Você está na página 1de 15

Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 173-187, 1994.

AMIXOKORI, PATAXÓ, MONOXÓ, KUMANOXÓ, KUTAXÓ,


KUTATOI, MAXAKALI, MALALI E MAKONI:
POVOS INDÍGENAS DIFERENCIADOS OU SUBGRUPOS DE
UMA MESMA NAÇÃO? UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO*

Maria Hilda Baqueiro Paraíso**

PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali
e Makoni: povos indígenas diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma
proposta de reflexão. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 173-187,
1994.

RESUMO: Procuramos discutir a questão da identidade étnica dos vários


grupos indígenas que habitaram o sul da Bahia, norte do Espírito Santo e
nordeste de Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Usamos, para tanto, dados
fornecidos pelos estudos arqueológicos, lingüísticos, históricos e antropológicos,
procurando cruzá-los de forma a testar a nossa hipótese de que, sob diferentes
designações, o que temos são subgrupos de uma mesma nação: Tikmu’nu

UNITERMOS: Etnohistória indígena - Arqueologia - Linguística:Bahia,


Espírito Santo, Minas Gerais.

Introdução história dos grupos indígenas dos estados da


Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo.
Este trabalho não se propõe a ser uma con­ Na tentativa de testar a nossa hipótese, tra­
clusão do tema. balhamos com fontes primárias publicadas e iné­
Como o próprio título indica, é uma pro­ ditas, centrando a análise nas informações en­
posta de reflexão que, esperamos, envolva his­ contradas nas obras dos viajantes naturalistas do
toriadores, antropólogos, arqueólogos, especia­ século XIX e na dos antropólogos e linguistas
listas em cultura material e linguistas num fu­ que escreveram sobre os Pataxó de Barra Velha e
turo próximo. os Maxakali, revistas a partir dos dados que co­
A nossa hipótese - a de que estes povos com­ letamos quando realizávamos o laudo antropoló­
põem um subgrupo de uma mesma nação - é o gico Maxakali.
resultado de observações sistematicamente desen­ Nosso trabalho procurará, inicialm ente,
volvidas ao longo de anos de pesquisas sobre a analisar as várias informações coletadas que
apontam na direção da hipótese levantada. Em
seguida, analisarem os estes dados contex-
tualizando-os a partir da organização social
(*) Trabalho apresentado na X V I Reunião Anual da
Maxakali e, finalmente, a questão da identidade
ANPOCS, GT sob a coordenação do Dr. John Monteiro,
étnica desses grupos e subgrupos, particularmente
Caxambú, 20 a 23/10/1993.
(**)Universidade Federal da Bahia, Depto. de História da no tocante à construção da identidade dos rema­
FFLCH da Universidade de São Paulo, pós-graduação, nescentes e suas implicações em termos sociais e
doutoramento. políticos.

173
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

Ruído na comunicação: outros grupos devido as línguas serem completa­


auto e hetero-denominações mente diferentes das faladas pelos observadores
e, também, das transcrições que não seguiam os
princípios da fonética, outras questões nos pare­
Quando iniciamos as nossas pesquisas sobre
cem mais relevantes para nossa análise.
populações indígenas nas áreas acima referidas,
o primeiro aspecto que nos chamou a atenção foi
a semelhança entre algumas nominações atribuí­ As localizações espaciais
das aos grupos indígenas “inimigos” dos Boto- e os primeiros indícios
cudo.
Considerando que, muitas vezes, as nomi­ Urban (1992:91) afirma: “É interessante o
nações que se referem aos grupos indígenas são fato de ter ocorrido, historicamente, uma tal con­
atribuídas pelos membros da sociedade dominan­ centração de línguas Macro-Jê na parte leste do
te ou por outros povos indígenas e que as trans­ Brasil, desde o Rio de Janeiro até a Bahia. Essa
crições nem sempre correspondem entre si, sem­
poderia ser a zona de origem da zona do Macro-
pre nos perguntamos se haveria os Pataxó,
Jê, uma especulação que poderia ser iluminada
Monoxó, Kutaxó, e Kumanoxó. Ou seria, apenas,
por uma reconstituição das relações internas en­
um erro de transcrição de autores desavisados e
tre as famílias Macro-Jê nessa área (Maxakali, Bo-
não treinados e que vinha se reproduzindo, suces­
tocudo, Puri e Kamakã). Se forem apenas remota­
sivamente, desde a segunda metade do século
mente relacionadas umas às outras, esta seria uma
XVIII, quando se intensificaram os contatos entre
área de grande diversidade lingüística para o gru­
esses grupos e os ocupantes “brancos” de suas
po Jê e, assim, um possível local de dispersão ocor­
áreas?
rida a 5 ou 6 mil anos”.
A questão da semelhança dos nomes entre os
Digamos que esta é uma primeira tentativa
vários grupos indígenas e, por outro lado, as dife­
de realizar a proposta de Urban e que esperamos
renças na grafia de nomes que se referem a um
possa ser aprofundada por um conjunto de estu­
mesmo grupo, pode-se observar não só em docu­
dos interdisciplinares.
mentos formulados por agentes governamentais
O que consideramos mais relevante é que a
como também por outros observadores. Assim, se
indicação da existência desses grupos sempre foi
analisarmos os dicionários sobre tribos indígenas
registrada por observadores não qualificados para
de Senna (1908) e Artiaga (1920), vamos obser­
compreenderem as complexidades das relações so­
var que as seguintes denominações podem ser
ciais existentes entre eles. Desconhecendo as pos­
consideradas como sinônimas:
síveis conexões entre os vários grupos contactados,
localizando apenas alguns grupos ou frações dos
Macaxaus - Macaxó grupos ou obtendo informações sobre a nominação
Machacali - Maxakali - Machacaris do grupo com, talvez, um membro de uma das
- Macachacalizes frações ou subgrupos do grupo, as nominações
- Malacaxis - Malacachetas que são indicadas pelas várias fontes precisam ser
Maconés - Macunins - Maconcugis reanalisadas, considerando-se o conjunto de in­
- Makuinis - Maconi formações a partir da análise dos dados obtidos
- Malalis - Malalizes entre as fontes que se referem ao passado e aque­
Monoxós - Manoxós - Mapoxós les obtidos entre os remanescentes.
- Momaxós Outro fator explicativo para a visão parcial
Pátaxós - Patachos dos observadores é o fato de a intensificação dos
Comanaxó - Cumaraxó - Kumanoxó contatos com os “grupos” indígenas referidos ter
Copoxó - Gotochós - Cotoxó ocorrido no século XIX, período em que a pene­
- Kutaxó tração dos seus habitats ocorreu de forma intensa,
acirrando as relações com os Botocudo e redu­
Além das questões decorrentes da dificulda­ zindo as áreas de caça e coleta. Isto teria intensi­
de de percepção correta dos nomes que os grupos ficado o fracionamento dos grupos e, até mesmo,
indígenas se atribuem ou lhe são atribuídos por o isolamento de “aldeias” com a intrusão de ou­

174
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

tros grupos nos espaços que, originalmente, as se­ pos e a prática dos aldeamentos “voluntários” con­
paravam, de acordo com os padrões sociais deste juntos de alguns dos grupos acima referidos.
grupo indígena, hoje conhecido por Maxakali. Inicialmente analisaremos de forma mais
Assim sendo, consideramos que o fato de aprofundada os dados arqueológicos. Para tanto,
haver referências a tantos “grupos” indígenas na contamos com os trabalhos de Perota (1971) que,
região considerada não indica, com precisão, se infelizmente, só se referem ao sul da Bahia e o
eram unidades sociais peculiares e com identida­ norte do Espírito Santo. Seus achados, partiram
de e organização social próprias e particulares ou de uma informação dada pelos Pataxó de Barra
frações de uma única unidade social. Velha sobre antigas aldeias no vale do rio Jucurucu.
Um dos fatos que levam a colocar, como pro­ Esta área é identificada por Navarro (1846) (refe­
vável, a afirmativa de serem frações de uma uni­ rindo-se ao ano de 1807), Wied-Neuwied (1989)
dade, é a superposição dos seus habitats. Para (relativo ao ano de 1815), e Portella (1911) (rela­
facilitar a compreensão do leitor, listaremos os tivo a 1910) como sendo de aldeamentos e aldeias
vários grupos considerados e indicaremos os lo­ Maxakali. Foi considerado o material escavado a
cais que são referidos como sendo seus territóri­ partir dessas informações que o arqueólogo de­
os tradicionais que compreendiam a área entre os nominou as Fases Itanhém, Itaúnas, Guarabu,
rios Pardo, ao norte, e Mucuri, ao sul. Camburi, e as localizou como ocupando os vales

GRUPOS LOCAIS
AMIXOCORI Adjecências de Porto Seguro
PATAXO Entre os rios de Contas, Pardo, Jucurucu, Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e
Itaúnas
MONOXO Baixo Jequitinhonha - sul da Bahia e leste de Minas
KUMANOXO Rio Jequitinhonha, Mucuri e São Mateus
KUTAXO Entre os rios Jequitinhonha e Pardo
KUTATOI Nordeste da Capitania de Porto Seguro
MAXAKALI Jequitinhonha, Itanhém, Jucuru e Mucuri
MALALI Médio rio Jequitinhonha e Mucuri
MAKONI Rio Mucuri - sul da Bahia, norte do Espírito Santo e leste de Minas Gerais
FONTES: Rubinger, 1980; Amorim, 1980; Marcato, 1980; Nimuendajü, 1958; Spix e Martius, 1976; Wied-
Neuwied, 1989; Ottoni, 1858; Loukotka, 1931; Porto, 1946; Arziaga, 1920; Senna, 1908; Metraux e
Nimuendaju, 1963; Cardim, 1980.

Os dados arqueológicos indicam uma unidade dos rios dos Reis Magos, São Mateus, Itaúnas,
Mucuri, Itanhém e Pardo.
E interessante fazermos duas ressalvas quan­
Ora, se considerarmos que, nesta área, além to a estes dados. A primeira é que o autor não re­
desses “grupos” viviam apenas os remanescentes alizou prospecções no rio Jequitinhonha, o que de
dos Tupinikin, em tomo de Ilhéus e Porto Seguro; certa forma, deixa a descoberto uma área impor­
os Kamakã-Mongoió, entre os rios de Contas e tante para a nossa análise. A segunda é que, se
Pardo, e os Botocudo, entre o rio Una do Norte e o observarmos o mapeamento, ainda inédito, que o
Doce, podemos inferir a partir de outros dados, autor está realizando dos dados arqueológicos dos
que havia maior unidade do que se pensava quan­ sítios escavados no Espírito Santo, observamos
do eram trabalhados os dados referentes à ocupa­ três grandes unidades peculiares quanto à classi­
ção indígena desta região no século XIX. Os da­ ficação do material: temos uma unidade que se
dos que nos levam a tal conclusão são os arqueo­ refere aos sítios dos Botocudo, outra que se refere
lógicos, os culturais, inclusive os lingüísticos, as aos grupos de origem Tupi e outra que engloba
alianças políticas estabelecidas entre vários gru- todos os demais grupos referidos e que “formam

175
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Re v. do M useu de Arqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

uma tradição específica que não se enquadra em nidades nas maneiras e costumes. Fazem habitual­
nenhuma outra tradição identificada até agora” mente um horifício no lábio inferior, metendo por
(Perota, 1971). ele pequeno pedaço de bambú curto e fino, uma
Em assim sendo, os dados arqueológicos das cujas extremidades pintam de vermelho com
apontam para a unidade cultural de um conjunto urucu. Usam curtos os cabelos, no pescoço e so­
de populações que se opõem aos Botocudo e aos bre os olhos”. Na mesma página toma a afirmar:
remanescentes Tupinikin. Se cruzarmos os dados “...a julgar pelas semelhanças de linguagem,
arqueológicos, a localização dos sítios e os refe­ maneiras e costumes, as referidas tribos parecem
rentes aos grupos indígenas, veremos que exce- ter, entre si, estreita afinidade”. Mais adiante, o
tuando-se os Botocudo e Tupinikin, os habitantes mesmo autor, ao comparar Pataxó e Maxakali,
do Mucuri, Itanhém e Pardo eram os Pataxó, sobre os quais se deteve com grande atenção, ain­
Kumanoxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni, da que inferior à dedicada aos Botocudo, afirma
que formariam, portanto, essa unidade cultural. que ambos “não se pintam, nem se desfiguram,...
são baixos ...delgados, de cara larga e ossuda e
feições grosseiras ...usam os cabelos naturalmen­
Os dados culturais indicam unidade te soltos (pág. 214) ...conservam o curiosíssimo
hábito de arregaçar o prepúcio com um ramo de
Outra indicação é a de que os blocos Kamakã- cipó ...os Patachos lembram, em muitos pontos,
Mongoió e Botocudo são sempre caracterizados os Machacaris ou Machacalis ...” (pág. 215). Na
como de grande densidade demográfica, senhores página 275, ainda afirma sobre o mesmo tema,
de grandes áreas e subdivididos em inúmeros ao analisar os habitantes das matas do Jucururu,
subgrupos. Já os demais sete grupos citados, são “...encontrei uma mulher da tribo dos Machacaris
sempre referidos como pequenos grupos, ocupan­ que entendia perfeitamente a língua dos Pataxós,
tes de pequenas parcelas dos territórios dos coisa muito rara, porque sendo os últimos, de to­
Botocudo com os quais as disputavam intensamen­ das as tribos aborígenes, os mais desconfiados e
te, porém, sempre perdendo e tendo que optar por reservados, é difícil a uma pessoa que não perten­
“entregar-se pacificamente” ao convívio com os ça à tribo, aprender-lhes a linguagem” ... Obser­
“nacionais”. vando a casa dos Machacalis do rio Jucurucu, o
Talvez, por isso mesmo, constatamos, tam­ autor na página 276 constata “...vi igualmente os
bém, que alguns grupos simplesmente desapare­ mesmos sacos pendurados que se observam entre
ceram das referências documentais com mais ra­ os Patachos, com quem os Machacaris se pare­
pidez que os demais. É o caso dos Kutatoi, Kutaxó, cem em muitas particularidades... dizem que cons­
Kumanoxó, Monoxó. Sempre nos perguntávamos tróem as choças da mesma maneira”.
se estes grupos, por serem menores, teriam sido Spix e Martius (1976:55), referindo-se aos
destruídos com maior rapidez ou teriam se reuni­ Malalis e Makonis, afirma: “estes Malalis cria­
do aos seus aliados tradicionais, passando a re­ ram-se entre os Maconi, não fazendo diferença
compor as antigas unidades sociais. Mas por que nenhum deles...”
sempre os mesmos? Porto (1946:164), analisando os relatórios de
Ao aprofundarmos a nossa análise sobre a Téofilo Ottoni sobre a área do vale do Mucuri, ates­
possível unidade cultural destes grupos, outros ta “na sua opinião, todas as tribos que se encon­
dados reveladores precisam ser considerados. travam e habitavam a zona do Mucuri, sua divisa
Trabalharemos, inicialmente, com as constan­ com Jequitinhonha, o litoral, o Suaçui e o rio Doce
tes referências encontradas sobre esta semelhan­ eram da mesma família...” É interessante que os
ça entre as culturas dos grupos, destacando que, grupos a que Ottoni se refere são os Copoxós,
em nenhum momento, encontramos qualquer in­ Purixós, Malali, Kumanoxó, Monoxó e Maxakali.
dicação desta possível semelhança entre qualquer Na página 167, encontramos a seguinte asser­
um deles e os Botocudo, os remanescentes Tupi tiva: “...com os Makoni e Malali vieram os Maxa­
ou Kamakã-Mongoió. kali, tribo de Tapuias, cujo o nome aparece tam­
Referindo-se aos Makoni, Maxakali, Pataxó, bém na costa no tempo do descobrimento” ...E,
Kumanoxó, e Malali, Wied-Neuwied (1989:176) finalmente, na página 168, a sua posição sobre a
afirma que “as cinco tribos aliadas possuem afi­ unidade cultural dos grupos é reafirmada ao di­

176
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

zer: “os Maxakali eram os restos dessas tribos de línguas dos Macuñi, Copoxó, Cumanoxó, Paflame
Tapuios que os Tupis impeliram a concentrar-se e Monoxó, hoje todos extintos... e mostra alguma
na cordilheira da Serra das Esmeraldas1 .. .comba­ semelhança com o dos Pataxó e Malali, esta última
tidos pelos Botocudo... obrigados a procurar a pro­ também língua morta...”
teção dos cristãos, sob o nome de Makoni, Malali Saint Hilaire (1975: 211) também afirmava
e Maxakali”... “... A língua dos Macuñis se pronunciava da mes­
Saint Hilaire (1975: 273) também afirmava: ma m aneira que a dos Coroados, M alalis e
...“os doze ou treze casebres dos Machacalis (sic) Monoxós...”. Na página 273, observa: “...como os
eram dispostos sem ordem e assemelhavam-se aos Malalis, Macuñis e Monochós, os Machacalis fa­
dos Maconis... seu mobiliário era semelhante aos lam com a garganta, quase sem abrir a boca e não
das casas dos Maconis”... tem em sua pronúncia nenhum desses sons gri­
tantes que caracterizam a dos Botocudo...”
Rodrigues (1986) classifica todas as línguas
A língua falada: como pertencentes ao tronco Macro-Jê, pertencen­
outra indicação positiva tes a duas famílias: a dos Maxakali e dos Kamakã
(kamakã, Mongoió, Kotoxó e Menian). Consulta­
Com relação à língua falada pelos vários gru­ do na década de 1970 pelo Projeto de Pesquisa
pos, também encontramos afirmativas bastante sobre Populações Indígenas da Bahia sobre como
significativas quanto à possibilidade da unidade classificar o “idioma” falado pelos remanescen­
cultural, embora as observações sejam mais pro­ tes Pataxó de Barra Velha, definiu-o como Maxa­
blemáticas devido às dificuldades de compreen­ kali. Acreditamos que a base de sua classificação
são e transcrição por parte da maioria dos obser­ tenha sido o vocabulário coletado por Popovich
vadores, sem considerarmos a incapacidade de clas­ entre os Maxakali. Porém, quando observamos o
sificações mais adequadas. Estas dificuldades de- vocabulário que está identificado como sendo dos
veram-se, entre os não especialistas, à falta de um Pataxó, este corresponde à língua atualmente fa­
corpo teórico que lhes permitisse realizar as suas lada pelos Maxakali e que é compartilhada pelos
análises, e, entre os especialistas atuais, ao fato Pataxó. E o vocabulário identificado como sendo
de a grande maioria das línguas não mais serem dos Maxakali nos é desconhecido. Como interpre­
faladas, o que os obriga a usar o material coletado tar tal situação?
de forma inadequada por não especialistas.
Metraux e Nimuendajú (1963) ao estabele­
cerem a classificação das línguas destes grupos, Estratégias políticas
agrupam-nas numa única família lingüística: comuns ante o duplo inimigo
Kamakã, dividida nas línguas Kutaxó, Meniam,
Kamakã e subdividindo o Kutaxó e Kutatoi. Essa Outro fator já citado, e que pretendemos ago­
classificação parece ter se baseado nas observações ra aprofundar, são as constantes referências à alian­
feitas por Nimuendajú, em 1938, quando visitou ça política desses “grupos” em oposição aos
inúmeros remanescentes indígenas do Nordeste, Botocudo e aos “nacionais”.
inclusive os Maxakali e os Pataxó. Num trabalho Navarro (1846:446) afirma que os Kumanoxó,
publicado expressando suas observações, Nimuen­ Maxacari e Bacumin viviam em “aparente inimi­
dajú (1958), afirma que “os Machacan, a tribo vi­ zade”. Wied-Neuwied (1989) faz várias referên­
zinha dos Patacho e os M ono-xó, Capo-xó, cias a esta aliança. Na página 215 encontramos a
Cumano-xó seriam membros da mesma família assertiva: ...“Parece que ambas as tribos (Maxakali
lingüística”... Na página 218, volta a dizer:... “O e Pataxó) se aliaram contra os Botocudo.”... na276,
idioma dos Machacaris é muito parecido com as reafirma... “Fazem causa comum contra os Boto­
cudo mais numerosos”... na 310,... “Os Botocudo
vivem em guerra com diversas tribos entra as quais
(1) Serra das Esmeraldas - nome tradicional da Cordilheira
destacam-se particularmente, os Pataxós e os Ma­
dos Aimorés, situada nos limites entre Bahia, Minas Gerais chacaris... Todos estes últimos (referem-se aos gru­
e Espírito Santo nos vales dos rios Jequitinhonha, Itanhém, pos que aqui estudamos) por serem mais fracos,
Jucurucu, Mucuri e São Mateus. reuniram-se contra os Botocudo”...

177
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

Essa idéia de aliança parece ser reforçada pelo esses grupos são os únicos, como já nos referimos
fato de encontrarmos inúmeras referências aos que, nos primeiros anos de contato, optaram por
vários grupos localizados sempre próximos, o que se entregar “voluntariamente” ao aldeamento junto
fortalece a nossa idéia de que seriam “aldeias”, a quartéis e destacamento, sob a justificativa de
conforme o modelo do que hoje conhecemos como buscarem proteção. É também interessante obser­
Maxakali. Mais adiante compararemos estas no­ varmos que, muitas vezes um dos grupos interme­
tícias com as descrições sobre as “aldeias” diava a atração dos arredios, como podemos cons­
Maxakali atuais. tatar em Wied-Neuwied (1989:214), quando atesta
Navarro (1846:446) informa que os Maxakali que “...os Machacaris amigos foram depois chama­
apareciam em São José de Porto Alegre, na foz do dos como medianeiros da paz com os Patachós...”
rio Mucuri, e que eram compostos de três nações: O autor referia-se ao vale do Jucurucu.
Kumanoxó, Maxakari, Bacuim. Diretamente relacionadas com este aspecto,
Fontoura (1857), que era sub-delegado da ci­ são as notícias constantes sobre aldeamentos “vo­
dade do Prado, na foz do rio Jucurucu, atestava luntários” combinados de alguns grupos: Maxa­
que seu pai havia “amansado primeiramente a kali e Pataxó ou Maxakali e Malali, Malali e
nação Maxakari e com esta amançou bandeiras Makoni etc., todos sob a alegação que estes gru­
da nação Pataxó, dos quais existem poucos aqui.” pos buscavam “proteção”.
Esta informação referia-se à região do Alcobaça. Saint Hilaire (1975:170-171) informa que a
Castro e Almeida (1918) também informava aldeia de São Nicolau, no nordeste de Minas Ge­
que os sertões de Alcobaça “eram habitados por rais, entre a bacia do rio Doce e a do Jequi-
Pataxó e Maxakali”. tinhonha, fora criado pelos Monoxó, que aban­
Wied-Neuwied (1989:170) atestava que no rio donaram este aldeamento para viver com os
São Mateus viviam os Pataxó, Kumanoxó, e Malali em Peçanha. Na página 176, garante que
Maxakali. Na página 176, afirma que as florestas os Pañame, Kopoxó, Makoni e Monoxó haviam
do Mucuri eram ocupadas por Makoni, Malali, se aldeado em Peçanha. Na página 210 atesta que
Capuxo (Kopuxó?) Kumanoxó, M axakali e os Maxakali, Makoni e os Malali refugiaram-se
Paname, todos aliados do Pataxó contra os no Quartel do Alto dos Bois. Na página 271, diz
Botocudo. O autor garante, na página 212, que as que os Maxakali, Malali, Monoxó e Makoni pro­
matas de Itanhém eram habitadas pelos Pataxó e curavam os “portugueses” para fugirem da guer­
Maxakali. A mesma informação é dada sobre a ra aos Botocudo.
vila do Prado (pg. 214) e matas do Jucurucu (pg. Computando outras informações, percebemos
214). Porém é significativo que, ao penetrar o vale que este fenômeno é bastante comum na região.
do Jucurucu, em busca dos Pataxó, tenha encon­ Assim, Caravelas foi ponto do aldeamento dos
trado os Maxakali “ onde antes estavam os Pataxó” Maxakali e Makoni (Mello, 1845; Saint Hilaire,
(pg. 273). É também interessante que o mesmo 1975). Em tomo de São Miguel do Jequitinhonha,
autor (1989:448) observe que o capitão João Gon­ em 1804, “apresentaram-se os Maxakali, Malali
çalves da Costa, responsável pelo devassamento e Makoni” (Saint Hilaire, 1975: 254). No Jucu­
da região do alto do rio Pardo, “combateu os rucu, apresentaram-se os Pataxó e os Maxakali ao
Pataxó, que ele denominava Kutaxó”... Quartel do Vimieiro (Wied-Neuwied, 1989). Pare­
Spix e Martius (1976:55) afirmam que “os ce-nos revelador que apenas estes grupos tives­
Maxacaris, Panames, Cumanoxós e Moncoxós sem adotado, como solução, a prática do aldea­
(Monoxós?) habitam as matas virgens, na frontei­ mento “espontâneo”, numa situação de conflito,
ra da província de Minas Gerais”... Porto (1946: que era comum também, aos Botocudo e aos Ka-
144) atesta que os Kopoxó, Purichus, Malali, makã-Mongoió. E estes índios são sempre indi­
Kumanoxó, Monoxó e Maxakali ocupavam o vale cados como “de índole mansa e pacífica” e dis­
do Mucuri. postos a comporem as tropas de combate aos de­
Provavelmente em decorrências das “alian­ mais. Estes dados, na verdade, tendem a confir­
ças” e do fato de sempre viverem próximos uns mar a nossa hipótese da unidade dos grupos em
dos outros, além de sofrerem a pressão resultante oposição a dos Botocudo, a dos remanescentes
da expansão da sociedade nacional sobre os seus Tupi e dos Kamakã-Mongoió, que nunca se alia­
territórios e da disputa acirrada com os Botocudo, ram entre si.

178
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

Memória coletiva do Jucurucu e que se deslocavam até o litoral, em


e suas referências a unidade tomo da Vila do Prado. Também em 1910, Portella
(1911) localiza os Maxakali no vale do Jucurucu.
Iniciaremos a análise das tradições e memó­ A rota de circulação na região entre os dois esta­
ria dos grupos remanescentes - os Pataxó e os Ma­ dos (Bahia e Minas Gerais) implica na passagem
xakali - reproduzindo um trecho de Saint-Hilaire pela Serra dos Aimorés, e que é o divisor de águas
(1975:181-182) que transcreve a opinião dos Ma­ entre as bacias do Jequitinhonha e do Mucuri, en­
lali sobre esta unidade: contrando-se aí duas pequenas bacias intermediá­
rias: a do Itanhém e a do Jucurucu. E interessante
também observarmos que os Maxakali da aldeia
“Pretendem os Malalis que eles e os Monoxós
Pradinho, que até hoje são considerados como os
tem origem comum... Disse há pouco os Mala­
mais “brabos e puros”, são identificados como ori­
lis acreditaram ter com os Monoxós origem
ginários do Vale do Jucurucu, na Bahia, em oposi­
comum. Os índios de Santo Antônio conser­
ção aos Maxakali da aldeia da Água Boa, que
vam, com efeito, algumas tradições históri­
são considerados como mais “mansos e menos pu­
cas. Pretendem que os Pañame, Malalis, Pu-
ros” e originários do vale do Jequitinhonha, no
ruchis ou Pindis (?), os Monoxós, os Coroa­
seu trecho mineiro, onde se aldearam, pela primeira
dos etc.,descendem de pai comum: que antiga­
vez, em Minas Gerais, em Lorena dos Tocoiós,
mente formavam uma só nação, mas, que ten­
em 1799 (Brandão 1898; Saint-Etilaire, 1975). No
do-se a discórdia intrometido entre eles, se
entanto, mesmo estes Maxakali seriam fugitivos
separaram e formaram várias tribos diferen­
do aldeamento de Caravelas, onde se apresenta­
tes. Entretanto, esses indícios se consideram,
ram “pacificamente” com os Maconi em 1798, e
de certo modo, filhos de uma só família, e é,
de São José de Porto Alegre (atual Mucuri), onde
sem dúvida, por essa razão que eles facilmente
se aldearam em 1786.
se fundiram quando se aproximaram dos por­
Outro aspecto a ser considerado é o do nome
tugueses. Segundo eles, os Monoxós, origina­
da mais antiga aldeia dos Pataxó - a aldeia de “Pé
riamente denominados de Munuchus, come­
da Pedra” - localizada no sopé do Monte Pascoal.
çaram a guerra que, desde então, nunca ces­
É interessante que os Maxakali sempre tenham
sou entre os Botocudo e as diversas nações
uma aldeia chamada Mikrax-Kakax (Pé da Pedra),
de origem comum...”
que é construída aos pés das grandes montanhas.
Só os Maxakali do Pradinho já tiveram duas al­
Usaremos, ainda, como base do nosso raciocí­ deias com este nome e possuem outra, nos dias
nio a memória grupai dos Pataxó expressa, no traba­ atuais, que fica no sopé da maior elevação da re­
lho de Carvalho (1977) e estabeleceremos as pos­ gião. A razão desta opção preferencial pela locali­
síveis conexões com as informações obtidas entre zação, que define o nome da aldeia, deve-se ao
os Maxakali. fato de os espíritos guardiães se refugiarem nas
Os Pataxó afirmam que mantinham contato cristas das grandes elevações (Nascimento, 1984).
regular com os “índios brabos” que vinham de Mi­ Na página 98, Carvalho registra que os anti­
nas Gerais e que estes falavam a mesma língua gos Pataxó queimavam o corpo dos mortos. Igual
(pg. 93). Usavam como ponto de referência o rio prática vamos encontrar entre os Maxakali, que
Jucurucu, fazendo a rota Porto Seguro-Serra dos realizam o enterro primário sem queima e em co­
Aimorés e que esta rota do Jucurucu, via Prado, vas comuns. Como as covas são rasas, é checado
foi interrompida quando a região se tomou mais diariamente se há exposição do cadáver. Caso ocor­
povoada (pg. 94-95). Este dado pode ser comple­ ra tal fato, isto é considerado como um sinal indi­
mentado pela informação (pg. 97) de que os índios cativo de que o morto se libertará e se transforma­
que vinham do interior eram “mais brabos e pu­ rá em onça preta e pelada, passando a assustar os
ros” e que a ocupação do vale do Jucurucu dividiu membros da comunidade. Para evitar que tal acon­
o grupo, inviabilizando a continuação dos contatos. teça, o corpo é desenterrado e queimado (Santos,
Ora, se considerarmos as informações sobre 1970; Amorim, 1980; Nascimento, 1984).
os Maxakali, observamos que Wied-Neuwied Ainda Carvalho (1977: 98), afirma que os
(1989) atesta que os Maxakalis ocupavam o vale Pataxó relembram de uma época em que usavam

179
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kuraanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de Arqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

máscaras rituais durante as atividades religiosas. era uma rota possível dos Maxakali nos seus deslo­
Os rituais Maxakali exigem o uso de máscaras camentos entre o interior e o litoral, os Pataxó pas­
nos rituais para a sua realização (Nascimento, saram a manter contatos intensos com representan­
1984). tes da sociedade nacional. Aos poucos, foram per­
Os Pataxó usam a expressão ingorã para ex­ dendo suas tradicionais formas de organização so­
pressar que estão zangados (Carvalho, 1977:100). cial e, consequentemente, suas manifestações cul­
Vamos encontrar a mesma expressão entre os turais. Tornaram-se, na expressão de Ribeiro
Maxakali para não somente expressar o aborreci­ (1970), “índios genéricos”, ou como querem seus
mento, mas também para referirem-se à onça pre­ vizinhos, “caboclos”. Uma das manifestações cul­
ta e pelada que se origina dos corpos dos mortos e turais perdidas foi exatamente a língua falada pelo
ataca a aldeia (Amorim,1980; Nascimento, 1984). grupo. Este é um processo bastante comum entre
Na mesma página, Carvalho (1977), ao anali­ os índios do Nordeste brasileiro.
sar o ocorrido após o naufrágio, em que morreram Apenas os Fulni-ô, em Pernambuco, e os Ma­
vários homens da comunidade, indica que as al­ xakali, em Minas Gerais, mantêm a língua inte­
mas dos mortos incorporavam-se nas viúvas, atra­ gralmente e de forma operante. Os Krenak ainda
vés das quais se manifestavam, provocando temor têm alguns falantes, podendo ser caracterizados
à comunidade. Para os Maxakali, os espíritos dos como uma sociedade bilíngüe, mas, que só man­
mortos (os Yãmiy) também só se incorporam em tém o bilingüismo entre os maiores de 35 anos.
mulheres, preferencialmente naquelas que tiveram Os jovens não mais falam o Borun e usam, ape­
relações de parentesco ou foram casadas com os nas, algumas palavras soltas em determinadas si­
mortos (Nascimento, 1984; Popovich, 1983). tuações.
Na página 319, Carvalho (1977) refere-se a Uma situação em que os Pataxó discrepam
uma expressão Pataxó: “a água vira Maracaxeta”, neste conjunto, é o fato de terem escolhido, como
isto é, “a água que lustra com a claridade da lua, símbolo emblemático da sua identidade, aprender
ela faz aquele reflexo, feito relâmpago”. É inte­ algumas palavras no idioma Maxakali. É neste
ressante constatarmos que Maracaxeta é uma ponto que surgem algumas questões que conside­
corruptela de Malacaxeta, uma outra forma dos ramos relevantes. Num momento em que o conhe­
Maxakali serem chamados e também de uma ci­ cimento sobre a existência dos grupos não era co­
dade do vale do Mucuri, antigo aldeamento Maxa­ mum, como os Pataxó sabiam da existência dos
kali (Marcatto, 1980). Maxakali, que eles ainda falavam a língua e, fi­
A fragilidade dos dados comparativos, usan­ nalmente, como sabiam chegar até eles? Teriam
do-se a “memória” dos Pataxó e a cultura dos Ma­ voltado a usar a antiga rota do Jucurucu/Itanhém
xakali, deve-se ao alto grau de aculturação dos pri­ sabendo que reencontrariam os “índios brabos e
meiros que interrompeu o fluxo da socialização puros” que falavam a mesma língua? Só um co­
tradicional e, consequentemente, a transmissão das nhecimento prévio justificaria um empreendimento
informações referentes à história do grupo. Porém, de sucesso não garantido para o grau de conheci­
consideramos que o pouco que resta dessa memó­ mento compartilhado pelos grupos indígenas na­
ria apenas reforça a idéia da unicidade dos dois quele momento.
grupos. No mesmo contexto de análise, Carvalho
(1977) informa que quatro índios Pataxó de Barra
Velha foram “pedir ajuda aos caboclos de lá”. Lá
A história recente: é Umburanas, cabeceiras do rio Itanhém, muito
a busca de referências e alianças próximo às cabeceiras do Jucurucu. A razão da
busca de ajuda, conforme declarações do então
Outros fatos da história mais recente dos “cacique” de Barra Velha, o capitão Honório, ao
Pataxó também nos chama atenção. Um deles é, Jornal A Tarde de 28.5.1951, foi a invasão da al­
exatamente, decorrente do processo deculturativo deia por forças policiais e fazendeiros em represá­
pelo qual o grupo passou. Isolados na área que lia a um ataque dos Pataxó a algumas fazendas.
conhecemos como Barra Velha, que seria a antiga As questões aventadas com relação ao aprendiza­
barra do rio Itanhém (nas suas cabeceiras encon­ do da língua com os Maxakali continuam válidas
tram-se, hoje as aldeias Maxakali) e que, também, para a busca de ajuda. Como sabiam que os

180
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

Maxakali seriam alcançados nas cabeceiras do até o nascimento do primeiro filho. Depois, têm
Itanhém, que encontrariam apoio entre eles e por liberdade para escolher onde fixarão residência em
que escolheram os Maxakali e não os Pataxó função das novas alianças ou oposições políticas.
Hãhãhãi que também viviam no sul da Bahia? E Os termos classificatórios de parentesco Ma­
por que foram buscar apoio entre os índios do Pra- xakali, de forma genérica, ordena as pessoas em
dinho (“os mais brabos e puros”), que seriam origi­ duas grandes categorias: os Xape (os parentes ou
nários da região do Jucurucu e não entre os de aliados do grupo familiar, dos quais se espera soli­
Água Boa originários do trecho mineiro do Jequi- dariedade, bondade, consideração e respeito à pro­
tinhonha? priedade) e os pukñoq (o estranho, ou inimigo, al­
E, finalmente, como explicar o fascínio dos guém de quem não se pode esperar bondade ou
Pataxó, que habitam a Fazenda Guarani, em Mi­ consideração, mesmo que sejam parentes de gera­
nas Gerais, pelos Maxakali a ponto de sempre pro­ ções mais afastadas ou afins em potencial). Os
curar usá-los como ponto de referência e, até mes­ casamentos são concretizados entre pukñoq e os
mo, aceitar refugiados Maxakali em sua aldeia, Xape-Hãptox Hã, os parentes distantes e colaterais
em 1991, quando opõem tanta resistência à famí­ (Popovich, 1976).
lia dos Krenak ali refugiados há muitos anos? E A participação em um dos dez grupos rituais
por que os Maxakali aceitaram conviver tão tran­ se fazia, anteriormente, pela pertinência do indi­
quilamente com os Pataxó, mas rejeitaram convi­ víduo a determinado clã. Hoje, a vinculação pare­
ver com os Krenak? ce ser pela linha paterna. As mulheres são inseridas
Todos estes dados vistos em conjunto é que a partir do casamento (Rubinger, 1963; Nascimen­
nos levaram a refletir insistentemente sobre o as­ to, 1984; Popovich, 1976).
sunto. O sistema de parentesco é o sustentáculo da
organização política, considerando-se que as al­
deias Maxakali são compostas por famílias exten­
Confrontando dados sobre a organização
sas, com um líder que compõe o conselho tribal,
social: os Maxakali como referência básica
responsável pelas decisões tomadas em relação à
coletividade.
A sociedade Maxakali, assim como os Pataxó, Uma das características mais fortes da sua
Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Malali, era de caça­ organização social é o poder político ser totalmente
dores e coletores com uma agricultura incipiente. difuso, não havendo a figura do “cacique”, líder
O nomadismo surge como uma decorrência desta ou capitão ou mesmo um interlocutor único que
organização econômica. representa a comunidade.
Quanto a uma possível existência do dualismo Popovich (1982) ressalta não haver na língua
representado por fátrias exogâmicas ou outras for­ Maxakali termos que se refiram à idéia de chefia
mas de organização dual, há dúvidas na literatura. ou liderança. Não há, aparentemente, uma hierar­
Entretanto, há concordância quanto a sua or­ quia social entre eles.
ganização patrilinear, indicada por: A mesma autora (1982) afirma que a orga­
1- casamento preferencial entre primos cru­ nização do grupo centra-se em quatro unidades
zados unilaterais; básicas: a da identidade, a residencial, o grupo do­
2 - fusão bifurcada de termos de parentesco méstico e o bando, todas estruturadas a partir das
na geração dos pais; relações de parentesco.
3 - afiliação complementar típica de socieda­ A unidade definida pela identidade inclui to­
de de caçadores e coletores - ligação íntima dos das as pessoas que são conhecidas por Maxakali.
seus parentes do lado materno (Amorim, 1980; Têm língua própria, mitos, símbolos, rituais e his­
Popovich, 1976). tória em comum. Entretanto, não exercem, como
A regra residencial vem se transformando. Ni- tal uma atividade coletiva.
muendajú (1958) classifica-os como patrilocais. O grupo doméstico é composto pelos mora­
Amorim (1980), que os estudou quarenta anos de­ dores de duas a cinco casas, habitadas por famíli­
pois de Nimuendajú, afirma que eram matrilocais. as extensas com direito de acesso mútuo. É a uni­
Já Nascimento (1984) atesta que, logo após o ca­ dade básica de integração social, pois a relação é
samento, os noivos vivem na casa do pai da noiva estabelecida entre parentes consanguíneos ou

181
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

afins, cabendo a liderança ao patriarca ou, excep­ diferentes. As decisões tomadas com relação ao
cionalmente, a uma matriarca viúva. É um grupo grupo familiar e ao bando são resultantes do con­
não perene, podendo desagregar-se em momentos senso entre os membros do grupo envolvidos.
de crise, morte ou desacordo, sem grandes alardes. O que se pode constatar é que a área de influên­
O bando é a unidade de consenso, sendo a cia de cada “líder” não ultrapassa a sua “aldeia”.
categoria mais complexa. Inclui todos os paren­ Esta rápida análise de organização social
tes, englobando vários grupos domésticos sob a Maxakali, como é nos nossos dias, permitiu-nos
liderança de um patriarca-líder que se relaciona algumas inferências para explicar a nossa hipóte­
parentalmente com os demais membros. É a uni­ se da unidade e dispersão acentuada dos vários
dade de maior integração social, estabelecida em grupos que analisamos.
tomo do líder e de um centro cerimonial (Kukex) Pelo observado acima, a unidade mais com­
em atividade. Exige um número ideal de pessoas plexa em termos de sua organização social é o
para funcionar. Caso este decresça, interrompe-se bando, que se compõe de vários grupos domésti­
o cerimonial e extingue-se o bando. As denomina­ cos (“aldeias”) que, por sua vez, são compostas
ções do bando advêm de sua localização espacial. de unidades residenciais. Este seria, portanto, o
Este grau de dispersão faz com que Popovich nível mais amplo de integração possível com ati­
afirme que os agrupamentos Maxakali são flui­ vidades coletivas a nível social, político, econô­
dos e mutáveis e que as dissidências, quando in­ mico e religioso. É portanto, uma unidade autô­
ternas ao grupo doméstico, redundem na refo­ noma, com cerimonial próprio e denominação es­
rmulação da composição das “aldeias”, fazendo pecífica. Agrega-se a esta característica, o fato de
com que a distância se interponha entre os anti­ que o bando é o limite específico de atuação de
gos membros. Na atualidade, após a demarcação, cada liderança, restrita a seus parentes afins e
e conseqüente redução do habitat, o máximo de consanguíneos e teremos que cada bando pode ser,
distância que conseguem interpor é transferir-se também, autônomo em termos de reprodução de
de Pradinho para Água Boa e vice-versa ou procu­ acordo com as regras de casamento. Pois, ao en­
rarem o ponto extremo oposto dentro de uma das globar parentes afins e consanguíneos de gerações
glebas para instalarem a nova “aldeia”. Amorim diferentes, permitem que sejam encontrados, no
(1980) também assegura que é uma prática co­ seu interior, os Pukñoq (estranhos, parentes de
mum dos bandos se dispersarem e voltarem a se geração mais afastada ou afins) e Xape-Hãptox
reunir nos momentos críticos. É interessante obser­ Hã (parentes distantes e colaterais).
vamos que a maioria dos casos de dispersão deve-
se a assassinatos e a que a posição das novas al­
deias é definida de acordo com as posturas de apoio A consciência de pertinência,
e/ou rejeição aos envolvidos no fato. São, portan­ sua fluidez e articulação mais ampla
to, as alianças estabelecidas que reordenam espa­
cialmente as novas aldeias. A tendência ao sur­ Para encerrar esta parte da nossa exposição,
gimento constante de novas aldeias é facilmente consideraremos, ainda, dois aspectos. O primeiro
observável na história do Maxakali do Pradinho e é que, embora os Maxakali tenham uma consci­
de Água Boa (Paraíso, 1992). ência étnica, tal consciência não resulta em ativi­
As lideranças são especialistas em religião e dades coletivas, solidariedade ou mesmo idéia de
na prática dos cerimoniais. As afiliações a uma unidade ordenadora dos bandos.
liderança devem-se à relação de parentesco com O segundo é a tendência ao fracionamento
os membros, seja pela via consanguínea ou por desta unidade baseada na identidade. Por razões
afinidade. Os que conseguem reunir o maior nú­ de insatisfações, tensões, pressões, crises e con­
mero de descendentes e parentes colaterais são os flitos, a tendência, aliás como de todos os grupos
que detêm maior poder social. Para isto deverão predominantemente caçadores e coletores, é ao
oferecer maior número de vantagens materiais ou fracionamento e ao afastamento entre os bandos,
espirituais, “mantendo o equilíbrio entre os mun­ que passariam a constituir novas unidades sociais
dos visível e invisível” (Popovich, 1992: 2). autônomas e auto-suficientes.
Porém, o exercício do seu poder é difuso po­ Vimos que isto é perfeitamente possível en­
dendo recair sobre várias pessoas em momentos tre os Maxakali. Portanto, a nossa hipótese para

182
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

explicar a existência de tantos grupos cóm nomes de membros dos vários subgrupos cerimoniais cha­
diferentes, aliás previsto na própria organização ma-se Yãmiy (alma dos mortos) xop (grupo). Os
social do grupo, é o afastamento dispersivo dos espíritos são ordenados hierarquicamente.
bandos nos vários momentos de crise vivenciados Procuraremos, neste momento, relacionar o
e que foram muitos a partir da penetração dos nome dos grupos rituais e indicar a sua conexão, a
seus territórios por “brancos” e da guerra movida partir do nosso ponto de vista, com os nomes dos
por e contra os Botocudo. Porém, a consciência grupos indígenas apontados ao longo deste traba­
da unidade pela identidade não se desfez naque­ lho como compondo uma unidade (ver tabela).
les primeiros momentos. As provas para tal afir­ Para facilitar a leitura, faremos a indicação
mativa são o desconhecimento de conflitos envol­ sob a forma de listagem.
vendo estes grupos, entre si, sua aliança contra os Cabe-nos ressaltar que um dos grupos rituais
Botocudo, além da prática de se aldearem “espon­ (clãs?) poderia predominar num dos bandos, fazen­
taneamente” em conjunto. Caso não raciocinemos do, então, que fossem, equivocadamente, identifi­
a partir destes princípios, como explicar estas cados pelo nome do grupo ritual dominante ou pelo
alianças? nome do grupo ritual a que pertencia o entrevista­
Para encerrar esta parte da nossa análise, do, gerando a confusão no registro dos bandos.
consideraremos a nossa hipótese dos nomes dos Após tão longa análise, só resta explicar por­
“bandos”, na nossa concepção, e sua correlação que incluímos os Amixocori na nossa reflexão.
com os nomes dos grupos rituais (clãs?) dos Maxa­ Na tentativa de compreendermos esta reali­
kali. dade tão complexa, procuramos os dados sobre os
Não entraremos em maiores detalhes sobre a grupos referidos no século XVI. Na nossa pes­
religião Maxakali dada a complexidade do tema e quisa deparamos com a análise de Nogueira

GRUPO RITUAL GRUPO INDÍGENA TRADUÇÃO


MONOXÓ Monãyxop ancestrais (os que vão e voltam, entram)
MAXAKALI Mãy’AYây Jacaré
MALALI Mãaipe Jacaré menor •
PATAXO Putuxop3 Papagaio
KUTAXO Kutapax xop Abelha
KUTATOI Kuatatex Tatu
KUMANAXO KumãnãYxop Heroínas Tribais
MAKONI ManaYtuka Veado Pequeno
FONTE: Popovich, H. (1976)

por não ser este o objetivo deste nosso trabalho. Batista (1980: 105) sobre a denominação Ami­
Destacaremos, apenas, os seus aspectos mais rele­ xocori relacionada com um grupo que vivia nas
vantes para a nossa análise: a nominação dos gru­ adjecências de Porto Seguro (Barra do Itanhém,
pos rituais. hoje Barra Velha?).
Inicialmente, chamaremos a atenção para o fato Quando observamos a tradução da palavra -
de o universo religioso dos Maxakali ser composto os que costumam vir por aí, os oriundos de longe -
de um conjunto (xop)2 de espíritos divididos em
dez grupos que se subdividem em duzentos sub­
grupos. Ao conjunto total de espíritos, de rituais,
(3) Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que a
terminação xop refere-se a um dos dez grupos rituais de
(2) Xop: na língua Maxakali significa grupo, aparecendo caráter abrangente. Já as palavras sem esta terminação,
constantemente nas palavras indicativas de grupo social. indicam subgrupos de um grupo mais amplo.

183
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

associamo-los com os chamados Maxakali em seus to a sua composição, alterando-se todas as vezes
deslocamentos entre o interior e o litoral na área da em que tensões e atritos se estabelecem.
antiga Capitania de Porto Seguro, além de nos re­ Diante desta fluidez, o fato de o grupo
meter ao significado de Monoxó - os que vão e Maxakali ter-se dispersado em várias “aldeias”
voltam. (bandos), cada uma delas como unidade autôno­
ma, em termos econômicos, políticos, sociais e
religiosos parece-nos perfeitamente lógico.
A questão da identidade étnica Horowitz (1975: 23) chama atenção para o
e o fracionamento dos grupos sociais fato de que estas separações decorrentes da flui­
dez social não significam que, em outros mo­
É interessante observarmos que há uma ten­ mentos, não se possam estabelecer alianças pos­
dência a consideramos a composição e estrutura teriores: “groups which may have separeted and
dos grupos sociais, no passado, usando, como even mutually hostile in one environment may
modelo, a conformação atual das populações es­ be identified or identify themselves as one in a
tudadas. Horowitz (1975: 113) afirma: “ Group new environment of greater heterogenity” . E a
bounderies are often fluid. Yet most research in partir desta análise que podemos explicar as ali­
ethnic relation has tended to take the groups as it anças constantemente estabelecidas entre os vá­
finds them, as if they ali existed in their present rios subgrupos objetivando o com bate aos
form since time out of mind”. Botocudo, assim como as decisões de aldea-
A fluidez da composição dos grupos e ban­ mento conjunto.
dos reflete-se, no tocante à identificação étnica, A retomada da identidade em termos mais
de forma significativa, interrelacionando-se com ampios, como hoje ocorre com os grupos conheci­
questões como a auto-identificação dos seus mem­ dos como Maxakali e Patoxó, está diretamente
bros e as definições elaboradas pelos outros gru­ relacionada com a contração do território que dis­
pos com os quais se relacionam. põe, após o seu aldeamento pelo Serviço de Prote­
O ritmo da dinâmica de alteração, no entanto,é ção aos índios. Horowitz (1975:137) destaca a im­
variável, porém sempre estará presente, fazendo portância deste fenômeno - expansão/redução
com que as formas de inserção dos membros este­ territorial - como um dos definidores do número
jam em constante alteração. O ritmo das mudan­ de subgrupos gerados: “of course, each case has
ças será definido por fatores externos (principal­ its own variations, but each also illustrates a ge­
mente, como já nos referimos, os resultantes dos neral and powerfull tendency: as identify tends to
conjuntos e tipo de relações que o grupo estabele­ expand with an expanding context, often shaped
ça com os outros) e internos. Dentre os internos, by expanding territorial boundaries, if tends to
talvez o mais importante seja o maior e o menor contract with a contracting context, again often
grau de coesão que a organização social desen­ defined by contracting territorial boundaries”.
volve, promovendo a aglutinação dos seus mem­ Assim, teríamos que, nos momentos que ante­
bros na proporção direta da sua capacidade de cederam o aldeamento compulsorio, teria ocorrido
desenvolver o sentimento de pertinência grupai. uma provável dilatação de território e uma disper­
Ora, ao analisarmos a sociedade Maxakali, são dos subgrupos (bandos). Consequentemente,
constatamos que sua organização social, seguin­ teríamos uma possível tendência, não concretizada
do padrões típicos de grupos predominantemente devido a penetração dos seus territórios por outros
caçadores e coletores, não pode ser caracterizada grupos indígenas deslocados pelos “brancos” e por
como capaz de desenvolver forte coesão social, colonizadores, do surgimento de novas identida­
responsável por uma aglutinação mais intensa dos des. Estes fatores que resultaram, num primeiro
seus membros. O que constatamos, ao contrário, momento, numa crescente dispersão e isolamento
é que os Maxakali sempre tenderam e tendem ao dos grupos em aldeias (principalmente durante o
fracionamento, considerando-se que sua unidade século XIX) explicam as múltiplas identificações
social, articulada pela identidade, é tão fluída que que conhecemos. Porém, o aldeamento compul­
não é capaz de promover atividades coletivas. Até sório, o confinamento em áreas restritas fez com
mesmo o bando, unidade mais complexa de con­ que passassem a predominar duas identidades:
senso, tem um caráter fluido e inconstante quan­ Maxakali e Patoxó.

184
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

As hetero-denominações noxó?). O final co bm se encontra frequentemente


impostas aos remanescentes em nome das tribos desta família lingüística”...
Diante destas afirmativas, a interpretação que
encontramos para essa divergência entre as possí­
Com relação a este aspecto da nossa análise, veis autodenominações, remotam as questões re­
ainda há questões que precisam ser elucidadas. lativas aos informantes usados por Nimuendajú e
A primeira delas é porque Pataxó. Pelo que sabe­ Souza, suas possíveis pertinências a bandos ou
mos, e nos é confirmado por Carvalho (1977:100), grupos rituais diferentes. Considerando-se, ainda,
eles desconheciam a sua autodenominação. Foi o que uma pessoa possuía mais de uma identidade,
primeiro chefe do posto indígena de Barra Velha podendo identificar-se como pertencente a um clã
que lhes atribuiu o nome Pataxó. Ele teria se ba­ e, ao mesmo tempo, a um grupo étnico, ou uma
seado em informações históricas que atestavam a nacionalidade a depender do grau de amplitude
presença tradicional deste grupo na região. Mas, que atribua a sua classificaçao no momento em
qual seria a autodenominação original dos “cabo­ que é inquirido, podemos explicar as diversida­
clos” de Barra Velha? Este dado perdeu-se com a des de nominações que foram registradas. Toman­
sua memória. Hoje assumiram esta identidade, re­ do a questão da auto identificação dos Maxakali,
criando, a Maxakali. Ela não pertence ao Tupi, nem usaremos os trabalhos de Popovich (1992:30). A
a língua própria da tribo. Poucos entre os índios o maior especialista na língua e cultura Maxakali
conhecem. Hoje é como designação neobrasileira afirm a que a autodenom inação do grupo é
...para toda aquela parte da tribo que habitava o Tikmu’un.
Jequitinhonha (reunião de tribos, como afirmava
partirem daí algumas “tradições” que têm um ca­
ráter emblemático de afirmação de sua identidade Conclusão: um desafío a outros especialistas
indígena, inclusive a de terem sido os Pataxó os
que mantiveram contato com a esquadra de Cabral Diante de todos estes dados, podemos cons­
e assistido a primeira missa rezada no Brasil. tatar que conhecemos muito pouco da história des­
Também os M axakali não se autodeno­ tes grupos, o que nos impossibilita, até mesmo,
minavam assim. A primeira pessoa que nos cha­ afirmar a sua autodenominação. Daí porque inici­
mou atenção para este fato foi Souza (1991) quan­ amos e encerraremos este trabalho conclamando
do nos afirmou que a palavra Maxakali significa­ vários especialistas a repensarmos o tema. Porém,
va “reunião de tribos” e que estes índios se além de desejarmos um avanço na discussão des­
autodenominavam Comanaxu (Komanaxó). te tema específico, apresentado neste trabalho,
Instigada por esta afirmativa, procurei suporte consideramos que a nossa contribuição possa ser­
no texto de Nimuendajú (1958:209) que atestava: vir como modelo para reavaliar outras realidades
“desconheço a origem da palavra Maxakali. Ela indígenas que, também, apresentariam uma uni­
não pertence ao Tupi, nem a língua própria da tri­ dade sócio-cultural não expressa em documentos
bo. Poucos entre os índios o conhecem. Hoje é co­ e trabalhos de especialistas. É vendo o passado
mo designação neobrasileira... para toda aquela pela ótica do presente e reconhecendo os fatores
parte da tribo que habitava o Jequitinhonha (reu­ de dispersão - incluindo o social de alguns gru­
nião de tribos, como afirmava Souza?). Pronun- pos indígenas, como elementos explicativos im­
ciam-no Mtchkali... A autodenominação é a Mo- portantes que, talvez, possamos compreender me­
nacó bm (os Munuchus de Saint-Hilaire ou Mo- lhor o passado.

185
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, M onoxó, Kumanaxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Re v. do M useu de A rqueologia e Etnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali
and Makoni: indian peoples or differentiated Subgroups of a same Nation? A reflection
proposal. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 4: 173-187, 1994.

ABSTRACT: This work results from a ten year reflection that found its
explanatory axis during the elaboration of the anthropological report on the
Maxakali indians, concluded in 1992. We intend to develop here considerations
on the possibility of an unity among subgroups which were traditionally viewed
as differentiated groups by anthropologists, historians and travellers. It is not a
conclusive work, but a proposal for an interdisciplinary study that starting
from the model presented here, could help in widening the reflection on similar
ethnographic situations in other areas of Brasil.

UNITERMS: Indians -M inas Gerais - Bahia - Espírito Santo -


Archaeological data - Political strategies - Social organization - Ethnicity -
Territory - Ethnohistory.

Referências bibliográficas

AMORIM, M. S. Instituto de Etnologia, M éxico, 2, Universidad


(1966) A Situação Atual dos Maxakali. Rio de Janeiro. Nacional de Tucuman: 21-47.
(1980) Os Maxakali e os Brancos. N. Rubinger (Ed.) MARCATTO, S. de A.
Maxakali: Resistência ou Morte. Ed. Interlivros, (1980) O Indianismo Oficial e os Maxakali (séculos
Belo Horizonte: 98-117. XIX e X X ). N. Rubinger (Ed.) M axakali:
ARTIAGA, Z. Resistência ou M orte. Ed. Interlivros, Belo
(1920) Dos índios do Brasil Central. Departamento Horizonte: 123-182.
Estadual de Cultura, Goiás. MELLO, J. C. P. de
BRANDÃO, J. da S. (1845) Ofício ao Presidente da Provincia da Bahia,
( 1898) Os índios de Lorena dos Tocoiós. Revista do 16/1/1845. Arquivo Público da Bahia, Secção
Arquivo P ublico M ineiro, Ouro Preto, III, Provincial, Fundo Presidência da Província, man.
Imprensa Oficial de Minas Gerais: 431-435. METRAUX, A.; NIMUENDAJÜ, K.
CARVALHO, M. R. G. (1963) The Mashakali, Patashó Linguistic Families. J.
(1977) Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema Steward (Ed.) Handbook o f South American
econômico. Salvador. Indians. Cooper Square Publishers, New York:
CASTRO E ALMEIDA, E. 541-545.
(1918) Inventário dos Documentos relativos ao Brasil NASCIMENTO, N. F.
existentes no Archivo de Marinha e Ultramar (1984) A Luta pela Sobrevivência de uma Sociedade
de Lisboa. O ficinas Gráficas da Biblioteca Tribai do Nordeste Mineiro. São Paulo.
Nacional, Rio de Janeiro. NAVARRO, L. T. R.
FONTOURA, M. de J. ( 1846) Itineràrio da viagem que fez por terra da Bahia
(1857) Ofício enviado ao D iretor G eral dos índios, ao Rio de Janeiro. Revista do Instituto H istó­
Casem iro Sena M adureira em 10.03.1857. rico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
Arquivo Público da Bahia - Secção Histórica VII: 433-469.
- Presidência da Província - Agricultura, NIMUENDAJÜ, K.
Indústria e Comércio - Sudeos. (1958) Indio Machacaris. Revista de Antropologia, São
HOROWITZ, D. Paulo, 6 (I), EDUSP: 53-61.
(1975) Ethnic identify. N Glazer; D. P. Moynihan (Eds.) NOGUEIRA BATISTA, C. de A.
Ethnicity - Theory and Experience. Harvard (1980) Notas. F. Cardim (Ed.) Tratado da Terra e
University Press,Cambridge and London: 111- G ente do B rasil. EDUSP, São Paulo; Ed.
140. Itatiaia, Belo Horizonte: 105.
LOUKOTKA, C. OTTONI, T. B.
(1931) La Família Linguistica de Brasil. Revista del (1858) Notícias sobre os selvagens do Mucuri. Revista

186
PARAÍSO, M.H.B. Amixokori, Pataxó, Monoxó, Kumanoxó, Kutaxó, Kutatoi, Maxakali, Malali e Makoni. Povos indígenas
diferenciados ou Subgrupos de uma mesma Nação? Uma proposta de reflexão. Rev. do M useu de A rqueologia e E tnologia,
São Paulo, 4: 173-187, 1994.

do Instituto H istórico e Geográfico Brasileiro, das Línguas Indígenas. Ed. Loyola, São Paulo.
Rio de Janeiro,X/, Tip. Brasiliense: 124-238. RUBINGER, M.
PARAÍSO, M. H. (1980) Os Maxakali e a questão das frentes de expansão
(1992) Relatório Antropológico sobre os Maxakali. da Sociedade Neobrasileira. N. Rubinger (Ed.)
Salvador. Maxakali: Resistência ou Morte. Ed. Interlivro,
PEROTA, C. Belo Horizonte: 9-67.
(1971)
Considerações sobre a tradição Aratu nos esta­ SAINT-HILAIRE, A.
dos da Bahia e no Espírito Santo. Boletim do (1975) Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e
Museu de Arte e H istória, Vitória, I, Minis­ Minas Gerais. Ed. Itatiaia, Belo Horizonte;
tério da Educação e Cultura, Universidade EDUSP, São Paulo.
Federal do Espírito Santo: 149-172. SANTOS, P. R. dos
POPOVICH, F. (1970) Pioneiros de Águas Form osas - Relato H is­
(1983) A Organização Social dosMakali. Juiz de Fora. tó rico do D esbravam en to d as S elvas do
(1992) A Revitalização dos Rituais: uma form a de re­ Pam pã. Imprensa O ficial do Estado, B elo
sistência Maxakali. Brasília. Horizonte.
POPOVICH, H. SENNA, N. de
(1976) M axakali Myths on Cultural distinctions and (1908) índios do Brasil. Revista do Arquivo Público,
Maxakali sense o f inferiority to the National Belo Horizonte, XIII, Imprensa O ficial de
Brazilian Culture. Brasilia, dat. Minas Gerais: 145-218.
PORTELLA, A. SPIX, J. B.; MARTIUS, C. F. von.
(1911) R elatório da Expedição fe ita a A ldeia dos (1976) Viagem p elo Brasil. Cia. Editora Melhora­
ín dios M achacaris e em procura de índios mentos, São Paulo.
N ô m a d e s da M argem E sq u e rd a d o R io SOARES, G.
Jequitinhonha ao Sr. Manoel Tavares da Costa (1992) Depoimento à antropóloga.
Miranda, Subdiretor da 2a. Subdiretoria do SOUZA, J. S. de
Serviço de Proteção aos índios, dat. (1991) Depoimento à antropóloga, Umburanas.
PORTO, R. URBAN, G.
(1946) A Bandeira de Jão da Silva Guimarães - “ O (1992) A História da Cultura Brasileira Segundo as
Mestre-de-Campo”. O rio Todos os Santos e os Línguas Nativas. M. M. Carneiro da Cunha
Selvagens do Mucuri. R evista do Instituto (Org.) H istória dos índios do Brasil. Cia. das
Histórico e Geográfico de Minas G era is. Belo Letras, Fapesp, SMC., São Paulo: 87-102.
Horizonte, //, Imprensa Oficial do Estado: 142- WIED-NEUWIED, M.
177.
(1989) Viagem pelo Brasil. EDUSP, São Paulo; Ita­
RODRIGUES, A. dall'1. tiaia, Belo Horizonte.
(1986) Línguas B rasileiras - P ara o Conhecimento

Recebido para publicação em 20 de setem bro de 1994.

Você também pode gostar