Temas contemporâneos
em psicologia
Sumário
Capítulo 3 – Disciplina TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM PSICOLOGIA.............................. 06
3.2.4 Essas são as recomendações apontadas pelos indígenas aos profissionais psicólogos
para atuação no campo da saúde indígena e que foram organizadas em sete campos
principais (CRP-SP, 2010):.......................................................................................................... 21
3.3 Modos de vida itinerantes e o cuidado às pessoas em situação de rua: a psicologia que se
faz ao andar........................................................................................................................................ 22
3.3.3 A psicologia que se faz ao andar: reinventando a prática para intervir em situação
complexas...................................................................................................................................... 27
04
Capítulo3 Disciplina TEMAS
CONTEMPORÂNEOS EM
PSICOLOGIA
Introdução
Esta unidade é continuidade da discussão realizada na Unidade 2, em que pudemos relacionar
os pressupostos dos direitos humanos com a atuação ética do psicólogo.
Nesta unidade de ensino, iremos destacar quatro aspectos que exigem do profissional psicólogo
a reflexão contínua sobre sua própria prática, de modo a não reproduzir preconceitos,
iniquidades e exclusão historicamente construídos. É importante lembrar que nosso código de
ética tem como pressuposto que nossa prática permeie ações de promoção de saúde e a
qualidade de vida das pessoas e das coletividades, entendendo que o psicólogo contribuirá
para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
A Unidade 3 contará com a discussão sobre a prática do psicólogo nas relações étnico-
raciais, ou seja, serão abordadas as iniquidades históricas em relação à população negra e a
perpetuação do racismo em nossa sociedade. Traremos a importância do posicionamento ético
do profissional psicólogo contra o racismo e qualquer forma de preconceito e opressão.
O terceiro tema abordado será a atenção às pessoas em situação de rua. A principal pergunta
que esse tópico pretende responder é: como o psicólogo irá atuar no contexto da rua? Como se
dá a atuação fora do chamado setting terapêutico? Nesse sentido, iremos trazer a importância
da atuação em rede entre as políticas de saúde e da assistência social, além da necessidade
do profissional psicólogo reinventar sua prática.
Por fim, trataremos de um tema atualíssimo e ainda pouco discutindo no campo, que é a atenção
às pessoas em processo migratório e os desafios de exercermos uma psicologia que seja
transcultural.
06
Temas Contemporâneos em Psicologia
A história do processo de escravidão dos povos africanos é marcada por muita violência,
desumanização e condições miseráveis de vida. Eles foram capturados à força nas terras onde
viviam e foram trazidos para as Américas em situação precária. Muitos não conseguiam cruzar
o oceano atlântico e morriam durante a viagem, vítimas de doenças, maus tratos e fome. Os
escravos que sobreviviam a essa viagem eram separados de outros escravos da mesma tribo ou
da mesma referência cultural para que fossem impedidos de se comunicar: ou seja, lhes eram
negadas todas as possibilidades de humanização.
Ao chegarem no continente americano, eram vendidos aos seus senhores para servir de mão
de obra, principalmente nas lavouras de cana-de-açúcar aqui no Brasil. Os que se recusassem
a realizar as atividades ordenadas pelo senhor eram submetidos a castigos violentos. Em
síntese, além de todo o processo vivido pelos povos que vieram escravizados da África para o
Brasil, como separação de sua terra natal, de seus familiares, de sua cultura e seus costumes, a
humilhação e a violência faziam parte do cotidiano.
Nesse sentido, é importante lembrarmos do que foi dito na Unidade 2 sobre os direitos humanos,
já que historicamente os povos e populações negras tiveram seus direitos negados, inclusive o
direito à vida. Durante todo o período da escravidão, eles foram entendidos apenas como
mercadorias.
Fausto (2013), a partir de diferentes estudos historiográficos, aponta que ao longo da história
da escravidão africana no Brasil colonial foram trazidos cerca de quatro milhões de africanos
para o Brasil.
A escravidão pode ser definida11 como o sistema de trabalho no qual o indivíduo (o escravo)
é propriedade de outro, podendo ser vendido, doado, emprestado, alugado, hipotecado,
confiscado. Legalmente, o escravo não tem direitos: não pode possuir ou doar bens e nem iniciar
processos judiciais, mas pode ser castigado e punido. No Brasil, o regime de escravidão vigorou
desde os primeiros anos logo após o descobrimento até o dia 13 de maio de 1888, quando a
princesa regente Isabel assinou, utilizando uma caneta de ouro e pedras preciosas, oferecida
pelos abolicionistas, a Lei 3.353, mais conhecida como Lei Áurea, libertando os escravos.
1
Discussão realizada pelo portal: https://www.geledes.org.br/historia-da-escravidao-negra-brasil/
Fonte: https://www.geledes.org.br/historia-da-escravidao-negra-brasil/
Vamos pensar…
A história de que os escravos foram libertados pela Princesa Isabel
Jr. (2012), que precisam ser mais bem apresentados para consolidar-
A questão é que a sanção da Lei Áurea não repercutiu em melhorias concretas para os ex-
escravizados: eles não foram inseridos na sociedade republicana. Por conta dessa desigualdade
de condições e acesso, os negros ex-escravizados não conseguiram acessar melhores posições
sociais, permanecendo marginalizados.
Se fizermos aproximações com nosso cotidiano, percebemos que ainda hoje existem o que
chamam juridicamente de “situações análogas à escravidão”, principalmente em regiões
demograficamente isoladas no interior do Brasil, que representam uma permanência de relações
de trabalho em que o indivíduo não tem nenhum direito trabalhista. No site das Nações Unidas
há informações sobre o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil do ano de 20172
apontando que, entre os anos de 1995 e 2017, mais de 50 mil pessoas foram resgatadas
2
Disponível em: https://observatorioescravo.mpt.mp.br/ Acesso em 28/06/18.
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Temas Contemporâneos em Psicologia
de trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil. Pessoas que, ainda hoje, pagam
pela manutenção de sua existência. Exatamente igual aos escravizados do período colonial e
imperial, conforme afirma Malacco (2016).
De acordo com Botosso (2018)3, a segregação socioeconômica que os negros vivem até hoje
no Brasil está naturalizada, inclusive nas relações de poder e subordinação (basta observamos
indicadores de diferenças salariais entre brancos e negros), e pode ser denominada como
racismo, uma vez que se afirma de maneira sistemática e institucional a superioridade de um
grupo racial.
SAIBA MAIS...
O racismo se expressa de muitos modos e não somente a partir de ações ou palavras ofensivas
deliberadas, ou seja, a dinâmica do racismo no Brasil ainda é bastante velada, mas pode ser
observada a partir de índices e indicadores em relação à saúde, salário e qualidade de vida
entre homens e mulheres negros em relação aos homens e mulheres brancos.
Vamos analisar três gráficos para compreendermos como o racismo pode ser observado no
cotidiano da população negra.
Pobreza, distribuição
e desigualdade de renda
Renda média da população, segundo
sexo e cor/raça. Brasil, 2009.
Legenda = R$ 10,00
= R$ 1,00
R$ = R$ 100,00
Ações afirmativas são políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o
objetivo de corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao longo de
anos.
Uma ação afirmativa busca oferecer igualdade de oportunidades a todos. As ações afirmati-
vas podem ser de três tipos: com o objetivo de reverter a representação negativa dos negros;
para promover igualdade de oportunidades; e para combater o preconceito e o racismo.
Fonte: http://www.seppir.gov.br/assuntos/o-que-sao-acoes-afirmativas
São exemplos de ações afirmativas no Brasil: a) Lei n.º 12.711 de 2012 que dispõe sobre
o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível
médio e dá outras providências (conhecida pela lei das cotas raciais nas universidades). b) Lei
10.639/03 de ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, que versa sobre o ensino
da história e cultura afro-brasileira e africana e ressalta a importância da cultura negra na
formação da sociedade brasileira.
Mercado de trabalho
Taxa de desemprego da população
de 16 anos ou mais de idade, segundo
sexo e cor/raça. Brasil, 2009.
5,3%
6,6%
9,2%
12,5%
10
Temas Contemporâneos em Psicologia
Este segundo gráfico nos mostra a desigualdade entre gênero e raça no quesito desemprego.
De um modo geral, o gráfico nos demonstra que as mulheres ocupam a menor fatia do mercado
de trabalho, sendo as mulheres negras as que mais sofrem por conta do desemprego. A Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgada no início de 2018 apresenta dados
similares, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No fim de 2017, o nível da
ocupação dos homens foi estimado em 64,5% e o das mulheres, em 45,4%.
Dos que se encontram empregados, somente 33% eram pretos ou pardos, entre homens e
mulheres. Já entre os trabalhadores por conta própria, essa população representava 55,1%
do total. Mais de um milhão de trabalhadores pretos ou pardos atuavam como ambulante,
totalizando 66,7% dessa ocupação. No terceiro trimestre de 2017, 25,2% dos trabalhadores
pretos ou pardos atuavam como ambulantes; em 2014 esse percentual era de 19,4%.
Vejamos: a lei do Sistema Único de Saúde (n.º 8080 de 1990) define que saúde é um aspecto
que vai para além da mera ausência de doença. Um sujeito saudável precisa, antes de mais
nada, ter acesso a alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda,
educação, transporte, lazer, e bens e serviços essenciais (Brasil, 1990). Esses aspectos são o
que chamamos de determinantes em saúde, ou seja, são fatores sociais, econômicos, culturais,
étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de
saúde e seus fatores de risco na população.
Nesse contexto, a PNSIPN – Política Nacional de Saúde Integral da População Negra foi
pensada para ser estratégica na superação do racismo e promoção da equidade em saúde
da população negra (Brasil, 2007). O texto da PNSIPN cita os condicionantes sociais que
influenciam os agravos à saúde da população negra, trazendo números que apontam, por
exemplo, que crianças negras ou pardas e jovens, adultos e idosos negros estão mais suscetíveis
aos riscos de mortes e de contraírem doenças.
Detalhando um pouco mais esses indicadores, a PNSIPN (2007) apresenta o relatório chamado
Saúde Brasil 2005: uma análise da situação de saúde com informações e análises discriminadas
Para termos exemplos dessas iniquidades em saúde para a população negra, podemos
apontar que, entre os nascidos vivos negros, a proporção de nascimentos provenientes de mães
adolescentes de 15 a 19 anos foi de 29%, (1,7 vez maior que os nascidos vivos brancos).
Ou seja: as adolescentes negras têm mais filhos que adolescentes brancas. Verificou-se ainda
que 62% das mães de nascidos brancos referiram ter passado por sete ou mais consultas de
pré-natal. Para as mães de nascidos pardos, apenas 37% tiveram sete ou mais consultas de
pré-natal (conforme preconizado pelo Ministério da Saúde para se ter atenção ao pré-natal
adequada). (BRASIL, 2005).
O relatório destaca ainda um dado alarmante: o risco de uma criança negra ou parda morrer
antes dos cincos anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o de uma
criança branca. Também o risco de morte por desnutrição apresenta diferença abismal, sendo
90% maior entre crianças negras e pardas que entre brancas (BRASIL, 2005). A análise dos
dados também permitiu constatar que as mulheres negras grávidas morrem mais de causas
maternas, por exemplo da hipertensão própria da gravidez, que as brancas; as crianças
negras morrem mais por doenças infecciosas e desnutrição; e, nas faixas etárias mais jovens, os
negros morrem mais que os brancos.
Conclui a PNSIPN (2017) que, para uma análise adequada das condições sociais e da saúde da
população negra, é preciso ainda considerar a grave e insistente questão do racismo no Brasil,
persistente mesmo após uma série de conquistas institucionais, devido ao seu elevado grau de
estranhamento na cultura brasileira. O racismo se reafirma no dia a dia pela linguagem comum,
se mantém e se alimenta pela tradição e pela cultura, influencia a vida, o funcionamento das
instituições, das organizações e também as relações entre as pessoas; é condição histórica e traz
consigo o preconceito e a discriminação, afetando a população negra de todas as camadas
sociais, residente na área urbana ou rural e, de forma dupla, as mulheres negras, também
vitimadas pelo machismo e pelos preconceitos de gênero, o que agrava as vulnerabilidades a
que está exposto esse segmento.
Entretanto, dois estudos recentes nos permitem pensar a questão. O primeiro se trata do estudo
de Santos e Machado (2011) em que é possível identificar que pessoas negras de cor de pele
mais escura permanecem, em média, 71,8 dias internadas em hospitais psiquiátricos, enquanto
que as de cor de pele mais clara, também chamadas de pardos, permanecem 20,3 dias e
brancos, 20,1 dias (p. 19) em um hospital psiquiátrico no interior de São Paulo. Também foi
identificado no estudo que essas são as pessoas que se encontram nos quadros mais agudos de
desamparo, pois não recebem visitas e, muitas vezes, não têm familiares ou amigos que possam
oferecer assistência após o período de internação.
Outro estudo, de Emiliano de Camargo David (2017), discute os efeitos do racismo na produção
de subjetividades em crianças e adolescentes de um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-
12
Temas Contemporâneos em Psicologia
Juvenil (CAPS IJ) na cidade de São Paulo. Nesse trabalho, ele analisa diferentes prontuários
de casos de crianças e adolescentes que tenham possíveis sofrimentos psíquicos relacionados
ao racismo, ampliando a discussão da produção da loucura em crianças e adolescentes negros.
Valter da Mata, em entrevista para o Conselho Federal de Psicologia em 2015, aponta que, em
se tratando de saúde mental, há duas dimensões que são atacadas diretamente pelo racismo
em relação à população negra: a identidade e a autoestima.
Ele discute a ausência de referenciais identitários negros que são valorizados em nossa
sociedade (como heróis negros, ou atores negros considerados bonitos e valorizados em seus
papéis em filmes ou novelas) e como esse aspecto afeta a construção da identidade da pessoa
negra: resta ao grupo subalterno se identificar com a sua “inferioridade natural” ou reivindicar
para si um ideal de ego branco.
Um exemplo disso pode ser representado nas duas figuras abaixo: tratam-se de figuras de
representatividade (super-heróis de um filme de cinema) para crianças negras.
Para finalizar, o papel do psicólogo reside em, além de combater o racismo, identificar e
abordar possíveis situações de racismo no sofrimento psíquico e na construção da identidade
das pessoas atendidas, seja em seu consultório particular, seja nas instituições, nas empresas
ou equipamentos públicos. Também é importante a valorização e implementação de ações
afirmativas em prol da promoção da igualdade e de políticas de inclusão (como a legislação
que garante as cotas raciais).
É importante salientar que a prática do racismo é crime no Brasil desde 1989, com a lei
7716/89, conhecida como “Lei Caó”, proposta pelo jornalista, ex-vereador e advogado Carlos
Alberto Caó Oliveira dos Santos, que determina a igualdade racial e o crime de intolerância
religiosa.
O tema do racismo ainda é complicado para muitas pessoas, principalmente quando se trata
da lei. Mesmo com a implantação de legislação contra o racismo, existem aqueles que não
sabem diferenciar determinadas atitudes como prática de crime de racismo ou não. Uma das
maiores confusões que as pessoas podem cometer é confundir racismo e injúria racial (Santos,
2013).
Injúria racial ocorre quando são ditas ou expressadas ofensas a determinados tipos de pessoas,
tendo como exemplo chamar um negro de macaco. Esse exemplo já ocorreu em vários casos no
futebol, em que jogadores foram ofendidos por essa palavra e alguns entraram com processo.
Nesses casos, os acusados seriam julgados por causa da injúria racial, onde há a lesão da honra
subjetiva da vítima. A acusação de injúria racial permite fiança e tem pena de no máximo oito
anos, embora geralmente não passe dos três anos.
14
Temas Contemporâneos em Psicologia
Já o racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível. Para o crime ser considerado
racismo, tem que menosprezar a raça de alguém, seja por impedimento de acesso a determinado
local, seja por negação de emprego baseado na raça da pessoa. Como exemplo, pode-se
considerar o impedimento de matrícula de uma criança em uma escola por ela ser negra como
um caso de racismo. Resumidamente, o racismo impede a prática do exercício de um direito que
a pessoa tenha. A injúria racial se determina pela ofensa às pessoas por raça.
Algumas ações que podemos considerar discriminatórias e racistas (CFP, 2017, p. 56-57):
•• Quando profissionais negros são considerados menos competentes por outros funcionários
da instituição ou mesmo pelo usuário.
•• Quando agentes de saúde com atribuições de realizar visita domiciliar não entram por
preconceito e discriminação em terreiros de religiões de matriz africana, não atendendo à
população que ali reside.
•• Quando profissionais em cargos de chefia exigem que profissionais negros devam prender
o cabelo, mas a função realizada não exige cabelo preso e outros profissionais não negros
não recebem a mesma orientação.
•• Amigos ou conhecidos com piedade de pessoas negras pelo fato de serem negras.
•• Não reconhecimento formal ou afetivo ou menosprezo do filho negro por parte do progenitor
não negro.
Atenção: nem sempre é fácil perceber sinais do racismo, até mesmo pela vítima, mas, em
maior ou menor grau, há impacto negativo sobre o sujeito negro, que pode se sentir diminuído,
constantemente desafiado e humilhado. Portanto, combater o racismo, particularmente na
dimensão interpessoal, está diretamente relacionado ao respeito ao outro, temas tão caros à
atuação dos psicólogos!
O Conselho Federal de Psicologia lançou material de referência técnica para o psicólogo para
as relações raciais.
De acordo com Ribeiro (2013), estima-se que viviam mais de 5 milhões de indígenas na época
em que as embarcações portuguesas chegaram no Brasil. A história da população indígena no
Brasil é também marcada pela violência física (a população indígena que foi dizimada no início
da colonização por meio de morte pelas epidemias e também pelas guerras travadas entre
portugueses e os povos originários pela conquista de terras e pela tentativa de escravização
dos índios) e também pela violência simbólica (pela tentativa de supressão da cultura e religião
dos povos originários). O Censo 2010 indica que temos cerca de 896,9 mil indígenas no Brasil.
É importante mencionar que nos censos de 1991 a 2000 havia a opção de a pessoa
entrevistada se autodeclarar indígena. Mas foi somente no censo de 2010 que, ao se declarar
indígena como cor, a pessoa também respondeu questões mais específicas sobre etnia, povo,
língua falada e se moravam em território indígena (FERRAZ, DOMINGUES; 2016). Trazer essas
informações ao conhecimento de todos somente em 2010 demonstra o quanto desconhecemos
nossa história e também a importância de produzir informações fidedignas para embasar
políticas e intervenções em saúde que dialoguem com a realidade das pessoas.
16
Temas Contemporâneos em Psicologia
Em relação a outro aspecto que chama a atenção pela aculturação que produzimos ao não
reconhecermos e estudarmos nosso passado, podemos citar a Lei n.° 11.645, de 10 de março de
2008, que torna obrigatório o ensino da história e das culturas negra e indígena nos currículos
escolares de todo o país.
A primeira História Geral do Brasil, de acordo com Ferraz e Domingues (2016), foi escrita no
século XIX pelo português Adolfo de Varnhagem. Nessa produção historiográfica, os índios
eram considerados povos sem passado e sem futuro e cuja extinção poderia acontecer. Alguns
defendiam na época que, ao invés do extermínio, era preciso assimilar os povos na cultura
europeia e, para isso, era preciso que eles passassem pela catequese (princípio da doutrina
católica) para se tornarem civilizados. Ambos os processos denotam a violência física e simbólica,
já mencionadas, e cujos efeitos permanecem até hoje. Mas de que modo?
VAMOS PENSAR…
O quanto você conhece sobre os povos indígenas? Sabe quais as principais
etnias, línguas faladas? Sabe quais os principais costumes? Modos de se
organizarem?
Vamos apresentar alguns dados sobre os povos indígenas produzidos pelo Instituto Innovare em
2016, a partir das informações do Censo 2010:
Dos índios com 5 anos ou mais 37,4% falam uma língua indígena e
76,9% falam em português.
38,2%
25,9%
16%
11,1%
8,8%
DISTRIBUIÇÃO
ESTADOS MAIS DOS
ÍNDIOS PELO
POVOADOS BRASIL:
POR ELES:
20%
Amazonas
6,7%
Bahia
6,8%
Pernambuco 8,6%
Mato Grosso
do Sul
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Temas Contemporâneos em Psicologia
Faz parte do processo de exclusão da história e dos conhecimentos indígenas acharmos que
os índios que aqui viviam antes da chegada dos portugueses não tinham nenhum conhecimento
científico e matemático.
Mesmo assim, tendo apenas um único termo numérico, esse sistema é sensato
e adequado às necessidades dos povos que o utilizam. Já as comunidades
do Alto Rio Negro adotam o sistema de numeração de base pentanumérica,
cuja origem é explicada na existência dos cinco dedos das mãos. Ou seja,
o número cinco significaria literalmente “uma mão”. Por exemplo, o número
quarenta, pode ser representado por dois homens, pois cada homem tem
vinte dedos, levando em consideração os dedos dos pés.
Fonte: http://blog.pat.educacao.ba.gov.br/?s=aruak
Desse modo, para Viveiros de Castro (2015) é preciso tomar o discurso dos povos indígenas
como interlocutores horizontalmente situados em relação ao discurso dos “observadores”
(os “antropólogos”); para isso precisamos descolonizar o pensamento ocidental para poder
aceitar que não há um conhecimento melhor que o outro, nem mesmo um conhecimento que
vai compreender o outro e, sim, aceitar que só existe entreconhecimento: compor junto com o
conhecimento indígena.
Esse tem sido um dos principais desafios atuais em relação à preservação da cultura, da ciência
e do pensamento indígena.
A proposta desse evento foi discutir, sobretudo, a realidade psicossocial das comunidades
indígenas e suas condições de saúde mental. Também apresentou a reflexão – sempre em
construção – sobre as possibilidades de atuação da Psicologia com esses povos, compreendendo
sua diversidade e os múltiplos desafios gerados pelas suas relações com nossa sociedade, com
as instâncias governamentais e com suas políticas públicas.
De acordo com esse documento, são muitas as suas áreas de atuação e, no caso dos indígenas,
também são diversas as possibilidades de contribuição. Promover saúde mental tem um significado
amplo, pois entendemos que tal estado depende de condições pessoais, mas também sociais
20
Temas Contemporâneos em Psicologia
(conforme vimos na discussão sobre os determinantes sociais em saúde na população negra).
Com relação aos indígenas, há muito que fazer na sociedade para superação dos preconceitos.
Um bom exemplo citado no documento é ampliar esse debate para esclarecimento da opinião
pública fazendo uso dos canais de informação ao nosso alcance. E, com os indígenas, construir
conhecimentos compartilhados para intervenções responsáveis, que não reproduzam, mais uma
vez, relações de dominação cultural ou de neutralização cultural, conforme explica Viveiro
de Castro (2015). Há demandas em saúde mental, educação, cultura, questões ligadas ao uso
de substâncias psicoativas, identidade, visibilidade social, participação, formação acadêmica,
políticas públicas, todas expressando as consequências de cinco séculos de dominação, a qual
definitivamente precisamos superar, em respeito a todos esses povos e à Constituição Federal.
Pensando em tudo que foi discutido no sentido de pensar junto aos povos (e não por eles)
atuações possíveis dentro do campo da Psicologia, um caderno produzido pelo CRP 06 (2015)
decidiu ouvir os povos indígenas para compreender quais as principais demandas trazidas
pelos indígenas à Psicologia. De um modo geral, de acordo com o documento, os principais
aspectos são: adoecimento psíquico, violência familiar, violência sexual, prostituição, depressão,
suicídio, desrespeito a sua cultura especialmente pelos jovens, exclusão social, necessidade de
apoio político, educação escolar nas aldeias e apoio à inserção na universidade.
•• Inserir o psicólogo na política para ter mais atenção aos indígenas: promover saúde mental,
reconhecer os determinantes socio-históricos dos problemas atuais, inserir a tema indígena
nos debates políticos, em Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Saúde, da
Assistência Social, da Educação e incentivar a participação de lideranças indígenas nesses
espaços, pois assim poderão defender questões voltadas à melhoria das condições de vida
dessas comunidades.
•• Ampliação e qualificação profissional: realizar debates e eventos, com trocas culturais entre
psicólogos e indígenas, desenvolver ações concretas com outras instituições no sentido de
•• Conversa com profissionais: dialogar com outros profissionais que atuam no campo, ajudar
os profissionais de Saúde para efetivação de uma rede de atenção local, enfatizando o
trabalho multiprofissional, identificar estratégias de atuação nas comunidades.
•• Diálogo com movimentos sociais: apoiar políticas e iniciativas que ajudem os indígenas,
atuar em movimentos pela garantia dos direitos dos indígenas.
•• Esse desafio é imenso, mas é necessário. Tem que enfrentar a história dos brasileiros e da
Psicologia no qual não estamos de mãos vazias. Temos que priorizar os interesses e as
necessidades dos índios, ter uma escuta verdadeira e apostar em decisões compartilhadas
que são pontos decisivos para que todos contribuam com a saúde indígena.
Uma pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2015) estima que
o Brasil tem cerca de 101 mil pessoas em situação de rua, sendo que a maior parte dessa
parcela da população se encontra nas cidades grandes das capitais do país: das 101.854
pessoas em situação de rua, 40,1% estavam em municípios com mais de 900 mil habitantes e
77,02% habitavam municípios com mais de 100 mil pessoas. Já nos municípios menores, com até
10 mil habitantes, a porcentagem era bem menor: apenas 6,63%.
Os dados são estimados, já que se trata de uma população itinerante, de modo que se torna
difícil uma metodologia de pesquisa que consiga computar esse número fidedignamente.
Apesar disso, poder acessar esses dados nos faz ter a dimensão do problema que estamos
enfrentando (ou seja, o número elevado de pessoas que não estão sendo atendidas em suas
necessidades básicas), além de ser fundamental para se pensar políticas públicas adequadas
a essa população.
Quando tentamos compreender melhor quem é esse público ou quando tentamos achar nexos
causais entre os motivos que fizeram com que as pessoas estivessem em situação de rua,
percebemos que essa população não é homogênea, ou seja, são pessoas que têm diferentes
vivências e que estão nessa situação pelas mais variadas razões. Aspectos que podemos
dizer que são comuns a essa população são a falta de uma moradia fixa, de um lugar para
22
Temas Contemporâneos em Psicologia
dormir que seja temporário ou permanente e vínculos familiares que foram interrompidos ou
fragilizados. Esses dados foram divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Social como
os fatores intrínsecos à condição de rua e constam na Política Nacional para a População em
Situação de Rua de 2009.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decre-
to/d7053.htm?TSPD_101_R0=784a1bbe576cb5891f5a2260cb3f0aca-
oD30000000000000000de8106c9ffff00000000000000000000000000005b0e-
0a30004565f00f
O processo de exclusão social vivido pelas pessoas que estão em situação de rua não se
caracteriza somente pela privação material. Trata-se, principalmente, de um processo de
“desqualificação do indivíduo enquanto cidadão e ser humano, e pela ausência de seu lugar
social” (DANTAS, 2007, p. 26) e esse é um dos principais aspectos da intervenção do profissional
psicólogo em relação às pessoas que vivem na rua: os efeitos da exclusão são aspectos que
influenciam na construção subjetiva dessas pessoas, ocasionando problemas de saúde mental,
sobretudo se expostos a longa permanência nessa situação.
O processo de exclusão social vivido pelas pessoas que estão em situação de rua não se
caracteriza somente pela privação material. Trata-se, principalmente, de um processo de
“desqualificação do indivíduo enquanto cidadão e ser humano, e pela ausência de seu lugar
social” (DANTAS, 2007, p. 26) e esse é um dos principais aspectos da intervenção do profissional
psicólogo em relação às pessoas que vivem na rua: os efeitos da exclusão são aspectos que
influenciam na construção subjetiva dessas pessoas, ocasionando problemas de saúde mental,
sobretudo se expostos a longa permanência nessa situação.
Santana e Rosa (2016) organizaram um estudo sobre saúde mental e população de rua,
apresentando diferentes pesquisas que apontam o risco de agravos em saúde mental
e dependência do uso de drogas para a população em situação de rua. Vejamos alguns:
um estudo realizado na cidade de Nova York com 225 homens e 220 mulheres usuários de
albergues apontou que os principais fatores de risco para o prolongamento do tempo em
situação de rua foi idade superior a 44 anos, diagnóstico de doença mental e dependência de
drogas (CATON et al., 2005 apud SANTANA e ROSA, 2016, p. 28). Outro estudo, conduzido
na mesma cidade sobre o panorama da situação de rua e saúde mental no período 1994-
2006, evidenciou que a maioria das hospitalizações de conviventes adultos dos abrigos, entre
os anos de 2001-2003, ocorreu devido a problemas de saúde mental (14%), uso de drogas
(31%) e uso de álcool (24%) (VALENCIA et al., 2011 apud SANTANA e ROSA, 2016, p. 28).
No Brasil, temos os estudos de Lovisi (2000) e Heckert e Silva (2002) que apresentam dados
similares. O primeiro avaliou os distúrbios mentais em moradores de albergues públicos das
cidades do Rio de Janeiro e Niterói, revelando que os distúrbios mentais de maior gravidade
são associados ao ingresso à situação de rua. Ressalta que, quando esses indivíduos passam
a morar nas ruas, há uma exacerbação de seus sintomas, resultando numa alta prevalência
de comorbidade e um agravamento de seus quadros psicopatológicos. Os homens revelaram
maior prevalência de abuso/dependência de álcool, enquanto as mulheres apresentavam
maior número de distúrbios mentais mais graves.
O que podemos destacar desses estudos é que as condições de vida nas ruas (pouca
longevidade, fragilidade dos vínculos sociais, violências, preconceitos, discriminações, falta de
privacidade, carências de educação e de infraestrutura para os cuidados corporais) colaboram
para o aparecimento e agravamento dos transtornos mentais que, por sua vez, podem ser um
dos fatores que contribuem para que uma pessoa viva em situação de rua (SANTANA, 2014
apud SANTANA e ROSA, 2016, p. 28).
Por fim, é importante destacar que, em todos os estudos, a prevalência do uso de álcool e outras
drogas nessa população se mostra significativa, o que nos faz refletir sobre tal fenômeno. De
acordo com Booti et al. (2009, p. 175), “o álcool e as drogas fazem parte da realidade das
ruas, seja como alternativa para minimizar a fome e o frio, seja como elemento de socialização
entre os membros dos grupos de rua”. As drogas lícitas e ilícitas possibilitam ao morador de rua
a fuga da realidade, além de ser uma das poucas opções de prazer que a sua condição de
vida lhe permite (FERNANDES; RAIZER; BRÊTAS, 2007; CARLINE, 2006).
O prazer propiciado pelas drogas é volátil e faz parte de um círculo vicioso entre usar – ter
prazer – encarar a realidade – sentir culpa que só poderá ser cessado com o apoio da rede
de assistência social e da saúde, de modo articulado.
Na aula 1 nós vimos como se organiza o Sistema Único de Saúde (SUS) e aprendemos a
identificar os diferentes equipamentos de saúde que compõem a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS). No caso da atenção às pessoas em situação de rua, é necessário compreendermos
como funciona o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e quais serviços ele oferta.
De acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), o SUAS é um sistema público que
organiza os serviços de assistência social no Brasil. Com um modelo de gestão participativa,
ele articula os esforços e os recursos dos três níveis de governo, isto é, municípios, estados e a
União, para a execução e o financiamento da Política Nacional de Assistência Social (PNAS),
envolvendo diretamente estruturas e marcos regulatórios nacionais, estaduais, municipais e do
Distrito Federal.
•• Proteção social básica: destinada à prevenção de riscos sociais e pessoais por meio da
oferta de programas, projetos, serviços e benefícios a indivíduos e famílias em situação de
vulnerabilidade social.
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Temas Contemporâneos em Psicologia
•• Proteção social especial: destinada a famílias e indivíduos que já se encontram em situação
de risco e que tiveram seus direitos violados por ocorrência de abandono, maus tratos,
abuso sexual, uso de drogas, entre outros e que pode ser dividido em dois níveis de
complexidade: proteção social especial de média complexidade e serviços de proteção
social especial de alta complexidade.
- Casa-lar;
- Casa de passagem;
- Residência inclusiva.
Fonte: http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_consultorio_rua.php
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Temas Contemporâneos em Psicologia
Em toda a rede intersetorial há a possibilidade da atuação do psicólogo com a população em
situação de rua: seja nos CREAS, no Centro POP, nos Consultórios na Rua ou nos CAPS Álcool
e Drogas (CAPS-AD). O que podemos dizer que é similar entre as atuações do psicólogo com
esse público é a necessidade de compor com o território onde as pessoas vivem: a rua. E, nesse
sentido, conforme documento do CRP-MG de 2015, é possível perceber que os profissionais
que trabalham com a população em situação de rua são desafiados, de uma maneira ou de
outra, a construir, cotidianamente, atuações e formas de intervenção criativas, dinâmicas e
que abarquem a heterogeneidade dos grupos nos quais se encontram inseridos. O setting
terapêutico não é o da clínica convencional, assim como as intervenções precisam ser diferentes.
O documento apresentado pelo CRP-MG (2015, p. 24-66) entrevista diversos psicólogos que
atuam com as pessoas em situação de rua para discutir a prática profissional nesse contexto.
O texto é interessantíssimo e apresenta diversos pontos fundamentais e de reflexão para uma
psicologia que precisa ser itinerante, inventiva e de articulação integral com os pressupostos
dos direitos humanos:
•• A singularidade dos sujeitos atendidos não pode fugir do horizonte da prática do psicólogo.
Assim, a intervenção deve ser construída com base na peculiaridade de cada caso e
conjuntamente com o usuário. A capacidade de uma escuta diferenciada é o ponto principal
apontado pelos participantes da pesquisa como algo próprio da atuação do psicólogo:
uma escuta mais sensível, atenta e cuidadosa; uma escuta capaz de se ater às questões
subjetivas que estão em jogo na cena da rua.
•• O psicólogo inserido nas políticas públicas para a PSR reconhece que não pode perder de
vista a noção de que precisa conduzir seu trabalho tendo a perspectiva de provocar uma
mudança no contexto social. E isso se alcança a partir de novas interações, novas formas de
sociabilidades, novas perspectivas de inclusão e acesso aos bens sociais. Nesse ponto, nós
adentramos no componente ético da atuação do psicólogo.
Dá-se a ideia de que estar no centro de São Paulo ou estar no bairro comercial de Nova York
é a mesma coisa: pessoas andando rápido na rua, prédios parecidos e modos de se comportar
semelhantes como em qualquer grande capital. Trata-se de um processo que une espaços,
estreita fronteiras, mas, que, de alguma forma, acultura os povos.
Claro que, se mantivermos a mesma ideia construída acima, não é qualquer pessoa que
pode, simplesmente, comprar uma passagem e ir a Nova York: é preciso passaporte, visto,
comprovação de renda que a pessoa consegue custear seus gastos no tempo em que estiver lá.
Com esse rápido exemplo, já podemos esboçar uma análise importante: a globalização do
mundo contemporâneo nos dá a ideia de que no mundo não há fronteiras. Entretanto, esse
deslocamento entrefronteiras não pode ser feito por qualquer cidadão, contrariando direito
resultante do princípio da liberdade que aparece na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
confirmando a natureza do homem em movimentar-se, deslocar-se de um lugar a outro, ali
permanecendo o tempo que melhor lhe aprouver, mantendo residência ou não, exercendo esse
direito por toda sua existência (art XIII).
De acordo com Orani e Orani (2008, p. 43-44) a globalização opera como um processo que
difunde pelo globo comportamentos e atitudes que influenciam os aspectos sociais, políticos,
econômicos e culturais, entre outros. No que diz respeito aos direitos humanos e à cidadania,
a globalização tem servido como elemento que acentua a universalidade do indivíduo e a
padronização dos sujeitos em “cidadãos-consumidores” (GENTILI, 1998), isto é, só se adquire
a cidadania e se tem direitos garantidos aqueles que funcionam – tanto produzindo quanto
consumindo – dentro da sociedade à qual pertence.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme estudamos na Unidade 2,
é uma ferramenta fundamental para a “elaboração” de uma concepção universal de indivíduo
digno de ter os seus direitos assegurados exercendo-os por meio da cidadania.
No caso da população imigrante – sobretudo as que deixaram seus país pelo contexto de
guerra – há questões importantes no que tange a esse processo de exclusão e a importância
pungente de construção de políticas que assegurem direitos, acesso aos serviços públicos e,
sobretudo dignidade.
De acordo com Silva e Cremasco (s/a), mudar de país significa, entre outras coisas, construir
uma nova vida, fazer novas representações e dar significados diferentes ao que era familiar
se deparando com inúmeras perdas como a de pertencer a um grupo que lhe dá identidade
e reconhecimento. A perda do sentimento de pertencimento pode gerar grande ansiedade
devido à necessidade que todo indivíduo apresenta de sentimento de segurança, proteção e
orientação.
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Temas Contemporâneos em Psicologia
Silva e Cremasco (s/a) fizeram um levantamento sobre pessoas que se refugiaram no Brasil. De
acordo com o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados (2014), o Brasil tem refugiados
reconhecidos de 81 nacionalidades distintas. Segundo o ACNUR – Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados (2014), agência da ONU, análises estatísticas referentes
ao período entre janeiro de 2010 e outubro de 2014 demonstram o fortalecimento continuado
da proteção aos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. O número total de pedidos de
refúgio aumentou mais de 930% entre 2010 e 2013.
De acordo com ACNUR, a maioria dos solicitantes de refúgio vem da África, Ásia (inclusive
Oriente Médio) e América do Sul. Nos últimos anos, todas as importantes crises humanitárias
impactaram diretamente os mecanismos de refúgio no Brasil, com expressivos números de
solicitantes da Síria, Líbano e República Democrática do Congo chegando ao país. Esses dados
não incluem informações relacionadas aos nacionais do Haiti, já que estes têm vistos emitidos
de residência permanente por razões humanitárias.
Vamos pensar nos aspectos intrapsíquicos do processo migratório: estar em outro país, cujos
costumes são diferentes, o modo de se comunicar se dá de outros modos, muitas vezes em idioma
diferente, além do processo de exclusão, já que muitos chegam ao país sem a garantia mínima
de direitos. Um fator importante a ser considerado é o processo de elaboração das perdas
inerente à experiência migratória, vinculada à história de cada indivíduo (Silva e Cremasco
(s/a).
Outro problema levantado pela autoras, a partir de estudo feito pelo CONARE – Comitê
Nacional para os Refugiados (2014), é o das denúncias frequentes por parte dos migrantes
africanos de casos de racismo e xenofobia enfrentado por eles, questão que tem se intensificado
e que passa a ser uma preocupação, bem como a marginalização dos migrantes que, ao se
depararem com as dificuldades, agravadas pela vulnerabilidade social, terminam por sofrer
com a manipulação e controle por parte da sociedade.
De acordo com o material do ADUS, as intervenções psicológicas começam com conversas que
podem se tornar encontros regulares, dependendo da necessidade e vontade do refugiado
ou imigrante. Dessa forma, “cada atendimento vai se construindo de uma forma singular” (p.
41) e, quando ocorre a construção do apoio psicológico individual ao refugiado, por vezes é
necessário que os profissionais expliquem como será a relação que irá se estabelecer, os limites
do vínculo com o psicólogo e como esse trabalho se diferencia da ação de um assistente social,
por exemplo (p. 43).
Para finalizar, apesar das limitações, é extremamente necessário que dentro dos serviços já
existentes apresente-se a possibilidade de acolher refugiados com qualidade, considerando as
vulnerabilidades específicas dessa população sob o risco de eles sentirem incompreensão ou
insatisfação diante do possível tratamento oferecido.
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Síntese
Temas Contemporâneos em Psicologia
Você pode estar se perguntando por que os temas discutidos nesta unidade são considerados
desafios contemporâneos para o profissional psicólogo, já que a desigualdade com a população
negra é estrutural e tem suas raízes no período de escravatura no Brasil colônia, por exemplo.
Ou ainda você pode problematizar a atualidade da temática dos povos indígenas, que são
originários de nosso país, ou seja, existem antes da colonização portuguesa.
A verdade é que, embora os temas possam não ser considerados contemporâneos do ponto de
vista linear da história, eles são atualíssimos no sentido de repensarmos novas práticas para o
profissional psicólogo que se vê diante do desafio de atuar:
•• fora de seu setting terapêutico – no contexto da rua, precisando articular saberes com
outros profissionais para dar conta da complexidade de atender pessoas em extrema
vulnerabilidade;
•• na relação com outras culturas, outros idiomas e diversos saberes, ou seja, mediando
compreensões sobre a própria atuação do psicólogo;
•• compondo com outras relações de saber. A cultura indígena, por exemplo, traz novas
perspectivas para a compreensão de saúde, e o professional psicólogo precisará aprender
a se relacionar com novas concepções para poder apoiar e intervir.
Todos os temas abordados têm a mesma dimensão e compreensão ética de que não podemos
reproduzir relações de dominação cultural ou de neutralização cultural em nossa prática. Faz
parte de nosso código de ética denunciar e combater todas as formas de opressão.
http://www.marvel616.com/2018/02/criancas-reprisam-posteres-do-filme.html
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