toda uma intenção
para afirmar e produzir condição de vida, objetivando e docili-
zando... É isso que se deve manter à espreita para não se cair no
jogo do mesmo, da produção de iguais.
O importante para o sistema capitalista é efetivamente a
subjetividade, como produzir subjetividades conformadas, adap-
tadas. A cada dia vêm sendo maquinados grandes serviços globais
e em fluxos, amparados pela tecnologia, na fabricação de sujeitos
que devem ter certas precisões.

As dobras não cessam...


A máquina produtiva de rosto não cessa de se renovar,
invade, codifica, estabelece, conduz, assume formas, maneiras de
ser... As singularidades vão sendo estilhaçadas, forçadas, sempre,

130 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


ao movimento, para não sucumbir ao enraizamento e, quem sabe,
preservar a força da diferença... Os processos de subjetivação
estão em todas as sociedades, em algumas, como a nossa, o pro-
cesso é vertiginoso... mas, um rosto nunca se forma efetivamente,
ele é aberto, nele passa um certo vazio... normatizar, produzir...
sair, antiprodução, passagem...

Outras dobras, dobramentos... meio


A subjetivação não está atrelada à ideia de um sujeito
compreendido a partir de uma categorização fundadora, uma
identidade fixa, monolítica. Ela está no campo da produção, pres-
supondo que o sujeito é formado, fabricado, produzido de acordo
com determinadas instâncias culturais, sociais, históricas, políti-
cas e educacionais, modificando-se no tempo e no espaço.
Guattari, assim como Deleuze, pensam que a subjetivação
é produzida, transformada, modelada ou mesmo adaptada. Para
Foucault, o sujeito não está dado, em uma armadura central, a
subjetividade é multifacetada, ou melhor, não há sujeito substan-
cial, mas a sua possível forma é cambiante e mutante. Deleuze
(2005), em seu livro Foucault, afirma que a subjetividade é tra-
çada por dobramentos. Ele diz que há quatro dobras para a sub-
jetividade, uma materialidade que envolve o corpo, a carne, os
sentimentos, os desejos, os prazeres, o outro momento participa
da história e da cultura, que são as relações de forças, de poder,
de jogo que promovem articulações e fazem, inclusive, com que
se possa viver consigo mesmo. Há ainda a questão do poder, do
saber e suas produções de verdades, o último dobramento diz res-
peito à questão com o fora, como afirma Gallo (2013, p. 206):

O Facebook como produção de subjetividade: maquinações e dobras 131


A quarta dobra, por fim, é a dobra da exterioridade, a dobra
do “lado de fora”, isto é, tudo aquilo que não é o sujeito, mas
que é dobrado sobre ele em sua constituição, ficando como
aquilo que ele espera, a que ele aspira, como seu campo de
possibilidade”.

Dessa forma, a subjetividade, para Deleuze, é efetivamente


esse dobramento do fora para dentro e do dentro para o fora. Com
isso, não há sentido em falar de um “interior” do sujeito, habi-
tado por um núcleo de um “eu”, como uma espécie de mônada,
fechada, sem portas e sem janelas, idêntica a si mesma. O sujeito
não é um si mesmo, não é identitário e nem fixo, do mesmo modo
que não habita uma interioridade nuclear consciente.
Deleuze (2005) afirma que há constituições históricas de
processos de subjetivação, tais processos passam por assujeita-
mentos e também por resistências, por buscas de constituição de
si mesmos. Por isso, cabe perguntar que processos, a partir da
mídia, são constituídos para a formação dos sujeitos? Como a
mídia subjetiva os indivíduos? Que relações de forças, de sabe-
res, de poderes e de verdades participam dos regimes anunciati-
vos sobre a sexualidade, por exemplo? Que sexualidade se deseja
imprimir como processos de subjetivação?
A partir do exposto, a subjetividade é entendida como cons-
trução, que concerne a maquinaria produtiva, relacionada com a
história e com a cultura. Dessa forma, a mídia se fortalece para
pensar tais processos de subjetivação. Com isso, tais processos
de subjetivação ou de semiotização não estão centrados em pes-
soas ou sujeitos e nem mesmo em agentes grupais, como diriam
Guattari e Rolnik (2010, p. 39):

132 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que
podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual
(sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos,
icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, ou seja, sistemas
que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de
natureza, infra-psíquica, infra-pessoal (sistemas de percep-
ção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação,
de imagem e de valor, modos de memorização e de produ-
ções de ideias, sistemas de inibição e de automatismos, sis-
temas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos e assim
por diante)...

A subjetivação passa por toda uma maquinaria produtiva,


se valendo de diferentes aportes enunciativos e agenciamentos,
fazendo com que os indivíduos sejam serializados, registrados,
havendo uma multiplicidade de agenciamentos, regimes de saber/
poder que fabricam modos de ser e ver, pensar e agir.
A subjetividade não está centrada em um campo individual,
seu campo é cultural, histórico, material, assim, “esse terminal
individual se encontra na posição de consumidor de subjetivi-
dade. Ele consome sistemas de representação, de sensibilidade
etc.; os quais não têm nada a ver com categorias naturais e uni-
versais” (GUATTARI; ROLNIK, 2010, p. 41).

O Facebook como produção de subjetividade: maquinações e dobras 133


Como fazer maquinar, produzir ou fabricar
um organismo... IMAGENS41

Operação 1-
Fabrique para si a mulher, fabrique para si um modo de ser
...mãe... fabrique seu corpo, sua vida... invente para si uma neces-
sidade, uma modelagem... Quando o Facebook pode ditar um
corpo, um organismo....

Operação 2-
A mulher em condição de objeto, abjeto? O homem se diverte,
verte, pode, pula, rola, descontrola... Mulher é bicho doida, fácil...

41 Todas as imagens foram retiradas do Facebook no ano de 2016 em diferentes dias de acesso.

134 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Sociedade, quem diz? Quem institui esses papéis? Moralidade,
moralina, fina, ferina.
Culpa, morte, carga de punição...
Festa, sai de casa... pirou, facilitou, engravidou, cuidou...
Sociedade, moralina, moralidade...
O filho gritou, mulher engravidou... culpa... recatada?
Sociedade, moralidade, moralina, fina, ficou, fabricou, subjetivou
O homem some...? some?
Sociedade, moralidade, moralina... máquina.

Operação 3-
Como criar para si um corpo sem órgãos? Como resistir às forças
identitárias? Como definir para si seus próprios afetos? Como
mapear os afetos dos outros? Spinoza alerta: não se sabe o que
pode um corpo... Não se sabe que potências os atravessa... Existir
é variar entre essas potências... processos de subjetivação em
variação...

O Facebook como produção de subjetividade: maquinações e dobras 135


Operação 4-
A máquina usa, abusa, controla, explora.... captura, investe...
Como resistir às capturas da sexualidade, como não sucumbir ao
clichê do respeito à diferença? Como não ser comido ou devo-
rado pelo sistema de julgamento?
O que difere, fere? O que difere pode tornar um comportamento
padrão?
Fissuras, duras, armaduras...
Gesto do corpo... Outro!
Como fabricar para si o seu próprio rosto... há um rosto de si?

136 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Operação 5-
Quando a máquina não cessa de dizer e fazer... Uma patrulha!

Operação 6-
Toda forma de amor... quem diz como amar? As palavras de
ordem...
Mordem, podam, afirmam, dizem...
A palavra de ordem, moral... diz, confirma, conforma, molda...
Cuidar com a palavra de ordem... que codifica, obriga...
O mundo difere, diferença...
Não se pede respeito por seus próprios encontros... o sistema de
julgamento
Os princípios são abstratos... ignorados
Governos...
Ser...

O Facebook como produção de subjetividade: maquinações e dobras 137


Identidade...
Coagulações...
Capturas...
Dobramentos...
Imanência, uma vida...
Fabricação... ação... bricação...
Criar...
Palavra, ordem...
Não aceitar, não rejeitar... não há natureza humana.
Difere...
O que pode ser medido pela razão?
Subjetivação...
Linguagem, ação, razão, animalidade, sujeição, organismo...
Forma, fôrma... captura, saída... linhas
Uma dobra infernal que não se pode desfazer
Individuações...
Sem princípio...
Nem matéria causal...
Fabricação... como sair dessa prova, dessa prova de fogo?

Referências
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
GALLO, S. Do currículo como máquina de subjetivação. In:
FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete Magalhães (Org.).
Currículos, conhecimentos e produção de subjetividades. Petrópolis: DP e t
alli; Vitória, ES: Nupec/Ufes, 2013.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolitica, cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes, 2010.

138 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


ESCRITAS, BIOGRAFIAS
E FABULOGRAFIAS
Formação, docência e arte: o
desafio de ser semente

Sílvia Nogueira Chaves

Quero o que antes da vida


foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Adélia Prado

D
e que matéria são feitas as memórias? História é memó-
ria? Pode a memória tornar-se história? Onde se abriga
a memória? No corpo, na mente, no mundo? O que fica
de fora da memória existiu? E o que foi incluído é fato? Afinal,
quem é o sujeito da memória?
No conto “A memória do mundo” de Italo Calvino, um
personagem anônimo chefia certa organização cuja função é
armazenar e ordenar informações sobre tudo o que aconteceu na
Terra desde a origem até o seu fim, que ali é tido como certo.
Tal personagem ao explicar a natureza de seu trabalho esclarece
que o resultado final da tarefa da organização será a produção de
um modelo em que tudo conta como informação, menos aquilo
que não está nos arquivos da organização. Sobre isso conclui:
“Só então poderemos saber, de tudo o que foi, o que realmente
contava, ou seja, o que houve realmente, porque o resultado final
de nossa documentação será a um só tempo o que é, foi ou será, e
todo o resto, nada”. Em seguida, acrescenta que ao diretor (cargo
que ocupa) é concedido o privilégio de poder dar “sua marca pes-
soal à memória do mundo” (CALVINO, 2007 p. 335).
Entre outras coisas, esse conto de Calvino incita a pensar
memória a partir de outras latitudes. Uma memória controlada
pelo fora, que em nada corresponde às coordenadas de uma cons-
ciência individual, ou de uma vivência particular. Uma memó-
ria dirigida e editada, na qual tudo o que não aparece pertence
ao território do nada e tudo o que foi registrado nomeamos de
fato. Uma memória registro, que mais do que lembranças pro-
duz documentos. Nesse sentido, não é a lembrança que produz o
documento, mas o documento que produz a lembrança, pois que
somente o que está documentado será lembrado na “memória do
mundo”.
Sobre essa perspectiva, restam algumas perguntas: Quem
dirige essa memória registro, fato atestado por um documento?
Quem tem o poder de remasterizá-la?
Sem adentrar os domínios da discussão epistemológica
sobre pesquisa narrativa, sobre o estatuto de verdade desse campo
de investigação, as questões lançadas até o momento têm o pro-
pósito de inquietar. Interessa, aqui, problematizar o lugar ocu-
pado por aquilo que se tem chamado de memória nas pesquisas
narrativas e nos processos formativos por elas sustentados. Como
se tem operado com esse conceito ao se estudar e propor práticas
de formação, particularmente a de professores? Que papel se tem
atribuído à memória na constituição de subjetividades docentes?
Investi por certo tempo na pesquisa autobiográfica na
formação de professores. Esse investimento traduziu-se na

142 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


proposição e desenvolvimento, entre outros, de um projeto nome-
ado “Memórias de formação e docência”42, dele resultaram algu-
mas produções textuais (publicações em periódicos, livros...), que
apostavam no exame da memória para promover o autoconheci-
mento e a partir dele identificar situações, vivências que desen-
cadearam, cristalizaram desestabilizaram posturas, condutas no
processo de tornar-se e estar sendo professor (CHAVES, 2006).
A noção de memória ali implicada era a de reminiscência,
evocação e registro de experiências vividas, desdobradas e refle-
tidas, geralmente de forma inconsciente, no presente da docên-
cia. Daí a decorrente ideia de “tomada de consciência” tão cara
a esse campo investigativo. Operava a noção de memória como
uma forma de agenciamento identitário no qual se afirma o que
se é, porque se é e o que se pode vir a ser ao tomar consciência do
que se está sendo. Um percurso traçado do passado em direção
ao futuro que unifica e identifica o sujeito a uma narrativa tele-
ológica. Tratava-se, portanto, de construir uma hermenêutica do
sujeito docente, com um olhar mais afeito às essências do que ao
devir.
Talvez por isso sempre que me ponho a falar sobre memó-
rias, histórias de vida e formação de professores uma inquietude
varre o céu de minha paisagem. Sinto-me fustigada pelo tema. É
como se estivesse na iminência de praticar uma traição com os
potenciais ouvintes/leitores de minhas palavras. Mais, e pior, é
como se estivesse traindo quem me confiou esse espaço de fala/
escuta que talvez de mim espere reafirmação da importância das
tais histórias e memórias para bem viver a docência. Certamente
não sou vítima inocente dessa expectativa, participei ativamente
de sua construção.

42 Projeto financiado pelo CNPq para o biênio 2001-2002

Formação, docência e arte: o desafio de ser semente 143


Hoje, após alguns tectonismos no pensamento, o empre-
endimento é desmantelar essa lógica essencialista das narrati-
vas autobiográficas, desinstalar a memória do lugar de registro
e tomá-la como uma ilha de edição, tal como a definiu o poeta
Wally Salomão, na qual a vida pode ser montada, desmontada,
remasterizada, recriada em movimento, fabricando algo sempre
novo, sempre outro. Como num filme em que diferentes monta-
gens produzem novas histórias.
Nessa perspectiva, memória não é uma coletânea de vivên-
cias identificada com uma interioridade, uma consciência que
lembra e narra o vivido. E narrativa não é apenas um modo de
exteriorizar o que essa suposta interioridade reteve. Ambas são
construções históricas feitas no tempo, mantidas, reagrupadas,
reordenadas e significadas pela e na cultura. Portanto, a memória
é anterior ao corpo. Pensada desse modo, a memória não é remi-
niscência do vivido, mas a chave de leitura dele e a narrativa é o
registro, a documentação que resulta do manuseio da chave.
Talvez por isso não seja raro vermos repetida, nas autobio-
grafias memorialísticas de professores, por exemplo, uma forma
de narrativa confissão em que se parte de

[...] um conjunto de experiências de escolarização, forma-


ção e docência que culminam num processo de conversão
exitoso à profissão docente após a passagem por inúmeras
vicissitudes, como se estas fossem parte integrante de um
processo de purificação da alma do professor, que necessa-
riamente implicam na adoção também de um exercício de
autoconhecimento que decorre de um exame de consciên-
cia, de um pensamento de si, da exposição do eu e de uma
hermenêutica de si que fundamentalmente procura por uma

144 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


espécie de verdade nos mais recônditos esconderijos da alma
do sujeito professor, que, se descoberta, seria responsável
pela ruptura com um modo de ser anterior que permite, após
essa volta do inferno, ressurgir profundamente renovado em
relação a si mesmo (GONÇALVES, 2013, p. 23).

Esse é um tipo de narrativa muito próxima ao que Joseph


Campbell (2000) nomeou de narrativa do herói e parece ser uma
versão dela a forma autorizada, a chave de leitura, para falar de
vida de professores. Nesses relatos, usualmente, nada se fala de
sexo, namoro, vícios, paixões, tramas e ardis (só a bailarina que
não tem!!!! 43). Esses assuntos parecem não pertencer à vida
docente ou, no mínimo, não importar para ela. Afinal, professo-
res, principalmente professoras são (ao menos deveriam ser) seres
assexuados, aparentados das amebas...
De onde vem esse roteiro? Que história/memória é essa,
que sendo individual manifesta-se tão coletiva? Estas parecem ser
formas de visibilidade e dizibilidades sobre formação e docência
que vêm sendo reeditadas. Espécie regime de verdade constru-
ído na história e que, somente a história efetiva pode exorcizar
(FOUCAULT, 2008, p. 35), pois que tal história “não tem por
fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário se
obstinar em dissipá-la”, dissociar a ideia de consciência humana
do sujeito originário do devir (FOUCAULT, 2005). A história
efetiva, sobretudo, não teme admitir que “o verdadeiro” pertence
a quem se apropriou das regras para instituir uma nova ordem do
discurso, e que a memória não é arquivo onde se pode catalogar o
passado, mas uma maneira de ordená-lo atribuindo-lhe sentido e
dando-lhe direção.

43 Alusão à música “Ciranda da Bailarina” de Edu Lobo e Chico Buarque.

Formação, docência e arte: o desafio de ser semente 145


Partindo dessa visão de história e abdicando dos regimes
de verdade instituídos para a vida de professor, temos buscado
sepultar essas memórias socialmente credenciadas (COUTO, 2011,
p. 193) e pensar autobiografia não como reminiscência, mas como
autoficção, escrita criativa que se abre a uma experimentação de si,
tomá-la como espaço/tempo de inventar-se e não de inventariar-
-se, de produzir desbiografias, tais com as de Manoel de Barros,
constituídas 10% de mentiras e 90% de imaginação. Para tanto,
exercitamos sair da escrita escrutínio para uma escritura criação
que flerta com as artistagens do mundo contemporâneo e se pro-
jeta para além dos modos letárgicos da reprodução cognitiva.
Longe de prescrever rotas, essas escrituras produzem des-
subjetivações que arremessando a vida para além do campo moral
ampliam-na transbordando em relações éticas construídas con-
sigo mesmo, com os outros, com o mundo. Ali não importa “atin-
gir um objeto do vivido, mas um ponto da vida que seja o mais
próximo do invivível. Não a vida vivida, mas “o invivível da vida”
(PELBART, 2013, p. 207), a vida em estado de rascunho, sem
eternidades, porque se permite inventar continuados modos de
(res) (ex)istência.
Esse tipo de escritura tende a abortar binarismos (sou isso
ou aquilo) e faz experimentar um pouco de tudo aquilo que nos
multiplica e potencializa. Ousa liberar a imaginação, fugir dos
traços acostumados, olhar as coisas de azul, como nos ensina
Manoel de Barros. Nela não cabem atos heroicos, mas impor-
tam as grandezas do ínfimo, do miúdo, as raspas e restos esque-
cidos pelas racionalidades autorizadas. Ali “tudo pode ser página”
(COUTO, 2013, p. 103). Parede, tela, muro, papel, chão, corpo
viram suportes dessa escritura. O propósito dela não é descobrir
quem se é, mas, quem sabe, inventar o que se está sendo. Não é

146 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


reencontrar-se, é perder-se e, talvez, “atingir a pureza (e a leveza)
de não saber mais nada” (BARROS, 2013).

Experiment/art: (Des)apegos de um corpo docente

Corpo Docente
De onde vem essa pele que visto e me expande?
Superfície metamórfica em que me retorço
Entre asperezas e suavidades toca o outro
Sob atritos e faíscas provoca espanto/encanto
Na agudeza do dito acolhe dardos
Na língua do tato se faz silêncio
Tatuada no tempo
Transpira dúvidas
A quem pertence essa pele que tecida em ecdises
Cicatriza e regenera
Revestimento lábil
Epitélio mutante
Que me faz sempre outra?
Sílvia Chaves

Estamos demasiadamente mergulhados em informações,


conhecimentos, verdades e talvez precisemos da “arte para não
morrer da verdade” (Nietzsche). No campo da educação, a verdade
tem sido soberana, especialmente no âmbito da formação, em que
tudo parece já ter sido dito, conhecemos muito, sabemos demais.
Desaprender línguas, linguagens, alfabetos podem abrir espaço
para produzir novos léxicos, para nos tornarmos forasteiros.
No documentário “Pixadores” ou “Pixo”, de João Wainer,
William é um pichador analfabeto, mas sabe ler com sagacidade

Formação, docência e arte: o desafio de ser semente 147


a gramática das ruas. Suas práticas e grafismos dizem coisas que
não podem ser expressos em qualquer língua. Não há tradução
possível. Diante daqueles grafismos somos nós, seres da ciência,
os analfabetos, os cegos. E temos sido cegos de tanto vê-los.
De quantas cegueiras padecemos enquanto andamos pelo
mundo? Foi mais ou menos essa indagação motriz que lança-
mos aos estudantes da Licenciatura integrada44 que os fizeram
enxergar o mundo do grafite, da pichação. Experimentaram sair
da cegueira de uma racionalidade monolítica, do repúdio, da
recusa, deixando-se penetrar por essa outra linguagem. Primeiro
olharam de perto, produziram um audiovisual no qual entrevista-
ram pichadores e visitaram suas produções dispersas pelas ruas de
Belém. Em seguida experimentaram técnicas, ferramentas desse
outro idioma, seu léxico, sua sintaxe, embarcados pela mais pode-
rosa agência de viagens, a língua, pois que a língua é o mais antigo
e eficaz veículo de trocas (COUTO, 2013, p. 174).
No que esse tipo de escritura difere da acadêmica, apenas
na marginalidade de seus usos, abusos? Não só, pois que é pos-
sível cometê-los (e se comete tantos abusos!) também na língua
acadêmica. Difere fundamentalmente por não ter a pretensão
de durar. Sabe-se e ambiciona ser efêmera. Assemelha-se a um
palimpsesto, um palimpsesto contemporâneo feito para ser apa-
gado e dar lugar a novas formas e cores que se sucederão inde-
finidamente. Seus vestígios podem soprar inspiração, nada mais.
Experimentar a sucessão e a impermanência é o que há de forma-
tivo no mergulho nessa prática de linguagem/imagem. O grafite,
o “pixo”, com sua dinâmica heterotópica, incorpora as velocidades

44 Atividade desenvolvida com estudantes da Licenciatura Integrada em Ciências, Matemática


e Linguagens, da UFPA, no âmbito do projeto “Autobiografia, arte e cinema na formação
docente”, financiado pelo CNPq.

148 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


e durações do tempo presente e ensina-nos a não cristalizar a
escola, a docência, a vida. Inspira a não cobiçar um telos, ter como
horizonte o espaço aberto e incerto do devir.
Criar, criar-se é uma prática de todo dia. Nada se cria em
definitivo. A vida se recria todos os dias, nós é que temos ânsias
de eternidades e deliberadamente taxidermizamos a vida. No afã
de documentá-la, transformamo-la em fóssil. Mas, quando isso
acontece, já deixou de ser vida e não é mais possível vivê-la. Penso
que o conhecimento, como a vida, só vale a pena se puder ser
reinventado, se pudermos experimentar “o eterno prazer do vir a
ser” de que falou Nietzsche (sd).
O cinema tem se mostrado outro artefato de linguagem
interessante para pensar a formação desatada das noções de
identidade, tão cara aos esquemas antropológicos universais que
enclausuram modos de vida. Nessa perspectiva, os estudantes da
Licenciatura Integrada experimentaram a linguagem cinemato-
gráfica não apenas como espectadores, mas também como artífi-
ces dessa modalidade de escritura.
Dentre as virtualidades do cinema, exploramos a imagem
como enunciado. Problematizamos não só o que ela institui,
mas que posições de sujeito convoca a ocupar. Como nos temos
constituído professores a partir desses lugares? Que práticas são
sancionadas ou interditadas em cada um deles? Trata-se não de
um treino interpretativo, mas de explorar vidas incorpóreas, um
exercício de imaginação, viver várias vidas, encarnar vários per-
sonagens, adentrar em suas lógicas. Mover um olhar perspecti-
vado para experimentar-se em diferentes situações, voltar uma
atenção para si, estabelecer conversação consigo mesmo. Nesse
movimento exploratório, problematiza-se o enunciar sem pala-
vras que só é possível pela imagem. A linguagem imagética,

Formação, docência e arte: o desafio de ser semente 149


diferentemente da linguagem escrita, não descreve, mostra. Não
há necessidade, por exemplo, de dizer que tal personagem é soli-
tário, que cultiva manias. Um movimento de câmera pode des-
cortinar seu modo de vida. E nós, professores, o que enunciamos
sem palavras? O que diz de nós, de nossas vidas, crenças, valores o
nosso corpo, nossa vestimenta, nosso gestual? O que instituímos
com e nesse corpo docente?
Outro aspecto explorado com a linguagem cinematográfica
foi a ideia da autobiografia (a escritura da vida) como montagem.
Ali a dinâmica foi criar roteiros, dirigir e produzir modos de vida
usando programas de edição de imagens. Inventar novos persona-
gens a partir de personagens preexistentes, torná-los outros, atri-
buir outros sentidos para suas existências, escrever outros finais.
Em termos formativos, o que se extraiu desse artifício de recorte e
colagem imagéticos foi a noção de que a vida, ela também, não tem
roteiro a priori, que o roteiro é exterior à vida, que ele a sucede e
não a governa, como se costuma ajuizar. Vivemos, portanto, defi-
nitivamente, “sem coordenadas originárias” (FOUCAULT, 2008,
p. 29) e aí está justamente a potência da (re)criação.
Essas experimentações formativas nos fazem pensar que
arte e tecnologias midiáticas podem ser artefatos para decompor,
rachar as tramas sociais em que nos fabricamos e com as quais
fabricamos professores, estudantes, escola e docência. Com eles é
possível provocar pasmo, sismos para fissurar as placas tectônicas
que sustentam alguns modos de ver e viver formação e docência.
Quiçá com eles tornemos lícito deslizar para uma formação pen-
sada como cinese, devir, deriva, capaz de forjar novos continentes
para em seguida dissolver territórios, fazendo nascer outros tão
fugidios e moventes quanto os anteriores.

150 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Talvez seja esse nosso maior desafio, educar e educarmo-nos
para a impermanência, para a volatilidade do tempo presente,
para o hoje. Que tal se experimentarmos isso? Aí, quem sabe (?)
venhamos a apreciar a sensação de sermos mais semente do que
raiz.

Referências
BARROS, Manoel de. Poesias completas. São Paulo: LeYa, 2013.
CALVINO Ítalo. Todas as Cosmocômicas São Paulo: Cia. das Letras,
2007.
CHAVES, Sílvia. N.. Memória e auto-biografia: nos subterrâneos
da formação docente. In: SOUZA, Elizeu Clementino de. (Org.).
Autobiografias, histórias de vida e formação: ensino e pesquisa. 1. ed. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 161-176
COUTO, Mia E se Obama fosse africano? E outras interinvenções –
Ensaios – São Paulo: Companhia da Letra 2011.
FOUCAULT, Michel A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Graal,
2008.
GONÇALVES, Jadson F. G. Biografemática e formação: Fragmentos de
uma escrita de uma vida. Tese (Doutorado em Educação) – Instituto de
Educação, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.
NIETZSCHE Friedrich Ecce homo: Como se chega a ser o que se é.
Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/nietzsche_friedrich_
ecce_homo.pdf>.
PELBART, Peter. O Avesso do niilismo: Cartografias do esgotamento.
São Paulo, N- 1 Edições, 2013.

Formação, docência e arte: o desafio de ser semente 151


Por uma formação baseada
em artes ou três modos de
fuga dos modelos ideais

Renata Ferreira da Silva

Fuga I

N
o prefácio da quarta parte da Ética, Baruch de Spinoza
(2009) diz algumas palavras sobre perfeição e imperfeição,
bem e mal, que estão, a meu ver, conectadas com outras
palavras, modelo e ideal. Quando julgamos que algo está perfeito?
No caso de uma obra, por exemplo, afirmamos que está perfeita
quando ela atinge os objetivos traçados.

[...] se alguém observa uma obra (que suponha ainda está


inconclusa) e sabe que o objetivo do seu autor é o de edificar
uma casa, dirá que a casa é imperfeita e, contrariamente, dirá
que é perfeita se perceber que a obra atingiu o fim que seu
autor havia decidido atribuir-lhe (Pref. E 4)45.

45 Escolho citar os fragmentos de Spinoza à maneira dos filósofos que utilizam sempre E =
Ética seguido dos números 1,2,3 ou 4 para a parte da Ética a que se refere o fragmento. Na
sequência teremos P = Preposição seguida do número; E = Escólio ou A = Axioma ou D =
Definição e Pref. = Prefácio.
A questão é que formamos ideias universais e modelos das
coisas e, ao formá-los, começamos também a preferir uns em
detrimento dos outros. O que isso implica? Que começamos a
chamar de perfeito aquilo que está de acordo com a ideia univer-
sal que formamos das coisas do mesmo gênero e de imperfeito, o
que não atinge esse modelo concebido. Formamos ideias univer-
sais de tudo, das coisas artificiais e das coisas naturais. Essas ideias
são tomadas como modelos das coisas. Ocorrem-me vários exem-
plos. No discurso médico lidamos todo o tempo com a ideia uni-
versal de um ser humano perfeito. Quando fazemos um exame,
por exemplo, o médico verifica o quão fora do modelo ideal esta-
mos... Sempre estamos fora, pois ninguém atende à perfeição do
modelo de ser humano saudável.
De uma forma geral, percebo nossa dificuldade social ao
lidar com os que fogem dos modelos universais de ser humano
perfeito, vide a necessidade que temos em criminalizar ações pre-
conceituosas contra homossexuais e de buscar políticas de inclu-
são social para negros e índios. Temos que incluir e proteger todos
os sujeitos que “estão menos de acordo” com o que socialmente
concebemos como “modelo de ser humano”. E se nasce um bebê
com Síndrome de Down? A natureza fracassou? Errou? Deixou
nascer um ser humano imperfeito?
Essa compreensão revela que adquirimos mais por precon-
ceito do que por conhecimento um hábito de chamar as coisas
de perfeitas e imperfeitas. Isso se dá a partir da crença na com-
paração de indivíduos da mesma espécie ou do mesmo gênero
em função de um fim. Quando reduzimos todos os indivíduos a
um gênero, os comparamos entre si, logo uns “serão mais que os
outros” quanto mais próximos dos modelos de finalidade se apre-
sentarem para nós; o contrário também ocorre, quanto menos

154 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


afetarem nossa mente, quanto menos atenderem nossa ideia uni-
versal, mais serão limitados, imponentes e imperfeitos.
Baruch de Spinoza nos ajuda a entender, contudo, que a
natureza não age com um fim; age com a mesma necessidade
com que existe. Como sua existência, sua ação não tem princí-
pio nem fim. O que chamamos de finalidade é o desejo humano,
na medida em que é considerado a causa eficiente das coisas:
“Quanto à causa que chamam final, não se trata senão do próprio
apetite humano, enquanto considerado como princípio ou causa
primeira de alguma coisa” (Pref. E.4).
Bom e mau, neste sentido, não indicam nada de positivo ou
negativo nas coisas consideradas em si mesmas, mas, noções ou
modos de pensar porque comparamos as coisas entre si. Então,
uma só coisa pode ser ao mesmo tempo boa, má e indiferente.
Bem e mal, são modos de pensar, ideias que formamos a partir de
modelos inventados por comparação e noções de finalidade. Bem
– aquilo que nos aproxima cada vez mais do modelo que estabe-
lecemos; mal – aquilo que nos impede de alcançar esse modelo.
Quando penso num sujeito estável, vejo agora que ele tem
como princípios seu passado, toda a sorte de acontecidos que lhe
dão, de alguma forma, uma identidade original. Mas, achamos
que muitos dos nossos acontecidos, ou seja, muito do nosso pas-
sado, tudo o que supostamente nos identificou com a ideia de um
Eu, nos tornou imperfeitos. O que fazer para consertar? Criamos
uma forma ideal, jogamos a vida num modelo, num futuro. Parece
que cai num buraco.
Quanto mais imperfeito, mais se busca por um ideal. Por
que investir numa formação? Na maioria das vezes parece que
suplantamos um modelo ideal de ser professor, em algum tipo
de sujeito, em algum tipo de verdade. Ficamos no “é preciso” ser

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 155
mais competente, mais eficiente, mais poderoso, mais produ-
tivo. Idealizamos uma forma melhor de nós (e de outro). Não
nos movemos pela potência, mas pela crença na impotência. E se
somos imponentes, queremos organizar o mundo para que nos dê
alguma vantagem e força. Faço uma pausa aqui. Retomo. Relendo
o que escrevo vejo que estou imersa na ideia de formação e ela
nem sempre precisa ser “modelar”, mas pode se dar por “mode-
lação” se penso nela a partir da produção de nós mesmos, como
processo de diferenciação.
Quero me demorar um pouco mais por aqui. Para tanto
recorro a um estudo de Suarez (2006) a respeito da etimolo-
gia da palavra cultura em alemão – bildung, e sua relação com a
formação:

[...] A palavra alemã Bildung significa, genericamente, “cul-


tura” e pode ser considerado o duplo germânico da palavra
Kultur, de origem latina. Porém, Bildung remete a vários
outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu riquíssimo
campo semântico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imagina-
ção, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade
ou plasticidade, Vorbild, modelo, Nachbild, cópia, e Urbild,
arquétipo.Utilizamos Bildung para falar no grau de “forma-
ção” de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a
partir do horizonte da arte que se determina, no mais das
vezes,Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte
conotação pedagógica e designa a formação como processo.
Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no
romance de Goethe, são seus Lehrjahre, seus anos de apren-
dizado, onde ele aprende somente uma coisa, sem dúvida
decisiva: aprende a formar-se (sich bilden). (BERMAN.

156 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Bildung et Bildungsroman, p. 142 apud SUAREZ, 2006, p.
191).

A autora percebe nessa palavra significados hoje perdidos


e eu percebo no seu estudo uma variação de possibilidades de
tradução do mesmo. Suarez (2006, p. 191) resume “o dinamismo
próprio de Bildung: seu caráter de processo, prática, trabalho, via-
gem, romance, alteração, identificação, tradução”.
Como trabalho, Bildung é formação prática, formação de si
pela formação das coisas, ou seja, prática. Como viagem o con-
ceito remete a processo, não um processo qualquer, um processo
de alteridade na qual com o outro experimentamos o que não
somos para nos tornarmos o que somos, nesse processo deveras
espiralar nos formamos/ educamos com um romance. Como tra-
dução Bildung é o movimento de ir além de si mesmo, alterar
formas, modular-se, imaginar e imaginar-se.
O conceito cameleão já me faz pensar diferente a formação.
Sempre olhei para essa ideia como fadada a uma moralidade. Eu
estou me tornando mais afirmativa. É que sempre há outra forma
e mais outra para formação.
Penso em coisas simples: estou tentando traduzir meus
encontros, meus estudos em coisas pequenas. Penso naquele
momento no qual vou organizar um plano de curso. Penso na
força dos estudantes ou parto do fracasso deles? Parto do que não
sabem e deveriam saber? Noto que a vida deles (e a minha) foi
errada e estamos ali para consertar? Elaboro um plano grande que
dê conta de todos? Que chatice pensar que a vida é sempre errada.
E que a todos falta muita coisa. Falta ver teatro, conhecer teatro,
ler teatro, fazer teatro. Falta educação! Ora, o que estou dizendo.

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 157
Claro que faltam coisas, Renata! Ao desejo não falta nada e a
viagem da formação poderia partir daí.
Mas, de alguma forma, sob algum aspecto, todas as coisas
são iguais, pois qualquer coisa sempre poderá perseverar no exis-
tir, com a mesma força com que começa a existir. Então, se somos
forças, perseverar na existência é aumentar cada vez mais nossa
potência de agir, não a partir de um modelo externo, mas, a partir
da capacidade de ser afetado.
Isso quer dizer que na natureza as coisas se afirmam o tempo
todo, não seguem nenhum planejamento, religião nem modelo.
Às vezes, sinto uma incapacidade de atingir, de entender. Eu pro-
curo um modo de escrever que me leve mais depressa a outro
lugar. Olho pela janela para as plantas. Elas vão se expressando,
se afirmando e produzindo diferenças. São as relações que con-
tribuem para aumentar ou diminuir a potência de agir. Incrível
sensação me ocorre de estar viva e não saber do que sou capaz.
Incrível sensação de perceber que me tornei efetiva numa insti-
tuição que não crê na vida. Será que meus desejos e projetos não
estão investidos para fora de minha força? Mal comecei e já estou
cansada de atender demandas e criar demandas para os outros.
Não posso mais deixar de ir... E se eu e você fôssemos expressão
e invenção?

Fuga II
Para Almeida (2010, p. 137), é Nietzsche quem encara essa
tarefa da criação artística a sério e não almeja de forma alguma
uma investigação dos confins do ser, apenas uma invenção. O
erro e a aparência tomados como a base do conhecimento. O
mundo nasce do nosso olhar, dos infinitos graus e aparências que

158 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


projetamos. A formação transforma-se num transbordamento de
olhares. Talvez fosse interessante pensá-la como descoberta da
força de interpretação, do por que da tomada de certas palavras
como verdade ao invés de outras.
Sobrinho (2004, p. 10) afirma que Nietzsche entende como
objetividade a maior diversidade de perspectivas: “ver o mundo
com muitos olhos é assumir uma posição contraria à moral e a
lógica da metafisica, que alimenta a crença em que a verdade é
uma única perspectiva, a sua própria”. Como buscamos ardua-
mente verdades, modelos e ideais para todos. Espera. Olho ao
redor, a imagem que formamos das coisas seria o resultado de
uma disputa de diferentes perspectivas. Habitamos um mundo
ficcional. Isto exige valorizar as aparências nas suas diferentes
intensidades e perspectivas. De onde partem nossos valores?
Para Nietzsche (2003, p. 25), a tarefa educativa não con-
siste em suscitar determinadas representações na consciência dos
alunos, mas, sobretudo, fazer com que eles persigam a sua deci-
fração e compreendam o que se oculta nos fantasmas das suas
representações: “educar é ver estes fantasmas, ver de novo o que
já se está convencido”. Se eu me demorar mais aqui neste estudo
receio entrar num caos. Lidamos com o caos na Educação ou o
eliminamos por meio de explicações, ordenações e enquadramen-
tos? Partilho dos questionamentos de Nietzsche quanto à centra-
lidade da lógica. O conhecimento é uma determinação da vida ou
das verdades do intelecto? Por quais outros ritmos poderíamos
viver a formação? Ora, Renata, que modos são esses?
É Silva (2011, p. 110) quem me ajuda a compreender esses
modos. Aparentemente ativo e transformador o jeito racional e
otimista de ser está imbricado num pensamento evolucionista,
comprometido com a ideia de progresso numa perspectiva linear

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 159
na qual é o coletivo que determina nossas crenças. A responsabi-
lidade individual na ação pedagógica, por exemplo, parece estar
liberada. Tudo o que desvia, isto é, todo o mal, é logicamente uma
regra não cumprida. Isso não é moralismo? Olho para mim. Será
que busco um ideal nas salas de aula? Nunca viveremos o ideal.
Ele não existe. O ideal não tem as transformações que a vida
tem. Por vezes, sinto-me consumida por esse jeito racional de ser.
Quais os critérios que me fazem olhar deste modo?
Outro jeito, o trágico, compreende como dimensão humana
fundamental a contradição, nada de projetar de forma ressentida
um mundo melhor, mais humano e livre de tudo o que desvia
e negar a vida. O jeito trágico enfrenta a contradição da vida
afirmando-a como ela é. Ousar ver o terrível, o problemático.
Nietzsche viu na mitologia grega e nos filósofos pré-socráticos
uma grandeza: só se vive verdadeiramente no limite e no risco da
existência aparente sem o conforto do racionalismo. Essa com-
preensão da dimensão trágica desatina meu olhar. Como lidar
com a vida como ela é?
Nietzsche critica o humanismo compreendido como uma
visão liberal caracterizada por uma falsa valorização do trabalho e
a crença no progresso e nas ciências como sinônimo de um pro-
gresso da cultura humana. Ele propõe a natureza, o cultivo de
si, a força, a potência, o impulso. A natureza, entretanto, é com-
preendida como uma disputa do ponto de vista fisiológico. Uma
força que afirma a vida. Para ele a virtude é fisiológica, é estar no
máximo da potência de vida. A natureza quer crescer e se expan-
dir. As células estão em disputas pela defesa da vida. Ora, nesta
vida estão corpo e razão e não só razão. Na nossa tradição o corpo
é sempre imoral. Pode o sentido vir do corpo? Do mais baixo? O
jogo não é a própria dinâmica da vida?

160 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Primeiro o corpo e depois o corpo. Inspiro e expiro. O que
acontece senão essa troca de respiração? Corpo a corpo. Viver
exatamente a dimensão trágica da vida é saber aproveitar o que a
vida nos oferece. Sinto-me instigada a farejar o que está pulsando
além do regrado e determinado. Expandir potências. Deixar cres-
cer. Viver sem garantias. Partir da afirmação da morte, lidar a
cada segundo de sua vida com o conflito que é a escolha de cada
situação sem atribuir isso a um Deus, a uma tradição, a um dis-
curso científico e inventar a si mesmo. Sobrinho (2004, p. 30)
insiste que quando Nietzsche afirma o devir ele insiste no fluxo,
na diferença, numa força, numa vontade e na condicionalidade e
não na metafisica da identidade, incondicionalidade e fixação do
ser. Que vontade é essa?
Para Almeida (2010, p. 138-139), a vontade a que se refere
a um impulso da natureza que faz com que toda a matéria se con-
dense. Impulso que jamais repousa, está sempre se atualizando.
Nós humanos também a manifestamos porque somos parte da
natureza. Essa vontade se revela em nós na nossa capacidade de
conhecermos a nós mesmos. É também como atriz e não só como
professora que sensivelmente percebo essa vontade no corpo. Vou
entrar em cena. Antes o medo da morte disfarçado de não saber
o que fazer, de ser ridícula. A respiração ofegante, o suor, uma
pressão, um desespero de dedos que abrem e fecham, a completa
agonia expressa na face. O caos.
Na cena o corpo começa a revelar seus desejos. Acontece.
Podemos ter falas planejadas, roteiros. Mas, quem entra em cena
sabe que ali há um fluxo e outra dimensão temporal. Cria-se
uma ordenação provisória. A ficção. A vibração de meu corpo
e minha voz chegando ao outro, e vice-versa. O corpo faz uma
política poética. Não representa nada. Cria mundos. Isso de sentir

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 161
o desejo e seguir o fluxo do impulso que vem do corpo. Isso de
entrar em contato com o outro e afetá-lo pelo trasbordamento.
Isso de ocupar o espaço em cena e crescer. Precisamos cultivar a
vontade, a criação. Como viver com essa força? Como transfor-
mar isso em força estética? Talvez a retomada da criação como
força propulsora na formação me seduza. Torno-me novamente
começo.

Fuga III
Proponho três pausas para inteligir46 o conceito de devir a
partir do encontro com textos de Friedrich Nietzsche. O próprio
conceito não conhece parada. Essa transformação me interessa.
Num primeiro momento coloco em suspenso o conceito de devir
ligado à metafísica, na relação com o uno primordial com base no
seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, publicado em 1872.
Num segundo momento escolho Zaratustra, escrito e publicado
progressivamente entre 1883 e 1885 e Crepúsculo dos ídolos, publi-
cado em 1888 entendendo o devir junto a uma expressão ética da
inocência. Por último, destaco o devir como cultivo de si – von-
tade de potência, ou seja, como princípio metafisico da realidade.
Nietzsche insiste que a história do conhecimento humano
é a história da negação da vida. Corremos atrás de uma imagem

46 Foi nos encontros com o amigo filósofo Leon Farhi Neto que aprendi a também inteligir
o mundo. Mas do que compreendê-lo, entendê-lo.... Insiste ele: “Inteligir é palavra que
não figura nos dicionários de português. Presente no espanhol. Presente no latim. Temos
inteligência, inteligente, inteligível. Por que não inteligir?”. É no texto Grande Sertão: Veredas
de Guimarães Rosa que a palavra é retomada, descubro eu: ,“Mas me lembro que no de-
samparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele até de si
guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva (ROSA, 1994,
p. 536). Disponível em: <http://leonfarhineto.blogspot.com.br/2010/01/inteligir-palavra-
-de-jagunco.html>.

162 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


que não conseguimos ser. A nossa história segue um leito de um
rio cavado pela interpretação socrática na qual o pensamento é
superior ao corpo e que o mundo não é somente o que vivemos,
existe outro mundo determinado pela ideia e pelo pensamento
mais que pelo corpo. Foi esse pensamento que matou o devir, a
pluralidade do pensamento.
Quando Nietzsche revisita a forma de interpretar o mundo
da mitologia dos gregos pré-socráticos e me faz compreender um
pensamento que parte da arte e não da verdade. Nesse contexto,
a relação do homem com o mundo parece ser de submissão, há
uma superioridade da vida. Pertencer à vida é diferente de ter
uma vida, isso parece dar espaço ao mistério. Entendo que posso
criar uma interpretação do mundo, mas não “conhecer o mundo”
no sentido de controlá-lo. Eu não sei o que o mundo é, mas, isso,
ao invés de me impedir “sabê-lo” me impulsiona a criar formas de
interpretação, ou seja, sentidos plurais e provisórios.
É por dois impulsos artísticos da natureza que nos aproxi-
mamos dos gregos, um impulso apolíneo e um impulso dionisí-
aco. O convite para penetrar nessas forças passa pela experiência
de dois universos artísticos, o sonho e a embriaguez. Dois poderes
que surgem da própria natureza. Estavam esses impulsos presen-
tes para os gregos? Suponhamos que sim. O impulso dionisíaco
é inebriado pela música e engendra a embriaguez; o segundo é
inebriado pelos sonhos e engendra a bela forma.
Temos a necessidade da embriaguez? Perder-se de si e sen-
tir-se em unidade. Aqui dá vontade de cantar ditirambos, beber a
morte. Dionísio é a própria “realidade inebriante que não leva em
conta o individuo, mas procura inclusive destruí-lo e libertá-lo
por meio de um sentimento místico de unidade” (NIETZSCHE,
2007, p. 29). Fico eufórica de pensar que na transfiguração

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 163
acontece o rompimento de si-próprio, a experiência de tornar-se
fenômeno artístico. Bebo. Tudo fica menos fixo. Já não consigo
perceber limites, fronteiras. Está tudo turvo. Não ando, só consigo
perambular. Não acho o caminho para casa. “Assim se separam
um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da
realidade cotidiana e o da dionisíaca” (NIETZSCHE, 2007, p.
52). Perco-me no mistério caótico, vital e alegre. Canto e danço.
Estou no culto ao Deus do vinho, estou em festa e experimento
de forma dramática a existência. Sou impulso e sentido. Exacerbo
as sensações do corpo. Como, cheiro, bebo, amo e temo em dema-
sia. Aniquilo meu ser. Todas as coisas se fundem numa unidade
cósmica horrorosa e disforme. Não há mais eu, não há mais
você. Começo a gargalhar. “Mas tão logo a realidade cotidiana
torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal náusea”
(NIETZSCHE, 2007, p. 52-53) que começo a ter pensamentos
enojados sobre esse horror, a sentir o absurdo da existência.
Arte. Só ela tem o poder de transformar esse horror em
poesia.
Temos a necessidade da experiência onírica? Durmo. Um
novo mundo nasce aos olhos. Sonho e recordo-me dos meus
sonhos pela manhã. Há sonhos que quero seguir sonhando e
embora saiba ao despertar que “foi um sonho” mantenho os olhos
fechados para “continuar a sonhá-los”, pois há sonhos belos, sere-
nos, perfeitos que dão forma e ordem ao caos da vida. Não sei
se essa experiência testemunha o que afirma Nietzsche: “o nosso
ser mais íntimo, o fundo comum para todos nós, colhe no sonho
uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade”
(NIETZSCHE, 2007, p. 24). Talvez como um véu sereno e belo
Apolo encubra a natureza, pois precisamos de beleza, alento e
aparência para justificar nossa existência.

164 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


[...] eis o estado apolínio de sonho, no qual o mundo do dia
fica velado, e um novo mundo, mais claro, mais compreen-
sível, mais comovedor do que o outro e, no entanto, mais
ensombrecido, em incessante mudança, nasce de novo aos
nossos olhos (NIETZSCHE, 2007, p. 59).

Apolo me conduz à tranquilidade. De forma comedida traça


linhas fronteiriças mostrando-me a sagrada lei das formas. Mas,
como podem conviver dois impulsos aparentemente contrários?
Duas forças discordantes se incitam mutuamente e engendram
novas produções fabricando o “Uno-Primordial”. Dionísio coa-
bita o mundo com Apolo, pois é na bela-forma de Apolo que
Dionísio encontra sua possibilidade de expressão. Ao mesmo
tempo, Apolo trama formas da potência criadora de Dionísio. Eis
uma primeira abordagem para o devir, uma “harmonia universal”
que funde os impulsos um ao outro, mas os torna um só, em mis-
teriosa fusão e tensão de potência e forma.

[...] ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a


lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-
-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar
nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a pala-
vra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte
(NIETZSCHE, 2007, p.24).

Esses impulsos não estão em nenhum outro plano fora do


que se manifesta na vida, o pensamento e vida são uma coisa só.
Apolo faz e Dionísio desfaz e...
Num segundo devir torna-se inocência. Três metamorfo-
ses são mencionadas por Zaratustra ajudam a compreender: o

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 165
espirito torna-se camelo, o camelo torna-se leão e por fim o leão
torna-se criança.
O camelo é aquele que carrega os mesmos valores, pois os
aceita e reproduz de forma reverente. Existe para transportar os
valores instituídos. Eu carrego! O leão é quem denuncia. Nega
os valores carregados pelo camelo e constitui sua existência na
denuncia daquilo que está errado, daquilo que não quer, e, dessa
forma, cria a liberdade para novas criações. Rosna e grita para
todos os lados. Eu quero! Por último a criança, um novo começo.
Um sagrado dizer – sim que conquista seu mundo, cria novos
valores. Eu esqueço e crio!

[...] inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo,


um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro movi-
mento, um sagrado dizer – sim. Sim, para o jogo da criação,
meus irmãos, é preciso um sagrado dizer - sim: o espírito
quer agora sua vontade, o perdido para o mundo conquista
seu mundo (NIETZSCHE, 2011, p. 28-29).

Agora estou diante da criança. Chega aqui um garotinho.


Nas mãos traz dois baldinhos. Ele senta-se na areia e derrama
tudo o que tem nos baldes: blocos e sólidos geométricos. De
repente começa montar as peças. Identifico uma espécie de torre.
Acompanho seus movimentos. Uma a uma. Ele está quase lá.
Penso: Ele quer construir uma torre com todos os blocos! Ele
tem um propósito! O garotinho está quase lá. Faltam poucos
blocos. De repente ele simplesmente destrói tudo. Deixa todo o
meu propósito espalhado em pedaços no chão e corre para longe,
longe de qualquer arrependimento. O garotinho não tem culpa
de nada. Ele monta e desmonta a vida jogando com a criação. Ele

166 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


não conhece nem o bem, nem o mal. Ele é amoral. Criar mundos
supõe essa imensa capacidade de se lançar por inteiro no jogo do
recriar-se indefinidamente.
Qual a finalidade? Ora, afirma Nietzsche, “é absurdo
querer rolar o seu ser na direção de uma finalidade qualquer”
(NIETZSCHE, 2009, p. 58). Mas parece que cada um de nós
gosta demais de um propósito para gastar a vida como uma tran-
sição e um acaso. Contudo, a inocência do devir provoca uma
perspectiva que encara a totalidade dos fenômenos sem causa
ou finalidade, sem justiça e sem moral. Ora, afirma Nietzsche,
“ninguém é responsável por existir, por ser constituído desta ou
daquela forma, por estar nessas circunstâncias, nesse ambiente”
(Idem).
Percebo que ele critica a crença de que fomos criados por
um Deus, à sua imagem e semelhança e temos que, no decorrer
de nossas vidas, buscar a salvação. Será que nascemos pecado-
res, falhos e precisamos ser salvos e melhorados? Que coisa chata
ter que ser melhor... Mais chato ainda é melhorar os outros. É
preciso negar esse Deus para libertar o mundo, pois um Deus
carrega a ideia de uma causa primeira, causa essa que cria um
mundo que se constitui numa unidade. “Mas não há nada fora do
todo” (NIETZSCHE, 2011, p. 59) que possa criar um mundo,
ou mesmo criar os seres humanos como consequência de uma
intenção, vontade ou finalidade. Ora, o mundo não se condiciona
pela vontade de um Deus, nem mesmo por um projeto evolucio-
nista de progresso, ou cientifico de esclarecimento pela verdade
ou ainda por esperança na justiça total. Quem acredita nessas
coisas não vai me entender. Mas, tomar a existência sem todos
esses sentidos, sem finalidade, sem moralismo pode ser a inven-
ção de outras belezas. Quem nunca buscou um modelo? Ora, há

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 167
uma tendência de encontrarmos um modelo, uma clara separação
entre o que funciona ou não. Mas esses modelos vão trancando
nossa própria natureza sempre que vamos nos ajustando a maio-
ria, aos modelos, aos fins. Porém, “fomos nós que inventamos
a noção de “finalidade”: a finalidade está ausente da realidade”
(NIETZSCHE, 2011, p. 58)! Então o mundo só existe na condi-
ção de ser experimentado de infinitas maneiras.
Chega aqui uma menina segurando um copo de plástico
com uma das mãos. Ela fica de pé, ao meu lado, em frente à minha
mesa de trabalho. Coloca a borda do copo virada para a mesa. Bate
a mão em cima do copo e amassa. Pega o copo, desamassa. Coloca
o copo sobre a mesa dessa vez como a borda para cima. Então...
Bate a mão em cima do copo e amassa. Pega o copo, desamassa.
Coloca outra vez a borda meio quebrada do copo virada para a
mesa e aí bate a mão em cima do copo e amassa. Pega o copo e
desamassa. Coloca pela quarta vez o copo sobre a mesa com a
borda para cima. Então... vai embora. Esquece e recomeça outro
jogo, em outro lugar.
A criança esquece e começa de novo e manifesta uma curio-
sidade desprovida de interesse. É preciso esquecer para fazer algo
novo, é preciso esquecer para não ser esse ser humano previsível.
O que é que eu faço com a moral? O que é que eu faço com a
culpa? O que eu faço com o castigo?
Devir vai se transformando na expressão de uma ética que
enfrenta a moral com a ideia de cultivo de si, de tornar-se o que se
é percebendo uma natureza antes de toda essa “má interpretação”.
Como? Não há nada superior à vida. A partir dessa premissa
o convite é por afirmamos a vida de uma forma integral, inter-
pretando o mundo com expressão e pensamento. Afirmar a vida
passa por assumir que temos caos dentro de nós. E isso não é um

168 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


problema. Não é isso que temos que superar. O caos é a condi-
ção para uma existência cheia de potência, para uma maneira de
existir que se entrega à criação incessante com vistas a transpor
obstáculos, transvalorar valores e extravasar forças.
Um saber assim é artístico, confronta a verdade e afirma a
vida pela aparência. Se tudo é interpretação, nunca agarraremos a
coisa em si e nunca estremos sempre de pé, firmes, certos, segu-
ros e convictos. Nunca estaremos. Toda vez que o conhecimento
encontra parada, se fixa, estabiliza e generaliza matando, a vida
exclui qualquer tipo de devir. Cultivar a si convida menos ao pre-
servar-se (adequar-se) do que expandir-se (vir a ser). Então, se é
para viver em equilíbrio estático, melhor dançar a formação.

Referências
ALMEIDA, Cidio Lopes. A educação estética de Nietzsche. Revista
Omnia Lumina, São Paulo v.1, n. 2, p.123-155 Jul./Dez. 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução, notas e
posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com
o martelo. Trad. Tradução, apresentação e notas Renato Zwick, Porto
Alegre: L&PM, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Tradução,
apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e
pessimismo. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
SILVA, Sérgio Pereira da. Pedagogia do ressentimento: o otimismo nas
concepções e nas práticas de ensino. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 92, n.
230, p. 107-125, jan./abr. 2011.

Por uma formação baseada em artes ou três modos de fuga dos modelos ideais 169
SOBRINHO, Noéli Correia de Melo. Friedrich Nietzsche: perspectivismo
e superação metafísica Comum, Rio de Janeiro, v. 9 n. 22 p. 5-38- Jan./
Jun., 2004.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. 3.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
SUAREZ, Rosana. Nota sobre o conceito de bildung (formação cultural).
KRITERION, Belo Horizonte, n. 112, Dez./2005, p. 191-198.

170 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Narrart: autobiografia de formação

Joana D’arc Chaves de Campos


Sílvia Nogueira Chaves

E
ste trabalho apresenta uma produção desenvolvida no âmbito
do projeto de Iniciação Científica “A linguagem artística e
cinematográfica na pesquisa autobiográfica de formação”,
que é parte integrante do Projeto “Autobiografia, arte e cinema
na formação docente”. Essa produção consiste em um monólogo
encenado e montado, no qual foram reunidos textos e objetos que
estavam guardados desde a pré-adolescência e adolescência, car-
tas de amigos, familiares e alguns escritos que foram produzidos
em diferentes momentos da vida. Narrativas que contam de certa
forma quem se foi um dia aos olhos do outro e os pensamentos
de uma época marcada por conflitos familiares, conflitos ideo-
lógicos, entremeando com vivências da fase adulta “Joana filha,
mãe, irmã, universitária, amiga e se desligando de algumas dou-
trinas religiosas”. Ao mesclar as etapas da vida monta e desmonta
alguém que nunca se completa e (re)vive os mesmos conflitos em
diferentes fases, porém a forma de relacionar-se com o mundo
não é a mesma. A partir dela se pode experimentar e problema-
tizar outros modos de subjetivação, pensando-se não a partir de
lugares definidos por outros, mas de um olhar inventado a partir
do momento presente, o que faz pensar que somos múltiplos, não
só em termos de vivências, mas também como possibilidades de
nos dizermos. Em termos formativos e investigativos, esse tipo

Narrart: autobiografia de formação 171


de experiência, que se põe para além dos processos de reconhe-
cimentos identitários, abre espaço para formas criativas e novas
de se pensar a prática pedagógica como campo de experimenta-
ção e não de aplicação de regras e condutas universais. Para uma
vida singela, um cenário descomplicado, pois tudo é inventado
em uma sala de aula com equipamento de som que reproduziu
recortes de músicas enquanto (com)posições de um sujeito foram
sendo encenadas.

(Com)Posições de um Sujeito
É possível se desligar por alguns momentos das posições
de sujeitos que ocupamos? “O educador, em sua individuali-
dade, sempre está situado em uma posição de sujeito. Entretanto,
não despreza a inter-relação com a posição de outros sujeitos”
(CARVALHO, 2011, p. 15), também não se desliga da multipli-
cidade que existe nele próprio, cada sujeito carrega na bagagem
o modo que foi subjetivado, objetivado, acontecimentos, desloca-
mentos e descontinuidades de sua trajetória.
“Tenho aqui uma porção de coisas lindas nessa coleção”47 por
meio de músicas, objetos, textos, brinquedos, conta-se e canta-se
uma história de vida de uma futura professora dos anos iniciais.
Essa experiência possibilita pensar que “o processo de subjetiva-
ção é a produção de novas possibilidades de existência e de certos
estilos de vida, é a produção da existência como “arte” (GARCIA,
2002).
Na (auto)biografia deixa-se aparecer posições de sujeito que
se ocupa no cotidiano, criando um modo de (re)contar coisas que
ficaram no passado, que naquele instante se torna presente e o
47 Música: “Parte do seu mundo”. Filme: Pequena Sereia, Disney.

172 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


futuro como a possibilidade de (re)invenção de um sujeito que
não se completa. As fases que são contadas não são complemen-
tos uma das outras, mas tempo/espaço que ora se superpõem, se
sucedem, se negam, mas, sobretudo, montam uma vida criação,
contada e cantada de diferentes modos, composta de itinerários
cambiantes que não têm o propósito de inventariar o vivido, mas
de recriá-lo permanente e renovadamente.

O que te canta e o que te conta?


O trabalho (auto)biográfico realizado fez parte de uma ativi-
dade no curso de licenciatura Integrada em Ciências Matemáticas
e Linguagens (LIECML). Ele foi desencadeado pela provocativa
indagação “O que te canta e o que te conta?”, feita no âmbito
das atividades desenvolvida no Eixo “Abordagens Curriculares”48.
Como nas demais atividades propostas no eixo não existia um
roteiro a seguir, um “como se faz” ou “como deve fazer”, a inten-
ção era criar um modo próprio de se contar e cantar e para isso
se poderia lançar mão de qualquer recurso narrativo, imagético,
performático, escrito. O objetivo era sair dos relatos viciados de
uma suposta vida de professor, na qual tudo justifica e conduz à
escolha profissional.
Atividades como essa, uma espécie de “dever de casa”,
permite os licenciados deixarem aflorar a criatividade. Na his-
tória aqui relatada, optou-se por construir mixagens de fases,
lugares que dissessem e fizessem aparecer uma subjetividade
em fluxo, aberta, que permitisse “estabelecer as séries diversas,

48 A LIECML é uma licenciatura voltada para a formação de professores para atuar nos anos
iniciais de escolarização. Seu currículo não é disciplinar. Ele está organizado a partir de eixos
de ensino. Cada Eixo está distribuído em temas que são distribuídos ao longo dos semestres
do curso.

Narrart: autobiografia de formação 173


entrecruzadas, divergentes muitas vezes, mas não autônomas, que
permitem circunscrever o ‘lugar’ do acontecimento, as margens de
sua contingência, as condições de suas aparições” (FOUCAULT,
1970, p. 53).
De tantas músicas que poderiam embalar aquela (auto)
biografia, foram escolhidos sete trechos de músicas para cantar a
história, segue no quadro sequência, nome e autores das músicas:
Nome da música Cantores
Parte do seu mundo Filme a Pequena Sereia
Sina Djavan
Mama África Chico César
Sutilmente Skank
Se essa rua fosse minha Cantiga Popular
Sinceramente Cachorro Grande
Amanhã não se sabe LS Jack
Metamorfose Raul Seixas

Jo-ana(s)

De qualquer maneira, tanto os diários pessoais como as


cartas, não se fecham em si mesmos, elas são um convite a
pensar sobre si, mas também em relação aos outros. As duas
formas de escrita são feitas de fragmentos do que se vê, do
que se ouve, do que se lê – são escritas feitas de outras escri-
tas. Escritas que produzem outras escritas e outras formas de
pensamento (LOPONTE, 2002).

Ao encontrar a bailarina guardada, Joana calça a sapatilha de


ponta que dançou e caminhou suas histórias de infância e ao (re)
ler as cartas de mãe, amigos, avô, primos, irmão e irmã, tem um
encontro com as Jo-ana(s), (des)conheçe-se a cada leitura, dança

174 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


o ballet ao som de “Parte de seu mundo” com a Pequena Sereia,
vê-se tão querida e amada aos olhos de todos que um dia escre-
veram para ela, um alguém tão importante aos olhos da família,
nas frases marcadas pelo aconchego do lar “Joana, você é muito
especial para todos nós” (mamãe).
Entre os amigos há também paixões de escola, os proibi-
dos que nem chegam a ser materializadas, todos a amariam em
um tempo chamado “sempre” que se acabou quando terminou o
ensino fundamental.
Esse (Des)encontro também foi marcado pela formação reli-
giosa, de uma pré-adolescente que buscava a santidade, percebe
nas linhas desses relacionamentos a paciência de Jó e a ternura da
Ana, personagens bíblicos, que juntos formam Joana aquela que
se dedicou a Jesus, cujo o nome deriva de João o apostolo e segui-
dor do filho de Deus. Entretanto, Joana se desliga de tais doutri-
nas, segue uma outra “ordem do discurso”, “própria a um período
particular” (REVEL, 2002, p. 37), marcada por acontecimentos
que não são revelados no monólogo.

Licença para ser universitária


Marcas indeléveis são deixadas em mulheres quando se tor-
nam mães. Seu corpo grávido andou pelo campus da universidade
em seguida seu corpo mãe, “meu corpo é o lugar sem recurso ao
qual estou condenado” (FOUCAULT, 1966, p. 8), sua sentença
a partir disso é ser mãe, nesse mundo “que ser mãe é...”, em que
se convencionou a considerar o amor maternal como algo inato,
certo e jamais falho (BADINTER, 1985). Então, Joana pede
licença para ser também universitária, vivendo todas as situações
que norteiam as duas posições de sujeito, acertar e errar em cada

Narrart: autobiografia de formação 175


uma delas. É mãe-universitária e universitária-mãe, faz uma sim-
ples demarcação para diferenciá-las.
No ambiente acadêmico, é a universitária-mãe tendo deveres
resolvidos em sala de aula, os que vão para casa, prazo a ser cum-
prido, isso parece ser igual aos demais licenciandos? Sim é igual,
as tarefas não se diferenciam. Entretanto, quando se ultrapassa os
muros da universidade há outro universo da mãe-universitária,
aquela que lida com as demandas do filho, carinho, atenção, dar
de comer..., o que muda nas duas nomenclaturas além da ordem
das palavras é o modo de conduzir as situações que serão vividas,
a maneira que conduz a realização das coisas que lhe são determi-
nadas como obrigações.
No monólogo apresenta-se a mãe-universitária, que está
fazendo ou cumprindo as pendências que surgem no lar e pen-
sando em “como realizará a tarefa de escrever uma (auto)bio-
grafia”. Um telefonema quebra esse pensamento, são elas as
“Lig-ações: cobranças”. Quando as atividades são realizadas em
equipe, as cobranças geralmente ocorrem por meio de ligações,
pedindo uma ação quase que imediata para solucionar problemas
de atividades de classe.
“Mesmo que o mundo acabe, enfim dentro de tudo que cabe
em ti”49, dentre tantas coisas que cabem em nós e nos pensamen-
tos que conduzem as ações de uma mãe-universitária, univer-
sitária-mãe ou de qualquer outro graduando, há um espaçinho
para ouvir o outro, receber as demandas que surgem, acalmar os
amigos, dizer que tudo vai dar certo, que a atividade vai ser rea-
lizada, ser otimista, afinal, ninguém faz uma ligação para aquele
que não vai nem atender. Há também o fato de não querer deixar
para depois, pois todas as atividades acadêmicas são urgentes e
49 Música: Sutilmente, banda: Skank.

176 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


os prazos para as entregas de trabalho não esperam, parecem se
esgotar rapidamente, logo, decide atender ao telefone e recebe
mais uma tarefa na lista da universitária-mãe.

Ninar bebê, se o pensamento deixar


Depois de desligar o telefone, é hora de a mãe-universitá-
ria colocar seu filho para dormir, agora com a nova tarefa a ser
cumprida: pensar um título para outro trabalho, “o do grafite”.
O trabalho envolvia grafite e arte nas escolas, logo, o título para
a pesquisa precisaria estar de acordo com essa temática. A equipe
queria uma frase criativa, algo que provocasse em quem lesse
envolvimento direto com o ambiente escolar.
A prioridade de Joana ali era que o filho adormecesse para
poder pensar de modo mais calmo em todas as tarefas. “Será que
consigo?”, indaga-se. “Eu ainda estou em transe nas (pre)ocupa-
ções que tenho”, pensa. Então começa a cantar para o bebê dor-
mir logo: “Se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar, com
pedrinhas de brilhante para o meu amor passar”50.
O mesmo trecho é cantado a primeira vez, na segunda vez
em que repetia ao mesmo tempo pensava em mudar as palavras
da música e colocar aquilo que pulsavam em seus pensamentos
“grafite”, “escola”, “aluno”, “grafitar”, “spray”, “colorido”, então
retira algumas palavras da cantiga que ninava o filho, e reúne
todas as que estava pensando e canta o título de seu trabalho: “Se
essa escola, se essa escola, fosse minha, eu mandava, eu mandava
grafitar. Com um spray, com o spray bem colorido. Para o meu,
Para o meu aluno passar”. A cantiga que adormecia o filho agora

50 Música: Se essa rua fosse minha, Cantiga popular

Narrart: autobiografia de formação 177


acordava adultos que pretendem propor diálogos entre a arte do
grafite e a escola.

(Vi)vendo a (auto)biografia
Sem dúvidas, trabalhos (auto)biográficos não acabam, ainda
continuam sonhos, projetos, desejos, a universidade, a mãe falível,
porém agora sabe que pode (re)montar, colar o meio no aquilo
que poderia ser chamado fim, reunir uma coleção de dedicações
de carinhos, entulhadas em algum canto da casa e embalar na
música que quiser e fazer de vida um registro feliz.
Aqui, em uma escrita feita a partir daquilo que a cantava e
contavam, nasce uma nova escritura de si, pensamentos se movem
em um tempo que não volta. Pensar a vida em um espaço para
formação de professores dos anos iniciais na perspectiva de (re)
invenção de ideias é experimentar outros modos de subjetivação,
pensar não a partir de lugares definidos por outros, mas de um
olhar inventado a partir do momento presente, que faz pensar que
somos múltiplos, não só em termos de vivências, mas também
como possibilidades de nos dizermos. Em termos formativos,
esse tipo de experiência, que se põe para além dos processos de
reconhecimentos identitários, abre espaço para formas criativas e
novas de se pensar a prática pedagógica como campo de experi-
mentação e não de aplicação de regras e condutas universais.

Referências
BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
CARVALHO, Alexandre Filordi. Função-educador: em busca de uma
noção intercessora a favor de experiências de subjetividades ativas. In:

178 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


RESENDE, H. (Org.). Michel Foucault: Transversais da educação,
filosofia e história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 9-22.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Loyola. 2013.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, As heterotopias. São Paulo: n-l
Edições, 2013.
GARCIA, Maria Manuela Alves. Pedagogias críticas da subjetivação:
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LOPONTE, Luciana Gruppelli. Escrita de si e docência em arte: o
privado e o público na formação de professoras. Disponível em: <http://
www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2002/educacao_e_
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fiocruz.br/media/livrodigital%20%28pdf%29%20%28rev%257-301.
pdf>. Acesso em: março 2016.
REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos:
Claraluz, 2005.

Narrart: autobiografia de formação 179


Do movimento fugitivo ao criador –
a metodologia elemental aplicada
à minha pesquisa poética

Breno Filo Creão de Sousa Garcia

E
sta comunicação consiste em um relato de experiência
vivida na disciplina “Movimento Criador do Ato Teórico”,
do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade
Federal do Pará, ministrada pelas professoras e doutoras Ivone
Xavier e Wladilene Lima. Suas dinâmicas de trabalho consis-
tem em circundar métodos e formas de teorizar a pesquisa em
arte que fogem à visão de mundo mecanicista-cartesiana e se
encontram com perspectivas epistemológicas sistêmicas, reco-
nhecendo a arte como campo multidisciplinar do conhecimento.
Em suas práxis didáticas, sugerem a ressignificação das experi-
ências cotidianas com a construção de subjetividade e de formas
de vida utópicas, em consonância teórica com Gilles Deleuze,
Félix Guattari e Jesus Martín-Barbero. Além disso, é enfatizada
a necessidade de diálogo com o modus operandi e a obra de artis-
tas, que desterritorializam a pesquisa, agenciando tanto a poesia
pensante quanto os pensamentos poéticos, assumindo-os como
potenciais referenciais teóricos de primeira grandeza na pesquisa
em arte. O distanciamento da perspectiva cartesiana possibilitou
a abertura de caminhos na pesquisa em poética nesse processo,
que iniciam com experiências afetivas contundentes de minha
vida, e ganham intensidades e matizes com o contato com a arte
e se transformam a cada vez que produzo novas reflexões e obras.
Nesse processo coletivo de ressignificação, fui impelido ao deva-
neio criativo a partir da construção de imagens reveladoras das
forças dos objetos/relações de pesquisa; da busca dos locais aonde
residem as energias de atração para o ato de teorizar; e da rela-
ção das palavras-chave das pesquisas com os cinco elementos da
natureza (éter, terra, fogo, água e ar), num experimento que atra-
vessa o sujeito criador da pesquisa, junto a pensadores poéticos
como Carl Jung (com a série conceitual dos arquétipos), e Gaston
Bachelard com a sua poética da imaginação. Todo esse plano de
composição vivido no território existencial dessa atividade curri-
cular impeliu a turma a desenvolver coletivamente um método de
proposição de ideias – mais que isso, de invenção de ideias – para
a produção teórica: a Metodologia Elemental. Durante minha par-
ticipação nessa dinâmica, iniciei um aprofundamento no pensa-
mento do fora em Deleuze, e, dessa forma, me percebo imerso em
devires, ao dar espaço às minhas multiplicidades; linhas de fuga, ao
lidar com as forças coercitivas que encontro no outro e em mim;
dobras, para desvelar a intensidade do mergulho em minhas pro-
fundezas. Assim, delineio um método cartográfico para a tessitura
de experiências e seus atos de escrita, partindo de pressupostos
ético-estético-políticos. Reconheço que, ao entrar em contato
com tais provocações e personagens conceituais, me encontro em
um processo poético composto por uma rede de multiplicidades
afetivas que me atravessam, alimentam e auxiliam na revelação de
zonas de aproximação de cunho epistemológico, e se insinua nas
trajetórias que realizo – com amigos e artistas – entre o centro e
as praias da Ilha de Cotijuba, na região metropolitana de Belém

182 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


do Pará. Tal movimento, em integração à rede que compõe a vida,
acompanha um ser em renovação, inventor de si pelas vias da arte.

Belém, 4 de abril de 2016 (Segunda-feira)


Olá,
Decidi escrever meu hoje, meu agora. Em minha mente,
vazios se instalam. Eis que consigo finalizar meu primeiro
caderno, agora prestes a se tornar um instrumento de consulta.
Um pedaço de minha memória descolado de mim. Acessível e
voluntarioso.
Escrevo, pois tenho pouco tempo. Que ironia. Deitado na
cama, encontra-se à minha frente, pregado na parede, uma ima-
gem produzida por mim, com base em meu primeiro estudo do
tarot:

Arcano 5 – O Hierofante.

Figura 1

Do movimento fugitivo ao criador – a metodologia elemental aplicada à minha pesquisa poética 183
Imediatamente, me recordo da Mostra Internacional
“FOCAR”, o evento a ocorrer esta semana. Desse modo, recordo
a respeito do que queria escrever. Minha Pesquisa.
Vida contada em 10 minutos.
Existência essa que atravessou experiências em disciplinas
do Mestrado em Artes, bem como seus corredores, bares, oficinas,
vivências, convivências, o divã... O teatro. E se reencontrou a cada
afeto trocado, multiplicado e ressignificado no trajeto “Casa-
PPGARTES”. Exatamente como eu me reencontrava na ado-
lescência (melhor dizendo, no final dela), no seguinte pêndulo:
“casa-ilha”.
Mas qual a razão de associar esses dois trajetos?
Pois a complexidade que as movimentações de minha casa-
-corpo para a Ilha de Cotijuba, com meus amores e amigos, são
tantas quantas as epistemologias que existem!
O peso de minhas escolhas tornava a minha vida insuportá-
vel, e meu corpo intuía o movimento de fuga, para a margem, para
a praia. Mais precisamente, a uma distância aonde só compreende
quem busca o paradeiro das flechas que atira. Muito longe. Ao
limite do corpo em travessia.
Intuições acertadas, nessa ilha eu me permitia viver de forma
poética, tecendo linhas de força em integração aquele ambiente,
admirando as criaturas ali viventes e me admirando. Substituindo
meus medos urbanos pelos medos obscuros.
Ou seria desvelando a tenebrosidade das formas de meus
sonhos?
Com a ajuda de meus amigos, a cada vez que retornei para
aquele lugar, pude lavar um pouco dos traumas que nublavam
minhas ideias, muitos deles relacionados à minha diferente

184 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


existência. Extraterrena sexualidade amante de arte, de festa, de
paisagens e formas de vida humana e inumana.
Prazeres e agonias barrocas. Chiaroescuro onírico e afetivo
convertidos numa escrita da experiência. Uma escrita de si, que
busca a transformação de si a cada tecla batida, traço, pontilhado,
curvatura e borrão. Espreitada iniciada na graduação, com base
no seguinte ciclo:

Figura 2

Segundo Milan Kundera, “felicidade está no desejo de repe-


tição”. Não à toa construí um projeto para o mestrado no qual
acompanharia um novo processo, como quem deseja construir
um mapa diferente. Um mapa do atravessamento, ao percorrer
os territórios e vizinhanças da vida entre essas mesmas paragens.

Do movimento fugitivo ao criador – a metodologia elemental aplicada à minha pesquisa poética 185
Entretanto, não há como ignorar os caminhos que se
abriram repentinamente após minha entrada no programa.
Caminhos sinuosos, insinuantes. Num primeiro momento, dia-
logava com eles bem baixinho, como quem encontra segredos
muitos preciosos.
Nos encontros da disciplina “Movimento Criador do Ato
Teórico” – da Pós-graduação em Artes da Universidade Federal
do Pará, ministrada pelas docentes Ivone Xavier e Wladilene
Lima – encontrei, como bem diz Max Martins, um “lugar para
onde se ir”. Me deparei com pessoas em estado de compartilha-
mento de ideias e processos de um modo que não antes havia
assistido, que auxiliou o espírito inquieto deste texto a me rela-
cionar de forma mais profunda com tais caminhos desvelados.
As dinâmicas estabelecidas tornaram este espírito um fractal de
afetos e percepções.
Paralelamente, estava também em contato consigo mesmo
no divã psicanalítico. Logo eu, que sempre se mostrava avesso
aos métodos advindos da psicanálise. Por preconceito, admito.
Entretanto, certa vez me deparei com a seguinte questão: para
onde se refugiar, quando uma série de colapsos passam a afogar
nosso cotidiano? Consultório do analista, um outro “lugar para
onde se ir”.
A esta trama se junta o convite para participar do processo
de criação do espetáculo “Auto do Coração” do Grupo Cuíra de
Teatro, um espetáculo de rua no qual seis atrizes contam suas
vidas sob forma de poesia, tramando afetos e vivências relaciona-
dos ao amor. Dentre a sala de ensaios e as temporadas rodando
pela cidade num ônibus, outro “lugar para onde se ir”.
Pausa para falar de como anda minha relação com o teatro
atualmente.

186 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O convite para a participação neste espetáculo me ocorreu
após a participação na oficina “Cartografia do Afeto”, ministrada
pelo artista-pesquisador Armando Queiroz, na Casa Das Artes.
Lá estreitei laços com minha atual orientadora, a mulher de tea-
tro conhecida como Wlad Lima, que coincidentemente estava lá.
Através dessa nova parceria de trabalho e amizade, além das par-
cerias técnicas em processos cênicos, estamos a desenvolver um
grupo de pesquisa em desenho, que batizamos “Há Riscado”. Tais
atividades integram o projeto de pesquisa intitulado GEPETO,
cuja força motriz envolve a poesia pensante, os pensadores poé-
ticos e os saberes da floresta em lugar de primeira grandeza na
academia.
Meu coração já não cabe mais em meu corpo. Agora, ele é
continuamente incentivado a se abrir e criar novos vínculos. A
ilha reconheceu-se arquipélago, do qual o limite soa difuso, longe
de poder ser mapeável, somente enquanto transitado, inscrito.
Desterritorializado, percebi nas linhas de fuga, hoje várias, as cor-
das das quais me guio, as vezes por nem mesmo me suportar, e me
dobro feito origami. Dobro tanto, tanto, que me percebo imerso
num mar de espelhos.
Finalizo a pausa. Vamos voltar a falar da disciplina do
“Movimento Criador”:
Essa disciplina foi organizada numa dinâmica de dois
tempos. Nos primeiros momentos, a professora Ivone Xavier
mediava conversas a respeito de temas pertinentes à pesquisa
em arte, intitulados: “O que é teorizar? Escrita como dispositivo;
As diferentes abordagens do discurso teórico – atravessamentos;
O contra-ato ao ato de significar; A imbricação da ética com a
estética; O objeto é inventado, não está dado – Consciência do

Do movimento fugitivo ao criador – a metodologia elemental aplicada à minha pesquisa poética 187
movimento criador da escrita; O ato poético é criação em rede \
redes de criação; As dobras da pesquisa – a enformação movente”.
Já nos segundos momentos, organizados pela profa. Wlad
Lima, eram instauradas dinâmicas de dilatação, estranhamento
e expressão no processo de criação e revisão da relação com os
objetos, trajetos de pesquisa e das formas de escrita. Em mim, tais
atividades me geraram movimentações tectônicas. Quando nos
propusemos a pensar a partir do contato com questionamentos
pouco usuais, me senti provocado a tomar novos rumos:
– qual a beleza do seu objeto de pesquisa?
– onde está a energia do projeto?
– em que se baseia a tensão do seu projeto?
– qual a imagem-força de seu objeto de pesquisa?
Enquanto participava, um intrincado jogo se formava à vista
nua, ganhando renovados e complexos contornos a cada semana.
Um momento de virada. A seguinte pergunta nos foi dada:
– quais são os elementos da sua pesquisa (fogo, água, terra,
ar, éter)?
Na época, minhas respostas, assim como os elementos tra-
ziam à tona várias questões já comentadas em parágrafos anterio-
res, que em adição, aglutinam-se numa nova trama. A construção
de um dispositivo, cujo título provisório é “Os Caminhos dos
Arcanos em terras movediças: Dispositivos dilatadores imagéti-
cos no movimento criador”.
Uma carta tirada na sorte.
Arcano 5 – O Hierofante. Os cinco elementos já se insi-
nuam cedo. E o horizonte me aparece livre, embora nublado, para
que minha nau possa zarpar ao encontro de todo perigo, pois
agora me darei a permissão de ousar construir uma ilha.

188 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Uma espécie de jogo-ilha. Nele, o mar, o nosso mar, estará
sempre aberto, e provavelmente não encontraremos tanto mar
aberto quanto nesta ocasião. Uma terra de abertura para as per-
cepções em estado de estranhamento, rememoração, reminiscên-
cias, autodesconhecimento.
O hierofante, em sua forte presença imagética, atinge, em
minha interpretação, o chão das minhas certezas, tão marcadas
por estruturas e condicionamentos mecanicistas, e me mostra, de
forma generosa, uma sugestão:
– será você capaz de sair de sua zona de conforto?
– sim.
Resolvo habitar minha inquietude neurótica – base de
minha formação analítica – e transgredir normatizações, assu-
mindo que estou num campo filosófico e artístico – entre – teoria
e poética, intuição e sensação. Numa iniciativa que possui como
objetivo me servir como ponte entre os seres criadores (que com-
preendo serem qualquer pessoa em circunstância de pesquisa) e a
dimensão imagética de suas investigações. Dilatada. Chorosa de
prazer e gozo.
O caminho desta escritura aponta para a multiplicidade ins-
talada como combustível de poder nas imagens, e principalmente,
da singularidade da experiência em relação a um jogo secular,
que se abre de forma diferente para cada indivíduo. Finalmente,
arrisco uma última afirmativa:
– somos nossos próprios educadores e educandos.
A vida se abriu em 10 minutos.
Quando este arcano se abriu para mim, senti o implícito
convite. Já estava a me fazer, intuitivamente, tais provocações, mas
hoje me permito formalizá-lo.

Do movimento fugitivo ao criador – a metodologia elemental aplicada à minha pesquisa poética 189
E eu aceito.

Figura 3

Índice de figuras
Figura 1 – “O Hierofante”, lâmina do tarot de Marselha (1750).
Figura 2 – “Sem título” da série Cartas Abertas, de Breno Filo. Exibida
durante a performance na Mostra FOCAR, como elemento cenográfico.
Figura 3 – “O Hierofante”, de Breno Filo. Integra os estudos de tarot da
pesquisa “Os caminhos dos arcanos em terras movediças: dispositivos
dilatadores imagéticos no movimento criador”.

190 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Referências
KUNDERA, Milan. A insustentável Leveza do Ser. Tradução: Tereza B.
Carvalho Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
MARTINS, Max. Para ter onde ir Belém, EdUFPA, 1992.

Do movimento fugitivo ao criador – a metodologia elemental aplicada à minha pesquisa poética 191
Con/trans/des figurando corpos51

Carlos Augusto Silva e Silva


Maria dos Remédios de Brito

O corpo
(Paulinho Moska)

Meu corpo tem cinquenta braços


E ninguém vê porque só usa dois olhos
Meu corpo é um grande grito
E ninguém ouve porque não dá ouvidos

Meu corpo sabe que não é dele


Tudo aquilo que não pode tocar
Mas meu corpo quer ser igual àquele
Que por sua vez também já está cansado
de não mudar

Meu corpo vai quebrar as formas


Se libertar dos muros da prisão
Meu corpo vai queimar as normas
E flutuar nos espaços sem razão

51 Este texto foi produzido a partir de experimentações em uma apresentação artística perfor-
mática, na Mostra Internacional Formação, Ciência e Arte (FOCAR), em 2016.
Meu corpo vive e depois morre
E tudo é culpa de um coração
Mas meu corpo não pode ser mais assim
Do jeito que ficou após sua educação

N
uma manhã de abril, estava eu numa sala escura, enquanto
isso, uma luz amarela surgia de um refletor e passeava pela
sala, entretanto, a escuridão ainda estava lá numa constante
guerrilha com a luz. Essa luz também refletia em outros corpos,
não apenas no meu, fazendo-me enxergar alguns olhares fixos em
meu corpo, olhares profundos, acompanhando-me, que eu bus-
cava por não encontrar ou encarar.
Tudo começou no chão. Estava ali, prostrado sob os pés de
outros corpos, quando, repentinamente, uma música52 começou
a surgir. A melodia foi aos poucos invadindo a sala, e, também,
os corpos ali presentes. Meu corpo, meio que (des)conexo com
a música, começou a movimentar-se lentamente, sentia minha
carne pulsar...
A escuridão invadia ainda mais minha pele, que estava
atada por correntes frias que se fundiam à carne, em minha boca,
encontravam-se mais correntes, que me impediam de exprimir
gritos. Sentia gosto de sangue, vindo por meio do atrito da carne
com as correntes, que ao passar pelo chão, produziam ruídos.

52 Another Brick in The Wall, do compositor Roger Waters.

194 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Meu corpo começou a pulsar ainda mais. As movimentações,
antes (des)conexas, tornaram-se ainda mais intensas e fortes, num
sentido de resistência. O desespero tomou conta do corpo, que
buscava desprender-se das amarras, das correntes, dos cadeados,
da sala em forma de caixa. Ao correr por entre os outros corpos,
a conectividade foi mais intensa, sentia e via a atenção constante,
construto da música, do ambiente, das movimentações, e, sobre-
tudo, dos corpos em movimento.
Subia, descia, corria, paralisava, respirava, experimentava...
Dançava... Sentia a sala e os corpos. As movimentações fluíam a
partir das experimentações com os corpos, a música e o ambiente.
Sem ensaios ou movimentos preestabelecidos, apenas desejando
múltiplas experimentações.
Os olhares dançavam junto ao meu corpo. Seus pensamen-
tos? Não sei por quais mundos estavam no momento. Nem eu
saberia dizer por onde estava o meu pensamento, naquele turbi-
lhão de afectos e perceptos.
Uma movimentação, uma autocriação que outrora nasceu
em uma experimentação, toma dimensões maiores. O corpo tem
essa possibilidade de afetar os outros, de mostrar novas experi-
mentações, estender-se aos bons encontros que produzem a troca
de corpos. Como jogar-se numa dança, num palco, numa plateia,
no palco outra vez, é um ir e vir constante, sem estorvos.
Explorar seu próprio corpo através do contato com outros
corpos, na dança, por meio da arte, bem como explorar a dança
(arte) por meio do corpo, criando zonas de intensidades nesses
encontros, pois é por intermédio desses cruzamentos que os cor-
pos (re)completam-se, (re)complementam-se num fluxo infinito.
Corpo-artista, um lugar de afectos, perceptos que fazem
parte dos devires, tornando-se um rizoma intensivo de sensações,

Con/trans/des figurando corpos 195


que não se detém às zonas de produção reprodutivas, mas, princi-
palmente, em um “vir a ser”, um corpo aberto para as possibilida-
des, que recusa a imposição dos seus verdadeiros órgãos. Portanto,
“por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com
a pele, respirar com o ventre [...]?” (DELEUZE; GUATTARI,
2012, p. 14).
Embaralhar as funções dos órgãos do corpo, uma boca que
outrora era utilizada para agredir, surrar através de palavras tor-
pes, pode se movimentar para outras possiblidades, como cantar,
recitar uma poesia, dialogar. Olhos que julgavam outros corpos,
que abalavam os padrões e formas, podem (re)configurar-se para
também enxergar novas possibilidades de ser e estar no mundo.
Os pés que se fincam ao continente arriscam-se em correr em
direção ao mar, dançando pelas ondas, e mergulhando num alvo-
roço de sensações. Dar vida aos órgãos, às diversas transitabilida-
des que podem ser exploradas, (re)vividas...
Essas experimentações correm, decodificam, dançam pelos
devires. Ser quem quiser, como quiser, ou simplesmente não ser...
Sentir os prazeres que habitam um corpo, sem excluir as possibi-
lidades de relações com outros tantos corpos. Encontrar seu pró-
prio prazer, seja em que corpo for... Nadar pelos diversos entres,
dentro ou fora dos palcos, dentro ou fora das ruas, por entre as
diversas gentes que habitam dentro da gente.

***

196 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


...For(matando) corpos...
53
Tudo era apenas um tijolo no muro
Todos são somente tijolos no muro

Um muro reflete a existência de uma arte que, por muito


tempo, deseja fissurar os próprios muros, os quais a enclausuram,
escoando, transitando por entre as vias, ruas, até, quiçá, atingir
corpos inertes.
Arte, o oxigênio que nutre corpos. Cessando essa fonte ao
corpo, esse não mais aguentaria, poucos minutos seriam o sufi-
ciente para jogá-lo ao mar das representações. Poucos suspiros,
um último fôlego, essa é a respiração de muitos corpos que estão
sendo asfixiados para seguir regras, ou mesmo por não segui-las.
Quem privaria o corpo de tal manancial vital?
Seus olhos são vedados, suas bocas, amordaçadas, seus bra-
ços e pernas, acorrentados, tudo isso através de uma violência que
dociliza, que amedronta e enrijece os corpos sob uma subordina-
ção total.
Há “senhores” que disciplinam, for(matam) o corpo, que é
arte, a vir à tona. Entretanto, esses corpos desejam afetar outros
corpos, que também desejam ser afetados, nem que seja por
rabiscos, por um grafite, uma pintura ou uma dança... Não seja-
mos apenas mais um tijolo no muro, vivamos a multiplicidade
que nos habita, a potência de fissurar, rachar as paredes que nos
for(matam).
A arte é um local onde se (re)fabula a vida. Refaz o corpo sem
órgãos, um novo corpo que se desfaz em estilhaços e se (re)orga-
niza em infinitas combinações, (des)configurando suas funções
53 Recorte da obra musical intitulada como Another Brick in The Wall, do compositor Roger
Waters.

Con/trans/des figurando corpos 197


cristalizadoras, que fissura as correntes, libertando-se para uma
dança sem imagens ou movimentações estabelecidas. Essa dança
se faz pelo entre, nos devires, e, acima de tudo, numa multiplicidade
de movimentações. Os palcos sucumbem, já não há mais lugares,
muito menos plateia, os que antes assistiam, agora, fazem parte
dessa dança dos devires. Corpos entrelaçados pela luz da arte, que
embaralham seus próprios órgãos, negando o orgânico, a fôrma...
Uno, múltiplo, híbrido, potência... Um corpo que vaza para
além de um conjunto orgânico, insubmisso às ordens impostas
socialmente, tornando-se “um corpo afetivo, intensivo, anarquista,
que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes” (DELEUZE,
1997, p. 23).
Só há possibilidade de o corpo tornar-se outro quando ele
estiver oco, nu, vazio de si, sem centro ou unidade. Pois o corpo
não tem fixidade, pode tomar para si inúmeras máscaras, uma
passagem constante e permanente de uma máscara para outra.
Quando a dança recusa as movimentações representacionais, sem
ensaios, marcações ou um palco, dando lugar a uma conjuntura
criativa, um único espetáculo de explosões singulares.
O corpo experimenta, ele busca novos movimentos, avan-
çando sobre qualquer tipo de inércia e sonolência. Esse corpo se
desnuda, mostrando-se como de fato é, para as criações multípli-
ces, explosões, dínamos... Devires...

É como movimentar-se numa dança pela primeira vez


É como lançar-se numa dança sem saber dançar
É como cantar uma música sem importar-se com a afinação
É como alçar voo sem saber voar
Deixa esse corpo experimentar
Lançar-se numa zona de constantes (im)possibilidades

198 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Turbulências
Dores

Toda dor permite a criação. Para criar, é necessário romper


algo, pois é nessas perfurações que a diferença nasce, o processo
criativo é recorrente dessas forças da vida que são liberadas. É pura
resistência... O homem procura aprisionar, massacrar, já o artista
desata uma vida para a potência, pois a “arte consiste em liberar a
vida que o homem aprisionou” (DELEUZE, 1988, p. 91).
Nesse sentido, a arte seria uma configuração de comunicação
ou diálogo? A obra de arte não é uma expressão informativa, logo,
estaria intimamente enleada com o ato de resistência, mesmo que
indiretamente. Esse ato de resistência é humano e também de
criação, culminando, portanto, em uma luta entre homens ou na
própria obra de arte.
A arte resiste ao extermínio, à morte... “Criar é resistir efe-
tivamente!” (DELEUZE, 1988, p. 90). A resistência faz parte
do ato de criação, pois “criar não é comunicar e sim resistir”
(DELEUZE, 2002, p. 45). Resistir aos sistemas de controle que
ditam as regras de um jogo.

***

...Trajes (ul/tra/gicos) dos corpos...


Corpos orgânicos são constantemente reproduzidos ou
melhor maquinados. Produtos de uma conduta social pragmática
e reguladora das vontades criativas. Entretanto, há aqueles que
procuram trilhar caminhos por entre linhas desejantes, resistem
ao medo, aos processos de subjetivações universalizantes. Corpos

Con/trans/des figurando corpos 199


que fissuram seus próprios corpos, em busca de criar para si outros
corpos, que negam suas vísceras originais que engendram numa
máquina orgânica.
Portanto, é necessário perfurar, pois, através dessas brechas,
as forças da vida são liberadas. É esse rompimento violento que
transgride e traz o novo, pois “não há, porém, transmutação, cria-
ção/invenção sem destruição” (LINS, 2012, p. 23).
Corpos que rasgam seus trajes (ultra)trágicos num ato artís-
tico, ato esse de resistência, força e intrepidez. Trajes e mais trajes.
Trajes que se limitam apenas a puras identidades... Costurados na
carne, sobre a pele dos corpos. Trajes que, para serem arrancados,
certamente desencadearão o rompimento de corpos para potên-
cia de criação, na invenção do novo.
Um corpo que pode inventar-se, descobrir-se, tornar-se.
Que não suporta enclausurar-se em demarcações por linhas duras.
Deslizar-se por entre as possibilidades que esse devir lhes pode pro-
porcionar. Linhas flexíveis e maleáveis, as quais buscam a desterrito-
rialização, como um cigano que não possui moradia fixa, sua ânsia é
conhecer lugares, pessoas, possibilidades, um nômade em constante
movimento, que se desdenha não mais nas estradas ou trilhas, mas
busca para si as matas fechadas, na invenção de novos caminhos.
Orgânico e inerte. Facilmente manipula-se, este, em si, não
tem vida, não possui articulações, muito menos possibilidades de
movimentar-se. É, portanto, um objeto de produção, num deter-
minado ambiente, nada mais que isso, uma simples junção de ele-
mentos forma-o, porém, antes disso, existe um outrem que lhe
define e lhe prende numa determinada posição engessada.
Seria de fato, um corpo, moldado perpetuamente? Não
haveria a possibilidade de um desprendimento desterritoriali-
zante? Fragmentos, estilhaços, pedaços... A quebra desses corpos

200 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


traz a criação do novo, um (re)mergulhar no caos, rompendo
completamente um sistema representacional do “verdadeiro”, um
pensamento avassalador e sem imagens... Acéfalo... Rumo a uma
selvageria que consiste em múltiplas invenções, atribuindo para
si uma vontade de potência, e que nega um educar civilizatório.
Uma canção não mais entremeada sob melodias suaviza-
das, com acordes unidos às notas serenas. Um corpo que grita em
silêncio, sua voz (música) arrebenta num estrondo, que abala não
apenas suas próprias partículas corpóreas, mas também outros
corpos, outras mentes.
A performance, de certo modo, veio desenredar esses pro-
cessos inventivos de si, ou enredar outros processos inventivos,
diante da labuta diária de inventar corpos, rostos... Vidas...

***

Referências
DELEUZE, G. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. Tradução de Daniel Lins e
Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze: transcrição integral do
vídeo, para fins exclusivamente didáticos. Paris: éditions montparnasse,
1988.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Como criar para si um Corpo sem
Órgãos. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 3. São
Paulo: Editora 34, 2012, p. 11-34.
LINS, D. Estética como Acontecimento. In: NETO, A.V.; RAMALHO,
B.; MACEDO, E. SOUZA, E. C.; DAYRELL, J. GALLO, S.;
IRELAND, T. Conexões. 2012. cap. 3 p. 17-36.

Con/trans/des figurando corpos 201


Confissões de um jaleco:
metamorfoses e resistências!

Luciane de Assunção Rodrigues


Sílvia Nogueira Chaves

Posso ser A NORMA


A REGRA
A repressão e ao mesmo tempo
A incitação a falar do corpo
Que é produto da subjetivação
De um corpo que é explosão discursiva
Da sexualidade que se diz reprimida
Mas que é difundida
Nas malhas do poder
De dizer e fazer aparecer
As relações de poder
Posso ser um dos símbolos da Ciência para dar status a quem me usa
Posso ser de qualquer cor
Sirvo para dar proteção
Ou visibilidade a muitas coisas
Dentre elas, o corpo
Objeto de desejo, das paixões, dos prazeres,
Curvas salientes que se mostram
Sensualidade que destila volúpia
Capa que transpira seriedade
E, muitas vezes, santidade,
Mas deseja ardentemente
A vontade de verdade
De uma verdade travestida
Que quer ser dita
Pelas palavras
Pelas coisas

Na fronteira entre o desejo e o poder


Está a contingência da minha existência
Quem seria o super-herói ou a super-heroína que me usaria como capa protetora?
É como um sacerdote/sacerdotisa ou um(a) cientista?
Que discursos se inscrevem sobre mim?
Que discursos dou visibilidade?
Que poder imponentemente exerço sobre quem me usa?
Que sujeitos são tecidos em meio às relações de poder que dou visibilidade?
Que marcas de poder estão tatuadas em mim?
Que verdades são produzidas pela minha existência?
Que corpo é fabricado na tessitura das minhas linhas que se encontram e desen-
contram num emaranhado de f ios condutores do poder?
E... Que docência sou capaz de fabricar?
Docência aprisionada por uma capa
Docência que não tem sexo
Docência travestida de pudor
Que me usa para escapar
Mesmo que, transitoriamente, das amarras do poder
A prof issão já se diz: sacerdócio deve ser
Porque para ser PROFESSOR não basta ter apenas a formação
Tem que ter MISSÃO
Tem que ser pastor
E guiar o rebanho para onde for
Eis a sina do professor confessional
Usar-me como disfarce para camuflar-se e empreender o esforço
De agir conforme as regras e normas regulatórias
De uma moral que subjuga e dita o que deve ou não deve ser
Por que me f izeram calar?
Isso me incitou a falar!
Falar de uma sexualidade proibida
Falar de uma luxúria desmedida

204 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Falar da posição que ocupo enquanto “capa protetora”
Sou a instância do poder
Dizem que minha missão é proteger o corpo
Discurso idílico que traz em seu bojo
O desejo e a vontade de poder
De dizer que não sirvo para proteger
Sirvo para exercer sobre o corpo
Uma relação de poder
De nunca dizer
O que o corpo é
Como ele é
A superfície de inscrição
De tudo o que acontece
E nessa suspeita proteção
Quem me dará atenção?
Sou alvo da observação, objeto panóptico
Pois as marcas que deixo
Não são nada além de um corpo informe, sem curvas, sem beleza
De um corpo cuja sexualidade incitei a dizer
Que sente desejo, que sente vontade
De poder, de saber
Que tem sua sexualidade marcada pelo devir
Em busca de novos/outros caminhos
De novas histórias
De resistências
Da “vida” de um tecido que um dia se metamorfoseou em um JALECO!1

1 Esse texto intitulado “Monólogo do Jaleco: Vestes da Resistência” foi apresentado em forma
de vídeo na MOSTRA INTERNACIONAL DE FORMAÇÃO, CIÊNCIA E ARTE:
Autobiografia, Arte e Cinema na Formação Docente, realizada na Universidade Federal do
Pará nos dias 06 a 08 de abril de 2016. As inserções que proponho no texto escrito para esse
livro emergem a partir das ideias vincadas no monólogo que criaram o objeto discursivo
Jaleco.

Confissões de um jaleco: metamorfoses e resistências! 205


Metamorfoses e resistências!

Luciane de Assunção Rodrigues


Sílvia Nogueira Chaves

“E o segredo é estar disponível para que


outras lógicas nos habitem, é visi-
tarmos e sermos visitados por outras
sensibilidades”.
MIA COUTO

Jaleco e Docência: imbricações e inquietações...

E
ste texto é parte integrante da pesquisa de tese de doutorado em
processo de construção, que põe o jaleco, artefato usualmente
utilizado nas aulas de ciências/biologia, em uma rede discursiva
de poder. A problematização desse artefato emerge a partir de inquie-
tações que se movem no campo da docência em escolas confessionais2
e que instigaram a olhar esse campo com novas lentes, estranhando
o corriqueiro, o que está posto e o que foi imposto, como o uso
dessa vestimenta nomeada jaleco, usada indistintamente por pro-
fessores e professoras, desde a educação infantil até o ensino médio.
Para efeito de análise, o jaleco será aqui tratado como objeto
discursivo. Isso implica em tratá-lo nas condições históricas de
sua emergência e existência enquanto artefato de subjetivação,

2 Escolas confessionais são as que estão vinculadas a uma instituição religiosa e difundem,
dentre os conhecimentos sistemáticos de cada disciplina, sua visão filosófica intrinsecamen-
te relacionada à perspectiva religiosa.
assim como os princípios que regem sua subsistência e transfor-
mação. Desse modo, propomos uma análise arqueológica do objeto
jaleco, “cujo centro é a descrição dos acontecimentos, a descrição
das transformações dos enunciados, dos discursos” (FISCHER,
2012, p. 24). Na esteira foucaultiana, nos desafiamos a uma tarefa
“que consiste em não mais tratar os discursos como signos, mas
como práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam” (FOUCAULT, 2012, p. 60). Nessa perspectiva, o objeto
jaleco não será aqui tratado como representação, símbolo de algo.
Tampouco serão analisadas as intenções “por trás” de seu uso, mas
sim as regras que o fazem ser visto como objeto numa dada rede
discursiva.
Ao mapear enunciados que produzem o jaleco e transitam
na escola confessional, emergem questões como: Quando a prá-
tica do uso do jaleco passou a ser regra na ordem discursiva da
sexualidade em escolas confessionais? Que corpo docente o jaleco
produz? O que o jaleco diz sobre sexualidade e docência? Que
moral é instituída pelo objeto discursivo jaleco?
Foucault ajuda a pensar os percursos dos objetos discursivos
quando sugere os aspectos que importam atentar, dentre eles,

As condições para que apareça um objeto de discurso, as con-


dições históricas para que dele se possa “dizer alguma coisa”
e para que dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes,
as condições para que ele se inscreva em um domínio de
parentesco com outros objetos, para que possa estabelecer
com eles relações de semelhança, de vizinhança, de afasta-
mento, de diferença, de transformação (FOUCAULT, 2012,
p. 54).

208 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Ao folhear as páginas de um livro escrito e publicado por
autores que pertencem à instituição eclesiástica à qual a escola
é vinculada e que serve de material empírico dessa pesquisa, lê-se
as seguintes orientações sobre o que esperam do professor dessa
instituição. Dentre inúmeras exigências, é mencionada a figura do
jaleco, citada no excerto a seguir:

[...] um professor da rede adventista, não usa roupas que pre-


cisam ser cobertas pelo jaleco, pois sem o mesmo, as mar-
cas e as curvas do corpo ficam tão salientes que parece que
a pessoa está como o corpo pintado e não coberto por um
tecido (MENSLIN, 2013, p. 82. Grifos nossos)

A escola confessional assume como missão, além do ensino


de conhecimentos acadêmicos, a promoção do desenvolvimento
espiritual, intelectual, físico e social do ser. Sua filosofia é funda-
mentada nas doutrinas cristãs eclesiásticas que visam o aperfei-
çoamento do caráter e o respeito pela dignidade humana. Para
que se efetive a formação integral do aluno, a docência é alvo de
controle, de disciplina, de imposições e proibições. O exercício de
vigilância sobre a sexualidade do professor torna institucional-
mente o jaleco como vestimenta de uso obrigatório nesse espaço
pedagógico e, para que isso se efetive,

Redobra-se ou renova-se a vigilância sobre a sexualidade,


mas essa vigilância não sufoca a curiosidade e o interesse,
conseguindo, apenas, limitar sua manifestação desemba-
raçada e sua expressão franca. As perguntas, as fantasias,
as dúvidas e a experimentação do prazer são remetidas ao
segredo e ao privado. Através de múltiplas estratégias de

Metamorfoses e resistências! 209


disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experi-
mentamos a censura e o controle (LOURO, 2000, p. 27).

A sexualidade incita curiosidade e a curiosidade é a mola


propulsora que instiga a problematização dos discursos que insti-
tuem e legitimam verdades sobre o jaleco. Mas o que pode haver
de tão estranho e aderido a um tecido que está sobre um corpo?
É nesse contexto de vigilância da sexualidade docente que nasce
o jaleco. Mas ao contrário de sufocar a curiosidade, ele a incita,
pois carrega discursos que são prenhes de condições de possibili-
dades do que ele é capaz de suscitar, tanto no corpo que ele ocupa
como no objeto panóptico3 que ele passa a ser, pois se torna alvo
da observação.
Os discursos que produziram o jaleco como objeto discur-
sivo da sexualidade são discursos que suscitam intensas modifi-
cações, inquietações e desestabilizações nas ideias. Considerando
que o jaleco não “oculta” algo que está encoberto, um corpo que
precisa ser descoberto, que precisa ser desvendado, antes, ele faz
proliferar discursos sobre a sexualidade, cria, inventa, produz e
legitima um modo de exercício da docência que está na fronteira
entre o corpo e a sexualidade, nos meandros, nas margens e nas
intersecções desse duplo confronto que se estabelece no e sobre
o corpo.
Michel Foucault faz uma arqueologia4 do discurso sobre a
sexualidade na tentativa de problematizar o que é proibido,

3 Objeto panóptico é o termo adaptado do conceito de Foucault sobre o dispositivo panóptico,


que “funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de ob-
servação, ganha em eficácia em capacidade de penetração no comportamento dos homens”.
(FOCAULT, 2008a, p.169). O jaleco passa a ser o objeto panóptico na escola confessional
na medida em que ele é alvo de observação em relação à docência.
4 Arqueologia é a análise diferencial das modalidades do discurso, definindo tipos e regras de
práticas discursivas que atravessam obras individuais (FOCAULT, 2012).

210 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


permitido ou é obrigatório no campo da sexualidade. Por isso,
trazer a discussão sobre o jaleco, enquanto objeto profícuo na
produção de uma sexualidade docente, cria possibilidade de pro-
blematizar as intersecções que estão em suas tessituras, que trans-
figura-se em um dos aparatos discursivos, transitando na escola
confessional, produzindo, inventando e legitimando práticas que
estão nas malhas do poder.
Tratar o discurso como prática é uma das tarefas empre-
endidas por Michel Foucault. É a partir de suas teorizações que
desafiamos os modos estáveis e tranquilos de enxergar as coisas.
A apropriação de outras lentes nos possibilita embaçar e desem-
baçar a visão, cria condições de produzir outras imagens, outros
desenhos, outras configurações tão mais inquietantes e encharca-
das de significados do que aqueles que nossos olhos estão acomo-
dados a ver. Propomos a desnaturalização do jaleco como simples
vestimenta e a conversão do olhar para pensá-lo como objeto
discursivo portador de potentes enunciados sobre sexualidade e
docência e sexualidade na docência.
O jaleco é um objeto discursivo produzido por enunciados
que estão nas relações de poder existentes na escola confessional,
tendo como alvo a sexualidade docente. Porém, em outras épocas
era pensado como objeto da igreja (vestes sacerdotais) e da ciência
(vestes do laboratório). Contudo, na escola confessional, tal capa
passa a ser o objeto discursivo da sexualidade, sendo considerado
a “primeira pele” do professor, haja vista que múltiplas possibi-
lidades de visibilidades são acionadas, dentre elas a sexualidade
do professor, tal como a inquietação expressa por uma professora
que estava sem essa vestimenta: “Sem o jaleco, é como estar sem
roupa!”.

Metamorfoses e resistências! 211


Enunciados prenhes de vontade de poder, vontade de saber
e vontade de verdade deram condições de existência ao jaleco,
possibilitando a inferência de três objetos discursivos, bem como
as instituições e os discursos que criaram o jaleco como objeto dis-
cursivo. Os objetos discursivos são: o jaleco que veste o sacerdote, o
jaleco que veste a ciência e o jaleco que veste a docência.
O “manto” ou a “túnica” usada pelos sacerdotes jesuítas asse-
melha-se ao jaleco do qual tratamos neste capítulo. Sem um corte
evidenciando as curvas de um corpo que está ali, mas não está.
Um corpo, cuja sexualidade deveria ceder lugar à santidade e à
pureza, pois eram consideradas vestes exclusivas e sagradas desde
a antiguidade e os padres jesuítas faziam uso de tal vestimenta
ao catequisarem os habitantes originais das terras brasileiras, por
ocasião do “descobrimento” do nosso país, tal como mostra a
figura a seguir.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/quiz/2012/03/06/os-jesuitas-e-a-origem-de-
-sao-paulo.htm

212 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Que discursos fabricaram o “jaleco sacerdotal”? Que enun-
ciados o produziram? Que docência essa posição discursiva do
jaleco pode fabricar? O jaleco sacerdócio inventa um modelo de
professor que é o sacerdote, o “santo” devotado ao exercício de
sua profissão e até nossos dias esse discurso tem ressonâncias na
docência. O sacerdote é o professor que exerce o pastorado na sala
de aula, cuja missão é a salvação das almas – os alunos.
O processo educacional instaurado na colônia recém-desco-
berta sofreu forte influência das concepções oriundas do pensa-
mento religioso vigente na época, ou seja, as ideias disseminadas
nos âmbitos da economia, política e educação tinham em seu bojo
o objetivo de promover a proliferação do ideal cristão da igreja
católica, em franca ascensão nesse período e com o domínio de
todos os setores da sociedade. A palavra de ordem era “Formar os
espíritos de acordo com a doutrina católica era a principal preo-
cupação dos que se debruçavam sobre a educação” (FERREIRA,
2004, p. 73).
Disciplinar a conduta de acordo com as crenças e valores pro-
pagados pela Igreja Católica era a palavra de ordem da chamada
Companhia de Jesus.5 O exercício do disciplinamento começava
pelo corpo sacerdotal vestido pelo jaleco até as doutrinas difundi-
das durante as ministrações das aulas. A formação intelectual só
adquiria importância quando associada ao ensino das doutrinas
da Igreja. Portanto, o cerne do processo educativo jesuítico era a

5 A Companhia de Jesus era uma ordem religiosa cuja principal missão consistia em ensinar
os indivíduos de acordo com as doutrinas disseminadas pela Igreja Católica. Nesse sentido,
o ensino era o meio pelo qual ocorria a disseminação dos dogmas da Igreja por meio da
pregação. Os padres jesuítas – como eram chamados os integrantes da Companhia de Jesus
– destacaram-se como fundadores de povoados, educadores e pregadores (KERN, 2004,
p. 108). Eram nomeados pela corte portuguesa e viajavam juntamente com as expansões
mercantis que tinham o objetivo de conquistar terras para Portugal e colonizar essas terras
conquistadas a partir da introdução de sua cultura.

Metamorfoses e resistências! 213


formação dos valores e crenças em consonância com a visão cristã
católica.
A missão da Igreja resumia-se em aspectos intrinsecamente
relacionados, a saber: a colonização, a educação e a catequese.
A colonização era a prática da exploração e sujeição dos povos
colonizados; a educação era o instrumento por meio do qual eram
introduzidos a cultura, os valores e as práticas dos países coloni-
zadores; e por fim, a catequese representava o mecanismo de difu-
são da religião dos colonizadores com o objetivo de promover a
conversão dos povos colonizados à sua doutrina, isto é, à religião
católica. A catequese tinha caráter eminentemente pedagógico,
tendo como foco central à conversão dos colonizados através de
práticas pedagógicas difundidas na escola e do exemplo de vida
dos educadores jesuítas (SAVIANI, 2004).
Educar pelo exemplo era a estratégia de poder dos coloniza-
dores. Estratégia esta imbuída do poder de persuasão e domina-
ção da vontade e do desejo das pessoas. Assim, desde a infância, as
crianças eram ensinadas nos ritos católicos, por meio de discursos,
imagens e vivências que lhe enraizavam a crença (FERREIRA,
2004).
À Igreja cabia a missão de ensinar e para isso estabeleceu
a criação das escolas, constituídas como locais de aprendizagem
formal e valioso instrumento de pregação e conservação da fé.
Era o início da imbricação entre fé e ensino, o estreitamento das
relações entre Igreja e Educação. E como os padres se incumbiam
da missão de ensinar, o ensino passou a ter caráter religioso. Nesse
sentido, “[...] Educar significava dar prioridade à formação dos
alunos na fé, nos bons costumes, na piedade, isto é, na religião”
(PAIVA, 2004, p. 81-82).

214 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Nesse cenário, evidenciamos a instauração de um tipo de
educação disciplinar e tecnologias de poder pastoral, cujo objetivo
era a catequese, o adestramento dos indivíduos, por meio de
relações de poder, sendo a Igreja a instituição responsável por
tal propagação, com o intuito de tornar os indivíduos dóceis6 e
escravos do poder clerical, cujo caráter ideológico e autoritário
manifestava-se também na educação. Além disso, as tecnologias
de poder pastoral, ao possibilitarem o governo dos outros, possibi-
litam ao mesmo tempo o governo dos indivíduos sobre si próprios
(GARCIA, 2002). A escola representava, portanto, importante
instrumento de propagação do pastorado cristão.
A Igreja, por sua vez, tinha a função de vigiar e manter a
pureza cultural de seus ensinos. É esse tipo de educação que, até
hoje, está enraizada em nossas salas de aula, fazendo-nos sujeitos
de um sistema que nos dirige e conforma por meio de práticas
pedagógicas que instituem o poder pastoral, no que se refere ao
governo das almas, da conduta e dos corpos dos indivíduos.
O jaleco que veste a ciência (como mostrado na imagem a
seguir) é usado nos laboratórios de ciências/biologia/química, em
hospitais ou farmácias pelos profissionais da área de saúde. Sua
função é dita como direcionada à proteção patológica, isto é, con-
tra as doenças que circulam nos ambientes. Nesse contexto, que
discursos produziram o jaleco que “veste a ciência”? Que discur-
sos sobre esse jaleco ecoam na docência? Esse acessório é impres-
cindível na ciência, pois as relações de poder que possibilitaram
sua existência dão à ciência status de autoridade, de quem tem a
voz autorizada a falar sobre ciência. O cientista faz uso do jaleco,

6 Entendem-se dóceis não como obedientes, mas como indivíduos cujos corpos são mol-
dáveis, maleáveis, isto é, que são disciplinados e engendrados a partir das redes de poder
(VEIGA-NETO, 2005, p. 85).

Metamorfoses e resistências! 215


que configura-se um dos ícones da ciência. O discurso tão natura-
lizado que criou o jaleco na ciência o remete ao laboratório. Nessa
perspectiva, o jaleco, como objeto discursivo da ciência, emerge
em meio às malhas do poder científico que dita um modo de
fazer ciência e de ser cientista. Quem o usa está autorizado a falar,
a dizer o discurso da ciência, o discurso dito “verdadeiro”, porque
é “cientificamente comprovado”. Portanto, a ciência, enquanto
instituição, carrega o poder de determinar quais “verdades” serão
propagadas.

Fonte: <http://www.jalecomedico.com/>.

E o jaleco que veste a docência em escolas confessionais? Que


discursos criaram o jaleco como objeto discursivo da sexualidade?
De onde emanam essas vozes discursivas do poder? Para a pro-
blematização de tais questões, citaremos um trecho extraído do

216 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


livro que versa, dentre outras recomendações e prescrições, sobre
como deve ser a postura do professor dessa rede de escolas con-
fessionais protestante justificando o uso do jaleco: “O jaleco é,
além de uma proteção à roupa do professor, uma identificação da
função e da instituição”. (MENSLIN, 2013, p. 82, grifo nosso). A
imagem desse jaleco é mostrada na foto a seguir (foto tirada de
celular da marca Moto G – 2ª Geração, versão do android 5.0.2
e câmera de 8MP).

Na escola confessional, o processo de instauração do jaleco


como objeto discursivo tem sua trajetória na história do sacerdó-
cio (autoridade) e da ciência (proteção), ambos transmutados para
a imagem do professor confessional, haja vista que tal objeto é
fabricado em meio aos discursos tecidos nas linhas da autoridade
e da proteção. Porém, o jaleco que veste o sacerdote emerge em meio
aos discursos de exaltação à santidade e à pureza do corpo; já o
jaleco que veste a ciência é criado nos discursos sobre autoridade
científica, que confere status ao cientista. Enquanto que o jaleco

Metamorfoses e resistências! 217


que veste a docência nasce dos discursos inquietantes e cambiantes,
que trazem o corpo como objeto de desejo e prazer em que o corpo
e a sexualidade docente estão sob a égide das relações de poder que
instituem, enquadram e legitimam regras e normas regulatórias,
todas elas estratégias para o controle e disciplinamento dos cor-
pos. Portanto, o jaleco que veste a docência cria, inventa e legitima
uma docência decente, docência moralizante, entendendo a moral
tal como Foucault (2007), isto é,

[...] o comportamento real dos indivíduos em relação às


regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim,
a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos com-
pletamente a um princípio de conduta; pela qual eles se obe-
decem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição;
pela qual respeitam ou negligenciam um conjunto de valores
(FOUCAULT, 2007, p. 26).

Reiterando tal conceito, Foucault (2007, p. 26, grifo nosso)


define moral como “um conjunto de valores e regras de ação pro-
postas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos
prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições
educativas, as igrejas etc.”. A escola, enquanto instituição educativa
e instância formativa, prescreve e inscreve sobre os corpos os valo-
res morais que circulam na instituição eclesiástica que têm na
escola confessional seu campo fértil de atuação, ganhando status
de verdade. Por isso, dentre outros objetos discursivos da sexua-
lidade, o jaleco carrega vontade de poder, saber e desejo de verdade,
resultado da rede discursiva de poder, que possibilitou sua exis-
tência e disseminação dos valores morais da igreja.

218 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Sob essa ótica, é a moral da sexualidade que determina o que
deve e o que não deve ser dito, dita as normas de comportamento
tanto na igreja como na escola confessional, instituição educativa
vinculada à igreja e que ratifica os discursos dessa instituição reli-
giosa. Nessa perspectiva, a ênfase é na conduta moral que implica
na constituição de si como sujeito moral, fabricando modos de
subjetivação e produção de uma ascética ou ascese (FOUCAULT,
2007). Castro (2009, p. 45), em seu livro Vocabulário de Foucault,
comenta que ascese é

[...] um trabalho de constituição de si mesmo, isto é, da


formação de uma relação consigo mesmo que fosse plena,
acabada, completa, autossuficiente e capaz de produzir essa
transfiguração do sujeito que é a felicidade de estar consigo
mesmo. A noção de ascese está determinada pela herança
cristã.

Como objeto discursivo que veste uma docência, o jaleco dá


visibilidade a um campo minado de subjetividades. Nesse campo
minado, a ascese é o mecanismo que assegura a mortificação dos
instintos e paixões carnais, subjetivações que se dão no e sobre
o corpo, que balizam os princípios, regras e normas regulató-
rias impregnadas de discursos veiculados pela igreja em relação
à sexualidade. Todos esses eventos seriam formas de exercício
espiritual que visam coibir as sensações corporais, fortalecendo
o espírito com o objetivo de mortificação dos “desejos carnais”, o
que demonstra cuidado com o outro, com o rebanho – os alunos.
Em relação a esse aspecto da ascese, Garcia (2002, p. 173), afirma
que

Metamorfoses e resistências! 219


O cuidado dos outros exige um trabalho de perscrutação e
de controle sobre os próprios pensamentos e instintos, num
ambiente cuidadosamente preparado para facilitar esse tra-
balho de ascese, de auto-exame e autocorreção, que exige a
renúncia de si e o alçar-se a um estilo de pensamento e exis-
tência moral superiores. A pedagogia institui um trabalho
sobre a consciência que visa a reforma e uma espécie de cura
dos indivíduos.

Há explosão discursiva em torno da sexualidade que fabri-


cou o jaleco como objeto discursivo. Instituído na escola confes-
sional, não a partir de proibições ou negações, mas a partir de uma
positividade, caracterizada pela produção de discursos que têm sua
ressonância na docência. Os discursos que circulam na escola
confessional tratam a sexualidade como instrumento de controle
dos corpos, proliferando o “manual de conduta” que tem a vontade
de gerir a vida dos indivíduos, fortalecendo as relações de domi-
nação, submissão e sujeição, modos que se reduziriam a efeitos de
obediência, pois incitam a sexualidade conservadora, fazendo do
jaleco instrumento de vigilância e controle dos corpos docentes.
Além disso, na escola confessional, não só herdamos os
discursos dos jesuítas na forma de “catequisar”, mas também
herdamos a vestimenta sacerdotal, cujos discursos e suas resso-
nâncias apontam para um modo de ser um docente decente, isto é,
um docente cuja sexualidade é “protegida” por um jaleco. O dis-
curso do “poder pastoral”7 está fortemente “enraizado” na docência
decente. Por isso, com Foucault nos interessamos em fazer uma
“[...] história de como nos constituímos sujeitos de verdades (ou

7 Poder pastoral é uma figura formada no cristianismo a partir da tradição hebraica. Esse po-
der se exerce sobre um rebanho que, na escola confessional, transmuta-se na relação ovelha-
-aluno e pastor – professor (CASTRO, 2009).

220 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


de como nos assujeitamos às verdades de nosso tempo, ou ainda
de como não cansamos de buscar discursos verdadeiros que nos
constituam)” (FISCHER, 2002, p. 39).
Desse modo, na escola confessional, o jaleco é uma invenção
que possibilitou a construção de uma sexualidade docente, isto é,
uma forma de ser professor cristão em meio às relações de poder,
que tem a sexualidade como fronteira entre o jaleco e o corpo. A
visão estereotipada do jaleco é desnaturalizada, pois, ao longo da
história, ele metamorfoseou-se em diferentes objetos e abre um
campo de visibilidade sobre as multiplicidades de coisas que nos
atravessam e nos incitam a falar sobre a docência.
Na ciência, o jaleco é um símbolo para dar status. Entretanto,
na escola confessional, o jaleco assume outra posição, a partir de
outros discursos. Transfigura-se em objeto panóptico em que a vigi-
lância sobre o corpo torna-se o alvo da observação. Os discursos
que estabeleceram o jaleco como parte da vestimenta do professor
preconizavam que esse acessório seria para proteção.
É nas linhas do poder que o jaleco – objeto discursivo da sexu-
alidade – é tecido e em sua tessitura está a emergência dos dis-
cursos que dizem sobre uma docência ainda desconhecida por
muitos: a docência fabricada no interior de instituições eclesiásti-
cas, como é o caso da escola confessional. Instituições que ditam
regras e normas regulatórias que determinam um tipo formatado
de docência, uma docência cerceada pelas relações de poder, que
têm como produtividade a resistência aos modos estabelecidos de
ser, fazer e viver a docência.
Os discursos que inventaram uma posição discursiva para
o jaleco na escola confessional produzem inquietações, modi-
ficações e metamorfoses profundas nas formas de ver as coisas,
os acontecimentos, pois há incitação a não silenciar sobre esses

Metamorfoses e resistências! 221


discursos que nos aprisionam, engessam, nos direcionam para o
caminho da decência – o único – esmagando a possibilidade do
devir, da criação, da (re) invenção na docência.
Colocar o jaleco em discussão nos dá condições de possi-
bilidade para problematização de que sexualidade docente esse
objeto discursivo é capaz de fabricar. A desestabilização e fissuras
das certezas e verdades sobre o corpo e a sexualidade docente
permitem a (re)invenção de uma docência múltipla, além de criar
mecanismos de resistência, permitindo-nos viver e experimentar
processos de contínuas metamorfoses. A problematização do
jaleco enquanto objeto discursivo da sexualidade tem uma his-
toricidade que o insere na ordem do discurso, dando visibilidade
ao “lugar” do acontecimento e as contingências de sua aparição
(FOUCAULT, 2008b).
O jaleco transita em instâncias discursivas (igreja, ciência e
docência), dando visibilidade a uma docência, cuja ressonância dos
discursos eclesiásticos fabricam uma decência. Os discursos de
decência sobre a docência têm seu lugar de acontecimento, sua his-
toricidade e ressonâncias oriundas da instituição eclesiástica a que
a escola confessional está vinculada. Tais discursos criam uma
decência balizada nas regras e normas regulatórias que regem a
sexualidade e que proliferam nos discursos eclesiásticos, tendo o
corpo como o alvo das relações de poder. Essas relações que se
estabelecem no e sobre o jaleco são positivas, na medida em que
seu interesse é o controle e disciplinamento dos corpos, produ-
zindo subjetividades.
Os discursos que criaram o jaleco se multiplicam e têm sua
dispersão em instâncias discursivas e campos de saber e poder
distintos, tais como o sacerdócio jesuítico, a ciência e a escola confes-
sional. A partir dessas instituições emanam relações de poder que

222 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


têm suas ressonâncias no discurso religioso, no discurso científico e
no discurso pedagógico. O objeto discursivo jaleco é instrumento
de exercício do poder sobre o corpo e a sexualidade. As práticas
de adestramento da sexualidade produzem marcas nas superfícies
dos corpos, já que o jaleco expõe uma nudez, que não se inscreve
na ordem discursiva eclesiástica.
Considerar o jaleco como objeto discursivo da sexualidade
exigiu a conversão do olhar para capturar na superfície das rela-
ções discursivas a vontade de poder e desejo de fabricar corpos
docentes decentes, prenhes de uma sexualidade que é posta em
vigilância constante, mas que tem sua positividade, na medida
em que possibilita a emergência de resistências e metamorfoses que
mudam o curso do exercício da docência, adestrando os corpos a
partir da disciplina que fabrica “corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis” (FOUCAULT, 2008a, p. 119).
O exercício de mapear os ditos e não ditos sobre o jaleco, a
partir da análise do material empírico que constava de livros pro-
duzidos e veiculados pela escola confessional, que prescrevem em
seus discursos o bom professor cristão, aquele que abdica de seus
prazeres e de sua sexualidade em nome da santidade e pureza,
remetendo-o ao sacerdote jesuíta, cuja missão é o exemplo e a
submissão o foco de sua docência.
Portanto, o jaleco se inscreve em uma trama discursiva em
que as relações de poder produzem, fabricam, docilizam, criam e
inventam formas de ser docente no interior de instituições que
ditam regras e normas regulatórias, mas que tem como produtivi-
dade formas de resistências contra o que está estabelecido e deve
ser seguido. É na resistência que se cria, é ela que inventa outras
formas de viver a docência em meio às imposições das institui-
ções confessionais no que tange à sexualidade.

Metamorfoses e resistências! 223


Referências
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Metamorfoses e resistências! 225


VARIAÇÕES: FOTOGRAFIAS,
LITERATURA E SONS
Fotografias infames

Amanda Maurício Pereira Leite8

Convite

A
fotografia é deslocada da representação do real para cogitar
sobre si novos percursos e sentidos. Somos convidados a
desconfiar do que está capturado (e naturalizado) na ima-
gem fotográfica. Até que ponto a fotografia pode condicionar o
olhar do observador? A história narrada pela fotografia é con-
fiável (ou descartável pelo modo teatral que a captura pode ser
concebida?). Há um tipo de fotografia infame? O que vemos
pode não ter acontecido do modo como vemos. O convite aqui
é pensar a produção de fotografias (considerando o discurso, a
teatralidade, a manipulação, a pulsão de vida que a imagem car-
rega sobre si) e tonificar a potência da fotografia que se afirma
em-cena-ação. Duas passagens compõem esse pensar: infâmia e
verdade e infâmia e encenação ambas procuram tencionar as nossas
convicções diante daquilo que vemos e tomamos com verdade/
ficção na fotografia.

8 Fotógrafa. Doutora e Mestrevem Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação


da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta da Universidade
Federal do Tocantins (UFT). Membro dos Grupos de Pesquisa Tecendo (UFSC) e Transver
(UFT). Contato: amandaleite@uft.edu.br
Infâmia e verdade
Quando tudo que se chamava arte se paralisou,
o fotógrafo acendeu sua lâmpada de mil velas e
gradualmente o papel sensível à luz absorveu
o negrume de alguns objetos de consumo.
Ele tinha descoberto o poder de um relampejar
terno e imaculado, mais importante que todas
as constelações oferecidas para o prazer do olhos
(TRISTAN TZARA, 1922 apud BENJAMIN, 1944).

O “prazer dos olhos” a que a epígrafe se refere estaria rela-


cionado ao nosso desejo de contemplar, descobrir ou revelar a
imagem? O que diz uma captura? Aqui, desconstruir é desconfiar.
Colocar em suspensão. Olhar com estranhamento o já natura-
lizado. É deslocar-se e em movimento cogitar novos percursos.
Desfazer. Pensar entre/pela/sobre/com a fotografia e a estética da
fotografia. É novamente lançar o conceito de representação con-
tra a parede e lembrar que lidamos com imagens efêmeras. Se
realidades e ficções estão presentes na fotografia é a partir daí que
vamos pensar a produção de visualidades contemporâneas.
Kossoy (2009, p. 22) assinala que “assim como as demais
fontes de informações históricas, as fotografias não podem ser
aceitas imediatamente como espelhos fiéis dos fatos”. Há uma
gama variada de imprecisão nos registros fotográficos. São ranhu-
ras feitas pelo tempo, pelo espaço, pelo enquadramento que atri-
buem determinados sentidos à imagem.
A fotografia foi criada para estar a serviço de algo, ora for-
necendo elementos para a construção de narrativas históricas,
ora sendo fonte de pesquisas científicas, ora enfatizando contex-
tos, cenários e culturas, ora manipulando olhares e leituras por

230 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


gêneros fotográficos. Se existe direcionamento da fotografia,
importa pensar aqui sobre a manipulação de um tema. Ou seja,
colocar a fidedignidade da fotografia em questão e explorar o que
está impresso diante de nossos olhos. Em que medida o regis-
tro remete a realidade? Reconhecemos nele sua parcela ficcional?
Estamos diante de fotografias menos autênticas? Uma verdade
menos real?
A fotografia também pode ser entendida como vestígio e
não como prova imaculada do real. São os vestígios que abrem
passagens, que deixam rastros para o imaginário. O devir9 coloca
a imagem em movimento. As pistas difundidas nos permitem
sonhar, criar, devanear. Isso faz do fotógrafo um poeta e se torna
um problema se a ideia da fotografia estiver fixa no registro
inquestionável do real. O devir é o ponto do “entre”; aquilo que
está entre dois objetos, dois termos, entre um e outro. Pode-se
dizer de um território de passagem ou a passagem de um estado
a outro; um vir-a-ser; um tornar-se que se opõe a um estado
estático e imutável do ser. Assim, a fotografia desterritorializa o
campo das nossas convicções. Ironiza nossas certezas. Esvazia os
clichês, a caricatura... Escava outras possibilidades de ver (e não
ver) o mesmo.
A fotografia é enigma, concomitantemente extasia e desas-
sossega o olhar do observador. Se ela fornece num momento
informações de um objeto, de uma cena, de um tempo/espaço,
também assinala a perda dessas informações que não mais se
repetirão. Cenas de um passado presente na captura evocam o

9 O devir pauta-se na concepção da “diferença”, o que implica considerar o pensamento ima-


nente e a filosofia do Ser cunhada por Gilles Deleuze (1988). O ser, nesse sentido, é a
própria afirmação do devir. Nada existe para além do devir. Discuto essa questão na tese in-
titulada: Fotografia para ver e pensar. Disponível em: http://paraverepensar.blogspot.com/

Fotografias infames 231


mistério. Soulages (2010, p. 14) questiona: “a estética da fotogra-
fia seria, então, uma estética do que permanece após a perda?”.
A relação da fotografia com a filosofia é intensa. A imagem é
um campo de infindáveis pensamentos, passagens e sentimentos.
Refletimos sobre a vida, a humanidade, o cotidiano, a cultura, a
ética e as dimensões estéticas de cada registro. Trabalhamos com
representações e ficções – a fotografia, a arte e o humano.
É curiosa a crença na fidedignidade da fotografia quando
sabemos que a imagem pode ser facilmente manipulada. A foto-
grafia doméstica, por exemplo, é repleta de encenação. Primeiro
escolhe-se o momento que se deseja fotografar, depois o cená-
rio é preparado. Uma viagem, uma festa de família, o aniver-
sário de alguém, a visita dos avós, um encontro entre amigos...
Sorria! Olha o passarinho! Diga: – X... Abacaxi! Ficou lindo!!! Após
eleger a imagem – talvez a mais artificial, que tenha o sorriso
mais alargado –, passamos aos programas de edição. Apagamos
a pessoa indesejada, aquela que apareceu de repente na foto ou
mesmo aquela que você já não quer mais ver ali (reinventamos
narrativas?). Aplicamos um filtro bonito. Maquiamos detalhes e,
então, postamos nas redes sociais. Publicamos nossa parte nar-
císica. Imprimimos e digitalizamos a representação teatral para
um álbum qualquer com a legítima vontade de prorrogar a nossa
existência, seja aquele momento que julgamos especial ou o nosso
desejo de permanência no mundo.

O espelho produz miragens.


Reflexo invertido.
(Prova distorcida?)
Algo acontece.

232 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Em meio a quimeras do cotidiano, percebemos que a lin-
guagem organiza os pensamentos e os sentidos que atribuímos às
coisas. Qual é o valor do discurso associado à captura? Coloco em
cheque a fotografia enquanto prova absoluta da coisa capturada.
Interessa-me saber como a fotografia se apodera do discurso da
verdade considerando que a verdade é uma invenção fotografada.
Se for possível afirmar que o mundo é imagético, também
é possível dizer que nascemos em um mundo absorvido por lin-
guagens e que somos produto de discursos. Do mesmo modo, o
conhecimento é obra do discurso. As práticas discursivas mode-
lam os modos como concebemos e interpretamos o mundo,
entretanto, “os discursos formam sistematicamente os objetos de
que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o
que eles fazem é mais que utilizar esses signos para designar coi-
sas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato de fala”
(FOUCAULT, 1987, p. 56).
O ato da fala se difere de uma prática discursiva. Vamos
pensar isso a partir da conhecida fotografia “Massacre da Praça da
Paz Celestial”, ocorrido durante a revolução do movimento estu-
dantil chinês, em junho de 1989. Naquela ocasião, os noticiários
exibiram a figura de um jovem rapaz parado em frente aos tan-
ques de guerra que avançavam contra os protestos da República
Popular da China. O grupo envolvido nos protestos dividia-se
entre intelectuais que acreditavam que o Partido Comunista da
China era demasiadamente repressor e trabalhadores que busca-
vam reformas econômicas para minimizar a falta de emprego e
alta inflação que assolava as cidades chinesas. As marchas pacífi-
cas que aconteciam na cidade de Pequim eram uma das caracte-
rísticas desses protestos.

Fotografias infames 233


Diante da pressão dos manifestantes, o Partido Comunista
– que tinha divergências internas – optou por cessar as marchas
ainda que usasse força física contra os manifestantes. O partido
não atenderia as reivindicações. Na tentativa de diluir o movi-
mento, o governo chinês enviou a infantaria e os tanques de guerra
à Praça Tiananmen. O jornal The New York Times publicou que a
morte dos civis ultrapassou o número de 800 pessoas, entretanto,
a Cruz Vermelha chinesa apontava um número de 2.600 pessoas,
além dos quase 10 mil feridos.
O governo chinês expulsou a imprensa estrangeira do país
na tentativa de controlar as imagens que seriam publicadas nos
periódicos. Imagens que colocavam o cenário internacional em
estado de alerta. Além do alto número de manifestantes feri-
dos e mortos nos protestos, uma das fotografias mais impactan-
tes do massacre da Praça da Paz Celestial foi a de Jeff Widener
, da Associated Press. Uma fotografia que está entre as dez mais
divulgadas e conhecidas no mundo.
A fotografia mostra o instante exato em que um civil con-
seguiu “parar” a fileira dos tanques de guerra ao se posicionar em
frente ao primeiro carro. Como um sujeito desarmado, carre-
gando sacolas plásticas, conseguiu essa façanha? Talvez o jovem
não tivesse medo da morte ou naquele instante tivesse ficado
mais evidente sua audácia em nome de uma nação. Invadir a faixa
e cruzar o limite da censura era até então algo idealizado, porém
inédito. A interrupção da marcha encontrou no gesto do jovem o
movimento do Outro – de tantos outros possíveis.
Não se trata de olhar apenas o gesto que “parou” a guerra
– ainda que por alguns instantes. A fotografia parecia ter saído
das grandes telas do cinema por misturar elementos de um real
(quase) ficcional. A imagem sai de seu quadrado, de sua forma,

234 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


desloca o olhar dos leitores para o paradoxo existente entre morte
e vida – em seus múltiplos sentidos (E não é esse o desafio da
captura? Fazer-nos questionar. Dar a volta em torno de algo para
perceber e não definir?).

Jogo discursivo. Eis um espectro imagético que baila diante


de nossos olhos. A presença do passado poderia dar voz a seus
mortos e nos fazer analisar aquilo que eles têm a nos contar. Algo
que ultrapassa as bordas da foto e coloca em evidência parado-
xos de nossa existência. Até hoje ninguém conseguiu revelar a
identidade do rapaz que “parou” a fileira de tanques de guerra.
O “homem dos tanques” ou o “rebelde desconhecido” permanece
incógnito. Pode ser que sua identidade oculta ou aquilo que a
fotografia não consegue revelar tenha o transformado no herói
da guerra.
A captura de Widener foi premiada pela Revista Time que
evidenciou o protagonista da foto como uma das personagens

Fotografias infames 235


mais atuantes do século XX. Será? Quem era esse jovem? Para
onde estaria caminhando? Teria ele planejado enfrentar o tanque
de guerra ou foi um ato não planificado? O que dizer do fotógrafo
– ele entra em cena na hora certa? Coincidência? Destino? Essas
questões me fazem duvidar da captura. Pode ser que o novo herói
apenas estivesse atravessando a rua na volta do supermercado e,
a impressa tenha manipulado o olhar dos leitores evidenciando
o seu interesse. Pode ser ainda que a face do herói não revelada
tenha sido proposital. E se esse homem não tivesse relação alguma
com o movimento estudantil e o grupo de manifestantes?
As imagens em movimento mostram que por duas ou três
vezes o “rebelde desconhecido” se posicionou em frente aos tan-
ques. Na última, chegou a subir no carro e trocar palavras com
o soldado que o conduzia. Novamente ao chão, viu o tanque
avançar e se deslocou para frente do carro. Alguns manifestantes,
temendo sua morte, com os braços levantados assinalavam que
estavam desarmados. Atravessaram o limite da infantaria e reti-
ram o herói de cena. O que restou desse dia foram os enunciados
– ditos e não ditos de um episódio narrado por verdades discursi-
vas – ou o dizível e o pensável sobre o massacre.

Ao considerar a questão da perda e da permanência, convém


indagar: como a fotografia permaneceu (e permanece) na história?
E considerar ainda que a fotografia pode ser entendida enquanto
enunciado. Ela pode ser tomada como um saber, ser aceita por um

236 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


grupo e ser transmitida/reproduzida até que se conserve em si. A
fotografia possibilita que algo seja transformado em enunciado e
se expanda para além da prática discursiva cotidiana, formando
outros sentidos que poderão (ou não) ser aceitos em uma ordem
discursiva.
Se de um lado procuro mostrar que a fotografia carrega
parcelas de encenação (ou como a encenação se hibridiza), tam-
bém evidencio que pesquisadores, historiadores e a própria mídia
tende a tomar a fotografia como documento histórico. Quanto
mais buscamos a representação na imagem fotográfica, mais nos
distanciamos da fotografia da diferença, isto é, do esvaziamento
dos clichês, da repetição e do próprio devir. É preciso cuidar para
que não caiamos facilmente na mesmidade.
Se a ascensão da fotografia calha com a renovação do regime
da confiança significa que, renovando o regime de verdade,
nutrindo a crença de que suas imagens são “a exatidão, a verdade,
a própria realidade” é que a fotografia inspira confiança enquanto
valor documental ao longo de sua própria história (ROUILLÈ,
2009, p. 51).
Entendemos com Foucault que os discursos não carecem
necessariamente de serem organizados, analisados com vee-
mência a fim de diagnosticar parcelas de verdade, nem mesmo
a busca pela originalidade ou a identificação de algo dito ou não
dito na imagem. O enunciado está ligado ao ato de ler, ao modo
como lidamos com os jogos visuais a que somos submetidos
cotidianamente.
O olhar preso a uma leitura que remeta à fotografia a uma
espécie de documento estável é carente de mais atenção. De uma
perspectiva a-histórica que não se prenda ao registro unicamente
atrelado à cultura de um povo, de um espaço ou de um tempo.

Fotografias infames 237


Não quero dizer que isso não seja relevante, ao contrário, sobre
isso já se ocupam muitos campos de conhecimento, entre eles o
da História. O “mais” a que me refiro é o movimento de abrir
janelas, dar passagens. De uma imagem passamos a outra e a
outra e a outra dentro da mesma captura. As perspectivas revelam
a potência no jogo que se faz leitura.
Nosso desafio (enquanto fotógrafos, leitores, professores e
estudantes) consiste em ver a fotografia como um texto aberto.
Deslocá-la de sua origem para conhecer outras coisas. Ampliar
suas dimensões estéticas e até mesmo a aposta educativa da ima-
gem. Perceber que na busca pela verdade (aparentemente con-
tida na representação do real) a fotografia é suscetível ao jogo da
reversibilidade que combina e compõe realidades e ficções.
Se “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são;
metáforas que se tornam gastas e sem força sensível; moedas que
perderam sua efigie e agora só entram em consideração como
metal, não mais como moedas” talvez seja interessante indagar
sobre quantos mistérios se escondem no magnetismo do espelho?
(NIETZSCHE, 1996, p. 57).
Mas, será que em uma captura somos fatalmente condu-
zidos pelo olhar do fotógrafo? Acredito que não. Há diante do
registro fotográfico a ação do leitor. Sombras, formas, entreli-
nhas... o autor instala a expressão de seu pensamento – pensame-
mento-imagem – e o leitor é contaminado em diferentes níveis por
sensações e significados que vão sendo revelados aos poucos, pelo
detalhe da obra.
Foucault (2012, p. 30) atenta a todo discurso manifesto que
repousa secretamente sobre um já-dito:

238 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


[...] este já-dito não seria simplesmente uma frase já pro-
nunciada, um texto já escrito, mas um “jamais-dito”, um dis-
curso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro,
uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro.
Supõe-se, assim, que tudo o que o discurso formula já se
encontra articulado nesse meio-silencio que lhe é prévio, que
continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele reco-
bre e faz calar.

Daí evocar uma pausa na fotografia. A quebra de continui-


dade. Uma irrupção do discurso e de sua presença secreta, discreta,
que se mantém em jogo. Um murmúrio vibrátil que se dispersa, se
transforma, se esconde de olhares, mas que se mantém em roda e
necessita ser suspenso. Foucault (2012, p. 34) questiona: “o que se
dizia no que se estava dito?”.
Buscamos o enunciado que já se entrelaça a outros enuncia-
dos, contextos e regras de seus surgimentos. Observamos a “estrei-
teza e a singularidade de cada situação”; verificamos os sobreditos
da fotografia, suas ranhuras, texturas, densidade, atentando-nos
ao conjunto de enunciados que diz de um objeto ou do próprio
sujeito do discurso (FOUCAULT, 2012, p. 34).
Não nos esqueçamos de que a fotografia é desconcertante
e que o discurso nela contido pode se configurar enquanto um
espaço de “posição-de-sujeito” e de “funções-de-sujeito” diferen-
ciado. A vontade de saber/verdade que se desdobra da fotografia
pode evidenciar os modos como compõe e constrói discursiva-
mente o sujeito e sua subjetividade.
Na fotografia é preciso problematizar aquilo que ficou em
passant, não para encontrar aquilo que o fotógrafo desejou negar
ou afirmar, mas, para nos ocupar de uma leitura que observa as

Fotografias infames 239


relações, os (des)encontros, os fenômenos contidos na captura.
Uma leitura não linear, mas capaz de imprimir a exterioridade dos
discursos contidos na imagem. Uma leitura em que a superfície
seja um valor que nos permita sondar o texto instituído na ima-
gem, os modos como se apresenta, se transforma e gera discursos.
Não vou esgotar aqui o que pode ou não ser dito sobre a
análise do discurso e as práticas discursivas. Sobre isso temos
as obras de Foucault, especialmente A ordem do discurso (2009).
Além disso, Rouillè10 (2009, p. 62) acrescenta que “a despeito do
que, por ingenuidade, cegueira ou espírito polêmico, já foi bas-
tante escrito e dito, nem o exato, nem o verdadeiro são inerentes
à fotografia”. Necessitamos entender como acontece a “produção
de certezas ou de crenças e descrever os mecanismos dos enuncia-
dos e das formas que ela [a fotografia] coloca em jogo”.
Podemos seguir pensando ainda: se os discursos estabele-
cem os regimes de verdades, como algumas fotografias se legiti-
mam como verdade em detrimento de outras? Quem profere o
enunciado? Para quem o profere? Se os enunciados instalam o que
tomamos como verdade num determinado tempo/espaço, como
tomar a fotografia como prova incontestável do “isto aconteceu”?

10 Para aprofundar a reflexão sobre os enunciados da verdade, ver a primeira parte do livro: A
fotografia entre documento e arte contemporânea, de André Rouillè (2009).

240 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Infâmia e Encenação
“O que vai ficar na fotografia
são os laços invisíveis que havia”
(LEONI/LEO JAIME)

Até aqui vimos que a fotografia abre possibilidades de se


pensar as passagens do real ao fotografado, a artificialidade cons-
truída que se assemelha ao real, a narratividade (ficcional) atrelada
às capturas, a fragilidade da representação enquanto constituinte
de verdades, o jogo da reversibilidade/espelho que parte do objeto
estético para tencionar conceitos e teorias. Já sabemos que a foto-
grafia desassossega o leitor por ser paradoxal, ambígua e polis-
sêmica. Como algo inflamável e infame, as fotografias gravam
conceitos e contextos sendo alvo de duras críticas e censuras,
muitas vezes sendo impedidas até de se fazer presentes em expo-
sições e galerias de arte.
Continuaremos agora a visitar obras que permaneceram à
frente de seu tempo para pensar o “isto existiu” de Barthes (1984)
e o “isto foi encenado” de Soulages (2010). Diante da fotogra-
fia (produto) e do ato de fotografar (ação), questiono: qual é a
estética da/na encenação? Para isso, retomo o trabalho de uma
das primeiras fotógrafas da história que se debruçou a capturar o
gênero Retrato na tentativa de ampliar a reflexão sobre fotografia
e encenação.
Falo de Julia Margaret Cameron11. Uma mulher que desa-
fiou seu tempo. Apesar de ter descoberto a fotografia aos 48 anos,

11 Nascida em Calcutá – Índia (1815-1879), dedicou-se a capturar retratos além de temas


históricos, literários e religiosos. A fotógrafa foi uma mulher pioneira. Sua escolha narra-
tiva misturava a subjetividade com a teatralidade, a encenação de seus personagens com o
jogo de luz e sombra. A forma de capturar, os ângulos e os ruídos que sua fotografia exibia
fizeram de sua obra um importante referencial na história da fotografia. É inegável que

Fotografias infames 241


por hobbie, Cameron, de modo singular, trabalha em seus retra-
tos uma tonalidade sépia distinta, que valoriza a densidade do
olhar de suas personagens. Sua estética é assinalada por elemen-
tos da pintura. As capturas apresentam forte expressão dramática
e teatralidade. São retratos que ainda influenciam fotógrafos da
contemporaneidade.
Vemos nas fotografias de Cameron o uso de indumentárias
e adereços que caracterizam o ser fotografado. Cenários e paisa-
gens são dispostos a fim de compor a cena desejada. O figurino e
as poses têm a funcionalidade de nos remeter a uma dada época e
contexto. Cameron exibe uma técnica inusitada que muitas vezes
parece querer confundir à própria captura com pinturas a óleo. E
lembremos que a pintura renascentista usava a câmara escura para
produzir um traço mais realista. No caso de Cameron, o pouco
uso de luz e a predominância de tons escuros ressalta a fisionomia
das personalidades de suas ficções.
Um dado curioso é que além dos seres fotografados que
geralmente eram pessoas de um ciclo muito próximo, a fotógrafa
conseguia registrar também algumas personagens importantes de
sua época como Virginia Woolf e Charles Darwin, por exemplo.
Cameron era exigente e fazia com que seus modelos posas-
sem por horas até que a fotografia atingisse o encantamento
almejado. Seu interesse por fotografar estava ligado às zonas do
desejo e do prazer. Cameron não necessitava desse trabalho para
sua sobrevivência. Era a paixão pela captura que a permitia se
debruçar por horas na montagem de um retrato. O gozo por foto-
grafar tornava a fotografia sua potência, sua pulsão de vida.

o trabalho de Cameron influencia fotógrafos contemporâneos, especialmente aqueles que


buscam registrar “olhares”. Olhares intensos, amorosos, angelicais são uma das marcas da
obra de Cameron.

242 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Barthes (1984, p. 52-53), na contramão de outros autores
que aproximam a fotografia da arte pela pintura, afirma que a
fotografia se relaciona com o teatro, “um teatro de panoramas
animados por movimentos e jogos de luz”. São esses movimentos
que se destacam nos retratos de Cameron que, assim como outros
fotógrafos, usa a fotografia para protestar, por exemplo, contra
a Reforma Religiosa, mesmo se considerando católica fervorosa.
Em seus instantâneos, as modelos são fotografadas com a face
levemente girada. Usam panos na cabeça e os cabelos estão soltos
desejando mostrar uma beleza natural não usual na época. Em
outros retratos, usam asas e elementos ficcionais, crianças fazem
alusão a anjos numa trama que deseja narrar algo além da ima-
gem fixa.
Cameron não estava interessada em capturar imagens con-
vencionais. Por se sentir livre de regras explorava uma verdade
fotográfica que descrevesse os sentimentos de seus personagens.
Como revelava seus negativos em placa de vidro, muitas vezes,
a imagem se revelava desfocada. Por outro lado, ao assumir as

Fotografias infames 243


ranhuras de sua fotografia como um detalhe, um valor, acabava
por se diferenciar de outros fotógrafos e criar a sua marca.
Julia Cameron foi uma das primeiras mulheres a fotografar
dentro de um espaço que anteriormente era dominado pela figura
masculina. Entretanto, seu trabalho não fora reconhecido durante
sua vida. Suas fotografias ganharam destaque após 69 anos de
sua morte, em 1948, com o lançamento da obra Julia Margaret
Cameron: Her Life and Photographic Work, fruto do trabalho rea-
lizado por Helmut Gernsheim. Talvez o que mais me toque na
fotografia de Cameron seja a exaltação da figura humana em
quase Deus, quase angelical, quase não humano ou o contrário
desse enigma, a fotografia revela o sujeito anônimo, esquecido,
incógnito, que me autoriza a evocar o imaginário e devanear por
leituras diversas.

Além de dirigir a cena, Cameron, como uma deusa, ordena


que seus personagens permaneçam estáticos num certo período
de tempo. A teatralidade encena o cotidiano, no entanto, revela

244 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


discretamente a cena montada bem como os elementos que
compõem sua fotografia. Diante da imagem e de nossa possí-
vel identificação com o drama encenado, voltamos a sonhar. Para
Soulages (2010, p. 67) “nosso sonho é ainda mais vivo e perti-
nente à medida que a foto se afirma como encenação, ao passo
que, diante do real ou do real encenado, somos escravos do sen-
tido a encontrar”.
Cameron reescreve histórias religiosas, mitologias e outros
temas com poesia feita de luz. Na fotografia acima a artista volta
à figura da Madona aspettante, a Madona vigilante, a Madona ado-
lorata. Seria a interpretação da Virgem Maria? Retrato divinal
da maternidade. Mary vigia a criança ausente da foto. Seu olhar
é afável. Soulages (2010, p. 68) questiona: “como sabemos que é
para uma criança que ela está olhando? Por causa da legenda?
Aqui o texto dá sentido à foto”.
O trabalho de Cameron excede a fotografia representativa
para outra dimensão estética – a encenação. Cameron recebeu
influência da pintura bem como o incentivo de artistas, drama-
turgos, poetas, músicos e diretores de teatro. Entretanto, sua obra
teve que lidar com a forte crítica da fotografia tradicional, que na
época valorizava a representação do real na fotografia. Cameron
fez escolhas, contrapôs as convenções fotográficas, foi criticada
por seu estilo de vanguarda, sobre produzir algo sem utilidade.
Apresentar as fotografias sem remanejá-las, mostrando suas
manchas e ranhuras davam autenticidade e reconhecimento ao
trabalho de Cameron. Ao teatralizar o habitual, a artista mostrava
que o extraordinário estava no modo de realizar a captura e não a
captura em si. Para Soulages (2010, p. 74) “ela abandonou a busca
do ‘isto existiu’ para escolher o ‘isto foi encenado’. O objeto a ser
fotografado não é mais do que uma oportunidade de encenação.

Fotografias infames 245


A estética do retrato articula-se então com a da encenação no
interior de uma estética do ‘isto foi encenado’”.
A preocupação de Cameron com o processo de criação se
relaciona com aquilo que André Bazin menciona sobre a essência
da fotografia. Significa que a etapa mais interessante dentro da
captura é o “próprio fazer, suas modalidades de constituição [...]
a solução não está no resultado, mas na gênese”. Isso extrapola a
ideia do mimetismo para um continuum da imagem e suas rever-
berações (DUBOIS, 1993, p. 35).
A fotografia deseja surpreender, imobilizar um movimento
rápido, fazer história, poder dizer dos sujeitos de uma época,
mostrar costumes, representar, mas também, mascarar significa-
dos e reapresentá-los. No fundo, “a fotografia é subversiva, não
quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é
pensativa” (BARTHES, 1984, p. 62).
Gosto de pensar que a fotografia encenada é oscilante,
indulgente, não tem a pretensão de se assumir enquanto prova
(de nada), pode sim ser associada a um protesto, uma obra que
permite entrar em jogo a manipulação (do sujeito, do produto,
da subjetividade) do fotógrafo/leitor, a exploração (da realidade
e suas perspectivas), além de elementos que vão distingui-la da
fotografia documental.
Nos registros de Cameron, identificamos “quatro objetos
de encenação: o cotidiano, a cultura religiosa, a história e a lite-
ratura”. Seus retratos (abertos) dão passagem à criatividade, nos
estimulam a imaginar os contextos e os sentidos em que as cap-
turas foram realizadas. Algo que aparece na foto pode não ter
existido, mas ter sido encenado – o que para Cameron é um valor
que tonifica a potência da imagem que se afirma em-cena-ação
(SOULAGES, 2010, p. 66).

246 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Uma ordem é dada. As personagens estão designadas a
cumpri-la. Ajustam-se às lentes. Não há foco definido. A cena
é criada. Está aberta e em composição. Se produz um teatro dis-
creto ou a teatralização de um instante. Quem seduz a câmera? O
enquadre? A harmonia dos gestos? A criação? Nas fotografias de
Cameron, a literatura se transforma em arte imagética modelada.

Em The Kiss of Peace (1869), estamos diante do poema Saint


Agnes Eve, de Alfred Tennyson. Na captura aparecem duas figu-
ras. Os rostos estão levemente virados, harmonicamente orga-
nizados para produzir um encaixe entre as faces. A admirável e
enigmática moça mais velha toca seus lábios na testa da menina
de olhos tristes. Imersas em seus submundos, as personagens
parecem distantes, talvez estejam mirando o sonho de Saint Agnes
Eve ou qualquer outra coisa que fuja da melancolia sugerida nas

Fotografias infames 247


pinturas pré-rafaelitas ou do poema de Tennyson (SOULAGES,
2010, p. 70).
A presença da mulher é capturada por uma ótica de olhar
feminino que foge do registro de mulher objeto numa sociedade
machista. O beijo da paz promove o encontro de duas mulheres
que se tocam em cena, mas será que elas se relacionam? O olhar
nostálgico da mulher mais velha parece evocar lembranças de um
tempo não vivido, mas esperado e desejado.
Novamente notamos a influência religiosa estampada na
metáfora: a mulher que se faz divina, que se faz humana. O manto
envolve a angústia e a intimidade de ambas. O beijo, que (não)
acontece quase revela o segredo para além do divino. (Quem sabe
esse é o mistério que nos fascina). A fotógrafa parte de um poema
para criar linhas de fuga – uma estética da encenação – imagens
da fantasia.
Por um lado, a fotografia assume a marca de um tempo-
-passado, um tempo que já não existe, como “testemunho natu-
ral daquilo que foi” (BARTHES, 1984, p. 139), por outro lado,
sua potência nos permite elucubrar, movimentar sentidos sobre
a imagem que surge no tempo-presente. Ao se desprender da
própria cena, ela inaugura outro lugar em que as divagações são
possíveis e desejáveis.
Tanto Foucault quanto Cameron provocam o mundo com
suas produções. O filósofo foi a manicômios, buscou os sujeitos
da loucura e da margem para nos fazer pensar sobre a fabricação
de corpos e mentes “sãs” e “disciplinadas”. A perspectiva foucaul-
tiana inflamada pelo desejo de singularidades pulsantes reverbera
um grito: abaixo a vigilância, a domesticação do sujeito, a domes-
ticação de olhares, leituras e pensamentos. Cameron, a seu modo,
rompeu com a sociedade na qual estava inserida. Suas lentes

248 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


encararam a autoridade expressa no comportamento de homens e
mulheres machistas. Seu trabalho conseguiu irromper com a esté-
tica dominante de uma época para revelar ao mundo outras cenas.
Com Cameron percebemos que o jogo do espelho é inven-
tado, encenado, dramatizado. Suas fotografias fazem nossos olhos
dançar. A fotógrafa nos apresenta um devir artista que está sem-
pre em risco e foge do clichê. Os retratos infames de Cameron
seriam uma espécie de resistência à verdade? Estaria ela pro-
pondo (e compondo) fotografias da diferença? Se o seu modo de
fotografar produzia rupturas em 1863, não seria o caso de hoje
dispensarmos a didática explicativa para pedir ao leitor outras
investidas com a imagem? Como reinventar a fotografia para arti-
cular conhecimento e ficção?

Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – Obras Escolhidas,
v. I. 7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1994.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1993.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collége
de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1070. 18. ed. Tradução:
Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola,. 2009.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 8. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2012.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo:
Ateliê editorial, 2009.

Fotografias infames 249


ROUILLÈ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea.
Tradução Costancia Egrejas – São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2009.
SOULAGES, François. Estética da Fotografia: perda e permanência.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.

250 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Escavações dobras, rasuras
e vazios no papel jornal
(Coletivo Fabulografias)
Alda Romaguera
Alik Wunder
Marli Wunder

D
obras, rasuras e vazios no papel-jornal são provocações de
encontros de criação de fotografias experimentais e escri-
tas inventivas, que apostam nas conexões entre a poética
e a política como forças dos pensamentos. Como gerar novos e
improváveis sentidos a partir das urgentes palavras-imagens jor-
nalísticas que, em desuso, beiram o sem-sentido... Logo pensei
de escovar palavras, ressoa Manoel de Barros em suas Memórias
Inventadas:

Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram


conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamo-
res antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu
já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas
oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas.
Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro
esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo
que ainda bígrafos (BARROS, 2003, s/p).

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 251


Ex-criptas que se dissolvem em papel molhado, dançante,
que se movem em transparências, viram película, porosa pele,
superfina superfície. Ato inventivo que faz nascer outras falas e
imagens desde o já dito e o clichê jornalístico que se fixa nas
imagens e palavras-jornal, conchas de clamores antigos. Como sub-
verter essas palavras e imagens que, todo dia, desejam vender-nos
verdades? Como deixar empalidecer e cintilar de outra maneira
a palavra e a imagem que um dia enunciou emergentes fatos?
Como abrir, nas malhas do discurso jornalístico, fissuras para a
composição de outras narrativas imagéticas e verbais?

252 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Neste capítulo, trazemos traços de um percurso de criação
coletiva do Núcleo de Leitura e do Coletivo Fabulografias, que
foi disparado por um instigante convite a uma exposição reali-
zada pelo grupo de pesquisa Multitão do Laboratório de Estudos
Avançados (Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças
Climáticas – Rede Clima):

Após uma longa seca, com as chuvas de março, o Museu da


Imagem e Som-Campinas foi inundado de notícias. Uma verda-
deira enxurrada de manchetes, opiniões, informações… invadiu o
museu. O fenômeno resulta de uma espécie de reação automática,
de resposta natural, ao desaparecimento (da água, dos peixes, dos
pássaros, da sensibilidade, da política…). Depois que as notícias
vazaram surgiu “Aparições”, uma cidade de papel (papel jornal,
revista, papel-tela-do-cinema, papel-fotografia, papel-tela-do-
-computador, papel-pintura…), inventada por diversas ocupa-
ções que artistas, coletivos e pesquisadores criam ao enfrentar o
que podem as imagens, palavras e sons diante da violência do
desaparecimento desde dentro das lógicas dominantes arquivis-
tas, que atravessam ciências, artes e comunicações. Ocupações
aberrantes em busca de expressão das potências da gramática de
criação, em que imagens-palavras e sons são expostos às forças de
futuros abertos e recombinantes.

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 253


A partir desse convite, num primeiro movimento de cria-
ção, levantou-se a possibilidade de que, após a enxurrada de notí-
cia que invadiu a cidade, surgissem outras imagens e narrativas.
Palavras balbuciantes que não aparecem nos jornais, vozes de
pessoas consideradas “invisíveis”: travestis, indígenas, uniformi-
zados, moradores de rua, dentre outros. Partimos para um esforço
de criar encontros e escutas com essas pessoas e, a partir dessas
experiências, produzir pequenos textos (minicontos) e imagens
que problematizassem o espaço urbano e a relação dessas pessoas
com o espaço social no qual estamos inseridos. Durante um mês
criamos situações de escuta para escrita dos minicontos a partir
das histórias ouvidas nas ruas, lidas, lembradas... Desses gestos de
escuta, passamos ao gesto de escrita não das histórias em si, mas
de sensações, reverberações desses encontros. Minicontos, frases,
poemas... fizeram-se em oficinas de escrita literárias...

Eu era menina e já escrevia memórias envelheci-


das. Ditas pelas sobras incansáveis das linhas sobre
a folha, iam e vinham inacabadas à procura de

254 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


meus dedos frágeis, das mãos trêmulas, das lem-
branças ermas. Era um deserto a escrever sobre a
novidade do meu rosto: envelheço. O tempo é novo,
curta é a palavra, engatinho sobre a página. A
baba, o berro e o leite mancham a tinta, desfazem
as linhas e as letras. Tenho fome de novos nossos,
meus sons não cabem neste alfabeto. 

 ! que siete años?!


No llegava a CINCO se quiera!
Sempre a nos servir.
As mesmas mãos, a mesma moça de olhos cansados,
o mesmo sotaque, o mesmo corpo de borco no chão coalhado
de sangue pela calçada.
– Ela se calou? Perguntou com um obstáculo na garganta.
– Não. Respondeu com os olhos quase vermelhos.

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 255


Sonhos pestanejavam. Fugas possíveis, corpos que há décadas não se banhavam.
O sabonete, a dádiva. Ode à vida!

 – O que pode ser visto, falando? O que


pode ser procurado, enterrando?
O que pode ser raspado, abrindo vazios?
Que vidas? Que terras? Que vazios?
O que há de morrer e de ser enterrado
para sanar esta fome de novos nomes para
garimpar vozes e escavar rumores? 

Sempre gostei de inventar memórias.


Inventar é tarefa sacra do espírito.
Ainda ontem inventei um amor, ondas
aconchegantes, passeios sem labor. Mas a
invenção nem sempre é inventiva. Astuta
e corretiva, separou o coração. Que fazer
agora, se na arte de inventar sou mesmo
um lenhador?

Vens abaixo em chamas.


Queima e faz ceder paredes sossegadas. Em jorros pela fissura que espreita aberturas,
socos na palavra sensata e sana. Insano sigo. A quem?
À AGUA QUE ACALMA, OU À PÓLVORA QUE PO(L)VOA. 

Liberdade tem cheiro de mar.


Um papel aberto se deixando boiar
 
Oceano ao certo! Transbordo este é o lar.
Areia perto, deserto o pensar
“e o amor no breve espaço de beijar...”

256 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O beijo no breve espaço de (A)mar
Artimanha: segui as pegadas que teu cheiro deixou no vento.

Mesmo após as chuvas de Macondo,


Úrsula permanecia amarrada na árvore do quintal:
Mulher-tronco-raiz-sólida-solidão

Ele trabalha quando anoitece.


No silêncio da noite, vela o corpo doente, inerte.
Limpa, troca, medica e consola.
Fica no escuro da casa, meio anjo, meio espectro,
sugando sonhos e bocejando esperas...
De novo, limpa, troca, medica e consola.
No escuro de um fim eminente, atende e não dorme.
Resta-lhe um único desfecho
Acordar por dentro a sugar sonhos e medos.

Queria, assim como o poeta, raspar as tintas com que me


pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções mais
verdadeiras e ser um animal humano que a natureza

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 257


produziu. Descascar, tirar máscaras e camadas uma a
uma e, debaixo das velhas tintas desbotadas e encardi-
das, achar o tijolo, raspá-lo, voltar ao pó. Ser poeiras e
voar com o vento, desfazer-me em grãos tão pequenos e
minúsculos que não podem mais ser vistos, mas estão lá.
Existência que não se vê, existência-sensação.
Desértica força de grãos, o deserto foi mar.
Pulverizar-me ao vento, incrustar-me em novas
superfícies, virar sólidas e impermanentes existên-
cias, em camadas, em superfícies, em (de)composição.
 Seu corpo, in-conforme, desacordava desejos.
Desejos inconformes desacordavam o corpo.
 
 O amor em diferentes versões.
Aversões.
Há versões!
Da escrita!
 Kenya
Sangrya borbulhante Kente
jorra e morre
Molha a terra
Encena a dor
De um continente. 

***

Em meio a essa experiência de escuta e criação escrita de


improváveis notícias de jornal, embrenhamo-nos como artistas
visuais que criam a partir da materialidade do jornal. Artistas que
pelo gesto háptico de devorar o papel-jornal pelas mãos, mais
que pelos olhos leitores, tomam das palavras ditas, o indizível.
Inspirados nas fotografias de Francesca Woodman, de Marli

258 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Wunder, nas imagens de Tom Lisboa (Palimpsestos) e Leila
Danzinger (Todos os nomes da melancolia) em obras que tem como
suporte o papel-jornal, e pela poesia Escova, de Manoel de Barros,
o Núcleo de Leitura e o Coletivo Fabulografias propuseram-se
a criar, em uma intervenção pela poética do fragmento e fazer
surgir das palavras-jornal o indizível.
Nas mãos do artista Tom Lisboa, o jornal velho se faz fluido
em líquida transformação. O pincel molhado esfrega camadas de
tinta, em sua obra Palimpsestos, e convida à raspagem e ao des-
cascamento de camadas de significações. O artista, nessa inter-
venção, exercita o apagamento das palavras nos jornais e provoca,
pela experiência desse gesto, uma composição poética ao puxar
e fazer saltar do verso da folha uma imagem, um fragmento de
escrita. As composições inusitadas criadas entre frente e versos
das páginas de antigos jornais refazem os enunciados por sobre-
posições e apagamentos.
Leila Danziger nos traz outras provocações com suas obras
“Todos os nomes da melancolia”, que se fazem sobre páginas de
jornal parcialmente apagadas que recebem outras imagens e pala-
vras coladas e carimbadas. A artista cria composições, que abrem
novas temporalidades desde dentro do tempo midiático, criam
desordens e ruínas que evidenciam o jornalismo como produ-
tor de palavras utilitárias que nos querem apresentar um mundo
material. Apagado, raspado e desorganizado, o excesso de notícias
ganha buracos, vazios, desgastes... As obras afirmam o que há de
esquecimento, sem-sentido e provisório nesses suportes midiáti-
cos cotidianos que desejam evidenciar fatos e verdades.

O que move meu trabalho é o princípio do desgaste, do


acúmulo da profusão. Profusão, no entanto, austera, que visa

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 259


reverter-se em seu contrário – transformar o excesso em bal-
bucia -, salmodia de gestos ínfimos. Verso e reverso do papel
são trabalhados e o desejo, sempre presente, é penetrar em
sua substância opaca e absorvente. Fazer, desfazer, refazer,
colar, descolar. Todo resultado é provisório. Os títulos como
colorações. (DANZIGUER, p. 164, 2012).

Leila Danziger e Tom Lisboa nos jogaram à criação com


a materialidade do papel-jornal e a subversão de suas palavras e
imagens pelo apagamento, rasgo e rasura. Francesca Woodman,
fotógrafa americana, emprestou-nos suas imagens para adensar
ao jornal outras temporalidades, outros corpos, outras forças indi-
zíveis de corpos femininos envolvidos e emaranhados em espaços
de abandono. Imersas nessas inspirações artísticas, nas escritas
literárias e em inúmeras páginas de jornais, lançamo-nos a uma
experiência fotográfica, a um jogo com palavras, imagens e com o
inusitado e provisório.

***

260 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Bacia e água, cola e tesouras, folhas de jornal. Uma máquina
fotográfica, uma luz da ensolarada manhã, nas sombras da varanda.
Conversas, versos, minicontos, experimentações com papel jornal.
Inspirando melancolias, em todos os nomes de Leila Danziger,
fitas-crepe raspam tipos, tiram tinta, decalcam fios de tex-tu(r)
alidades. Molham, mexem, amassam, escrevem, cortam e recor-
tam, raspam, alisam e clic. Disparos de Marli Wunder seguem
os gestos de pinga e escorre e colore e mistura e clic. Farfalham
em folhas papéis esparsos exprimindo escritas. Imagens surgem
embebidas numa poética reviravolta que des-configura figuras e
palavras. Mixagem mestiça, fotografias de Francesca Woodman
a escavar fronteiras no entre líquidos e liquefeitos textos. Outras
texturas. Escavações: raspagens e esgarçamentos imagéticos.
Surge um azul cinzento e leitoso, num des-foque emaranhamento
de letras e linhas e planos. Na revelação, outras escolhas: tridi-
mensionalizar fotocomposições, des-alinhar papéis-foto, vincar,
dobrar superfícies nas quais escondem-se e revelam-se escritos
poéticos de fragmentos escavados. Eu queria ir atrás dos clamores
antigos que estariam guardados dentro das palavras.
Lascas, camadas que se (des)pregam, vestígios... Provocar
aparecimentos (de)mol-indo superfícies por arranhões, raspagens
nas paredes, chãos. Escavar, escovar as palavras para escutar o pri-
meiro esgar de cada uma, escovando das palavras suas text-uras,
ranhuras de textos, des-casca-mentos. Arranhaduras, raspas que
se criam por fragmentos de contos, nos/dos escombros de remon-
tadas oralidades e significâncias, ressoando clamores guardados
no corpo das palavras, com suas muitas oralidades remontadas e
muitas significâncias remontadas.

***

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 261


262 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)
Depois que as notícias vazaram surgiu “Aparições”, uma cidade
de papel no Museu da Imagem e Som. Da escuta, das escritas,
das mixagens entre fotografias, jornais, cola, palavras, água e luz,
outras dobras, fotografias em suportes vários, desdobradas em
várias dimensões criaram uma cidade de papel-jornal, uma expo-
sição. Fugas possíveis?

Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 263


264 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)
Escavações dobras, rasuras e vazios no papel jornal 265
Referências
BARROS, Manoel de. Escova. In: ______. Memórias inventadas: A
infância. São Paulo: Planeta, 2003.
DANZIGER, Leila. Todos os nomes da Melancolia. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2012.

266 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


A experiência da escrita em A paixão
segundo G.H. De Clarice Lispector

Debora Souza
Alberto Amaral

Ali estava eu boquiaberta e ofendida e


recuada – diante do ser empoeirado que
me olhava. Tomo o que eu vi: pois o que eu
via com um constrangimento tão penoso e
tão espantado e tão inocente, o que eu via
era a vida me olhando
Clarice Lispector.

Introdução

E
ste trabalho é o resultado dos diálogos entre a reflexão filo-
sófica de Michel Foucault e Gilles Deleuze e a experimenta-
ção crítico-literária de Maurice Blanchot. O que ambos têm
em comum é o uso de seus pensamentos como um exercício de
liberdade. Foucault, em sua obra As Palavras e as Coisas, ataca o
conceito de filosofia do sujeito.
Tanto Foucault como Deleuze e Blanchot percorreram
caminhos distintos. Michel Foucault contribui com o pensa-
mento, ao deixar, de forma muito particular, uma forma de pensar
a experiência humana. Dessa forma, Foucault efetua uma relação
entre a amizade – a tentativa de abordar o outrem – e o escrever,
e dessa relação, criam-se momentos em que algo é lido/escrito
ou que alguém escreve/lê. Deleuze e Blanchot partem de uma
crítica comum: ambos questionam as ilusões, nas quais se apoia o
pensamento moderno.
Uma dessas ilusões, talvez a maior delas, consiste em eleger
o homem como motivo principal para a criação e o julgamento
dos saberes. A discussão é uma atitude moderna que, na opinião
dos dois teóricos, deve ser ultrapassada, evitando-se qualquer
outro eixo centralizador.
Ainda de acordo com Blanchot e Deleuze, a literatura nos
desperta do sono antropológico. Ela constitui um não saber que põe
em questão os sujeitos, as sociedades e suas verdades.
A partir dessa premissa sobre a literatura, passamos a refletir
sobre as questões que a literatura nos revela em A Paixão Segundo
G. H. de Clarice Lispector. Para Foucault, a literatura é uma forma
de atualização do movimento repetitivo da linguagem derivado
de uma nova experiência: a experiência moderna. Contudo, como
a literatura se caracteriza? Que elementos contribuíram para a
sua criação? Se o movimento da escrita é atualizado, não há, por-
tanto, um fundamento (palavra anterior) atualizado no ato do
nascimento da literatura, logo, a questão “O que é a literatura?” se
encontra no próprio ato da escrita. E é nesse ato que encontramos
sua resposta e sua formulação. E é ainda nesse ato que se apre-
senta uma recusa e um sinal, que define algo que seria a essência
da literatura, o olhar sobre o livro de Clarice Lispector: A Paixão
Segundo G.H, que nos mostra todas as angústias do ser consigo
mesmo, e seu total “aniquilamento do ‘eu’” como Benedito Nunes
nos aponta:

Não é sem resistência que G.H. cede à atração dessa reali-


dade impessoal de que tem, por um contato físico de todo o

268 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


seu corpo, um conhecimento participado. Até sucumbir ao
êxtase que a integra à exterioridade da maneira viva. G.H.
está dividida entre o desejo de seguir o apelo do mundo abis-
mal e inumano onde vai perder-se e a vontade de conservar
a sua individualidade humana. Tudo o que tem, inclusive a
esperança, ser-lhe-à arrebatado no domínio da identidade
pura que lhe foi entreaberto (NUNES, 1973, p. 58).

Em Linguagem e Literatura, Foucault (2000) aponta a real


importância da escrita para a questão da literatura. Ele problema-
tiza a relação de continuidade entre a história da linguagem e a
história da literatura. Ele diz que esta aparece em um determinado
tempo, devido a certos acontecimentos particulares. Foucault cria
polêmica ao dizer, por exemplo, que não havia literatura latina
ou grega e que, se os escritos de autores gregos, como Sófocles,
são entendidos, hoje, por nós, como literatura, é porque utiliza-
mos dessa construção moderna para nomear, o que ele considera,
as obras de linguagem do passado, pois para ele, a literatura é
algo muito particular que surge no período entre o final do século
XVIII e o início do século XIX. Mas o que seria tão particular
assim para não considerarmos a existência de uma literatura antes
desse período?
Nesse texto, Foucault utiliza uma tríade de elementos cons-
titutivos e inerentes ao escrever, para assim refletir sobre o surgi-
mento da literatura. Esses três elementos são: a linguagem, a obra
e a “literatura”.
Com isso, queremos dizer que, a partir do século XVIII,
a “literatura” – o terceiro elemento da tríade exposta – passa a
mediar um novo tipo de relação entre os dois outros elementos: a
obra e a linguagem. Essa forma de relacioná-los tem um caráter

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 269


ativo, pois, quando a repetição da linguagem – que faz nascer a
literatura – emerge, não há mais fala anterior vinda de fora a ser
retomada, seja ela divina ou de tradição. Ela é ativa, porque não
rememora, nem relata nada anterior à escrita. O escrever se torna
ativo, afirmador, repetindo a linguagem em um movimento per-
manente que não leva em conta nada fora do ato que o traz ao
mundo.
Escrever sobre a obra clariciana é transitar pelo silencio
de Jonh Cage, assim, do ponto de vista do questionamento do
sujeito, visualizamos a obra A Paixão Segundo G.H de Clarice
Lispector como um grande rizoma, na qual não há início nem
fim, mas simplesmente um espaço. Esse termo rizoma é em refe-
rência ao conceito utilizado por Deleuze e Guattari (1980), que
buscaram na botânica sua análise. Desse modo, para esses autores,
as plantas Rizomáticas apresentam “formas muito diversas, desde
sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até a sua
concreção em bulbos e tubérculos” (DELEUZE; GUATARRI,
1980, p. 12).
Logo, ao observar a obra de Clarice como Rizomática, é afir-
mar que essa obra constitui-se enquanto um campo de possibili-
dades, ou seja, que essa obra pode nos levar para várias direções de
significados. Em que não há um suposto início que justifique tal
obra, tampouco um fim que explique esse emaranhado de cone-
xões. Em vista disso, buscamos interpretar A Paixão Segundo G.H
através de possíveis alianças, como propõe Lília Lobo (2004).
Essas alianças entre as coisas são realizadas através de “conjun-
ções” que “desenraiza todo o fundamento, a ilusão da origem ou
de um ponto de chegada, uma reversão de toda a ontologia do
verbo ser”. Contrário à identidade, o rizoma tem por princípio a
heterogeneidade e a multiplicidade” (LOBO, 2004, p. 198).

270 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O aniquilamento do eu
A escrita é sempre solitária, já que nada revela e nada fala,
nada transmite a ninguém. Escrever é deixar calar a própria voz,
é apagar o eu e tornar-se um desconhecido aos próprios olhos.
Em lugar do eu se insinua o vazio, o eu, o impessoal. Aquilo que
não pode ser dito e, no entanto, não cessa de tentar se inscrever.
O escritor deve abandonar seu “eu”, com o propósito de poder
captar, o irredutível silêncio da obra. Este, secretamente se anun-
cia nos livros, no entanto, das palavras sempre escapa. O silêncio
será sempre a promessa de um dia deixar-se capturar conforme
Blanchot nos mostra:

O que fala nele [no escritor] é uma decorrência do fato de


que, de uma maneira ou de outra, já não é ele mesmo, já não
é ninguém. O “Ele” que toma o lugar do “Eu, eis a solidão
que sobre vem ao escritor por intermédio da obra [...] “Ele”
sou “eu” convertido em ninguém (BLANCHOT, 2011, p.
18-19).

Em Clarice, a escrita é uma entrega fascinante à ausência do


tempo: quando o presente é suspenso, passado e futuro se reve-
lam e retornam sempre entrelaçados. Escrever é fazer da coisa
uma imagem que, longe de representá-la, retrata sua ausência,
sua impossibilidade de ser sempre a mesma, sua instabilidade no
tempo e sua falta de significação. Escrever, portanto, é denun-
ciar o vazio que se esconde por detrás de cada palavra. Lins nos
aponta que

a escrita clariciana tende a embaralhar a fronteira entre pala-


vra e música – música como corpo – que acompanha como

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 271


se a palavra não fossem senão uma só carne, continnuun
sonoro e coreográfico. [...] uma escrita que possuiu a capaci-
dade de decifrar o corpo do instrumentista – diríamos quase,
do escritor – como um corpo bailarino (LINS, 1995, p. 45).

A impossibilidade da fala, de dizer o que realmente interessa


resulta quando o mundo e seus objetos deixam de ser ilusoria-
mente familiares ao olhar. O familiar é um atributo do domesti-
cado, daquilo que se fixa no tempo, adquirindo uma identidade.
Desvendar o silêncio por detrás das palavras é justamente dis-
solver as identidades, espantar-se com o óbvio, procurar em cada
coisa a face terrível da vida, a matéria orgânica que pulsa, e não
define um só sentido. Captar a vida implica o susto de se estar
vivo.
Nesse sentido, a literatura não é uma imitação do real, uma
representação das coisas concebidas no mundo particular do
escritor. Não é obra de um eu que representa para si sua vida, seu
trabalho e sua linguagem. O escritor, nesse caso, é alguém que
se desvencilhou de sua individualidade para capturar o intenso
trabalho da vida que se esconde por trás da organização do eu.
Despir-se do seu eu, faz com que o escritor mantenha uma
relação particular com a vida, mantendo-a perto da experiência
da morte. Levar a vida em compasso com a morte é experimentar
um turbilhão de forças, de fluxos e de sentimentos que só se apre-
sentam aos que verdadeiramente são mortais.

Morrer é, assim, abranger a totalidade do tempo e fazer do


tempo um todo, é um êxtase temporal: nunca se morre agora,
morre-se sempre mais tarde, no futuro, um futuro que nunca
é atual, que só pode chegar quando tudo estiver consumado,

272 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


não haverá mais presente, o futuro será sempre novo passado
(BLANCHOT, 1987, p. 7).

O devir
O conceito de devir é de fundamental importância para a
forma moderna de se lidar com o tempo. A linearidade, a deter-
minação, o encadeamento necessário entre passado, presente e
futuro são bruscamente dissolvidos, postos em cheque pelo devir.
Com a anulação do tempo acumulado, que pesa sobre os ombros
dos sujeitos modernos, são suspensas também as identidades
determinadas, as dualidades, as oposições entre bem e mal, entre
sentido e paradoxo.
Deleuze parte de Platão para formular o conceito de devir.
O filósofo grego definira o mundo em duas dimensões: uma das
coisas limitadas e medidas e das qualidades fixas; outra de um
puro devir louco, que não para nunca e provoca uma explosão no
tempo, fazendo coincidir o passado e o futuro. Esse puro devir
não seria atributo nem do mundo das Ideias, nem das cópias
sensíveis. Estaria, porém, situado debaixo de ambos, como uma
névoa que, quando espessa o bastante, pode tudo mais ocultar.
A partir da filosofia de Platão consideramos que o devir
louco guardava uma relação muito particular com a linguagem,
visto que ela não só fixa os limites de todas as coisas, como tem
o poder de ultrapassá-los. O devir opera na (e pela) linguagem,
destruindo a linearidade, dissolvendo o familiar, para que em
seu lugar surja o estranho, e fazendo o bom-senso afogar-se em
paradoxos. Essa tão espantosa inversão funciona como um des-
colamento efetuado, no limite entre a linguagem e o sujeito do

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 273


enunciado, de tal maneira que este é destituído de seu próprio
nome. Segundo Deleuze (2009, p. 1):

O nome próprio ou singular é garantido pela permanência


de um saber. Este saber é encarnado em nomes gerais que
designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com
os quais o próprio conserva uma relação constante. Assim, o
eu pessoal tem necessidade de Deus e do mundo em geral.
Mas quando os substantivos e os adjetivos começam a fun-
dir, quando os nomes de parada e repouso são arrastados
pelos verbos de puro devir e deslizam na linguagem dos
acontecimentos, toda a identidade se perde para o eu, para o
mundo e Deus.

Na obra A Paixão segundo G.H, as linhas de fuga da per-


sonagem do plano do real são múltiplas. Na escrita clariciana, o
sentido não está mais atrelado às estruturas do texto. Essa escrita
sai do seu espaço habitual, que é o espaço de fixação, e encontra
um devir.
O devir é corpo? Ele é no corpo? A carne se desgoverna pelo
excesso de palavras? As palavras se fincam como agulhas encon-
tradas anos depois de serem engolidas? As carnes atravessam o
tempo com a mesma linguagem? Para ensaiarmos uma resposta
para essas perguntas, ou novas perguntas para elas, que nos apro-
fundemos mais no corpo do devir (LINS, 1995).
Os Estoicos, filósofos amantes dos paradoxos, possuem
uma concepção do corpo utilizada por Deleuze na composição
do conceito de devir. Segundo eles, havia os corpos com suas
qualidades, atributos e estados de coisas próprias. Estes estavam
mergulhados no presente, pois os corpos só existem no espaço e

274 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


no tempo presente. As relações entre corpos não são de causa e
efeito. Todos os corpos são somente causas uns em relação aos
outros. Porém, os efeitos das misturas entre os corpos não são de
natureza corpórea. Não são qualidades nem atributos físicos: são
atributos lógicos. Não são as coisas e seus estados: são aconteci-
mentos. Não são substantivos ou adjetivos: são verbos. Não é um
presente vivo: são infinitos, são o devir que ao infinito se divide
em passado e futuro, mas que sempre escapa ao presente. Disso
decorre uma apreensão diferente do tempo para os corpos e para
seus efeitos. Os corpos agem e padecem no presente, esse é o
seu tempo. Os efeitos, os acontecimentos, advêm na insistência
contra o tempo, pois passado e futuro se enlaçam e dividem ao
infinito cada momento presente.
O Devir envolve os corpos, permitindo-lhes o abandono dos
territórios repetidos, dos caminhos já traçados, das verdades há
muito aceitas. Estar em devir é habitar a tangente do tempo, e
fazer de si uma sempre inconclusa na criação. Problematizando
o processo de metamorfose sofrido pela personagem G.H do
Romance A Paixão Segundo G.H a um “Devir-animal”, em que
refletimos sobre a metamorfose da personagem. Como um meca-
nismo de resistência frente ao conjunto de disciplinas disparadas
por suas ambiguidades – configurado como processo de linha de
fuga às relações de poder existentes em sua vida repleta de duali-
dades em buscar do seu “eu”.
Para se permitir a passagem do Devir, é preciso tornar-se
capaz de entregar-se ao instante, perder o próprio rosto, esque-
cer-se das lembranças, ausentar-se das significações. É preciso
permitir ser atravessado por muitos fluxos, que não se reduzem
às representações humanas. Há devires animais, devires homem,
devires mulheres que não consistem em imitar um animal, um

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 275


homem ou uma mulher. Um Devir não é um tornar-se, mas é
uma experimentação da vida em suas forças múltiplas que se
encadeiam, se separam e depois passam, dando lugar a outras.12
A multiplicidade dos devires desloca as oposições, pois já
não se trata de pensar ou isto ou aquilo. Trata-se de poder suportar
o isto e o aquilo, compondo variadas linhas de subjetividade. Sim,
para Deleuze a subjetividade não se reduz ao mundo humano. Ela
é composta por todo o conjunto da matéria, dos seres vivos, das
máquinas, das linguagens, das sociedades que se relacionam no
tempo e na história. A subjetividade não se reduz ao dentro em
oposição ao “fora”, nem ao sujeito em oposição à sociedade. Ela é
isto e aquilo, pois,13

Cada indivíduo, alma e corpo, possui uma infinidade de par-


tes que lhe pertencem sob uma certa relação mais ou menos
composta. Cada indivíduo, também, é composto de indiví-
duos de ordem inferior, e entra na composição de indiví-
duos de ordem superior [...]. Eles se afetam uns aos outros,
à medida que a relação que constitui cada um forma um
grau de potência, um poder de ser afetado (DELEUZE;
PARNET, 1998, p. 58-57).

12 Roberto Machado nos mostra que o devir é o enlace de duas sensações sem semelhanças
que cria uma zona de vizinhança, de indistinção, de indeterminação ou indiscernibilidade
entre elas [...] o próprio devir que é o real. Não o termo o qual passaria aquele que se torna
outra coisa. O devir é animal sem que haja um termo que seria o animal que alguém se teria
tornado. O devir animal do homem é real sem que seja real o animal que ele torna.
13 O Fora – questão central do pensamento de Blanchot – implica levantar questões funda-
mentais para estudo da literatura: quando a ideia de representação enquanto cópia é ques-
tionada como passam a funcionar os elementos constituídos do texto literário? E a própria
literatura se não é mais semelhança, se não é mais uma forma de conhecimento do mundo,
como pode se dar enquanto experiência? E ainda: de que maneira essa experiência literária
pode promover um encontro com o pensamento que faz da palavra uma possibilidade de
resistência? (LEVY, 2003).

276 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Imagina apenas uma mão, pois não está em condições de
imaginar uma pessoa inteira. A personagem do romance clariciano
é uma mulher rica, aparentemente feliz, que tem uma boa rela-
ção social. Mas que precisa encontrar-se no turbilhão de sua vida
interior. Certa manhã ela decide arrumar o quarto da empregada
e, para sua surpresa, este encontra-se limpo e organizado. Essa
situação é, sem dúvida, contrária à ideia que a personagem rica
e aparentemente bem-sucedida havia concebido da empregada e
de seu quarto. Ela esperava encontrar um lugar sujo, bagunçado
e cheio de entulhos. Quando abre a porta do armário do quarto,
a personagem surpreende-se com uma barata. Podemos perce-
ber a partir desse fato corriqueiro, mas muito significativo, que
embora o quarto estivesse limpo, no interior de um armário vivia
uma barata. Daí poderíamos nos perguntar: como em um quarto
tão limpo e arrumado, podia existir um inseto tão repulsivo? E
como se não estivéssemos realmente preparados para entender
o que realmente acontece quando caminhamos no escuro, ou no
próprio ser vazio.
G.H depois de recuperar-se do susto, se reveste de cora-
gem, e esmaga a barata contra a porta do armário. Vendo o inseto
agonizando, sente que também a barata olha para ela e que vê a
sua condição humana, limitada, mas mesmo assim com ares de
ser superior. Continua a ver a barata esmagada, com o liquido
(o Plasma) saindo de suas entranhas e lhe causando náusea. Isso
ao mesmo tempo em que se percebe sozinha e lançada a própria
vida. A matéria viva do corpo do inseto é como se fosse a própria
vida olhando para G.H.
A personagem é atraída por uma realidade impessoal, que
a faz perceber certas coisas e situações que ainda não tinha pen-
sado, em outras palavras, ela se depara com uma realidade até

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 277


aquele momento impensada. Então, através dessa nova expe-
riência, ela decide esvaziar-se de antigas opiniões que tinha de
si, e também de opiniões alheias sobre sua vida. G.H, despida
de conceitos preestabelecidos, entra em um território novo e
úmido, ainda desconhecido para a mesma. Nesse momento G.H
encontra-se dividida entre o apelo de um mundo inumano novo,
ou a continuidade da sua frágil individualidade humana. G.H
escolhe buscar novas possibilidades de ser. Lança-se ao apelo do
desconhecido e perde-se por completo no abismo de sua liber-
dade. Assusta-se ao perder sua formação humana e tem medo.
Consequentemente, a partir dessa metamorfose, que se permitiu
ter, segue em busca de uma suposta verdade e, nessa busca, pode-
mos afirmar que G.H entra em seu processo de “devir-animal”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997).14
Em vista disso, ao afirmarmos que G.H se mostra enquanto
devir-animal, nos referimos que ela experimenta intensidades que
a atravessam e a compõem em um plano constituído por dife-
rentes multiplicidades. Esse devir-animal é visivelmente percep-
tível quando se observa o desenrolar do enredo da narrativa de A
Paixão segundo G.H como podemos observar a seguir:

Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi


minha formação humana. Não sei se terei outra para subs-
tituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não
usar sub-repticiamente uma nova terceira perna que em

14 Para Foucault cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos
e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros e falsos, a maneira como
se sancionam uns aos outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a
obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro (FOUCAULT, 1987, p. 12).

278 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora de
uma “verdade” (LISPECTOR, 2009, p.12).

A obra nos mostra quando o ouvido de Clarice, desde a


Paixão Segundo G.H à Água viva – mas só – passa primordial-
mente pela “escuta da colisão” e do desastre, encontrando sua
força vibrátil numa economia dos afetos e sensações extraídas da
carne e dos poros,

Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo
assim que isso signifique ter uma verdade incompreensível?
Ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de inte-
gra em mim a minha própria desintegração? (Op. cit., p. 12).

A experiência de G.H transforma “a pessoa organizada” na


mulher em busca de sua identidade perdida (num processo de
identificação de si mesma), dá-se quebra de sua autoimagem, a
da vida cotidiana que levava, rica, acomodada, em sua cobertura.

O apartamento me reflete. É no último andar, o que é con-


siderado uma elegância. Pessoas de meu ambiente procuram
morar na chamada cobertura. É bem mais que uma elegân-
cia. É um verdadeiro prazer: de lá domina-se uma cidade
(Op. cit., p. 29).

Na autotransformação de G.H, a barata é um elemento ale-


górico, responsável por emergir sua desorganização. Portanto, a
personagem terá de percorrer um novo caminho, para se liber-
tar das amarras, de uma vida social vazia. A experiência abis-
mal da personagem provoca-lhe uma redução de sentimentos e

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 279


vontades. Perdendo sua forma, se negando, assim como acontece
com Gregor Sansa, em A Metamorfose, de Franz Kafka, que se
transforma em um inseto.
Nessa obra é possível notar o quanto Gregor Sansa encon-
trou linhas de fuga, resistindo assim às relações de saber-poder-
-subjetivação, que constituíam sua organização de trabalho.
Gregor se transforma em um grande inseto e com isso vemos que
ele não é mais o trabalhador disciplinado e dócil, mas é lançado
ao devir, devir-animal. Esse devir proporciona a Gregor operar
sua vida enquanto obra de arte, experimentando-a em suas múlti-
plas possibilidades. Da mesma forma que G.H experimenta esses
múltiplos caminhos vividos na narrativa.15
E é justamente por essa singularidade de problematizações
da obra de Clarice Lispector que refletimos sobre o conceito de
“literatura menor” de Deleuze e Guattari (1977) não por demé-
rito à sua escrita, como tal expressão pode suscitar, mas sim por
Clarice ter as mesmas singularidades da escrita. No livro Kafka
por uma literatura menor, Deleuze e Guattari (1977) analisam que
não há “enunciação individualizada”, ou um sujeito da enuncia-
ção, mas sim a obra literária, mas sim a obra refletindo o campo
anônimo dos agenciamentos de enunciação coletivas.
A desorganização na narrativa é o próprio mundo humano,
desorganizado e composto pelo o olhar do outro, quando G.H
exterioriza todo o seu sentimento humano, e deixa aparecer toda

15 Pois para Foucault, o poder vai além de um mecanismo que provoca a interdição, a proi-
bição, constituindo-se assim como produtor de positividades. E é justamente nisso que
Foucault se destaca, pois para Foucault o poder vai além de um mecanismo que provoca
a interdição, a proibição, constituindo-se assim como produtor de positividades. E é justa-
mente nisso que Foucault se destaca e se diferencia em sua análise sobre o poder, pois não
visualiza o poder somente como uma força que diz não, mas também que diz sim, enquanto
um conjunto de práticas que provoca comportamentos, modos de ser, ou seja, o poder pro-
duz subjetividades.

280 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


a sua engrenagem: seu status social, sua insegurança, o descon-
forto com a opinião dos outros em relação à sua vida, é nesse
momento que a personagem se põe à escuta de sua liberdade de
ser e de criação. Ao se perguntar o que era, o que fazia, qual o
sentido de uma procura, põe a si mesma em questão. Nas suas
reflexões chega à conclusão de que seu rosto sorridente é um
silêncio, uma coragem, uma força numa sabedoria de vida. Assim
o próprio mistério de sua vida estaria sendo anunciado, mistério
que ela mesma não sabe explicar, a liberdade é o ponto de partida
para G.H viver sua tragédia, o seu êxtase e encontrar sua nudez,
preparando o caminho para o vazio, aniquilando o seu “eu”.

Referências
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BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BORNHEIM, Gerdard. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo:
Perspectiva, 2000.
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2009.
______. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2010.
______. Kafka – Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
______; PARNET, Clarice. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
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São Paulo: Editora 34, 1995.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 4. São Paulo: Editora
34, 1997.
FOUCAULT, MICHEL. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1998.

A experiência da escrita em A paixão segundo G.H. De Clarice Lispector 281


______. Ditos e escritos I. Problematização do sujeito: psicologia,
psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
______. Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1987.
______. Linguagem e literatura. In: MACHADO, R. Foucault, a
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KAFKA, Franz. A metamorfose. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2008.
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LINS, Daniel. Clarice Lispector: a escrita bailarina. In: LINS, Daniel;
PÁL PELBART, Peter (Org.). Nietzsche e Deleuze: bárbaros, civilizados.
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PLATÃO. República. São Paulo: Nova Cultural, 1998. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998 (Coleção Os pensadores).

282 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Entre imagem e escrita: o
infinito e o estranhamento nas
obras de Keyla Sobral

Alberto Amaral

A essência da literatura é escapar a toda


a determinação essencial, a toda a afirma-
ção que a estabilize ou a realize: junca já
lá está, está sempre por encontrar ou por
reinventar
Maurice Blanchot

Introdução
O presente capítulo coloca-se diante de uma pergunta que
inferimos como ponto inicial para nossas reflexões: como pensar
as questões envolvendo a arte hoje de modo que ela se apresente
como um “absolutamente Outro”, uma estranha em nosso meio
e que institua uma relação paradoxal de estranhamento e fascí-
nio? Será basicamente através dessa pergunta que moveremos
as nossas investigações no campo da arte contemporânea cen-
trada especialmente no trabalho Tudo tão breve da artista plástica
paraense Keyla Sobral. Porém, encontrar, buscar, responder a essa
indagação não significará aqui empreender a busca da verdade ou
inferir uma verdade, mas, como diz Blanchot (2001, p. 63-64),
“girar em torno”, fazer um movimento circular sem nenhuma
ideia de finalidade. Não haverá um centro para atingirmos, ao
contrário, há um abandono do centro para arriscarmos fazer valer
a caminhada errante, a impossibilidade e a inversão de nossos
hábitos. Blanchot (2001, p. 64) diz que

A busca seria então da mesma espécie que o erro. Errar é


voltar e retornar, abandonar-se à magia do desvio. O desen-
caminhado, aquele que saiu da proteção do centro, gira em
torno de si mesmo, entregue ao centro e não mas cuidado
por ele.

No desafio, de pensar a arte através de um conceito não


canônico, tal como “Rosto”, ou seja, dizer que na arte dá-se o
estranhamento como propriedade essencialmente sua, pensar
uma leitura da arte que realiza a possibilidade de uma relação
com o “absolutamente Outro”, com o “Infinito”, com o que nunca
pode ser dito. Trata-se de dizer que, se na filosofia levinasiana e
blanchotiana temos uma gama de conceitos elaborados, na arte
que são instaurados de tal forma que podemos ter uma mesma
experiência dessa teoria. É, portanto, na relação com a arte que
podemos ter a experiência da falta de luminescência, da passivi-
dade do ser, enfim, do que é o “Infinito” blanchotiano e levina-
siano. Por isso partiremos da arte como expressividade do que se
faz “Rosto”, conceito esse que encontramos em Levinas.
Na tessitura desse escrito encontramos conceito de “Rosto”
pensado ou discutido diretamente para a arte como o fazemos
aqui. Ou seja, não há um texto específico em que a arte é tratada
como “Rosto” ou como um “absolutamente Outro”. O texto de
Levinas (2001a), provavelmente o mais específico destinado à arte,
La Realidad y su Sombra, não confere a ela o conceito de “Rosto”,

284 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


ou melhor, não a trata como tal, mas a define como sombra da
realidade. Porém, não parecemos nos distanciar do pensamento
levinasiano se aproximarmos o conceito de sombra de Levinas ao
de “absolutamente Outro”, desde que a sombra é a passividade do
ser em uma ideia. Ou seja, a oposição entre realidade e imagem
é a sombra, um espaço denso e obscuro. A realidade está sempre
acompanhada de sua sombra. Daí podemos inferir que, diante da
realidade, representada surge o “Rosto” obscuro da expressão: o
“Infinito”. O “Rosto” na arte surge das sombras, o que quer dizer
que a imagem neutraliza a relação com o real. Trata-se, portanto,
de uma distância ontológica e fenomenológica entre a forma e o
seu suporte. Conferir à arte contemporânea a ideia de “Rosto” e
este como lugar do “Infinito” é uma possibilidade pensada como
marco inicial deste capítulo e proposta a ser desenvolvida. O refe-
rido conceito para pensar a arte contemporânea surge como pro-
babilidade a ser tratada em nosso trabalho a partir das perguntas
elaboradas por Levinas na obra Entre Nós (1997, p. 27), na qual
se delineia mais claramente, a nosso ver, essa abertura para a arte
como “Rosto”. Na obra supracitada, lemos:

Podem as coisas tomar um rosto? A arte não é uma ativi-


dade que confere rosto às coisas? A fachada de uma casa
não é uma casa que nos olha? [...] Pergunto, contudo, se o
estilo impessoal do ritmo não se substitui na arte, fascinante
e mágica, à socialidade, ao rosto e à palavra?

No referido texto, o autor lança esses questionamentos sem


desenvolvê-los para a arte. O “Rosto” é o rosto do outro homem,
do próximo. Daí inferimos que a arte essencialmente “Rosto”,
irredutível à interpretação, lugar do “Infinito”, do “Fora” e do

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 285
“Neutro”, vislumbra questões possíveis de serem desenvolvidas
no âmbito da arte contemporânea. Tal inferência ocorre não
somente a partir dos conceitos levinasianos e blanchotianos, mas
da constatação de que a arte contemporânea em si mesma tem
se apresentado como incomunicabilidade radical na realização de
suas formas. Para os contempladores de arte, instrumentalizados
pela carga de cânones disponibilizados ao longo dos tempos pela
teoria e pela história da arte, a arte parece já não mais fazer sen-
tido desde que os antigos instrumentos tornaram-se obsoletos.
Observamos que a partir de um determinado momento os
paradigmas que vinham sendo firmados ao longo dos tempos para
a produção das artes plásticas foram contestados. É, então, com
base nesse procedimento que podemos vislumbrar a fecundidade
dos pensamentos de Levinas e de Blanchot com mais correspon-
dência para a reflexão que nos propomos realizar. Certas práticas
da arte ficaram por muito tempo marginalizadas por paradigmas
dominantes e, a partir de então, podemos falar de uma produ-
ção em arte como “Rosto”, como manifestação do “Infinito”, em
contraponto a uma totalidade que se instalava a partir de câno-
nes fundadores para a leitura da arte. Citamos, por exemplo, os
ready mades, as performances, as fotomontagens, as instalações,
as assemblagens, a body art, a introdução do corpo como objeto
da arte, os quais ficaram à margem com o domínio da estética
modernista, que, na crítica realizada por Greenberg (2002), eram
consideradas produções que não se enquadravam na classificação
de “arte maior”.
Greenberg (2002), inspirado na filosofia Kantiana, conside-
rou a arte do modernismo como a arte da “maioridade”. Citamos
Greenberg (2002) como marco desde que, como teórico da arte
e promotor da arte moderna, teve grande influência na arte do

286 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


século XX. Ele institucionalizou o expressionismo abstrato e pro-
moveu a arte americana dos anos posteriores à Segunda Guerra
Mundial, porém, marginalizou a arte pop, o surrealismo e a arte
conceitual. O referido crítico, na verdade, nunca escreveu um livro
específico sobre as suas ideias, e muitos de seus artigos que defen-
diam a arte moderna foram compilados por volta de 1961 em
um livro chamado Arte e Cultura. Seu ensaio Pintura Moderna foi
publicado pela primeira vez em 1960, em que ele sustenta que o
que define a arte moderna é a autocrítica (GREENBERG, 2002).
Dessa forma, como trabalharemos com uma definição de
arte fora dos moldes da tradição, será propriamente através de
uma arte que se permite estar fora de uma leitura instituciona-
lizada de arte que teceremos nossas reflexões. Vamos inferir a
arte após a década de 1960 como espaço de nossas indagações.
Digamos que o período após essa década represente com pro-
priedade, através da postura tomada pelos artistas e dos objetos
por eles realizados, os conceitos levinasianos e blanchotianos. A
década de 1970, segundo Belting (2006, p. 197), marca a derro-
cada da vanguarda que representava de maneira triunfal a ima-
gem histórica da modernidade no curso de como a arte moderna
era narrada, época em que o progresso era procurado apenas na
progressão de uma nova estética artística. Afirma Belting (2006,
p. 197-198):

Houve grande agitação quando, por volta de 1960, a direção


do progresso, nesse sentido unilateral, tornou-se incerta e
com isso desabou ruidosamente pela primeira vez o modelo
corrente de progresso, como se não houvesse nenhuma alter-
nativa para ele.

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 287
O referido autor relata o fim da possibilidade da arte fiel aos
fundamentos que a mantinham como uma narrativa progressiva.
Havia uma produção em arte que não mais pertencia à sequência
da narrativa, e essa produção apresentava como função a ausência
de função. A arte, por sua vez, apresenta-se como fundadora de
sua própria realidade e atribui a essa realidade um caráter espe-
cificamente ambíguo, obscuro e enigmático. Ela passa a ser pro-
motora do que chamaremos de estranhamento, essa sensação de
que se prefere falar de um lugar que está além ou à margem do
mundo.
O que nos interessará sobremaneira não são as mudanças nas
estruturas formais da arte (embora elas também contem, pois não
podemos separar a forma do conteúdo). Nosso maior interesse é
a experiência que essas estruturas fundam, ou seja, a experiência
como relação com o desconhecido, com o que há de “absoluta-
mente Outro”, que se traduz no estranhamento e na interrogação
sobre o limite, substituindo a busca da totalidade pela transgres-
são. Eis, aí, o espaço obscuro de nossas reflexões.
O “estranhamento” ao qual nos referimos e cujos concei-
tos vamos buscar nos autores franceses que faz a sua morada no
enigma que obtém força na tensão interrogativa que gera e, por-
tanto, que nos leva a afirmar que o caráter essencial da obra-de-
-arte está justamente no enigma. Como estranhamento na arte
contemporânea, o enigma renuncia a interpretação da obra nos
moldes de “contemplação” conforme a tradição. Falamos, então,
de um estranhamento, de um enigma que remonta à Grécia
arcaica, em que, como afirma Perniola (2006, p. 27), não há nada
de negativo. Contudo, falar de tal enigma significa mencionar
palavras importantes, dignas da máxima atenção e que na Grécia
arcaica só poderiam ser assimiladas depois de ampla experiência

288 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


e de longa meditação. Pretendemos resgatar esse enigma, resgatar
o estranhamento como positividade para uma arte que se funda
nos escombros, fruto de um enigma que jamais poderá ser des-
vendado, que flexiona uma outra possibilidade de pensar a ver-
dade e que institui uma outra maneira de pensar a contemplação.
Queremos resgatar esse enigma para uma arte que se predispõe a
ser errante e reivindica uma dimensão filosófica quando supera a
oposição entre secreto e revelação, e abre o horizonte de um lugar
onde existe a possibilidade de que “algo” pode nem se revelar nem
se esconder. O enigma é, aqui, a coincidência dos contrários: algo
se revela, porém, sem se revelar. Para Levinas, o enigma é expresso
através do conceito do “Há”, e em Blanchot ele se define no con-
ceito de “Neutro”. O que o enigma indica torna-se traço, rastro,
vestígio, mistério como podemos ver na obra da artista Keyla
Sobral.

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 289
O conceito de estranhamento, portanto, está no que Levinas
(2000, p. 13) define como experiência com o “Infinito”, isto é,
com o que extravasa sempre o pensamento, em que o extrava-
samento produz a sua própria “infinição”. Assim, abordar a arte
como estranhamento é falar dela como estrangeira, lembrando
que ser estrangeira também significa ser livre, pois não podemos
poder sobre uma arte que se apresenta como “passividade total
do ser”, essa recusa radical de o ser vir à luz. Não podemos poder
porque ela escapa a qualquer domínio. Num aspecto essencial,
não temos com essa estrangeira um conceito comum, pois a sua
produção não tem conosco uma relação de totalidade, mas sim
de transcendência, uma exterioridade absoluta. O transcendente
é desejo, é inadequação. Na imagem anterior, percebemos justa-
mente esse estranhamento que a artista apresenta em seu mapa,
possibilitando diversos caminhos de interpretações e desejos da
obra em relação ao observador nos possibilitando esse diálogo
entre a obra e os conceitos aqui apresentados.
Pensar a arte contemporânea de Keyla Sobral como expres-
sividade do pensamento é ir ao encontro não do que se mostra,

290 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


mas do que se esquiva. É ver perdurar o mistério, pois este se
apaga ao iluminar-se e se degrada quando o veneramos. O misté-
rio, conforme aponta Blanchot (1997, p. 59),

Não é contra-senso, já que é estranho ao senso; não é ilógico,


já que a lógica não lhe diz respeito; não é secreto, pois está
fora do gênero de coisas que se mostram ou não se mostram.
O que ele é? Talvez nada. Porém, uma pergunta dessas já o
excede em tudo.

O “estranhamento” como sintoma


da perda dos fundamentos
Pensar a arte de Keyla Sobral essencialmente como “estra-
nhamento”, fruto da queda dos fundamentos, refletindo que a
arte contemporânea como estranhamento é pensá-la como reali-
zadora de conceitos, tais como: “Infinito”, “Rosto”, “Neutro”, den-
tre outros conceitos esses que encontraremos nos pensamentos
blanchotiano e levinasiano. E, a partir dos referidos conceitos,
pensar essa arte é fazer uma pergunta muito semelhante à que
fez Merleau-Ponty no seu texto O Olho e o Espírito (2004, p. 15)
quando ele questiona a respeito do pintor (do artista) e de sua
arte: “Qual é, pois, essa ciência secreta que ele possui ou que ele
busca? Essa dimensão segundo a qual Van Gogh quer ir ‘mais
longe’?”.
O que busca essa arte senão o “Infinito”, um mundo “por
dizer”, ou seja, um mundo sempre por vir, um mundo nunca dito.
Nessa busca, o artista está ligado ao erro, ao acaso. Ele vai em busca,
tateia e apalpa o mundo. Faz um movimento que Merleau-Ponty

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 291
(2004) chama de secreto, pois busca o incessante e, nessa busca,
percebe-se dono de um ofício “Infinito”. Blanchot (2005, p. 137)
diz que todo artista está vinculado “con un eror con el qual tiene
una relación particular de intimidad”. Esse erro é que permite
que a arte contemporânea deixe de ser uma afirmação comum,
uma tranquila maravilha coletiva, para ser o improvável. Como
afirma Blanchot (2005), constatamos isso em outros tempos e
atestamos a partir do que vemos hoje. E muito bem representada
pelas imagens a seguir.

292 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Imagem e escrita em Keyla Sobral

As palavras nas obras de Keyla Sobral, como aponta


Merleau-Ponty (2002, p. 73-74), abrem um buraco no pleno do
mundo. Elas mantêm “o mundo em suspenso”, são palavras tão
singulares que se entrelaçam com a rugosidade da tinta e assu-
mem uma facticidade radical, caráter daquilo que simplesmente é.
Nas obras dessa artista, a palavra não é invólucro do pensamento.
A significação desse gesto é infinita. A palavra não pode ter som,
não pode ser lida, serve para ser vista, e a visão lê, então, de “outra
maneira que ser”.

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 293
A palavra é ambígua, lugar do ser dissimulado, espaço
onde o ser não escapa sempre no jogo da mostração, mas onde
a significação é essencialmente “não sentido”. E se, porventura,
o artista tentou expressar algo, as palavras resistiram a isso e na
rebeldia afirmaram somente a negação, essa falta de habilidade
do artista para fixar a verdade. De outro lado, o artista tem a sin-
gularidade de escrever sem se prender à palavra escrita. Então,
por que a escreve? A palavra é vã, é facticidade levada ao limite.
Paradoxalmente, a palavra não é silenciosa, pois o silêncio fala
nela.
Pensar a obra de Keyla Sobral e pensar na relação entre ima-
gem e escrita, tal como ela nos apresenta em suas obras, a sua
sensibilidade poética imagética que nos sensibiliza, uma vez que a
artista rompe com a dicotomia entre imagem e escrita. Se aquele
que escreve, escreve porque ouviu o inaudível, podemos pensar
que aquele que escreve é quem olhou o interminável, ainda que
desviasse seu olhar para não morrer, tal qual Orfeu ao voltar seu
olhar para Eurídice. Esse raciocínio e indagação poderiam resu-
mir o poder-ver, a disponibilidade do leitor para acolher a palavra
escorregadia de Blanchot, a experiência de um impossível de que
a escrita nos dá conta.
O seu discurso, ao sentido barthesiano, é algo intransitivo,
não diz nada a não ser ele mesmo. Nesse jogo discursivo, o pensa-
mento, os modos de escrita são vividos como um drama ontoló-
gico, cujo segredo todo escritor, solitariamente, tenta decodificar.
A afirmação da solidão essencial da obra é um código de
seus discursos, mas isso “não significa que ela seja incomunicável,
que lhe falte o leitor. Mas quem lê entra nessa afirmação da soli-
dão da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco da
solidão”, diz ele (BLANCHOT, 1987, p. 12). Isso permite dizer

294 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


que, parece se estabelecer entre quem lê e quem escreve uma rela-
ção de participação, um segredo mesmo da escrita.
De qualquer forma, para Barthes, escrever é tornar-se “silen-
cioso como um morto” (1964, p. 9). Da mesma forma a escrita
imagem de Keyla Sobral nos apresenta isso. É através da escrita,
segundo ela, que a língua nasce e morre, dispersando-se numa
diferença, infinita, pelo Texto, de que o sujeito pluralizado é o
enunciador múltiplo, nele se constituindo e dissolvendo, entre o
prazer e o gozo (BARTHES, 2004, p. 8). Semelhante à Barthes, e
ao discurso órfico, para Blanchot “escrever é morrer” (LEVINAS,
2000, p. 36). A morte não é para o autor o patético da última
possibilidade humana, possibilidade da impossibilidade, senão
a reverberação incessante do que pode ser captado. Portanto,
se relermos, reescrevermos o texto blanchotiano, entre a luz e a
sombra do mito (diríamos, no seu intertexto mitológico, também,
dionisíaco), reconheceremos em figurações e desfigurações múl-
tiplas os fragmentos mitológicos que nele citacionalmente com-
parecem e desaparecem.

O estranho “impossível” na obra de Keyla Sobral


Admite-se que a função da arte consiste em “expressar” e
que essa expressão artística está centrada sobre um conhecimento.
Ou seja, a arte costuma dizer o inefável. Levinas (2001a, p. 43)
afirma que costumamos pensar que a obra-de-arte

prolonga y supera la percepción vulgar. Lo que ésta banaliza


y yerra, aquélla lo capta en su esencia irreductible, coinci-
diendo con la intuición metafísica. Allí donde el lenguaje
común abdica, el poema o el cuadro hablen. Más real que la

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 295
realidad, la obra atestigua así la dignidad de La imaginación
artística que se erige en saber de lo absoluto.

Levinas e Blanchot se opõem a qualquer expressão artística


como veículo de fonte de luz, de geração de sentido, em que a
experiência artística venha a nós com uma condição luminosa,
uma interna racionalidade e verdade, que venha a nós como
interpretação.
Para Levinas e para Blanchot, ao contrário, estamos sempre
diante do “Outro” como um “absolutamente Outro”. Daí resulta
que a obra-de-arte é um “Rosto”, e como tal a sua expressividade
é o “Infinito”, o qual não se põe à contemplação, mas resiste a ela.
Daí decorre o fato de a obra-de-arte ser a própria realizadora de
uma resistência ética na sua radicalidade essencial. No que se faz
“Rosto”, não encontramos repouso nem prazer, mas uma resis-
tência que persiste na angústia, na estranheza da passividade do
ser. A arte contemporânea, a nosso ver, realiza os pensamentos
blanchotiano e levinasiano quando se apresenta a nós como algo
intrigante que transgride a ideia de experimentação herdada e
institucionalizada.
Hoje, o que se discute por experimentação em arte pode ser
uma atividade totalmente diferente, ou seja, o artista que experi-
menta age no escuro, admite riscos, age na mais completa solidão,
“No estérial areal de um deserto de Dores [...] Pois quero, desde
que meu cérebro vazio,/ Como um pote de creme inerte ao pé
domuro,/ Já não sabe adornar a idéia desafio,/ Lúgubre boceja
até o final obscuro...”, tal como canta o poeta Mallarmé (apud
WALACE, 1987, p. 41). O artista age sob a sua inteira respon-
sabilidade, sem saber se seus esforços serão recompensados pela
coletividade. Na verdade, o artista está sempre à espreita de ver

296 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


“algo”, sem que saiba o que. Isso leva Blanchot (1987, p. 45) a
dizer que a arte “não é um poder, não é o poder de dizer”, ou seja,
não há contemplação, pelo menos nos moldes da tradição. Para
Blanchot (1987, p. 45),

Quando a neutralidade fala, somente aquele que lhe impõe


silêncio prepara condições do entendimento e, no entanto,
o que há para entender é essa fala neutra, o que sempre já
foi dito, não pode deixar de se dizer e não pode ser ouvido,
entendido.

Fazemos dessa forma uma experiência com a solidão essen-


cial, a mesma que fazia Cézanne permanecer sem gesto enquanto
seu olhar “apalpava” o monte Sainte-Victoire à espera de “algo”.
Esse “apalpar” do olhar estava ligado à matéria e à existência,
porém a dívida de Cézanne, como diz Lyotard (2000, p. 36), não
“é para com a paisagem como motivo realista nem com a orga-
nização das formas” e sim com esse “algo” esperado, “uma quali-
dade de cromatismo, um timbre colorido”. Afirma ainda Lyotard
(2000, p. 36):

Para atingir esse estado, é necessário “passividade”, uma pas-


sividade sem páthos, exatamente o contrário da atividade
controlada do espírito, mesmo o inconsciente. A autonomia
que se apropria, a espontaneidade que a imagina são impedi-
mentos para ver o esperado. É necessária uma recepção que
se faça meticulosa, que suspeite, que aponte um “fato” insó-
lito, infalível, o fato de que há (algo, veremos) aqui e agora,
sem que se saiba o quê – digam o ser, se quiserem, Kant dizia
“o X em geral”, e como se estivesse jogando contra o pintor,

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 297
dando-lhe golpes com matéria cromática. E o pintor tentará
responder a esses golpes depondo em sua tela toques de óleo
ou de aquarela. Um golpe faz sair um púrpura, outro golpe
libera uma modulação de amarelo que inunda a atmosfera.

Os traços definidos para a arte de nosso tempo por Levinas


e Blanchot parecem a princípio negativos, porém, como diz
Blanchot (1987, p. 45),

essa negação somente mascara o fato mais essencial de que


nessa linguagem tudo retorna à afirmação, que o que nega
nela afirma-se. É que ela fala como ausência. Onde não fala,
já fala; quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, pre-
cisamente, o silêncio fala-se nela.

Partimos daí para dizer que estamos frente a frente com


uma produção artística que se recusa à ideia de contemplação
para ser o inexperienciável, um “absolutamente Outro”. Levinas,
em seu texto La Realidad y su Sombra (2001a, p. 46), faz as seguin-
tes indagações: interpretar Mallarmé não é traí-lo ou suprimi-lo?
Não consiste a função da arte em não compreender? A obs-
curidade, seu elemento mesmo, não lhe confere um acabamento
sui generis estranho à dialética e à vida das ideias? Será que é pos-
sível afirmar que o artista conhece e expressa a obscuridade do
real? Essas indagações desembocam em outras: em que consiste
a não verdade do ser? Podemos descrever o trato com o obscuro
como um acontecimento ontológico totalmente independente ou
como uma categoria irredutível às categorias do conhecimento?
Para Blanchot (1999), a experiência da impossibilidade
parece ter realmente alguma semelhança com a palavra sagrada,

298 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


em que o que se diz não se sabe de onde vem. A arte, segundo
o crítico literário, utiliza uma linguagem estranha, aquela em
que alguém fala e, no entanto, nada fala. Trata-se de uma lin-
guagem que se opõe ao intelecto e à ordem, uma linguagem que
não pensa no que diz e que diz sempre o mesmo, incapaz de res-
ponder a perguntas e de prestar socorro a si mesmo se a atacam
(BLANCHOT, 1999, p. 21).
A palavra sagrada também é condenada por não falar de
lugar algum e por ser extremamente impessoal. Essa impessoa-
lidade gerada pela passividade do ser, a qual Levinas chama de
“Há” e que encontramos nas obras-de-arte hoje, é semelhante à
palavra sagrada. E nisso, misteriosamente, a obra-de-arte con-
temporânea se parece com a palavra sagrada. É dela que a arte
contemporânea, mais do que as obras do passado, parece herdar
a sua desmesura. Tal como a palavra sagrada, não se sabe de onde
surgem as imagens. Como na palavra sagrada, nada está definiti-
vamente presente nessas imagens senão que elas dão voz à ausên-
cia, tal como as palavras dos oráculos de onde fala o divino, porém
onde Deus, em si mesmo, nunca está presente; a ausência de Deus
fala por si só. Nas imagens das obras contemporâneas nada se
justifica, nada se explica. Não há diálogo com essas imagens, da
mesma forma que não há diálogo com Deus. E nós somos tão
assombrados pelo silêncio que fala quanto Sócrates, do Fedro de
Platão, ante a estranheza da obra escrita. Essas imagens, de essên-
cia insólita, inspiram-nos desconfiança, motivo pelo qual criamos
uma série de teorias de contemplação para resolver o problema
desse silêncio majestoso, da escritura, da escultura, da pintura,
das performances, da dança, do teatro e dos objetos apresentados
como arte. Trata-se de um silêncio inumano por si mesmo “y que
hace proyectarse en el arte El escalofrío de las fuerzas sagradas,

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 299
esas fuerzas que, por el horror y el terror, abren al hombre a regio-
nes extrañas” (BLANCHOT, 1999, p. 25).
As obras de Keyla Sobral parecem cumprir essa intenção de
palavra “oracular”. Constituem uma estética do gesto, o informal,
e parecem ser trabalhadas por vias solitárias, o que leva a pensar
o que Michel Tapié (MUSEU..., 2005, p. 127) a chamá-las de
“simbologia metafísico-literária”, alheias à pintura em si. Tàpies
diz que se trata de uma pintura que nunca se esgota porque nunca
nos satisfaz.
As obras de Keyla Sobral contêm algo secreto, porém é algo
que não se trata de um enigma que temos de resolver porque isso
significaria esgotá-lo, mas sim se trata de um secreto existente
que jamais será divulgado, um secreto tal como as palavras do
oráculo, dinâmico em disponibilidade fecunda. A obra da artista
é isto: não se vê explicada por um sistema de rigor satisfatório
de que o artista possui uma consciência clara, sendo o primeiro
a justificá-la. Ao contrário, fortalece a ideia de uma comunica-
ção contraditória cujo objeto escapa a qualquer pensamento de
uma contemplação tradicional. Trata-se de obras em que o essen-
cial não poderá dizer-se nunca, embora se mantenha em zonas
abertas, porém, com disponibilidade, sem direção precisa. As suas
imagens são menos imagens e mais “sombras”, imagens não para
serem entendidas, mas pressentidas, imagens que falam como
quem cala. Na sua profundidade, resta sempre o indizível como
podemos ver nas imagens a seguir:

300 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


No “frente a frente” com esse inacabamento, deparamo-nos
com uma distorção que impede qualquer comunicação ou relação
de unidade. À medida que estamos infinitamente separados da
obra (separação, fissura), estamos diante de uma alteridade em
que a obra não é um outro ego, mas uma desconhecida em sua
distância infinita. É a obra do espaço da impossibilidade, e não
da possibilidade, espaço em que nunca podemos ser sujeito dessa
impossível experiência. Ao mesmo tempo, é um espaço em que
o “Eu” não consegue ficar indiferente, pois o diálogo inalcançá-
vel se reverte em desejo de mistério, de busca nunca alcançável,
mas sempre desejante. Compartilhando dessa ideia, não estamos

Entre imagem e escrita: o infinito e o estranhamento nas obras de Keyla Sobral 301
diante da arte como aquela que nos conecta com o cosmos, com a
ordem, com o divino, com a contemplação do mundo ou mesmo
conosco: estamos diante do incongruente. Não há ali nenhuma
certeza, ao contrário, o vazio nos debilita e aniquila nossos pre-
tensos conhecimentos. Isso acontece porque a arte designa uma
região em que a impossibilidade não é uma privação, mas sim
lugar de afirmação, já que ela parece se afirmar na sua própria
impossibilidade de “dizer-se”, de modo que ali o que pressupo-
mos como “verdadeiro” ou como “ordem” nada encontra para se
sustentar. Ora, pode estar, ainda, no espaço vazio, na distância
entre os objetos ou nos espaços imensos em que a palavra aparece
escrita. Tudo ali parece vir sobre um fundo de silêncio, e procu-
ramos uma fenda para desvelar o enigma sem jamais encontrá-la.
Abrem-se aí um vazio extremo e, paradoxalmente, uma imensa
fecundidade. Contemplar tais obras é contemplar a impossibili-
dade, a angústia de não ter nada para falar. Ou seja, a experiência
da “impossibilidade” é a experiência desmedida da profundidade,
a qual só se revela dissimulando-se nas obras vistas a seguir. “Me
encuentro realmente en más allá, si el más allá ES quello que no
admite más allá” (BLANCHOT, 2000, p. 86).

Assim, as obras citadas anteriormente que fizeram parte da


exposição individual Tudo Tão Breve) parece cumprir a sua errância

302 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


quando diz, na sua vacuidade, sem remeter a algo. Há nela algo
de silencioso que se garante como o seu sentido, e isso foge radi-
calmente ao que podemos chamar de “contemplação” nos moldes
que conhecemos. A obra reflete um sentido que se põe na singu-
laridade da resistência. O que se há de “contemplar” aí é uma fala
neutra. Talvez os traços e a imagem não sejam um acaso, o azul
de Mallarmé no poema O Azul (WALACE, 1987) é o espaço da
angústia que não se define nunca. É a vastidão do espaço em que
o poeta se rende ao “Nada” que murmura. O poeta diz: “O azul
triunfa e canta em glória/ Dentro dos sinos. Sim, faz-se voz para
sus/ Pender-nos no terror de sua vil vitória [...]”. O poeta galga a
sua agonia e pergunta: “Onde fugir? Revolta pérfida e impotente.
O Azul ! O Azul! O Azul! O Azul!”.

Referências
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Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

304 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Um sopro de vida (pulsações): rosto,
morte e escrita em Clarice Lispector

Maria dos Remédios de Brito

“Quando a gente escreve ou pinta ou


canta a gente transgride uma lei. Não
sei se é a lei do silêncio que deve ser
mantido diante das coisas sacrossantas
e diabólicas. Não sei se é essa a lei que
é transgredida”.
Clarice Lispector

Desastre...
Nada a interpretar,
somente sentir...
experimentar o pensamento... pois aqui ele é puro capim.

Descobri que eu preciso não saber o que penso – se eu ficar cons-


ciente do que penso, passo a não poder mais pensar, passo a só me
ver pensar (Clarice Lispector).

Um rosto... Nada me foi claro, nada! 12 de junho de 1937,


um buraco aberto, diante do desespero, do desamparo da dor
consumada... No corpo passava uma névoa, uma ausência posta,
onde a razão nada tinha a dizer. Ali, jogado no seu puro silên-
cio, ricocheteando a carne, o sangue, a consciência, ele esperava.

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 305


Diante de uma patrulha, o corpo encontra o alvo, deitado, arrui-
nado em si mesmo, fazia de si uma paisagem moribunda... Esse
corpo compunha a distância solene da vida, passava por ele um
impossível, algo efetivamente inadiável. Sequer estou ciente de
todo o mistério que atravessou aquele rosto abarcado por olhos
regalados, língua para fora, respiração ofegante, mãos jogadas
para o alto... Perante o caso, a indagação em mim começou a
fazer parte, a razão não responde, como se nada coubesse nesse
lugar, quando a pergunta não cala: qual a função da vida? Que
sopro atravessa a morte? Alguém está ali... Um rosto está ali...
Um corpo está ali, há uma expectativa silenciosa... Do outro lado
alguém corre, luta com o seu próprio desespero, sua inteira impo-
tência para dar qualquer freio ao provável, ao inadiável... O tele-
fone toca! Por favor, corre, procura os papéis, os documentos...,
uma roupa, um sapato, pega um vestido branco... Ele acaba de
ser estendido, jogado ao fundo do vazio, nada estava do outro
lado, tudo junto, bem perto dele próprio: a condição humana...
Do outro lado, eu procurava por um buraco, por uma pele ras-
gada que permitisse que eu a atravessasse, pois me parecia tudo
encerrado, não havia mais voz, se por acaso, pudesse eu escutar,
seria para além do tempo. Uma cena aberta, suspensa, silenciosa.
Diante de mim, meu próprio rosto desesperado, transfigurado...
Eu mesma era um vazio, um escombro miserável, testemunha do
maior acontecimento de um ser humano. Estava na cena, eu ocu-
pava um tempo, um espaço, um puro vazio de nada fazer, nada a
dizer, nada a declarar... Nenhuma palavra poderia dizer da cena,
contar o episódio, comecei desesperadamente esboçar palavras,
que só ocupava ondas modulares... Nesse agora do tempo, o
maior grito que não pode ser repetido e nem mesmo contado...
A linguagem entra no seu puro aniquilamento, desaprumada,

306 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


estourou o rosto transbordante de dor, desamparo, desequilibro
de todos os sentidos, meu corpo persistiu na pergunta... Qual o
tempo da morte? Como seria o tempo da morte? Suspensão! “F”
não disse e não poderia nunca contar do seu mistério... Por aquele
rosto, que esteve por horas deitado num quarto, na rua 14, pouco
agradável, onde tudo que se passou era resto, não havia espera
para repousar, quarto lúgubre, quente, com paredes velhas, nada
pareceria importar, nada lhe era extraordinário... Um grito que
atravessava as mãos, os olhos, as costelas, a boca, nada tinha para
comunicar, nenhum poder lhe restava naquele momento, só lhe
restava de seu, um sopro, esse sopro desencadeou um medo, um
tremor, eu mesma, fui tomada por ele, pois sei que tal sopro faz
tombar todos os viventes e, assim, me pôs em frente da janela da
minha alma... Eu tive depois, de todo o ocorrido, a sensação de
que “F” sorria, sem gastar energia, partilhou um rosto sereno, pois
já sabia de tudo... Parece que ela estava a olhar o seu rosto morto,
ali, estendido para os olhos dos outros... O exuberante de tudo,
depois, não foi o fato de eu estar ali, testemunhando o seu suspiro
terminal, mas ter a certeza, pelo qual atravessou seus olhos, de ter
que aprender a rir um riso que nunca retornará ou mesmo de me
obrigar a perguntar: não seria eu mesma que tive o silencioso sus-
piro terminal? Disso não tenho nenhuma dúvida. E agora? Quem
vive? Eu vivo ainda? Ainda é possível viver? O que me restava
ainda na vida? Que poder teria ou tenho sobre mim? Que poder
teria ou tenho sobre a morte? Meu corpo posto ali, em pedaços,
sem decisão... Esgotado. Eu espiava o dia, as horas, as pessoas...
Todas as lembranças vinham em turbilhão que atravessavam meu
corpo como um punhal, fazendo sangrar a minha carne, a minha
alma... Um desejo, cortar a cabeça, eu precisava dormir, precisava
cessar aquela dor que se punha como senhora ao meu lado, que

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 307


preenchia todo o meu corpo, pelo qual havia perdido o domínio,
precisava deixar o pensamento repousar, mas ele era bem mais
forte do que eu, então, permiti, naquela altura, ao meu corpo, que
fosse estilhaçado... Pronto, ele foi jogado ao fundo do vazio e nessa
experiência tive a certeza que não havia volta. Ele não voltou,
tornou-se... O tempo, aquilo que parece ali, numa impossibili-
dade... Meus órgãos estavam quebrados, quase sem função, todos
fragmentados... Que direito eu tinha? Lembrava das mulheres,
dos homens que faziam parte do esquadrão branco... Rostos sem
vidas, moribundos... O esquadrão branco era um rosto, um rosto
branco... Pelo rosto dessas pessoas passavam a dureza, a frieza, o
nariz impossibilitado de cheiro, orelhas decaídas, corpo endure-
cido... A vida não chegava lá... Eles atravessavam todos as horas os
corredores, andavam por todas as salas com ar poderoso... Quase
nenhuma vida que estava presente no prédio da rua 14 lhes era
importante. O Esquadrão branco parecia que tinha o poder sobre
a morte... Computadores ligados, agulhas e bisturis espalhados...
Um cheiro terrível os contagiava de indiferença.... Essas pessoas
usavam máscaras e formavam grandes blocos duros de pedras...
Pareciam expurgados da vida humana...Mas, o esquadrão era ali-
mentado pelo próprio regime de morte...!
“gosto de palavras [...]”
“Quero viver demais e penso que escrever é não viver”
“Me coisificam quando me chamam de escritor. Nunca fui e nunca
serei. Recuso-me a ter papel de escriba no mundo”. (Clarice Lispector)

Clarice, então, é uma caixa explosiva... Um vulcão! Suas


tensões vagam pelo efetivo processo de des(subjetivação). Não
habita unidade, centralidade, permanência, desfaz a si mesmo e
as suas possíveis identidades coaguladas. Transita em um estágio

308 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


vital de uma vida impessoal, sua experiência escritural intervém
para uma política de um verdadeiro criacionismo, operando em
suas linhas cartográficas processos indomáveis, importa abrir fen-
das, fazer rachaduras, inventar o intempestivo, criando criaturas,
desfazendo nomes, criando estilo e desfazendo gêneros literários.
Uma prática de escrita instaurada pelo vazio, pela incompletude,
em que a superfície é o seu maior plano de composição. Joana
Matos Frias afirma que em Um sopro de Vida, Clarice Lispector
promove uma autodestruição do sujeito moderno. O livro que
compõe pausas, silêncios, cortes, fragmentos, vazios, intervalos...
A palavra, assim como a linguagem entram em processos de
estranhezas. Silêncio....

“quero escrever em movimento puro”. (Clarice Lispector)

Morte transfigurada, a máquina abstrata de rostidade atra-


vessa e demole os muros, cabendo desfazer a ideia de natureza
humana. Clarice nada pelo rio da vida atravessando o olho, a
boca, a perna, o braço, a cabeça, o corpo inteiro... Há todo um
processo inumano... Não há metafísica do sujeito, seu trabalho é
com a produção infernal de individuação, impedindo um lance
aprisionador... O labirinto de Clarice se prolifera! Pois, ela se
mistura entre personagens, se põe em ausência, se multiplica...
“Eu” quebrado. Ela se faz narrador... Em dois sujeitos (Autor/
Ângela).... Fissurada em Autor e seus personagens... Em outro
momento, o Autor é uma abstração, uma ausência... Ângela de
criatura (Autor) se faz criadora, do mesmo modo que o criador
se faz criatura... Há todo um componente de complexidade que
ronda a escrita.

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 309


“O beijo no rosto morto”. (Clarice Lispector)

Saídas labirínticas? Criar seus próprios possíveis... Pois, “Eu


escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente
a minha própria. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz.
Vivam os mortos porque neles vivemos”. (Clarice Lispector)

Escrever carrega consigo um silêncio, a “loucura da morte”...


Enigmático!? Escrever é morrer, é desfazer para si um rosto, é
acordar as forças abissais, produzir possíveis e [im]possíveis. O
escritor adormece para levantar com outro corpo, sem tréguas
promove a desterritorialidade, a territorialidade para percorrer a
desterritorialidade. O que está em si é uma espécie de arte da
guerra, do combate a todas as forças identitárias. A linha corre,
ela traça, faz paisagens, deseja saída, mas é a própria vida que em
sua potência de prosperar, vive, inventa suas bordas... Um mundo
para fazer, um mundo para encontrar, um mundo para inventar.
Escrever é morrer, morrer é escrever... A palavra vazia escorrega
por toda a sua potência de nada dizer, nada comunicar como ver-
dade... A escrita literária não exige o verídico, pois sua potencia-
lidade está exatamente em usar a ficção...

“De repente as coisas não precisam mais fazer sentidos”. (Clarice


Lispector)

A vida inventada... Um rosto todo esburacado em uma


abertura maquinal para se tornar o que se é... Sim! Aqui gira a
rostidade com suas intensidades, suas aberturas, seus vazios, seu
tédio, seu não humano... Todo um processo de singularização
atravessa a linha escritural de Clarice. Seu rosto joga um mar das

310 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


multiplicidades e assim parece desfazer o rosto do sujeito sujei-
tado a um padrão edificante...

“Para escrever tenho que me colocar no vazio”. (Clarice Lispector)

O escritor e suas ruínas, como diz Blanchot, deslocamento,


força, guerra, silêncio, tumulto, um recuo sempre para se colocar.
É como se a escrita negasse a si mesma “Escrevo ou não escrevo?”
(Clarice Lispector). O escritor sempre receoso das palavras...
Ele desliza, sai do seu próprio corpo... Escritor e obra. O escri-
tor é escritor quando se comunica com um fora, quando a obra
nasce... Aí é iniciada toda uma experiência... Ele vê alguém inte-
ressado por sua escrita... Mas, ele já não é aquele que traduziu a
si mesmo... O outro do fora, o transforma em outra coisa e ele
acaba não se reconhecendo como inicialmente... O outro desfaz
um rosto e territorializa outra rostidade... Linguagem, palavra...
A obra se desfaz com choque do mundo, assim, como se desfaz
o seu possível autor. O escritor, segundo Blanchot, se deixa se
dissolver e assim a obra vai sendo (des) feita pelo leitor... Seu
autor, quem poderia agora sê-lo? O escritor perde seu rosto para
encontrar outros rostos, os leitores... Mas não se prende a eles.

“o escritor

que pretende se interessar

apenas pela maneira como a obra é feita vê seu interesse afundar

no mundo,

perder-se na história inteira;

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 311


pois a obra se faz também

fora dele,

e todo o

rigor que depositou

na consciência

de suas

operações meditadas, de sua retórica

reflexiva, é logo absorvido no jogo

de uma

contingência viva que ele não é capaz de dominar ou


mesmo perceber”. (Mourice Blanchot)

Clarice, como escritora, se experimenta de todas as formas,


escrevendo se (des)monta, depois de escrever se monta, depois
de lida, desaparece... Os personagens ploliferam, movimentados
em cada palavra com dor, com a cor, com a alegria e com a vida.
O que foi gestado na penumbra, toma cores, vozes, linguagens...

“Sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque esta é proi-


bida. Eu não aplico o proibido, mas eu o liberto. As coisas obe-
decem ao sopro vital [...] Minha vida é um único dia [...] Eu
compreendo melhor a morte”. (Clarice Lispector)

ÂNGELA PRALINI: sopro! Personagem conceitual?

AUTOR:

312 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Vida, sem adjetivo a ser consumida,

Acontecimento...

Sopro vital, sem estrutura formal literária... Criações.

Nasceu entre as fissuras fragmentadas de um tempo,


1974-1977

Foi para o mundo em 1978... A autora morta, viva


em uma obra, morta depois pelo seu fora.

Repetição, repetição,

Difere,

Sopro,

Morte, experiência...

Duração de uma vida...

Literatura, filosofia, linguística.

Prolifera múltiplas cores,

Pulsações... Um corpo que não busca as dosagens certas,


porque não há... Uma curiosa brincadeira, um engodo, não há
veracidade... Sempre atenta ao que faz, pois sem isso não poderia
inventar para si um rosto, garantir uma dobra... Por isso, o escritor
parece esquizo... Toda a seriedade de Clarice, assim como a de
qualquer escritor não pode ser fixada, essa labuta com a seriedade
não é, pois não pode ser....

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 313


“Se me desenraizo fico de raiz exposta ao vento e à chuva”
(Clarice Lispector)

Descaminhos... Como não concordar com Blanchot quando


afirma que a palavra é um vazio, pois toda escrita é uma experiên-
cia, uma abertura... Escrever não é expressão de uma pessoa, mas
o mundo que nela atravessa. Clarice vaga em um profundo silên-
cio, nela desemboca sempre uma metamorfose, nasce uma palavra
gestada pelo seu ventre mental, a palavra, a palavra:

“Será que foi essa coisa


Meio equívoca e esquiva
Que chamam vagamente de
“Experiência?” (Clarice Lispector)

O pintor busca a cor, o poeta o verso, o escritor a palavra.


Nada disso é dado. O pintor não sabe que é pintor senão quando
pinta, o poeta não sabe que é poeta senão quando faz a poesia, o
verso, o escritor não é escritor senão quando faz a palavra brotar.
O suposto talento não está lá, é preciso uma longa experiência.
Uma busca, uma dependência, sem jamais se tornar o verdadeiro
senhor daquilo que busca... Tudo isso paira uma inexistência...
Clarice entra nessa labuta, essa incerteza, essa perda constante de
si, esse alargamento efetivo do rosto, esse buraco profundo que
habita seu corpo na dura incerteza da palavra... A consciência
permite conversar com um poder vazio do silêncio que faz da
escrita e da palavra somente uma passagem para a morte... O
indeterminado em Clarice:

314 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


“Ângela está continuamente sendo feita e não tem nenhum com-
promisso com a própria vida nem com a literatura nem com
qualquer arte, ela é desproposital”. (Clarice Lispector)

A escrita é uma experiência viva, palavra. Ao escrever,


Clarice esgota a si mesmo, morre, mas também vive por meio da
arte de experimentar a escrita... Clarice escreve com plena luci-
dez, sabendo com que em cada palavra o seu rosto se desfaz, sua
pele é degradada, sua cabeça partida, suas mãos estilhaçadas... O
seu corpo sofre a alegria da passagem... Como escritora tinha a
plena certeza que era senhora de si perante o ato de morrer, pois
não seria possível estabelecer esse casamento com a escrita se não
se ajustasse à morte...

“Eu não tenho nenhuma missão: vivo porque nasci. E morrerei


sem que a morte me simbolize”. (Clarice Lispector)

A literatura basta por si como arte? A literatura escorre


também entre linhas políticas? Clarice, em Um sopro de vida, não
cessa de abordar a morte, a escrita, o texto vai indicando presença,
intimidade em uma morte da obra e uma morte que comporta o
seu próprio corpo. O rosto/corpo é atravessado por um grande
movimento intensivo, profundos movimentos são operados nessa
obra póstuma, deslizamento delicado coloca em conexões uma
rostidade que desaparece, que atravessa uma espécie de deserto,
uma penúria, uma pedra, um insuportável. O que seria o insu-
portável em Clarice? Quantos temas ela põe em sua pena...Vida!

“Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma


num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto [...] Eu sou

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 315


um terreno pantanoso. Em mim nasce musgo molhado cobrindo
pedras escorregadias”. (Clarice Lispector)

Clarice, na esteira de Duras, dizia que a escrita é uma


maneira de viver, mas também uma forma de morrer... O rosto é
desfigurado pela morte de si mesmo. Clarice não faz uma auto-
biografia, ela impossibilita esse traço egoico, pois abre fendas para
todas as infidelidades ao suposto real, factual, para, então, promo-
ver a maior das verdades, a ficção, a poética da criação.

“Escrevo no estado de sonolência, apenas um leve contato do que


estou vivendo em mim mesma e também uma vida inter-rela-
cional. Ajo como uma sonâmbula. No dia seguinte não reconheço
o que escrevi”. (Clarice Lispector)

Um espaço sem tempo... O que começa? Tempo abordado


em seu presente em que a obra é pensada é viva e morta, sempre
em partida, passagem, compondo um rosto habitado pelo silên-
cio... Clarice como um suposto sujeito, não é, mas figura um rosto
com todos seus buracos em que nele as palavras e a linguagem
percorrem um meio. Assim como a obra dorme em sua solidão.
E nessa solidão, lugar que pode ocupar, obra não é acabada e nem
inacabada, mas pura abertura... “Você começa pelo princípio, começa
pelo meio, começa pelo instante de hoje” (Clarice Lispector). A escrita
parece está ali, nua... Palavra desapegada... Solidão, morte, silên-
cio, loucura... Nada poderá vir, sem esse espaço em que a escrita
aparece por meios de palavras, batalhas, pulsações... Sopro! Mas
Clarice foi nessa obra para além disso, entendeu que a morte é
esse perigo eminente de quem vive, fazendo da escrita esse lugar

316 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


de acontecimento presente, pois qual seria a tragédia do homem?
Qual ...?

Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aque-
les que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo me conheço, eu
me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu.
Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca
te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos. Tirei
deste livro apenas o que me interessa –deixei de lado minha
história e a história de Ângela. O que me importa são ins-
tantâneos fotográficos – pensadas, e não a pose imóvel dos
que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou
fotógrafa de rua.

Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste


começo. Quer dizer que o fim, que não deve ser lido antes,
se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o
próprio rabo. E, ao ter lido o livro, cortei muito mais que
a metade, só deixei o que me provoca e inspira para a vida
[...].(LISPECTOR, 1999, p. 19).

O cogito filosófico aqui é totalmente abalado. O que importa


o “eu” do conhecimento? Um sopro de vida, escrita experimen-
tal que põe a palavra, o sujeito em pura pausa, em fragmento,
em morte... O esquema de composição, como afirma Benedito
Nunes, inverte a ideia de “eu” e, assim, os personagens (Autor/
Ângela) parecem compor uma espécie de heterônimo de Clarice.
A escrita é errante e faz dela um suspense, para pensar a partir de
Claúdia Nina. A escrita de Clarice se põe no limite... Quem vai
ao fim da interpretação?

Um sopro de vida (pulsações): rosto, morte e escrita em Clarice Lispector 317


Referências
BLANCHOT, M. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio
de Janeiro, 1997.
DURAS, M. Écrire. Paris, Gallimard, 1993.
FRIAS, J. M. Um sopro de vida de Clarice Lispector. Revista Faculdade
de Letras, Línguas e Literatura, Porto, VX, 1988, p. 121-147.
NUNES, B. A narração desavorada. Disponível em: <http://issu.com/
ims_Instituto_Moreira_Sales>. Acesso em: 30 jun. 2016.
NINA, C. A palavra usurpada: exílio e nomadismo em Clarice Lispector.
Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2003 (Coleção Memória das Letras).
LISPECTOR, C. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

318 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Modulações em ritornelos
de sons e luzes

Marcus Pereira Novaes


Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

N
este capítulo, comporão um campo problemático para pen-
sar a Educação duas instalações audiovisuais levadas pelo
grupo de pesquisa Humor Aquoso (FE-Unicamp), inte-
grante do Laboratório de Estudos Audiovisuais (OLHO) à mos-
tra FOCAR, em Belém-PA. Ambas as exposições partilham em
comum o processo de produção e composição produzido a partir
de fragmentos de dissertações, teses, ideias e pensamentos proli-
ferados nos encontros do grupo.
Assim, cada instalação é um efeito, um rasgo ou um hiato
resultante do encontro entre linhas e faces distintas de uma esté-
tica da produção acadêmica, que os pesquisadores buscaram
responder em seus trabalhos, e que, em encontros e discussões,
dispararam outros signos ou afetos para a composição dessas
obras artísticas, um processo que ocorre no intervalo de pensa-
mentos em que, ao chegar a um limite, salta-se da necessidade
de enunciação conceitual para a criação de um turbilhonar de
sensações.
Da mesma forma que no processo de composição artística,
no qual não foi buscada uma aplicação utilitária de trabalhos aca-
dêmicos, este texto proporá num percurso inverso – do bloco de
sensações, em que cada obra consiste, para o jogo conceitual que
cada obra pode suscitar – indagando menos a partir de uma expli-
cação ou juízo dos efeitos causados pelas obras artísticas do que
pela capacidade de aumento de potência que poderiam proliferar
conceitualmente na escrita.
Como ambas as instalações instigam pensar a potência da
educação com/em artes, a educação apresentar-se-á como um
campo de possibilidades para experimentações em que se busca
no afecto um propulsor de signos às aprendizagens ainda não
identificadas.
Apostam no intervalo como um lugar, um spatium, em
que há a possibilidade de uma dupla operação do pensamento
à aprendizagem, um processo que consiste, ao mesmo tempo, no
que foi percebido na exposição e o que cada em cada um supri-
miu, recortou e compôs para concluir algo desse encontro. Nesse
sentido, trata-se de uma conclusão efêmera, aberta a desvios e
atravessamentos que não param de modulá-la e modificá-la, a
educação tal qual um plano de composição disparador de possí-
veis aprendizagens.
Fragmentos de sons, luzes, tintas e palavras buscam produzir
outras referências espaciais em um jogo ou um combate à signifi-
cância, às palavras de ordem e ao juízo.
Essas duas instalações apresentadas na Mostra FOCAR,
dentro do campus da Universidade Federal do Pará, também
foram apresentadas anteriormente no Museu da Imagem e do
Som (MIS), da cidade de Campinas-SP, e problematizaram
o espaço urbano. Modul - ações16 participou do evento Afetos
Nascentes (nov. 2014) e A parir sons17 consistiu uma das instala-
ções da exposição Aparições (maio 2015).

16 Disponível em: <http://climacom.mudancasclimaticas.net/?p=1419>.


17 Disponível em: <http://climacom.mudancasclimaticas.net/?p=2603>.

320 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Tais produções artísticas são parte constituinte do Projeto
“Intervalar o currículo: potência das audiovisualidades” (Processo
CNPq 484908/3-23-8). Pensamos e produzimos materialmente
as videoinstalações a partir do estudo de conexões entre filosofia
e imagem elaboradas por Gilles Deleuze e com a compreensão
de que o universo audiovisual contemporâneo pode ser caracte-
rizado pela heterogênese e multiplicidade, que se apropriam de e
revertem, por exemplo, os signos ópticos e sonoros que fazem da
imagem do cinema pura temporalidade; ou que nos lançam em
um universo da cópia e da plasticidade, em que cores, luz, textura
e corpo são apenas dimensões de um visível.
Buscamos, assim, criar com as imagens e as palavras de
nossas pesquisas um esboço para as ações e fluxos contínuos
que pudessem trans-versalizá-las e insistir no aparecimento do
novo, perfurando-o mesmo em um contexto de repetição e de
estabilidade.
Este capítulo é um mergulho intensivo nesses materiais
audiovisuais e a busca inventiva de criação de conceitos relativos
ao intervalo; ou seja, aquele delay entre a percepção da coisa e a
sua consciência sobre ela, que vem sendo explorado na produção
artística de vários videoartistas e que nos inspira política e este-
ticamente para pensar um outro lugar para a tensão entre sujeito
e humano, especialmente no estudo das imagens fora das lógicas
da representação.

Fragmentos de escritas em tintas, luzes e sons

A escrita fragmentária de Whitman não se define pelo afo-


rismo ou pela separação, mas por um tipo particular de frase

Modulações em ritornelos de sons e luzes 321


que modula o intervalo. É como se a sintaxe que compõe a
frase, e que dela faz uma totalidade capaz de desdizer-se,
tendesse a desaparecer liberando uma frase assintática infi-
nita que se estira e lança travessões como intervalos espaços-
-temporais (DELEUZE, 2011, p. 78).

Em um processo que se transversaliza a apresentação de


Gilles Deleuze (2013) acerca do processo de criação de Walt
Whitman, escritor norte-americano, a vídeoinstalação Modul-
ações propunha uma composição imagético-sonora em que a per-
cepção dos signos da cidade (pichações e grafites) fosse desdita
pela modulação de um espaço liso, como o oceano, atravessado
por sons cotidianos que intervalavam módulos de adaptação e
equilíbrio ao buscar abrir sentidos e noções comuns, lançando
som e luz como intervalos no espaço-tempo.
Essa instalação apresenta um duplo intervalo, não hierár-
quico, enquanto um barco desliza em meio ao oceano que banha
as imagens. Um primeiro seria o corte entre imagens fotográficas
de grafites, luzes e pichações; ou de outro modo, esse intervalar de
escritas de luz. Um segundo intervalo estaria na disjunção sonora
da trilha musical, que se acopla com o intervalar dos cortes das
imagens fotográficas, produzida com a gravação de sons de ações
cotidianas (lavar a louça, passar o café) em um trabalho de com-
posição baseado na obra Deserts (1954), do compositor Edgard
Varèse (1883-1965), compondo um ritornelo.
Amy Herzog (2009, p. 73), em seu livro Sonhos da diferença,
Sons do Mesmo18, apresenta o ritornelo no pensamento de Gilles
Deleuze e Félix Guattari:

18 Herzog, Dreams of Difference, Songs of the Same.

322 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Em Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Gilles
Deleuze e Félix Guattari introduzem a noção do ritornelo,
ou o refrão. Usando um amálgama de terminologias musi-
cais, científicas e filosóficas, eles expandem a definição do
refrão desde seu uso coloquial até uma abrangência de um
fenômeno complexo19.

Ainda segundo Herzog (2009, p. 73), “no nível mais básico,


refrãos20 são fragmentos de sons, cores, gestos, ou outros elemen-
tos expressivos que circulam e repetem através de relações indivi-
duais”. A autora complementa: “estas circulações contêm facetas
temporais, marcando com cada variação uma certa duração, ainda
que também tenham uma relação intricada com o espaço” (2009,
p. 73).
Haveria, pois, um terceiro intervalo entre imagens, o pró-
prio barco que desliza. Essa imagem, retirada do filme “O Arco”
(KIM KI-DUK, 2006), comporia também um fragmento dado
pela imagem-movimento.
Os três intervalos ou os tempos presentes concomitantes –
imagens fotográficas, sons, imagens-movimento – se atravessam
e não param de se cruzar em uma ordem aleatória, compondo um
todo heterogêneo constituído por esses intervalos-fragmentos e
que modulam signos e sentidos ao tecer uma colcha de retalhos
imagética, um patchwork infinito.
Se, como coloca Deleuze (2011, p. 79), as relações são exte-
riores aos seus termos, “por conseguinte, as relações serão pos-
tas como devendo ser instauradas, inventadas. Se as partes são

19 Nossa tradução.
20 Em inglês a tradução comum ao conceito de ritornelle de Deleuze e Guattari é refrain.
Optamos por manter ao longo do texto a tradução brasileira, ritornelo, e utilizar, apenas, a
palavra refrão para quando tratar-se de uma tradução direta do inglês.

Modulações em ritornelos de sons e luzes 323


fragmentos que não podem ser totalizados, pode-se ao menos
inventar entre elas relações não preexistentes...”.
Assim, as interações entre as imagens moduladas na
vídeoinstalação possuem uma relação entre si que não comporta
mais os possíveis sentidos do lugar de onde foram retiradas,
pois o sentido não está dentro de cada uma. A remodelação, ou
melhor, a remodulação operada em cada uma dessas imagens cons-
trói uma nova forma de expressão. Os fragmentos são repetidos
no ritornelo, mas a forma varia e, por conseguinte, os conteúdos
são arrastados juntos compondo sentidos diferentemente. Dito
de outro modo, novas relações foram criadas e, talvez, puderam
propulsionar sentidos outros, expressando formas e conteúdos em
um permanente devir.
Como já dissemos, a proposta educativa das instalações era
pensar a própria educação como vontade de potência. Teria essa
potência o poder de afetar com os signos que poderia expressar?

A afecção , pois, não é só o efeito instantâneo de um corpo


sobre o meu, mas tem também um efeito sobre minha pró-
pria duração, prazer ou dor, alegria ou tristeza. São passa-
gens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de
potência que vão de um estado a outro: serão chamados
afectos, para falar com propriedade, e não mais afecções. São
signos de crescimento e de decréscimo, signos vetoriais [...]
(DELEUZE, 2011, p. 178).

Em uma leitura deleuziana sobre o livro Ética de Baruch


Espinosa, os signos são “variações de potência (afectos) que reme-
tem uns aos outros” (DELEUZE, 2011, p. 180). Seguiriam uma
ordem que é a do “Acaso ou do encontro fortuito entre os corpos”.

324 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Os signos são efeitos: efeito de um corpo sobre outro no
espaço, ou afecção; efeito de uma afecção sobre uma duração,
ou afecto. [...] Os signos são efeitos de luz num espaço por
coisas que vão se chocando ao acaso (DELEUZE, 2011, p.
180)

Essa inovação de Deleuze com respeito à Espinosa (1632-


1677) passa também quanto ao modo de se olhar para as relações
entre o pensamento e a luz, em que Deleuze consegue conec-
tar um olhar filosófico com o cinema para pensá-lo filosofica-
mente e compor uma taxonomia das imagens cinematográficas.
Ressaltamos que tal aproximação com o cinema interconecta-se
com o funcionamento do cérebro e os atos de pensar e sentir.

A modulação nas imagens-


movimento e nas imagens-luz
Deleuze (2011, p. 457), ao pensar a imagem cinematográ-
fica, afirma que “quando relacionamos a imagem-movimento
com o cinema, seguramente queremos dizer que na imagem cine-
matográfica há coisas ou pessoas que se movem. Mas não é por
isso que há imagem-movimento”.
O filósofo francês toma o pensamento de Henri Bergson
(1859-1941), e problematiza que, para podermos compreender
o movimento da maneira mais concreta, há de “extraí-lo de seu
móvel ou veículo mediante um ato de espírito chamado intuição”
(DELEUZE, 2012, p. 458). Nossa percepção natural só capta-
ria o movimento ligado com algo que lhe servisse de móvel ou
veículo. Deleuze acredita que através das imagens cinematográfi-
cas poderíamos captar uma imagem-movimento que não está na

Modulações em ritornelos de sons e luzes 325


imagem em movimento como substância real. O cinema poderia
mostrá-la através do movimento de câmera, pois esse pode libe-
rar um movimento que é captado independente de seu próprio
móvel ou veículo, como também poderia exprimir uma imagem-
-movimento pela montagem do filme. Frisa que ambos podem se
intercalar, alternar.
Desse modo, captaríamos o movimento em sua extensivi-
dade. Mas de que modo a imagem-movimento estaria associada
ao movimento intensivo?
Deleuze (2011, p. 461) define a fotografia como molde
luminoso e, utilizando o pensamento de Gilbert Simondon
(1924-1989), propõe que o cinema seria uma modulação, um
molde contínuo e variável. “Na modulação pura as condições de
equilíbrio são alcançadas em um instante, mas também mudam a
cada instante” (DELEUZE, 2011, p. 461).
Essa ideia nos foi muito cara para pensarmos ambas as
instalações, assim como a potência do intervalo, ou seja, dessa
tendência da variação ao instante e que formaria um equilíbrio
efêmero entre imagem-movimento e imagem-luz, dando uma
dupla-face para a imagem cinematográfica.
Em outras palavras, a imagem cinematográfica é, conco-
mitantemente, uma imagem-movimento e uma modulação de
luz. Deleuze (2011, p. 462) diz que modular a luz é não parar
de extrair o movimento de seu móvel ou de seu veículo. Então
é imagem-movimento na medida em que extrai movimento do
seu móvel ou de seu veículo. E é imagem-luz no equivalente que
modula a luz. Com essas duas imagens, alcançaremos imagens
indiretas do tempo, segundo Deleuze (2011, 462). Não temos
movimento sem luz e transformação da luz, e não tem luz sem
movimento. A modulação é uma mobilidade.

326 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Se o que nos interessa é a luz, captamos nossa imagem-
-movimento não como imagem-movimento, mas sim como ima-
gem-modulação, imagem-luz. A luz é o movimento intensivo.
E se é assim, tem uma natureza diferente do movimento exten-
sivo. O movimento intensivo tem graus, enquanto o movimento
extensivo tem partes (um grau não é uma parte de movimento).
Essa segunda imagem do tempo é o tempo como composições de
luz, é uma intensidade.
Mas como Deleuze define uma intensidade e por que é uma
quantidade? É uma quantidade porque como toda quantidade é
a unidade de uma intensidade. No caso da extensão são partes
sucessivas, e a unidade é o agrupamento das partes no uno.
A imagem-luz está, portanto, diretamente relacionada com
o movimento intensivo e Deleuze (2011, p. 488) colocará que
a “imagem-movimento e a imagem-luz são como duas caras da
mesma moeda. De uma sai uma imagem do tempo como movi-
mento extensivo e de outra, como movimento intensivo”.

Ritornelos sonoros: do faneron às diferenças


O termo faneron, pensado pelos gregos e reelaborado na
semiologia de Charles Peirce (1839-1914), estaria mais próximo
à luz ou a outra face do fenômeno, pois este último aproximar-se-
-ia do movimento. Segundo Deleuze (2011, p.121) “o fenômeno
está mais próximo a uma imagem cinética”. Faneron é apresen-
tado na filosofia pragmática de Peirce como aquilo que aparece,
algo que se instala no mundo real: uma luz, um sinal, um som,
um toque.
A instalação sonora a parir sons trabalha a partir de uma
composição de sons da cidade, incentivando o público a interagir

Modulações em ritornelos de sons e luzes 327


e interferir na paisagem local, a criar e produzir outras referências
com o espaço da rua. A palavra, o ruído e o chiado buscam pro-
liferar encontros ainda (a)hierárquicos em graus e intensidades
pré-significantes.
O fundo conceitual de a parir sons é que se imagem pode
também ser definida como o que aparece, também podemos for-
mar imagens sonoras, táteis, olfativas e rasurar uma hierarquia de
perspectiva e percepção exclusivamente óptica.
O cinema e o vídeo podem nos dar imagem-visual e sonora,
embora já se estejam desenvolvendo sensações táteis.
O som pode aparecer de maneira harmônica ou não, pode
intensificar ou não as variações de notas, de timbres. No visível,
as imagens recebem também uma intensificação da luz. Quando
conectadas, perceberemos ambas pelas ondas e contornos, res-
pectivamente, mas também por contraste, por diferenciação
que podem diferençar diferentemente em cada vivente. Nosso
encontro com essas junções multiplicadoras será sempre singular,
embora possa haver aproximações.
Mas e quando projetamos apenas sons? E se esses sons vão
perdendo sua significância e coesão para serem repetidos em uma
outra variação? Haveria também uma força educativa em signos
sonoros assignificantes?
Segundo Silvio Ferraz (2004), ao falar de ritornelo, Gille
Deleuze e Felix Guattari sobrepõem três aspectos: (1) o curso-
-recurso, a ladainha, o canto reiterado dos pássaros, o movimento
de eleger um eixo; (2) a fuga do território, o desenho das linhas
de fuga; (3) a demarcação, o desenho do território advindo do
movimento em torno do eixo, a criação de um estilo.
A instalação a parir sons buscava através de trechos de
obras literárias, lidos e gravados com a maior perfeição possível,

328 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


reaparecerem em um ritornelo seguinte com falhas, apagamentos
e interferências da poluição sonora retirada da cidade, proposi-
talmente recolocadas na mesma gravação. Apareceria nesse áudio
um terceiro ritornelo que agora introduzia uma música na gra-
vação anterior de modo a tentar desestabilizar sentidos e lançar
outros signos por essa trilha sonora. Um acidente, enfim.
Para Silvio Ferraz (2004), escolher a permutação, a dinâmica
de incrustações, o acelerar e desacelerar dos compassos, são aci-
dentes. Não estão previstos no gesto inicial. Não há desenvolvi-
mento, há sim uma composição entre um gesto (que poderíamos
chamar de primeira imagem) e outros gestos (segundas imagens)
não necessariamente sonoros.
A parir sons intensificou-se como o primeiro modo empre-
gado em Ritornelo, que é o da permutação: aplicado sobre um
gesto bastante simples, dá a impressão de simples prolongamento
do gesto. Gera-se “uma série de inserções irregularmente medidas
que fazem de Ritornelo um jogo de espelhamentos, permutações
e incrustações” (FERRAZ, 2004, p. 66).

Instante, Acidente e Intervalo – a possível


mudança de uma qualidade
Deleuze (2011, p. 467) destaca que, no vivido, instante e
presente (intervalo) formam um misto. O presente é inseparável
de uma certa extensão de tempo, expressa a relação do tempo com
um movimento extensivo. O presente implica uma duração e um
tipo de duração (não está na duração, é em si uma duração). Todo
presente é um intervalo, toda passagem é o presente. Passa-se de
um estado ao outro, a passagem de uma qualidade a outra é um
presente.

Modulações em ritornelos de sons e luzes 329


Quanto ao instante, Deleuze (2011, p. 467) afirma que este
implica o surgimento da nova qualidade que se faz de uma vez,
que não é, portanto, um intervalo, e sim a extremidade de um
intervalo (quando o intervalo está efetuado). Também ressalta
que para ele o presente está fundamentalmente ligado à relação
da alma com o movimento no espaço, com o movimento exten-
sivo. Estaríamos constituídos por uma infinidade de presentes,
cheios de intervalos (respiratórios, batimentos cardíacos). Todos
intervalos são variáveis, assim todos tendem a uma diferença,
mesmo que sejam infinitamente pequenas. Portanto, ele poderia
dizer que o presente tende ao instante.
Também poderíamos pensar nossa educação com as ima-
gens o pensamento e a aprendizagem nessa diferenciação entre
intervalo e instante, entre quantidade e qualidade, pois parece que
não é por acúmulo ou reprodução de informações que mudamos
de qualidade ou tornamo-nos conscientes de algo. Uma possível
transformação viria de uma vez, ao sofrermos uma intensifica-
ção que nos fizesse sentir diferentemente, um movimento mais
próximo a um tempo intensivo, mas com o qual temos pouco ou
nenhum controle.
Mesmo que uma nova qualidade advenha, não deixamos de
estar implicados a uma extensividade, que subordina um tempo
ao movimento. Um nova qualidade não se fixa, portanto, como
algo estático e nem atinge a todos em séries de igualdades, de
maneira uniforme e sem variação. O vivente continua a deslocar-
-se pelo plano de imanência entre quantidades extensivas e qua-
lidades intensivas e tem o devir como motor das diferenças no
universo maquínico das imagens-movimento, que atualiza dife-
renças no vivente sem controle algum da consciência.

330 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


O devir também estaria implicado numa contínua diferença
da imagem-movimento em seu recorte na imanência, em que
movimento e luz atuam reciprocamente.
Assim, ao propormos ambas as instalações, vários concei-
tos atravessaram o processo de composição da instalação, mas
mesmo que presentes de uma certa maneira em sua forma final,
seus efeitos enquanto bloco de sensações e disparador de signos
submetem-se apenas às lógicas das relações em devires. Pois se a
ideia pode ocorrer no instante, o pensamento ocuparia o inter-
valo. Ressaltamos que cinema moderno mostraria que o intervalo
pode seguir percursos desconexos ou inventar novas conexões
resultando em novas ideias.
Como Gregg Lambert (2012, p. 156) bem mostrou acerca
do pensamento deleuziano quanto ao intervalo e ao cinema
moderno,

No esforço de responder questões sobre a relação entre o


cinema moderno e o pensamento (ou o cérebro), Deleuze
relata a história do cinema moderno demonstrando um vago
e nebuloso intervalo em que pensar está conectado à ima-
gem, apenas depois de seguir na direção errada e perder-se
em seu caminho de volta nos limites “da imagem” para a
atualização do intervalo no pensamento (LAMBERT, 2012,
p. 156).

As composições imagéticas de modul-ações e sonoras de a


parir sons oscilam entre equilibrio e desequilibrio ao apresentar
possibilidades de desarranjos entre junções ideais por um tempo
que atravessa o intensivo em sua possível atualização para o
instante que a luz revelará (como molde de luz – fotografia ou

Modulações em ritornelos de sons e luzes 331


modulação de luz – imagem cinematográfica), bem como o som
lançar-se-á no gesto do ritornelo; e o caráter extensivo do movi-
mento em que as cenas e sons transitam no intervalo. O que se
atualizará no intervalo não necessariamente será a resposta previ-
sível de um jogo de relações de formas conhecidas e nem gerará
identificações padronizadas.

Referências
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2013.
DELEUZE, Gilles. Cine II: Los signos del movimiento y el tiempo.
Buenos Aires: Cactus, 2011.
FERRAZ, Silvio. Ritornelo: composição passo a passo. Opus – revista
da associação nacional de pesquisa e pós-graduação em música – ANPPOM),
n. 10, 2004.
HERZOG, Amy. Dreams of difference, songs of the same. Minneapolis,
London: University of Minnesota Press, 2009.
LAMBERT, Gregg. In search of a new image of thought: Gilles Deleuze
and philosophical expressionism. Minneapolis, London: University of
Minnesota Press, 2012.

332 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Círculo de Pykatoti: ação e
demonstração de relações
míticas e místicas ameríndias

Rafael Cabral

A
performance “Circulo de Pykatoty” foi realizada pela pri-
meira vez no jardim do Programa de Pós-graduação em
Artes da Universidade Federal do Pará, no mês de novem-
bro de 2015. A partir de então ela vem se constituindo em work
in progres (COHEN, 1998). Essa performance provocou estí-
mulos diferentes que nunca havia vivenciado até então como
performer. A apresentação foi o resultado da disciplina “corpo
e performance na atuação cênica” ministrada pelo professor Dr.
Cesário Augusto Pimentel no Programa de Pós-graduação em
Artes, como o objetivo de experimentarmos artisticamente nosso
objeto de investigação.
A performance Círculo de Pykatoti faz referências com
o círculo da ancestralidade existente na contemporaneidade
mebengokre. Essa relação põe em uma experimentação artístico-
-performativa a união de arte e vida presente na cultura indígena
mebengokre em suas diversas forma de comunicação: pintura
corporal, artesanato, danças, cantos. Tendo também como rela-
ção a primeira grande aldeia mebengokre chamada de Pykatoty,
representando o momento histórico ancestral no percurso de
construção da performance.

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações míticas e místicas ameríndias 333


Ao longo da disciplina tivemos momentos teóricos e prá-
ticos acerca das proposições teórico-metodológica sobre per-
formance, entrando em contato também com instrumentos que
possibilitaram o entendimento à diferentes acepções do conceito
“performance” e suas diferentes abordagens, tanto a performance
strito sensu21 como lato sensu22.
A articulação entre os estudos que estávamos desenvolvendo
por meio de textos, vídeos e demonstrações actanciais para o trei-
namento do atuando estava reverberando em nossas proposições
para o trabalho final em processo. O conceito de performance tra-
balhado na disciplina tinha como sinônimo o mesmo de “actante”.
Essa proposição surgiu devido ao trajeto acadêmico-artístico do
condutor da disciplina que trabalha com a perspectiva do treina-
mento corporal do atuante por meio das práticas marciais orien-
tais no Grupo de Pesquisa GITA, filiado ao CNPQ, coordenado
pelo professor Dr. Cesário Augusto Pimentel.
A partir da vivência com aldeias mebengokre identifiquei a
intensa integração à dança que os povos originários têm com a
mãe natureza e sua manipulação com fatores enérgicos e técni-
cas corporais. Tal relação é evidente na movimentação corporal
e atemporal que os corpos dos indígenas estabelecem em uma
relação unívoca com os elementos que constituem seu ethos e sua
cosmovisão. Para Clifford Geertz:

Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e


estéticos) de uma dada cultura, os elementos valorativos,
foram resumidos sob o termo “ethos”, enquanto os aspectos

21 A performance enquanto linguagem, própria e independente.


22 A performance enquanto “desempenho” da atividade artística, dos processos de encenação
clássico e/ou contemporâneo actancial.

334 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


cognitivos, existenciais foram designados pelo termo “visão
de mundo”. O ethos de um povo é o tom, o caráter e qua-
lidade de sua vida, seu estilo moral e estético, e sua dispo-
sição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao
seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse
povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na
simples realidade, seu conceito da natureza, de si mesmo, da
sociedade (GEERTZ, 1989, p. 93).

O sistema político dentro de uma aldeia mebengokre fun-


ciona sempre com a localização da ngobe23 localizada caracteris-
ticamente no centro de uma aldeia mebengokre. Esse espaço é o
centro político de toda a aldeia mebengokre, funcionando como
local de realização de eventos ou reuniões para decisão de algo que
pertence ao domínio das organizações políticas dentro da aldeia.
Assim, é um espaço circular de decisões, acordos e discordâncias,
quase sempre localizado na lateral da casa do cacique da aldeia.
A manutenção do sistema social decorre das decisões na
ngobe decidido primeiramente por homens. Logo após a primeira
decisão os homens das famílias retornam as suas casas, conversam
com as mulheres, retornando assim com a decisão para a ngobe.
Isso decorre de um sistema de manutenção social no qual cada
indivíduo da aldeia tem um papel importante na constituição
familiar e da comunidade. As casas estão posicionadas de forma
circular no centro de uma aldeia mebengokre.

23 Significa “Casa do guerreiro” na língua mebengokre.

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações míticas e místicas ameríndias 335


Figura 1 – Aldeia de Kikretum em forma tradicional circular. Foto: Edmir
Amanajás

A relação das aldeias mebengokre com o círculo me chama


bastante atenção e tornou-se importante em meu percurso aca-
dêmico-artístico. A performance em questão materializa dife-
rentes códigos existentes no percurso investigativo do Mestrado
em Artes – UFPa. Tais códigos encontram-se organizados no
conceito da performance disparando efeitos estéticos e sensoriais
encontrados no cotidiano da vida ameríndia.
Quando estados de corpo e consciência24 são modifica-
dos, dilatam-se novas percepções de uma realidade vivenciada
outrora, aparece como um clarão, transformando o meu fazer
artístico parte de uma rede complexa que me retroalimenta como
artista-etno-pesquisador.
Seguindo o rumo da flecha, procurei estabelecer um traba-
lho por meio do processo de testes corporais onde o meu corpo

24 A indissociabilidade entre corpo e consciência. Esses estados, dinamicamente construídos


e mantidos apenas temporariamente, quando nos referimos à vida da arte, são construídos
com base em práticas, comportamentos e técnicas (BIAO).

336 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


pudesse chegar ao nível da exaustão a partir do movimento cir-
cular que denominei como “macrocosmo” os giros em torno do
círculo, e “microcosmo” os giros em torno do meu próprio eixo.
Comecei experimentando movimentações circulares do quadril,
dos joelhos, da coluna vertebral, tentando experimentar possíveis
incômodos que pudera estabelecer em semi-rotações ou mesmo
desconfortos causados pela forca da gravidade que atua na Terra.
Fui também experimentando alguns cantos que aprendi durante
os campos de pesquisa vivenciados em aldeias da etnia indígena
mebengokre. Assim, experimentando sons e modos de comuni-
cação por meio do texto verbal que pudessem disparar memorias.
Porém me preocupava nesse momento com o trabalho precisa-
mente corporal que meu corpo dispunha para realizar os giros
num círculo imaginário.
O que me auxiliou no trabalho energético foi algo que
recordei da relação com os pontos cardeais utilizados dentro
da aldeia indígena. Ainda não tenho dados precisos com rela-
ção à localização característica do local de construção da nbobe,
da casa do cacique ou mesmo do pajé, se essas são construídas
simbolicamente em cada local, ou se são construídas devido uma
necessidade espacial, ou mesmo as duas coisas. Pois isso fará com
que a organização do círculo da performance tenha tal ligação.
Verifiquei nas aldeias Apexty, Kikretum e Turejam diferença na
localização de acordo com as aldeias. Porém percebi algo em
comum. A casa do pajé está localizada nestas aldeias sempre a
oeste. Com isso a organização de meu círculo performativo obe-
dece tal direção.
Tal localização geográfica foi importante para me conectar
aos domínios mágicos que interferem em minhas escolhas como
performer na construção em processo de um ritual xamânico.

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações míticas e místicas ameríndias 337


Assim comecei a traçar a partir dessa observação um mapea-
mento de onde começaria cada ação até o momento de entrar
no círculo, entrar em transe e sair do círculo. A partir desse
momento comecei a perceber a relação que algumas danças de
rituais poderiam ser a chave de inspiração para justificar a dilata-
ção de tempo-espaço.
Nesse sentido desloco esse movimento circular para a per-
formance como forma de alterar meu corpo chegando à limites
que ainda não havia explorado fisicamente. O percurso inicial
dessa performance foi bastante difícil. Primeiramente porque
dispor o corpo girante em círculos em um tempo-espaço alterado
não se tornou tarefa fácil. A respiração era algo que precisava sin-
cronizar com o movimento característico das batidas de pé dos
indígenas mebemgokre. Tal batida, a priori, percebia que deveria
ter as mesmas qualidades de movimento presentes na movimen-
tação mebengokre.
Eu pensava que a movimentação dos pés era na direção de
cima para baixo, porém não percebia nas danças, em nenhum
específica, falando de forma geral, a força dos pés em sentido à
terra. Foi quando brilhantemente ao perguntar, Erejane, mulher
do cacique de Apexty, indicando que a movimentação era con-
trária, no caso, de baixo para cima. Essa alteração do movimento
dos pés modificava minha relação com o espaço e com meu corpo,
pois causava desequilíbrio que precisava investigar com mais cau-
tela. Tal proposição gostaria de incluir no trabalho do Círculo de
Pykatoti.
Nesse momento comecei a re-pensar o espaço da perfor-
mance. Para mim era claro que o espaço precisava ter algum
elemento vivo além do meu corpo-espirito. Ter a possibilidade
de manipular as energias que vinham das árvores, das folhas, da

338 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


grama, era a força que precisava para desenvolver a performance.
Esses elementos me davam segurança no momento do giro. Algo
que fui experimentando também que contribuía nesses testes era
o local de oferendas ficar onde o sol nasce, conectando energias
invisíveis.
Nesse sentido precisava criar uma forma de organização que
me daria vida, além dos testes corporais que estava submetendo
meu corpo a níveis sutis da percepção e da dilatação dos sentidos,
e da exaustão também. É bobagem para um leigo, mas está em
contato com os elementos da natureza ajudava a evocar estímulos
que imaginava e acontecia: ventos, chuva, luz etc. Assim como a
força que precisava para continuar.
Era primordial que olhasse com mais atenção sobre a cone-
xão com os elementos que formam nossos sistemas vitais. Elegi
assim os quatro elementos que estariam dispostos ao longo do
círculo e que ativaria no começo da performance. Algo curioso
que aconteceu durante o percurso final da disciplina, onde pre-
cisaríamos mostrar para os demais alunos matriculados na dis-
ciplina e para o professor Dr. Cesário Augusto como forma de
avaliação continuada, foi um momento de muito entrega que
extrapolou meu controle interno.
Durante essa demonstração para a classe, logo após a apre-
sentação dos demais colegas, comecei a realizar os giros, anterior-
mente ativando os elementos como fogo, agua, terra e ar ao longo
do círculo. No momento realizando os giros em “macrocosmo”
no sentido anti-horário percebia minha consciência indo para
um nível diferente de alteração que havia pretendido, alterando-
-me. Tal momento foi marcante pois sentia meu corpo presente,
ainda assim “puxando” minha consciência devido à força da gra-
vidade, mas algo em mim queria subir. Ficava no círculo por

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações míticas e místicas ameríndias 339


aproximadamente trinta minutos. Logo após esse tempo do qual
não controlava, entrava no giro microcosmo intuitivamente. Meu
corpo era o condutor conscientemente, dando continuidade ao
“microcosmo” onde a movimentação se centraria nos giros em
torno de meu próprio eixo.
Esse experimento começou a levar minha consciência para
outros níveis de percepção durante o período que realizava os
giros. Existiam momentos de deslocamento do corpo e da cons-
ciência, principalmente nos momentos no qual a velocidade se
mantinha constante no círculo. Algo que não esperava era que
esse trabalho pudesse afetar diretamente as testemunhas da ação
performativa. Algo que não esperava era que esse trabalho iria me
conectar à domínios não comprovados pela “ciência” racionalista.
A sensação que sentia ao realizar os giros era de meu corpo em
transe, uma sensação no âmbito de incorporação. Em nenhum
momento os movimentos eram inconscientes, porem minha
consciência se conectava com o sol, com as árvores, sentindo uma
relação muito forte com minha ancestralidade.
Ao final do trabalho aconteceu algo que sinceramente não
esperava. Os movimentos realizados pelo tempo-limite do meu
corpo que em média durou cinquenta minutos me colocaram em
uma velocidade constante do qual não conseguia parar. A possi-
bilidade de chegar a esse estado alterado de corpo e consciência
despertou naquele momento uma sensação de desespero. O choro
durante as voltas no círculo me fazia chorar involuntariamente,
com o corpo em movimento, olhos semiabertos e pavor interno
pela possibilidade de talvez nunca parar. Algo que nunca havia
sentido que talvez tenha saído do controle.
O tempo estava alterado, não sentia meu corpo cansado,
mas ao mesmo tempo sentia um temor e incômodo na região da

340 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


barriga, mais precisamente no final do esôfago. Sentia vontade de
vomitar também. Com os olhos cerrados conseguia observar ao
mesmo tempo, o espaço e a turma. A turma nesse momento man-
teve o controle assim como o professor da disciplina. Professor
Dr. Cesário Augusto falava algumas palavras-força para que eu
pudesse voltar do transe que tinha emergido.

Figura 2 – Primeira Apresentação – momento estático no giro microcosmo.


Foto: Martin Perez

Essa foi a primeira vez que sentia algo que não tinha um
controle psicofísico por completo, ao mesmo tempo eu tinha o
domínio do movimento corporal no círculo. Esse movimento
de alguma forma foi produzindo no meu corpo um movimento
constante do qual a energia centrifuga estava atuando. Ao final do
círculo ainda no “macrocosmo” sentia como se meu corpo fosse
puxado para o centro do círculo. Uma força de domínio da física

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações míticas e místicas ameríndias 341


puxava meu corpo para o centro fazendo com que meu corpo
tivesse uma leve inclinação para o centro do círculo.
Ao entrar no momento em microcosmo, no qual os giros
começavam a ser em torno do meu próprio eixo, senti minha cons-
ciência voltando, meus olhos abrindo. Sentia meu corpo dolo-
rido, principalmente os pés. Meus olhos queriam nesse momento
enxergar, estavam muito abertos, porém havia um grande desfo-
que nas imagens que via. Nesse momento ainda estava girando,
agora em meu próprio eixo.
No momento da parada foi me dando uma sensação de alí-
vio e angústia ao mesmo tempo que proporcionava mais ainda o
choro, agora consciente. Nessa hora percebi que algo havia acon-
tecido ao redor. As pessoas me olhavam com cara de assustadas,
outras haviam dormido, outras angustiadas com o sofrimento que
haviam apresentado no retorno.
Para mim a melhor sensação foi o retorno. Sentia que tudo
era palpável novamente, que as pessoas estavam lá e que eu havia
chegado ao transe. Essa alteração culminou nesse dia, porém já
havia experimentando ao longo do segundo semestre de 2016 até
o momento da apresentação. O transe para mim era o objeto que
gostaria de investigar. Essa mesma alteração corporal motivada
pelo movimento do corpo alterando a consciência.
Após a apresentação comecei a me perguntar se isso era tea-
tro, performance ou vida? Pois a princípio a audiência não partici-
pava no ato, mas ao mesmo tempo sim, pois ao final, estavam em
transe. Acabei sendo provocado pelos colegas da disciplina que
ficaram preocupados com a ação. Essa experimentação possibili-
tou a reflexão sobre o caráter sagrado que as danças juntamente
com os cantos podem ter para a cosmovisão da etnia mebengokre
e para mim como artista-etno-pesquisador. Não são apenas os

342 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


giros, são as confluências e a união de tudo que nos separa e nos
limita invisivelmente.
Para os mebengokre a natureza é seu lugar de troca, de afeto
e de mistérios. Os deuses estão no crescimento das plantas, no
peixe da água, na mandioca da roça. Essa proposição faz com que
os indígenas manipulem tais energias para a cura e para enfren-
tar seus problemas. A aproximação da floresta possibilita a esses
indígenas o controle energético que influencia sua relação com o
corpo e com a cosmovisão ameríndia

Referências
BIÃO, Armindo. Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia.
Bahia: P&A, 2007.
BIÃO, Armindo. Colóquio internacional de Etnocenologia. Bahia: Fast
Design, 2007.
BIÃO, Armindo. Etnocenologia e a Cena Baiana: textos reunidos. Bahia:
P&G Gráfica e Editora, 2009.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
LAGROL, Els. Arte indígena no Brasil. Belo Horizonte: C/ Arte, 2009.
LE BRETON, David. Sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2007.
PAVIS, Patrice. Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva,
2008.
TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974
COHEN, Renato. Work in progresso na cena contemporânea. São Paulo:
Perspectiva, 1998.

Círculo de Pykatoti: ação e demonstração de relações míticas e místicas ameríndias 343


Sobre as organizadoras

Silvia Nogueira Chaves


Professora da Universidade Federal do Pará – UFPA,
Licenciada em Ciências Biológicas pela UFPA (1986), Mestre
(1993) e Doutora (2000) em Educação pela Universidade Estadual
de Campinas – UNICAMP (2000). Coordena o Grupo de Estudos
e Pesquisa sobre Cultura e Subjetividade na Educação em Ciências;
do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e
Matemáticas – PPGECM/UFPA, no qual é docente. Desenvolve
pesquisas no campo dos Estudos Culturais e das Narrativas e (Auto)
biográficas, com base nas quais tem publicado artigos, livros e capí-
tulos de livros. Organizou os livros Memórias de Formação e Docências:
Histórias e Trajetórias de (trans)formação e Formação e Docência:
Perspectivas da Pesquisa Narrativa e Autobiográfica, resultante do
Projeto de Formação e Docência, financiado pelo CNPq. Organizou,
ainda, o livro Cultura e Subjetividade: Perspectivas em debate e publi-
cou o livro Reeencantar a Ciência, Reinventar a Docência. Editora da
Revista Experimentart, do grupo de estudos Cultura e Subjetividade
na Educação em Ciências, do PPGECM/UFPA. Desenvolve pes-
quisas na área de Educação, com ênfase em Educação em Ciências
e nos Estudos Culturais da Ciência, abordando principalmente os
seguintes temas: Formação de professores, Processos de Subjetivação
e Narrativas Autobiográficas. É associada à Universidade livre
de Autobiografia de Anghiari – IT. Desenvolveu Estágio Sênior
na Universidade de Estudos de Milão Bicocca – UNIMIB, na
Faculdade de Ciências da Formação. Atualmente coordena o Projeto
de Pesquisa Autobiografia, Arte e Cinema na Formação Docente.
schaves@ufpa.br

Maria dos Remédios de Brito


Possui graduação em Pedagogia e em Filosofia pela
Universidade Federal do Pará (UFPA), Especialização em
Educação e Problemas Regionais pela Universidade Federal do
Pará (UFPA), mestrado e doutorado em Filosofia da Educação
pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Pós-
doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Atualmente, é professora associada
da Universidade Federal do Pará, no Instituto de Educação
Matemática e Científica, atuando na graduação e pós-graduação
do mesmo Instituto. Editora da Revista Experimentart, ligada ao
grupo de estudos Cultura, Subjetividade e Educação, Universidade
Federal do Pará. É membro do grupo de estudos em Cultura,
Subjetividade e Educação em Ciências, cadastrado no CNPq,
coordenadora do grupo de estudos Transitar, da mesma institui-
ção. É autora de vários artigos especializados na área de Filosofia
da Educação. Autora do livro Educação pelas linhas da diferença,
publicado pela livraria da física/São Paulo. Tem experiência na
área de Educação, com ênfase em Filosofia da Educação, atuando
principalmente nos seguintes temas: Filosofia da Diferença e
Educação, Subjetividade e Educação, Formação, Transversalidade.
Coordenou vários livros com a temática da Educação em cone-
xões com a Filosofia e Filosofia da Educação pela editora da
Universidade Federal do Pará (EDUFPA). Foi coordenadora do
Curso de Especialização em História e Filosofia da Educação/
Campus de Abaetetuba e colaborou no projeto do Curso de
Especialização em Filosofia da Educação/ICED. (mrb@ufpa.br)

346 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Sobre os autores

Alberto Amaral
Graduado em geografia pela Universidade Federal do Pará
(2003), especialização em filosofia contemporânea pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006) e Saúde Mental
e direitos humanos (UFPA/ FHCGV) (2008) e mestrado em
Teoria Psicanalítica UFRJ (2009). Atuando principalmente nos
temas, arte, psicanálise e escritas contemporânea na política da
amizade com base nos estudos de Michel Foucault, Deleuze,
Guattari, Battaille, Blanchot, Barthes dentre outros pensadores
Pesquisador dos Grupos Arte, Corpo e Conhecimento (CNpq
-UFPA) e Grupo de Estudos Blanchotianos e de Pensamento
do Fora (CNPq-UNB).Organizador e idealizador dos colóquios
Blanchot: literatura, amizade, uma vida - Dez anos da Morte de
Maurice Blanchot (março de 2013); Colóquio: O que pode o
Corpo: 30 anos de morte de Michel Foucault? (agosto de 2014).
Desenvolve suas pesquisas em torno da escrita e do pensamento
do Fora e do Outro num intenso diálogo entre a filosofia e as
obras de artes (Literatura, Fotografia e outras produções artísti-
cas. Contato: albertoamaral@gmail.com

Alda Romaguera
Professora/pesquisadora. Graduada em Pedagogia pela
Universidade Estadual de Campinas (1993). Mestre em Educação
pela Universidade Estadual de Campinas (2003) e Doutora em

Sobre os autores 347


Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2010), na
área temática: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte.
Atua em programas de pós-graduação lato sensu desde 2005 e
pós-graduação stricto sensu desde 2012, com foco na formação
docente e cotidiano escolar. Desenvolve projetos de pesquisa,
organiza oficinas de criação e exposições, como pesquisadora
colaboradora do grupo OLHO na FE/UNICAMP. Professora
pesquisadora da Universidade de Sorocaba – UNISO. Contato:
aldaromaguera@hotmail.com

Alik Wunder
Professora e pesquisadora na Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas. Doutora em Educação
pela Unicamp, pesquisa as relações entre educação e imagem,
principalmente com os temas: fotografia, cultura e filosofia con-
temporânea no grupo OLHO na FE/Unicamp e é colaboradora
do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor),
Unicamp. Integra a diretoria da Associação de Leitura do Brasil
(biênios 2011-2012 e 2013 e 2014).
Contato: alik.wunder@gmail.com

Amanda Maurício Pereira Leite


Doutora e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Professora Adjunta da Universidade
Federal do Tocantins (UFT). Fotógrafa com formação pelo
Departamento Artístico Cultural (UFSC/DAC). Pedagoga for-
mada pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).

348 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Vice-coordenadora do curso de Pedagogia da Universidade
Federal do Tocantins (UFT/campus Palmas). Coordenadora
do Coletivo 50º (Fotografia). Pesquisadora do Grupo Transver
- Estudos entre: Educação, Comunicação e Artes (UFT).
Pesquisadora do Coletivo Tecendo: cultura arte educação
(UFSC). As pesquisas atuais situam-se no campo dos Estudos
Culturais e desejam pensar a Educação a partir de perspectivas
pós-estruturalistas Contato: amandaleite@uft.edu.br

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim


Graduado em Biologia pela Universidade Federal de
Viçosa realizando mestrado e doutorado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas e Livre Docência nessa
mesma Universidade. Atualmente é Professor Associado II (MS-
5.2) da Universidade Estadual de Campinas, no Departamento
de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, pesquisador
do Laboratório de Estudos Audiovisuais (Olho) e pesquisador
associado no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo
(Labjor). Pesquisador da Sub-Rede “Comunicação e Cultura
Científica”, dentro da Rede Clima. Vice-Presidente/Sudeste da
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd) no Biênio 2013-2015. Editor da Revista Brasileira de
Educação (RBE) e Editor Científico da ETD – Educação Temática
Digital. Possui experiência de investigação na área de Educação,
com ênfase nas relações entre Currículo e Culturas Audiovisuais.
Nas pesquisas, busca articulações principalmente entre os seguin-
tes temas: educação, arte e cultura visual; currículo, imagens e
pós-estruturalismo; divulgação científica e cultural.
Contato: acamorim@unicamp.br

Sobre os autores 349


Breno Filo Creão de Sousa Garcia
Mestrando em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em
Artes da Universidade Federal do Pará, aluno da formação em
Psicanálise do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção
Belém, bacharel e licenciado em Artes Visuais (FAV-UFPA) e téc-
nico em Design (IFPA). É designer, artista, pesquisador, educador,
e integra os grupos de pesquisa Bordas Diluídas: questões da espa-
cialidade e da visualidade na arte contemporânea; (UFPA), LAB
AMPE - Laboratório Ambiento-Corporais em Atravessamentos e
Experimentações: Imaginação, Amor, Arte e Política na Amazônia;
(UFPA) e GEPETU - Grupo de Estudo, Pesquisa e Experimentação
em Teatro e Universidade;. Está em movimento de pesquisa de cunho
epistêmico e poético, na qual cartografa paisagens experimentais atra-
vessando processos de criação em artes. Desenvolve contínuo interesse
nos Saberes da Floresta, Perspectivismo Ameríndio, Estudos de pro-
dução de Presença e Sentido, Processos de Subjetivação, Biopolíticas
ecológicas, Narrativas (Auto)biográficas, Práticas Lúdicas (em especial
teatrais e de jogos de interpretação de personagens), Técnicas de Si e
Desenho Experimental. Contato: brenofilo@gmail.com

Carlos Augusto Silva e Silva


Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal do Pará (2014), tendo experiência na área da educação com
ênfase no ensino/aprendizagem em ciências e formação de pro-
fessores. É aluno de Mestrado pelo Programa de Pós Graduação
em Educação em Ciências e Matemáticas, Universidade Federal
do Pará e especialização em andamento em metodologia do
ensino de biologia e química.
Contato: carlosaugusto.s02@gmail.com

350 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Debora Souza
Graduanda em Letras Língua Portuguesa UFPA, mem-
bro do grupo de pesquisa Arte, Corpo e Conhecimento (CNPq
UFPA). Contato: deborasuely@yahoo.com.br

Emanuela Mancino
É pesquisadora efetiva da Faculdade de Ciências da
Formação da Universidade de Estudos de Milão Bicocca, onde
ensina Filosofia da Educação. É membro do conselho diretor
do colégio docente da Universidade Livre de Autobiografia de
Anghiari e responsável científico-organizativa da Academia do
Silêncio. Idealizadora e realizadora de numerosos Projetos de
formação e pesquisa nacional e internacional – que exploram os
aspectos narrativos da educação cognitiva e emocional através
da potência da linguagem cinematográfica e poética. Fundou e
coordena um grupo de pesquisa sobre processos educativos, na
Universidade de Estudos de Milão Bicocca. É responsável pelo
curso de escrita autobiográfica e criativa do projeto “Um teatro na
ponta da caneta” realizado pelo teatro Verdi de Milão, em colabo-
ração com o Teatro do Buratto de Milão do qual é colaboradora a
mais de dez anos. Realizou, idealizou e dirigiu pesquisa e forma-
ções nacionais e internacionais com a Academia de Arte e ofícios
do Teatro Scala de Milão. É autora de numerosos ensaios, artigos
e livros sobre narração e aprendizagem, cinema e autobiografia,
Filosofia e Pedagogia da narração através da linguagem cinema-
tográfica poética e mitológica. Contato: emanuelabic@gmail.com

Sobre os autores 351


Erasmo Borges de Souza Filho
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
(2003); Mestre em Educação (1998) e Especialista em Educação
(1992) pela UNAMA-PA. Graduação em Serviço Social (1989),
Licenciado em Desenho (1982) e Engenharia Civil (1980) pela
UFPA. Professor adjunto III no curso de Artes Visuais, Cinema
e Audiovisual, e do Programa de Pós-graduação em Educação
em Ciências e Matemáticas da Universidade Federal do Pará;
Foi professor Titular nos cursos de Comunicação Social, Artes
Visuais e Tecnologia da Imagem, e do Programa de Mestrado
em Comunicação, Linguagens e Cultura, da Universidade da
Amazônia, UNAMA, no período 1982-2015; Áreas de atuação:
Semiótica; Artes Visuais e Tecnologia da Imagem; Desenho e
ilustração digital; Fotografia Digital; Audiovisual; Animação
e Multimídia. Pesquisa na área de:Etnomatemática; Educação
Indígena; Semiótica na relação Cinema e Literatura. Contato:
efilho90@hotmail.com

Helane Súzia Silva dos Santos


Mestre em Biologia dos Sistemas Costeiros; Professora
do Instituto Federal de Educação do Pará. Professora efetiva
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Pará e professora da Secretaria de Estado de Educação do Pará.
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação em
Ciências e Matemáticas/Instituto de Educação Matemática e
Científica/Universidade Federal do Pará.
Contato: helanesantos@yahoo.com.br

352 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Joana D’Arc Chaves de Campos
Estudante de Graduação do Curso de Licenciatura Integrada
em Educação em Ciências, Matemáticas e Linguagens. Bolsista
IC CNPq. Contato: jdcc.darc@gmail.com

JOEL CARDOSO
Pós-Doutor em Artes (Literatura & Cinema) UFF-RJ.
Doutor em Letras: Literatura Brasileira e Intersemiótica UNESP-
SJRP, SP (2001); Mestre em Letras: Teoria da Literatura pela
UFJF (1996). Graduado em Letras Modernas (português/alemão
– USP), Pedagogia (USP) e Direito (Instituto de Ciências Sociais
Vianna Jr., Juiz de Fora, MG, OAB: 60295-MG). Especialista
em Língua Portuguesa: Linguística Aplicada (Simonsen, RJ).
Professor de música (piano clássico). Desde 2002, é docente da
Universidade Federal do Pará. Atua nos cursos de Graduação
e Pós (Mestrado e Doutorado em Artes, ICA). É pesquisador
das Poéticas da Modernidade, transitando pelas áreas de Letras,
Comunicação e Artes, com ênfase na correspondência entre os
diversos signos e linguagens, privilegiando as relações entre palavra
e imagem (Literatura e Cinema, TV, Teatro etc.). Autor do livro
Nelson Rodrigues: da palavra à imagem (Intercom, SP). Organizou,
com Bene Martins, Desdobramentos das linguagens artísticas: diá-
logos interartes na contemporaneidade; (UFPA-PPGArtes, PA),
e Dos palcos às telas do cinema (2015, UFPA). Desde dezembro
de 2014 é Diretor Adjunto do Instituto de Ciências da Arte, da
UFPA. Contato: joelcardosos@uol.com.br

Sobre os autores 353


Jorge Vasconcellos
Doutor em Filosofia/UFRJ. Professor do Departamento
de Artes e Estudos Culturais/RAE e do Programa de Pós-
graduação em Estudos Contemporâneos das Artes/PPGCA
da Universidade Federal Fluminense/UFF. Líder de Grupo do
Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq: práticas estético-polí-
ticas na arte contemporânea/UFF. Atua como ativista e ‘artista-etc.’
no Coletivo de Arte e ações estético-políticas 28 de Maio. Autor,
entre outros, de Deleuze e o Cinema e Arte, Vida e Política: ensaios
sobre Foucault e Deleuze. Contato: jlr.vasconcellos@gmail.com

Leandro Belinaso
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina,
Licienciado em Ciências Biológicas e Doutor em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Atua na formação
de educadores/as ambientais e de professores/as de ciências e de
biologia, praticando pedagogias com as imagens e as narrativas
embebidas de ficção. Orienta pesquisas que articulam educação,
arte, cultura, a partir de perspectivas que flertam com os estudos
culturais e as filosofias da diferença.
Contato: lebelinaso@gmail.com

Luciana Gruppelli Loponte


Possui graduação em Licenciatura Plena em Educação
Artística Hab. em Artes Plásticas pela Universidade Federal
de Pelotas – UFPEL (1990), Mestrado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (1998) e
Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio

354 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Grande do Sul – UFRGS (2005). Atualmente é pesquisadora e
professora associada do Departamento de Ensino e Currículo da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação
em Educação, na linha de pesquisa Arte, linguagem e currículo.
Foi vice-presidente da FAEB (Federação de Arte-Educadores do
Brasil) de 2006 a 2008 e coordenadora do Grupo de Trabalho
(GT) 24 – Educação e Arte da ANPEd (Associação Nacional
de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) de 2008 a 2010,
e membro do Comitê Cientifico da entidade de 2010 a 2015.
Nos últimos anos, tem obtido financiamento do CNPq para
suas pesquisas (Edital Universal 2007, 2010 e 2013). É líder do
ARTEVERSA – Grupo de estudo e pesquisa em arte e docên-
cia (UFRGS/CNPq). Tem experiência na área de Educação, com
ênfase em Ensino de Arte, atuando principalmente nos seguintes
temas: ensino de arte, formação de professores, formação estética
docente, arte e educação, gênero e artes visuais.
Contato: luciana.arte@gmail.com

Luciane de Assunção Rodrigues


Licenciada Plena em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal do Pará (1998). Especialista em Educação Ambiental
(NUMA/UFPA-2000). Mestre em Educação em Ciências e
Matemática pelo Programa de Pós-graduação em Educação em
Ciências e Matemáticas pelo Instituto de Educação Matemática
e Científica – PPGECM/IEMCI/UFPA(2010). Doutoranda
do PPGECM/UFPA. Professora de Ciências e Biologia da
Secretaria de Estado de Educação do Pará- SEDUC/PA desde

Sobre os autores 355


2003. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em
Ensino de Ciências e Biologia.
Contato: lucianebelle@yahoo.com.br

Marcus Pereira Novaes


Possui graduação em Educação Física (2000) e Pedagogia
(2004) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-
Campinas) e Mestrado em Educação pela Universidade Estadual
de Campinas (2014), na área de Educação, Conhecimento,
Linguagem e Arte. Atualmente é Coordenador Pedagógico –
Fundamental I – do Colégio Educap e membro da atual Diretoria
da Associação de Leitura do Brasil (ALB). Também é pesquisa-
dor colaborador do grupo OLHO – Faculdade de Educação –
Universidade Estadual de Campinas, e editor da Revista Linha
Mestra (digital). Tem experiência na área de Educação, com
ênfase nos seguintes temas: “filosofia das diferenças”, imagem e
audiovisual. Contato: novaes.marcus@hotmail.com

Marli Wunder
Fotógrafa, pintora e arte-educadora, já realizou diver-
sas exposições fotográficas e atua como artista convidada do
Coletivo Fabulografias e Núcleo de Leitura da Associação de
Leitura do Brasil: possibilitam espaços em que jovens de esco-
las públicas, universitários, pesquisadores, artistas encontrem-
-se com as dimensões estéticas da literatura e das artes visuais e
estimulando a criação coletiva com palavras e imagens, em espe-
cial, com a poesia e com a fotografia. Participaram das oficinas
de escrita literária: Alessandra Melo, Rodolfo Fordiani, Angélica

356 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)


Brotto, Cláudio Camargo, Diego Alexandre de Souza, Davina
Marques, Maisa Calazans, Pamela Sanches, Lilian Barbosa,
Murilo Salvador. Contato: http://fabulografias.weebly.com/ e
http://fabulografias-alb.blogspot.com.br/

Rafael Cabral
É professor de arte, ator, fotografo. Formado pelo Curso
Técnico de Formação em Ator pela Escola de Teatro e Dança
da UFPA. Graduado em Licenciatura Plena em Teatro pela
Universidade Federal do Pará. Especialista em filosofia da educa-
ção-UFPA. Mestrando em artes-UFPA. Estuda a cosmovisão da
etnia Mebengokre na Amazônia em sua espetacularidade ame-
ríndia na reflexão e experimentação artística.
Contato: rafarcabral@hotmail.com

Renata Ferreira da Silva


Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal
de Santa Catarina. Atriz e professora Adjunta do curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins
(UFT). Sobre a exposição “Escavações” na Revista Clima Com
Cultura Científica. Contato: renataferreira@uft.edu.br

Wladilene de Sousa Lima


Artista-pesquisadora com mestrado e doutorado em
Artes Cênicas pela UFBA e estágio de Pós-doutoramento no
Programa Doutoral em Estudos Culturais das Universidades
de Aveiro e Minho, Portugal. Na UFPA, trabalha no Programa

Sobre os autores 357


de Pós-graduação em Arte e na Escola de Teatro e Dança. Atua
como atriz, diretora e cenógrafa na categoria teatral da cidade de
Belém do Pará, especificamente, nos seguintes coletivos: Grupo
Cuíra do Pará e Coletivas Xoxós. É a gestora artística do Poética
Criatura – Laboratório de Teatro de Porão, novo espaço de criação
e resistência artivista, localizado no centro histórico da cidade de
Belém. Contato: gordawlad@yahoo.com.br

358 Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)

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