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Redefinições das fronteiras

entre o público e o privado:


implicações para a
democratização da educação
Vera Maria Vidal Peroni
Organizadora

Redefinições das fronteiras


entre o público e o privado:
implicações para a
democratização da educação

2013
© Autores e autoras – 2013

Editoração e impressão: Oikos


Capa: Juliana Nascimento
Revisão: Rui Bender
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Conselho Editorial
Bernardete A. Gatti
Iria Brzezinski
Maria Celia de Abreu
Osmar Favero
Pedro Demo
Rogério de Andrade Córdova
Sofia Lerche Vieira

Liber Livro Editora Ltda.


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R314 Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: impli-


cações para a democratização da educação. / Organizado-
ra Vera Maria Vidal Peroni. Brasília: Liber Livro, 2013.
352 p.; 16 x 23cm.
ISBN 978-85-.......-......-......
1. Educação. 2. Política educacional – Relação – Público-
privado. 3. Democratização da educação. 4. Relação – Edu-
cação pública e privada. I. Peroni, Vera Maria Vidal.
CDU 37
Catalogação na publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário

Apresentação ....................................................................................... 7
A privatização do público: implicações para a democratização
da educação ......................................................................................... 9
Vera Maria Vidal Peroni
A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas
globais em educação ........................................................................... 33
Stephen J. Ball
Antonio Olmedo
Autonomia das escolas: entre público e privado ................................... 48
João Barroso
Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração
do poder no quadro de uma relação subordinada ................................ 58
Licínio C. Lima
Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação.
Notas de um estudo no campo da Educação e Formação
de Adultos em Portugal ...................................................................... 82
Fátima Antunes
Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em
Portugal: da Revolução dos Cravos aos nossos dias ........................... 120
Raquel Varela
Sandra Duarte
Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad
social universitaria” y las politicas de “tercera via” ............................ 140
Susana E. Vior
Laura R. Rodríguez
O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico .. 159
Daniela de Oliveira Pires
A influência das consultorias internacionais nas decisões das
políticas educacionais no Brasil ......................................................... 175
Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt
Maria de Fátima Oliveira
Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da
Educação: uma análise do plano de ações articuladas ........................ 198
Alexandre José Rossi
Liane Maria Bernardi
Lucia Hugo Uczak
Expansão da Educação Infantil através de parceria público-privada:
algumas questões para o debate (quantidade versus qualidade no
âmbito do direito à educação) ........................................................... 220
Maria Luiza Rodrigues Flores
Maria Otília Kroeff Susin
As parcerias público-privadas na educação brasileira e as decorrências
na gestão da educação: o caso do Instituto Ayrton Senna (IAS) ......... 245
Luciani Paz Comerlatto
Maria Raquel Caetano
Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO ...................... 266
Monique Robain Montano
Relação público-privada na Educação Básica no Brasil: uma análise
da proposta do Instituto Unibanco para o Ensino Médio público ....... 276
Marcelisa Monteiro
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
– Pronatec: um olhar a partir das relações entre o público e o privado.. 290
Maurício Ivan dos Santos
Romir de Oliveira Rodrigues
A relação entre a educação pública e a privada na Educação
Especial brasileira ............................................................................. 308
Fabíola Borowsky
AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado: a parceria público-privada
nas políticas de educação de jovens e adultos ..................................... 327
Denise Maria Comerlato
Jaira Coelho Moraes
Sobre autores e autoras ..................................................................... 347

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Apresentação

Este livro tem como objetivo apresentar resultados parciais da pes-


quisa financiada pelo CNPQ: “Parcerias entre sistemas públicos e institui-
ções do terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra e as implica-
ções para a democratização da educação”, que busca entender como países
com trajetórias distintas em termos de papel do Estado na consecução do
direito à educação vivenciam esse período particular do capitalismo e as
consequentes mudanças na relação entre o público e o privado e a interven-
ção da lógica do privado na educação pública.
A ideia é conhecer a produção internacional e avançar nos estudos
do referencial teórico metodológico e estabelecer um diálogo mais sistemá-
tico com grupos de pesquisa que estudam o tema nas suas realidades. Con-
sideramos importante avançar na discussão das especificidades e regulari-
dades vivenciadas pelos países, levando em consideração tanto a sua histo-
ricidade como a correlação de forças políticas atuais, relacionando assim o
particular e o universal, o local e o global, no que Harvey chama de capita-
lismo histórico e geográfico (HARVEY, 2004).
Para dialogar com os outros países, analisamos as políticas educacio-
nais que envolvem a relação entre público e privado na educação básica no
Brasil em todas as etapas (infantil, fundamental e médio) e modalidades
(Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial e Educação Profissio-
nal), assim como o histórico dessa relação e a atual proposta de gestão públi-
ca do governo federal e a assessoria do grupo internacional Mackinzei ao
governo federal. Os temas foram divididos entre os integrantes do grupo.
O grupo de pesquisa está vinculado ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/
UFRGS) e é composto por uma bolsista de PIBIC, mestrandos, doutoran-
dos, pós-doutorandos, mestres, doutores e docentes do programa, assim
como pesquisadores de outras instituições, totalizando 16 membros. Esse

7
Apresentação

coletivo estuda o tema público-privado desde 2001 e na atual pesquisa rea-


liza reuniões periódicas em que cada subgrupo traz para a discussão do
coletivo seus dados e análises, assim o grupo participa da elaboração em
todas as fases do processo.
A metodologia é debatida coletivamente e tem como desafio perma-
nente analisar as implicações das várias formas de relação público-privada
para a democratização da educação no Brasil. No primeiro momento, para
a análise temos como principais parâmetros: se o programa ou a parceria
ampliou o acesso à educação e a concepção educacional ou o conteúdo da
proposta. O levantamento das fontes é realizado através da coleta de docu-
mentos, legislação, dados estatísticos e, sempre que possível, de entrevistas.
E também nas páginas oficiais dos programas ou instituições do terceiro
setor analisados, como: Instituto Ayrton Senna, Instituto Unibanco e ou-
tros.
O livro está distribuído em duas partes: a primeira trata das mudan-
ças no papel do Estado e das redefinições nas fronteiras entre o público e o
privado, materializadas das mais diferentes formas nas políticas educacio-
nais dos países envolvidos na pesquisa. A segunda apresenta o estudo do
grupo brasileiro que fez um mapeamento das diferentes formas de relação
entre o público-privado presentes nas políticas educacionais de educação
básica no Brasil.
Com este livro pretendemos ampliar o diálogo inicialmente proposto
entre o grupo brasileiro e os grupos internacionais, para que outros pesqui-
sadores possam participar dessa importante discussão em um momento
histórico de avanço na privatização do público.

8
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A privatização do público: implicações


para a democratização da educação

Vera Maria Vidal Peroni

Este artigo objetiva apresentar reflexões para fomentar o diálogo acer-


ca das redefinições no papel do Estado e das fronteiras entre o público e o
privado em um contexto de crise do capital com implicações para a demo-
cracia e direitos sociais.
São muitas as formas de materialização das relações entre o público
e o privado nas políticas educacionais atualmente. Priorizaremos a análise
de três processos: as parcerias entre instituições do terceiro setor e sistemas
públicos de educação, a assessoria de instituições privadas que influenciam
nas políticas públicas brasileiras e os programas governamentais que tra-
zem a lógica gerencial do mercado para o sistema público de educação.
É importante destacar que, em nosso enfoque teórico metodológico, a
política educacional não é, simplesmente, determinada pelas mudanças
macrossociais e econômicas, mas é parte constitutiva dessas mudanças (PE-
RONI, 2003). Concordamos com Harvey (2005) que o Estado, assim como
capital, deve ser visto como relação ou processo. Assim entendemos que ele é
parte importante do movimento de correlação de forças de sujeitos1 situados
em um contexto histórico e geográfico2. A democracia também não é enten-
dida como uma abstração, mas a materialização de direitos e de igualdade
social3 (WOOD, 2003) e a “coletivização das decisões” (VIEIRA, 1998) com
efetiva participação na elaboração de políticas com base na prática social
crítica e autocrítica no curso de seu desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2002).
Assim entendemos que tanto o Estado como a sociedade civil são per-
passados por correlações de forças de classes sociais e projetos societários
distintos. Nesse sentido, destacamos que estamos tratando em nossas pes-

1
Sujeitos na concepção de Thompson (1981).

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PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

quisas da sociedade civil mercantil, onde o privado está vinculado ao mer-


cado. O foco da análise é a privatização do público com implicações para a
democratização da educação.
É importante deixar claro que, ao tratarmos do tema público-privado,
não estamos fazendo uma contraposição entre Estado e sociedade civil, mas
estamos nos referindo a interesses públicos e privados em uma sociedade de
classes que perpassam o Estado e a sociedade civil. Destacamos inclusive que
foi uma parte da sociedade civil que lutou contra o Estado e a sociedade da
ditadura no Brasil e que continua lutando pela democracia e direitos sociais.
A questão, quando tratamos da relação entre o público e o privado
em educação, é a efetivação de direitos sociais universais materializados
em políticas sociais e o poder público como seu garantidor, não apenas
enquanto acesso, mas também através de mecanismos participativos de ela-
boração das políticas.

Redefinições no papel do Estado e as redefinições


nas fronteiras entre o público e o privado
Entendemos que as mudanças nas fronteiras entre o público e o pri-
vado são partes de redefinições no papel do Estado, que ocorrem como
consequências da profunda crise atual. Assim, com base em autores como
Mészáros (2002), Harvey (2005), Brenner (2008) e Chesnais, partimos da
tese já desenvolvida em trabalhos anteriores4, segundo a qual existe uma
crise estrutural do capital. E, nesse sentido, o neoliberalismo, a globaliza-
ção, a reestruturação produtiva e a Terceira Via são estratégias do capital
para tentar minimizar a queda na taxa de lucros. São essas estratégias que
redefinem o papel do Estado e as fronteiras entre o público e o privado,
tanto na alteração da propriedade como em relação ao que permanece na
propriedade estatal, mas passa a ter a lógica do mercado, reorganizando os
processos educacionais.5

2
Contexto histórico e geográfico na concepção de Harvey (2005).
3
Sobre a não separação entre o econômico e o político ver WOOD (2003).
4
Ver PERONI (2003, 2006) e PERONI, ADRIÃO (2005).
5
Essa discussão aparece de forma mais aprofundada no meu texto “As relações entre o público
e o privado nas políticas educacionais no contexto da Terceira Via”, no livro “Reconfigurações

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Mészáros (2011) ressalta a importância de uma avaliação adequada


da natureza da atual crise econômica e social. Para o autor, a crise do capi-
tal que estamos experimentando é estrutural, tem caráter universal, é glo-
bal e sua escala de tempo é extensa e contínua (MÉSZÁROS, 2011).
Nesse mesmo sentido, Antunes destaca que a crise do Fordismo e do
Keynesianismo foi a expressão fenomênica de um quadro crítico mais com-
plexo de tendência decrescente da taxa de lucros (ANTUNES, 1999). Bren-
ner (2008) concorda com a profundidade da crise e que ela está enraizada
na queda das taxas de lucro. O autor destaca ainda que a “combinação da
fragilidade da acumulação de capital com a crise do sistema bancário trans-
formou o presente declínio econômico numa crise de difícil resolução pelo
poder político e que potencialmente pode se tornar um desastre” (BREN-
NER, 2008, p. 1). E adverte que quem está pagando a “conta” da crise são
os Estados e os trabalhadores, já que ocorreu o aumento da exploração
com a expansão da jornada de trabalho e a diminuição salarial além do
endividamento dos Estados ao financiar a crise.
Harvey (2010) enfatiza que o papel do Estado na crise atual não é
nada mínimo, como propõe a teoria neoliberal. Destacamos um exemplo
dado pelo autor que ilustra bem esse fato:
Pouco depois da falência do Lehman, alguns funcionários e banqueiros do
tesouro, incluindo o Secretário do Tesouro, que era um ex-presidente da
Goldman Sachs e atual diretor executivo da Goldman, surgiram de uma
sala de conferências com um documento de três páginas exigindo 700 bi-
lhões de dólares para socorrer o sistema bancário, prenunciando um Arma-
gedom nos mercados. Era como se Wall Street tivesse iniciado um golpe
financeiro contra o governo e o povo dos Estados Unidos. Algumas sema-
nas depois, com ressalvas aqui e ali e muita retórica, o Congresso e, em
seguida, o presidente George Bush cederam e o governo foi enviado, sem
qualquer controle, para todas as instituições financeiras consideradas ‘gran-
des demais para falir’ (HARVEY, 2010, p. 12).

É importante destacar que o Estado foi historicamente chamado a tentar


controlar e regular as contradições do capital e a relação capital/trabalho. Atu-
almente, apesar do anunciado Estado mínimo, ele é chamado a “socorrer” o
capital produtivo e financeiro nos momentos de maior crise. Em trabalhos ante-

do Estado: implicações da Terceira Via para políticas sociais no Brasil, Portugal e Inglaterra”,
Brasília. Editora Líber, 2013 (no prelo).

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PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

riores, já constatávamos que, na crise dos anos 1990, o Estado era mínimo
para as políticas sociais e máximo para o capital (PERONI, 2003); verifica-
mos que no período atual de crise essa tendência permanece e se acentua.
Com base nos autores mencionados, a crise do Estado seria conse-
quência e não a causa da crise do capital. No entanto, para a teoria neolibe-
ral, o Estado é o culpado pela crise, tanto porque gastou mais do que podia
para se legitimar, já que tinha que atender às demandas da população por
políticas sociais, o que provocou a crise fiscal, como porque, ao regulamen-
tar a economia, atrapalhou o livre andamento do mercado. Para a teoria
neoliberal, as políticas sociais são um verdadeiro saque à propriedade pri-
vada, pois são formas de distribuição de renda, além de também atrapalhar
o livre andamento do mercado (PERONI, 2003).
Conforme Harvey, no processo de neoliberalização6, “o bem social é
maximizado se se maximizam o alcance e a frequência das transações de mer-
cado” (HARVEY, 2008, p. 13). Para o autor, o mercado regula inclusive o bem-
estar humano. A competição é o mecanismo regulador. “as regras de base da
competição no mercado têm de ser adequadamente observadas (...). E adverte
ainda que “em situações nas quais estas regras não estejam claramente estabe-
lecidas ou em que ajam dificuldades para definir os direitos de propriedade, o
Estado tem de usar o seu poder para impor ou inventar sistemas de mercado”.
O autor destaca ainda que para os neoliberais “ (...) a privatização e a
desregulação combinadas com a competição eliminam os entraves buro-
cráticos, aumentam a eficiência e a produtividade, melhoram a qualidade e
reduzem os custos” (p. 76). E portanto:
o sucesso e o fracasso individuais são interpretados em termos de virtudes
empreendedoras ou de falhas pessoais (como não investir o suficiente em
seu próprio capital humano por meio da educação) em vez de atribuídos a
alguma propriedade sistêmica (como as exclusões de classe que se costu-
mam atribuir ao capitalismo) (HARVEY, 2008, p. 76).

A Terceira Via, aqui entendida como a atual social-democracia, não rom-


pe com esse diagnóstico, assim o Estado não deve ser o executor das políticas,
como era na antiga social-democracia, mas também não deve ser o Estado
mínimo do neoliberalismo: “uma Terceira Via no sentido de que é uma tenta-

6
No livro “O neoliberalismo: história e implicações”, Harvey faz um balanço do neoliberalismo
na prática, o que chama de neoliberalização.

12
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

tiva de transcender tanto a social-democracia do velho estilo quanto o neolibe-


ralismo” (GIDDENS, 2001, p. 36). A proposta então é reformar o Estado, mas
como tem o diagnóstico de que o Estado é ineficiente, essa reforma deve ter o
mercado como parâmetro de qualidade. E com esse diagnóstico, o Estado
não deve ser mais o principal executor das políticas sociais, que devem estar
sob o protagonismo da sociedade civil através do terceiro setor.
Assim, o terceiro setor é uma das alternativas propostas pela Terceira
Via, tanto para que o Estado não seja mais o principal executor das políticas
sociais como para que o conteúdo mercantil possa, através das parcerias,
aprofundar a lógica de mercado nas políticas públicas, “qualificando-as”. É
o que Giddens chama de sociedade civil modernizada, empreendedora:
O empreendedorismo civil é qualidade de uma sociedade civil moderniza-
da. Ele é necessário para que os grupos cívicos produzam estratégias criati-
vas e enérgicas para ajudar na lida com problemas sociais. O governo pode
oferecer apoio financeiro ou proporcionar outros recursos a tais iniciativas
(GIDDENS, 2007, p. 26).

Entendemos que nessa perspectiva os sujeitos ora são entendidos como


os filantropos, que se responsabilizarão pelos destinos da sociedade, mas
não qualquer sociedade, nem qualquer sociedade civil, já que prega o em-
preendedorismo e a concepção de mercado no conteúdo da política. As-
sim, se em alguns momentos a sociedade civil parece ser uma abstração, já
que cidadãos de boa vontade em um pacto pelo bem comum seriam os
responsáveis pela execução das políticas sociais através do terceiro setor,
em outro momento ele define qual é a concepção de política e de sociedade
civil. A sua concepção de política social está vinculada ao gerencialismo
em uma lógica de mercado, que nada tem de “bem comum” ou de um
mundo sem inimigos para além da direita e da esquerda (GIDDENS, 2001).
Já alertávamos em trabalho anterior para a imprecisão do tema ter-
ceiro setor:
A primeira observação a fazer refere-se à imprecisão com que a literatura da
área trata o termo terceiro setor, ora aproximando-o de uma também gené-
rica definição de sociedade civil, ora referindo-se a um formato específico
juridicamente definido de instituição privada, ora, ainda, identificando-o
com as tradicionais entidades de caráter assistencial ou filantrópico. Segue-
se que o cerco à sua definição dá-se então por exclusão: o terceiro setor
refere-se a esferas da sociedade que não se encontram no mercado ou no
Estado (PERONI; ADRIÃO, 2005, p. 142).

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PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

O terceiro setor, para Carlos Montaño (2002), modifica inclusive a ques-


tão social. Primeiro, com a transferência da responsabilidade da questão social
do Estado para o indivíduo, que a resolverá através da autoajuda, ajuda mútua
ou, ainda, adquirindo serviços como mercadorias. Segundo, as políticas soci-
ais passam a ser focalizadas, perdendo, assim, seu princípio universalista.
Terceiro, com a descentralização administrativa, as políticas tornam-se ainda
mais precarizadas, entre outros problemas, porque são transferidas as com-
petências sem os recursos correspondentes e necessários para executá-las.
Para Harvey (2008), as ONGs vêm preencher o vácuo de direitos
deixado pelo Estado; isso “equivale a uma privatização via ONGs. Em al-
guns casos, isso ajudou a acelerar o afastamento ainda maior do Estado dos
benefícios sociais. Assim, as ONGs funcionam como ‘cavalos de troia do
neoliberalismo global’” (HARVEY, 2008, p. 190).
Outro aspecto bem importante que o autor ressalta é a falta de demo-
cracia: “[...] as ONGs não são organizações inerentemente democráticas.
Tendem a ser elitistas, a não dar satisfação a ninguém (a não ser a quem as
financia)” (HARVEY, 2008, p. 190).
E, ainda, tem-se a falsa ideia de que a genérica sociedade civil está
participando quando parte de suas instituições representativas, como sindi-
catos, movimentos sociais e partidos de esquerda, estão sendo arrasadas
como parte da estratégia neoliberal, enquanto a sociedade civil vinculada
ao mercado tem o protagonismo e o incentivo público para interferir e ela-
borar ou executar políticas sociais.

Terceira Via e Neodesenvolvimentismo


É importante ressaltar que a questão do desenvolvimentismo retorna
ao debate na América Latina7. Para Castelo (2009), é com a primeira elei-
ção do Partido dos trabalhadores8 que inicia o debate acerca do novo-de-
senvolvimentismo no Brasil:

7
Ver a Tese de Aloísio Mercadante Oliva: “As bases do Novo-desenvolvimentismo no Brasil:
Análise do governo Lula (2003-2010)”; tese defendida na UNICAMP em 2010.
8
O Partido dos Trabalhadores esteve no governo brasileiro com Luis Inácio Lula da Silva em dois
governos (2003-2010) e atualmente permanece com a presidente Dilma Roussef (2011-2014).

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O objetivo dos novo-desenvolvimentistas nos parece claro: entrar, como uma


espécie de Terceira Via, na disputa pela hegemonia ideo-política para a con-
solidação de uma estratégia de desenvolvimento alternativa aos modelos em
vigência na América do Sul, tanto ao “populismo burocrático”, representa-
do por setores arcaicos da esquerda e partidários do socialismo, quanto à
ortodoxia convencional, representada por elites rentistas e defensores do
neoliberalismo (CASTELO, 2009, p. 75).

O autor ressalta ainda qual é o papel do Estado para os novo-desen-


volvimentistas:
Em síntese, o Estado deve garantir condições macroeconômicas e salvaguar-
das jurídicas que reduzam a incerteza do ambiente econômico, propiciando
um horizonte mais previsível do cálculo de risco do investimento privado e
aumentando, por sua vez, a demanda por fatores de produção, o emprego e
os ganhos dos trabalhadores. Assim, o Brasil reduzirá a pobreza e a desi-
gualdade social.
O projeto novo-desenvolvimentista de intervenção na “questão social”, por-
tanto, baseia-se no crescimento econômico e na promoção da equidade so-
cial via igualdade de oportunidades.
Esta é, grosso modo, a utopia da intelligentsia novo-desenvolvimentista (CAS-
TELO, 2009, p. 78).

O autor critica o novo-desenvolvimentismo, primeiro porque apresenta


o Estado como complementar ao mercado e promotor do bem-estar universal
acima dos distintos interesses das classes sociais. Aponta que é um retorno ao
antigo nacional-desenvolvimentismo, que defendia a conciliação entre capi-
tal e trabalho, tendo em vista um abstrato interesse nacional. Outro ponto
criticado pelo autor é a contraposição entre burguesia produtiva e burguesia
rentista. E destaca ainda que as desigualdades são explicadas a partir de uma
suposta natureza humana. Para o autor, os novo-desenvolvimentistas:
ao se guiarem pelo conceito de equidade social, defendem a promoção da
igualdade de oportunidades entre os indivíduos via educação. A educação,
portanto, antes uma forma de emancipação humana, fica, de acordo com
essa perspectiva, inteiramente subordinada aos requisitos de habilidades ne-
cessárias aos processos de produção de mercadorias comandado pelo capi-
tal. Neste sentido, o novo-desenvolvimentismo se assemelha, e muito, ao
planejamento econômico, em particular, e aos policy makers, em geral (BRAN-
CO, 2009, p. 84).

Outro autor que contribui para a análise do tema é Mattei (2011);


para o autor, o papel do Estado mudou. Para o antigo desenvolvimentismo,
ele era o protagonista; no novo-desenvolvimentismo, o setor privado deve
“disponibilizar recursos e suas capacidades gerenciais a favor dos investi-

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PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

mentos produtivos” (MATTEI, 2011, p. 11). O papel do Estado no novo-


desenvolvimentismo, conforme estudos do autor, é:
a) ter capacidade para regular a economia, estimulando um mercado forte e
um sistema financeiro a serviço do desenvolvimento e não das atividades
especulativas; b) fazer a gestão pública com eficiência e responsabilidade
perante a sociedade; c) implementar políticas macroeconômicas defensivas
e em favor do crescimento; d) adotar políticas que estimulem a competitivi-
dade industrial e melhorem a inserção do país no comércio internacional; e)
adotar um sistema tributário progressivo, visando reduzir as desigualdades
de renda (MATTEI, 2011, p. 11). (Grifo da autora)

O autor conclui analisando algumas inconsistências nas análises so-


bre o novo-desenvolvimentismo brasileiro, que considero muito proceden-
tes, como a ausência de uma discussão conceitual sobre o desenvolvimen-
to, ausência de discussão sobre o envolvimento das classes sociais no novo
projeto desenvolvimentista, ausência de uma discussão política mais con-
sistente de como implementar a justiça social em uma sociedade tão desi-
gual e ainda dominada pelo coronelismo, autoritarismo e corrupção e, por
fim, a ausência de uma discussão do cenário global no atual contexto.
É interessante observar a semelhança com o ideário da Terceira Via e
importante destacar que, enquanto os países que tinham uma correlação de
forças mais propícias aos trabalhadores, discutiam o Estado de Bem-estar
Social, nós, os latino-americanos, vivemos ditaduras e o Estado nacional
desenvolvimentista. Nesse momento, a discussão do novo-desenvolvimen-
tismo retoma a proposta de desenvolvimento, mas, mais uma vez, sem muitas
conexões com os direitos materializados em políticas sociais.
Em um contexto histórico recente de abertura política e dos primei-
ros passos para a construção de um projeto societário democrático, pergun-
tamo-nos, diante dessas discussões, acerca de neoliberalismo, Terceira Via,
neodesenvolvimentismo: e a democracia? Tendo em vista o conceito de
democracia apresentado no início deste artigo, passaremos a debater os
conceitos de democracia para a teoria neoliberal e para a Terceira Via e as
implicações para a democracia da retirada do Estado como executor de
políticas sociais universais e também do protagonismo do mercado como
parâmetro de qualidade para as políticas sociais.
O neoliberalismo tem profundas críticas à democracia, pois crê que
ela atrapalha o livre andamento do mercado ao atender a demanda dos

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

eleitores para se legitimar, provocando o déficit fiscal. A prescrição é elimi-


nar o voto, o que é mais difícil, ou restringir o seu impacto através da priva-
tização, desregulamentação ou repassando o poder de decisão às institui-
ções privadas parceiras do Estado (PERONI, 2003).
Conforme Harvey (2008), os teóricos neoliberais têm
uma profunda suspeita com relação à democracia. A governança pelo regi-
me da maioria é considerada uma ameaça potencial aos direitos individuais
e às liberdades constitucionais. A democracia é considerada um luxo que só
é possível em condições de relativa afluência, associado a uma forte presen-
ça da classe média para garantir a estabilidade política. Em consequência,
os neoliberais tendem a favorecer a governança por especialistas e elites.
É o que verificamos em nossas pesquisas sobre a relação público-
privada em que as instituições privadas cada vez mais influenciam as políti-
cas nacionais em todos os níveis, desde a política nacional até a escola.
Assim, enquanto para o neoliberalismo a democracia atrapalha o li-
vre andamento do mercado, para a Terceira Via a democracia deve ser for-
talecida. Giddens (2001) argumenta que é preciso democratizar a democra-
cia. Mas a democracia é concebida pela Terceira Via como a participação
do terceiro setor na execução de tarefas que deveriam ser do Estado, princi-
palmente as políticas sociais. O que não difere da proposta de neodesenvol-
vimentismo, como vimos no item anterior.
Wood destaca que o conceito de democracia em uma sociedade sob a
hegemonia do capitalismo não pode ser visto em abstrato, pois afinal: “É o
capitalismo que torna possível uma forma de democracia em que a igualda-
de formal de direitos políticos tem efeito mínimo sobre as desigualdades ou
sobre as relações de dominação e de exploração em outras esferas” (WOOD,
2003, p. 193).
Essa análise de Wood encaminha as discussões de como, nesse perío-
do particular do capitalismo, por um lado, avançamos na tão batalhada
democracia, mas, por outro, há um esvaziamento das políticas sociais en-
tendidas como direito universal. Aumentou, portanto, a separação entre o
econômico e o político, historicamente presente no capitalismo, e o esvazia-
mento do conteúdo da democracia. Perdeu-se a discussão das políticas so-
ciais como a materialização de direitos sociais. No Brasil, as lutas e con-
quistas dos anos 1980, de direitos universais, deram lugar à naturalização

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PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

do possível, isto é, se um Estado “em crise” não executa políticas, repassa


para a sociedade civil (PERONI, 2009).
Mészáros, ao discutir a necessidade do controle social, alerta que “pro-
gramas e instrumentos de ação sociopolíticos verdadeiramente adequados
só podem ser elaborados pela própria prática social crítica e autocrítica no
curso de seu desenvolvimento” (MÉSZÁROS, 2002, p. 1008).
Conforme Vieira (2007), na América Latina, o Estado de direito ou
as democracias formais estão se instalando em sociedades muito pouco de-
mocráticas, o que é um problema, já que “o que garante Estados de direito
são sociedades democráticas” (VIEIRA, 2007, p. 104). Para o autor,
O Estado de direito democrático, funda-se na sociedade, e suas raízes se acham
nela. Se é uma sociedade fortemente democrática, tende a construir um go-
verno democrático, mas se é extremamente autoritária, discriminatória, vio-
lenta, não tende a sustentar essa espécie de governo (VIEIRA, 1998, p. 12).

Nesse sentido, ressaltamos que não é possível tratar a sociedade civil


como uma abstração em uma sociedade de classes. O autor adverte que:
Quando dizem que a sociedade civil deve se organizar, pressupõe-se que a
maioria dela se encontra desorganizada, porque uma parte, a classe dirigen-
te ou a chamada elite, se organiza e se reorganiza desde o surgimento do
país, mantendo-o no atraso e na inércia, apesar das alegações de fazê-lo
contemporâneo do seu modo ou da sua época” (VIEIRA, 1998, p. 13).

E complementa sua reflexão ressaltando que “não há estágio demo-


crático, mas há processo democrático pelo qual a vontade da maioria ou a
vontade geral vai assegurando o controle sobre os interesses da administra-
ção pública” (IDEM, p. 12). Nesse sentido, “quanto mais coletiva a deci-
são, mais democrática ela é. Qualquer conceito de democracia, e há vários
deles, importa em grau crescente de coletivização de decisões” (IDEM).

O caso brasileiro
No Brasil, além das características históricas de pouca cultura demo-
crática, o país viveu várias ditaduras, sendo que a última foi um golpe mili-
tar iniciado em 1964, que perdurou até 1985. Os anos 1980 foram marca-
dos por um processo de abertura política, com grande participação popular
e de organização da sociedade na luta pelos seus direitos.

18
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Mas a construção da democracia no país viveu um processo de aber-


tura pactuado com as forças da ditadura. E, quando estava avançando al-
guns passos na participação popular e na luta por direitos sociais, sofreu o
impacto das estratégias do capital para superação de sua crise, que já estava
em curso no resto do mundo e vinha em sentido contrário a esse movimen-
to em um processo de minimização de direitos conquistados.
Evaldo Vieira (1997) faz essa discussão quando analisa que em nosso
país as políticas sociais percorreram três momentos políticos no último sé-
culo: o primeiro é o “controle da política”, período que corresponde à dita-
dura de Getúlio Vargas e ao populismo nacionalista; o segundo é chamado
pelo autor de “a política do controle”, que corresponde ao período da dita-
dura militar em 1964 até o final do período constituinte em 1988; e o tercei-
ro, denominado pelo autor de “política social sem direitos sociais”, iniciou-
se em 1988 e está em plena vigência.
A política social que, por um lado, nunca havia recebido tanto acolhi-
mento por parte de uma Constituição no Brasil, como ocorreu na de 1988,
por outro, esses direitos em parte foram minimizados ou nem chegaram a
se concretizar.
Assim, na primeira eleição direta para presidente da República em
1989, foi eleito Fernando Collor de Melo, do Partido da Renovação Nacio-
nal (PRN), partido de pouca expressão política e que colocou em prática a
sua proposta de minimização do papel do Estado para com as políticas
sociais e de privatização e mercantilização do público. Mas é o governo
Fernando Henrique Cardoso que propõe em 1995 o Projeto de Reforma do
Estado, apresentado pelo MARE (Ministério da Administração e Reforma
do Estado), que permanece em vigor no governo atual. De acordo com o
documento, a “reforma do Estado deve ser entendida dentro do contexto
da redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto
pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e
serviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desen-
volvimento” (BRASIL, 1995, p. 12).
As estratégias apontadas pelo plano são: a privatização, a publiciza-
ção e a terceirização. Terceirização, conforme Bresser Pereira, é o processo
de transferência para o setor privado dos serviços auxiliares ou de apoio. A
privatização é entendida como a transferência de empresas estatais para a

19
PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

propriedade privada, e a publicização consiste “na transferência para o se-


tor público não-estatal dos serviços sociais e científicos que hoje o Estado
presta” (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 7).
Conforme o então ministro Bresser Pereira, a educação está incluída
nessa forma de propriedade: “Incluem-se nesta categoria as escolas, as
universidades, os centros de pesquisa científica e tecnológica, as creches, os
ambulatórios, os hospitais, entidades de assistência aos carentes (...)” (BRES-
SER PEREIRA, 1997, p. 12). Ainda conforme esse autor, “essas são ativi-
dades competitivas e podem ser controladas não apenas através da admi-
nistração gerencial, mas também e, principalmente, através do controle so-
cial e da constituição de quase-mercados” (IDEM). O plano propõe ainda
a gestão gerencial, visando ao atendimento do cidadão cliente (BRASIL;
MARE, 1995).
Os parâmetros da administração gerencial têm como base teórica a
Public Choice, escola neoliberal que estuda a diferença entre o mercado e o
quase mercado, de modo a aproximá-las. Para Buchanan (1984), tanto o
mercado como o Estado são mundos de escolhas. No mercado, o referendo
é permanente, e na política ocorre principalmente através do voto. A pro-
posta é que o “cidadão cliente” faça as suas escolhas. Portanto, mesmo não
mudando a propriedade, a administração gerencial minimiza as correla-
ções de forças, próprias do período democrático.
Destacamos, portanto, que o Plano de Reforma do Estado no Brasil
teve influências do neoliberalismo, tanto no diagnóstico de que a crise está
no Estado como na estratégia de privatização, que é parte do plano, mas
também sofreu influências da Terceira Via. Tanto o presidente da época, Fer-
nando Henrique Cardoso (PSDB), como o ministro da Reforma do Estado,
Bresser Pereira (PSDB), eram intelectuais orgânicos da Terceira Via.
É importante destacar que o presidente Fernando Henrique Cardoso
(Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB) participou dos encontros
da Governança Progressista9 e que o seu sucessor Luis Inácio Lula da Silva,
do Partido dos Trabalhadores (PT), manteve sua presença nas reuniões.10

9
Como era chamada a Terceira Via desde o seu início.
10
(http://alainet.org/active. Acesso em: 20 ago. 2011).

20
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Verificamos que, no governo atual, as parcerias foram intensificadas,


assim como o processo de gestão gerencial proposto no plano, como pode-
mos verificar, por exemplo, no Plano de Gestão do Governo Lula “Gestão
pública para um país de todos”, do Ministério do Planejamento, Orçamen-
to e Gestão (BRASIL, 2003), com princípios do gerencialismo.
A relação entre o poder público e o terceiro setor no Brasil11 cada vez
avança mais; em 2009, foi criada uma comissão de juristas para acrescentar
formalmente o terceiro setor na estrutura da administração pública no Bra-
sil através da denominação “entes de colaboração”:
Esta proposta estabelece a possibilidade da inserção das entidades do Ter-
ceiro Setor na estrutura da Administração Pública a partir do estabeleci-
mento de uma nova estrutura para o seu funcionamento e das suas relações
com aquelas entidades que passariam a denominar-se Entes de Colabora-
ção. Até o presente momento, não houve o encaminhamento para a aprova-
ção do Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública12 (PERONI;
PIRES, 2013, p. 10).

As políticas sociais e, em particular, as políticas educacionais materia-


lizam esses processos de redefinição do papel do Estado, reorientando a
relação entre público e privado.
No Brasil, historicamente o setor privado influenciou os governos.
Desde 1821, o Decreto de D. João VI já “permite a qualquer cidadão o
ensino e a abertura de escolas de primeiras letras” (CURY, 2005, p. 3). Cury
destaca que o:
erário público, considerado impotente para universalizar esse indispensável
estudo das primeiras letras, autorizava o repasse parcial para a iniciativa
privada.A partir daí, a legislação brasileira sempre reconheceu a liberdade
do ensino como legítima, por outro lado, sempre firmou o Estado como
poder fundante, concedente ou autorizatório da educação escolar (CURY,
2008, p. 19).

Ou seja, desde o Império até hoje, a justificativa da não universaliza-


ção pública do ensino é o erário público insuficiente.

11
Sobre os aspectos jurídicos da relação entre o terceiro setor e o sistema público ver PIRES
2009, 2011.
12
De acordo como o site: http://www.gespublica.gov.br/anteprojeto-de-lei-organica/consulta-
publica-sobre-o-anteprojeto-de-lei-organica, o Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração
Pública Federal está na fase de consulta pública. (Acesso em: 13 mar. 2013).

21
PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

Para analisar a relação entre o público e o privado na educação brasi-


leira, é importante destacar as nossas características históricas de pouca
cultura democrática. O país viveu várias ditaduras, sendo que a última foi
um golpe militar, iniciado em 1964, que perdurou até 1985. O período de
abertura política foi marcado por movimentos em busca de direitos sociais
e busca de participação efetiva na construção de uma sociedade e um Esta-
do mais democráticos. É nesse processo de correlação de forças que as lutas
por democracia se materializaram em alguns direitos educacionais consa-
grados na legislação, principalmente através do capítulo da educação na
Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN 9394/1996) e também no Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (Lei Federal 8.069/1990).
Dentre outros, ressaltamos a concepção de educação básica13 abarcan-
do a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, a gestão
democrática como princípio constitucional14, a inclusão de alunos portado-
res de deficiência na rede regular de ensino, além da gratuidade nos estabele-
cimentos públicos em todos os níveis. Ressaltamos ainda o ingresso dos pro-
fissionais da educação por concurso público, o piso salarial nacional do ma-
gistério, a construção de um Sistema Nacional de Educação, entre outros.
Apesar de a educação brasileira estar organizada em dois níveis, edu-
cação básica e superior, apenas em 2009, com uma emenda à Constituição
Federal, a obrigatoriedade que era apenas do ensino fundamental é esten-
dida para alunos de quatro a dezessete anos. Ressaltamos que, para um país
que historicamente não teve no horizonte a universalização da educação
pública, é um grande avanço do direito à educação a ampliação da obriga-

13
A educação brasileira está organizada em dois níveis: educação básica e superior. A educação
básica é composta de três etapas: educação infantil, fundamental e média. E as modalidades
educação especial, educação de jovens e adultos e educação profissional.
14
Houve também alguns avanços na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBen/
1996) no que se refere à construção da gestão democrática; por exemplo, o art. 14 determina a
participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a
participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. E o art. 15
determina que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação
básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão
financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público” (BRASIL, 1996).

22
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

toriedade, que atualmente abarca parte da educação infantil, o ensino fun-


damental e o ensino médio.15
A educação infantil16 passou a fazer parte da educação básica na CF/
88, como resposta à reivindicação de pais, educadores e pesquisadores da
área. Antes ela estava vinculada à Assistência Social, e a oferta era histori-
camente feita em parcerias com instituições caritativas. A luta dos educa-
dores foi para que saísse dessa condição e passasse a ter oferta pública, com
profissionais formados e oferecida em uma instituição educativa, passando
inclusive a fazer parte da educação básica.
A lei que materializou os princípios constitucionais, LDBEN/96, dis-
tribuiu competências entre os entes federados, ficando a educação infantil
sob responsabilidade dos municípios, que buscaram como alternativa, em
muitos casos, as parcerias com instituições privadas.
Como já mencionamos anteriormente, os anos 1990 no Brasil foram
marcados por políticas restritivas ao papel do Estado na educação, pelo foco
do financiamento no ensino fundamental estabelecido pelo Fundo de Manu-
tenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério – FUNDEF, regulamentado pela Lei n.º 9.424/96. O FUNDEF
teve duração de dez anos, tinha abrangência estadual, o que era um proble-
ma, pois estados com mais recursos continuaram tendo mais financiamento
para a educação, apesar da complementação prevista para os estados muito
carentes que não atingissem a média nacional fixada como custo/aluno/
ano. Assim, a desigualdade regional permaneceu, apesar de dentro do mes-
mo estado os recursos serem redistribuídos. O Fundo captava 60% da receita
destinada à educação para a universalização do ensino fundamental, não in-
cluindo aí as modalidades de ensino como a educação de jovens e adultos e a
educação especial, o que trouxe consequências para a efetivação do direito à
educação básica, tanto na etapa da educação infantil como no ensino médio.
Em 2007, o FUNDEF foi ampliado para toda a educação básica pela
Lei n.º 1.494/2007, que institui o FUNDEB, abarcando todas as etapas e
modalidades da educação básica.

15
Emenda Constitucional n. 59/2009. Obrigatoriedade de 4 a 17 anos e inclusive aos que não
tiverem acesso na idade própria.
16
Sobre os convênios com creches comunitárias ver o texto de FLORES e SUSIN neste livro.

23
PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

O ensino fundamental, etapa da educação básica, é considerado obri-


gatório e direito público subjetivo desde a Constituição Federal de 1988.
Tinha oito anos de duração e foi ampliado para nove anos através da Lei nº
11.274, de 6 de fevereiro de 2006. Conforme a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), a responsabilidade principal da oferta está
dividida entre estados e municípios em regime de colaboração.
O ensino médio, apesar de fazer parte da educação básica, foi consi-
derado obrigatório apenas em 2009 com a Emenda Constitucional n. 59,
que expandiu a obrigatoriedade dos quatro aos 17 anos. Pela LDBEN, é
competência do estado o atendimento a essa etapa do ensino básico.
Sobre o ensino médio, destacamos a parceira do Instituto Unibanco
com escolas públicas através do Projeto Jovem de Futuro17. Conforme o ins-
tituto, o projeto “reúne ações, métodos e tecnologias que proporcionam às
escolas de ensino médio um modelo de gestão abrangente e participativo,
focado em resultados”. O instituto pretende influenciar a proposta pedagógi-
ca do ensino médio, incorporando uma concepção de trabalho e educação
empresarial à educação pública. O projeto iniciou em 2007 e, em 2012, con-
forme o instituto, “os resultados do Projeto Jovem de Futuro deixarão de ser
das escolas e passarão a ser de todo o Sistema de Educação. Isso será deter-
minante para os estados melhorarem seu IDEB e poderem redimensionar
suas políticas públicas” (http://www.unibanco.com.br acesso em 6/12/2011).
A educação básica, além das três etapas (infantil, fundamental e mé-
dio), tem também como modalidades de ensino a educação profissional, a
educação de jovens e adultos e a educação especial.
Sobre a educação profissional destacamos o programa proposto pelo
governo federal em 2011: o PRONATEC18 (Programa Nacional de Acesso
ao Ensino Técnico e Emprego), que visa à “melhoria da qualidade do ensino
médio público por meio da articulação com a educação profissional; ampliar
as oportunidades educacionais dos trabalhadores por meio do incremento da
formação e qualificação profissional” (BRASIL, 2011, art. 2). Para e execu-
ção do programa está prevista a participação de instituições privadas: “O

17
Sobre a parceria do Instituto Unibanco com escolas públicas de ensino médio ver o texto de
MONTEIRO neste livro.
18
Sobre o PRONATEC ver o texto de SANTOS e RODRIGUES neste livro.

24
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

PRONATEC poderá ainda ser executado com a participação de entidades


privadas sem fins lucrativos, devidamente habilitadas, mediante a celebração
de convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere” (idem art.
8). Questionamos a concepção de trabalho proposta pelo governo federal,
que, ao repassar recursos também para instituições privadas para execução
do programa, abre mão de uma proposta de formação profissional.
A educação de jovens e adultos (EJA) é muito importante, já que
historicamente não tivemos a universalização da educação básica. No en-
tanto, principalmente os programas de alfabetização de adultos sempre fo-
ram tratados como filantropia, em condições precárias de funcionamento,
através de parcerias ou, mesmo quando público, com atendimento terceiri-
zado feito por voluntários que ganham uma bolsa simbólica, sem exigência
de formação adequada para atuar.19
A educação especial20 é considerada uma modalidade que abrange tanto
a educação básica como superior. O poder público historicamente desres-
ponsabilizou-se da educação especial, e no momento em que estava inician-
do a ser entendida como um direito, a nova conjuntura de racionalização de
recursos dificultou a implementação com qualidade das políticas de inclusão
e restringiu a ampliação de escolas públicas de educação especial. E a prática
de repasses de recursos públicos, que já eram destinados às instituições públi-
cas não governamentais, como APAE, Pestalozzi, etc., para a execução de
tarefas que seriam do poder público, atualmente é fortalecida pelo movimen-
to em que o Estado se retira ou diminui a sua atuação na execução de políti-
cas, passando-as para a sociedade civil (PERONI, 2009).
Desde meados da década de 1990, pesquisamos as redefinições do
papel do Estado e sua materialização nas políticas públicas de educação.
Iniciamos a abordagem desse tema em 1995 com a tese de doutorado
que estudou as redefinições no papel do Estado e as políticas educacionais
dos anos 1990, onde apontamos que o Estado vinha repassando para a
sociedade suas tarefas, esvaziando as instituições públicas de seu poder, no
que se refere à elaboração de políticas como os Parâmetros Curriculares

19
Ver texto de COMERLATTO, MORAES sobre Alfabetização Solidária (Alfasol) e Programa
Brasil Alfabetizado neste livro.
20
Sobre a educação especial ver o texto de BOROWSKY neste livro.

25
PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

Nacionais e os projetos de Avaliação Institucional, que foram terceiriza-


dos. Mas a hipótese inicial de Estado mínimo não se concretizou; ao anali-
sarmos o movimento do real, encontramos, ao contrário, um Estado muito
atuante, ao mesmo tempo em que descentralizava, tanto entre os entes fe-
derados como do Estado para a sociedade. Estava em andamento a concre-
tização de um determinado tipo de Estado e de políticas públicas para o
país, que tinham como base teórica e política a Terceira Via.
Constatamos aqui, mais uma vez, a contradição centralização/descentrali-
zação, já que os PCN e a Avaliação foram centralizados, como já menciona-
mos, como uma forma de controle, mas ao mesmo tempo eles foram descen-
tralizados, entendendo descentralização como terceirização e não como par-
ticipação e controle social dos setores representativos da área da educação.
Apontamos, ainda, para o risco de que os próximos estágios sejam a publici-
zação e a privatização no sentido estrito (...) (PERONI, 2003, p. 179).

Verificamos que, no período seguinte, tanto a publicização, entendi-


da no Plano Diretor da Reforma do Estado (BRASIL, 1995) como público
não estatal, também conhecido como Terceiro Setor, como a privatização,
entendida como lucro e mercado, avançaram no Brasil e, mesmo com a
troca de governo em nível nacional, continuam em processo.
Pesquisamos o Programa Dinheiro Direto na Escola21, que instituiu
a obrigatoriedade para o recebimento dos recursos da criação de Unidades
Executoras de direito privado nas escolas públicas; iniciou no governo Fer-
nando Henrique Cardoso e não foi modificado no atual governo, mesmo
havendo estudos e um certo movimento para que as escolas continuassem
recebendo o recurso público, sem que para isso tivessem que depender do
repasse para APM ou que o conselho escolar tivesse que se tornar de direito
privado. Esse programa foi objeto de estudo de uma pesquisa nacional, “O
Programa Dinheiro Direto na Escola: uma redefinição do papel do Estado
na educação”22 (PERONI, ADRIÃO, 2007).

21
O PDDE foi objeto de uma pesquisa nacional realizada nas cinco regiões brasileiras, publica-
da pelo INEP (PERONI, ADRIÃO, 2007).
22
Projeto nacional coordenado por esta autora e financiado pelo CNPq para a reunião dos gru-
pos de pesquisa das cinco regiões brasileiras. O relatório foi publicado pelo INEP (PERONI,
ADRIÃO, 2007).

26
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A questão inicialmente estudada da tensão entre centralização e des-


centralização também foi uma contradição verificada no programa, assim
como as consequências para a gestão democrática da educação:
Também no programa analisado percebe-se esse deslocamento, quando, ao
mesmo tempo em que descentraliza recursos para as UEx, o programa exige
um único formato para sua constituição sem sequer ouvir os sistemas de
ensino analisados. É provável que essa imposição tenha desrespeitado o pacto
federativo, já que a União por meio de um programa redefiniu o formato de
gestão de todas as redes públicas de ensino, por vezes desconsiderando polí-
ticas em vigor (ADRIÃO; PERONI, 2007, p. 264).

Por fim, vale destacar o “fluxo” do dinheiro, que é público, mas que
passa por uma instituição privada (Unidade Executora) para ser gasto pelo
poder público, o que parece estar de acordo com o diagnóstico de que o
privado é mais eficiente.
Continuamos as pesquisas verificando a parceria entre sistemas pú-
blicos e o terceiro setor. Por entendermos a importância da atuação do Ins-
tituto Ayrton Senna (IAS) nas redes públicas de ensino em todo o país.
A pesquisa foi realizada por um grupo nacional com coletivos em
dez estados brasileiros e diferentes regiões. O Brasil é um país federado23
com muitas diferenças regionais, tanto socioeconômicas como culturais.
Assim buscamos analisar como uma política ou uma parceria em nível na-
cional tem diferentes implicações no contexto local.24
A pesquisa envolveu a análise da proposta de gestão educacional do
Instituto Ayrton Senna, em especial dos Programas Escola Campeã e Ges-
tão Nota 10; dos sistemas/redes educacionais de cada município seleciona-
do e de uma escola municipal em cada grupo.
Verificamos que, entre as principais implicações da parceria para a
gestão democrática da educação, está a diminuição da autonomia do pro-
fessor. Que entre outros fatores fica minimizada, desde quando recebe o
material pronto para utilizar em cada dia na sala de aula e tem um supervi-

23
A divisão político-administrativa no Brasil é constituída pela União, pelo Distrito Federal e
pelos estados e municípios, todos autônomos segundo os termos da Constituição Federal de
1988. Os estados brasileiros, em número de 26, encabeçam a hierarquia na divisão político-
administrativa do país, sendo subdivididos em 5.565 municípios. (Disponível em: <http://
www.angelfire.com/al/Geografia/estados.html>. Acesso em: 14 set. 2010.)
24
Ver relatório final: Adrião, Theresa; Peroni, Vera (2010) em www.ufrgs.br/faced/peroni.

27
PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

sor que verifica se está tudo certo até a lógica da premiação por desempe-
nho, que estabelece valores como o da competitividade entre alunos, pro-
fessores e escolas. Como se a premiação dos mais capazes induzisse a qua-
lidade via competição. A outra questão diz respeito às metas estabelecidas,
que passam a dar mais ênfase ao produto final e não mais ao processo,
como é característica da gestão democrática, que visa construir uma socie-
dade democrática e participativa.
Destacamos que as parcerias que inicialmente estavam no âmbito
estadual e municipal atualmente também ocorrem com a Presidência da
República para a elaboração de políticas nacionais de educação. Destaca-
mos interlocução dos Institutos Unibanco e Ayrton Senna com o governo
federal, mais especificamente a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Pre-
sidência da República, para que seus programas sejam transformados em
políticas de alcance nacional:
O Instituto Unibanco e a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República (SAE) firmam (...) o acordo de Cooperação Técnica para o
desenvolvimento de estudos, projetos, pesquisas e avaliações em conjunto.
O foco das ações que serão desenvolvidas por meio do acordo será a área de
educação, com ênfase nos jovens do Ensino Médio público. (Disponível em:
<http://www.sae.gov.br/site/?p=7567>. Acesso em: 02 ago. 2012.)
O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Moreira Franco,
assina, (...), acordo de cooperação técnica com o Instituto Ayrton Senna,
para realizar, de forma conjunta, projetos e programas de interesse comum,
voltados para a educação.(...) O objetivo dos trabalhos conjuntos será subsi-
diar a Secretaria na formulação de políticas públicas com foco na educação.
(http://www.sae.gov.br/site/?p=8130, acesso em 2 de agosto de 2012)

Assim, o controle social e a coletivização das decisões, tão importan-


tes para a construção da democracia no país, acabam cedendo lugar ao
controle externo de instituições privadas, que determinam o conteúdo das
políticas públicas de educação, desde o âmbito da legislação e da organiza-
ção do sistema educacional nacional até as práticas escolares cotidianas.
Atualmente, o projeto produtividade de pesquisa “Parcerias entre sis-
temas públicos e instituições do terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e
Inglaterra; implicações para a democratização da educação” visa estudar a
relação entre o público e o privado através da análise das parcerias entre
sistemas públicos e instituições do terceiro setor e as consequências para a
democratização da educação no Brasil, Argentina, Inglaterra e Portugal. E

28
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

buscar entender como países com trajetórias distintas em termos de papel


do Estado na consecução do direito à educação vivenciam esse período
particular do capitalismo e as consequentes mudanças na relação entre o
público e o privado e a intervenção da lógica do privado na educação públi-
ca. Este livro apresenta essa pesquisa tanto através de textos dos interlocu-
tores dos países que compõem a pesquisa como através dos textos do grupo
nacional envolvendo as etapas e modalidades da educação básica, além do
histórico da relação público-privada no Brasil.

Algumas considerações
No Brasil, por um lado, avançamos na tão batalhada democracia,
mas, por outro, há um esvaziamento das políticas sociais, principalmente
das políticas sociais como um direito universal, nesse período particular do
capitalismo de privatização do público.
Destacamos também as diferenças entre Terceira Via e neoliberalis-
mo, e aqui particularmente o que as duas teorias entendem por democra-
cia, principalmente porque o neoliberalismo tem sua teoria de classe explí-
cita, mas na Terceira Via com o discurso de democratizar a democracia,
aprofundar a participação da sociedade civil e suas teorias e estratégias de
ação têm sido implementadas por governos de direita, centro e esquerda
em nível internacional. A parceria entre o público e o privado acaba sendo
“a política” pública, com grandes implicações para as relações federativas
na consecução do direito à educação.
É importante, ainda, ressaltar que a relação público/privado não ini-
cia nesse período particular do capitalismo e com a Terceira Via ou o neo-
liberalismo. Ao contrário, historicamente foram muito tênues as linhas di-
visórias entre o público e o privado em nosso país. Assim, a democratiza-
ção da educação pública ainda é um longo processo em construção.
Questionamos por que as redes públicas têm buscado as parcerias
com as instituições privadas: se é uma forma de atingir a tão almejada “qua-
lidade da educação”, mais uma vez tendo como parâmetro a lógica mer-
cantil.
Afinal, tanto lutamos contra o Estado e a sociedade da ditadura, na
construção de um Estado mais transparente, com maior controle social e

29
PERONI, V. M. V. • A privatização do público: implicações para a democratização da educação

no qual as prioridades seriam amplamente discutidas, de forma participati-


va. É claro que a democracia envolve relações de poder, de classe e que é
conflito, mas a questão é que a lógica do produto em detrimento da lógica
democrática parece ser novamente um consenso.
Também com a parceria público-privada e o fortalecimento do ter-
ceiro setor, o privado acaba influenciando ou definindo o público, não mais
apenas na agenda, mas na execução das políticas, definindo o conteúdo e a
gestão da educação, com profundas consequências para a democratização
da educação.
É o que Harvey (2008) chama de “mercadificação de tudo”, com
consequências graves para a desigualdade social, já que os direitos sociais
materializados em políticas universais acabam cedendo lugar a políticas
fragmentadas e focalizadas. Com as mudanças no conceito de igualdade
ficam reforçadas também as políticas individualizadas, focadas em desen-
volver habilidades e capacidades, com o retorno à teoria do capital huma-
no, à meritocracia, onde o sucesso e o fracasso são por conta e risco dos
clientes no mercado, e não de sujeitos com direitos materializados em polí-
ticas sociais.

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32
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social


e as redes de políticas globais em educação*

Stephen J. Ball
Antonio Olmedo

Um novo grupo de conceitos e métodos é necessário para lidar com


as contínuas mudanças em governança educacional dentro de uma estrutu-
ra global. As formas como a política educacional, as empresas, a filantro-
pia e o desenvolvimento internacional se organizam e se inter-relacionam
estão mudando em função dos métodos daquilo que pode ser entendido
como “capitalismo social global”. Dentro dessa nova configuração, solu-
ções inovadoras e velhas soluções para problemas sociais e de desenvolvi-
mento ‘baseadas no mercado’ estão sendo privilegiadas e fortalecidas atra-
vés do surgimento de uma nova elite global, conectada em rede, formada
por promotores de políticas e ‘novos’ filantropos. O que há de ‘novo’ na
‘nova filantropia’ é a relação direta entre a caridade e os ‘resultados’ e o
envolvimento direto dos doadores nas ações filantrópicas e nas comunida-
des de políticas.
Estamos agora oficialmente na era dos “filantro-empresários”, onde a dife-
rença entre um fundo de capital de risco e uma fundação, uma startup pro-
missora e um empreendimento social torna-se totalmente turva.1

Essas novas sensibilidades da caridade têm levado a um crescente


uso de modelos de práticas comerciais e empresariais como uma nova for-
ma genérica de organização, prática e linguagem filantrópica – filantropia
de risco, investimentos e portfólios filantrópicos, due diligence (o termo in-
glês é usado correntemente no mercado financeiro no Brasil, mais que “di-
ligência devida”, soluções empresariais, etc. Os ‘novos’ filantropos querem

* Texto traduzido por Lisa Gertum Becker e revisado por Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt.
1
http://marmoogle.blogspot.com/2007/04/global-philanthropy-forum-that-is.html.

33
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

ver impactos claros e mensuráveis e resultados de seus ‘investimentos’ de


tempo e dinheiro. A nova filantropia está trazendo novos jogadores à arena
do desenvolvimento internacional, estabelecendo novos papéis e relações
de políticas e desenvolvimento, criando novos terrenos de políticas e retra-
balhando as redes de políticas existentes. Ainda que aparentemente bem
recebidas em círculos filantrópicos, empresariais e políticos, essas mudan-
ças trazem consigo boa dose de controvérsias e problemas. As organiza-
ções envolvidas apresentam uma variedade de identidades e compromissos
diferentes e cambiantes. Financeiramente, organizacionalmente e moral-
mente, seu status e posição são muitas vezes, à primeira vista, obscuros.
Essa reconfiguração se apoia sobre uma dupla mudança moral na concep-
ção da relação entre caridade, auxílio e lucro. De um lado, as fundações
corporativas e familiares e os indivíduos filantrópicos estão começando a
‘assumir deveres sociomorais que até agora eram da responsabilidade de
organizações da sociedade civil, entidades governamentais e agências esta-
tais’ (SHAMIR, 2008). De outro lado, esses novos filantropos não renunciam
totalmente à possibilidade de lucro; de fato, como eles próprios dizem, é
possível ‘fazer o bem e ter lucro também’2. Ted Turner, o fundador da CNN,
argumenta que ‘certas áreas do construir um mundo melhor se adaptam
muito comodamente a operações com fins lucrativos. Por que devemos ter
medo disso?’3. Tudo isso re-situa o escopo e os objetivos da filantropia tra-
dicional. Isso indica uma mudança em três etapas: da caridade paliativa
(ou seja, a filantropia tradicional ou a ‘filantropia 1.0’) à caridade para o
desenvolvimento (‘filantropia 2.0’) e, finalmente, à caridade ‘lucrativa’, cons-
tituindo aquilo que é chamado de ‘filantropia 3.0’. Essa tomada de respon-
sabilidades por parte de uma nova filantropia e do capitalismo social tam-
bém levanta questões fundamentais sobre a participação democrática e a
responsabilidade dos governos e outras instituições públicas na provisão de
serviços sociais e direitos civis. A vinda de interesses morais, ideológicos e
econômicos para o campo de atividade da caridade cria novos espaços e
dinâmicas na ‘governança filantrópica’, conforme se sugere abaixo.

2
http://www.nytimes.com/2006/11/13/us/13strom.html?pagewanted=print.
3
http://www.nytimes.com/2006/11/13/us/13strom.html?pagewanted=print.

34
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Em tudo isso, o perigo é que o governar seja entendido e analisado em


termos daquilo que pode ser novo e diferente, sem tratar adequadamente
daquilo que permanece igual, e também que acontecimentos que não “se
enquadram” no mundo de acordo com a governança sejam subestimados ou
ignorados. Este capítulo é parte de um programa emergente e exploratório
de investigação, através do qual pretendemos abordar essas questões. O foco
principal da agenda da nossa pesquisa é substancial e analítico. Nós estamos
interessados em explorar como e por quem a governança educacional está
sendo realizada, e se isso é indicativo e ilustrativo de deslocamentos e mu-
danças mais gerais nos métodos e mecanismos de governança. Sabemos que
as questões e temas aqui levantados necessitam de análises e discussões mais
profundas. Por essa razão, este texto deve ser considerado uma tentativa ini-
cial de entender o intricado caráter desse novo fenômeno, e ele será elabora-
do mais substancialmente em outras publicações, ainda que já tenhamos co-
meçado a desenvolver algumas dessas ideias em trabalhos anteriores (ver
BALL, 2012; BALL e JUNEMANN, 2011; OLMEDO, 2013).
Este capítulo apresenta um breve esboço de alguns conceitos-chave
articulados nessas novas sensibilidades de políticas e caridade e apresenta
exemplos que ilustram a complexidade e a interconexão das novas formas
de filantropia dentro das redes de políticas globais, o papel desses novos
agentes e seus impactos nos campos da educação e do desenvolvimento.
Para fazer isso, trabalhamos na direção de um método de pesquisa que
pode ser chamado de ‘etnografia de redes’, uma combinação da Análise de
Redes Sociais (ARS) com métodos etnográficos (ver HOWARD, 2002). Nos-
so interesse é identificar e analisar a criação e a operação dessas redes, as-
sim como as conexões que as constituem. Também investigamos as trocas e
transações entre os participantes e os papéis, ações, motivações, discursos e
recursos dos diferentes atores envolvidos. Em termos mais gerais, esse ‘mé-
todo’ surge dentro de um amplo conjunto de deslocamentos epistemológi-
cos e ontológicos através da ciência política, da sociologia e da geografia
social, que envolve uma diminuição do interesse nas estruturas sociais e
uma ênfase crescente em fluxos e mobilidades (de pessoas, capital e ideias,
ex.: ‘políticas em movimento’) – que às vezes é chamado de ‘virada da mobi-
lidade’. Em outras palavras, um foco na ‘espacialização’ das relações sociais,
em viagens e em outras formas de movimento e de socialidade e interações

35
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

transnacionais. Tudo isso é, obviamente, concomitante com o interesse ex-


traordinário nos processos de ‘globalização’ dos anos recentes. A rede é um
mecanismo analítico e um tropo-chave dentro desse redirecionamento da
atenção, como se fosse um tipo de tecido conectivo que une e oferece algu-
ma durabilidade a essas distantes e fugazes formas de interação social. Para
atingir essa extensa e ‘profunda’ rede, buscas foram realizadas em múlti-
plas fontes (documentos de políticas, relatórios oficiais, comunicações pes-
soais, etc.). A internet oferece um vasto potencial de materiais relevantes,
que podem ser obtidos em websites governamentais e de empresas, assim
como em blogs pessoais, serviços de vídeo e da rede social (como Twitter,
YouTube, Facebook, etc.), e relatórios de reuniões, conferências e eventos e
páginas da web. Reiterando, a pesquisa realizada aqui é inovadora e explo-
ratória, seus dados e análise são projetados de forma a gerar um conjunto
de questões para pesquisas posteriores, focalizadas nos complexos efeitos e
consequências sociais e políticas da mudança de governo para governança
nas políticas globais de educação.

A ‘nova’ filantropia, os grandes desafios


e a política educacional
Em 2008, Bill Gates, o terceiro homem mais rico do mundo4, esbo-
çou sua visão de filantropia como ‘capitalismo criativo’. Num discurso no
Fórum Econômico Mundial em Davos, ele apresentou-a como ‘uma abor-
dagem onde governos, empresas e organizações sem fins lucrativos traba-
lham juntos a fim de expandir o alcance das forças do mercado para que
mais pessoas possam ter lucro ou ganhar reconhecimento, realizando um
trabalho que diminua as desigualdades no mundo’5. Sua mensagem foi ine-
quívoca e unidirecional: onde os estados, as multilaterais e as ONGs tradi-
cionais fracassaram, o mercado pode ter sucesso. Gates disse então: ‘O de-
safio aqui é projetar um sistema onde incentivos de mercado, incluindo o
lucro e o reconhecimento, impulsionam esses princípios para fazer mais

4
http://www.forbes.com/2008/03/05/richest-people-billionaires-billionaires08-
cx_lk_0305billie_land.html.
5
http://www.microsoft.com/presspass/exec/billg/speeches/2008/01-24wefdavos.mspx.

36
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

pelos pobres’. Essa nova concepção de filantropia e ajuda borra intencio-


nalmente a linha divisória entre negócios, empreendimento, desenvolvimen-
to e o bem público e levanta questões fundamentais sobre os métodos e o
futuro papel das agências de desenvolvimento tradicionais. De um ponto
de vista semelhante, a Clinton Global Initiative (CGI) afirma que:
As formas tradicionais de ajuda não são suficientes para lidar com os gran-
des desafios globais da nossa era. Soluções baseadas no mercado mostram
uma incrível promessa para resolver esses imensos problemas num nível sis-
têmico e amplamente difundido. Essas abordagens, no entanto, ainda estão
num estágio nascente. As empresas estão pesquisando e desenvolvendo me-
lhores práticas de negócios que produzem resultados sociais e ambientais e,
ao mesmo tempo, geram lucro. As organizações sem fins lucrativos estão
encontrando modelos inovadores baseados em empreendimentos, que ofe-
recem potencial de sustentabilidade a longo prazo. Os governos estão con-
tribuindo com seus recursos para estimular e apoiar abordagens baseadas no
mercado.6

Esses discursos propositalmente deixam de tratar das causas da desi-


gualdade – como aponta Zizek (2008, p. 20); para dar, o capitalista tem que
antes tirar. O mercado é apresentado de forma acrítica como um espaço com-
pensatório e como uma nova fonte de soluções alternativas para problemas
de desenvolvimento. Esse novo modelo de filantropia é aquilo que Edwards
(2008) chama de ‘filantro-capitalismo’, uma combinação de filantropia em-
preendedora com empreendedorismo social, como uma nova ‘racionaliza-
ção econômica da doação’ (SALTMAN, 2010, p. 70). Esses ‘novos’ filantro-
pos ganharam suas fortunas bilionárias por meio de suas atividades nos mer-
cados capitalistas e acreditam que a sua filosofia empresarial pode ser tradu-
zida e posta a serviço da caridade. Sua atividade filantrópica é impulsionada
por sua intenção de ‘fazer mais com menos’7. Essa é uma mistura intencional
entre o importar-se e o calcular, ou, como dizem Bronfman e Solomon (2009)
no subtítulo de seu livro The Art of Giving [A Arte de Dar], é aqui que ‘a alma
encontra um plano de negócios’. Há uma reconfiguração do campo do de-
senvolvimento internacional e um deslocamento do foco de ‘corrigir para’
para ‘conectar-se ao mercado’ (BROOKS et al., 2009, p. 10).

6
http://www.clintonglobalinitiative.org/ourmeetings/2010/meeting_annual_actionareas.asp?
Section=OurMeetings&PageTitle=Action%20Areas.
7
http://blogs.wsj.com/financial-adviser/2010/03/08/not-your-parents-philanthropy/tab/print/.

37
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

A outra característica-chave da abordagem dos ‘novos’ filantropos


globais é sua ambição de assumir ‘grandes desafios’, recorrendo a ‘receitas
mágicas’ (BROOKS et al., 2009). As receitas mágicas estão centradas em
soluções genéricas e escaláveis, projetadas de forma que possam ser imple-
mentadas independentemente do contexto em níveis diferentes (local, na-
cional e internacional). Os grandes desafios levam mais longe a ideia da
receita mágica e implicam a criação de toda uma agenda motivada por ob-
jetivos políticos, que enfatiza a escalabilidade rápida de tecnologias especí-
ficas. Eles envolvem o uso de ‘todas as ferramentas, todos os métodos para
financiar mudança social’8. Entretanto, conforme sugerem Brooks et al.
(2009, p. 7), ao escolher a solução ‘mais rápida e barata’ e ignorar as poten-
ciais consequências de tais decisões, o modelo do grande desafio está ‘su-
plantando questões cruciais sobre ‘de que forma’, ‘por que’, ‘para quem’ e
‘quem diz’ com a preocupação prévia e predominante com ‘quanto’, ‘com
que rapidez’ e ‘quando’. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM) da ONU são um dos focos dos grandes desafios e receitas mágicas,
mas atualmente existem outros exemplos em que fundações e organizações
filantrópicas reorganizam suas agendas e portfólios de investimento de acor-
do com esse modelo. Por exemplo, a Fundação Bill & Melinda Gates ado-
tou essa abordagem no campo da saúde com o programa Grand Challenges
in Global Health9 [Grandes Desafios da Saúde Global] e, mais recentemente,
também no campo da educação. A Fundação declara em seu website:
Nosso foco principal é prover educação pública. (...) Também usamos o
ativismo para promover conscientização a respeito das questões que enfren-
tamos, informamos políticas governamentais e desenvolvemos formas no-
vas e inovadoras de financiar iniciativas que melhoram os resultados.10

Em educação, as Charter Schools dos Estados Unidos tornaram-se o


paradigma da receita mágica e constituem atualmente a principal referên-
cia para as políticas educacionais inglesas do governo de coalizão britânico

8
Jane Wales, President and CEO World Affairs Council of Northern California and Global Phi-
lanthropy Forum in the 2007 Sixth Annual Global Philanthropy Forum. Available in: http://
www.philanthropyforum.org/images/forum/PastConferences/2007/GPF_2007Transcripts_
FINAL.pdf.
9
http://www.gatesfoundation.org/global-health/Pages/grand-challenges-explorations.aspx.
10
http://www.gatesfoundation.org/united-states/Pages/program-overview.aspx.

38
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

(ver BALL e JUNEMANN, 2011) e, de forma similar, para o governo con-


servador espanhol (ver OLMEDO, 2013). Elas são apresentadas como uma
solução baseada-no-mercado adaptável, confiável, eficaz e ‘rápida’11 para o
subdesempenho educacional e as desigualdades concomitantes, e que tam-
bém é portátil e escalável. Essa abordagem pressupõe uma concomitante
estandardização da avaliação, dos métodos de ensino e do currículo (SALT-
MAN, 2010) e rejeita formas alternativas de intervenção educacional e trans-
formação social:
As escolas charter de alto desempenho – e as redes charter que apoiam seu
crescimento em nível nacional – desempenham importante papel na nossa
estratégia de preparação para a universidade, pilotando, acelerando e ex-
pandindo a inovação em educação. (...) E dada a flexibilidade das escolas
charter em comparação com outras escolas públicas, elas podem pilotar e
implementar projetos com rapidez e fidelidade.12

Em resumo, o que é diferente aqui é a relação direta entre a caridade


e a política, o envolvimento mais aparente dos doadores com comunidades
políticas e uma abordagem mais ‘prática’ ao uso das doações. Os novos
filantropos operam numa ‘esfera parapolítica’ (HORNE, 2002), dentro da
qual eles podem criar sua própria agenda de políticas. De fato, na última
década, quatro fundações filantrópicas dedicaram um total de $4,4 bilhões
a diferentes programas relacionados com a reforma educacional nos Esta-
dos Unidos13. Dada a dimensão da situação, Michael Petrelli, do Instituto
Thomas B. Fordham, recentemente reconheceu que ‘não é incorreto dizer
que a agenda da Fundação Gates tornou-se a agenda educacional do país’14.
O que estamos enfrentando aqui não é apenas o fato de doadores estarem
‘votando com seus dólares’ (SALTMAN, 2010), mas uma intervenção di-
reta da ação filantrópica no campo da política educacional. Essa nova situa-
ção tem implicações conceituais e práticas em relação ao conceito de de-
mocracia e à fonte e agência da formulação de políticas na esfera pública. É

11
Embora as escolas charter sejam, em princípio, escolas sem fins lucrativos, e não estejam autori-
zadas a cobrar mensalidades, algumas empresas com fins lucrativos, EMOs Educational Mana-
gement Organization, têm funcionado como Escolas charter e o caráter não-lucrativo do progra-
ma tem sido questionado.
12
http://www.gatesfoundation.org/college-ready-education/Pages/charter-schools-networks.aspx.
13
http://www.newsweek.com/2011/05/01/back-to-school-for-the-billionaires.html.
14
http://www.bizjournals.com/seattle/stories/2009/05/18/story2.html.

39
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

a isso que nos referimos como ‘governança filantrópica’, enfatizando como,


através de sua ação filantrópica, esses atores são capazes de modificar sig-
nificados, mobilizar ativos, gerar novas tecnologias de políticas e fazer pres-
são ou até mesmo decidir sobre a direção da política em contextos específi-
cos. Ainda que seja difícil demonstrar e expor as conexões entre os interes-
ses econômicos, ideológicos, políticos e filantrópicos, é preciso elaborar mai-
ores considerações e discussões sobre as implicações e consequências des-
sas novas formas de filantropia dentro dos campos do desenvolvimento in-
ternacional e da política educacional em geral.

Conectando as partes: a ‘nova’ filantropia


e os negócios educacionais edu-businesses
A Filantropia 3.0 faz parte de uma nova configuração e lógica de
ações de ajuda e desenvolvimento e de um novo conjunto de relações liga-
das a problemas de desenvolvimento e aos grandes desafios. Chamamos
essa lógica e relações de ‘filantropia de rede’. Ao usar esse termo, estamos
sugerindo que, para entender o trabalho das ‘novas’ organizações filantró-
picas e seus ‘parceiros’, precisamos considerá-los não sob uma perspectiva
individual, como atores isolados, mas sim como nós interconectados que
operam de acordo com lógicas de rede e configuram suas agendas e ligações
de formas mutantes e fluídas. Essas redes retrabalham e repovoam a comuni-
dade de políticas de ajuda e desenvolvimento, conectando de novas maneiras
os interesses e as atividades de empresas, governos, filantropia e agências não
governamentais. Nesse sentido, trazer interesses filantrópicos e empresariais
ao campo do desenvolvimento internacional envolve um prolongado e sofis-
ticado trabalho de ativismo e interação em rede. Durante a última década, a
ação de atores-chave, como Bill Clinton e Bill Gates, remodelou as redes
internacionais existentes, constituindo novos locais e possibilidades de ex-
pansão do ‘capitalismo criativo’. Esses novos locais poderiam ser entendidos
como ‘nós geradores,’ que visam facilitar novas conexões e oportunidades de
ligação. Eles são ‘novos locais de mobilização de políticas’ e ‘microespaços
globalizantes’, que operam entre e além das áreas de formulação de políticas
tradicionalmente definidas, tais como localidades, regiões e nações. Um exem-
plo de um desses nós é o Fórum Global de Filantropia, que:

40
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

visa construir uma comunidade de doadores e investidores sociais compro-


metidos com causas internacionais, e informar, possibilitar e fortalecer a
natureza estratégica do seu trabalho.
(…) o FGF conecta doadores a problemas; a estratégias eficazes; a potenci-
ais parceiros co-financiadores; e a agentes de mudanças emblemáticos no
mundo inteiro. Construindo e continuamente renovando uma comunidade
de aprendizado duradoura, o FGF busca expandir o número de filantropos
que serão estratégicos na busca de causas internacionais.15

A principal atividade desses nós geradores é facilitar parcerias, novos


projetos e agendas de investimento. Eles criam ‘redes dentro de redes’, ba-
seadas no capital simbólico e econômico dos participantes que conseguem
mobilizar. Esses são canais para a promoção de políticas e o compartilha-
mento epistêmico através dos quais o modelo e as ideias delineados no
trecho anterior se formam e são colocados em prática. Além disso, ao pos-
sibilitar conexões sociais, políticas e econômicas globais, esses nós gerado-
res se tornam espaços-chave no campo do desenvolvimento internacional.
A Clinton Global Initiative (CGI) é mais um exemplo desses ‘nós geradores’.
Conforme declara seu website, a ‘CGI atua como mercado para uma diver-
sificada comunidade de agentes transformadores para criar compromissos
que se adequem a seu negócio principal e seus objetivos filantrópicos’ e
segue enfatizando o caráter específico de seu campo de operação:
A Clinton Global Initiative (CGI) é diferente de qualquer outra organização
ou evento. Ao invés de diretamente implementar projetos, a CGI facilita
parcerias entre diferentes setores que, por sua vez, criam e realizam projetos
que eles mesmos escolhem. Os membros da CGI vêm de uma ampla gama
de profissões, origens culturais e religiosas, e regiões geográficas. Chefes de
estado, executivos de companhias com e sem fins lucrativos, acadêmicos,
representantes da mídia, líderes religiosos, estudantes universitários e cida-
dãos globais se unem dentro da comunidade CGI para criar soluções singu-
lares para alguns dos desafios mais urgentes do mundo.16

A CGI trabalha facilitando parcerias, em sua própria terminologia,


Commitments to Action [Compromissos para a Ação], em torno de proble-
mas educacionais, saúde, sustentabilidade e igualdade sexual, entre outras
áreas. Cada novo membro da rede deve ‘desenvolver um novo modelo de

15
http://www.philanthropyforum.org/forum/About_Us.asp?SnID=743149094.
16
http://www.clintonglobalinitiative.org/aboutus/ourmodel.asp?Section=AboutUs&PageTitle=
Our%20Model.

41
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

negócios que gere valor social, ambiental e econômico; iniciar, escalar ou


re-direcionar um projeto de negócios ou serviços; ou prover apoio financei-
ro ou em espécie para uma organização de sua escolha’17. Vamos fazer um
breve esboço de compromissos que ilustram a ação dessas redes no campo
da educação.
Na reunião da CGI em 2001, a Opportunity International18 compro-
meteu incialmente $10m19 em parceria com a Sutter Family Foundation e a
Gray Matters Capital, para expandir suas já existentes iniciativas de micro-
financiamento em educação na África, Ásia e América Latina20. O microfi-
nanciamento é outro exemplo de ‘receita mágica’, atualmente onipresente
na nova agenda de desenvolvimento internacional (STEWART et al., 2010).
Como resultado do compromisso, foram feitos empréstimos para a criação
de grupos de escolas particulares em duas redes sob as marcas: Microschools
of Opportunity e IDP Rising Schools.
Inspirada e informada pela pesquisa de James Tooley’s21, a Opportu-
nity International, em parceria com o Sinapi ABA Trust22 e a Ghana Mi-
crofinance Institution Network, lançou o programa Microschools of Opportu-
nity [Microescolas de oportunidade] em 2007. Tooley constitui um claro
exemplo da ligação entre esses grupos filantrópicos e o trabalho de ativistas
do mercado. Ele é citado e trabalha intimamente com um significativo nú-
mero de fundações, entidades filantrópicas e organizações internacionais, e
sua pesquisa é tratada como o elo perdido entre as agendas dessas organi-
zações e as realidades locais que necessitam de financiamento. A iniciativa

17
http://www.clintonglobalinitiative.org/aboutus/ourmodel.asp?Section=AboutUs&PageTitle=
Our%20Model.
18
Opportunity International é uma organização não-governamental cristã internacional com sede
em Chicago. Ela trabalha em mais de 20 países e é financiada por contribuições de caridade e
subsídios do governo. Ela também reúne recursos de outras fontes (por exemplo, da Fundação
Gates Bill & Melinda e Omidyar Network). Seus escritórios estão estrategicamente situados em
EUA, Austrália, Canadá, Alemanha e Reino Unido. Sua principal atividade é o microcrédito
(empréstimos, poupança, microsseguros e treinamento) de projetos em diferentes áreas.
19
http://www.clintonglobalinitiative.org/commitments/commitments_search.asp?Section=
Commitments&PageTitle=Browse%20and%20Search%20Commitments.
20
Initially in Colombia, Dominican Republic, Ghana, India, Malawi, Mozambique, Rwanda and
Uganda.
21
http://www.communityintl.com/documents/Microschools_Opportunity_092407.pdf.
22
Sinapi é uma organização sem fins lucrativos, cristã e membro do Opportunity Rede Internacio-
nal. Tem base em Gana e seu principal foco de ação é microfinanças e treinamento.

42
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

das Microschools oferece empréstimos a ‘edupresários’ para abrir escolas pri-


vadas em áreas pobres. O programa começou em Gana com um programa
piloto envolvendo 50 bairros e cidades, mas foi rapidamente exportado para
Uganda, Malaui e Índia. Nos próximos três anos, o Opportunity Internatio-
nal visa atingir um milhão de crianças, os “futuros Heróis Econômicos que
vivem em cada comunidade”23. Citando um estudo interno, eles afirmam
que suas escolas estão superando o desempenho das escolas públicas locais
em suas áreas, o que levou Christopher A. Crane, presidente e CEO da orga-
nização, a declarar que eles estão “confiantes que esses ‘edupresários’ conti-
nuarão a oferecer educação de qualidade a seus estudantes” e, portanto, “fa-
remos todo o possível para oferecer a eles e a milhares como eles serviços
financeiros e outros tipos de apoio”. Até hoje, eles concederam 350 emprés-
timos a escolas privadas, atingindo 87.000 crianças24.
Seguindo o mesmo padrão, a IDP Rising Schools é uma associação
entre a IDP Foundation Inc, a Opportunity International US e o Sinapi
Aba Trust. O objetivo desse programa é ‘construir um modelo educacional
sustentável que pode ser apoiado através de empréstimos de microfinancia-
mento e capacitação para ser posteriormente replicado em Gana, na África
subsaariana e por todo o mundo em desenvolvimento’25. De acordo com o
website da IDP Foundation, em 2010 eles esperam ter 120 escolas inscritas
no programa, alcançando uma população de 31.000 crianças. Além disso,
a IDP Rising Schools também se associou ao Ministério da Educação e aos
Serviços Educacionais de Gana e criou um conselho consultivo para a for-
mação de professores, que será presidido pelo Dr. Josiah A. M. Cobbah,
professor no Ghana Institute of Management and Public Administration, uma
instituição que visa promover “o entendimento e a cooperação entre insti-
tuições dos setores público e privado no que tange a administração pública
e obrigações de gerenciamento”26.
A nova filantropia também requer novas ferramentas e ‘informação’
para impulsionar decisões de investimento e medir o retorno sobre os inves-

23
http://www.opportunity.org/wp-content/uploads/2010/06/Impact-2007-Fall.pdf.
24
http://www.opportunity.org/blog/meeting-ugandan-students-reflections-of-an-american-teenager/.
25
http://globalpf.org/strategic-advisors.html?show=8.
26
http://www.gimpa.edu.gh/index.php?option=com_content&view=article&id=56&Itemid=54.

43
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

timentos. Essa necessidade de claros indicadores de desempenho levou à


criação de um conjunto de companhias e organizações internacionais com
fins lucrativos (ex.: Geneva Global, Rockefeller Philanthropy Advisors e o Proje-
to do Milênio da ONU) e empreendimentos sociais (ex.: New Philanthropy
Capital), que oferecem consultoria a organizações filantrópicas e avaliação
de seus portfólios. Como investidores, consultores e conselheiros de entida-
des quase governamentais, esses transatores passaram a envolver-se direta-
mente nos processos de formulação de políticas, tomada de decisão e im-
plementação de políticas:
A Geneva Global foi fundada por um grupo internacional de investimentos
chamado Legatum (anteriormente conhecido como Sovereign Global), que bus-
cava uma assessoria filantrópica profissional que satisfizesse os padrões ban-
cários a que estava acostumado. A ausência de tais serviços levou-o a fundar
o Geneva Global em 1999. O grupo equipou a nova firma internacional de
assessoria filantrópica para oferecer pesquisa e assessoria de classe interna-
cional para indivíduos, empresas e fundações.

Ao lado desses intermediários vem sendo desenvolvidos outros ti-


pos de análise dos mercados sociais. Por exemplo, a School Ventures, uma
empresa de informação mercadológica, em colaboração com o Economist
Intelligence Unit criou o African Private Schools Investment Index (APSI) [Índi-
ce de investimento em escolas privadas africanas] em 200727, destinado a
avaliar as possibilidades de investimento privado em trinta e seis países afri-
canos, baseando-se na análise do “potencial de crescimento de cada país
com base na existência de condições favoráveis”. De acordo com a School
Ventures, o índice “oferece uma avaliação totalmente nova do cenário da
educação privada na África subsaariana e é projetado especificamente para
avaliar o atual ambiente de investimentos em educação privada na Áfri-
ca”28. A crescente emergência de tais empreendimentos e ferramentas é re-
toricamente direcionada a informar as decisões de formuladores de políti-
cas, investidores potenciais e existentes e grupos filantrópicos. No entanto,
se poderia argumentar que a implementação dessas tecnologias de políticas
também introduz novas formas de competição entre países e regiões e no-

27
http://www.prnewswire.com/news-releases/silent-revolution-of-african-education-markets-fin-
ds-expression-in-the-new-apsi-index-58736087.html.
28
http://schoolventures03.goodbarry.com/FAQRetrieve.aspx?ID=35960&Q=.

44
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

vas classificações comparativas baseadas em sua “atratividade (…) como


destinos para investimentos privados”29.
A fonte e o motor dessas novas formas de conhecimento para o de-
senvolvimento dentro das iniciativas e movimentos delineados acima cla-
ramente não são os atores individuais, mas sim a comunidade discursiva –
e esse discurso e seus sujeitos e práticas poderíamos denominar de neolibe-
ralismo. Aqui existem claramente aspectos daquilo que Peck e Tickell (2002)
chamam de normatização da lógica neoliberal, mas frequentemente de for-
mas ‘impuras’ e como híbridos confusos e em parcerias diversas.
As redes são locais e domínios para a lógica neoliberal e produzem
novos tipos de objetos de políticas através de um duplo processo de como-
dificação e financialização e empreendedorismo moral (SHAMIR, 2008).
As ideias das políticas não se movimentam num vácuo elas são criações
sociais e políticas que são contadas e recontadas em microespaços e redes
de políticas. Os participantes desenvolvem e negociam com várias formas
de capital social e de redes, que se traduzem no direito de falar e na neces-
sidade de ser ouvido. Esses são os ‘novos espaços de possibilidades emara-
nhadas’ (ONG, 2006, p. 499), os novos espaços do neoliberalismo e da
‘economização do social’. Os processos aqui envolvidos não só agem ‘so-
bre’ como também agem ‘contra’ o Estado e a educação estatal. Resumin-
do, problemas arraigados de desenvolvimento e de qualidade e acesso edu-
cacional estão agora sendo tratados através envolvimento de empresas so-
ciais e do negócio educacional na provisão de serviços educacionais tanto
de forma privada como em nome do Estado.

Observações finais
As mudanças e os movimentos aqui envolvidos são formados e im-
pulsionados por um complexo conjunto de processos políticos e econômi-
cos implicando o ativismo (por Empreendedores de Políticas e Redes de
Promoção Transnacionais), interesses empresariais (novas oportunidades

29
http://www.prnewswire.com/news-releases/silent-revolution-of-african-education-markets-fin-
ds-expression-in-the-new-apsi-index-58736087.html.

45
BALL, S. J.; OLMEDO, A. • A ‘nova’ filantropia, o capitalismo social e as redes de políticas globais em educação

de lucro), a ‘nova’ filantropia e mudanças na forma e modalidades do Esta-


do – e isso é uma transição de governo a governança; de burocracia a redes,
da provisão de serviços ao estabelecimento de metas, monitoramento e re-
gulação. Cada um desses elementos precisa ser contemplado na análise da
nova filantropia e das novas formas de política educacional. De forma mais
geral, para os governos nacionais, principalmente aqueles de Estados pe-
quenos e frágeis, isso tudo pressagia uma diminuição da sua capacidade de
conduzir seus sistemas educacionais. Agências multilaterais, ONGs e in-
fluências e interesses comerciais podem, separada ou conjuntamente, cons-
tituir uma alternativa potente ao ‘fracasso’ do Estado.
Cada vez mais, a ajuda internacional e a filantropia deixam de ser
‘doadas’ como subvenções a governos e ONGs e passam a ser ‘investidas’
em negócios educacionais e no desenvolvimento de soluções baseadas no
mercado para problemas educacionais. Os métodos empresariais e as ini-
ciativas de empreendedorismo social são vistos como formas mais efica-
zes de oferecer acesso mais amplo à educação e uma educação de melhor
qualidade do que, argumenta-se, aquilo que os governos ou a ajuda ou
caridade tradicional podem oferecer.
O que estamos tentando capturar e transmitir nesta análise – um tan-
to insatisfatória e superficial – de algumas formas de ‘empreendimento’ e
de indivíduos empreendedores da nova política social e educacional são os
cruzamentos, obscurecimentos, interlaçamentos e hibridismos cada vez mais
complexos, que constituem e animam esse cenário de ‘doação’ e empreen-
dimento. Pessoas, dinheiro e ideias movem-se através dessas redes e organi-
zações e através dos limites que elas abarcam. Linhas e demarcações tradi-
cionais, o público e o privado, o mercado e o Estado, estão sendo rompidas
e misturadas em tudo isso, e elas deixaram de ser analiticamente úteis. Os
pesquisadores precisam de uma nova linguagem e de novas técnicas para
que sejam capazes de acompanhar as novas formas em que as políticas
educacionais e as soluções educacionais estão sendo geradas e aplicadas
dentro dessas redes de políticas globais.

46
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Referências
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ZIZEK, A. Violence. New York: Picador, 2008.

47
Autonomia das escolas:
entre público e privado1

João Barroso

Introdução
As políticas de reforço da autonomia das escolas inserem-se numa
narrativa comum que tem marcado as recentes alterações na organização
do Estado e da sua administração e que, nesse caso, se polarizou, sobretudo
em torno de dois movimentos ou correntes de opinião: (a) os que viam, nas
políticas de definição e reforço da autonomia das escolas, uma maneira de
preservar e de modernizar o ensino público, ajustando as suas características
à diversidade dos contextos e das populações escolares; (b) os que considera-
vam que o reforço da autonomia das escolas constitui um instrumento para a
introdução de uma lógica concorrencial no interior do serviço público, essen-
cial para promover a “liberdade de escolha” entre ofertas educativas diferen-
ciadas (pelo projeto e pelos resultados), contribuindo assim para a criação de
um quase mercado educativo que abrange, em idênticas condições de provi-
são e de financiamento, a escola pública e a escola privada.
No primeiro caso, a “autonomia das escolas” é defendida, principal-
mente, por suas “virtudes” para resolver alguns dos graves problemas da “es-
cola pública”. Nomeadamente, porque permite ultrapassar os constrangimen-
tos resultantes da rigidez da sua organização, do caráter homogêneo da sua
oferta, do modo centralizado da sua coordenação, através do recurso à terri-
torialização das políticas educativas, ao desenvolvimento de projetos educa-
tivos próprios, ao reforço da participação e à diversificação da oferta.

1
O presente artigo baseia-se parcialmente na intervenção que fiz no Conselho Nacional de Edu-
cação, em Lisboa (Portugal), no dia 5 de maio de 2012, no Seminário “Serviço Público de
Educação”.

48
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

No segundo caso, verifica-se que o discurso da “autonomia das esco-


las” tem vindo a ficar refém dos que pretendem, por essa via, introduzir no
sistema público alguns dos elementos mais característicos da oferta priva-
da, como seja a regulação pela concorrência, a hierarquização das escolas,
a segmentação e segregação dos públicos.
É com base nesses pressupostos e na investigação que tenho realiza-
do sobre as políticas de reforço da autonomia (ver entre outros, BARROSO
2004a, 2011) que irei utilizar, neste artigo, essas políticas como analisado-
ras da relação entre público e privado em educação.

O “público” e o “privado” em educação:


uma questão política
O debate sobre as questões da autonomia, incluindo as suas implica-
ções nos modos de provisão, de organização e de gestão escolar, é um deba-
te essencialmente político sobre o papel do público e do privado em educa-
ção e não um debate técnico sobre a melhor forma de organizar e gerir a
escola. As opções em jogo inserem-se numa reflexão mais vasta sobre os
processos de recomposição do papel do Estado na administração da ação
pública e nas suas formas de governo. Essa recomposição pode ter vários
sentidos, desde formas mais extremas de privatização dos serviços públicos
ou de criação de “quase mercados” educativos, baseados na concorrência e
“livre escolha”, a formas mais mitigadas que, preservando o intervencio-
nismo estatal, substituem “a regulação da oferta pela regulação da procu-
ra” e flexibilizam as suas modalidades de controle através da contratualiza-
ção e da avaliação de resultados.2
Por isso a questão da privatização é hoje, em tempo de crise econô-
mica e de declínio do Estado Providência, uma questão que está na ordem
do dia. Contudo o conceito de “privatização”, apesar de ser frequentemen-
te utilizado, é fracamente definido, o que faz com que, muitas vezes, como
diz Donnison (citado por WHITTY, 2000), ele sirva “não para clarificar
uma análise … mas para dramatizar um conflito e mobilizar apoios”. Ape-

2
Para uma análise da situação no Brasil, nomeadamente no que se refere às parcerias público-
privadas, consultar entre outros Adrião e Peroni (orgs.), 2008; Peroni e Rossi (orgs.), 2011.

49
BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

sar das várias perspetivas com que esse conceito é utilizado (e que não irei
discutir aqui), a privatização envolve, em geral, como afirma Whitty (2000),
um declínio da “provisão estatal”, uma redução dos “subsídios com di-
nheiros públicos”, uma maior “desregulação” e uma “transferência de ser-
viços para o sector privado”.
Essas características comuns podem dar lugar a diferentes variantes
de privatização, tendo em conta a relação entre o financiamento e a gestão
(ver a esse propósito CHAKRABART e PETERSON, 2009, p. 4). Num dos
extremos encontra-se o “grau zero de privatização” – financiamento público
e gestão pública, e, no outro extremo, o “grau máximo de privatização” –
financiamento privado e gestão privada. Entre esses dois extremos encon-
tram-se diversas modalidades de parcerias público-privadas, caracterizadas
pelo financiamento público e gestão privada (como, por exemplo, escolas sob
contrato, os cheques-ensino, as “charter-schools, o “franchising” escolar), ou
o financiamento privado e a gestão pública (bolsas, por exemplo).
Convém sublinhar que a adoção dessas diferentes modalidades de
organização e de financiamento resulta de opções políticas sobre a nature-
za pública ou privada da educação. É o que procuro ilustrar no quadro
seguinte com a configuração de quatro “modelos” explicativos da maior ou
menor intervenção do Estado, definidos em função das variáveis “bem co-
mum – bem de consumo” e “monopólio estatal – mercado livre”.

50
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

– A educação é um bem essencialmente público, e nesse sentido justifica-se


a preponderância da intervenção do Estado (no financiamento e na opera-
cionalização da oferta do serviço educativo), que pode ir até a forma extre-
ma do “monopólio estatal” com a supressão ou grande limitação do ensino
privado.
– A educação é um bem essencialmente privado, e nesse sentido não se
justifica qualquer intervenção do Estado, devendo a oferta educativa ser
assegurada por um mercado inteiramente livre e desregulado e às expen-
sas dos indivíduos interessados (ainda que admitindo a existência de be-
nefícios fiscais para as despesas com a educação).
– A educação é um bem predominantemente público, que produz benefícios
privados, e, nesse sentido, cabe ao Estado uma grande parte do financia-
mento, regulação e prestação do serviço educativo, com a coparticipação
(ao nível do financiamento e da definição da oferta educativa) dos outros
beneficiários do sistema (em particular, os alunos e suas famílias, os futuros
empregadores, etc.).
– A educação é um bem predominantemente privado, que produz externali-
dades públicas, pelo que, embora cabendo ao Estado contribuir de maneira
significativa para o financiamento do serviço educativo (tendo em conta
essas externalidades), ele deve reduzir a sua intervenção ao mínimo para
permitir o funcionamento de um “quase mercado” educativo, baseado na
concorrência e autonomia dos prestadores de serviço e na livre escolha dos
consumidores.

A hibridação do público e do privado


Desde a última década do século passado que se manifestam, em
muitos países da OCDE, políticas de incentivo ao privado, com o fim de
permitir um alargamento da base social dessa modalidade de ensino e um
aumento do recrutamento de alunos, visando, segundo os seus promotores,
obter ganhos de competitividade, eficiência e redução de custos. Essas polí-
ticas resultam, muitas vezes, de “coligações de causas” (SABATIER e
JENKINS-SMITH, 1993) as mais diversas, organizadas em função de inte-
resses ideológicos, religiosos, econômicos, utilitários e outros. Contudo, ape-
sar desses incentivos, a maior parte dos países ainda tem uma rede privada

51
BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

pouco expressiva. Acresce ainda que o crescimento do ensino privado não


se tem dado por iniciativa própria, mas, sobretudo, pelo impulso das auto-
ridades públicas, que continuam a ser o “principal regulador”3. Por isso,
embora a justificação do alargamento do ensino privado seja feita com re-
curso a uma retórica concorrencial, o certo é que, em geral, essa concorrên-
cia se desenvolve sob a égide e o controle das autoridades públicas. Natalie
Mons (2011) diz mesmo que a privatização se tornou, nesses casos, uma
espécie de “clonização” do público, uma vez que as escolas privadas são
submetidas, na maior parte dos países, aos mesmos programas escolares, a
avaliações semelhantes, a regras de recrutamento de professores idênticas e
a consições materiais similares e acrescenta:
Apoiado cada vez mais pelos financiamentos públicos, aberto a classes soci-
ais que ele não acolhia tradicionalmente, assumindo objetivos de interesse
geral, submetido a uma regulação pública mais constrangedora, o privado
mudou de aspeto nestas duas últimas décadas. Mais do que uma privatiza-
ção da educação nacional, a expansão deste novo privado é marcada sobre-
tudo pela instrumentalização deste sector pelos poderes públicos (MONS,
2011, p. 35).

Pode dizer-se, por isso, que as relações entre público e privado estão a
mudar na educação, sem que isso signifique forçosamente uma privatiza-
ção global do sistema. Ao contrário do que as teses radicais querem fazer
crer, hoje em dia, na maior parte dos países, os dois sistemas sobrepõem-se
em muitos domínios, as suas fronteiras diluem-se, a sua especificidade di-
minui. Em vez de um jogo de soma nula entre dois setores estanques, veri-
fica-se (como foi referido) uma hibridação do público e do privado e uma
complexificação das suas relações.
Para essa “hibridação” muito tem contribuído a progressiva diluição
das fronteiras éticas, filosóficas e religiosas, que tradicionalmente separa-
vam, do ponto de vista institucional, esses dois sistemas. Como assinala
Maroy (2011), a propósito da situação na Comunidade Francófona da Bél-
gica, onde a “liberdade de escolha” (por motivos religiosos) é bastante am-
pla: o ensino público e o ensino privado passaram a estar submetidos à

3
Carlos Estêvão fala a esse propósito de “providenciação pública do privado na educação portu-
guesa” (ESTÊVÃO, 2012, p. 33-65). Ver igualmente Estêvão (1998).

52
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

mesma mudança de paradigma (emergência de um paradigma economicis-


ta ou gerencialista), em função do qual as diferenças são vistas mais em
termos de “eficácia organizacional e pedagógica” do que ao nível de “valo-
res e modelos pedagógicos de referência”. Contudo, como o mesmo autor
afirma: “essa evolução da leitura das relações entre privado e público não
significa, bem entendido, o desaparecimento das diferenças institucionais,
mas o seu esbatimento no debate das políticas escolares” (idem, p. 70).
A atração que as escolas privadas exercem sobre as famílias pode ter,
assim, diferentes justificações: elevação do capital social (fruto de uma sele-
ção dos alunos); filiação religiosa (nas escolas confessionais); imagem de
maior eficácia (pela “qualidade” dos resultados escolares dos seus alunos).
Contudo, hoje em dia, e sobretudo nas famílias urbanas da classe média,
essa atração resulta, muitas vezes, da perceção que têm da capacidade orga-
nizacional dessas escolas, considerando que elas podem responder melhor
e de uma maneira mais individualizada (pelas suas estruturas, recursos e
modos de funcionamento) às expectativas dos utilizadores. Como assinala
a esse propósito Yves Dutercq (2011):
Enquanto a oferta de ensino público, assumindo-se como indiferenciada e
inscrevendo-se numa lógica cívica e acadêmica, encontra a sua justificação
no currículo oficial, onde são valorizados os saberes disciplinares, a procu-
ra, por parte dos utilizadores, é marcada cada vez mais por uma lógica do-
méstica que privilegia a proximidade e a disponibilidade em relação aos
alunos e que se focaliza na individualização da relação com a escola (DU-
TERCQ, 2011, p. 176).

Isso significa, como salienta Maroy (2011), que “a concorrência en-


tre o público e privado se faz hoje, sobretudo, no domínio instrumental e
não, como antigamente, no domínio axiológico e normativo” (p. 70). Ou,
como afirmam Desjardins, Lessard e Blais (2011), falando da situação no
Canadá – Quebeque:
Podemos perguntar-nos se a escola privada é um sintoma da crise da escola
pública, ou se, pelo contrário, ela é a sua causa. Talvez seja um pouco das duas
coisas: os pais optam pelo privado devido a razões cuja legitimidade é difícil
de contestar (…), mas ao mesmo tempo o que parece ser uma solução indivi-
dual legítima provoca, quando multiplicada em larga escala, consequências
inquietantes para a rede pública (DESJARDINS et al., 2011, p. 121).

53
BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

Que lugar para a escola pública?


A constatação dessa hibridação entre público e privado não deve pôr
em causa a “defesa de uma escola pública” enquanto expressão de um “ideal
coletivo” de uma escola democrática e não segregativa, baseada na univer-
salidade do acesso, na igualdade de oportunidades, na partilha de uma cul-
tura comum e na continuidade dos percursos escolares. Contudo a defesa
da escola pública não pode estar prisioneira de qualquer tipo de ortodoxia
sobre o modo como se concretizam os seus ideais e se organizam as suas
estruturas e atividades4.
No caso presente, isso significa, como tenho referido em vários mo-
mentos, que a opção não pode estar limitada entre, por um lado, preservar
a escola pública, impedindo as famílias de fugirem dela, e, por outro, ani-
quilar a escola pública com a criação artificial de um mercado educativo
sustentado com dinheiro público (BARROSO, 2003).
Por isso defendo que, no contexto atual da crise do Estado Providên-
cia (e do modelo social a que deu origem), torna-se necessário reforçar a
dimensão pública da escola pública, o que obriga a reafirmar os seus valo-
res fundadores perante a difusão transnacional de uma vulgata neoliberal,
que vê no serviço público a origem de todos os males da educação e na sua
privatização a única alternativa (BARROSO, 2004b).
Mas defendo, igualmente, que a falência atual do modelo de regula-
ção burocrático-profissional, que serviu de base à expansão da escola públi-
ca no passado, obriga a procurar novas formas organizativas (pedagógicas
e educativas) e novas modalidades de regulação e de intervenção que impli-
quem:
– A recriação da escola como espaço público de decisão coletiva, ba-
seada numa nova concepção de cidadania “que vise criar a unidade sem
negar a diversidade” (WHITTY, 2002).
– Que o Estado continue a assegurar, como lhe compete, a “manu-
tenção da escola num espaço de justificação política” (DEROUET, 2003),

4
Retomo aqui as posições que defendi em 2004 a propósito da Escola da Ponte (BARROSO,
2004b).

54
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sem que isso signifique ser o Estado o detentor único da legitimidade dessa
justificação.
– Que a intervenção do Estado não perca em legitimidade o que tem
de ganhar em eficácia e, simultaneamente, não perca em eficácia o que tem
de ganhar em legitimidade.
Numa lógica de serviço público, a autonomia constitui, assim, um
instrumento fundamental para ajustar a oferta educativa às características
dos territórios e às dinâmicas locais no respeito pelas orientações gerais de
um sistema público nacional de ensino. Desse ponto de vista, a autonomia
das escolas não é um processo de “fechamento social” nem um instrumen-
to para promover a oferta das escolas privadas e a concorrência entre as
escolas, mas sim uma condição para abrir a escola à diversidade dos seus
públicos, reforçando a participação, a democracia e a flexibilização na sua
organização.
A autonomia das escolas (juntamente com o reforço das competên-
cias das autarquias) pode, por isso, contribuir decisivamente para a cria-
ção de uma nova ordem no domínio educativo, que concilia interesses
individuais e ideais coletivos, a regulação nacional com a regulação local.
Para que assim seja, a autonomia obriga ao reforço da dimensão cívica e
comunitária da escola pública na busca de um compromisso entre a fun-
ção reguladora do Estado, a participação dos cidadãos e o profissionalis-
mo dos professores, tendo em vista a construção do “bem comum”, que é
a educação das crianças e dos jovens” (ver BARROSO, 2000).
Nesse contexto, o alargamento dos poderes de decisão dos atores es-
colares (sobretudo na gestão pedagógica) e o reforço dos correspondentes
instrumentos e recursos podem contribuir para introduzir “públicas virtu-
des” na educação privada e “virtudes privadas” na educação pública. No
primeiro caso, através da contratualização de um serviço público comum
que preserve a universalidade, a equidade e a democracia na oferta escolar.
No segundo caso, através da diversificação e flexibilização da organização
e da gestão. É nessa alteração das relações entre público e privado que é
preciso encontrar um novo princípio de justiça que combine a satisfação
das necessidades individuais e das expectativas dos alunos e suas famílias
(subjacente à privatização) com a justiça escolar (subjacente ao ideal de
escola pública), garantindo a equidade no acesso a uma educação de quali-

55
BARROSO, J. • Autonomia das escolas: entre público e privado

dade, minimizando a hierarquização dos estabelecimentos de ensino e re-


duzindo o fosso existente entre os níveis de eficácia das escolas.
A requalificação do ensino público é, nesse contexto, uma exigência
da sua sobrevivência. É preciso intervir para combinar a satisfação das ne-
cessidades individuais e das expectativas dos alunos e suas famílias (subja-
cente à escolha da escola) com a necessária justiça escolar (subjacente ao
ideal de escola pública), que garanta a todos uma educação de qualidade,
minimize a hierarquização dos estabelecimentos de ensino e reduza o fosso
existente entre os níveis de eficácia das escolas. Isso só é possível, como
afirma Levin (2001, 2003), se a “escolha da escola” e a “busca da eficiên-
cia” não se fizerem à custa da “equidade” e da “coesão social”.

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56
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57
Diretor(a) de escola pública:
unipessoalidade e concentração do poder
no quadro de uma relação subordinada1

Licínio C. Lima

Introdução
O presente texto incide sobre a emergência, ainda recente em Portu-
gal, da figura de diretor(a) de escola pública, instituída pelo Decreto-Lei nº
75/2008, numa dupla perspectiva de análise: por um lado, como possível
“analisador” da política educativa, considerando a centralidade que lhe foi
atribuída como elemento da reforma da administração das escolas através
da consagração jurídica de um novo modelo que, genericamente, se inscre-
ve nas tendências internacionais das chamadas “gestão centrada na escola”
ou “escola autogerenciada”, marcadas por vários traços da “Nova Gestão
Pública” e daquilo a que, criticamente, tenho chamado de cânone gerenci-
alista; por outro lado, enquanto elemento de possível ruptura com o princí-
pio da gestão democrática, da colegialidade e da participação, que conti-
nua, todavia, formalmente em vigor, mas agora em acentuada erosão e sob
uma distinta concepção de organização escolar e da sua administração,
mais dependente da liderança unipessoal e da respectiva concentração de
poderes no interior das escolas.
Não obstante a alteração jurídica operada e as correspondentes mu-
danças em curso no plano da ação, já objeto de múltiplas investigações,
embora a maioria ainda em curso e sem resultados publicados, parte-se da

1
Versão adaptada para publicação no Brasil do texto inicialmente incluído em A. Neto-Mendes,
J. A. Costa & A. Ventura (Orgs.). A emergência do diretor da escola: questões políticas e organiza-
cionais (p. 47-63). Atas do VI Simpósio de organização e gestão escolar. Aveiro: Universidade
de Aveiro.

58
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

hipótese de trabalho que assenta no carácter recentralizador do poder polí-


tico e da administração escolar. Nesse quadro de interpretação, a figura de
diretor inscreve-se não num movimento de reforço efetivo da autonomia da
escola, de que seria o respectivo “rosto”, segundo a expressão do legislador,
mas antes num movimento de desconcentração algo radicalizado, não ape-
nas capaz de assegurar o tradicional predomínio do centro sobre as perife-
rias, mas até de o dotar de maior eficácia em termos de controlo, situação
em que o cargo de diretor mais tipicamente representaria o “rosto” do po-
der central, do ministério da Educação, junto de cada escola.
A linha interpretativa que aqui será apresentada e justificada, mais
como hipótese de trabalho a desenvolver do que como conclusão já empiri-
camente sustentada, em todo o caso assente em análises e argumentos que
se deixarão à consideração do leitor e de investigações futuras, aponta para
a relativamente nova e contraditória condição de diretor escolar: por um
lado, a de sujeito que concentra novos poderes sobre os subordinados na
organização escolar, dessa forma alongando e verticalizando o respectivo
organograma e reforçando as prerrogativas de uma liderança formalmente
unipessoal; mas, por outro lado e em simultâneo, a de objeto de um mais
profundo processo de subordinação e dependência face ao poder central,
concentrado e desconcentrado, sobre quem recaem, individual e imediata-
mente, todas as pressões políticas e administrativas e, de acordo com o le-
gislador, a quem enquanto “primeiro responsável poderão assim ser assa-
cadas as responsabilidades pela prestação do serviço público de educação e
pela gestão dos recursos públicos postos à sua disposição” (do preâmbulo
do Decreto-Lei nº 75/2008).
A referida dualidade não é inédita na história da administração esco-
lar portuguesa, desde o “chefe do liceu”, de finais do século XIX, sobretu-
do observada a longa tradição de órgãos unipessoais nomeados governa-
mentalmente, interrompida durante o período republicano por ação do então
conselho de escola, que elegia o reitor, para voltar à nomeação pelo gover-
no entre 1928 e 1974, tendo o carácter eleitoral sido estabelecido e desde
então mantido, a partir da revolução democrática de 25 de abril de 1974,
embora com importantes variações no que concerne aos respectivos pro-
cessos e âmbitos de participação eleitoral (BARROSO, 2002). Desde maio
de 1974, em termos jurídicos, a direção das escolas portuguesas passou a

59
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

ser assumida por órgãos colegais eleitos democraticamente, nalguns casos


especificando certas competências próprias do presidente do órgão, o qual
foi mudando de designação: “comissão de gestão”, entre 27 de maio de
1974 (Decreto-Lei nº 221/74) e 21 de dezembro daquele ano (Decreto-Lei
nº 735-A/74); “conselho diretivo”, a partir de dezembro de 1974, embora
com arquitetura formal estabilizada através do Decreto-Lei nº 769-A/76,
de 23 de outubro, que vigorou até 1998; “conselho executivo”, a partir do
Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio até 22 de abril de 2008, com a
publicação do Decreto-lei nº 75/2008, o qual consagra a figura de diretor,
assim retornando, trinta e quatro anos depois do 25 de abril de 1974, a um
órgão unipessoal, embora eleito pelo agora designado conselho geral.
Com efeito, reitores dos liceus e diretores das escolas técnicas foram
substituídos por comissões de gestão eleitas em várias escolas do país, logo
a partir dos primeiros dias após o 25 do mês de abril de 1974, evidenciando
processos eleitorais e composições variados. Em investigação realizada so-
bre essa questão (LIMA, 1992), designei esse período como sendo a “1ª
edição” da gestão democrática, mais ou menos espontânea, sem legislação
que lhe desse cobertura, à margem de qualquer projeto do I Governo Provi-
sório, o qual cedo procurou enquadrar a iniciativa, legalizando-a a posteriori
e generalizando-a às escolas de todo o país (Decreto-Lei nº 221/74, de 27
de maio). De autonomia, curiosamente, não se falava à época, durante o
período revolucionário, enquanto categoria presente no discurso político e
normativo, mas era o que, nas escolas, em graus variados, se praticava (au-
tonomia de facto).
Emergia, então, de forma algo fragmentada e contraditória, a cha-
mada “gestão democrática das escolas”, só mais tarde constitucionalizada
(em 1976), reunindo três características principais: a colegialidade, através
da criação do conselho diretivo enquanto órgão máximo da escola; a de-
mocraticidade, presente no processo de constituição do conselho diretivo,
através da eleição dos seus membros pelos respectivos corpos representa-
dos (docentes, alunos do ensino médio e funcionários); a participação na
gestão das escolas por parte dos representantes dos corpos já referidos e,
mais tarde, também de pais e encarregados da educação dos alunos e, pos-
teriormente, do poder local e de instituições da comunidade.

60
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

À medida que a gestão democrática das escolas foi sendo institucio-


nalizada, sobretudo a partir de 1976 e da ação do I Governo Constitucional
(que designei por “2ª edição” da gestão democrática), foi também sendo
politicamente adaptada ao retorno do poder ao centro político-adminis-
trativo e à correspondente perda de certas margens de autonomia antes en-
saiadas, embora na maioria das casos nunca legalmente autorizadas. Com
a reconstrução do paradigma da centralização em torno do ministério da
Educação (note-se que as escolas portuguesas não se integram em redes
estaduais ou municipais, mas são dependentes do governo nacional), a ges-
tão democrática das escolas foi-se revelando muita gestão, enquanto execu-
ção local das políticas e das injunções administrativas centrais, para pouca
democracia, se entendermos essa como a prática da participação no proces-
so de decisão, ou seja, como autonomia em ação, em direção a certos graus
de autogoverno (LIMA, 2011a, p. 12-55).
Ia, porém, resistindo, por vezes com dificuldade, o carácter colegial e
eletivo do conselho diretivo/executivo, crescentemente subordinado a uma
administração centralizada de feição desconcentrada, cujos novos protago-
nistas passavam a ser as direções regionais de educação, disseminadas pelo
país. Nesse contexto de centralização desconcentrada, embora politicamente
apresentada, desde finais da década de 1980, sob o signo da descentraliza-
ção e do reforço da autonomia das escolas, algumas contradições vieram
ao de cima no que concerne a um conceito, e respectivas práticas, de gestão
democrática em contexto de governação heterônoma das escolas, designa-
damente: uma gestão, em cada escola, formal e processualmente democrá-
tica e colegial, mas com margens de autonomia extremamente reduzidas, o
que contribuiu para a emergência de práticas de participação passiva e de
não participação por parte dos atores escolares (ver as investigações portu-
guesas que referencio em LIMA, 2011a); a eleição dos membros dos conse-
lhos diretivos ou executivos, sobretudo dos docentes e, dentre esses, do pre-
sidente do órgão, entendidos pelos membros da escola como os seus pri-
meiros representantes junto aos serviços centrais e desconcentrados do mi-
nistério da Educação, mas, inversamente, por esses últimos frequentemente
tratados como subordinados, que, em primeira instância, representavam o
poder central junto a cada escola.

61
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

O caráter colegial do conselho diretivo/executivo, constituindo fre-


quentemente um importante contraponto ao centralismo e uma espécie de
amortecedor de certas tendências mais diretivas e até autoritárias, por parte
da administração central e regional, revelou-se, porém, à margem de uma
política efetivamente democrática e de signo descentralizador e autonômi-
co, incapaz, isoladamente, de alterar a face centralizadora da administra-
ção escolar. Colegialidade, democraticidade e participação na organização
escolar, embora indispensáveis a uma governação democrática e à realiza-
ção substantiva da autonomia da escola, revelaram-se, contudo, insuficien-
tes. Exigia-se, para além daqueles elementos e de uma visão insular e proce-
dimentalista sobre a sua natureza, uma política educativa comprometida
com a descentralização democrática e com a construção de um sistema de
administração escolar de características policêntricas. É especialmente num
tal contexto que o carácter eletivo do órgão de direção da escola não é dis-
sociável da sua natureza colegial, sem dúvida constituindo, em conjunto,
um reforço da governação democrática e uma solução também teoricamente
mais congruente, isso por referência à teoria da democracia como partici-
pação, embora outras soluções sejam possíveis e democraticamente aceitá-
veis. A colegialidade democrática, porém, é aquela modalidade que teori-
camente mais se afasta da liderança monocrática não eletiva, eventualmen-
te autocrática, convém recordar.
Vários autores têm destacado as complexas relações entre os elemen-
tos antes apontados. Referindo-se à longa experiência brasileira em torno
do diretor, e também por isso insistindo na indispensável articulação entre
gestão colegial e processo eletivo, a ponto de há muito propor a substitui-
ção do diretor por um órgão colegial chamado “conselho diretivo”, Vitor
Paro (1996, p. 132) observa que “[…] de pouco adianta, como tem mostra-
do a prática, um conselho de escola, por mais deliberativo que seja, se a
função política de tal colegiado fica inteiramente prejudicada pela circuns-
tância de que a autoridade máxima e absoluta dentro da escola é um diretor
que em nada depende das hipotéticas deliberações desse conselho e que
tem claro que este não assumirá em seu lugar a responsabilidade pelo (mau)
funcionamento da escola”. Em Portugal, também as investigações realiza-
das por Sanches em torno da liderança colegial das escolas (cf., entre ou-
tros, SANCHES, 2000 e 2009) têm destacado as relações entre colegialida-

62
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

de, descentralização, dependências mútuas e autonomia democrática, afir-


mando a autora: “[…] uma liderança colegial de escola só se torna possível
numa comunidade escolar descentralizada, cuja autonomia partilhada dê
origem a formas de comunicação entre vários parceiros educativos e permi-
ta a institucionalização de espaços e tempos profissionais orientados para a
criatividade pedagógica e curricular” (SANCHES, 2000, p. 46). Destacan-
do ainda o carácter incontornável da natureza e do alcance das delibera-
ções tomadas nas escolas, por mais colegial e formalmente democrático
que seja o respectivo processo de decisão, também concluí a esse propósito:
“O problema crucial não reside na quantidade de decisões e microdecisões,
ou sequer no carácter colegial e formalmente democrático de muitos pro-
cessos deliberativos que ocorrem nas escolas. Reside, sim, na natureza e
no alcance dessas deliberações e na indispensável distinção entre decidir
orientações políticas e regras ou decidir apenas sobre procedimentos ge-
renciais para a sua execução em conformidade, mesmo assim fortemente
condicionada por um extensíssimo corpus de regras e procedimentos im-
postos aos atores periféricos” (LIMA, 2007, p. 53). É, contudo, esse sentido
predominantemente instrumental que tem imperado nas relações entre o
centro e as periferias, sob uma concepção que tenho designado por autono-
mia heterogovernada, numa aparente contradição que, porém, se exprime nos
cotidianos escolares através dos apelos a uma certa diversidade na execu-
ção periférica (autonomia operacional restrita) das decisões políticas cen-
trais, inteiramente decididas a priori, fora e acima de cada escola concreta
(heterogoverno).

Sob influência do gerencialismo


e da “gestão centrada na escola”
Em meados da década de 1980, as práticas de gestão democrática das
escolas portuguesas revelavam sinais de erosão, atravessando, de resto, uma
crise eleitoral, consubstanciada, entre outros aspectos, por um decréscimo
substantivo na apresentação de listas concorrentes ao conselho diretivo. A
substituição do decreto de 1976 foi anunciada por diversas vezes e por di-
versas vezes foi adiada, mesmo após as propostas apresentadas nesse senti-

63
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

do no âmbito dos trabalhos realizados em 1987-1988 pela Comissão de


Reforma do Sistema Educativo, de que se destacava a criação de um “conse-
lho de direção” em cada escola, justificado à luz de uma perspectiva so-
ciocomunitária que exigia a efetiva descentralização do Ministério da Edu-
cação (FORMOSINHO, et al. 1988 e CRSE, 1988).
Em sentido diverso, antes assumindo uma lógica de desconcentração
que viria a revelar-se um poderoso instrumento de controle sobre as esco-
las, num quadro mais geral de feição modernizadora e eficientista, que, de
certo modo, introduzia pela primeira vez em Portugal alguns dos elemen-
tos emblemáticos do gerencialismo na educação, seria publicado, para vi-
gorar a título experimental e em pouco mais de cinco dezenas de escolas, o
Decreto-Lei nº 172/91, de 10 de maio. Aqui surge a figura de “diretor exe-
cutivo”, designado através de um processo concursal, com seriação de can-
didatos, seguido de eleição pelo conselho de escola, de resto uma modali-
dade discutida e criticada pelo conselho de Acompanhamento e Avaliação
no seu relatório final (CAA, 1997). O estudo realizado por João Barroso
(1995a) para aquele conselho, para além de uma caracterização do perfil
dos novos diretores executivos, concluía pela sua acrescida visibilidade e
pela intensificação das suas relações externas, ao mesmo tempo que desta-
cava a sua maior concentração em tarefas de gestão operacional, com uma
reduzida intervenção pedagógica e uma relativa desvalorização da função
educativa do diretor junto aos alunos (ibid., p. 66-67).
Não generalizado o modelo de 1991, por proposta daquele conselho
e decisão do poder político, um novo estudo viria a ser produzido (BAR-
ROSO, 1997), a que se seguiu, não sem registar importantes descontinuida-
des face às propostas antes apresentadas, o Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4
de maio, instituindo uma assembleia e um conselho executivo em substitui-
ção ao conselho diretivo criado pela legislação de 1976, bem como a cate-
goria “contrato de autonomia” em duas distintas fases. O legislador, embo-
ra cautelosamente evitando impor a figura de diretor, pela qual exprimia
implicitamente a sua preferência, decidiu admiti-la em pé de igualdade com
o conselho executivo, concedendo a cada escola a possibilidade de optar
por um ou por outro, opção que só em raros casos veio a incidir no órgão
unipessoal. Ficava legalmente consagrada, embora em regime opcional, a
figura do diretor, apoiado por dois adjuntos, para todas as escolas e agrupa-

64
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

mentos de escolas, por iniciativa de um governo do Partido Socialista (par-


tido de centro-esquerda): um marco jurídico que não deixaria de ter conse-
quências no futuro e que, de novo, remetia a certas concepções de liderança
escolar e de autonomia das escolas inspiradas na “Nova Gestão Pública” e
nalgumas de suas mais conhecidas apropriações no âmbito da administra-
ção escolar. Elementos igualmente presentes, embora com maior clareza
de propósitos, nos programas eleitorais do Partido Social Democrata (par-
tido de centro-direita) e do Centro Democrático Social (partido de direita)
às eleições legislativas de 2002, bem como nos programas dos XV e XVI
Governos.
Dez anos passados, de novo um governo do Partido Socialista (XVII
Governo) viria a intervir no modelo de gestão das escolas e agrupamentos
de escolas, mantendo assim uma tradição que remonta a 1976, uma vez
que nenhum governo de outro partido político consagrou ainda qualquer
modelo de administração e gestão generalizado às escolas dos ensinos bási-
co e médio. Dessa feita se consagrará a figura de diretor através do Decreto-
Lei nº 75/2008, de 22 de abril, num quadro de referência que, ao longo de
três décadas, evoluiu politicamente desde a celebração das virtudes da ges-
tão democrática e da colegialidade, enquanto expoentes máximos da de-
mocracia representativa nas escolas (ver preâmbulo do Decreto-Lei nº 769-
A/76), até o elogio das virtudes das lideranças boas, fortes e eficazes, segundo
as palavras do legislador, concretizadas “pela criação do cargo de diretor,
coadjuvado por um subdiretor e um pequeno número de adjuntos, mas
constituindo um órgão unipessoal e não um órgão colegial” (ver preâmbu-
lo do Decreto-Lei nº 75/2008).
Sem estudos prévios, sem investigação que lhe desse respaldo e, ain-
da, sem elaboração política e ideológica capaz de contribuir para a legiti-
mação daquela medida, a centralidade conferida à figura de diretor como
“rosto” e primeiro responsável por cada escola ou agrupamento inscreve-se
num racional que aproveita a erosão, já referida, da gestão democrática e
da sua associação à colegialidade, que, historicamente, representava um
dos mais importantes símbolos da ruptura com a liderança unipessoal de
reitores e diretores nomeados pelos governos, para contribuir para o seu
ocaso. Essa ruptura é ainda, no entanto, parcial, uma vez que, afastando a
colegialidade do órgão de administração e gestão, a mantém relativamente

65
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

ao conselho geral, até como resposta ao respectivo princípio constitucio-


nal. Inscreve-se, porém, na lógica da superioridade da gestão unipessoal,
da visão do líder e do seu respectivo projeto para a organização, o qual
exige o direito de gerir e de constituir uma equipe de gestão com pessoas da sua
confiança e por si nomeadas, podendo mais tarde responder e ser responsa-
bilizado pelos resultados obtidos, em primeira instância pelo conselho ge-
ral, mas sobretudo através de novos processos de accountability e de avalia-
ção externa, ou seja, segundo algumas das mais relevantes dimensões pro-
postas pela “Nova Gestão Pública” e pelas ideologias gerencialistas de tipo
empresarial. Mas talvez ainda mais importante do que a quebra do princí-
pio da colegialidade terá sido o fenômeno de concentração de poderes
no(a) diretor(a) e a prerrogativa que lhe foi concedida de escolher pratica-
mente todos os detentores de cargos de gestão na organização, a que se
deve juntar a possibilidade de, em certas circunstâncias, se poder vir a
manter no cargo até o limite de dezesseis anos, em ambos os casos confi-
gurando uma situação que não tem paralelo noutras organizações educati-
vas, como universidades e politécnicos, bem como noutras organizações da
administração pública em Portugal. Concentração de poderes, livre nome-
ação e demissão de gestores intermédios e outros, período tendencialmente
bastante alargado de manutenção no cargo, representam elementos que
poderão remeter para um período de transição a que se seguirá, eventual-
mente, um novo ordenamento assente na profissionalização do(a) diretor(a)
escolar, com base em formações prévias certificadas e baseadas em padrões,
bem como em processo concursal ou, mesmo, em processo de nomeação.
Em tal caso, passando a coincidir mais tipicamente com os postulados da
“Nova Gestão Pública”, que adota como referencial considerado mais ra-
cional, eficaz e eficiente a gestão privada de tipo empresarial, essa vista
como regeneradora da administração pública, cujo carácter burocrático seria
imanente, e como capaz de vencer as resistências à mudança, que seriam
típicas do corporativismo dos seus profissionais.
Recusando as perspectivas da burocracia profissional, enquanto ali-
ança no contexto do Estado-providência e de políticas de índole social-de-
mocrata, bem como as abordagens sociocomunitárias, agora representadas
como radicalmente democráticas e autonômicas, típicas de modelos de po-
líticas sociais de inspiração crítica, emerge como alternativa a defesa da

66
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

“teoria da escolha pública”, que necessariamente assenta na competitivida-


de entre escolas, induzida por novos processos de avaliação enquanto ins-
trumentos privilegiados de regulação de tipo mercantil e de metarregula-
ção por parte de um Estado neoliberal, também designado por Estado-su-
pervisor ou mesmo por “Estado gerencial” (CLARKE; NEWMAN, 1997).
Este referencial político-ideológico, que vem sendo investigado há mais de
duas décadas, remete a uma constelação de elementos de que sobressaem:
a cultura e o ethos de tipo empresarial; a defesa da privatização, seja em
sentido pleno ou como modo de gestão a introduzir nas organizações pú-
blicas, designadamente através da criação de mercados internos no seu seio;
o elogio da liderança individual e da respectiva visão e projeto, como ex-
pressão do direito de gerir, da livre iniciativa e do empreendedorismo na
administração pública; a eficácia e a eficiência definidas segundo a racio-
nalidade econômica; a livre escolha, em ambiente de mercado ou quase mer-
cado competitivo, num quadro de referência que coloca o cliente e o consu-
midor no centro das opções consideradas racionais; a clareza da missão da
organização e a definição objetiva e passível de mensuração dos seus objeti-
vos, escrutináveis através de complexos e rigorosos processos de avaliação.
As reformas gerencialistas da educação pública em diversos países,
embora com impactos variados e apropriações diversas, têm, de acordo com
a investigação disponível, destacado um vasto conjunto de dimensões, en-
tre as quais: centralização da formulação das políticas educativas e dos pro-
cesso de decisão sobre o currículo e a avaliação, embora invocando siste-
maticamente a descentralização, a devolução e a autonomia da escola; a
descentralização de certas competências, embora principalmente de cará-
ter técnico e operacional e, por vezes, financeiro, alargando as fontes de
financiamento a entidades privadas e responsabilizando de forma crescen-
te as famílias dos alunos; menor relevância atribuída a processos de contro-
lo democrático e de participação nos processos de tomada das decisões,
bem como crescente desconfiança relativamente a órgãos colegiais, geral-
mente vistos como fontes de desresponsabilização, de composição conside-
rada numerosa e paralisante, de funcionamento pesado e lento; reforço do
poder dos gestores, assessores e outras tecnoestruturas em prejuízo da in-
fluência dos profissionais, educadores e professores, bem como da comuni-
dade e da diversidade das suas organizações e dos seus interesses, em geral

67
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

substituídos pela intervenção de representantes restritos dos stakeholders, pelo


controle dos clientes, pelas parcerias com o poder econômico e empresarial;
governação e decisões políticas baseadas na evidência, instituindo formas
de regulação de tipo mercantil; reforço das estruturas de gestão de tipo ver-
tical e concentração de poderes no líder formal.
Apresentado e legitimado como uma alternativa de tipo pós-burocrá-
tico, o gerencialismo revela-se, com frequência, mais gestão para menos
democracia, sendo responsável por um aumento exponencial de certas di-
mensões da burocracia racional, estudadas por Max Weber, mas também
mesmo de dimensões menos racionais e mais coincidentes com a aceção
pejorativa e de senso comum. Fenômeno visível nas escolas portuguesas, o
exagero dos traços da burocracia weberiana resulta numa burocracia esco-
lar radicalizada, ampliada ou, como prefiro chamar-lhe, numa hiperburo-
cracia (Lima, 2012), aliás induzida e reforçada pelas novas tecnologias da
informação e comunicação, que emergem como uma espécie de nova fonte
de controle centralizado, eletrônico e aparentemente difuso, contudo pode-
roso e onipresente.
Entre as dimensões teoricamente associáveis à hiperburocratização
escolar, a merecer estudo empírico, podem referir-se: a substituição da lide-
rança colegial pela liderança unipessoal, a que falta a perda do caráter ele-
tivo para se aproximar do que Weber designou por “burocracia monocráti-
ca” (WEBER, 1984, p. 176-178); a centralização e a concentração de pode-
res de decisão; o regresso à organização em linha, à maior hierarquização e
à divisão do trabalho entre gestores e professores; a crescente relevância do
saber pericial e do poder da tecnoestrutura, dos adjuntos e assessores, das
instâncias especializadas na prestação de serviços técnicos; a obsessão pela
eficácia e eficiência, pela escolha ótima e pela performance competitiva; a
centralidade dos processos de gestão da qualidade, de avaliação e de men-
suração sob inspiração neopositivista (rankings, escolas de excelência, ava-
liação externa, testes estandardizados, padrões, etc.); os processos de cen-
tralização informática e de taylorismo on line, com a difusão de novas cate-
gorias mentais, reproduzidas sem disputa, e de conceitos mais ou menos
naturalizados.
Admite-se, assim, que o gerencialismo vigente se revele incapaz de
lutar contra a burocratização da realidade escolar e de, pelo contrário, po-

68
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

der engendrar uma radicalização burocrática capaz de invadir o cotidiano


dos professores e de alterar profundamente as escolas enquanto locais de
trabalho, de ensino e de aprendizagem.
Em qualquer caso, o padrão de gestão democrática, ou de tipo cole-
gial-participativo, que é ainda o referencial normativo da Constituição da
República (de 1976) e da Lei de Bases do Sistema Educativo (de 1986), vem
sendo afastado e substituído por um padrão de gestão de tipo tecnocrático
e racionalista, que concebe as organizações escolares como instrumentos
técnico-racionais em busca de objetivos certos e consensuais, de resto indu-
zido por várias organizações transnacionais e supranacionais (da OCDE à
União Europeia, por exemplo). Nesse contexto político e organizacional, a
gestão democrática das escolas, que nunca se constituiu como uma modali-
dade de governação avançada em termos de autonomia e participação de-
mocráticas, revela-se agora uma espécie de utopia política, uma ilusão ge-
nerosa, mas enganadora, herdada da revolução, que deve ser abandonada
por uma democracia madura e em esforço de modernização. Em termos de
gestão, é representada como constituindo uma irresponsabilidade ao diluir
poderes por um coletivo, desresponsabilizando os atores individuais e ad-
mitindo lógicas colegiais entre professores. Depois de uma longa fase de
erosão, e agora em plena fase de ocaso, a gestão democrática das escolas
arrisca-se a dar lugar a uma pós-democracia gerencial.
O racional político e administrativo, explícito e implícito, do Decre-
to-Lei nº 75/2008, não é compreensível fora da influência da “gestão cen-
trada na escola” ou “escola autogerenciada”, embora com a especificidade
portuguesa de manter incólume uma administração fortemente centraliza-
da, de feição desconcentrada e de orientação frequentemente autoritária e
tecnocrática. Contexto em que o repetido discurso da autonomia da escola
não pode deixar de assumir contornos retóricos, mas onde, não obstante,
emerge o discurso da importância do líder unipessoal, agora dotado de um
“self ” empresarial que vem sendo objeto de elogio e promoção, em certos
países, há mais de três décadas (SMYTH, 2011). Com diferenças ainda
consideráveis, é no entanto visível, entre nós, a crescente defesa do protago-
nismo do(a) diretor(a) como pivot de uma visão que se baseia no elogio do
setor privado e empresarial, de um estilo empreendedor semelhante ao de
um “diretor geral” ou de um “chief executive officer” numa empresa, agen-

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LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

te de um processo de re-hierarquização das relações de poder, profissionais


e pedagógicas, em prejuízo da ampliação da agência e autonomia dos pro-
fessores, em boa parte resultante da introdução de mecanismos de controle
inspirados pela educação baseada na evidência (cf., entre outros trabalhos
recentes, relativos a diversos países, ARREMAN & HOLM, 2011; COURT
& O’NEILL, 2011; O’NEIL, 2011; SHAHJAHAN, 2011). E mesmo quan-
do a realidade empírica das escolas portuguesas e, talvez, a maioria dos
diretores de escolas e agrupamentos se revelam ainda algo distantes, quan-
do não em situação de resistência, face ao modelo politicamente induzido
de liderança hierarquizante, isso não significa que tal modelo deixe de ser
promovido, como tem sido, por exemplo, através dos relatórios de avalia-
ção externa (cf. TORRES & PALHARES, 2009; LIMA, 2011b), em que as
culturas fortes e integradoras tendem a ser elogiadas e atribuídas, como
produto ou artefato, à ação esclarecida e competente do líder, qual gestor
cultural que, em pouco tempo, já faria sentir a sua influência enquanto agente
de socialização, integração e estabilização, rumo a metas consensualmente
estabelecidas e funcionalmente perseguidas por todos os subordinados.

Do organograma achatado a seu alongamento vertical


Analisemos, ainda que brevemente, alguns dos mais relevantes aspe-
tos que marcam o processo de re-hierarquização e concentração de pode-
res, introduzidos pelo Decreto-Lei nº 75/2008, por comparação com o an-
terior Decreto-Lei nº 115-A/98. Esse foi marcado pelo conceito de escola
“enquanto centro das políticas educativas” e, ainda, pela proposta de assi-
natura de contratos de autonomia, em duas distintas fases, muito limitado
em termos da sua realização efetiva e, apenas, de primeira fase. Em termos
de liderança escolar, o conceito central adotado foi o de “direção executi-
va”, designação ampla e suficientemente ambígua para compreender as duas
modalidades previstas: o conselho executivo (colegial) e o(a) diretor(a) (uni-
pessoal). O mandato do conselho executivo, ou diretor, era de três anos, e o
presidente daquele órgão, ou o(a) diretor(a), não assumia por inerência de
funções a presidência do conselho pedagógico, embora pudesse vir a ser
eleito dentre os seus membros docentes. O processo de designação dos titu-
lares de cargos de gestão pedagógica intermédia não sofria alteração e, como

70
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

tal, com a tradicional exceção dos “diretores de turma” (classe), os restan-


tes continuavam a ser eleitos pelos pares, e a coordenação dos estabeleci-
mentos de ensino agrupados, quando prevista, era assumida por docentes
eleitos em cada escola agrupada, em representação dessa.
O organograma resultante permaneceu semelhante ao que era na
anterior legislação de 1976, naturalmente com a exceção significativa da
introdução de um órgão superior, a assembleia, embora muito longe de
constituir um órgão de direção estratégica da escola, o que exigiria a refor-
ma da administração central e regional em direção à sua progressiva des-
centralização. Porém a ação política e administrativa do Ministério da Edu-
cação introduziu, de facto, alterações substanciais à prática desse modelo,
isto é, embora, numa primeira fase, mantendo formalmente inalterado o
modelo decretado, iniciou mudanças de fundo no modelo praticado, espe-
cialmente no que concerne às relações com as escolas. Não apenas através
do conselho das escolas, criado pela nova lei orgânica do Ministério, mas
especialmente através de um crescente protagonismo atribuído aos presi-
dentes dos conselhos executivos, na prática tratados já, avant-la-lettre, como
responsáveis pelas escolas, como órgãos unipessoais, e não como presiden-
tes e representantes dos órgãos colegiais que presidiam. O diálogo mais
personalizado, os contactos políticos mais estreitos e, quando necessário,
menos dependentes da mediação administrativa dos departamentos cen-
trais e das direções regionais, um discurso político mais responsabilizante
daqueles atores escolares foram criando uma prática, um discurso e um
ambiente que indicavam a emergência da figura de diretor escolar. Tam-
bém o fenômeno de reificação das escolas destacou a imagem do novo lí-
der, simultaneamente reforçado no discurso político e tomado por esse como
interlocutor privilegiado e legítimo, embora, na prática da administração,
tratado como um subordinado administrativo e, por essa via, despolitiza-
do. Recorde-se que, não obstante os conflitos e as manifestações docentes
contra o modelo instituído de avaliação de desempenho de professores, o
poder político procurava tranquilizar o país, assegurando que as escolas já
estavam a cumprir a legislação, que as escolas prosseguiam as reformas
encetadas e que, em suma, os respectivos responsáveis contradiziam, na
prática, os discursos e as ações sindicais e associativas dos docentes. As
escolas eram representadas como entidades mais ou menos homogêneas,

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LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

para além da maioria dos seus membros e, especialmente, dos docentes,


não habitadas por atores em conflito e por agendas divergentes, antes coin-
cidindo com a ação, política e administrativamente subordinada, de direto-
res executivos pessoalmente pressionados e responsabilizados pelo gover-
no. Sem dúvida, um processo, poucas vezes tão claro e intenso, de governa-
mentalização da administração das escolas.
Iniciava-se, por via informal, um reforço da verticalização externa e
interna da administração das escolas através de duas vias aparentemente
contraditórias, mas articuladas: por um lado, na sequência de um novo pro-
tagonismo atribuído aos líderes formais das escolas, induzindo formas de
hierarquização e de administração mais fortemente articuladas entre supe-
riores e subordinados escolares, mas, por outro lado, isolando os líderes ou
remetendo-os para relações debilmente articuladas em termos de represen-
tatividade das escolas junto ao poder central e, por essa via, enfraquecendo-
os do ponto de vista político e denegando-lhes o verdadeiro estatuto de
líderes quando em relação com o ministério. Um ministério que, apesar do
novo discurso de valorização das lideranças individuais, continuava, e con-
tinua hoje, a não tratar os diretores escolares como líderes das escolas. A
cada problema, dúvida ou dificuldade, o Ministério da Educação assume,
numa espécie de horror ao vazio, a função de controle e de normativização
dos mais elementares aspectos do cotidiano de cada escola, lembrando a
cada instante que a direção de cada escola portuguesa reside no centro do
sistema e não no interior de cada escola concreta. Essa natureza atópica da
direção da escola, fora de seu lugar, que seria cada escola, deslocalizada
para as estruturas centrais e pericentrais do ministério, embora tradicional
e formalmente consagrada desde 1976, foi mais ou menos tornada invisível
através de um organograma ilusoriamente achatado, com poucos níveis
hierárquicos, devido sobretudo à natureza colegial e eletiva dos órgãos das
escolas. Considerando, contudo, a sua direção externa e, agora, o protago-
nismo concedido ao órgão unipessoal diretor e à sua concentração de pode-
res, outrora limitada pela ação de outros órgãos colegiais e pela eleição dos
titulares da maioria dos cargos, o organograma da escola não apenas revela
mais facilmente a condição falsa do seu tradicional achatamento, mas tam-
bém deixa mais claro o seu recente alongamento vertical.

72
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A tradução normativa e estrutural da referida mudança é a aprova-


ção do Decreto-Lei nº 75/2008, consagrando um diretor mais solitário e
mais poderoso sobre o interior da escola, embora possivelmente numa situa-
ção igualmente mais solitária e mais subordinada perante o poder político e
a administração, até porque mais insular e à margem da dinâmica colegial
do anterior conselho diretivo ou executivo. Um diretor potencialmente mais
forte para dentro (espaço sempre representado como significando para bai-
xo), mas mais fraco para fora ou para cima. Teoricamente, uma espécie de
“elo-de-ligação” (“linking-pin”, na terminologia clássica de Rensis LIKERT,
1979), simultaneamente mais poderoso e mais subordinado, concentrando
sobre si mais atribuições e competências no plano do funcionamento da
organização e da supervisão da execução das políticas educativas centrais,
embora ao mesmo tempo concentrando sobre si todas as atenções da admi-
nistração central num estatuto de grande ambiguidade. Uma espécie de
líder hierárquico, interno, mais poderoso, embora externamente subordi-
nado, de quem se exige um padrão de liderança executiva eficaz – uma
liderança forte e boa, capaz de ser aceita como o “rosto” da escola, talvez
mais ainda pela hierarquia do ministério do que, propriamente, pelos ato-
res escolares.
A estreita articulação entre liderança individual, liderança boa, lide-
rança forte e liderança eficaz é consideravelmente frágil em termos de argu-
mentação, não remetendo para princípios teóricos, para dados de investiga-
ção ou argumentos que possam ser observados e debatidos. Particularmen-
te face a uma realidade histórica e cultural de signo autoritário, muito mar-
cada, também nas escolas, por lideranças individuais fortes e eficazes, mas
não necessariamente boas do ponto de vista democrático.
As abordagens gerencialistas, no entanto, pretendem compensar em
ganhos de eficácia e eficiência aquilo que perdem em termos de legitimida-
de democrática, uma vez que essa se encontra em plena crise. Numa análi-
se de literatura recente sobre liderança escolar de feição gerencialista em vá-
rios países, Towsend (2011) observou a centralidade do uso da terminolo-
gia de mercado, dos processos de prestação de contas, da competição entre
escolas, alunos, recursos e resultados obtidos, da importância do marke-
ting e da projeção da imagem de cada escola, da recolha de evidências e
provas, da construção de narrativas de interpretação e legitimação de cer-

73
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

tos fatos, do conhecimento detalhado da legislação escolar e das injunções


do governo e da administração. Em geral, também as lideranças intermédias
tendem a não ser concetualizadas enquanto tal, mas antes como correias de
transmissão da visão e das regras do líder, isto é, obtendo legitimidade indi-
reta ou delegada em função da sua articulação funcional e dependente da
liderança formal, mas já não a partir de processos democráticos e colegiais,
que exprimem as orientações e a autonomia pedagógica dos profissionais
ou os interesses legítimos dos atores periféricos.
Isso significa que as lideranças democráticas colegiais, tanto ou mais
ainda do que as lógicas de tipo social-democrata de feição burocrático-re-
presentativa, tal como todas as formas de uma certa colegialidade subordi-
nada e dependente, têm vindo a perder adeptos políticos a favor de lideran-
ças de tipo hierárquico e gerencial. Muito longe, portanto, do conceito de
“liderança distributiva” em contexto de uma escola que ensaia a democra-
cia deliberativa, o comprometimento cívico e a participação ativa, a parti-
lha de poderes, a comunidade de decisores numa perspectiva sociocomuni-
tária (cf. FUSARELLI, KOWALSKI & PETERSEN, 2011), para alguns
um modelo de governação não apenas mais democrático, mas, possivel-
mente, o único capaz de responder às exigências que hoje se colocam a
uma escola mais autônoma e deliberativa, capaz de responder positivamente
a toda gama de novos problemas que enfrenta e à diversidade social e cultu-
ral, sem precedentes, do seu público.

Diretor(a): líder executivo eficaz?


À luz do Decreto-Lei nº 75/2008, o(a) diretor(a) concentra sobre si
vinte e cinco competências, preside o conselho pedagógico por inerência,
tudo parecendo girar em seu torno, fragilizando as estruturas colegiais exis-
tentes e pondo fim à quase totalidade dos processos de escolha democrática
nas escolas, salvo aqueles que respeitam ao conselho geral, embora tam-
bém aqui existam já indícios de que faz sentir, estrategicamente, a sua ação,
especialmente no que concerne à representação docente. O diretor passa,
agora, a nomear e a demitir livremente o(a) subdiretor(a), assessores, coor-
denadores dos departamentos (embora de forma mediada), coordenadores
dos estabelecimentos agrupados, numa lógica gestionária de um perfil, um

74
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

projeto, uma equipe de gestão, remetendo para algo semelhante ao princí-


pio da “unidade de comando”, proposto no início do século XX por Henri
Fayol (1984). Sobretudo os professores correm o risco de ficar reféns do(a)
diretor(a), sem órgãos próprios e autônomos, sem intermediação de tipo
colegial, no quadro de uma estrutura interna extremamente centralizada
na figura de diretor.
O processo de eleição do(a) diretor(a) retorna parcialmente ao outro-
ra estipulado no Decreto-Lei nº 172/91 através do então muito criticado
processo concursal, seguido de eleição, assente entre outros aspectos na
apresentação de um “projeto de intervenção” para a escola, em potencial
tensão com o projeto educativo já existente. Do ponto de vista das perspec-
tivas gerencialistas, a combinação de um processo concursal e de um pro-
cesso eleitoral pode ser vista como uma cedência, eventualmente transitó-
ria, a um dos elementos da gestão democrática. Apenas o processo de con-
curso e/ou, a nomeação ministerial seriam teoricamente mais congruentes
com aquelas perspectivas, ainda que se deva observar que mesmo o proces-
so eleitoral do(a) diretor(a) é já limitado a um pequeno colégio eleitoral,
constituído pelos membros do conselho geral, não sendo o(a) diretor(a)
eleito pela generalidade dos membros da escola ou dos professores. Em
todo caso, a não ser por imperativo constitucional, a eleição do diretor po-
deria ser dispensável, sobretudo à luz da história da administração escolar
portuguesa. Recordem-se as críticas do ministro Cordeiro Ramos, em 1933,
à eleição dos reitores durante a I República, ou seja, nas suas palavras, à
“subordinação do reitor aos professores, corolário inevitável da eleição”,
situação em que os reitores “não eram, nem podiam ser, responsáveis pela
direção do liceu”, pois, esclarecia, “como era natural, os professores mais
capazes de defender os direitos do ensino ficavam não raras vezes arredados
das reitorias, sendo preferidos aqueles que, com maior docilidade, cediam
aos chamados direitos adquiridos dos seus eleitores” (cf. BARROSO, 1995b,
p. 281). O nosso apego aos ideais democráticos não é, realmente, um ele-
mento característico da cultura e educação portuguesas, e hoje aquele tipo
de argumentos ressurge, embora com menos frontalidade política e mais
sob a aparência da razão técnica e dos imperativos da gestão eficaz. Como
sucede com o já referido processo de combinação entre eleição do(a)
diretor(a) e sua possível recondução pelo conselho geral, sendo apenas im-

75
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

pedido de se candidatar ao exercício de “um quinto mandato consecutivo


ou durante o quadriênio imediatamente subsequente ao termo do quarto
mandato consecutivo” (artigo 25, nº 4), numa formulação algo crítica, que
tem escapado a muitos observadores, especialmente depois de se poder ler,
no mesmo artigo, nº 1, que “o mandato do diretor tem a duração de quatro
anos”. Em qualquer caso, uma medida destinada, segundo o legislador, a
garantir, para além do “dinamismo”, a “continuidade” das boas lideran-
ças.
Foram criadas condições formais para uma alteração profunda das
relações de poder nas escolas, sem alterar a subordinação da escola, e mes-
mo do(a) diretor(a), enquanto órgão de administração e gestão, face ao poder
central. O diretor pode revelar-se extremamente fraco, especialmente pe-
rante a tutela, representado por essa como o escalão último da administra-
ção desconcentrada do ministério, agora com acrescida capacidade para
penetrar no interior de cada escola e daí encontrar o seu primeiro represen-
tante, uma espécie de administrador delegado, ainda que incongruentemen-
te, para já, porque eleito pelo conselho geral.
Identificar o(a) diretor(a), como faz o legislador no Despacho nº 9744/
2009, com a função de “direção superior” parece um equívoco, mesmo que
seja apenas por contraste com os coordenadores dos estabelecimentos agru-
pados e os coordenadores dos departamentos, cujas funções seriam, segun-
do aquele normativo, de “direção intermédia”. Que restaria, em tal qua-
dro, para o conselho geral? E se o(a) diretor(a) exerce a “direção superior”,
o que exerceriam os serviços centrais e pericentrais do ministério? E o go-
verno?
Mas o cânone gerencialista insiste no protagonismo do líder executi-
vo eficaz, de acordo com a teoria organizacional, desde a Escola das Rela-
ções Humanas, a partir da década de 1930. Chester Barnard (1979), no seu
livro As funções do Executivo, de 1938, identificava a liderança com a “superio-
ridade individual” (ibid., p. 251) e com a “capacidade pessoal relativamente
alta” (ibid., p. 274), atribuindo ao executivo a coordenação da ação, a for-
mulação de propósitos e objetivos e o controle e a supervisão.
Peter Drucker, em 1967, no seu conhecido livro intitulado O Executivo
Eficaz, acentua a capacidade de o executivo tomar decisões, não podendo
esse apenas cumprir ordens. Porém admite que o gestor possa encontrar-se

76
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

numa posição de subordinação, afirmando: “O gestor mais subordinado,


sabemos como, pode fazer o mesmo tipo de trabalho que o presidente da
empresa ou o administrador da agência governamental; isto é, planejar, or-
ganizar, integrar, motivar e mensurar. O seu âmbito pode ser bastante limita-
do. Mas, dentro da sua esfera, ele é um executivo” (DRUCKER, 1967, p. 9).
Em nosso caso, o diretor escolar poderá, portanto, ser um executivo
subordinado, no contexto de uma administração centralizada, embora, por
outro lado, mais poderoso perante a generalidade dos atores escolares, ago-
ra vistos como seus subordinados. Curiosamente, o livro de Chubb e Moe
(1990, p. 56) – Políticas, Mercados e as Escolas da América –, obra seminal do
gerencialismo, admite aquilo mesmo, afirmando os seus autores: “Talvez
seja melhor pensar no diretor de escola pública como um gestor do nível
mais baixo enquanto líder. No setor público, o diretor é um burocrata com
responsabilidade de supervisão perante uma agenda pública. A maior parte
das decisões importantes acerca da política foi tomada já pelas autorida-
des; elas definem os objetivos e espera-se que o diretor os administre”. Con-
cluem, por isso, logo a seguir (ibid.): “Os verdadeiros líderes da escola pú-
blica são as autoridades, não o diretor”.
Por referência à educação superior e à Lei nº 62/2007, comparam-se
agora reitores de universidades e presidentes de institutos politécnicos a
chief executive officers (CEO) ou diretores-gerais, remetendo-lhes o encargo
de definir a visão e a estratégia, de exercer o poder de decisão e de alocar os
recursos, de definir os projetos prioritários. Uma liderança eficaz, em ter-
mos políticos e administrativos, servida por uma competente tecnoestrutu-
ra. No caso das escolas básicas e do ensino médio, embora sob um discurso
político e gerencial semelhante, o contexto de autonomia é absolutamente
distinto. Aqui, o diretor parece assemelhar-se a um COO, mais do que a um
CEO, isto é, a um chief operating officer ou executivo-chefe de operações. Ou
seja, a um gestor do dia a dia, a um gerente-geral que executa a estratégia
superior, implementa, informa a hierarquia, mesmo detendo alguma dis-
cricionariedade técnica e uma certa capacidade de supervisão do pessoal
que se encontra sob sua gestão direta. Trata-se de alguém, nos termos do
Decreto-Lei nº 75/2008, que é responsável por “executar localmente as
medidas de política educativa” e, por isso, de alguém a quem, individual-
mente, se pode passar a “assacar responsabilidades”; uma garantia de que

77
LIMA, L. C. • Diretor(a) de escola pública: unipessoalidade e concentração do poder...

ele, ou ela, passará a ser muito mais exigente com os seus subordinados,
passando, igualmente, a assacar-lhes as responsabilidades que lhes caibam.
Cenário em que a escola, como referia um dos professores entrevistados
por Ferreira (2010, p. 191), se pode transformar “numa ditadura com uma
cara de democracia. Porque tudo se centra na figura do diretor”.
Também o predomínio da linguagem económica tem sido destacado,
no que concerne à caracterização das funções do executivo escolar e à sua
formação, destacando as competências de ordem técnico-gestionária e a
importância das “boas práticas” (cf. EACOTT, 2011), em geral baseadas
numa visão descontextualizada da liderança e na hegemonia da razão ins-
trumental, ignorando uma dimensão central da liderança escolar: aquela
que, transcendendo uma visão mecanicista, admite não se tratar apenas de
um meio para atingir determinados fins ou resultados, mas também de uma
ação intrinsecamente pedagógica, isto é, de um testemunho educativo (COS-
TA, 2000, p. 27).
O que a focalização da administração das escolas nessas dimensões
técnico-instrumentais e hiperburocráticas, por um lado, e de concentração
de poderes, por outro, pode significar, não só em termos de governação
democrática das escolas, mas também em termos educacionais, é muito
mais do que tem sido admitido e, entre outros elementos, pode incluir: per-
da do que resta da (reduzida) autonomia pedagógico-didática dos professo-
res, maior escrutínio e controle da sua ação na sala de aula, menos seguran-
ça e confiança para o risco, a tentativa-erro e, em suma, para a sua inscrição
educativa e pedagógica, fora de um regime de medo, de vigilância e de
alienação.
As investigações em curso e outras a realizar no futuro incidirão, cer-
tamente, quer sobre as invariantes estruturais antes referidas e sobre as lógi-
cas induzidas pelos diversos atores políticos e administrativos centrais, quan-
to sobre as lógicas próprias, e igualmente divergentes, dos atores escolares
periféricos; sobre os macropoderes da administração e sobre as micropolíti-
cas e os micropoderes em contexto organizacional; sobre o plano das orien-
tações para a ação, segundo distintos níveis e processos de decisão e o pla-
no da ação efetivamente atualizada em contextos escolares específicos.
Admitindo, assim, as influências das reformas políticas e organizacionais

78
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

empreendidas, mas também as capacidades, organizacionalmente ancora-


das, de os atores escolares produzirem orientações e regras próprias, não
necessariamente convergentes com as primeiras, confirmando empiricamen-
te a condição teórica da escola não apenas enquanto locus de reprodução,
mas também como locus de produção.

Referências
ARREMAN, I. E.; HOLM, A.-S. Privatisation of public education? The emergence
of independent upper schools in Sweden. Journal of Education Policy, Vol. 26, n. 2,
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81
Reforma do Estado e políticas públicas:
a governação em ação
Notas de um estudo no campo da
Educação e Formação de Adultos em Portugal

Fátima Antunes

Introdução
Numa pesquisa anterior, sugerimos que, pelo menos desde a criação
do subsistema de Escolas Profissionais em 1989, encontramos o estabeleci-
mento de novas modalidades de provisão da educação, envolvendo altera-
ções no papel do Estado, no que constitui a educação e no direito social e
humano que lhe é aplicável (ANTUNES, 2001, p. 190; 2004, p. 235). Com-
preender as políticas públicas enquanto formas de intervenção (do Estado)
na sociedade para responder, condicionar e impulsionar mudanças sociais,
eis a questão que nos move ainda hoje a estudar certas dimensões e movi-
mentos de políticas de educação; atentamos em particular para modalida-
des de provisão que se distanciam do que tipicamente consideramos ser o
sistema educativo, público, gratuito, com um corpo profissional específico
(de docentes) e uma distribuição geográfica relacionada com a demografia
do território nacional considerado.
Desde há várias décadas, com ritmos distintos de acordo com as lati-
tudes consideradas, intensificou-se a atividade do Estado na criação dessas
novas modalidades de provisão de educação (e outros bens e serviços que
corporizam direitos sociais) (cf., entre outros, ADRIÃO & PERONI, 2005;
BALL & YOUDELL, 2007). Em Portugal, são os anos 1990 e as áreas da
educação profissional, da educação de infância e, posteriormente, da edu-
cação de adultos que vêm suceder-se nessa reordenação da governação acom-
panhada, no primeiro e no último casos, de formas de intervenção do Esta-

82
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do assumidamente temporárias, compaginadas com programas viabiliza-


dos por financiamentos da União Europeia. Também nos dois casos assis-
timos a um apelo bem-sucedido do Estado à mobilização social em torno
da educação, quer em termos das entidades envolvidas na realização das
políticas no terreno, quer em termos dos destinatários. Ainda nos dois ca-
sos e a uma distância de 10 anos, pretendeu-se expandir a oferta educativa
e as populações abrangidas, sem ampliar o perímetro do Estado de Bem-
estar. As vias adotadas seguem os traços gerais de políticas de âmbito bas-
tante alargado, muito diversas, conhecidas e analisadas desde os anos 1990
sob a designação de nova gestão pública, gerencialismo ou Estado gestionário.
Nesse sentido, essas medidas políticas revelam uma agenda política nacio-
nal estruturada por processos, dinâmicas e pressões globais – por exem-
plo, a constituição da governação neoliberal como nova matriz de regula-
ção social num quadro de reorganização do capitalismo1 –, frequente-
mente mediados (impulsionados e filtrados) pela União Europeia (UE).
Num estudo recente, sugerimos que, em Portugal e com intensidade
crescente durante a primeira década do século XXI, o campo das políticas
públicas vem sendo modelado por movimentos gerados “no seio de ten-
sões, disputas, derrotas e contradições”, de “evasão do Estado à obrigação
de garantir o direito social e humano das populações adultas” à educação,
enquanto amplia para patamares inéditos a oferta pública de educação e a
população abrangida. Defendemos então que o arranjo institucional de go-
vernação da Educação e Formação de Adultos (EFA), de matiz neoliberal,
favorece a precarização, a viabilização e o condicionamento conjunturais
de direitos sociais e humanos de produtores e destinatários da medida polí-
tica. Nesse sentido, exploramos a hipótese de trabalho de estar perante
um processo de assimilação estratégica entre setores e esferas públicos e
privados, que permite: (i) “o controle centralizado do desenvolvimento
de um programa de oferta pública através do dispositivo de RVC de adquiri-

1
Na União Europeia (UE), essa reorganização foi tematizada em torno de agendas políticas
como a Estratégia de Lisboa, voltada para a capacitação da ‘Europa’ na competição por mercados
mundiais, sustentada pela aprendizagem ao longo da vida na sociedade/economia do
conhecimento (cf. HODJAN, 2009).

83
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

dos experienciais2 e de outras modalidades de EFA”; (ii) “avançar os objec-


tivos estatais da política” e (iii) “corroer tradições, processos e procedimen-
tos indesejados, em vigor, quer no setor público estatal, quer no setor priva-
do, cívico, solidário ou sociocultural” (ANTUNES, 2011, p. 25).
Assim, nos casos das políticas públicas de educação acima mencio-
nados, assistimos ainda, em Portugal, à atuação do Estado como decisor,
regulador, financiador, apelando, para a execução das políticas, a uma for-
te mobilização e envolvimento de entidades oriundas quer do domínio do
mercado, quer dos setores solidário, cívico ou cultural. Nesse sentido, o
Estado, ao mesmo tempo em que delega a execução direta das políticas no
terreno, alarga a sua influência por dentro da sociedade civil. Para a políti-
ca de EFA, a expansão da oferta pública e da população abrangida, sem
alargar o perímetro do Estado, mesmo quando a maioria das entidades en-
volvidas na execução são públicas (escolas e centros de formação), foi al-
cançada através da contratualização dos serviços e da criação de organis-
mos temporários (Centros Novas Oportunidades, CNO) no âmbito de um
programa a termo certo; é nesse quadro que tem lugar a assimilação estra-
tégica entre público e privado. É esse modelo sui generis de política pública
que vamos procurar discutir em seguida, considerando as dimensões da
governação, da intervenção através de programas e da expansão da influên-
cia do Estado, pelo envolvimento da sociedade civil na execução política.

1. Governação e respostas às crises do capitalismo


e da democracia: tensões e lutas em torno
do sentido político da ação
A governação veio condensar alguns dos debates políticos e teóricos
recentes, ao mesmo tempo em que se tornou um tema naturalizado, quan-
do as questões que levanta e o conhecimento das práticas sociais que envol-
ve são ainda controversos e pouco consolidados.

2
Trata-se do dispositivo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC),
lançado em Portugal em 2000.

84
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Lançado no bojo das crises do capitalismo e da democracia e na se-


quência das críticas e propostas, de sinal contrário, em torno da legitimidade
ou da governabilidade, o programa da governação, entendido como matriz de
regulação sociopolítica de orientação hegemônica, é tematizado a partir
desta última. É esse o sentido das tendências e propostas de mudança de
regime, em torno da privatização, mercantilização e liberalização, domi-
nante entre meados dos anos 1980 e 1990 (SANTOS, 2005). Por seu lado,
também as reivindicações de participação popular, inclusão e justiça sociais
marcam a agenda política da governação, promovida por atores e processos
comprometidos com a interpelação do capitalismo e da democracia em
termos de redistribuição e emancipação social e protagonizada por uma
pluralidade de sujeitos e de projetos. Os processos em torno dos Fóruns
Sociais Mundiais da última década constituem experimentações e constru-
ções que expressam, alimentam e são alimentados por esse veio de ação
sociopolítica. Alargar o círculo da governação, em termos de interesses, benefí-
cios, participação e projetos, é um horizonte de práticas e lutas políticas em
aberto para aprofundar o vínculo dessa inovação com a emancipação social
(SANTOS, 2005).
Assim, a genealogia da governação, inscrita nas transições, quer do
regime de acumulação, quer do sistema político, situa os desenvolvimentos
em discussão na gestação de formas políticas alternativas, em que capitalis-
mo e democracia se interpelaram no bojo da instabilização do regime for-
dista de Estado de Bem-Estar. As dinâmicas de globalização inscrevem-se nes-
ses processos, modelando-os e sendo alimentadas por eles.
Por seu turno, as agendas em torno da autonomia e da autorregula-
ção identificam também os questionamentos do contrato social do Estado
de Bem-Estar em termos de crise de governabilidade. Esse posicionamento
revela-se, de forma mais ou menos clara, por um lado, quando aquelas exi-
gências surgem acopladas às regras promovidas pelo consenso de Washing-
ton (liberalização, mercantilização, privatização) e, por outro, pelas ausên-
cias do Estado e dos excluídos e pelos flagrantes silêncios em torno das trans-
formações sociais, das relações de poder e conflitos sociais, da justiça social e
participação popular. São essas omissões propositivas e de ação que mais
incisivamente colocam aquelas interpelações numa agenda de instauração
da governação como projecto de viabilização de um novo regime de acumula-

85
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

ção, assente num contrato social favorável ao reforço da acumulação (e à mini-


mização da distribuição de recursos socialmente produzidos), à polarização
e exclusão sociais e à limitação da democracia daí derivadas.
No entanto, como adiante será testemunhado, aquelas aspirações de
autonomia e autorregulação são também partilhadas por atores e experi-
mentações sociais mobilizados à volta do reconhecimento e da participa-
ção popular, pelo que o seu sentido político depende em primeira mão das
visões do mundo, conceitos e práticas com que são formulados e prossegui-
dos. A ambivalência pode então assomar no terreno das lutas e das práticas
sociopolíticas, dependendo os seus sentidos e consequências das correla-
ções de força e das conjunturas em que têm lugar3 (cf. SANTOS, 2005;
ANTUNES, 2008, p. 163ss.).
Desse modo, o campo da governação apresenta-se como uma constru-
ção conflitual e desequilibrada que envolve agudas tensões quanto à redis-
tribuição social e ao reconhecimento da diferença. Aí, políticas, discursos e
práticas manifestam-se sob versões neoliberais hegemônicas ou segundo
concretizações contraditórias, fragmentárias ou ambivalentes. Nessas últi-
mas, podemos encontrar dinâmicas de ação e sentidos políticos conflituais,
enfrentamentos de interesses e compromissos, tensos e/ou precários. Como
insistentemente sublinha Cardoso, “importa refletir sobre os interesses que
são promovidos e sobre o que esses interesses estão fazendo à relação Esta-
do-mercado-sociedade civil (…) e fazê-lo num quadro em que os resultados
de qualquer iniciativa ou desenvolvimento são avaliados pela forma como
os padrões de igualdade e de justiça social se manifestam em cada local”
(CARDOSO, 2005, p. 113). Então as propostas e modalidades de governa-
ção podem ser posicionadas, em termos do significado político e das conse-
quências sociais que produzem, em torno de vetores como: a presença/
ausência do Estado e dos excluídos, os problemas silenciados ou tematiza-

3
Partindo da experiência na coordenação de um programa das chamadas escolas comunitárias no
Rio de Janeiro, Márcio Costa discute criticamente certos elementos contraditórios de processos
de democratização através da gestão local de serviços públicos que sustentam direitos sociais
(como a educação). O autor sugere, nesse debate, que as condições socioculturais efetivas de
participação obrigam a questionar as práticas sociais que dão corpo a fórmulas de governação de
aspiração contra-hegemônica (COSTA, 2005).

86
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

dos, as respostas construídas ou ausentes, a prioridade ao enfrentamento


da crise de legitimidade ou a desqualificação dos déficits que produz, em
favor das preocupações em termos de governabilidade.
Nesse sentido, a matriz sociopolítica de governação neoliberal vincula-se à
ação política tendente a transformar os sistemas políticos e a instituir arran-
jos institucionais alternativos. Nesse contexto, as reivindicações de partici-
pação, inclusão, autonomia e autorregulação são traduzidas e respondidas
num quadro de: (i) prossecução da coesão social; (ii) através de políticas
compensatórias; (iii) assentes na coordenação, na parceria e autorregula-
ção; (iv) envolvendo interesses reconhecidos; (v) para a resolução de pro-
blemas. Nesses desenvolvimentos, salientam-se as questões contempladas
quando contêm aspirações democráticas cuja relevância se reconhece, avul-
tando, no entanto, as respostas silenciadas e as ausências cultivadas: as
transformações sociais, a participação popular, o contrato social, a justiça
social, as relações de poder e a conflitualidade social, por um lado, bem
como o papel do Estado e o lugar dos excluídos, por outro (SANTOS, 2005).
Nesse debate, a proposta teórica de consideração do Estado gestioná-
rio/gerencial (the managerial state) permite escrutinar o sentido de alguns dos
nexos entre as opções políticas e os arranjos institucionais privilegiados.
Aquela problemática propõe o debate sobre o impacto do gerencialismo (ma-
nagerialism), enquanto ideologia e projeto político, nas relações “entre o
Estado e o cidadão, entre público e privado, entre os fornecedores e os uten-
tes do bem-estar social e entre ‘gestão’ e ‘política’”. Analisa-se a reforma do
Estado, impulsionada para responder às crises dos pactos económico, políti-
co e social que sustentaram o Estado de Bem-Estar, observando a reestrutura-
ção alimentada pelo gerencialismo (CLARKE & NEWMAN, 1997, IX). Por
essas vias, temos testemunhado e participado na experimentação de for-
mas alternativas de aprendizagem e de criação do laço social. Não obstante,
e mais frequentemente, também temos coletivamente percorrido caminhos
de precarização de direitos sociais e humanos que a modernidade consa-
grou e o Estado de Bem-Estar prometeu garantir e o projecto de governação
vem tornando contingentes à correlação de forças, aos resultados de lutas,
ao xadrez de interesses em presença num dado contexto sócio-histórico.
As noções de combinação institucional (DALE, 1997, 2005), welfare plu-
ralism (MISHRA, 1996), Estado contratual (KRAMER, 1998 apud FERREI-

87
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

RA, 2009, p. 170), novos híbridos de bem-estar (AFONSO, 2001), indistinção


de fronteiras entre público e privado (ANTUNES, 2001), ethos de contratua-
lismo (SEDDON, BILLET & CLEMANS 2005, p. 570) constituem alguns
dos desenvolvimentos analíticos que vêm procurando captar vias e instru-
mentos assumidos pela reforma do Estado e formas de intervenção e de
mobilização coletivas que (a) alimenta(m?), emergentes desde há cerca três
décadas, sob a égide de partenariados (RODRIGUES & STOER, 1997), as-
sociados ou não à criação de quase mercados (LE GRAND & BARTLLET,
1993) e frequentemente cultivados como extensões e realizações da matriz
sociopolítica do projeto de governação.
Desse modo, ganham clareza o abandono de princípios normativos e
processuais, típicos de compromissos formais centralmente negociados no
quadro do Estado de Bem-Estar, e a orientação “para resultados específicos”
“explícitos e prescritivos”, cuja regulação, “formalmente contratualizada”,
assenta em “requisitos de desempenho” dos participantes (SEDDON, BIL-
LET & CLEMANS, 2005, p. 570). A adoção dessa ordem de mandamen-
tos da chamada nova gestão pública (NGP) vem frequentemente acompa-
nhada da colocação sob contingência de direitos sociais e humanos, quer
de produtores, quer de beneficiários dos serviços públicos.
A discussão que segue ensaia compreender alguns desenvolvimentos
do arranjo institucional de governação, impulsionado com a implantação do
dispositivo de RVCC no quadro da política de EFA em Portugal, observan-
do, através de testemunhos de responsáveis de CNO, práticas que o reali-
zam4.

4
O estudo consistiu em oito entrevistas, com a duração de mais de uma hora cada, com
responsáveis de CNO de instituições diferentes. Procurou-se abranger um leque amplo de
entidades envolvidas com o dispositivo de RVCC e a política de EFA. Foram entrevistados os
responsáveis de CNO promovidos por: (i) uma escola pública secundária; (ii) um centro de
formação profissional de gestão participada; (iii) uma escola profissional privada; (iv) uma
associação industrial; (v) uma câmara municipal; (vi) três associações de desenvolvimento local.
As entrevistas foram transcritas, totalizando cerca de 200 páginas de texto. Procedeu-se à análise
do conteúdo das entrevistas através da categorização dos enunciados e desenvolvendo o conjunto
de procedimentos de construção de uma grelha de análise do conteúdo das entrevistas (MAROY,
1997; ANTUNES, 2004). Neste texto ensaia-se a análise exploratória de uma parte dos dados
construídos até este momento da pesquisa.

88
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

2. O desenvolvimento da política de EFA:


a governação em ação

2.1 Explorações teórico-metodológicas de análise


de políticas educativas
Num texto anterior, procuramos contribuir para uma análise de traje-
tória (BALL & SHILLING, 1994, p. 2) do dispositivo de RVCC, lançado
em 2000 no quadro da política de EFA em Portugal. Como propomos em
diversos trabalhos, admitimos o potencial heurístico de, na análise de polí-
ticas educativas, articular uma abordagem focada nos centros de poder e
decisão (o Estado, a UE) com uma abordagem do ciclo político (DALE,
1989; BOWE, BALL & GOLD, 1992); desse modo, cremos tornar-se possí-
vel construir itinerários de pesquisa que prossigam análises de trajetória de
inovações sociopolíticas. Esses estudos procuram compreender os proces-
sos de elaboração e desenvolvimento de políticas de educação e formação e
elucidar os textos e as práticas que dão corpo àquelas. Procura-se mobilizar
uma perspetiva analítica de compreensão da realidade como relação social,
estrutura e ação com sentido, estruturada e estruturante (BOURDIE, 1979).
Propõe-se, desse modo, o exercício de articular e entender quadros de ação
e apreender o seu sentido político; de discutir as omissões, tensões e media-
ções, que tecem conflitos, compromissos e alianças provisórios de atores,
interesses e poderes (cf., por exemplo, ANTUNES, 2004).
Assumimos, assim, a necessidade de adotar estratégias, percursos e
instrumentos teóricos e metodológicos vocacionados para apreender e com-
preender tanto a estrutura como a dinâmica interativa dos processos de de-
senvolvimento de políticas educativas. Desse prisma, a noção de implemen-
tação como realização fiel ou controlada pelas instâncias de decisão (a União
Europeia e/ou o Estado nacional ou outra) é redutora e equivocada, tal
como qualquer abordagem que suponha a ausência de vincadas assimetrias
nas estruturas de poder e influência envolvidas nesse processo. Nessa ótica,
as autoridades públicas que protagonizam os processos de elaboração das
políticas instâncias da UE, plataformas intergovernamentais como as que
vêm dinamizando os Processos de Bolonha e de Copenhaga, o Estado detém
uma capacidade incontornável e incomensurável de influência sobre o pro-

89
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

cesso de desenvolvimento das políticas que amplamente justificam a per-


manência de estudos nelas centrados. No entanto, tais incursões constitui-
rão explicações parcelares e parciais se desacompanhadas das necessárias
explorações de outras dimensões, ‘momentos’ ou ‘níveis’ de ação do pro-
cesso de desenvolvimento das inovações sociopolíticas.
A relevância de tal esforço avoluma-se se tivermos em conta que, como
observam Lingard, Rawolle & Taylor, “um novo espaço global na política
educacional” convive com “práticas de política educacional [que] também
permanecem nacionais e muito localizadas, com o habitus dos actores situa-
dos em diversas posições no interior do campo, também reflectindo e afec-
tando diferentes disposições locais, nacionais e globais”. No mesmo senti-
do, aponta a ideia de que os textos não transportam consigo o seu contexto
de produção e, nessa medida, são reinterpretados de acordo com a estrutu-
ra do campo social de receção (nesse caso, o campo educacional), que não
coincide com aquele de onde o texto é originário (o campo político) (LIN-
GARD, RAWOLLE & TAYLOR, 2005, p. 774 e 766).
Assim se propõe a adoção de formas de análise de trajetória “ensaian-
do articular abordagens centradas nas instâncias públicas (ou outras) de
poder5 com perspectivas de ciclo político” e se procura expressamente subli-

5
No momento actual de imposição da governação neoliberal, como matriz sociopolítica de regulação
social, na UE, há instâncias de poder efectivo que não parecem concentrar-se em autoridades
públicas legítimas nem atuar no quadro de sistemas políticos democráticos. Hoje, na União
Europeia, é mais vincado do que nunca o défice democrático e ainda mais verificável do que
outrora a afirmação de um cientista social de que “pela bitola dos critérios da democracia
representativa, a União tem uma tendência deplorável para pôr legitimidade lá onde não há
poder, e poder lá onde há falta de legitimidade” (NESTOR, 2004, p. 131). Do mesmo modo,
revela-se brutalmente verdadeira a constatação, atribuída a um conhecido sociólogo, durante
uma conferência (quer a história seja verídica ou não): “Se a União Europeia se candidatasse à
adesão a si mesma, não seria aceita, por falta de um sistema político democrático”. A democracia
é hoje na UE uma aspiração e uma construção instável, e em muitos aspectos sob assalto. Esta
é uma evidência sustentada quer pela existência de uma troika de credores (Comissão Europeia,
Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) que impõe políticas de ajustamento
estrutural, sob o signo da austeridade, em diversos países, quer pela dominação na União, de
forma gritante até há alguns meses, de um directório germano-francês (Merkel e Sarkozy, ou
Merkozy, na designação adotada pela comunicação social), à revelia do sistema político europeu
instituído. Para múltiplos efeitos, é como se a tímida e débil democracia existente tivesse, de
facto, sido suspensa na UE, realizando a proposta de uma governante, para Portugal, um par
de anos atrás. Daí que, pese embora a vincada insuficiência, no contexto atual, da proposta
concetual de análise de políticas educativas que aqui discutimos, ela constitui, mesmo assim, a

90
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

nhar a preocupação de: (i) por um lado, estudar as políticas educativas eu-
ropeias nas suas dimensões de delimitação e capacitação de ação6; e (ii) por
outro lado, analisar as práticas nos contextos educacionais, nas suas intera-
ções com os quadros de constrangimento e capacitação institucionais e
políticos de níveis nacional e supranacional.
Dito de outro modo, uma perspectiva teórico-metodológica de análi-
se de trajetória de inovações sociopolíticas permite conceber o ciclo político
como articulação de distintos e específicos quadros de ação povoados de
atores situados (por exemplo, supranacional/europeu; nacional; regional/
local; institucional; profissional); cada um desses cenários se constitui como
fonte de poder e influência que delimita e capacita em sentidos próprios a
ação de outros contextos. Essas relações sociais constituem-se como moda-
lidades de autonomia/dependência relativas a caracterizar e analisar empi-
ricamente. Considera-se, assim, qualquer medida de política de educação e
formação como um processo multidimensional, em que a ação política tem
lugar em todos os ‘níveis’, ‘dimensões’, ‘momentos’ considerados. Como
se constituem e caracterizam as diversas dimensões ‘europeia’, ‘nacional’,
‘regional’ ou ‘local’, ‘institucional’ ou ‘profissional’ é matéria de análise

ferramenta analítica mais consolidada e com mais potencial heurístico de que dispomos hoje.
Com ela trabalhamos, tendo consciência de que dimensões significativas da dinâmica da
realidade nos escapam.
6
Mesmo admitindo a hipótese de trabalho de Roger Dale de que um dos resultados possíveis de
estruturas e processos associados com a constituição do Espaço Europeu de Educação e da
política europeia de educação pode ser “a emergência de novos sectores de ‘educação’ distintos
e paralelos” ao nível da UE e dos Estados-membros, com diferentes mandatos, capacidades e
formas de governação” (DALE, 2009: 15), uma e outra realidades relacionam-se estreitamente
e envolvem implicações recíprocas (ANTUNES, 2004; 2005). Consideramos importante a
chamada de atenção sobre o viés do pressuposto de relações hierárquicas e de influência
unidirecionais entre aquelas instâncias (DALE, 2009); julgamos que é igualmente indispensável
entender que, muito concretamente, os Estados-membros são expressamente convocados a
responder às políticas europeias (agora mais incisivamente através de planos de acção e metas
nacionais específicos; cf., por exemplo, Conselho da União Europeia, 2009 e European
Commission, 2010), são estreitamente monitorizados, formal e publicamente posicionados em
listas ordenadas em função do seu desempenho face aos objectivos, indicadores e parâmetros
daquelas políticas europeias. Neste quadro, tornam-se também objecto obrigatório de pesquisa
as relações de poder entre os países, que definem vincadas assimetrias quanto à capacidade de
negociação e autonomia, por parte das instâncias nacionais, em casos tão díspares quanto, por
exemplo e face a políticas diversas, a Inglaterra, a Eslovénia, Portugal ou a Alemanha (cf.,
entre outros, ALEXIADOU, FINK-HAFNER & LANGE, 2010; NEVES, 2010).

91
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

teórica e observação empírica a construir em cada investigação. Na sequên-


cia de Ball (2009), entendemos que essas dimensões expressam apropria-
ções dos atores que rececionam, apropriam e traduzem a política em ques-
tão na sua interpretação, na sua forma de ação e nas suas práticas institu-
cionais e profissionais próprias.
Nesse sentido, se qualquer intervenção ou prática é globalmente es-
truturada (no sentido antes definido), ela tem lugar nos contextos de ação
com os recursos, meios, possibilidades institucionais e atores disponíveis e
realmente existentes ou possíveis. Daí que a globalização e a europeização
das políticas são sempre, e não podem deixar de ser localização, contextuali-
zação e mediação, pois qualquer política só é realizada através das práticas
que, no terreno, for possível construir com os recursos materiais e institucio-
nais com as interpretações e os atores realmente existentes ou passíveis de
ser criados na realidade contextual. Tal não significa que não tenhamos já
testemunhado o desenvolvimento de políticas sumamente agressivas face a
uma dada realidade, mesmo contando com a oposição ativa ou larvar dos
atores em presença.
Assim, num estudo recente, propusemo-nos a combinar a aborda-
gem que considera a centralidade da ação do Estado e das autoridades pú-
blicas como a UE (esclarecendo a fonte, o mandato, a governação da política
pública de EFA quando do seu lançamento) com a observação de ‘dimen-
sões’, ‘níveis’ (ou ‘momentos’) do ciclo político (DALE, 1989; BOWE, BALL
& GOLD, 1992), sobretudo envolvendo o contexto de influência (que inclui
atuações e protagonistas que constroem os propósitos, os discursos e os con-
ceitos estruturantes da medida) e o contexto da produção de textos político-pro-
gramáticos e de decisões traduzidas em normativos (atentando para a ação
política de confronto de projetos e interesses e de construção de compromis-
sos provisórios expressos em contradições, silêncios e desconexões que per-
meiam os textos de formulação da medida) (ANTUNES, 2011). Nesse traba-
lho, a dimensão do contexto da prática (a apropriação e tradução da inovação
através da ação no terreno) não é especificamente estudada, mas apenas even-
tualmente evocada enquanto reforço argumentativo ou ilustrativo, a partir de
pesquisas publicadas ou outros documentos de divulgação pública.
O estudo que agora se apresenta analisa a dimensão das práticas que
realizam, interpretam e apropriam a inovação sociopolítica de criação do

92
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

dispositivo de RVCC no quadro da política de EFA, considerando expres-


samente o fato de estarmos perante diversas instituições de que os entrevis-
tados são um rosto e uma voz. Nessa medida, discutiremos adiante ques-
tões que podem ser relacionadas com distintas interpretações e apropria-
ções institucionais de certos vetores da medida política em questão.
Mais concretamente, na confluência da problemática da governação e
das perspectivas teórico-metodológicas de análise de trajetória, nos sentidos
definidos, que fundamentam e orientam o estudo, desenhou-se um itinerá-
rio de pesquisa para observar dimensões da realidade e recolher informa-
ção empírica que permitisse analisar e discutir as seguintes questões de in-
vestigação: 1. como apropriam as instituições algumas das vertentes do de-
senvolvimento do dispositivo RVCC no âmbito da política portuguesa de
EFA ao longo da 1ª década do século XXI? 1.1. que interpretações constroem
quanto: a) à relação com o Estado no quadro da opção de intervenção pú-
blica através de um programa temporário e b) à fórmula institucional (de
governação) adotada? 1.2. que orientações e práticas desenvolvem as institui-
ções designadamente quanto à: a) a relação com o Estado (a forma de inter-
venção pública através um programa temporário e o planeamento estraté-
gico); b) às condições de contratualização, em particular, os resultados e o
financiamento?

2.2 Discutindo a governação através das práticas:


testemunhos e interpretação
No plano da governação, a opção pelo envolvimento de uma panóplia
alargada de entidades para o desenvolvimento da política e provisão de
educação de adultos tem, nesse campo, um sentido particular. Isso porque,
de acordo com as tradições históricas e propostas político-pedagógicas, as
tensões e articulações entre a ação do Estado e os movimentos cívicos e
socioculturais, as organizações e projectos de educação popular constituem a
dinâmica geradora do sentido das políticas públicas. Nesse campo, a capa-
cidade de articulação, capacitadora, participativa e não hegemônica, da ação
da administração pública com as dinâmicas socioculturais de base constitui
uma coluna vertebral decisiva de modelos democrático-participativos de
políticas públicas de educação de adultos (LIMA & GUIMARÃES, 2011).

93
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

Nesse sentido, historicamente esse é um terreno visivelmente atravessado


por reivindicações e práticas em torno do que hoje tematizamos como go-
vernação em termos de participação, autonomia, redistribuição, reconheci-
mento, transformações e justiça sociais. Nas palavras de Alberto Melo, em
Portugal, na transição do século, como há trinta anos, a política, como dinâ-
mica de base para construir a “Educação e Formação de Adultos em Portu-
gal como projecto de sociedade” “com a participação de todos”, disputa o
lugar ao planejamento estratégico centralizado no quadro de programas mais
voltados para a instrumentalização e tutela da ação organizada dos cida-
dãos (MELO, 2007)7.
Escutando os responsáveis de CNO, quisemos apreender orientações e
práticas que concretizam as relações do Estado com as entidades envolvidas,
o sentido da política pública assim construída, o âmbito e os termos do servi-
ço contratualizado, as condições e implicações de tais desenvolvimentos.
Os entrevistados discutem e enfatizam os seguintes tópicos: (i) a rela-
ção com o Estado, gestor estratégico, em particular para instituições cuja
intervenção é, muitas vezes, capacitada e delimitada pelo seu papel instru-
mental na execução de políticas públicas sob a forma de sociedade civil
secundária e/ou tutelada8; (ii) os constrangimentos derivados do planejamento
gestionário no âmbito de políticas públicas e sociais vertidas em programas
temporários; (iii) a prevalência dos termos, definidos pelo Estado, para a
contratualização do serviço e as tensões daí derivadas; (iv) a delimitação da
ação educacional pelo financiamento; (v) a apropriação local e

7
Eis o testemunho de Alberto Melo: “E, falando de tempo, gostava de recuar trinta anos (…)
[quando] pela primeira vez, assumi algumas funções de responsabilidade no campo da educação
de adultos. O que estava na mesa era então uma campanha de alfabetização, que se propunha
erradicar o analfabetismo em três anos. Foi o meu primeiro choque, de certo modo, com uma
lógica de planeamento contra aquela que sempre defendi e tenho procurado adoptar: uma
lógica de política. Muitas vezes faz-se planeamento, porque não se quer, não se pode, ou não se
sabe fazer política (MELO, 2007, p. 65)”. É nosso entendimento que esta reflexão-chave sublinha
e enriquece a interpretação do mais influente estudioso das dinâmicas de mudança
socioeducacional e das realidades portuguesas, em termos de política e planeamento, num ensaio
pioneiro sobre as relações entre Estado e sociedade civil entre 1926-1980, exactamente intitulado
Educação, estado e desenvolvimento em Portugal (STOER, 1982, p. 82).
8
Para ampliar a discussão sobre instituições do terceiro sector envolvidas em políticas sociais e
educativas, enquanto sociedade civil secundária e/ou tutelada, consultar Santos (1993), Hespanha
et al. (2000) e Lima & Afonso (2006).

94
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

(inter)institucional da política, descrita em termos de concorrência, cola-


boração e redes.
Essas questões são em seguida discutidas nos termos de ferramentas
teórico-conceituais como o mandato: qual o foco e o âmbito da ação educa-
tiva? Multidimensional e integrada? Fragmentada e amputada? Propomo-
nos ainda reconstruí-las na problemática da governação (na acepção propos-
ta por DALE, 1997, 2005, 2009), entendida como coordenação (das fun-
ções) dos serviços e atividades de bem-estar (na terminologia largamente
convergente também com CLARKE & NEWMAN, 1997): Quem partici-
pa? Em que condições? Com que efeitos/resultados? (como ficam o direito
à educação, a promoção e democratização socioculturais?); Qual o papel
do Estado, dos atores e das dinâmicas locais (que respostas aos problemas
de redistribuição e reconhecimento sociais, qual o lugar dos excluídos?)9.
É, assim, possível analisar o arranjo institucional em funcionamento
e as suas implicações em termos das mudanças no serviço de bem-estar (e
direitos envolvidos) e na organização e papéis do Estado e de outras insti-
tuições (o mercado, o terceiro setor10). Pretende-se também entender como
interpretam e se posicionam esses responsáveis face à ausência de uma po-
lítica pública global integrada e de um sistema público de EFA em Portugal
e que implicações decorrem dessas opções na perspectiva desses atores. Os
mesmos temas são explorados procurando apreender o sentido político,

9
Estas interrogações traduzem e formulam para este objecto de estudo e campo de pesquisa
empírica específicos as problemáticas da governação como matriz de regulação social,
questionando o sentido político – na esteira de Santos (2005), o papel do Estado e dos excluídos,
os problemas e respostas construídos quanto aos reconhecimento e redistribuição sociais –, da
regulação da educação como política pública – a que educação acede quem, em que condições,
com que efeitos/consequências, adoptando sugestões de Dale (2001). Sugere-se que, enquanto
problemática teórica, a regulação seja explorada quer como propriedade sistémica (que não
depende da intenção dos actores), quer como ação com sentido, que dinamiza (produz, modifica
e reproduz) essa propriedade (BARROSO & CARVALHO, 2012).
10
Debatendo esta mesma problemática para o contexto Brasileiro, Peroni & Adrião analisam
políticas públicas envolvendo o chamado terceiro setor que realizam a reforma do Estado no
campo educacional (PERONI & ADRIÃO, 2005). Também Cardoso desenvolve uma
elucidativa discussão em torno da “formação do terceiro setor em Portugal e na Inglaterra e
sobre suas repercussões na área da regulação da educação (…) enquadrada no estudo das
formas emergentes de governo, financiamento, gestão e avaliação escolares e do modo como
estas estão alterando as relações entre o Estado, o mercado e a sociedade civil, as formas e os
espaços para o exercício da democracia” (CARDOSO, 2005, p. 82).

95
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

quer das medidas promulgadas, quer, sobretudo, da sua apropriação pelos


atores no terreno: nesse momento, atenta-se nas (contraditórias) práticas
em construção, incluindo uma certa ambiguidade, ou mesmo potencial
ambivalência, de alguns desses processos e interpretações. Compreender
tensões e contradições, articulações dinâmicas e conflituais que alimentam
a ação política no ‘chão’ das relações socioeducativas é o alvo dessa dimen-
são de análise. Pretende-se ainda formular interrogações sobre os seus efei-
tos e consequências, designadamente em termos de justiça social complexa
(ESTEVÃO, 2008; BALL, 2009).

2.2.1. O Estado, gestor estratégico, contratualização e política no terreno da ação


A relação com a tutela é apresentada segundo pontos de vista que
variam com a natureza da instituição em que o CNO se encontra incrusta-
do. Enquanto os entrevistados ligados a associações de desenvolvimento
local colocam questões que se prendem com perspectivas sobre os seus pro-
jetos político-educativos, os sujeitos ligados aos sistemas públicos e priva-
dos de educação e formação, escolares e não escolares, tendem a assumir
uma visão mais centrada nos termos da contratualização dos serviços e nas
suas implicações no domínio institucional e no âmbito educativo. Desse
modo, as questões relativas à integração comunitária e à natureza multidi-
mensional e polifacetada da educação e formação de adultos são colocadas
exclusivamente pelos responsáveis de CNO enquadrados pelas três associa-
ções de desenvolvimento local (ADL) quando discutem: as implicações da
relação com o Estado para projectos de desenvolvimento dos territórios, a
autonomia de intervenção no quadro de dinâmicas de animação comunitá-
ria ou a ação das entidades circunscrita à execução de políticas públicas
desenvolvidas através de programas temporários.
Não temos mais nenhuma liberdade para termos de facto um projecto edu-
cativo que correspondesse às necessidades da própria região (…) não permi-
tir uma definição de políticas de intervenção das entidades (Director do CNO
Vila da Vitória).
Neste momento, isso está um bocado a jogar contra nós, que é, estando a
fazer a diferença no território, mas também sentimos que, de hoje para ama-
nhã, não temos qualquer tipo de possibilidade de continuar o trabalho que
não se esgota numa certificação. Então nós, como Associação de Desenvol-
vimento Local, ainda mais sentimos isso, porque aquilo que nós queríamos

96
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

era criar clubes locais de dinamização da população, promoção da cidada-


nia activa, tentamos incluir nos processos de RVCC questões como igualda-
de de oportunidades, a igualdade de género, o empreendedorismo, forma-
ções, pequenas formações, ou pequenas reflexões em tertúlias e tudo mais
nas freguesias onde trabalhamos de forma descentralizada, mas aquilo que
eu sinto é: “ok, isto só faz sentido se podermos continuar a fazer, se isto se
interiorizar de alguma forma até as pessoas estarem tão autonomizadas,
que depois possam elas dinamizar os seus clubes, os seus espaços de refle-
xão sozinhas, isto não se faz em dois anos” (Coordenadora do CNO do
Topo).11

As relações com o Estado central assomam de modo mais generali-


zado quando se referem aos termos de contratualização dos serviços. Aqui,
afirma-se o papel do gestor estratégico, que define as condições e os resulta-
dos a alcançar. De novo, as entidades se distinguem quanto à visão sobre
essa questão: os entrevistados de CNO sediados em organizações públicas
ou privadas dos sistemas educativo e formativo, escolar ou não escolar, en-
fatizam a natureza irrealista dessas condições e metas quantitativas e as
tensões e contradições daí resultantes (um problema de regulação/gover-
nação enquanto organização dos serviços).
Por exemplo, nós somos uma equipe – aqui no Fénix – tipo C que devería-
mos ter 2000 inscrições por ano; não temos 1000 sequer, mas, se tivéssemos
2000, a equipe que temos não tinha capacidade de responder; portanto aca-
bamos por não ter esse problema, porque não há adultos [inscritos]. Mas,
portanto, a forma como está dimensionada a equipe técnica, de acordo com
as metas, há um desajustamento (Coordenador do CNO Fénix).

11
Como afirma uma outra responsável: “Muitas vezes, quando abrem várias candidaturas [no
âmbito de programas do Quadro de Referência Estratégico Nacional, com financiamento
comunitário, da UE], tentamos de alguma forma articular as candidaturas entre si, não é?
Muitas vezes temos ideias de projectos que de forma articulada teriam determinados resultados
e o que acontece é que (…) Os tempos de aprovação são diferentes e se calhar quando o
projecto A vem aprovado, o B ainda não está e só fazia sentido os dois em conjunto. E quando
o A está a terminar é que vem o B e nem sempre é possível uma intervenção articulada e
estipulada por nós como deveria ter. Isso é uma grande limitação, porque dependemos a 100%
do financiamento. Outra limitação é que (…) têm limitação no tempo e não sabemos se tem
continuidade ou não e muitas vezes despertamos processos que depois morrem e nem sempre
isso é bom para a nossa actividade e claro está sente-se no território. (…) é raro haver
continuidade nos projectos que se vão desenvolvendo e muitas vezes o que se nota nos projectos,
e não é só nos Centros Novas Oportunidades, é que quando os vários projectos entram em
velocidade de cruzeiro e as pessoas se habituam a recorrer àqueles serviços está a terminar e
termina, não é? (Coordenadora do CNO Estrela Polar).

97
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

Claro que um dos patamares está aquém das nossas expectativas, é o núme-
ro de inscritos. As inscrições têm reduzido; nós este ano que passou, em
2010, só atingimos 60% das nossas metas em termos de inscrições. (…) Em
termos de percentagem de realização estamos perto dos 40%. Isto leva-nos a
crer que de facto nem sempre é fácil, não é tão fácil como se diz por aí
(Coordenadora do CNO do Rosal).
Eu acho que nomeadamente aqui no meu Centro tenho às claras o cumpri-
mento das metas, nomeadamente em temos de certificações, claramente es-
tou… pronto, não tenho esse cumprimento. A contratualização que é feita
com a Agência claramente eu não a cumpro (Coordenador do CNO Vila do
Porto).

Os sujeitos responsáveis de CNO promovidos por ADL destacam


essas questões, mas também o fato de elas constituírem uma “política cega”
face aos territórios e uma amputação da dinâmica socioeducativa local (um
problema de mandato e de redistribuição/reconhecimento sociais ou senti-
do político da governação). Nesse sentido, o debate em torno da política de
educação de adultos, nas suas dimensões políticas e concetuais, para além
das questões relativas ao seu desenvolvimento, tende a ser assumido de modo
distinto pelos diversos responsáveis.
Considero que o Estado fez uma política cega, não é? (…) Isso é o que inte-
ressa ao Estado, as metas e falar na qualidade, mas esquecem-se que as ins-
tituições trabalham num determinado contexto, e esse contexto é específico.
No nosso caso, este vínculo à dinâmica local, nós teimamos sempre e até
agora também não tivemos grandes problemas com isso. Ah, teimamos sem-
pre que abrimos, tentar continuar a implementar essa dinâmica, a tentar
acrescer aqui algum valor àquilo que são os processos de RVCC, não só
enquanto processos de reconhecimento, mas também enquanto processos
de valorização da própria pessoa; mas não temos qualquer forma de registar
isso no SIGO. É obrigatório registrar todas as sessões, não tenho qualquer
forma de fazer chegar isso ao Estado, ao poder. Portanto, isso é feito porque
somos teimosos e só nos deixam fazer porque cumprimos metas; porque no
dia em que não cumprirmos metas, o corte é imediato (Coordenadora do
CNO do Topo)12.

12
E continua a mesma responsável: “Eu posso dizer-lhe por exemplo que o SIIFSE teve… o
POPH contou mal as nossas… os nossos resultados relativos a 2008/09 e tínhamos, de acordo
com aquilo que foi o levantamento inicial deles para o saldo final, nós tínhamos cumprido
apenas 70%, 60% dos indicadores, 60% e qualquer coisa. E eles cortaram logo em 40% daquilo
que era o saldo final, quer dizer, é completamente cego. Para já, nós reclamamos e provamos
que tínhamos cumprido as metas e o dinheiro afinal já não foi todo cortado, mas isto mostra
que é completamente cego, não interessa tudo aquilo que andamos a fazer e a diferença que
marcamos na comunidade. O que interessa são os números finais que são aqueles que atribuem
dinheiro” (Coordenadora do CNO do Topo).

98
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

(…) podemos naturalmente ter políticas diferenciadas para o próprio país,


mesmo em termos de metas: eu não admito – não é não admito, não é uma
questão de admitir –, melhor, não concebo que as metas sejam iguais para
Lisboa e iguais para o interior e interior profundo, despovoado, desertifica-
do, etc., etc. (Director do CNO Vila da Vitória).

Para além da contratualização dos serviços em termos de metas quan-


titativas relativas a determinados itens de realização e da constituição das
equipes correspondentes a esses patamares de resultados, os entrevistados
revelam considerar as regras de financiamento muito constrangedoras e li-
mitativas e que a definição de categorias de despesas elegíveis tem implica-
ções redutoras nas atividades desenvolvidas. De novo, a leitura mais políti-
ca do financiamento, sinalizando as suas consequências pedagógicas, mas
também no âmbito da intervenção educacional, tende a ser destacada por
responsáveis de CNO situados no campo das ADL. Todos os sujeitos se
manifestam, no entanto, de forma unânime para considerar que o financia-
mento restringe os contornos da ação que desenvolvem. Desse modo, e
como seria de esperar, o alcance da política de educação de adultos, na
tensão entre mandato e capacidade (DALE & OZGA, 1991), é vincado
pelas regras do financiamento.
Por exemplo, tenho uma turma de vinte e cinco alunos de EFA tipo C e que
não posso abrir neste momento. (…) Porque implica eventualmente contra-
tação de pessoal e não posso fazer contratações. (…) A escola não pode
fazer. A partir do dia 23 de dezembro [de 2010], a Direcção Regional tem
indicações, não pode haver contratação de pessoal para novos cursos (Coor-
denador do CNO Vila do Porto).
Em termos de financiamento, eu penso que a grande lacuna para a iniciativa
é nós não podermos englobar nesse financiamento atividades de âmbito cul-
tural que possamos fazer com os nossos formandos ou os nossos adultos. O
que já aconteceu é querermos fazer algumas iniciativas de âmbito cultural e
depois chegarmos à conclusão de que não eram despesas elegíveis (…) Em
termos de público também, porque sabemos que nos dirigimos a um público
e isso está muito bem definido: a população com mais de dezoito anos que,
portanto, não tem as habilitações mínimas de 12º ano. E aí à partida sabe-
mos logo que as pessoas que já completaram o 12º ano, por muito que nós
quiséssemos continuar a acompanhá-las, não está previsto em termos de
projecto… (Coordenadora do CNO do Rosal).
Esse é um dos problemas, que no fundo eu já vinha a dizer em relação às
tertúlias, aos clubes de leitura que nós fazemos nas freguesias, por exemplo,
que é: ou eu chamo aquilo uma sessão de RVCC, ou eu não tenho como lhes
pagar, porque eu tenho formadores em prestação de serviços e tenho que
lhes pagar aquelas horas de trabalho (Coordenadora do CNO do Topo).

99
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

De alguma forma, por que os CNO só intervêm nos RVCC e nos encami-
nhamentos, não é? Agora, é claro que nós fazemos… as atividades que faze-
mos que é para a comunidade ou as atividades que queremos fazer (…) são
sustentadas pela equipe de formadores que faz… que trabalham para além
das horas. E que têm gosto em mostrar e motivar os adultos que estão a
fazer o processo… (Coordenadora do CNO de Lages)

Se, nos testemunhos recolhidos, aparece sublinhada a crítica fundada


nessa experiência de uma relação desigual com a tutela na execução de uma
política cujos objetivos, condições e resultados se afiguram mais impostos do
que negociados, ficam igualmente claras, por um lado, a adesão e a avaliação
positiva de outras dimensões da política, por parte dos entrevistados, bem
como a afirmação de opções, mesmo se em contramão daquelas favorecidas
pela tutela e ainda um vivido envolvimento e apropriação da ação no terreno.
Por exemplo a Urbanus tem uma ideia que o adulto deve entrar no processo
de RVCC, que o adulto parte do seu percurso em RVCC. Eu tenho, por exem-
plo, a política de “forçar” que as pessoas façam, e que as suas opções sejam,
a formação e tenho percentagens de encaminhamento para o RVCC, que é o
oposto à média nacional: tenho para RVCC do secundário à volta de 25% e
a média nacional anda à volta dos 75%; para formações, para EFA, à volta
de 70 a 80%. E faço essa opção (Coordenador do CNO Vila do Porto).

Essas experiências obtêm uma expressão particular em relatos de cons-


trução de dinâmicas locais e/ou comunitárias de intervenção educativa,
mas também de relações interinstitucionais, frequentemente descritas em
termos de cooperação e concorrência e de experimentação de modos de
articulação que designam ‘em rede’.
Eu acredito que as coisas tenham começado por aí, olharam para a estatísti-
ca e: “Como é que é possível, como vamos resolver isto?” Eu penso que
talvez tenha começado por aí, mas penso que já não está só aí e já não está
só aí há algum tempo. Eu acho que o facto de se ter percebido que as pessoas
estavam disponíveis para apostar nelas próprias, que tinham interesse, ti-
nham conhecimentos, tinham saberes e que queriam reconhecer esses sabe-
res, isto de facto faz-nos pensar na educação de adultos, mas que de facto
ainda estamos muito longe da verdadeira educação de adultos ainda esta-
mos, mas podemos caminhar para aí, acho que podemos, é preciso é dar
aqui o toque certo (Coordenadora do CNO do Rosal).
E nós acreditamos um bocado numa coisa, que é a tal história de irmos
buscar as pessoas não para o processo de qualificação, mas tirá-las de casa,
dar-lhe novas competências para trabalhar essencialmente com a comunida-
de delas. Começamos por grupos, sei lá, o grupo das catequistas, dos esco-
teiros, do grupo coral, que são grupos que já estão constituídos e às vezes é
mais fácil começar por esses e esses depois disseminam aquilo, seja junto

100
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

dos jovens, seja das crianças. É mais fácil começar por aí, a dificuldade às
vezes é imputar esses custos ao trabalho do Centro (Coordenadora do CNO
do Topo).
Nas empresas é extremamente difícil, ou seja, é necessário andar muitos
meses a batalhar numa empresa para conseguir um grupo de meia dúzia de
pessoas, que influencia muito pouco as metas a atingir. Portanto, é um tra-
balho difícil, demorado e que resulta pouco em números, mas é esse o traba-
lho principal a fazer, agora difícil como disse; (…) o segundo trabalho, que é
o das instituições, é um trabalho que se tornou complexo, porque os CNO
estão todos a fazer isso, e portanto quando eu vou a alguma instituição, já lá
foram quatro ou cinco CNO e portanto é um trabalho de concorrência mui-
to grande. (…). Portanto, trabalhar com as instituições é difícil. Depois, es-
tar aberto ao público-alvo e ter um cartaz ali fora, ‘CNO Fénix’, estamos
aqui para isso, mas (…) coloco em primeira linha as empresas, que é mais
difícil, mas é obviamente a única forma de ter um projecto sustentável (Co-
ordenador do CNO Fénix).
Nós temos uma plataforma, temos uma rede informal onde os centros reú-
nem periodicamente, e quando digo os centros… a diversos níveis, desde os
coordenadores, as equipes profissionais e cada uma delas naturalmente por
setores, também os profissionais de RVCC e os formadores, portanto reú-
nem, fazem também alguma formação ou autoformação, e há um espírito
salutar que move [enuncia quatro concelhos limítrofes]. (…) mas esta rede
informal permite aqui haver este diálogo, não há ninguém de costas voltadas
e portanto há (…) interligação em termos da intervenção no território (Di-
rector do CNO Vila da Vitória).
Portanto, a concorrência aí sente-se no dia-a-dia. Felizmente, aqui em [con-
selho] chegamos a um acordo, a um trabalho de rede. Então, para trabalhar
em rede, distribuímos os territórios. Cada um tem o território definido e
portanto tornamo-nos não só concorrentes … é certo que todos temos me-
tas a atingir e queremos atingi-las, portanto somos concorrentes. Mas pelo
menos não há aquela concorrência feroz, ainda bem que trabalhamos e co-
laboramos uns com os outros, não é? Distribuímos o tempo e os sítios e
desta forma ficamos com todos abrangidos de forma coerente13 (Coordena-
dora do CNO Estrela Polar).

13
Um outro responsável destaca desta forma o potencial promissor de consolidação de dinâmicas
de cooperação educativa nos territórios: “Os territórios estão-se a organizar no que diz respeito
às qualificações, têm sido dados passos nos últimos anos naquilo que é o trabalho em rede,
parceria entre centros e isto vai ter resultados no futuro. Ainda não está a ter propriamente no
presente, portanto está, passo a passo, de uma forma lenta, estão-se a produzir realmente
novas formas de transferência de conhecimento e de experiências e os territórios num futuro
próximo vão ter claramente um sistema organizado no terreno que coopera entre si, solidificado
naquilo que são as necessidades reais de cada região, as respostas efectivas a dar às pessoas.
Portanto, este modelo está a ser construído, aquilo que se teme é que no momento que o
modelo estiver afinado possa deixar de existir e portanto vai-se criar este problema às regiões”
(Coordenador do CNO Fénix).

101
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

2.2.2. O público e o privado em educação e política social. Parcerias e localização


dos problemas sociais
Alguns dos vetores importantes do debate sobre governação tomam
como mote o reposicionamento do Estado face ao mercado e ao chamado
terceiro setor14 e a redistribuição de papéis e tarefas entre esses domínios ins-
titucionais. Esse constituirá, aliás, um dos processos em curso na constitui-
ção da governação como nova matriz de regulação social, quer na sua ver-
são hegemônica de tônica neoliberal, quer na sua expressão contra-hege-
mônica de experimentação social com sentido político de construção de
processos participativos, em ordem a responder a aspirações de reconheci-
mento e redistribuição sociais. De acordo com Santos (2005), os papéis do
Estado e dos excluídos nos arranjos de governação em análise proporcio-
nam pistas de exploração desse ‘sentido político’; na perspectiva de Clarke
& Newman (1997), a dispersão do poder do Estado para a periferia é organi-
zada por, e efeito de, “cálculo estratégico” de um “centro estratégico” que
“procura manter o comando”. Desse modo, propõem os mesmos cientistas
sociais: “A dispersão foi uma estratégia política para reconstruir quer o Es-
tado quer a coordenação das suas funções de bem-estar”. De acordo com
as propostas teóricas que seguimos, esses processos envolvem a delegação
da autoridade do Estado para entidades “subalternas”, que atuam em seu
nome, configurando uma distribuição da “agência” (CLARKE & NEW-
MAN, 1997, p. 25 e 29). Nas palavras de Peroni, “a responsabilidade pela
execução das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade: para os
neoliberais, através da privatização (mercado), e para a Terceira Via, pelo
terceiro setor” (PERONI, 2012, p. 22). Por outro lado, no atual cenário de
transformações, os espaços nacional, local e global são recriados como pro-
cessos e relações sociais e como dimensões do mundo educativo.
Num estudo recente, argumentamos que a política pública de EFA
na primeira década do século XXI em Portugal ilustra “a expansão do po-
der estatal em conjunção com a sua retração e evasão”, que acompanham a
reestruturação de “o ‘público’ e o ‘privado’, bem como as relações do Esta-

14
Para alargar o debate em torno dessa problemática, a partir de um foco particular na constituição
e em desenvolvimentos do terceiro setor, consultar ainda, por exemplo, Ferreira (2009).

102
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do com cada um dos setores e domínios da vida”, que tipicamente


caracteriza(ra)m as reformas do Estado gestionário constituintes da nova ma-
triz de regulação social neoliberal, afirmada em práticas de governação. Os
testemunhos de responsáveis de CNO, que a seguir apresentamos, sublinham
processos e relações sociais e de poder que alimentam os “realinhamentos
institucionais” experimentados na governação do setor e dessa política de
EFA. As leituras que constroem a política sinalizam, a nosso ver:
(i) as consequências contraditórias da dispersão “como uma caracte-
rística estrutural” “e um processo que é enquadrado pelo poder centraliza-
do do Estado” (CLARKE & NEWMAN, 1997, p. 31);
(ii) a diversidade de perspectivas, interesses e experiências em intera-
ção no terreno das práticas;
(iii) a ambivalência potencial desses processos de reestruturação do
Estado e da coordenação do bem-estar.

Dispersão e centralização do poder do Estado na matriz de governação:


consequências contraditórias
Encontramos referências críticas, pela voz de responsáveis ligados a
associações de desenvolvimento local, ao movimento, ocorrido entre 2006/
2009, de envolvimento massivo de instituições públicas (escolas e centros
de formação) na rede de CNO, que integrou o dispositivo de RVCC, e de
Educação e Formação de Adultos; esse processo é apresentado como de
desconfiança e menorização da sociedade civil, acompanhadas de controle e
centralização crescentes por parte do Estado. Questionam-se a ‘estatiza-
ção’ e a ‘escolarização’ das práticas e do setor e reivindicam-se participação
e autonomia na construção de uma política local e institucional regulada e
supervisionada, mas não imposta ou manietada, pela autoridade pública.
Por outro lado, na mesma argumentação, são operadas duas redu-
ções: (i) os campos e as relações socioinstitucionais público/privado são
convertidos na oposição estatal/não estatal, simplificando e homogenei-
zando cada um dos termos; (ii) as entidades privadas, em particular, são
consideradas em abstrato como se esse estatuto institucional e jurídico cons-
tituísse uma propriedade clara e estática, uniforme e positiva em si mesmo.
São, assim, ignorados os realinhamentos institucionais (CLARKE & NEW-

103
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

MAN, 1997) e os processos de miscigenação que de há muito desafiam e


refazem em novos moldes as fronteiras, as distinções e as relações sociais
que criam os domínios em causa (cf., por exemplo, SANTOS, 1993;
MISHRA, 1996; ANTUNES, 2001, 2004; ADRIÃO & PERONI, 2005;
CARDOSO, 2005; BALL & YOUDELL, 2007).
São ainda omitidos, por um lado, a complexidade e heterogeneidade
internas dos universos formalmente organizados como público (na sua plu-
ralidade estatal, periférica, central, regional, local) e privado (nas suas com-
ponentes lucrativa, cívica, social, cultural), bem como os múltiplos interes-
ses potencialmente contraditórios que sustentam. Desse ponto de vista, o
local e a região são olhados como o espaço de ação e de desenvolvimento,
em torno do qual os consensos e mobilizações têm lugar ou são obstruídos;
desse modo, são silenciados outros contrastes e distinções (quem define o
bem público? que interesses legítimos pode acolher? como se articulam o
interesse público e geral com interesses privados e particulares? quem re-
presenta e realiza uns e outros?). Nessa perspectiva, o referencial de leitura
da governação do dispositivo de RVCC e da EFA é focalizado nos valores
da ação e desenvolvimento locais. A essa luz, o envolvimento na execução
da política é experimentado como uma relação insatisfatória (que inclui,
mas pode não ser dominada por tensões) por parte de atores para quem a
dependência do Estado central é uma condição, tantas vezes inevitável ou
procurada, da capacidade de influenciar a vida local; por esse prisma, fi-
cam visíveis fragilidades dessa sociedade civil organizada (secundária e tute-
lada) face à dispersão – distribuição da agência e delegação – do poder pelo
centro estratégico do Estado nos termos de Clarke & Newman (1997).
Devíamos caminhar neste momento para uma descentralização do poder,
confiar mais na sociedade civil e a sociedade civil já deu provas que é capaz
de gerir bem e que é capaz de gerir a mesma coisa com muito menos recur-
sos financeiros e que é capaz de gerir muito bem com menos recursos huma-
nos e que é capaz de gerir, com a mesma ou se não com mais qualidade que
o Estado, algumas das iniciativas que são importantes para as políticas do
próprio Estado (Director do CNO Vila da Vitória).

Em contradição com esse ponto de vista, outros testemunhos, de ato-


res de entidades públicas, como o responsável pelo CNO do Fénix, Centro
de Formação de Gestão Participada, descrevem a governação do dispositivo
RVCC, com contratualização do serviço envolvendo as entidades privadas

104
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

nos moldes em que ocorreu, como “um erro” “cruel”. Nessa perspetiva,
são sublinhadas implicações da reorganização do campo da educação e
formação de adultos segundo um modelo institucional e de regulação vol-
tado ao fomento do mercado da educação/formação e que descarateriza a
intervenção dos serviços públicos para os posicionar como um operador
entre outros. Nessa narrativa, a perspetiva de referência é o desenvolvimen-
to sobretudo econômico da região, assente no planeamento e na consolida-
ção da política pública de Educação e Formação de Adultos, como via de
qualificação de recursos humanos, que não se compagina com os interesses
particulares de instituições movidas por perspetivas de negócio.
(…) porque as entidades formadoras apresentam planos de formação mui-
tas vezes de acordo com as suas conveniências, de acordo com o modelo de
negócio que criaram e não de modo interligado com o interesse regional e
isso tem que estar concertado, o interesse regional com o interesse da enti-
dade. (…) é uma questão que eu acho que é fundamental, é que foi dada
abertura para qualquer tipo de instituição poder ser Centro Novas Oportu-
nidades, poder ter um Centro Novas Oportunidades e eu entendo que isso é
um erro crasso do sistema de educação e formação de adultos, porque clara-
mente quem tem o domínio desta matéria e o domínio histórico e tem valên-
cias e qualidade de trabalho são as escolas, porque toda a vida fizeram tam-
bém a formação de adultos e são os Centros de Formação da rede do IEFP.
(…) A educação de adultos não pode ser tratada como uma matéria de ne-
gócios, não há negócio, é uma matéria estrutural, é uma matéria que exige
investimento e não pode ser visto como um negócio e, portanto, como não
pode ser visto como um negócio, vejo de forma cruel entregue ao setor pri-
vado. (…) O Estado aproveitou o facto de existir setor privado na formação
e deu-lhes mais uma oportunidade para o seu negócio (…) Portanto houve
aqui um desresponsabilizar (…) o que acho é que o setor público tem uma
maturidade diferente (…) enquanto que o setor privado tem um negócio
momentâneo, não dá, fechou (Coordenador do CNO Fénix).

A formulação desse entrevistado simplifica também as relações sociais


de coordenação institucional estatal, mercantil e do terceiro setor e consti-
tuintes dos domínios público e privado, ainda que com preocupações e sen-
tidos diferentes daqueles identificados no posicionamento anterior. Argu-
menta-se agora a favor da ‘estatização’ (formalização e escolarização) do
campo da educação e formação de adultos. Desse modo, a oposição ao
envolvimento da componente do ‘negócio da formação’ alicerça-se na con-
vicção de que tal constitui um desvio de recursos e bens públicos comuns
por interesses particulares, permitido pela fórmula de governação adotada

105
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

para essa política pública. Essa posição omite, no entanto, os agentes de


EFA oriundos e envolvidos com dinâmicas, intervenções e movimentos
culturais, cívicos e sociais. E a história da Educação de Adultos em Portu-
gal e pelo mundo mostra (tanto através de exemplos negativos como positi-
vos) que, numa perspetiva de participação democrática, realização de direi-
tos e justiça social, o protagonismo desses atores coletivos é tão indispensá-
vel como a responsabilidade, a coordenação e a construção de articulações
fortes entre as estruturas e políticas públicas e estatais e a ação autônoma e
organizada dos cidadãos. Essa evidência é testemunhada em Portugal pela
fratura geracional verificada nos níveis de escolarização e desenvolvimento
educativos que, na população adulta e após mais de trinta anos de demo-
cracia, assumem valores baixíssimos e anômalos no contexto europeu (cf.,
entre outros, MELO et al., 1998; 2002; LIMA, 2007).
Por sua vez, a coordenadora do CNO da ADL Estrela Polar visibiliza
o lado mais instrumental dessa mediação da política social protagonizada
pelas entidades subcontratadas, “quando a sociedade civil é muito mais
chamada a executar tarefas do que a participar nas decisões e no controle
social”, avultando que “a democratização seria apenas para repassar tare-
fas que deveriam ser do Estado. A sociedade acaba se responsabilizando
pela execução das políticas sociais em nome da democracia” (PERONI,
2012, p. 22).
A ambiguidade e a ambivalência dos processos que constroem esses
arranjos institucionais insinuam-se no discurso em que transparece a tenta-
tiva de uma débil articulação de lógicas em tensão. Nesse caso, a deriva
assistencialista e remediativa – que remete para ‘o local’ a sustentação do
laço social fragilizado e a compensação das múltiplas fraturas, geradas pela
insegurança e riscos econômicos e pelas omissões e insuficiências das polí-
ticas econômicas e sociais – não chega a extinguir a afirmação de dinâmi-
cas de subsidiariedade e de um espaço de ação próprio, desse modo reduzi-
dos à sua mínima expressão.
Eu acho que havia consciência de que o setor público não tinha a abertura,
nem a proximidade necessária às populações para conseguir mobilizá-las e
atingir os objetivos de qualificação e, portanto, esta procura. Esta estratégia
foi: (…) “se eu sei que não sou capaz de chegar lá com os meus recursos, sei
que há entidades no terreno que são privadas e, portanto, à partida muito

106
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

mais flexíveis e estão preocupadas em provar que conseguem”… (…) Por-


que [o Estado] viu que era a única forma de conseguir responder ao máximo
de população possível. Por si só, pelas práticas de trabalho, pelo distancia-
mento que tem das populações, pelo desconhecimento e isto leva a que não
conheçam tão bem as mesmas, as suas necessidades e a forma para ajudá-las
e o setor associativo acaba por ser…, acaba por ter que lhes responder e é
isso. Eu acho que essa foi a grande estratégia do Estado (Coordenadora do
CNO Estrela Polar).

Uma outra posição, pela voz da responsável de uma entidade autár-


quica, valoriza a diversidade de agentes envolvidos, considerando que tal
alargamento potencia a capacidade de mobilização da população para a
EFA e a riqueza das práticas. Na perspectiva dessa entrevistada, o desen-
volvimento da política ganhou, no terreno e em certas dimensões, uma di-
nâmica que vem influenciando os processos e as práticas. Nessa medida,
enaltece a mobilização social em torno da educação como base para a con-
solidação da política.
Se isto tivesse sido uma iniciativa confinada às escolas, na minha opinião
não teria esta envergadura que tem hoje, penso que não tínhamos chegado a
tanta gente, não tínhamos uma resposta tão significativa nem um envolvi-
mento tão grande da comunidade, portanto eu vejo isto como positivo. (…)
Na minha opinião depois de termos aberto à comunidade é difícil voltarmos
a fechar, mas fala-se de facto que os Centros se transformem em estruturas
de aprendizagem ao longo da vida. Se deveríamos confinar isto a uma esco-
la? Não. Se deveríamos confinar isto ao Centro de Emprego, ou ser uma
extensão do Centro de Emprego? Também penso que não, porque de facto
eu acho que este projeto ganha pela diversidade que tem, por envolver enti-
dades tão heterogêneas e tão ricas na sua diversidade (…) pode não ser Cen-
tros Novas Oportunidades, pode não ser nestes moldes, mas a educação de
adultos, depois disto a que nós assistimos dificilmente será esquecida, pelo
menos é essa a minha expectativa (Coordenadora do CNO do Rosal).

As argumentações contraditórias e parcelares (tal como a visível par-


cialidade dos posicionamentos) testemunham bem a diversidade e a diver-
gência de interesses e interpretações sustentados pelas entidades envolvidas
na governação do setor. Assim, no caso vertente, a dispersão, enquanto es-
tratégia de transformação da coordenação dos serviços de bem-estar, insti-
tui a delegação de autoridade de Estado para agir em seu nome, terá sido
bem-sucedida na manutenção do controle da política pelo centro estratégi-
co estatal.

107
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

2.3 A nova ordem educacional: centralidade económica,


legitimação e expansão, sem compromisso do Estado
Se as políticas de EFA em Portugal, há cerca de 15 anos, nos apare-
cem integradas na tendência global de “regresso” da educação/aprendiza-
gem ao longo da vida (E/ALV), num novo contexto e num novo registro
políticos, o protagonismo da UE nesse movimento marca também a consti-
tuição dessa nova ordem educacional: a E/ALV é colocada no centro da
economia e no topo das prioridades políticas, quer na Estratégia Europeia de
Emprego (1997), quer na Estratégia de Lisboa (2000). A dupla centralidade,
para a competitividade e a coesão social, que a educação assume nessas
políticas, expressa o seu reposicionamento como política econômica e de
emprego na sociedade/economia do conhecimento e de riscos, minimizan-
do as dimensões culturais, cívicas e de redistribuição (justiça) e reconheci-
mento sociais.
A politicidade da educação como projeto de sociedade, porque en-
volve a formação de sujeitos e comunidades, implica questionar a nova or-
dem educacional em construção: a que educação acede quem, como, em
que condições e com que consequências? A agenda oficial dominante na
UE caracteriza-se, assim, pela dupla redução e centralidade da educação/
aprendizagem ao longo da vida e destaca o seu valor econômico e o seu
foco remediativo e compensatório; no entanto, esse é um campo de luta e
debate políticos, em que o confronto de discursos, concepções e práticas
tem lugar.
Pode ainda apreender-se a mediação das tendências globais pela UE:
por exemplo, os Quadros Comunitários de Apoio, desde os anos 90 do sé-
culo XX, permitem canalizar para Portugal um volume de financiamento
cujo impacto expressa a estruturação global da agenda política nacional
para a educação. No caso em estudo, a governação do dispositivo de RVCC,
no quadro da política pública de EFA, permitiu ao Estado português ex-
pandir a oferta pública de educação e a população abrangida, sem ampliar
o perímetro do Estado de Bem-estar e sem se comprometer com estruturas
permanentes voltadas a garantir o direito à educação das populações adul-
tas. Argumentamos que essa opção de prescindir de um sistema público de
EFA revela o sentido político da governação em construção (como matriz

108
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sociopolítica de regulação social), pela manifesta evasão do Estado, mais sa-


liente ainda num quadro em que àquela política socioeducativa é atribuída
prioridade (sob compromisso limitado) (ANTUNES, 2011).
O centenário obscurantismo programado por parte das elites portugue-
sas (MELO, 2004) tem no continuado sacrifício do direito à educação da
população adulta, mesmo no Portugal democrático, uma das mais pungen-
tes revelações dos défices estruturais do semi-Estado-Providência português
(SANTOS, 1990). A história social e econômica e a estrutura social que pre-
sidiram a simultânea crise e consolidação daquele (cf. SANTOS, 1990; STOER
& ARAÚJO, 1992; AFONSO, 1998; CANDEIAS, 2009), ao longo dos anos
1970 a 1990 e na 1ª década do seculo XXI, constituem vetores da especifici-
dade portuguesa, que se expressa na política de E/ALV, desenvolvida no qua-
dro das políticas europeias nos últimos anos. Como sugerimos em outros
trabalhos, essa dimensão nacional das políticas de educação e formação é
ainda fabricada pela ação de ativistas educacionais e pedagogos progressistas
que não cessaram de articular vozes, propostas e práticas a favor dos segmen-
tos vulneráveis ou em risco de abandono pelas elites portuguesas, que persis-
tem na reiterada ausência de políticas voltadas à concretização do direito das
populações à educação e ao desenvolvimento (ANTUNES, 2011).

2.3.1. Governabilidade, estatização e alargamento instrumental do círculo


da governação: ação e luta político-pedagógicas no terreno educacional
Os testemunhos de responsáveis permitem observar uma apropria-
ção institucional diversa por parte das entidades envolvidas na política em
ação no terreno. Assim, uma distinção se vislumbra entre as questões colo-
cadas por Associações de Desenvolvimento Local (ADL) e outros agentes,
públicos e privados, escolares e não escolares. A democraticidade do mode-
lo de política implementado, em termos da relação do Estado com a inter-
venção local organizada dos cidadãos, a autonomia, a consistência e o im-
pacto da ação colectiva desses, a integração comunitária dos processos edu-
cativos, a multidimensionalidade da política de EFA são questões especifi-
camente colocadas pelos responsáveis oriundos de ADL. Os relatos suge-
rem que o envolvimento dessas entidades na execução de políticas públicas
realiza uma versão de subsidiariedade em que não é rara a experiência de

109
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

instrumentalização, de dependência e de amputação da capacidade de ação.


O discurso articulado por esses entrevistados dá voz a uma interpretação
sensível à politicidade da ação educativa e organizada dos cidadãos.
O mesmo ponto de vista distingue a leitura construída pelos diversos
sujeitos quanto a uma questão comum: a contratualização do serviço com
o Estado. Se o caráter unilateral e as limitações da ação educativa decorren-
tes das condições impostas são verbalizadas em uníssono, os agentes das
ADL tendem ainda a questionar essa ‘cegueira’ da política quanto a seus
impactos nas dinâmicas socioeducativas locais e de desenvolvimento dos
territórios. Emergem assim, nas leituras por eles articuladas, reivindicações
de reconhecimento, pelos responsáveis políticos, da especificidade dos ter-
ritórios, das necessidades das suas populações e das demandas aí formula-
das também pela voz desses coletivos organizados de cidadãos.
A regulação da intervenção educativa através de resultados mensurá-
veis e quantitativos e a delimitação da ação pedagógica pelas regras de finan-
ciamento contribuem para conformar a política em ação, desencorajando o
desenvolvimento de atividades que extravasem a focalização oficial nas va-
lências formais com certificação e equivalência escolar e profissional.
Por último, os testemunhos sobre a panóplia de entidades envolvidas
para executar a política mostram, talvez de modo mais evidente, a política
em ação como ação política, num quadro em que se afirmam narrativas,
pontos de vista e interesses, disputam-se a legitimidade, os recursos e a in-
fluência no contexto local: para construir e distribuir oportunidades, para
fortalecer ou criar capacidade de ação individual e coletiva, para incluir ou
excluir, para categorizar, criar ou destituir identidades e coletivos. Se o qua-
dro de ação descrito pelos sujeitos é clara e fortemente delimitado pelas
condições e estruturas em presença, pelas disposições da política, também
parece claro que aquela ação dentro de limites representa um certo poder
que os entrevistados não negligenciam ou desvalorizam e que constitui uma
capacidade delegada do Estado para agir em seu nome. Por isso os termos,
condições e horizontes que acompanham essa delegação são interpretados,
disputados e contestados de modos distintos pelas diversas categorias de
agentes entrevistados.
Em suma, encontramos relatos que frisam a subalternização dos agen-
tes contratados e reivindicam autonomia para desenvolver políticas e proje-

110
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

tos, afirmando ainda legitimidade e competência alternativas à ação de agen-


tes estatais. Não são, no entanto, evocadas ações fundadas em formas de
poder social alternativas ou separadas do Estado, para lá da provável influên-
cia, assim alicerçada, em certos processos e domínios da vida local. Sinali-
za esse silêncio a fragilidade da ação organizada – de base, autônoma e
sustentada – dos cidadãos, reiteradamente observada em Portugal (SAN-
TOS, 1993; HESPANHA et al., 2000; LIMA & AFONSO, 2006)?
Numa argumentação em sentido diferente, é apontada a submissão
do bem público comum e do interesse geral15 a lógicas privadas de obtenção
de lucro, associadas ou não à influência de interesses particulares dos desti-
natários da formação, assim convertidos em consumidores. A posição sus-
tentada sugere que o setor evidencia sinais de cooptação por formas de
poder social, cujas fontes são quer o mundo comercial/empresarial local,
quer a procura individual. O processo assim referido evoca a instabilidade
estrutural associada à dispersão do poder do Estado nas formas de coordena-
ção do bem-estar social, postas em marcha pelas reformas do Estado gestio-
nário (CLARKE & NEWMAN, 1997).
Outras leituras dão conta quer da expectativa da consolidação da
política através da mobilização social potenciada pelo envolvimento de uma
miríade de entidades heterogêneas, quer da ‘localização’ da gestão dos pro-
blemas e do controle sociais, convocando para esse fim as organizações de
cidadãos. Essas, mesmo quando capacitadas pelo envolvimento com as rea-
lidades das populações, encontram-se assim como braços subsidiários de
agendas políticas (assistencialistas, paliativas e remediativas), que não deci-
dem, mas executam em favor da legitimação do Estado e da sustentação da
ordem social. Por essa via, permite-se o Estado distanciar-se de compro-
missos e demandas vinculados a direitos sociais da população mais desfa-
vorecida e abandonada em virtude do centenário obscurantismo programado
das elites portuguesas e agora também excluída – em resultado dos défices
do recente semi-Estado-Providência português e dos fracassos das atuais

15
O bem público comum e interesse geral, do ponto de vista desse entrevistado, relacionam-se
com o desenvolvimento econômico dos territórios e consolidação da política de educação e
qualificação das populações.

111
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

políticas econômicas, sociais e de emprego voltadas à criação da governa-


ção neoliberal.
Coloca-se, assim, a questão de interpelar entendimentos, discursos e
práticas sobre as lógicas da ação e desenvolvimento locais: Em que medida
as reivindicações e valorizações em seu nome se constroem numa lógica de
‘localização’ dos problemas, fracassos e contradições, aliviando a carga de
legitimação e responsabilidade do Estado central? Como procuram abrir ca-
minhos para a redefinição dos problemas e a recriação das relações sociais
(CORREIA & CARAMELO, 2003)? Em que termos logram contribuir para
capacitar os excluídos, aumentar o seu controle sobre as próprias vidas e a
sua influência e participação nas decisões que afetam a sua existência e a
das suas comunidades?
A governação implementada como matriz de regulação social de ma-
tiz neoliberal apresenta-se como um realinhamento institucional na natu-
reza, papel e forma de organização do Estado, na coordenação do serviço
público de educação, com implicações para a natureza desse e do direito a
que se encontra vinculado.
Essa nova matriz de regulação social pode ser compreendida obser-
vando as dimensões em que se constitui como propriedade do sistema – (i)
mediações sociais: para coordenar comportamentos individuais e coleti-
vos, institucionalizar conflitos sociais e conter ameaças à coesão social e
(ii) sentido político: o lugar do Estado e dos excluídos; os efeitos em termos
de reconhecimento e redistribuição (justiça) sociais – e como espaço de
ação e luta política que realiza, mantém e modifica aquela.
Nesse sentido, encontramos nesses relatos da governação em ação
expressões da institucionalização da reforma gestionária de dispersão (retra-
ção e expansão) do poder do Estado: observamos que esse se assume como
gestor estratégico, monopoliza o centro de decisão da política, convoca as
organizações da sociedade civil e contratualiza a execução para nelas dele-
gar parcelas de poder, responsabilidades e funções do Estado.
Encontramos ainda disputas em torno da institucionalização dessa
modalidade de provisão de serviços educativos, ilustrativas da governação/
regulação como espaço de luta e ação política. Assim, nos testemunhos são
desfiados: (i) a contestação da democraticidade da política em termos de
participação e autonomia, de reconhecimento da voz e do espaço de inter-

112
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

venção próprios das comunidades e entidades locais; (ii) o desafio persis-


tente aos limites impostos ao âmbito da ação educativa e o esforço de enri-
quecimento da ação pedagógica e dos espaços e processos de aprendiza-
gem; (iii) a dinâmica de construção de relações interinstitucionais de coo-
peração local. Lado a lado, assomam ainda: a preocupação em produzir
resultados e conquistar espaço e ‘clientes’ no ‘mercado’ da educação e for-
mação de adultos; a adesão a visões espartilhadas, instrumentais e parcela-
res do setor ou a colonização do mesmo por perspectivas e linguagens hoje
hegemônicas e importadas da economia e da gestão ou mesmo, e não rara-
mente, uma conceção política autoritária, desqualificante e carencialista
das populações e destinatários da ação pública.

3. Apontamentos finais
A exploração das questões de investigação permitiu observar alguns
aspectos da dimensão nacional da política de E/ALV na primeira década
do século XXI, agora apreendida através dos testemunhos recolhidos sobre
perspetivas, orientações e práticas sustentadas por responsáveis institucio-
nais16. A análise de cursos de ação e pontos de vista sugere os contornos de
delimitação e de capacitação de ação, colocados pelos termos da política
do Estado gestionário. Assim, em síntese, queremos salientar certos traços de
apropriações locais e institucionais do dispositivo de RVCC no quadro da
política de EFA:
(i) a mobilização social muito significativa, quer de entidades, quer
da população adulta, para processos de educação e formação de adultos;

16
Num outro trabalho, a partir da análise de documentos programáticos, de estudos e de outros
elementos empíricos de âmbito limitado, sobre o desenvolvimento da política de EFA,
propusemos que em Portugal essa verificou: (i) a ambivalência entre uma política social
multidimensional e uma política para/segundo a economia, reduzida às vertentes formais da
EFA; (ii) a omissão e o compromisso limitado do Estado com o direito à educação da população
adulta portuguesa, por um lado, ampliando a oferta pública e a população abrangida e, por
outro lado, prescindindo de uma política global e de um sistema público de EFA; (iii) o
desenvolvimento da política no quadro de programas temporários e estruturas provisórias,
baseados na precarização inflexível de direitos sociais da população e dos trabalhadores
envolvidos (ANTUNES, 2011).

113
ANTUNES, F. • Reforma do Estado e políticas públicas: a governação em ação

(ii) interpretações críticas, por parte das associações de ADL, da po-


lítica de dispersão (delegação e expansão) do poder do Estado, assinalando a
sua ‘cegueira’ quanto ao desenvolvimento e às dinâmicas socioeducativas
locais;
(iii) a valorização da prioridade política atribuída à EFA, mesmo se
reduzida a valências formais certificadoras;
(iv) adesão a conceções e formulações importadas da economia e da
gestão, que empobrecem o universo, a política e a prática educacionais e
pedagógicas, silenciando e negligenciando o seu patrimônio de pensamen-
to, experiências e linguagem próprios;
(v) perspetivas divergentes (estatização e privatização) quanto à fór-
mula institucional adotada para o desenvolvimento do dispositivo de RVCC,
relevando interesses e projetos em disputa no terreno da ação educativa;
(vi) estatização parcial alargada, sem estrutura pública permanente,
e desenraizamento comunitário e local do dispositivo de RVCC e da rede
de EFA;
(vii) fortalecimento de lógicas concorrenciais de quase mercado e de
mercado da formação, criando e sustentando agentes operadores e fornece-
dores e processos de regulação que chegam a gerar fenômenos de substitui-
ção do bem-comum pela cooptação dos serviços em favor de interesses par-
ticulares;
(viii) esforços e práticas embrionárias e intermitentes de constituição
de dinâmicas e redes de cooperação interinstitucional e de atuação coorde-
nada, bem como de ampliação do âmbito da intervenção socioeducativa e
pedagógica, que, não podendo ser ignoradas, dificilmente chegam a conso-
lidar-se como alternativas;
(ix) em consequência, a subsidiariedade instrumental e dependente
da ação organizada dos coletivos de cidadãos em favor da coesão e do con-
trole sociais, na execução da política segundo os objetivos traçados pelo
Estado, concorrendo ativamente para a sua legitimação;
(x) criação de uma fórmula de coordenação (governação) de financia-
mento, fornecimento, regulação e propriedade das atividades e estruturas
de educação e formação, segundo um modelo de programa temporário, orga-
nismos provisórios, vínculos precários e contratualização: amplia a oferta públi-
ca, sem responsabilizar e comprometer o Estado; precariza os direitos de

114
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

produtores e de destinatários dos serviços e não garante o direito humano e


social básico da população adulta à educação.
Em suma, a governação em ação revela uma política pública de Educa-
ção e Formação de Adultos, cujo sentido responde sobretudo e em primei-
ra mão a preocupações de governabilidade, com a evasão do Estado face a
compromissos com direitos e demandas das populações, mesmo se subal-
ternizadas e fragilizadas. A débil presença dos excluídos – através da atua-
ção de organizações e ativistas educacionais e pedagogos progressistas no
terreno – revela-se insuficiente como fonte de poder para vincular a política
às suas necessidades e interesses. A mudança educacional impulsionada
nessa política pública integra elementos de privatização, mercantilização e
liberalização da educação, articulados com processos de estatização e de
alargamento instrumental do círculo da governação. Desse modo, a incorpo-
ração da ação organizada e coletiva dos cidadãos no desenvolvimento da
política, segundo os termos e objetivos definidos pelo governo, e a delega-
ção do poder do Estado por essa via são acompanhadas pela expansão do
seu controle e capacidade de legitimação. Nesse sentido, tendem a ficar con-
dicionados, desvitalizados e dificultados os esforços e as práticas de enraiza-
mento comunitário e de ampliação do âmbito da intervenção socioeducativa
e pedagógica, que poderiam consolidar-se como alternativa na criação de
vínculos dessa inovação com a redistribuição e a emancipação sociais. Des-
se modo, ainda que intersticiais, a ação e a luta político-pedagógicas assu-
mem expressão e forma em discursos e práticas tão persistentes quanto con-
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119
Paixão pela educação... privada
– Educação e terceira via em Portugal:
da Revolução dos Cravos aos nossos dias

Raquel Varela
Sandra Duarte

Educar na revolução
No dia 25 de abril de 1974, um golpe levado a cabo pelo Movimento
das Forças Armadas (MFA) põe fim à ditadura portuguesa. De imediato, e
contra o apelo dos militares, milhares de pessoas saíram de casa, e foi com
as pessoas à porta, a gritar “morte ao fascismo”, que no Quartel do Carmo,
em Lisboa, o governo foi cercado; as portas da prisão de Caxias e Peniche
abriram para saírem todos os presos políticos. Uma semana depois do gol-
pe que põe fim a 48 anos de ditadura, a celebração do 1º de maio de 1974
junta nas ruas de Lisboa meio milhão de trabalhadores e 2 milhões em todo
o país, 20% da população total de Portugal. As palavras de ordem demo-
cráticas já se misturavam com reivindicações sociais (salário mínimo, etc.).
Um mês depois do golpe, a capital do país está paralisada com greves.
A revolução portuguesa foi marcada pelo protagonismo político de
um poderoso movimento operário e social que atingiu amplos setores da
sociedade portuguesa. Para além dos trabalhadores diretamente ligados à
produção de valor, e particularmente os operários industriais, a revolução
portuguesa caracterizou-se por conflitos sociais muito radicalizados no mo-
derno setor laboral dos serviços, o setor informal, uma ampla participação
das mulheres e os setores intermediários e de base das forças armadas e um
amplo e radical movimento que alterou as bases estruturais do ensino, in-
troduzindo aquele que foi até dois anos o sistema mais democrático de
gestão das escolas em toda a Europa ocidental.

120
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A escola do biênio 1974-1975 era a escola do court de tênis ocupado


pelos trabalhadores para se tornar uma creche (TREFFAULT, 2004); era a
escola onde foi introduzida a gestão democrática; era também a universida-
de dominada pelas correntes de extrema esquerda, insufladas pelo maio de
1968 e as revoluções anticoloniais. Ficaram famosas as reuniões gerais que
se prolongam noite adentro, a abolição dos exames, a transformação das
cantinas em embriões de soviete, onde se discutia tudo, dos conteúdos pro-
gramáticos de história à libertação sexual. Em 1975, depois uma greve na-
cional generalizada, o Ministério da Educação e Cultura declara nervoso
que as “reuniões gerais de alunos não podem revogar decretos do Gover-
no” (Jornal REPÚBLICA, 1975, p. 12). Apesar das críticas maoístas que
viam na escola um lugar de reprodução social na década de 1970, a escola
em Portugal foi palco privilegiado da luta de classes.
O país que chega ao 25 de abril de 1974, em termos de instrução, não
é, contudo, o mesmo do Portugal profundo, atrasado, de Salazar nos anos
1940. A industrialização dos anos 1960 vai, mesmo no quadro de ditadura,
levar a burguesia a tomar a iniciativa de introduzir alterações na educação.
Durante a década de 1960 e início da década de 1970, há alterações
econômicas mundiais que modificam a estrutura de classes das sociedades
da Europa do Sul e consequentemente a educação – falamos de contrariar
a baixa tendencial da taxa de lucro por meio da exploração intensiva do
trabalho à escala mundial. Esse fator vai impulsionar a industrialização dos
países periféricos e semiperiféricos com o consequente crescimento da clas-
se operária industrial e do setor terciário e a diminuição da classe campone-
sa em um processo de crescente urbanização e desruralização (BARRETO,
2005). É num quadro de expansão do modo de produção capitalista (SAN-
TOS; LIMA; FERREIRA, 1976) que se devem compreender as transfor-
mações econômicas que levaram à mudança do panorama social e político
de Portugal na década de 1960. Com a intensificação da industrialização,
as cidades aumentam desordenadamente e com muitos bairros de lata1,
onde se albergam os que partiram dos campos. Essas alterações vão origi-
nar paulatinamente uma grande concentração da classe operária portugue-

1
Favelas.

121
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

sa nas duas margens do rio Tejo, junto a Lisboa e no distrito de Setúbal. O


país muda. A população rural ativa passa de 44% em 1960 para 28% em
1973, ao mesmo tempo em que a população industrial ativa passa de 29%
para 36% (CLEMENTE, 2000). Em 1970, três quartos da população ativa
é assalariada. Mais de dois terços dos trabalhadores da indústria (67,4%)
concentravam-se em unidades fabris com mais de 20 pessoas. Santos, Lima
e Ferreira (1976) afirmam que houve um alargamento da classe operária,
entre 1950 e 1970, de 768 mil para 1,020 milhão, isso em um quadro de
verdadeira sangria de mão de obra com destino aos países mais ricos da
Europa Ocidental (1,5 milhão de pessoas abandonaram o país entre 1950 e
1970). É também na década de 1960 que as mulheres “acedem, maciça-
mente, ao trabalho industrial, agrícola e dos serviços”. Há uma mudança
geracional diante do período do pós-guerra: uma classe operária jovem,
que se torna adulta já na cidade, que trabalha mais e com nova organização
do trabalho e racionalização do processo produtivo.
O sistema educativo sofre pequenas mudanças em 1965: alargamen-
to da escolaridade obrigatória de quatro para seis anos (para alunos do sexo
masculino), criação da tele-escola (escola por difusão em rádio e TV), a
uniformização do 5º e 6º anos de escolaridade acabando com a oferta di-
versificada (ensino liceal ou ensino técnico) após realização de exame de
admissão. Em 1973, é aprovada a reforma educativa de Veiga Simão, que
introduz algumas inovações: o ensino pré-escolar é incluído no sistema de
ensino, a escolaridade obrigatória passa de seis para oito anos de idade, o
ensino secundário é reestruturado em dois ciclos, cada um deles com dura-
ção de dois anos, passa a haver oferta de formação profissional e o ensino
superior passa a ministrar cursos de curta duração (institutos politécnicos),
de longa duração e pós-graduações (universidades), abrindo a possibilida-
de a indivíduos maiores de 25 anos sem as habilitações acadêmicas usuais a
ingressar nesse tipo de ensino (CARVALHO, 1996).
Do ponto de vista da direção, a escola não muda, porém. É dirigida
por um reitor, um docente, que estava à frente da escola e que era da total
confiança do governo e do regime.
Apesar do maior acesso à escola, feito nos anos 1960, essa é ainda
uma escola elitista. Só “quem tinha dinheiro”, dizia-se nos meios popula-
res, podia estudar, e não existiam escolas nem professores em zonas rurais.

122
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Apesar da obrigatoriedade do ensino ser de seis anos desde 1965, em 1974


26% da população é analfabeta, 85% das crianças com idades compreendi-
das entre 6 e 10 anos frequentavam apenas o 1º ciclo (os primeiros quatro
anos de escolaridade) e apenas 28% das crianças com idades entre os 10 e
12 anos encontram-se matriculadas no 2º ciclo (os 5º e 6º anos de escolari-
dade)2.
A revolução muda tudo a uma velocidade surpreendente. Alteram-se
conteúdos programáticos, condições de trabalho para docentes e para pes-
soal não docente e condições de estudo para alunos. São criadas redes de
transporte escolar; foram construídas novas escolas, cantinas e residências
escolares, foram estipulados subsídios para alunos carentes e houve a distri-
buição do leite escolar (entre outras medidas). A oferta curricular é unifor-
mizada para o 7º, 8° e 9º anos de escolaridade (a frequentar por alunos
entre 12 e 15 anos de idade), deixando de haver os ramos de ensino liceal e
ensinos técnicos comercial, industrial e agrícola. Esse princípio do ensino
unificado era uma reivindicação das correntes marxistas, que criticam a
separação, logo com 10 anos de idade, entre o ensino liceal e o ensino técni-
co, abrindo assim as portas à divisão estrita entre trabalho manual e traba-
lho intelectual.
Em 1974-1975, reintroduz-se o carácter laico na educação (princípio
da 1ª República em 1910) com a retirada de todos os símbolos religiosos
das salas de aula, com o fim da obrigatoriedade da disciplina de Religião
(Católica) e Moral, entre outras medidas. Extinguem-se a Mocidade Portu-
guesa e a Mocidade Portuguesa Feminina (uma estrutura de enquadramento
da juventude do antigo regime), que haviam sido criadas em 1936 e 1937 e
que abrangiam todos os portugueses, estudantes ou não, com idades com-
preendidas entre 7 e 14 anos de “todo o império português”. Acaba-se com
a separação dos alunos em turmas por gênero sexual.
Também no plano da gestão, em 1974 e 1975 são introduzidas mu-
danças que só serão alteradas em 2008. Deixa de haver o cargo de diretor
ou de reitor, os órgãos de gestão das escolas (Conselho Diretivo e Conselho

2
50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação e
Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

123
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

Pedagógico) passam a ser democráticos, ou seja, passam a ser eleitos pelos


seus pares, e no Conselho Pedagógico há representantes dos docentes, do
pessoal não docente, dos alunos, dos pais e encarregados de educação e de
outros elementos com intervenção na escola e/ou no processo educativo.
São formadas as associações de pais e de encarregados de educação, associa-
ções de estudantes, sindicatos de professores e sindicatos de pessoal não
docente (alguns integrados nos sindicatos da função pública). Essa gestão,
muitas vezes culpabilizada pela ineficácia da gestão escolar pelos partidos
da terceira via e da direita liberal, permite-nos compreender a dificuldade
que foi introduzir as reformas neoliberais em Portugal durante os anos 1980
e 1990, porque, uma vez aprovadas no governo, as reformas esbarravam de
fato, embora de forma desigual de escola para escola, na força dos conse-
lhos diretivos das escolas e das associações de pais.
Também no ensino superior há alterações nos programas curricula-
res, assim como nas condições de acesso. Nas universidades, em 1974-1975,
multiplicavam-se os plenários com milhares de estudantes, saneamentos3
de professores conotados com o regime fascista e instaurava-se um clima
deliberativo permanente. No dia 23 de maio de 1974 começa uma greve no
ensino secundário, e no dia 25 de maio de 1974 cerca de 10 mil estudantes
manifestam-se pelo fim dos exames no acesso ao ensino superior. O resulta-
do foi que o governo foi obrigado a deixar entrar nas universidades todos os
alunos que tivessem aprovação independentemente da nota final, o que sig-
nificou um aumento para o dobro do número de estudantes universitários.
Passava-se, no espaço de um mês, de 14 mil estudantes com direito a entrar
na universidade para 28 mil (OLIVEIRA, 2004). São dados aos alunos do
ensino técnico profissional e do ensino médio condições de acesso ao ensi-
no superior, assim como a pessoas com idade superior a 25 anos de idade e
a trabalhadores com uma atividade comprovada de cinco anos. Os institu-
tos industriais de ensino médio são convertidos em institutos superiores e
passam a ter autonomia administrativa. Também as universidades passam

3
“Saneamento” foi uma palavra que nasceu na gíria popular no início da revolução, para classi-
ficar os processos de destituição de dirigentes ligados ao Estado Novo de cargos de responsabi-
lidade política, bem como de empresários e patrões das empresas ocupadas.

124
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

a dispor de autonomia pedagógica, financeira e científica, e os seus órgãos


são também eleitos pelos seus pares, havendo órgãos em que há representa-
ção do pessoal docente, do pessoal não docente e do pessoal discente. O
ensino é gratuito.
Tudo isso se passa no espaço de 19 meses.

O falhanço do neoliberalismo na privatização do ensino


No dia 25 de novembro, um golpe de Estado põe fim ao processo
revolucionário. Seguem-se anos conturbados. Uma intervenção do FMI em
1977 e a difícil gestão da contrarrevolução democrática que contabiliza dez
governos com apoio parlamentar do PS (social-democratas), PSD/PPD
(liberais) e CDS (conservadores) entre 1976 e 1986. Nessa altura, ninguém
ousa mexer na herança deixada pela revolução no Ministério da Educação.
Será precisa a adesão à então CEE (Comunidade Econômica Euro-
peia) e a eleição de um governo minoritário e dois governos de maioria
absoluta de Cavaco Silva (1985-1995), o “Reagan português”, para se co-
meçar a dar os primeiros passos nas mudanças em face da revolução.
Em 1986, 100% das crianças entre os 6 e os 10 anos de idade encon-
tram-se matriculadas no 1º ciclo, 63% das crianças entre os 10 e os 12 anos
de idade encontram-se matriculadas no 2º ciclo e 41% das crianças entre os
12 e os 15 anos encontram-se matriculadas no 3º ciclo4.
Nesse ano, é aprovada a Lei de Bases do Ensino5, que estabelece o
quadro de referência da reforma do sistema educativo. No Decreto-Lei nº
286, de 29 de agosto de 1989, são definidos os planos curriculares dos ensi-
nos básico e secundário e onde se pode ler:
A estrutura curricular agora aprovada procura responder ao complexo de
exigências que tanto no plano nacional como no plano internacional se co-
locam ao nosso sistema educativo: a construção de um projecto de socieda-
de que, preservando a identidade nacional, assuma o desafio da moderniza-
ção resultante da integração de Portugal na Comunidade Europeia. Nesse
sentido se decidem as opções que fundamentam a organização curricular

4
50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação e
Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.
5
Lei nº 46/86 de 14 de outubro.

125
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

dos ensinos básico e secundário: valoriza-se o ensino da língua portuguesa,


como matriz de identidade e como suporte de aquisições múltiplas; é criada
uma área de formação pessoal e social; procura-se imprimir ao currículo
uma perspectiva interdisciplinar; define-se o conceito de avaliação numa
óptica formativa e favorecedora da confiança própria e reforçam-se as estru-
turas de apoio educativo com a intenção de equilibrar a diversidade de rit-
mos e capacidades; incentiva-se a iniciativa local mediante a disponibiliza-
ção de margens de autonomia curricular na elaboração de projectos multi-
disciplinares e no estabelecimento de parcerias escola-instituições comuni-
tárias (PORTUGAL, 1989).

A Lei de Bases do Ensino estipula que o sistema educativo é forma-


do pelo ensino pré-escolar (para crianças a partir dos 3 anos e de caráter
facultativo), ensino escolar (1º, 2º e 3º ciclos do ensino básico e ensino
secundário e ensino superior politécnico ou universitário), ensino extra-
escolar (atividades de alfabetização e de educação de base, de aperfeiçoa-
mento e atualização cultural e científica). O ensino obrigatório passa de
seis anos para nove anos de escolaridade (entre os 6 e os 15 anos de ida-
de), abrindo a hipótese da criação de escolas especializadas no ensino
artístico (para o ensino básico). Estão previstas modalidades especiais de
educação: educação especial para alunos portadores de deficiência física
ou mental; formação profissional para pessoas que ou já se encontram no
mercado de trabalho ou que queiram ingressar no mercado de trabalho;
ensino recorrente destinado aos indivíduos que não tenham tido oportu-
nidade de se enquadrar no sistema de ensino em idade normal de forma-
ção; ensino a distância; ensino de português no estrangeiro.
Em relação ao ensino particular, dão-se passos de grande impacto,
abrindo as portas à transferência de recursos públicos para o sistema priva-
do por intermédio de contratos de associação. Considera-se o ensino parti-
cular e cooperativo (artigo 55º) como parte integrante da rede escolar desde
que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objetivos
do sistema educativo, comprometendo-se a ter, em atenção à existência de
estabelecimentos de ensino privado ou cooperativo, quando do alargamen-
to ou ajustamento da rede pública de ensino.
Instituem-se programas nacionais para as diferentes disciplinas e cur-
rículo único para o 7º, 8º e 9º anos de escolaridade. É criada a Prova Geral
de Acesso (PGA) para todos os candidatos ao ensino superior e que incidia
sobre assuntos de cultura geral.

126
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

É também contemplado nesse diploma o ensino privado universitá-


rio, surgindo nessa época as primeiras escolas de ensino superior privadas.
O financiamento do ensino superior foi alterado, introduzindo um valor a
pagar pelos estudantes (propinas).
Mas a reação social foi imensa. Essas medidas, apesar de aprovadas,
chocavam com resistência nas escolas e nas populações. A contestação co-
meça contra a reestruturação dos cursos (que dividia os cursos superiores
em ramo educativo e ramo científico), passa para a refutação da PGA com
manifestações de milhares de estudantes liceais nas ruas e finalmente ex-
plode na resistência às propinas. Três ministros da Educação são obrigados
a se demitir, sem força social para governar.
Com avanços e recuos na luta estudantil, somente no século XXI as
propinas conseguem ser impostas pelos governos, sendo o ano de 2005 o
canto do cisne desse movimento estudantil, com a introdução, sem resis-
tência, do Processo de Bolonha, que significou mais um passo na privatiza-
ção do ensino superior.
Esses estudantes ficaram conhecidos na sociedade portuguesa como
“geração rasca” (que significa geração brega, sem educação), depois de um
famoso jornalista tê-los assim chamado em um editorial em 1994 do princi-
pal jornal, O Público, porque no meio de uma manifestação de milhares de
estudantes em frente ao Parlamento Nacional, alguns se despem e voltam-
se de costas para o Parlamento. Quase 20 anos depois, em 2011, essa gera-
ção volta às ruas de Portugal, organizando uma manifestação de trabalha-
dores jovens precários, que reúne 300 mil pessoas e leva à queda de um
governo, acossado já pelas políticas pós-crise 20086. Chamaram-na a mani-
festação da “geração à rasca” (trocadilho que significa geração em perigo,
com problemas).

6
“300 mil nas manifestações da Geração à Rasca”. Disponível em: <http://www.esquerda.net/
artigo/extraordin%C3%A1ria-mobiliza%C3%A7%C3%A3o-da-%E2%80%9Cgera%C3%A7%
C3%A3o-%C3%A0-rasca%E2%80%9D>. Acesso em: 15 jul. 2012.

127
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

Terceira via: privatização e consenso social


“Paixão pela Educação”, assim ficou conhecida a política do primei-
ro-ministro social-democrata7, do Partido Socialista (PS), António Guter-
res, à frente do Governo de Portugal entre outubro de 1995 e abril de 2002.
António Guterres foi também nessa altura – justamente quando o termo
terceira via era popularizado a partir da liderança de Tony Blair no Reino
Unido – presidente da Internacional Socialista (IS), cargo que ocupou en-
tre 1999 e 2005.
Guterres, militante da ala católica do PS, é eleito e começa uma
série de reformas na educação, que visavam flexibilizar e adaptar a educa-
ção à formação da mão de obra; estabelecer o alargamento do horário
escolar das crianças para prolongar os horários de trabalho dos pais8 e,
finalmente, privatizar, parcialmente e de formas diversas, o sistema edu-
cativo português, que em todos os graus de ensino era em geral de melhor
qualidade no sistema público do que no sistema privado. Grosso modo,
tratava-se de paulatinamente pôr fim à herança da escola universal, gra-
tuita, unificada e de qualidade herdada da revolução dos cravos e adaptá-
la às condições de redobrada exploração da mão de obra, bem como à
transferência de recursos públicos para o setor privado.
Quando António Guterres toma posse, 100% das crianças com ida-
des compreendidas entre os 6 e os 10 anos encontram-se matriculadas no 1º
ciclo, 88% das crianças entre os 10 e os 12 encontram-se matriculadas no 2º
ciclo e 80% dos jovens entre os 12 e os 15 anos encontram-se matriculados
no 3º ciclo9. Regista-se uma alteração na atuação dessa equipe ministerial
em relação à sua antecessora. Cavaco Silva, antecessor de Guterres, foi o
governo das duras políticas neoliberais, que tiveram fortes resistências sin-
dicais e colocaram a escola em “pé de guerra”. Assim, essa terceira via

7
Em Portugal, o Partido Social Democrata chama-se Partido Socialista (PS), e o Partido Liberal
chama-se Partido Social Democrata (PSD). Essa esquerdização do nome dos partidos é uma
herança da revolução que radicalizou o vocabulário.
8
O tempo das crianças na escola (em contexto de sala de aula) passou de 5 horas diárias em
1980 para 8 horas diárias em 2010. Os adolescentes ficam em média 37 horas por semana em
sala de aula, a mais alta taxa no quadro da EU.
9
50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação e
Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

128
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

liderada por Guterres mostra-se dialogante e em busca de consensos antes


de legislar, faz pontes com as estruturas sindicais e recebe dessas pouca
resistência, quando não um franco apoio.
Entre as reformas mais emblemáticas de Guterres estão a autonomia
das escolas (o que abre as portas à possibilidade de seleção do corpo docente
e dos próprios alunos); a diversificação dos currículos no 3º ciclo do ensino
básico (7º, 8º e 9º anos de escolaridade) com a criação dos currículos alterna-
tivos destinados a alunos com insucesso escolar; a criação em bairros pobres
das escolas em Terrenos Educativos de Intervenção Prioritária (Teip) – em
que a avaliação é muito facilitada – e introdução no currículo de áreas curri-
culares não disciplinares (estudo acompanhado, formação cívica e área pro-
jeto). Nesse pacote de medidas, dá-se a substituição do termo objetivos por
competências, alteração da duração do tempo de aula de 50 minutos para 90
minutos. A avaliação dos alunos é alterada, havendo mais restrições para a
retenção de um aluno em um determinado ano de escolaridade. Com essa
medida conseguia-se também a diminuição rápida dos custos com a retenção
de alunos, anormalmente elevada, fruto da rápida democratização introdu-
zida na revolução, e evitava-se um investimento massivo que muitas dessas
crianças e jovens necessitariam para ultrapassar as altas taxas de retenção.
Essas medidas são justificadas por um manancial de produção aca-
dêmica na área das ciências da educação, fortemente dominadas pelas ideo-
logias pós-modernas, que defendiam essas medidas de facilitismo nos con-
teúdos como as únicas capazes de dar resposta a uma escola “inclusiva”,
que teria que “valorizar os progressos que as crianças fazem nas suas apren-
dizagens”. Assim, o sucesso é, para essas teorias, relativo se só pode avaliar
olhando não para “a meta”, mas para o ponto de partida. Estava assim
dado o mote para a criação de escolas de primeira e escolas de segunda,
pondo paulatinamente fim ao ensino unificado, que permitia um acesso
mais democrático à formação superior.
O professor deveria, nesse contexto, avaliar todo o processo de ensi-
no-aprendizagem, verificando se um aluno desenvolveu determinadas com-
petências no final de um ciclo de estudos. Também são introduzidos os
princípios do “aprender a aprender” e “aprender a brincar”. Assim, fazem-
se alterações nos currículos das diferentes disciplinas, de modo que os alu-
nos deixem de fazer tarefas/exercícios repetitivos e /ou de memorização

129
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

(por exemplo, deixa de ser obrigatório que os alunos do 1º ciclo saibam a


tabuada de cor) e que passem a fazer tarefas/exercícios que apelem mais à
cooperação entre alunos, a pequenas investigações e/ou projetos, passando
a ser o aluno o principal elemento na construção do seu próprio conheci-
mento em vez de ser o professor e passando esse a ser um orientador do
processo de descoberta em vez de ser o debitador do conhecimento. Intro-
duzem-se massivamente novas tecnologias, que não raramente implicam o
abandono da exigência de determinados conteúdos científicos.
É dada outra importância aos conselhos de turma (conjunto dos pro-
fessores que lecionam para uma determinada turma), sendo-lhes atribuídas
outras competências: deixam de ser um conjunto de pessoas que se reúne
apenas três vezes ao ano para atribuir classificações, passando a ser um
conjunto de pessoas que terá de orientar um grupo de alunos ao longo de
um ciclo de estudos (dois ou três anos letivos), de modo que esse grupo
desenvolva um conjunto de dez competências gerais. Para tal, terá que se
reunir mais frequentemente e deverá iniciar o seu trabalho para elaborar
um diagnóstico e com base nele fazer um Projeto Curricular de Turma
(PCT). Ora, como a realidade de cada turma é diferente, também seus PCTs
serão diferentes. Esse projeto terá de ser constantemente adaptado, pois a
situação da turma vai se alterando ao longo do tempo. Na realidade, deixa
de haver uma planificação única para cada uma das disciplinas por ano de
escolaridade e passam a existir tantas planificações quanto o número de tur-
mas existentes em uma escola. Abre-se, nesta altura, também, a possibilidade
de flexibilizar o currículo, ou seja, há um conjunto de matérias que devem ser
abordadas de modo a desenvolver competências específicas de uma determi-
nada disciplina ao longo de dois ou três anos; a ordem pela qual se dão as
diferentes matérias passa a estar ao critério do Conselho de Turma.
Essas medidas tiveram como efeito em médio prazo um exponencial
aumento da carga horária dos professores, que deixam de ter tempo para
preparar as aulas e passam de fato mais de 40 horas semanais nas escolas,
ainda que cerca de quase metade delas em reuniões10. Essa medida acarreta

10
“Professores denunciam carga horária ilegal”, 22 de novembro de 2008. Disponível em: <http://
www.jn.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.aspx?content_id=1037315>. Acesso em: 13 abr.
2011.

130
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

também a flexibilização do papel do docente, visto agora não só nem prin-


cipalmente como professor, mas também como psicólogo, assistente social,
orientador pessoal. Por outro lado, ela permite criar escolas com diferentes
valências – escolas de classe média onde se dá um curriculum clássico de
História, Matemática, Português e outras onde se dá uma forma aligeirada
de curriculum.
É com o governo da terceira via que se cria um novo órgão nas esco-
las, a Assembleia da Escola, órgão consultivo em que há representantes de
professores, funcionários, alunos, pais e encarregados de educação, autar-
quias, agentes econômicos, culturais, entre outros. São também criados os
conselhos municipais de educação, órgãos consultivos em que se pode en-
contrar as escolas desses municípios (escolas públicas ou privadas de ensi-
no pré-escolar, básico, secundário ou superior), as autarquias e agentes cul-
turais, desportivos, econômicos, entre outros.
Esse governo tem também uma grande preocupação com o pré-esco-
lar (ensino para crianças com menos de 6 anos de idade). De fato, tinha
sido um setor do ensino esquecido pelos vários ministérios de Educação, e
o ensino existente para essas crianças era assegurado por estabelecimentos
privados de ensino, uma parte ligados à igreja, pelas misericórdias11, pelas
autarquias (freguesias e câmaras municipais), por entidades patronais (por
exemplo, o Ministério da Educação dispunha de creches e de infantários
para os filhos dos seus trabalhadores) ou por associações de cidadãos, que
se tinham constituído pelos anos de 1974 e 1975 com o objetivo de encobrir
essa falha no sistema educativo português. Uma das medidas desse gover-
no é integrar algumas escolas de ensino pré-escolar da responsabilidade das
autarquias no sistema nacional de ensino e estabelecer protocolos com al-
gumas instituições privadas e/ou associações, de modo a financiar os cus-
tos das crianças que lá se encontram matriculadas.
Todas essas medidas vão culminar na crescente privatização da esco-
la pública. Visível sobretudo com os contratos de associação, que são per-
mitidos pela legislação aprovada nos governos de Cavaco, mas realmente

11
Na sua origem histórica, irmandade que tem como missão o tratamento e sustento a enfermos
e inválidos.

131
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

aplicados com Guterres. É de referir ainda que à frente de uma grande fatia
desses contratos está a igreja católica12, direta beneficiária dessas transfe-
rências de dinheiros públicos13. Como indica a Tabela 1, a revolução de
1974-1975 tem um impacto generalizado na diminuição do ensino privado,
que só volta a crescer a partir da década de 1990. Continua a ser nos primei-
ros anos de escolaridade que o ensino privado teve uma evolução constante
de aumento de alunos. Porém, como consta do Gráfico 1, o financiamento
privado é cada vez mais alto, quer em termos absolutos, quer em termos
relativos, dada a relação entre financiamento e número de turmas.

Tabela 1– Percentagem de alunos matriculados no ensino privado

Ano 1º Ciclo 2º Ciclo 3º Ciclo


1960 4,64 28,33 27,11
1965 5,10 28,41 24,54
1974 6,22 9,73 11,79
1986 6,13 9,27 9,93
1991 8,00 7,54 9,11
1995 8,72 8,10 8,90
1999 9,61 10,18 9,92
2002 10,06 11,19 11,32
2005 10,44 11,42 11,79
Fonte: 50 anos de Estatística da Educação. Gabinete de Estatística e Planeamento da Edu-
cação e Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2009.

12
Disponível em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=84403>. Acesso em:
11 jul. 2011.
13
Uma turma hoje de 25 alunos recebe do Estado no setor privado com contrato de associação
80 mil euros. Disponível em: <http://www.ionline.pt/conteudo/95867-ensino-particular-go-
verno-vai-pagar-80080-euros-turma-e-ano-partir-do-proximo-ano-letivo>. Para ver a legislação
acessar: <http://www.min-edu.pt/data/Portaria_1324_A_2010.pdf>.

132
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Gráfico 1 – Evolução do Financiamento das Escolas com Contrato de


Associação

Em 1999, é reeleito um governo PS, que dá continuidade às políticas


anteriormente enunciadas. Mas, no final dos anos 1990, assiste-se às pri-
meiras críticas com impacto público em relação às consequências dessas
políticas, nomeadamente no que diz respeito ao facilitismo da escola e à
perda da autoridade dos professores, a que se associam os primeiros casos
públicos de violência grave.
O resultado internacional de Portugal no Programa para Avaliação
Internacional de Estudantes (Programme for International Student Assess-
ment – Pisa) é desolador, apesar de ligeiros progressos14. Em 2011, o resul-
tado dos exames nacionais mostrou que mais de 60% dos alunos reprova-
ram em Matemática e 40% no Português15.
As críticas ao facilitismo científico da parte dos partidos políticos
surgiram até 2007, quase exclusivamente dos setores ligados à direita con-

14
Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/11/40/44455820.pdf>. Acesso em: 4 jul. 2011.
15
Disponível em: <http://www.examesnacionais.org/resultados-dos-exames-nacionais-2011/>.
Acesso em: 15 jul. 2011.

133
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

servadora e liberal (CRATO, 2006) e desresponsabilizavam as políticas finan-


ceiras para a educação, centrando-se nas questões legais, disciplinares e san-
cionatórias, bem como na exigência de mais rigor nas avaliações e introdu-
ção de exames nacionais no final de cada ciclo de ensino (nos 4º, 6º, 9º e 12º).
Porém, em 2007 e 2008, surge socialmente um movimento novo e
inesperado.

Escola de qualidade e democrática


Em 2005, é eleito um novo governo, liderado por José Sócrates, do
Partido Socialista, que escolhe para titular da pasta da Educação Maria de
Lurdes Rodrigues, socióloga. Essa equipe ministerial vai fazer uma drásti-
ca redução de salário dos professores, precarizando as suas condições labo-
rais, aumentando nas escolas o número de professores com contratos a pra-
zo. Vai impor um modelo de avaliação dos professores, que impede o aces-
so ao topo da carreira à maioria dos professores. Até aqui, a progressão na
carreira dava-se por idade; agora passa a depender de uma avaliação pelos
seus pares dentro da escola, e o acesso aos lugares de topo da carreira, logo o
acesso ao máximo salarial, respeita um número de cotas muito reduzido.
Lurdes Rodrigues decreta, com sucesso, o fim da gestão democrática
das escolas com o regresso do diretor à escola e o fim dos conselhos direti-
vos. Criam-se mega-agrupamentos de escolas (juntar escolas e serviços de
estabelecimentos de ensino com uma proximidade geográfica) e procede-se
ao encerramento de “escolas de insucesso” (escolas com menos de dez alu-
nos, situadas em contextos culturais desfavorecidos). Cria-se a Escola a
Tempo Inteiro (no 1º ciclo são criadas Atividades de Enriquecimento Cur-
ricular: Inglês, Estudo Acompanhado e outras, de modo que as escolas es-
tejam abertas entre as 8h e as 18h/19h ou mesmo 20h).
Essa política vai ser acompanhada por uma campanha de desvalori-
zação da figura do professor, retratada em órgãos de comunicação de mas-
sa como um trabalhador “preguiçoso”, que “apenas trabalha meia dúzia de
horas por semana”, que “goza de muitas férias”, que “faltava muito” e que
se “aposentava muito jovem”.
A reação a esses diplomas é inesperada. Entre o final de 2007 e o
início de 2008 começam a surgir movimentos espontâneos de professores,

134
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

organizam-se em blogs de internet (como a Associação de Professores e


Educadores em Defesa do Ensino, o Movimento de Unidade e Mobiliza-
ção dos Professores, o PROmova16, entre outros) e convocam ações re-
lâmpago contra o governo – em pequenas cidades a visita da ministra ou do
primeiro-ministro é confrontada com uma manifestação de professores;
começam a fazer assembleias de professores noturnas ou em horário pós-
laboral. Grande parte desses movimentos surge no centro e no norte do
país, mas rapidamente se alastram para todo o território nacional. Em seis
meses, Portugal olhava surpreso para um novo e pujante movimento social:
o movimento dos professores.
As organizações sindicais levam tempo para dar uma reposta, mas
em 2008, perante o fato de que esses movimentos cresciam, aceitam convo-
car uma manifestação. Dia 8 de março de 2008, o país surpreendeu-se. Em
uma categoria que tem ao todo 140 mil docentes, 100 mil estavam na mani-
festação. Nesse ano, uma nova manifestação é convocada para novembro e
de novo junta mais de 120 mil professores. O governo estava em risco, colo-
cando contra si toda uma categoria com forte impacto social.
As políticas drásticas de redução de custos tinham aberto as portas a
uma discussão de fundo, com alcance de massas, sobre o papel da educa-
ção pública. Os professores tinham chegado a um leque de questões que
discutiam a escola pública de forma estrutural. Questionavam o papel do
diretor visto como braço político do governo, que impõe as suas ideias, que
escolhe os presidentes de departamento (que coordenam os trabalhos de
várias equipes disciplinares) e que avalia os docentes; questionavam uma
escola onde as crianças permanecem 9, 10 ou 11 horas com atividades de
acompanhamento enquanto os pais trabalham em dois ou três empregos,
ficando assim a educação de uma criança entregue quase em exclusivo aos
professores; uma escola que avalia os docentes em função dos resultados
escolares que atribui a seus alunos; uma escola que obriga crianças com
idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos de idade a deslocar-se vários
quilômetros para frequentar uma escola em uma aldeia vizinha apenas por-
que a sua escola tinha menos de dez alunos; questionavam uma escola que

16
Sigla de um movimento de defesa dos direitos dos professores e da qualidade da escola pública.

135
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

sobrecarrega os professores com reuniões e trabalho burocrático; uma es-


cola que deixa cair o “ensinar” e o “aprender” como uma das funções mais
importantes e nobres do ensino. Na cabeça desses movimentos estão os
professores titulares, aqueles que já estavam no topo da carreira e quase a
aposentar-se, mas que parecem dar corpo a um sentimento de revolta con-
tra o abandalhamento da escola pública.
Essa equipe ministerial começou por ter um grande apoio dos pais e
encarregados da educação, tendo tido na pessoa do presidente da Confede-
ração Nacional de Associações de Pais e Encarregados de Educação (Con-
fap) um fervoroso adepto, mas, no final do mandato, essas políticas levam a
uma cisão na Confap e a um franco desgaste da ministra, substituída em
2009.
Porém as manifestações e greves desses anos vão esbarrar na inércia
e mesmo no boicote sindical. Os sindicatos fazem um acordo de negocia-
ção mínimo, o Memorando de Entendimento, assinado em 17 de abril de
200817, que obriga os professores a recuar nas posições reivindicativas, cen-
trando-se na negociação salarial e abandonando qualquer discussão sobre
a qualidade do ensino. Essas negociações são fortemente criticadas pelos
movimentos que, contra elas, convocam uma manifestação, em 15 de no-
vembro de 2008, que junta 15 mil professores. Foi a maior manifestação de
sempre convocada em Portugal à margem dos sindicatos, mas não foi sufi-
ciente para impedir a progressão dessa política.

Notas conclusivas
A educação pública está em uma encruzilhada em Portugal. Ainda
no rescaldo das mobilizações de professores de 2007 e 2008, as maiores de
toda a Europa, vive-se, porém, aquilo que pode ter sido também uma der-
rota significativa. Perderam-se oportunidades de trazer o debate da quali-
dade do ensino para dentro da escola pública e questionar as fundações da
educação no quadro da atual fase de desenvolvimento do capitalismo por-
tuguês.

17
Disponível em: <http://www.fenprof.pt/Download/FENPROF/SM_Doc/Mid_115/
Doc_3337/Anexos/Memorando%20entendimento.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2011.

136
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A escola de hoje é uma escola onde o impacto da política de impor-


tantes setores da burguesia se faz sentir de forma drástica, com uma resis-
tência relativamente ineficaz por parte dos setores que objetivamente ne-
cessitam da escola para adquirir instrumentos de mobilidade e emancipa-
ção social. Portugal, como país essencialmente de serviços e de turismo,
tem adaptado a escola pública a um ensino de fraca qualidade, em que o
domínio tecnológico se impõe ao saber científico, deixando bolsas de ensi-
no privado (e algumas públicas) para formação de quadros altamente espe-
cializados. Ela é uma escola onde as políticas de redução de custos têm
efeitos drásticos: concentram-se escolas, aumenta-se a carga horária dos
professores, aumenta-se o financiamento público das escolas privadas, au-
menta-se o número de alunos por turma, aumenta-se drasticamente o nú-
mero de horas das crianças em recinto escolar. Tudo isso acompanhado de
resultados científicos e sociais medíocres.
Essa redução da escola a uma função, que em vez de emancipatória
reproduz socialmente os papéis sociais previamente existentes e usa a esco-
la como um mecanismo de formação da força de trabalho para adequar ao
sistema econômico vigente, privando os alunos do conhecimento como valor
humano de per si, é o grande problema que está colocado aos movimentos
sociais, de professores e de pais. Esses movimentos terão de lidar ainda
com um problema central das sociedades ocidentais do pós-guerra, o hiato
que existe entre os objetivos e o funcionamento das estruturas sindicais,
burocratizadas, e os anseios objetivos de quem protagoniza as resistências
(REGINI, 2007, p. 562).
No caso português, é patente que os sindicatos não só estão burocra-
tizados, como respondem de forma distinta a governos liberais e a gover-
nos social-democratas com políticas liberais, tendo deixado uma margem
de atuação e mesmo apoio que levou essas políticas a serem aplicadas com
mais sucesso pelos governos do Partido Socialista.
Estamos perante um enorme desafio. A escola pode e deve ser um
lugar de conflito social onde os trabalhadores adquirem instrumentos que
lhes permitem contribuir para a sua própria emancipação. Mas para isso é
necessário, entre outros fatores, estabelecer de forma clara qual o papel do
professor – se um cientista que transmite saber, se um trabalhador que se

137
VARELA, R.; DUARTE, S. • Paixão pela educação... privada – Educação e terceira via em Portugal

desdobra em múltiplas funções de educador, assistente social, psicólogo,


quase um “guardador de crianças”, um turbotrabalhador que, com tensões,
tapa as feridas de uma sociedade em permanente conflito objetivo.
Em uma escola livre, pública, universal, de qualidade, o professor
tem o papel de, nas palavras de Demerval Saviani, “elevar os alunos do
nível não elaborado, do nível do conhecimento espontâneo, de senso co-
mum, para o nível do conhecimento científico, filosófico, capaz de compre-
ender o mundo nas suas múltiplas relações” (SAVIANI, 2008).

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138
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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139
Las actividades de extension en el marco
de la “responsabilidad social universitaria”
y las politicas de “tercera via”1

Susana E. Vior
Laura R. Rodríguez

La extensión y el nuevo paradigma de la


responsabilidad social universitaria
En Argentina las universidades públicas reconocieron la importancia
de la cuestión social apenas iniciado el siglo XX, desarrollando acciones de
extensión aun antes de la Reforma Universitaria de 1918, movimiento que
consagró a esta actividad como uno de sus principios doctrinarios. En cada
período histórico las actividades extensionistas fueron cambiando su sentido
y contenido, acompañando la evolución de las concepciones sociales y de
las funciones asignadas a la Universidad, así como la historia particular de
cada institución. La experiencia fundacional de la Universidad Nacional
de La Plata, a través de las Conferencias de Extensión Universitaria
organizadas por Joaquín V. González, estuvo inspirada en las actividades
de la Universidad de Oviedo dirigidas a los trabajadores mineros y
campesinos. La Reforma de 1918 concibió la extensión como herramienta
privilegiada de una Universidad atenta a la cuestión social, la ligó para
siempre a las preocupaciones del movimiento estudiantil2.

1
Una primera versión de este trabajo fue presentada en el XX Seminario Internacional de
Investigadores de Formación de Profesores del Mercosur/Conosur. Universidad de Concepción/
Universidad Católica de la Santísima Concepción. Chile, Noviembre de 2012.
2
La extensión fue incorporada en varios proyectos de ley originados en diputados de la Unión
Cívica Radical en la década de 1940; uno de ellos (1946) hacía de la extensión una actividad
orgánica y obligatoria tanto para profesores como para alumnos, proponiendo un organismo
especial de coordinación con la participación de sindicatos. Por el contrario, las dos leyes

140
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

En el plano internacional, entre 1960 y 1990, la UNESCO se constituyó


en un organismo promotor, en todos los países miembro, del entonces
denominado “servicio social universitario”, en estrecha relación con los
paradigmas centrados en la promoción del desarrollo, el interés por la relación
entre educación y trabajo, y la democratización de la educación en el mundo
capitalista occidental, enfrentado a las experiencias de los países socialistas3.
En 1976, la Conferencia General de la citada organización,adoptó una
resolución para promover el servicio en la enseñanza superior, y apoyó la
realización de estudios sobre experiencias nacionales de servicio social
comunitario entre 1978 y 1982. La concepción de la extensión era
consustancial a la vigencia de la “Sociedad Salarial” y por lo tanto estaba
fuertemente vinculada con el trabajo como factor de realización humana y
con concepciones profesionalizantes que, reconociendo la existencia de
carencias en la relación Universidad y Sociedad, valoraban positivamente la
contribución realizada por las instituciones al desarrollo económico y el
progreso de las sociedades nacionales. Esta idea de “la Extensión como
servicio”, comprendía a todas “las actividades realizadas por los estudiantes
en beneficio de la comunidad, que al mismo tiempo constituyen parte de su
formación profesional y cívica” (UNESCO, 1984, p.1). Se resaltaban
especialmente los beneficios del “servicio social universitario” para los países
en desarrollo:
Como dichos países tratan de disminuir las diferencias existentes entre
comunidades urbanas y rurales, entre sectores modernos de la economía y
sectores tradicionales, el servicio social universitario contribuye a reducir
las discrepancias que existen entre quienes reciben educación y quienes no

universitarias sancionadas durante el primer y segundo gobierno de Juan D. Perón ( Ley 13.031/
47 y 14.297/54) no contenían apartados específicos que regularan la actividad de extensión,
aunque estaba mencionada entre las funciones de las universidades, y como responsabilidad de
los Consejos Directivos.
3
El interés por la cuestión social por parte de los organismos internacionales de cooperación en
el contexto de “Guerra Fría” era explícito: “El servicio social universitario está unido en gran
parte al esfuerzo realizado para hacer participar a los estudiantes y, en términos más generales,
a las instituciones de enseñanza superior en general, en el progreso de la nación, y para relacionar
la teoría con la práctica. Como tendencia, comenzó a manifestarse a partir de situaciones
específicas, por ejemplo, la de los países socialistas en un momento dado de su desarrollo
histórico, como consecuencia de sus esfuerzos por transformar la sociedad y crear nuevos valores
humanos unidos a la plena realización del individuo” (UNESCO, 1984, p. 1).

141
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

la reciben; contribuye, además, a una mejor implantación de las instituciones


educativas dentro de la comunidad a que pertenecen. El servicio social
universitario puede lograr que los estudiantes que participen en esa
experiencia se integren más a la nación y se conviertan en agentes activos
del desarrollo (UNESCO, 1984, p. 6).

En ese marco general de ideas, en los ´50 y ’60 Risieri Frondizi,


rector de la Universidad de Buenos Aires (UBA), renovó el compromiso
doctrinario al reconocer, como misiones universitarias “la preservación
del patrimonio cultural, investigación científica, formación de
profesionales y misión social”; impulsó las importantes experiencias del
Departamento de Extensión Universitaria de la UBA entre 1956 y 1966,
cuyos proyectos lograron articular, política y metodológicamente, los
postulados de la pedagogía crítica y de la educación popular, en el marco
de una crítica estructural de la sociedad vigente (BRUSILOVSKY, 2000,
p. 29). Durante el tercer gobierno peronista (1973-1976), estas actividades
fueron resignificadas, el compromiso social recibió nuevos impulsos
provenientes de un inestable bloque de poder en el que tuvieron
participación las fuerzas de izquierda, y la extensión fue un componente
fundamental de las reivindicaciones y programas de las organizaciones
estudiantiles, apareciendo en la definición misma de la Universidad en la
Ley Universitaria N° 20.654/744.
La crisis del Estado de Bienestar y la aparición del neoliberalismo en
la escena internacional a partir de los ´70, combinados con el dramático
ciclo de dictaduras e inestabilidad política, significaron el deterioro de
nuestras universidades y el desmantelamiento de las actividades
extensionistas. Como sintéticamente lo expresaba la introducción al informe
sobre una experiencia de Servicio Social Universitario en educación de
adultos realizada a lo largo de 1986 por la Universidad Nacional de Luján
(Argentina) (UNLu, 1989, p. 11):

4
Dice el art.1° de la Ley: “Las Universidades Nacionales son comunidades de trabajo que integran
el sistema nacional de educación en el nivel superior con el fin de impartir enseñanza, realizar
investigación, promover la cultura nacional, producir bienes y prestar servicios con proyección
social y, haciendo los aportes necesarios y útiles al proceso de liberación nacional, contribuir a
la solución de los grandes problemas argentinos”.

142
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Salvo el período de 1973-1974, en el que se procuró vincular a la universidad


con los sectores populares, los años de la dictadura militar la mantuvieron
distanciada de este tipo de práctica. Es por eso que en este trabajo se hace
referencia a “volver a empezar”: fue posible retomar esta función, repensarla
y proponer nuevas formas de trabajo pedagógico.

Así, recuperada la democracia en los ´80, los impulsos de


reconstrucción de la Universidad incluyeron la demanda por recuperar el
compromiso con la problemática social. Ese “volver a empezar” se expresó
en varios proyectos de ley universitaria presentados en el Congreso Nacional
durante el gobierno Radical (UCR) de Raul Alfonsín. El proyecto de la
Democracia Cristiana (Proyecto Auyero –Gonzalez – Aramouni)
denominado “Régimen de las Universidades Nacionales”, incluyó un
artículo sobre el “Servicio Social”:
Los graduados universitarios deberán realizar un servicio social comunitario
organizado por el principio de la solidaridad social. Las modalidades del
mismo así como su temporalidad (que nunca será inferior a un año de labor
o su equivalente en horas de trabajo –mil horas–) serán organizados en cada
universidad por el Departamento de Servicio Social Comunitario, tomando
en cuenta las orientaciones producidas por la Coordinación Interuniversitaria
Nacional (DIP, 2008, p. 301).

Dicha Coordinación, asimilable al actual CIN –Consejo


Interuniversitario Nacional– tenía como una de sus responsabilidades
“[p]roducir los lineamientos globales para el diseño del servicio social
comunitario en cada universidad y coordinar los distintos programas de
intervención” (idem, p. 300). En la fundamentación del proyecto, se proponía
implementar el Servicio “desplegando un conjunto de actividades bajo la
forma de diversos programas de promoción e intervención social,
cuidadosamente diseñados con el concurso de los beneficiarios, los
organismos estatales pertinentes así como las representaciones comunitarias,
regionales y zonales” (ídem, p. 309). El Proyecto del Diputado Freytes, del
Partido Justicialista, reservó un Capítulo a la función de Extensión, y otro
a la organización de un Servicio Social obligatorio para los graduados, de
sentido similar al proyecto demócrata cristiano, aunque con características
organizativas diferentes y como condición para el otorgamiento del título
habilitante. De esa manera se esperaba formar egresados “con conciencia
de su pertenencia a una sociedad, que posibilitó su realización académica y
profesional”, así como también profesionales “imbuidos de vocación de

143
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

servicio a partir del conocimiento directo de la problemática social en el


ámbito de su especialidad” (ídem, p. 51).
Estos debates cambiaron de rumbo cuando se inició la contrarreforma
neoconservadora del menemismo. En una primera etapa, hasta mediados
de los años ’90, la responsabilidad social de la Universidad fue doblemente
reinterpretada: primero, vinculándola a la necesidad de modernización de
las instituciones para constituirlas en promotoras de la inserción competitiva
del país en los mercados globales de bienes tangibles e intangibles, líderes
del cambio tecnológico, formadoras de recursos humanos de nuevo tipo, de
los “emprendedores” y “productores de conocimiento” demandados por el
mercado; en segundo lugar, relacionándola con la rendición de cuentas, la
eficiencia y la recuperación de costos, demandas asociadas a la
profesionalización de la gestión bajo el modelo empresarial y la introducción
de principios mercantiles y competitivos. En ese marco, la extensión quedó
opacada frente a la importancia dada a los servicios de transferencia. En el
discurso internacional sobre la responsabilidad social de la Universidad, la
concepción de la “Extensión como servicio” dio paso a la de la “Extensión
como devolución”, ligándola –como era habitual en la explicación
neoliberal– a la inexorable marcha del cambio técnico, la globalización y la
transición hacia la “Sociedad del Conocimiento y la Información”; una
desarticulación entre esas “nuevas demandas” y la respuesta de universidades
“masificadas” y poco dispuestas a rendir cuentas por el uso de recursos
públicos cada vez más restringidos, pasó a ser argumento central en
diagnósticos sobre la “pérdida de credibilidad y prestigio” de las
universidades. Se operó un “giro copernicano”: “[e]n lugar de examinar el
carácter fundamental de la enseñanza superior desde dentro del entorno
universitario como una especie de derecho adquirido”, se debían
definir las condiciones esenciales para que las universidades puedan satisfacer
las expectativas de la sociedad. Se evaluarán las consecuencias que acarrean
los desafíos derivados de las tensiones y expectativas que están empezando
a proclamar la sociedad para la libertad académica y la autonomía
universitaria. (NEAVE, 1998, p. 9)

Estos rasgos se acentuaron a fines de la década de 1990, cuando el


neoliberalismo sufrió una readaptación a nivel internacional. La evidencia
de los límites del mercado como mecanismo regulador y base de cohesión

144
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

social, la crisis asiática y la creciente polarización y exclusión social


acarreadas por el proyecto original, impulsaron la búsqueda de una nueva
arquitectura institucional para la sociedad de mercado. El Estado volvió a
ser convocado para desempeñar un papel central en la “gobernanza”,
entendida como instrumento para la armonización social y reducción de
los conflictos por medio del diálogo y el consenso; la “sociedad civil” fue
llevada al centro de la escena, como espacio plural y contrapeso necesario
de los efectos negativos del mercado, lugar por excelencia de la solidaridad
asociativa y la diversidad, representada por las ONG´s, y la valorización de
un modelo de política social basado en el fomento de las iniciativas privadas
para resolver problemas públicos, con apoyo del Estado. En este contexto,
las categorías de “inclusión / exclusión” se transformaron en el núcleo de
las preocupaciones y desplazaron a la interés por la democratización. Por
ejemplo, para Neave (1998, p. 5)
el principal y constante desafío con que se enfrentan las universidades a partir
de ahora consiste en mantener un equilibrio acertado entre la presión para el
cambio que dimana del proceso de desarrollo técnico como mundialización
y las tensiones generadas en la sociedad civil debido a las repercusiones de
la transformación económica y tecnológica en la estructura de la sociedad.
Se trata de una labor delicada que nunca concluye. Aparece como una función
adicional que incumbe a la universidad precisamente porque es el agente y el
beneficiario de la transformación económica y tecnológica. Pese a ello, esta
tarea sigue siendo delicada, ya que recubre obligaciones tradicionales al servir
de medio de entendimiento entre culturas y comunidades diferentes y corregir
en la medida de lo posible los desquilibrios sociales derivados de la pobreza,
la exclusión y los conflictos.

El discurso internacional sobre el papel de las universidades y su


relación con la sociedad acompañó esta evolución, perceptible en los cambios
conceptuales presentes en las declaraciones de distintos foros internacionales
entre la segunda mitad de los ’90 y la primera década del siglo actual. Así
en la “Declaración Mundial sobre la Educación Superior en el Siglo XXI:
Visión y Acción”, dada en la Conferencia Mundial sobre Educación Superior
de la UNESCO de 1998, se afirmó que la “educación superior debe reforzar
sus funciones de servicio a la sociedad, y de un modo más concreto sus
actividades deben ser encaminadas hacia la erradicación de la pobreza, la
intolerancia, la violencia, el analfabetismo, el hambre, el deterioro del medio
ambiente y las enfermedades, principalmente mediante un planteamiento

145
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

interdisciplinario y transdisciplinario para analizar los problemas y las


cuestiones planteadas”. Nueve años después, la Declaración del Congreso
Internacional de Rectores Latinoamericanos y Caribeños realizado en Belo
Horizonte (Brasil, 2007), “El compromiso social de las universidades de
América Latina y el Caribe”, propuso:
Promover un salto cualitativo en el compromiso social de las Universidades,
estimulando la producción de cambios estratégicos, tales como:
– Del voluntariado y la filantropía, al compromiso ético con la justicia social
y el ejercicio de derechos.
– De la acción coyuntural, dispersa y episódica, a las líneas programáticas
de largo alcance.
– De la realización de actividades de compromiso social por áreas de bajo
nivel jerárquico de las instituciones, a su incorporación en las propias
misiones institucionales.
– De la acción aislada y sectorial, a las sinergias en función de proyectos de
país.
– De la extensión como servicio de transferencia, a los encuentros sociales,
el diálogo de saberes, la construcción de conocimiento pertinente, la
participación en proyectos sociales no excluyentes.

La “Extensión como devolución” es coherente con los valores del


paradigma neoliberal, que sustituye la “igualdad” por la “equidad” en una
sociedad que naturaliza las diferencias, y que responsabiliza a la Universidad
y a los universitarios por “devolver” y “compensar” a los sectores
empobrecidos por ese mismo modelo. Cabe considerar que esta nueva
“agenda” del compromiso social de la Universidad ha sido influenciada
por el paradigma de la Responsabilidad Social Universitaria (RSU),
transferencia, a las instituciones académicas del modelo de “Responsabilidad
Social Empresaria” (RSE) generalizado en la segunda mitad de los ’90 en el
ámbito corporativo5. La RSU pretende constituirse en una “línea rectora

5
Robert Reich (2008, p. 2) sintetiza con claridad la forma en que se difundió el paradigma de la
Responsabilidad Social Empresaria, actualmente “un tema candente en las escuelas de negocios
[…] Hacia 2006, más de la mitad de los planes de estudio de las maestrías en administración de
negocios exigían a los alumnos al menos un curso sobre la temática. Más del 80% de las agencias
de empleo afirman que los graduados de las escuelas de negocios tienen que demostrar
conocimiento del asunto y reconocer su importancia. Anualmente es tratada en centenares de
conferencias empresarias, y decenas de miles de ejecutivos escuchan atentamente a consultores
explicar la importancia de la RSE y cómo las empresas pueden ofrecer evidencias de su
compromiso. Los CEOs y ejecutivos que se reúnen anualmente en el Foro Económico Mundial
de Davos (Suiza) discuten y solemnemente proclaman su adhesión al nuevo paradigma”.

146
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

que define de manera muy clara el componente ético y dirige la gestión de


las funciones sustantivas en general hacia objetivos comunes, con una visión
compartida por la comunidad universitaria, que permite que las
universidades puedan ir construyendo, desde su planificación, ejecución de
programas, proyectos y evaluación, directrices que respondan a un modelo
educativo con mayor pertinencia social” (TORRES PERNALETE et al,
2010, p. 84).
Del mismo modo que en los ´90, los organismos internacionales
difundieron el modelo neoliberal de Universidad, paradigma promovido
en A. Latina por el BID y la OEA, a través de la Iniciativa Interamericana de
Ética, Capital Social y Desarrollo, dirigido por de Bernardo Kliksberg,
responsable entre 2005 y 2011 de la RED (Red Universitaria de Ética y
Desarrollo Social), para la implementación de un Programa de Apoyo a
Iniciativas de Responsabilidad Social Universitaria, Ética y Desarrollo destinado
a docentes de la región. Dicho programa proveyó asistencia técnica,
materiales didácticos, herramientas de diagnóstico, capacitación y
certificación. En ese marco, el Departamento de Desarrollo Humano de la
OEA ofreció seis ediciones del Curso Virtual “¿Cómo Enseñar Ética, Capital
Social y Desarrollo en la Universidad?”, dirigido a la formación de docentes
como promotores de la propuesta, no sólo “en su trabajo diario en el aula,
sino también en la estrategia organizacional de Responsabilidad Social en
sus centros de estudios”6. Igualmente importantes fueron las iniciativas de
diversas ONG´s, como por ejemplo la española Sin Fronteras, que patrocinó
la organización -en nuestro país– de una Red Nacional de Programas de
Voluntariado Universitario de instituciones públicas y privadas, y organizó
un Primer Encuentro en 2004. Entrelazando en forma compleja y
superpuesta diversidad de iniciativas, grupos, personas, empresas, ONGs y
gobiernos, las universidades argentinas se incorporaron a proyectos, planes
y discusiones que materializaron la nueva agenda: la Red Iberoamericana
de Universidades por la Responsabilidad Social Empresarial (RedUniRSE)
(2006, impulsada por la Facultad de Ciencias Económicas de la UBA); la

6
http://www.educoas.org/portal/ineam/cursos_2008/ETICA-E103_08.aspx?culture=es&
navid=241.

147
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

Red GUNI (Global University Network for Innovation), creada conjuntamente


por la UNESCO, la Universidad de las Naciones Unidas (UNU) y la
Universidad Politécnica de Cataluña (UPC) en 1999; o la REDIVU, Red
Iberoamericana de Voluntariado Universitario para la inclusión social,
constituida formalmente en el II Congreso Internacional de Voluntariado
Universitario (2008, República Dominicana, con financiamiento de PNUD).
La difusión que estas ideas alcanzaron entre el cuerpo académico de
nuestro país se refleja en el crecimiento de la participación en los Congresos
Nacionales de Extensión de la Educación Superior (1997 y 1998), luego
denominados “de Extensión Universitaria”, (el II se realizó en la U.N. de
Mar del Plata en 2006; III en U.N. del Litoral en 2009, el IV en U.N. de
Cuyo en 2010, y el V en 2012 en la U.N.de Córdoba7). Algunos sectores del
sindicalismo docente, como por ejemplo los nucleados en la Confederación
de Docentes Universitarios (CONADU), han producido documentos donde
se manifiesta el compromiso con estas nuevas concepciones, evaluando que:
En estos últimos años postneoliberales, aún cuando hay múltiples intentos
de acercamiento de la Universidad a su Sociedad, continúa permaneciendo
muy distante y, muchas veces, en disputa con ella; por ello, creemos que
todavía debe transitar un largo camino para convertirse en verdadero vehículo
que impulse la superación de las profundas desigualdades por las que
atraviesan los países que integran la región. Por lo expresado, presentamos
este trabajo como una herramienta política que contribuya a reflexionar sobre
la posibilidad de transformación de la Universidad y de la Sociedad”
(CECCHI et al, 2009, p. 12)

Según Vallaeys (2007, p. 2), uno de los expertos internacionales más


citados: “La Responsabilidad Social Universitaria es una nueva filosofía
de gestión universitaria que pretende renovar el compromiso social de la
Universidad al mismo tiempo que facilitar soluciones innovadoras a los
retos que enfrenta la educación superior en el contexto de un mundo
globalizado pero insostenible en sus patrones de ‘Desarrollo’” [la negrita
es nuestra]. Una de sus características definitorias es la pretensión de
“integrar transversalmente las iniciativas de responsabilidad social en el

7
Bajo el lema “Sus aportes a los Derechos Humanos y al Desarrollo Sustentable”, este Congreso
convocó a más de 1000 participantes y 600 expositores.

148
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sistema de gestión de la organización”, como un enfoque que atraviesa el


plan estratégico de las instituciones (VALLAEYS, 2009, p. 3). Queda así
definida como una herramienta de gestión y, como tal, se expresa mediante
conceptos tecno-empresariales tales como: evaluación de impactos, alianzas
estratégicas, capital social, gestión del conocimiento, y realiza un análisis
del tejido social en términos de equipolentes “partes interesadas” (stakeholders
o “públicos”). Es probable que sean estos rasgos los que generaron,
prontamente, cuestionamientos y reparos: Dias Sobrinho (2008), entre otros,
ha buscado despegar la RSU de la RSE, aunque el esfuerzo se ha centrado
en los aspectos doctrinales, en una crítica a las aplicaciones más groseramente
mercantilizadas, y en una preferencia por el uso de los términos de
“compromiso social” antes que de “responsabilidad social”.

El nuevo paradigma de la RSU, la extensión y


las políticas gubernamentales en Argentina
En los últimos diez años, las políticas universitarias gubernamentales
se han ido alineando según este nuevo paradigma, mediante la inclusión de
programas de financiamiento específicamente dirigidos a la Extensión. En
2006 la Secretaría de Políticas Universitarias inició el Programa Nacional de
Voluntariado Universitario, que asigna fondos de manera competitiva para la
implementación de proyectos. A partir de ese momento se han realizado
ocho convocatorias, dos de las cuales (2009 y 2011) estuvieron articuladas
con otros Programas del Ministerio de Educación Nacional (Escuela
Secundaria y Conectar Igualdad, respectivamente). Para su implementación
se organizó un Banco de Evaluadores y se realizaron de Encuentros
Regionales.
Debemos aclarar que, si bien la creación del Programa es mostrada
como indicador de la importancia que ha asumido la RSU como política de
Estado, sólo ha representado entre el 0,7 y el 1,2% de las transferencias
totales del Tesoro Nacional a las Universidades Nacionales.
Otro Programa con un componente dedicado a la Extensión es el de
Promoción de la Universidad Argentina, cuya misión principal es “promover
las actividades de las universidades argentinas en el exterior en consonancia

149
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

con los intereses estratégicos de la Nación, así como el fortalecimiento de


la relación Universidad-Sociedad y el ejercicio de ciudadanía”8. Incluye un
componente destinado a lograr que “el marco filosófico de este campo de
trabajo se sustente en una concepción participativa y formativa”, alentando
“la presentación de proyectos relativos a temáticas ambientales, de género,
de comunidades aborígenes u originarias, de circuitos culturales y turísticos
y de preservación del patrimonio nacional y la conformación de mecanismos
asociativos interinstitucionales”9.
La estructura de la Secretaría de Políticas Universitarias, creada en
1993, así como sus responsabilidades, también fueron modificadas para su
adecuación a las ´nuevas´ concepciones. Vale recordar aquí, que la extensión
no fue mencionada en las acciones originalmente asignadas a la Secretaría.
Recién el Decreto 357/02, modificatorio del organigrama del Ministerio
de Educación, la menciona en uno de sus objetivos: “1. Entender en la
elaboración y evaluación de planes, programas y proyectos de desarrollo
del sistema de educación superior universitaria y promover la evolución y
mejoramiento de la calidad de la enseñanza, la investigación y la extensión”.
Habrá que esperar a diciembre de 2011 para la creación de un espacio
específico, la Dirección Nacional de Desarrollo Universitario y Voluntariado,
dentro de una flamante Subsecretaría de Gestión y Coordinación de Políticas
Universitarias, al que se asigna, entre otras responsabilidades, la de
“Promover la vinculación de las Universidades públicas con las necesidades
de la comunidad e incentivar el compromiso social de los estudiantes a
través del voluntariado” y “Promover la función social de la universidad,
integrando el conocimiento teórico y práctico con el desarrollo nacional
armónico y equitativo” (Decreto 2084/2011).
También se ha transformado el tratamiento de las temáticas de la
Extensión y el enfoque de la misión social de la universidad en el Consejo
Interuniversitario Nacional, organismo, con funciones de coordinación y
consulta, que agrupa a los Rectores de las universidades públicas. En los

8
http://www.portales.educacion.gov.ar/spu/promocion-de-la-universidad-argentina.
9
http://www.portales.educacion.gov.ar/spu/promocion-de-la-universidad-argentina/areas-
prioritarias/. No hemos podido acceder a información sobre los recursos asignados a proyectos
específicos de Extensión dentro de este Programa.

150
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

´90, la preocupación fundamental, respecto de la Extensión, fue su


jerarquización, reclamo de un financiamiento acorde y discriminado del
resto de las funciones universitarias, y su inclusión entre los antecedentes a
considerar en los procesos de categorización y evaluación de docentes e
investigadores. En 2009, alineándose con las políticas oficiales, el CIN creó
la REXUNI, “Red Nacional de Extensión Universitaria”, en cuyo marco
se realizan relevamientos, acuerdos sobre líneas estratégicas de trabajo
común, y reclamos reiterados al Estado respecto de la necesidad de
financiamiento regular, suficiente y específico (Acuerdo Plenario 711/09).
En 2012, por Resol 692, el Ministerio de Educación se comprometió a
ARTÍCULO 1°.- Sugerir a las Universidades e Instituciones de Educación
Superior Nacionales y Privadas que integren el Sistema de Educación
Superior de nuestro país que en las instancias de evaluación docente para el
desarrollo de la carrera docente universitaria, otorguen una valoración
específica y positiva a los postulantes que, además del dictado de clases,
desarrollen tareas de investigación, extensión, vinculación y transferencia
del conocimiento; guía o acompañamiento en las acciones de voluntariado
que realicen los estudiantes.

estableciendo explícitamente que las actividades de extensión “legítimas”


serían “aquellas que tengan reconocimiento por la propia institución
universitaria y/o integren convocatorias de la SECRETARIA DE
POLITICAS UNIVERSITARIAS de este Ministerio”.

La Profesión Académica: los aspectos formativos


y los efectos re-modeladores de las políticas
de extensión en el marco de la RSU
Si bien la que antecede constituye una apretada síntesis del estado de
situación, esperamos que brinde sustento suficiente para llamar la atención
sobre algunos efectos preocupantes de estas políticas, que se constituyeron
en herramientas que re-modelan el trabajo y la profesión académica.
Procuramos mostrar que el paradigma del Compromiso Social
Universitario ha dado lugar a acciones educativas destinadas a generar
nuevos perfiles académicos y nuevas formas de pensar. La lectura cuidadosa
de los documentos elaborados en el país por sus promotores muestra una

151
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

recuperación caprichosa de la rica historia de la Extensión y del debate


secular dentro de la Universidad pública respecto de la cuestión social,
pretendiendo refundarla casi ex nihilo bajo nuevos códigos difundidos
internacionalmente. La interesante reivindicación de los componentes
pedagógicos de la Extensión, es decir, su valor en la formación de los
estudiantes, es redefinida dentro de un “paradigma de la Cognición Situada”,
remozando formas de enseñanza y aprendizaje de importante tradición en
ámbitos académicos, tales como el aprendizaje centrado en la solución de
problemas auténticos, el análisis de casos, el aprendizaje por proyectos, las
prácticas en contextos reales, el aprendizaje en servicio, las simulaciones o
el aprendizaje mediado por las TICs (CECCHI et al, 2009, p. 90 y ss.). El
énfasis en el nuevo modelo de responsabilidad social de la Universidad,
asimilable al concepto de “Extensión como devolución”, continúa basándose
en una crítica que, como en los ´90, denuncia la desvinculación entre
universidad y sociedad y modelo productivo, el deterioro de los lazos sociales
solidarios, el individualismo y la mercantilización, pero los como problemas
que parecen haber surgido de una evolución natural del mundo, y no de
políticas muy específicas llevadas adelante por grupos concretos que
detentaron y detentan el poder del Estado.
Las políticas sectoriales implementadas han tenido y tienen un fuerte
carácter formativo, incidiendo, en este caso, sobre el trabajo extensionista,
la selección de sus prioridades, modalidades y contenidos y, en general,
sobre la esencia misma del trabajo del docente universitario, sometido a
presiones y demandas crecientes. A partir del momento en que el Estado
“se apropia” de la Extensión, los proyectos que, hasta ese momento, docentes
y estudiantes desarrollaban (con defectos y virtudes, por cierto), comienzan
a diseñarse en función del puntaje, las evaluaciones y las convocatorias o
licitaciones. Sin duda, la existencia de recursos específicos (pero
excepcionales) ha incrementado la cantidad de proyectos, profesores y
estudiantes involucrados. Y es justo reconocer y valorar los esfuerzos de
muchos grupos y equipos que llevan a cabo un trabajo coherente con sus
convicciones pedagógicas, políticas y sociales. Pero, tal como es re-modelada
por los Programas y las medidas de política, la Extensión sufre las
consecuencias de la burocratización, la cuantificación, la competencia por

152
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

recursos y la distorsión de sus impulsos originarios. Comienza a moverse a


partir de las demandas del Estado o de determinados sectores sociales, “que
asedian a las universidades” interpretando las necesidades de la sociedad
“según lo dictado por la agenda del sector público y sus representantes”,
más que por la comunidad universitaria, contradiciendo en la práctica la
demanda de una mayor coherencia e integración con la misión y los planes
institucionales (DUDERSTADT, 2010, p. 204).
En este contexto, los académicos perciben claramente sus efectos, en
términos de intensificación del trabajo10, retroceso en la autonomía para
definir tiempos, contenidos y lógicas de relación entre docencia,
investigación y extensión, así como en el aumento de los controles tecno-
burocráticos externos que deciden cada vez más el futuro laboral. En suma,
se trata de un proceso que supuestamente forma profesionales éticos y
comprometidos, pero que tiene efectos descualificantes para los docentes
ya que, pretendiendo la “convergencia” e integración de funciones, deteriora
y borra -como tempranamente advirtió Readings– las diferencias cualitativas
entre investigación, docencia y extensión. La consecuencia lógica de este
movimiento es la conformación de una estructura compleja de “redes” de
equipos de consultores, evaluadores y administradores del sistema,
financiada por recursos que podrían volcarse directamente a proyectos
surgidos de las raíces mismas de la tarea académica.
De esta manera, las funciones sustantivas de la Universidad pasan a
servir a la reproducción misma del sistema antes que a cumplir genuinas
funciones culturales, científicas o sociales (READINGS, 1996). Nos
preguntamos por qué razón la legítima intención de profundizar el
compromiso social de la universidad genera estas situaciones contradictorias.
Una respuesta posible es que las actuales herramientas de la política
pública devienen de la articulación entre un movimiento de recentralización
autoritaria para la definición de las prioridades, y una tendencia a la
ejecución desarticulada y fragmentadora de Programas. Esta combinación

10
Según datos de la Secretaría de Políticas Universitarias, en 2010, sólo el 12% de los cargos
docentes eran de dedicación exclusiva.

153
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

garantiza la supervivencia de la lógica neoliberal y sigue empujando, a las


instituciones y a los docentes, a convertirse en responsables de acciones
remediales centradas en los individuos y grupos en desventaja, apelando al
principio de equidad distributiva y la igualdad de oportunidades. Equidad
e inclusión son pensadas para una sociedad entendida como sumatoria de
intereses particularistas, dejando atrás las ideas de igualdad y universalidad
en una sociedad de ciudadanos con derechos plenos, que desarrollan sus
capacidades porque tienen aseguradas las condiciones básicas de existencia
autónoma y no porque dependen de la voluntad asistencial de algún
programa (PAUTASSI, 2000).
Por otro lado, parece necesario tener presente que este neoliberalismo
readaptado subyace en la llamada “Tercera Vía”, propuesta que creemos
conforma el sustrato político ideológico del accionar gubernamental en
nuestro país desde 2003. Sintetizando teorías filosóficas y sociológicas
dispersas geográficamente y aparentemente desordenadas, elaboradas por
intelectuales de renombre internacional, la Tercera Vía ha logrado
estructurar una teoría compacta para fundamentar un cierto proyecto
político de vida social y estimular políticas adecuadas a su consecución. Ha
construido una concepción del mundo que, sin abandonar el neoliberalismo,
retoma algunos principios inspiradores del liberalismo social. Esta
concepción es difundida por acciones políticas y pedagógicas que garantizan
su influencia hegemónica, conformadoras de patrones de conducta social
de organizaciones, grupos y personas. Es lo que el Colectivo de Estudios
sobre Política Educacional de la Fundación Oswaldo Cruz (Brasil) denomina
“nueva pedagogía de la hegemonía”. Al servicio de la relegitimación del
capitalismo actual, apunta a generar “un conformismo capaz de asegurar
la cohesión social en torno de ese modelo”. La Tercera Vía ha modificado
los rasgos más conservadores de las políticas sociales neoliberales, logrando
la aceptación de nuevos parámetros de protección social (MARTINS, 2009,
p. 60-61). Para ello, sus ejes principales son la “redemocratización de la
democracia” para hacerla más “directa y participativa”, el estímulo a una
“sociedad civil activa” capaz de evolucionar hacia una “sociedad del
bienestar” en la que no exista “ningún derecho sin su correspondiente
responsabilidad”, y la asignación de un nuevo y “necesario” papel al Estado,

154
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

como promotor de una “economía mixta” y la “socialización de los riesgos”


(NEVES, 2009 y 2010). Combinando eclécticamente categorías (capital
humano, capital social, desarrollo sustentable, ética empresarial,
concertación, desarrollo local y comunitario, respeto por las particularidades
culturales, de género, etc.), tienden a la conformación de una “nueva
ciudadanía” limitada a los intereses particulares, corporativos, al consenso
de las clases subalternas, que
sólo conducen a la perpetuación de políticas al servicio de los intereses
dominantes, des-responsabilizan al capital y a la historia,…nos atribuyen ‘a
todos’ la responsabilidad por el cuidado de las instituciones…y evitan, así,
cuestionar los fundamentos del orden social vigente (VIOR, 2009, p. 16).

La forma peculiar en que el paradigma de la Responsabilidad Social


Universitaria define la Extensión tiene una intención pedagógica: lograr
que la Universidad acepte las críticas que apuntan a su falta de pertinencia,
definida como un desajuste respecto de las ‘expectativas‘ de la sociedad,
amenazada por fenómenos de exclusión (aceptados como efecto natural e
inevitable de la globalización capitalista). Docentes y estudiantes deben ser
más responsables y activos, entre otras razones, porque se entiende que las
acciones solidarias dentro de esta “sociedad civil” idealizada, podrá resolver
mejor los desajustes del mercado, e incluso hacer lo que el Estado no ha
logrado: garantizar la materialización de los derechos sociales.
Por el contrario, creemos que el compromiso social de la Universidad
debe ser definido en términos de denuncia y respuesta activa a los problemas
derivados de la explotación y la desigualdad estructural dentro de una
sociedad en la que efectivamente se juegan relaciones antagónicas y que,
como toda construcción humana, puede ser sustituida por otro tipo de
relaciones sociales. Para ello, entre otras cosas, es necesario que docentes y
estudiantes hagan realidad la misión de la Universidad, exigiendo al Estado
que garantice las condiciones para que ello sea posible, cumpliendo a la vez
su papel principal: la transformación de la democracia formal en democracia
sustantiva, para todos. Ese objetivo no puede lograrse apelando a una ética
desprovista de historia, ignorante de las mejores tradiciones de la
Universidad pública, un espacio donde, en definitiva, también se confrontan
proyectos de vida en común:

155
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

¡Que vaya, pues, la Universidad hacia el pueblo!, y de esta manera nos


veremos confundidos con los miembros de la clase trabajadora, estudiando
los mismos problemas y resolviendo las mismas cuestiones!
Enrique del Valle Iberlucea. La autonomía de las Facultades, 1905 (En:
BECERRA, 2008, p. 57).

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156
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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157
VIOR, S. E.; RODRÍGUEZ, L. R. • Las actividades de extension en el marco de la “responsabilidad social universitaria”...

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158
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O histórico da relação público-privada


no Brasil: o enfoque jurídico

Daniela de Oliveira Pires

1. Introdução
Este artigo irá analisar o histórico da relação público-privada através
das legislações constitucionais e infraconstitucionais brasileiras, com o obje-
tivo de relacionar o conteúdo das legislações com o processo de democratiza-
ção da educação e o predomínio dos interesses da esfera privada no conteúdo
dos textos legais. Este estudo é parte constitutiva de uma pesquisa mais am-
pla intitulada: Parcerias entre sistemas públicos e instituições do terceiro setor: Brasil,
Argentina, Portugal e Inglaterra e as implicações para a democratização da educação,
sob a coordenação da prof. Dra. Vera Maria Vidal Peroni.
Nesse sentido, não iremos realizar uma mera descrição de fatos his-
tóricos relacionados ao período em questão, tomando por base o conteúdo
das Constituições brasileiras. O objetivo é aprofundar o processo de confi-
guração da relação público-privada, em âmbito nacional, levando em con-
sideração também o contexto internacional, buscando assim entender as
razões que levaram à consolidação das reformas promovidas no Estado
brasileiro, especialmente a partir da década de 1990, em relação à promo-
ção da educação, que já estavam presentes, em certa medida, desde a Cons-
tituição Imperial de 1824 (BRASIL, 1824).
O estudo está organizado da seguinte maneira. Primeiramente, ana-
lisaremos alguns aspectos das Constituições brasileiras vinculados à pro-
moção da educação. Em um capítulo próprio, iremos detalhar o conteúdo
da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), considerada um marco
legal na declaração dos direitos sociais.1 Em outro segmento do estudo,

1
Parte dos resultados advém da coleta de dados para a elaboração do Projeto de Tese: “O Histórico
da relação público-privada no Brasil na promoção do Direito à Educação”, apresentado em

159
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

aprofundaremos a compreensão acerca de algumas legislações ordinárias e


emenda constitucional, com destaque para o Plano Diretor de Reforma do
Aparelho do Estado de 1995, da Emenda Constitucional n° 19/1998 e do
recente Anteprojeto de Lei Orgânica para a Administração Pública Federal
(BRASIL, 2009), iniciativa do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, que contou com o trabalho da Comissão de Juristas, instituída pela
Portaria MP nº 426, de dezembro de 2007, e que teve como resultado a
elaboração de uma nova estrutura orgânica para o funcionamento da Ad-
ministração Pública Federal e a inserção de novos órgãos, no caso, os cha-
mados Entes de Colaboração.
Podemos afirmar que a pesquisa terá como base o processo históri-
co da relação público-privada, que se consolidou ao longo dos anos, in-
fluenciando, assim, a postura do Estado brasileiro diante da promoção do
direito social à educação até os dias de hoje.

2. As Constituições Brasileiras: implicações


para a promoção do Direito à Educação
O direito à educação sempre foi mencionado em todas as Constitui-
ções brasileiras, entretanto, devido a uma série de fatores, dentre eles o
momento histórico e as conjunturas político-sociais próprias de cada épo-
ca, cada Carta Constitucional tratou da questão da educação, tendo por
base as transformações sociais inerentes a cada período. Durante a Consti-
tuição do Império do Brasil de 18242, o direito à educação foi tratado de
uma maneira bastante reduzida. Segundo Marcos Augusto Maliska:
O Direito à Educação na Constituição Imperial Brasileira apresentou-se de
forma tímida e fortemente caracterizada pela participação da Igreja Católi-

setembro de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação da Profa. Dra. Vera Maria Vidal
Peroni.
Os dispositivos de todas as Constituições foram retirados do site: <http://www. planalto.gov.br>.
Acesso em: 28 nov. 2012.
2
De acordo como o site: <http://www.gespublica.gov.br/anteprojeto-de-lei-organica/consulta-
publica-sobre-o-anteprojeto-de-lei-organica>, o Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração
Pública Federal está na fase de consulta pública. Acesso em: 13 fev. 2013.

160
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ca no processo de educação do povo. Outro aspecto que merece ser ressalta-


do é a centralização do ensino, em grande medida sob determinação da Coroa
(MALISKA, 2001, p. 22).

Na Carta Constitucional de 1824, o direito à educação é mencionado


apenas em dois tópicos do art. 179. No art.179, nº 32, dispõe que “a instru-
ção primária é gratuita a todos os cidadãos” (BRASIL, 1824), e no art. 179,
nº 33, “a Constituição garantia colégios e universidades, onde seriam ensi-
nados os elementos das ciências, belas-artes e artes” (BRASIL, 1824).
O direito à educação na Constituição Imperial de 1824 (BRASIL,
1824) possui como principal característica a presença constante da Igreja
no processo educacional e, portanto, de formação da população. O ensino
era controlado exclusivamente pela Coroa, o que evidencia o caráter extre-
mamente centralizador da mesma.
A Constituição Brasileira de 1891(BRASIL, 1891) possui a peculiari-
dade de ser o primeiro texto constitucional elaborado na então jovem Re-
pública Federativa do Brasil. Imbuída pelo processo de independência das
13 colônias norte-americanas, a República pretendia garantir a efetividade
e permanência da democracia e do sistema federativo.
Uma das principais alterações que o direito à educação sofreu foi
devido, em grande parte, à mudança do regime monárquico para o regime
republicano, pois com o novo regime houve uma ruptura do Estado com a
Igreja. A consequência direta foi que a educação deixou de ser função pre-
ponderante daquela instituição. O art. 72, no seu parágrafo 6º da Constitui-
ção Federal de 1891, dispunha que “será leigo o ensino ministrado nos es-
tabelecimentos públicos, em outras palavras significou que o ensino, por-
tanto, não estava submetido a ordens sacras” (BRASIL, 1891).
A Constituição de 1934, diferentemente das anteriores Cartas Mag-
nas, foi a primeira Constituição a positivar os direitos sociais, além de ter
introduzido no texto constitucional títulos nunca antes mencionados, den-
tre eles: a família, a educação e a cultura. Inspirada em grande parte pela
Constituição Mexicana e pela Constituição de Weimar, a Constituição de
1934 dedicou um capítulo inteiro para tratar exclusivamente da educação e
do desporto.
De acordo com o art. 148: “Cabe à União, aos Estados e aos Municí-
pios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras

161
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patri-


mônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador in-
telectual” (BRASIL, 1934).
Seguindo na seara de inovações empreendidas pelo texto constitucio-
nal de 1934, o art. 149 dispõe que “a educação é direito de todos e deve ser
ministrada pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a esses pro-
porcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo
que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação e
desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”
(BRASIL, 1934).
Observa-se que a Constituição de 1934 referendou o tema da educa-
ção em mais de um capítulo, pois no título que trata sobre a Ordem Econô-
mica e Social, no art. 138, dispõe que “incumbe à União, aos Estados e aos
Municípios, nos termos das leis respectivas”, e na alínea b “estimular a
educação eugênica” (BRASIL, 1934).
O art. 139 menciona a educação do trabalhador, dispondo que “toda
empresa industrial ou agrícola, fora dos centros escolares e onde trabalha-
rem mais de cinquenta pessoas, perfazendo essas e os seus filhos, pelo me-
nos, dez analfabetos, será obrigada a lhes proporcionar ensino primário
gratuito” (BRASIL, 1934).
Era de responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal organiza-
rem e manterem sistemas educativos respeitadas as diretrizes estabelecidas
pela União (art. 151). Aos entes federados era obrigatória a aplicação de
pelo menos 20% da renda resultante dos impostos na manutenção e no
desenvolvimento dos sistemas educativos (art. 156).
A Constituição de 1937 evidencia um momento político bastante
delicado para o Brasil, pois essa foi outorgada, o que caracteriza o período
do Estado Novo, que possuía uma orientação política inspirada no modelo
do regime fascista. A principal característica dessa Carta é a extrema cen-
tralização e a ênfase em um exacerbado nacionalismo por parte da política
liderada pelo então presidente da República, Getúlio Vargas.
Como exemplo desse nacionalismo, podemos citar o art. 2º: “A ban-
deira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo
o País. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará
o uso dos símbolos nacionais” (BRASIL, 1937). Portanto a Constituição

162
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

de 1937 (BRASIL, 1937) possuía vários artigos que enrijeciam a legislação


nacionalista em vigor. Caberia à União de forma privativa fixar as bases e
determinar os quadros da educação nacional, traçando as diretrizes a que
deve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e da juven-
tude (art. 15, inciso IX).
Entretanto, no que tange à educação, o Estado exerceria uma função
subsidiária, pois a função principal seria obrigação da instituição da famí-
lia, conforme se pode observar no art. 125: “A educação integral da prole é
o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a
esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar
a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular”
(BRASIL, 1937).
A Constituição Federal de 1946 possui como contexto histórico o
recente processo de redemocratização do país após o período do Estado
Novo. Com isso foram realizados pleitos eleitorais diretos para a escolha
dos representantes da população. No campo da educação, competiam à
União, segundo o art. 5º, alínea “d”, as diretrizes e bases para a educação
nacional. Os demais dispositivos são decorrentes do capítulo II intitulado
Da Educação e da Cultura. Dispõe o art. 166 que “a educação é direito de
todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liber-
dade e nos ideais de solidariedade humana”. De acordo com o art. 167, “o
ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à
iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem” (BRASIL, 1946).
No artigo seguinte, encontram-se os princípios adotados pela legisla-
ção para a educação, dentre eles: II – o ensino primário oficial é gratuito
para todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos prova-
rem falta ou insuficiência de recursos; III – as empresas industriais, comer-
ciais e agrícolas em que trabalham mais de cem pessoas são obrigadas a
manter ensino primário gratuito para os seus servidores e os filhos desses;
VII – é garantida a liberdade de cátedra.
Outro artigo da Constituição de 1946 que é relevante é o art. 169 por
tratar do investimento para a educação, segundo este dispositivo: “Anual-
mente, a União aplicará nunca menos de 10%, e os Estados, o Distrito Fe-
deral e os Municípios nunca menos de 20% da renda resultante dos impos-
tos na manutenção e desenvolvimento do ensino” (BRASIL, 1946).

163
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

Com o advento do golpe militar de 31 de março de 1964, a Carta


Política de 1967 foi outorgada como resultado direto de uma sucessão de
atos autoritários implementados pelos militares. O art. 8º, inciso XIV, da
Constituição de 1967, dispunha que era da competência da União estabele-
cer planos nacionais de educação, e ainda no inciso XVII, alínea “q”, do
mesmo artigo, ser da competência também da União legislar sobre diretri-
zes e bases da educação nacional, além de normas gerais sobre desportos.
Outro dispositivo constitucional que merece destaque é o art. 168,
parágrafo 1º, em que se atribuía como responsabilidade do Estado minis-
trar o ensino nos diferentes graus. No art. 169 ficava estabelecido que com-
petia aos Estados e ao Distrito Federal organizarem os seus sistemas de
ensino, e a União, os dos Territórios. Caberia à União, segundo o art. 169,
parágrafo 1º, prestar assistência técnica e financeira aos Estados e ao Dis-
trito Federal na manutenção de seus sistemas estaduais. A publicação da
Emenda Constitucional n°1/ 1969 é considerada por alguns estudiosos como
uma nova constituição em virtude das diversas alterações promovidas no
texto da Constituição de 1967 (BRASIL, 1967). Nesse contexto, o direito à
educação, em particular, sofreu significativas alterações. Uma das princi-
pais alterações foi a substituição da garantia da liberdade de cátedra, con-
quistada com o advento das demais Cartas Constitucionais pela liberdade
de comunicação de conhecimentos no exercício do magistério.
A Emenda Constitucional nº 1/1969 (BRASIL, 1969) manteve as
características do sistema anterior e acrescentou a possibilidade de inter-
venção dos Estados nos Municípios no caso de não aplicação anual, no
ensino primário, de 20% da receita tributária municipal. Esse percentual,
aliás, terminou por ser alterado pela Emenda Constitucional nº 24/1983,
que o fixou em 13% para a União e 25% para os Estados, Distrito Federal e
os Municípios.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) institucionaliza
um regime político democrático no Brasil, introduzindo considerável avan-
ço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na
proteção de setores mais desprotegidos da sociedade brasileira. Os direi-
tos sociais foram integrados, pela primeira vez, em uma Constituição bra-
sileira como direitos fundamentais, conforme iremos analisar no próxi-
mo capítulo.

164
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

3. A Constituição Federal de 1988 e a Relação


Público-Privada na Educação
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988),
considerada um marco no sentido de superar o nosso recente passado dita-
torial, ao restabelecer as garantias constitucionais que foram suprimidas
durante o período em que vigorou a ditadura militar (1964-1985). A CF/
1988 declarou em seu texto a educação como um direito social (art. 6°),
sendo um direito de todos e um dever do Estado e da família em colabora-
ção com a sociedade.
Em relação à sua prestação (art. 205), surge uma contradição, uma
vez que a sociedade, ao executar tal direito, deixa de ser uma mera colabo-
radora na oferta do direito à educação. É preciso salientar que a maior
oferta continua sendo da esfera pública, entretanto a sociedade passa a as-
sumir cada vez mais um papel de destaque na promoção da educação. Ou-
tra contradição é que a mera declaração de um direito, no caso, o direito à
educação, não se materializa no campo do real, enquanto uma conquista
de fato, pois em muitas situações sequer está sendo prestado na sua integra-
lidade, respeitando as condições de acesso, qualidade e permanência do
ensino.
Portanto não basta declará-lo; deve haver a correspondência do Esta-
do no campo da promoção de tal direito a todos os cidadãos e da família
que não se pode excluir da obrigação de encaminhar a criança até a escola.
Sobre o direito à educação, a CF de 1988 se destaca se a compararmos aos
textos constitucionais que a antecederam, pois essa carta política confere à
educação, em vários dos dispositivos constitucionais, um grande destaque.
Em que pese a Carta Política de 1988, sob a análise da teoria neoli-
beral, que influenciava desde a década de 1980 o contexto político inter-
nacional e, no contexto brasileiro a partir da década de 1990, a constitui-
ção passou a ser entendida como uma fonte de maior burocracia, inde-
pendentemente da avaliação singularizada de governos passados e pre-
sentes, do acirramento do aumento da crise financeira do Estado. Essa
suposta crise teve como consequência direta a reforma nas estruturas es-
tatais, dentre elas a administração pública, sob o argumento de que a
mesma se havia tornado ineficiente.

165
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

É importante mencionar, em relação ao propósito deste artigo, que a


Constituição de 1988 consagrou em seu texto, tendo em vista a correlação
de forças daquele momento, tanto os valores e princípios da gestão demo-
crática, especificamente em relação à educação pública, como os interesses
relacionados à educação privada, ou ainda, dos “setores confessionais”; ou
seja, se estabelece em certa medida o embate entre a perspectiva da gestão
democrática e a lógica privado-empresarial. De acordo com Romualdo
Portela de Oliveira:
Como resultado das disputas na Constituinte, o texto final da Constituição
Federal de 1988 consagrou, no capítulo da educação, uma formulação que,
no essencial, contemplava o interesse dos setores confessionais: apesar de
manter a identidade estatal e pública, admitiu uma diferenciação, no âmbito
das instituições privadas, entre as com fins lucrativos e as sem fins lucrati-
vos, estas com direito a receber subsídios do Poder Público [...] As três no-
ções de público e privado incorporadas pela CF de 1988 podem ser classifi-
cadas da seguinte forma: 1) o público como estatal e 2) o privado terceiro
setor; 3) o público nem estatal nem privado (OLIVEIRA, 2002, p. 156-157).

A Constituição, ao introduzir as variáveis conceituais do público e


do privado no campo educacional (de acordo com Romualdo P. de Olivei-
ra, o público como estatal; o privado terceiro setor e o público nem estatal
nem privado), acabou por anteceder as reformas que a educação, bem como
os demais direitos sociais, iria sofrer durante a década de 1990 em relação à
sua promoção. A consequência mais significativa é que a educação passa a
ser exercida pela esfera privada, mas sob o controle estatal, ou seja, o poder
público detém a esfera da fiscalização e do financiamento, mas a promoção
é realizada pelas organizações privadas, as chamadas organizações do Ter-
ceiro Setor. Segundo Theresa Adrião e Vera Peroni, “o Terceiro Setor seria
caracterizado como o público-não estatal e pressuporia a existência do Es-
tado e do mercado”. Esse conceito designaria “um conjunto de iniciativas
particulares com um sentido público” (ADRIÃO; PERONI, 2005, p. 32).
Outra influência que a educação brasileira passa a enfrentar, espe-
cialmente a partir da década de 1990, principalmente durante o primeiro
mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-1998),
foi dos organismos internacionais, dentre eles o Fundo Monetário Interna-
cional – FMI, o grupo do Banco Mundial, a Organização das Nações Uni-
das para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, a Organização

166
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Internacional do Trabalho – OIT, a Organização Mundial do Comércio –


OMC e a Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL. A
justificativa para tal influência, que se observa na determinação de orienta-
ções para a educação, foi que muitos governos estavam economicamente
atrelados a esses organismos através da realização de empréstimos finan-
ceiros. É necessário ressaltar que, mesmo havendo uma dependência eco-
nômica por parte dos países, essa não se configura como uma relação uni-
lateral, não havendo uma imposição, mas uma consonância entre a orien-
tação política dos governos e a dos organismos internacionais.
Entretanto, a influência desses organismos, em grande parte nos pa-
íses da América Latina, não ocorre sem embates e correlação de forças,
especificamente no campo educacional, seja por parte de uma parcela da
comunidade acadêmica ou através dos sujeitos envolvidos no processo de
aprendizagem nas escolas. Nesse sentido, o “receituário” proposto por tais
organismos defende que a educação seja orientada para que se privilegie a
formação, para o atendimento, essencialmente, das necessidades do merca-
do, e não visando à emancipação dos indivíduos, ao protagonismo de ideias
e ações. No próximo capítulo, analisaremos marcos legais que corroboram
a relação público-privada na educação.

4. O Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado,


a Emenda Constitucional n. 19 e a “Nova” Administração
Pública Federal: marcos legais contemporâneos
da relação público-privada
Neste capítulo, trataremos dos aspectos referentes ao marco legal con-
temporâneo da relação público-privada, no qual destacamos primeiramen-
te o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), sancio-
nado no ano de 1995, que possui entre as suas premissas: “a reforma do
Estado deve ser entendida entro do contexto da redefinição do papel do Esta-
do, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e
social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função de
promotor e regulador desse desenvolvimento” (MINISTÉRIO DA ADMI-
NISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO, 1995, p. 17).

167
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

Podemos observar que, na mesma medida em que o Estado restringe


sua atuação direta a seu aparelho (núcleo estratégico + atividades exclusi-
vas), cada vez mais a sociedade civil é chamada para realizar “parcerias”
com o mesmo, tomando para si os outros dois setores, ficando restrito o
apoio estatal ao mero nível de regulação e fiscalização desses, minimizan-
do o seu papel. Essa relação público-privada acaba acarretando que o Esta-
do não se retira da promoção do direito à educação, mas tem a sua função
diminuída, restrita ao âmbito do financiamento.
Eis que nesse ponto reside o maior risco à luz da realidade brasileira:
a reforma do Estado não significa uma reestruturação positiva de todos os
setores, mas acaba se transformando em uma precarização da relação Esta-
do-sociedade, o que pode ocasionar a aproximação da proposta trazida pelo
PDRAE com o marco de um Estado mínimo excludente.
A promulgação da Constituição de 1988, considerada um marco no
sentido de superar o nosso recente passado ditatorial, ao restabelecer as
garantias constitucionais que foram suprimidas durante o período em que
vigorou a ditadura militar. Mas o que se observa é que algumas das con-
quistas e das garantias consagradas no texto constitucional não vieram acom-
panhadas de uma real efetivação.
Com base no seguinte argumento: “Diante do retrocesso burocrático
de 1988, que resultou em encarecimento significativo do custeio da máqui-
na administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens e
serviços e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos”
(PDRAE, 1995, p. 29), o PDRAE também se contrapõe à CF de 1988 no
momento em que deixa de se referir “ao cidadão”, o que pressupõe um
sujeito com direitos adquiridos constitucionalmente, e passa a usar a se-
guinte denominação: “cliente privilegiado”. De acordo com o PDRAE:
É preciso, agora, dar um salto adiante, no sentido de uma administração
pública que chamaria de “gerencial”, baseada em conceitos atuais de admi-
nistração e eficiência, voltada para o controle dos resultados e descentrali-
zada para poder chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, é
quem dá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna “cliente privi-
legiado” dos serviços prestados pelo Estado (PDRAE, 1995, p. 7).

É importante destacarmos que os conceitos de “cliente privilegiado”,


“público não estatal” e “quase mercado” passam a ser utilizados para legi-
timar, entre outras questões, a própria reforma da Administração Pública,

168
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ainda em curso atualmente, conforme iremos ver quando tratarmos da nova


Lei Orgânica da Administração Pública Federal, organizada através da
Comissão de Juristas.
De acordo com Dalila Andrade Oliveira, o marco legal contemporâ-
neo da relação público-privada foi a Emenda Constitucional nº 19 (EC nº
19) de junho de 1998, pois, segundo a autora:
A emenda constitucional reflete a lógica racional presente na reforma do
Estado assumida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. A institui-
ção das Organizações Sociais e dos Contratos de Gestão vai interferir nos
rumos que tomará a gestão da educação brasileira. Nesse sentido, a autora
afirma que as reformas sociais no Estado brasileiro hoje e, em especial, no
setor educacional aliam-se às demandas de maior acesso e às questões de
ineficiência produtiva do sistema. Dessa maneira, têm conduzido mudanças
nos aspectos gerenciais das políticas públicas, recomendando a adoção de
critérios de racionalidade administrativa como meio de resolução dos pro-
blemas (OLIVEIRA, 2002, p. 127-128).

A EC nº 19 reflete a lógica neoliberal, assumida pelo governo do


presidente Fernando Henrique Cardoso, caracterizada pela diminuição da
máquina pública, diminuição dos gastos sociais, ênfase na racionalidade
administrativa e busca por resultados, bem como pela criação da figura do
cidadão-cliente. Tanto o PDRAE como a EC nº 19 são consequências da
implantação da orientação política neoliberal no Estado brasileiro.
Para tanto, seguindo tal orientação, os dois documentos partem da
premissa de que o Estado não deve ser o principal promotor das políticas
sociais, devendo remeter o seu fomento à participação da sociedade civil a
partir da parceria com o ente público. Com isso ocorre a alteração na exe-
cução dos direitos sociais, pois esses deixam de ser uma responsabilidade
exclusiva do setor público, passando para o setor público não estatal, e a
educação, entendida enquanto um mero serviço e não mais como um direi-
to social, uma garantia constitucional.
Atualmente, a nova proposta de alteração da Administração Pública
foi organizada por uma Comissão de Juristas. Essa comissão foi instituída
pelo ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão Paulo Bernardo du-
rante a vigência do governo do então presidente da República, Luis Inácio
Lula da Silva (2003-2010), baseada no Relatório Final da Comissão de Ju-
ristas, que foi finalizado no ano de 2009. Essa proposta estabelece a possibi-

169
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

lidade da inserção das entidades do Terceiro Setor na estrutura da Admi-


nistração Pública a partir do estabelecimento de uma nova estrutura para o
seu funcionamento e das suas relações com aquelas entidades que passam a
denominar-se Entes de Colaboração. Até o presente momento, não houve
o encaminhamento para a aprovação do Anteprojeto de Lei Orgânica da
Administração Pública3.
O principal documento que legitima a premência da alteração na es-
trutura e no funcionamento da Administração Pública e da Gestão Pública
foi a Carta de Brasília. Esse documento foi produzido, de maneira conjun-
ta, entre o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e o Conselho
Nacional de Secretários Estaduais de Administração – CONSAD por oca-
sião do Congresso do CONSAD, que ocorreu em abril de 2009. De acordo
com o documento, a justificativa para a alteração no funcionamento da
Administração Pública se baseia em alguns argumentos que já foram ex-
postos por nós; entre eles destacamos:
A. Que o Estado Brasileiro precisa cumprir sua função precípua de desen-
volver políticas públicas direcionadas para a garantia da igualdade de opor-
tunidades, dos direitos básicos de cidadania e do desenvolvimento sustenta-
do, produzindo resultados eficientes e efetivos para a sociedade.
B. Que para dar conta das demandas da sociedade no contexto atual é ne-
cessário repensar a forma de organização e funcionamento do Estado.
C. Que diante das restrições de recursos públicos, de um lado, e do au-
mento das demandas sociais, de outro, fica clara a necessidade de se traba-
lhar de forma coordenada no âmbito dos Governos, em bases integradas
e cooperativas, para obter maior sinergia entre as ações, com maior efici-
ência e efetividade das políticas públicas.
D. Que o arcabouço legal e institucional da administração pública é, de
maneira geral, muito pesado e calcado em valores e práticas que, em mui-
tos casos, estão ultrapassados.
E. Que a necessidade de se alcançar melhores resultados para a sociedade
com maior qualidade do gasto público, ou seja, com a otimização da apli-
cação dos recursos disponíveis é consenso entre governo e sociedade (CAR-
TA DE BRASÍLIA, 2009, p. 01) (grifo nosso).

Esses argumentos vêm ao encontro das justificativas apresentadas


tanto para a edição do PDRAE como para a publicação da EC nº 19 na
década de 1990. Resta afirmar que, mesmo se tratando de governos distin-
tos, não houve uma ruptura significativa, mas sim uma continuidade em
relação ao diagnóstico da ineficiência do setor público e sobre a necessida-

170
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

de da realização da reforma no Estado, com a alegação de atingir melhores


resultados, com mais eficiência e otimização dos recursos públicos.
O que se pode constar é que, a partir dos anos 2000, ocorre um estímu-
lo ainda maior ao aprofundamento da relação público-privada, em que pese
com a inserção das entidades do Terceiro Setor, enquanto entes da própria
Administração Pública, que passaram a ser denominados Entes de Colabo-
ração, passando a figurar como parte da administração pública brasileira.

5. Considerações finais
Este estudo teve como objetivo analisar o histórico da relação públi-
co-privada na promoção da educação no Brasil, tomando por base a evolu-
ção da legislação constitucional e infraconstitucional.
A partir desta análise, constata-se que o Estado historicamente e de
maneira gradativa não assume a função de principal promotor do direito
social à educação, passando a um mero fiscalizador na execução da educa-
ção. No caso do histórico da relação público-privada na educação, ocorre
um aprofundamento a partir da década de 1990 no Brasil, primeiro através
da promulgação do PDRAE durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso, no qual foram criados setores de ações não estatais para o atendi-
mento de políticas, e mais atualmente com a proposta de alteração da ad-
ministração pública federal com a inserção dos entes de colaboração. A
educação passa a figurar como uma ação não exclusiva do Estado. Para
tanto foi proposta a transferência da promoção do direito à educação para
o público não estatal e o quase mercado, entendidos enquanto esferas de
atuação privada dentro do espaço público.
A principal consequência para a sociedade é a sua própria desarticu-
lação, pois irá gerar o esvaziamento dos espaços e locus de discussão e cons-
trução de posições mais autônomas frente à realidade atual, uma vez que a
sociedade, ao assumir as obrigações do Estado com os direitos sociais, legi-
tima a sua própria ausência.
Dessa forma, quando nos aproximamos da análise atual das políticas
educacionais, percebemos o predomínio da política do consenso e do pre-
domínio dos interesses particulares em face das demandas da coletividade;
preponderam, pois verificamos cada vez mais que empresários, instituições

171
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

financeiras, bancos, redes de comunicação passam gradativamente a mani-


festar o interesse em promover juntamente com a esfera pública o direito à
educação. Constata-se a existência de um interesse “particular”, materiali-
zado em vantagens tributárias, financeiras, etc., mas que, oficialmente, de-
fendem, a priori, os interesses da coletividade, os interesses de cunho “uni-
versal”, materializados através das alterações legais relacionadas ao papel
do Estado no atendimento dos direitos sociais.
Assim, a educação acaba servindo à manutenção do status quo, ou
seja, da ordem capitalista, pois as mudanças que ocorrem no contexto edu-
cacional não rompem com a hegemonia e o controle social exercido por
esse sistema capitalista e, sim, ao contrário, uma vez que, quando ocorrem
alterações, acabam beneficiando a ordem estabelecida sem alterações soci-
ais profundas, tão somente aparentes ou “formais”.
Outra questão observada no final deste estudo é a importância de
relacionarmos as questões relacionadas à Educação com a História e o Di-
reito. Reformas são necessárias, entretanto devemos ter presente com qual
intencionalidade tais reformas são realizadas, especialmente quando alte-
ram significativamente a Constituição Federal, com reflexos para a socie-
dade. Muitas vezes, sob o argumento de promover a modernidade das es-
truturas do Estado, violam-se direitos básicos da população, pois, quando o
Estado deixa de prestar diretamente os direitos sociais, entre eles a educa-
ção, ficando restrito ao âmbito da fiscalização, nesse caso deve fazer de
uma maneira forte, com vistas a evitar mais desigualdades sociais.
Desde a sua promulgação, vislumbramos que a CF de 1988 sofreu
uma série de alterações no seu texto original, que restou demonstrado a
partir da reforma empreendida na Administração Pública brasileira. Ao
tentar responder acerca dos avanços ou retrocessos dessas reformas, fica a
seguinte reflexão: Se a Carta Política de 1988 significou um avanço no campo
das garantias dos direitos fundamentais, em que pese a permanência dessas
garantias, está condicionada a outros imperativos, que muitas vezes se afas-
tam do ideário do Estado Democrático de Direito. Para tanto, devemos
reafirmar cada vez mais os valores contidos em nossa Carta Política como
forma de nos afastar dos valores excludentes da lógica de mercado, assegu-
rando a todos os cidadãos os direitos e as garantias fundamentais.

172
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Devemos considerar que o presente estudo pertence a uma realidade


específica dentro de um contexto social, político e econômico, materializa-
do na conjuntura de crise do sistema do capital, momento em que os Esta-
dos, ao passarem por reformas nas suas estruturas durante a década de 1990,
tendo por base, entre outras, as orientações dos organismos internacionais,
como o Banco Mundial, ao descentralizar a promoção do direito à educa-
ção para entes privados, entre eles a sociedade civil e o empresariado, sur-
gindo com isso novos sujeitos na execução desse direito social.
Em relação ao contexto internacional, o estudo faz referência ao
neoliberalismo, que irá influenciar as relações entre o público e o privado,
em âmbito local e internacional. Em âmbito nacional, a consequência disso é
que a promoção das políticas sociais está sendo repassada para a sociedade
civil.
O Estado, quando minimiza o seu dever em relação à promoção dos
direitos sociais, repassa-o para a sociedade, que assume tais obrigações; daí
deixa-se de exigir a real prestação e proteção destes direitos por parte do
Estado, que, ao contrário, legitima a sua ausência à medida que passa a
cumprir as suas funções, segundo Ellen Wood, transformando-se em “um
álibi para o capitalismo” (WOOD, 2005, p. 205), no sentido de manuten-
ção do status quo.
É importante ressaltar que a realidade atual da educação pública bra-
sileira possui relação estreita com nosso passado histórico, nossas raízes
políticas, econômicas e sociais, no qual destacamos, mesmo durante a ela-
boração das primeiras Cartas Políticas brasileiras, a importância da partici-
pação da família, da Igreja e de outros sujeitos sociais na promoção das
políticas sociais para a educação.

Referências
ADRIÃO, Theresa; PERONI, Vera Maria Vidal (orgs.). O público e o privado na
educação. Interfaces entre Estado e Sociedade. São Paulo: Xamã, 2005.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Senado Federal, 2005.
______. Constituição da República Federativa do Brasil: Senado Federal, 1937.
______. Constituição da República Federativa do Brasil: Senado Federal, 1934.

173
PIRES, D, de O. • O histórico da relação público-privada no Brasil: o enfoque jurídico

______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil: Senado Federal, 1891.
______. Constituição Política do Império do Brazil: Senado Federal, 1824.
______. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 2003.
BRASÍLIA, CARTA. Ministério do Planejamento. Brasil, 2009.
ESTADO. Ministério da Administração Federal e Reforma. Plano Diretor da Refor-
ma do Aparelho do Estado. Brasil, 1995.
HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1989.
MALISKA, Marcos Augusto. O Direito à Educação e as Constituições. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editores, 2001.
OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O Direito à Educação. In: ADRIÃO, Theresa;
OLIVEIRA, Romualdo Portela de (orgs.). Gestão, Financiamento e Direito à Educa-
ção. Análise da LDB e da Constituição Federal. São Paulo: Xamã, 2002.
WOOD, Ellen Meisksins. Democracia contra o capitalismo – a renovação do materialis-
mo histórico. São Paulo: Boitempo, 2005.

174
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A influência das consultorias internacionais


nas decisões das políticas educacionais no Brasil

Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt


Maria de Fátima Oliveira

Introdução
Este artigo é parte da pesquisa “Parcerias entre sistemas públicos e
instituições privadas do terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e Ingla-
terra: implicações para a democratização da educação”, que se propõe ana-
lisar a relação entre o público e o privado e as consequências para a demo-
cratização da educação no Brasil, Argentina, Inglaterra e Portugal e o que
se entende em cada país por público e privado, democracia e direito à edu-
cação – CNPQ, coordenado pela prof. Dra.Vera Maria Vidal Peroni, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Neste espaço, pre-
tendemos problematizar a influência das mediações das consultorias inter-
nacionais no Brasil na elaboração das políticas educacionais. Analisamos de
maneira mais atenta a consultoria McKinsey & Company. Temos como foco
descrever e analisar a legitimidade, credibilidade e isenção das recomenda-
ções por ela emanadas no sentido de verificar as implicações na democracia.
A contratação do trabalho das consultorias baseia-se em alguns pres-
supostos que garantem aos contratantes não duvidarem dos relatórios, re-
comendações e resultados emitidos. A imagem de transparência e credibili-
dade é aliada à imagem e ao prestígio dos seus clientes.
Os diagnósticos das consultorias ganham poder de verdade e rara-
mente são contestados. Com a McKinsey não é diferente. O fato de entrar
em nosso espectro analítico é por se tratar de uma instituição privada que
realiza trabalhos para empresas e governos baseados em hipóteses que não
diferenciam contextos e onde tudo, por eles sugerido, é passível de ser repli-
cado, independente do setor econômico ou social a que pertençam.

175
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

Para entendermos esse fenômeno, analisamos dois documentos por


eles elaborados: Cinco Prioridades para a Economia no Brasil (McKIN-
SEY & COMPANY , 2005), para dar uma visão do plano macro; e Como
os Sistemas Escolares de Melhor Desempenho do Mundo Chegaram ao
Topo? E como um sistema de bom desempenho pode atingir o nível de
excelência? (McKINSEY & COMPANY, 2007), analisando um trabalho
na área de educação. Em ambos, apontamos para os resultados e recomen-
dações que nada têm a ver com os conceitos de cidadania e de democracia.
Ao contrário, são apelos do mercado para conseguir persuadir gestores pú-
blicos na adoção de uma visão do “papel do Estado”, cuja função é contro-
lar a “performance” em lugar de assumir e executar políticas sociais que se
aproximem dos cidadãos. A visão por eles defendida é do mundo empre-
sarial, onde as falhas corporativas na falta de resultados positivos são so-
lucionadas com o fechamento das filiais ou a demissão dos empregados
incompetentes.

A consultoria McKinsey & Company


A McKinsey & Company foi fundada em 1926 por James McKinsey,
o qual era advogado e professor de contabilidade na Universidade de Chi-
cago. Donadone (2010) destaca que o fundador da McKinsey expunha em
seu cartão de apresentação de negócios a expressão “contadores e enge-
nheiros”. Com isso a organização buscava multiplicar as habilidades e as
possibilidades de atender variadas demandas das empresas. Fato esse que
pode ter ajudado no seu rápido crescimento durante as décadas de 1940 e
19501. Na década de 1990, já era uma das líderes mundiais no setor de
consultorias. O’Shea e Madigan (1997) destacam que a McKinsey cresceu
devido ao culto ao poder e à sua imagem. Exemplo disso é o fato da empre-
sa prestar serviço a governos e empresas privadas, tendo atendido as seis-
centas maiores empresas do mundo. A credibilidade ocorre à medida que a
McKinsey é reconhecida como uma das “organizações líderes em todos os
setores privado, público e social. Cuja escala, escopo, conhecimento lhe

1
Histórico e detalhes: ver Julio César Donadoni (2003).

176
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

permitem resolver os problemas que ninguém mais pode” (McKINSEY


& COMPANY, 2005, grifo nosso). Ela informa em seu site2 que tem pro-
fundo conhecimento funcional e industrial, bem como amplitude de alcan-
ce geográfico. Destacando que são movidos pela paixão, assumindo imen-
sos desafios para os seus clientes e, muitas vezes, para o mundo.
Ela consolida a sua “boa” imagem salientando que constrói suas ha-
bilidades e capacidades junto e para os seus clientes. Assevera que tais ca-
pacidades e habilidades lhe dão a liderança em todos os níveis e oportuni-
dades em que atuam. Descreve que sua missão é ajudar a construir apoio
interno, diagnosticando questões reais e chegando a recomendações práti-
cas (McKINSEY, 2012).
No site da consultoria McKinsey (2012), encontramos, em destaque,
seu grande leque de atuação, cuja abrangência está em torno de 101 escritó-
rios em diversas partes do mundo, conforme o mapa a seguir:

Os principais continentes onde se encontram


os 101 escritórios da McKinsey & Company

Fonte: site McKinsey & Company (www.mckinsey.com)

2
Site Internacional: <http://www.mckinsey.com> e no Brasil: <www.mckinsey.com.br>. Acesso
em: 05. set. 2012.

177
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

A expansão da Mckinsey não está apenas no plano geográfico. Ela


atua em diversos segmentos produtivos e sociais; exemplos de alguns deles
são: a área de portos e aeroportos, energia, sustentabilidade, telecomunica-
ções, petróleo e gás, tecnologia, armamentos, telecomunicações, siderur-
gia, educação, entre outras. Seu volume de negócios na década de 1980 já
era em torno de 2,9 bilhões de dólares, além de um quadro de consultores
que na década de 1980 para 1990 cresceu em 650% (DONADONE, 2003).
Esse crescimento de suas atividades e suas atuações deu-se nas últimas dé-
cadas e se reflete na sua forma de trabalho, a qual teve mudanças profun-
das, pois até meados da década de 1970, ao terminar um trabalho, ela teria
a obrigação de entregar exclusivamente um volumoso relatório. Atualmen-
te, os clientes buscam não apenas recomendações, mas resultados.
No entanto, nem sempre os resultados são os melhores; exemplo dis-
so foi a própria McKinsey, que trabalhou juntamente com outras consulto-
rias internacionais na maior empresa americana de telecomunicações, a
AT&T, a qual gastou cerca de meio bilhão de dólares com projetos de con-
sultoria. A empresa deu carta branca às consultorias para reverter sua per-
da de participação no mercado, porém, passada meia década, o problema
da empresa ainda era o mesmo. Sobre sua forma de atuação devemos en-
tender como as empresas de consultoria organizacional atuam e, especifi-
camente, a McKinsey.

Como atuam as empresas de consultoria


As empresas de consultoria organizacional despontam como o setor
de serviços de maior crescimento nas últimas três décadas. Elas apresen-
tam um crescimento de forma indireta e direta (DONADONE, 2003).
Segundo Donadone (2003), as consultorias crescem de forma indire-
ta devido à presença constante dessas empresas na mídia de negócios, em
livros de gestão voltados para executivos e em eventos corporativos. Tende
a completar o quadro a associação com metodologias inovadoras de gestão
como a Problem Solving Approach e a matriz GE – General Eletric3, ferramen-

3
Ferramenta gerencial também conhecida por matriz McKinsey. A Mckinsey desenvolveu seu
modelo de ferramenta gerencial como parte de seu relacionamento com a General Eletric na
implantação do sistema de planejamento em 1970 (OLIVEIRA, 2005).

178
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

tas estratégicas aplicadas nos diagnósticos e na análise de portfólio das uni-


dades de negócio. Esse movimento constitui o acúmulo de modismos que
invariavelmente direcionam a percepção da população no seu senso comum.
De forma direta, a influência dos consultores e das consultorias ocor-
re através da intervenção que normalmente provocam, isto é, as organiza-
ções, ao passarem por um período de mudança, tendem a absorver os jar-
gões, posturas e ferramentas praticadas pelos consultores. Quanto mais longa
e intensa é a relação entre as consultorias e seus clientes, mais essas sedu-
zem, transferem, emprestam e contaminam os mesmos com sua cultura do
management (PAULA; WOOD, 2008). De acordo com os autores, “as em-
presas de consultoria sofrem fortes pressões por resultados e acabam por
seguir as tendências mundiais em relação a temas e abordagens de traba-
lho, assumindo uma postura de padronização das soluções” (PAULA;
WOOD, 2008, p. 3).
O trabalho das consultorias junto às organizações materializa recei-
tas para essas que ultrapassam as cifras de milhões de dólares, segundo
avalia Cláudia Vassalo (1998). Uma consultoria pode chegar a custar “du-
zentos e cinquenta mil dólares mensais”; no cálculo proposto, é sempre
colocado um retorno de investimento equivalente a dez vezes o valor do
contrato, tornando seu trabalho muito atraente. Portanto, ficam muito mal
explicados o retorno e o prejuízo nas iniciativas sociais, em que os indica-
dores são de difícil mensuração.
As empresas de consultoria sofrem fortes pressões por resultados e
acabam por seguir as tendências mundiais em relação a temas e abordagens
de trabalho, assumindo uma postura de padronização das soluções (PAU-
LA; WOOD, 2008). A padronização das soluções e o modelo replicante de
gestão são repassados para todas as áreas econômicas, sociais dos países.
Na área da educação, a questão da padronização e homogeneização de
métodos, discursos e soluções são temáticas de largas discussões; logo é de
se estranhar o uso dessa lógica para a área da educação.
Para a McKinsey, no tocante à educação, o seu discurso versa sobre a
vasta gama de clientes atendidos. Abrangendo os sistemas de ensino, for-
mação profissional e educação universitária. Nos últimos cinco anos, ela
tem trabalhado em quase 400 projetos na área da educação em mais de 60
países. Todos os seus projetos pedagógicos concentram-se em ajudar os

179
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

clientes a construir melhorias substanciais e duradouras nos resultados dos


alunos, nas avaliações de larga escala, entendendo que essas melhoras são
os índices de desempenho escolar e não, necessariamente, a aquisição de
conhecimento.
A consultoria dispõe de mais de 70 consultores, que trabalham em
projetos de educação em todo o mundo, muitos dos quais já atuaram como
professores, políticos, líderes institucionais, pesquisadores e empresários da
educação. Eles trabalham dentro de uma rede cujo objetivo é: “Cambiar lo
que sucede en los corazones y en las mentes de millones de niños – la misión
principal de cualquier sistema educativo” (McKINSEY 2007, p. 2).
Atualmente, o trabalho da consultoria centra-se nas seguintes ques-
tões: “Transformação e desempenho do sistema; Educação para o empre-
go; Talento e gestão de desempenho; Administração e operações; Aperfei-
çoamento institucional” (McKINSEY, 2005). Cada uma dessas temáticas
apontadas acima objetiva tornar eficiente e eficaz a educação. Estando re-
lacionadas e ligadas a questões macro e microeconômicas, que desde a dé-
cada de 1990 são analisadas e divulgadas pela McKinsey.
No Brasil, essas temáticas vão se efetivando através da presença da
consultoria no Palácio do Planalto e nas demais esferas do governo. Recen-
temente, ela realizou trabalhos na área da educação; por exemplo, atuou
junto à Secretaria de Educação de São Paulo com a função de elaborar o
plano de educação do governo paulista denominado: Compromisso de São
Paulo. O governador Alckmin, à frente dessa iniciativa, discute o projeto a
cada dois meses e afirma: “Estamos trabalhando com gente apaixonada
pelo tema, que quer dedicar tempo, recursos, que vibra e opina” (ALCK-
MIN, 2012 apud ABDALLAH, 2012, p. 51). O projeto utilizou o modelo
desenvolvido de uma escola em Pernambuco, Brasil. Interessa apontar que
o nascedouro desse trabalho foi o convite de Jair Ribeiro4, que através da
ONG Parceiros da Educação e a Casa do Saber organizou um ciclo de
palestras com 12 educadores do país. Esse trabalho, mediado pela consul-
toria McKinsey, resultou num documento no qual são destacadas ações
pontuais de um modelo para mudar o ensino no Brasil (ABDALLAH, 2012).

4
Empresário da área financeira (ABDALLAH, 2012).

180
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Para o secretário de Educação de São Paulo, Herman Woorwald, “a


novidade do Compromisso por São Paulo é que o projeto aglutinou forças”
(ABDALLAH, 2012, p. 51), referindo-se às parcerias público-privadas que
sustentam o projeto. Tais parcerias são formadas por um conjunto de enti-
dades e fundações privadas, essas financiando a empresa de consultoria
McKinsey para que formule a política educacional do estado de São Paulo
(FREITAS, 2012). Não é diferente nos Estados Unidos, onde meia dúzia
de fundações define a agenda educacional do país (RAVITCH, 2011).
Destacamos que a consultoria utiliza diferentes estratégias de atua-
ção. Ela constrói uma rede de relações articulando governos, instituições
do terceiro setor e empresas privadas, envolvendo projetos empresariais e
sociais nos assuntos de gestão, traduzindo todos os problemas nessa di-
mensão, sempre propondo que seus resultados possam ser alcançados. Com
esse fim apoia iniciativas muitas vezes individuais ou com foco na socieda-
de civil organizada. Um exemplo desse tipo de inserção na área social é a
parceria da consultoria com a Ashoka5, que é reconhecida no mercado como
apoiadora do empreendedorismo social. A sociedade oferece capacitação,
ferramentas de gestão, transferência de planejamento do setor privado para
o setor social, transpondo, como tínhamos assinalado, a visão do “merca-
do” para as iniciativas sociais.
Certamente, essa rápida apresentação da Ashoka não representa mais
do que uma pincelada da complexidade do seu perfil e do complexo ideoló-
gico que esse tipo de organização começou a construir. Esse é um ente que
circula sutilmente, por vezes invisível, graças à sua característica multiface-
tada e a um discurso bastante racional. Os conceitos que ela emana são,
provavelmente, argumentos que são transferidos e repetidos pelo senso co-
mum, sem termos consciência de se tratar de um pensamento uniformiza-
dor e conector de interesses definidos com os interesses do capitalismo.
No segmento seguinte, realizamos uma aproximação dos documen-
tos de diagnóstico preparados pela consultoria. O nosso interesse é aproxi-
mar a sua visão macroeconômica e social do Brasil e fazer relações com as

5
Em sânscrito significa: ausência de sofrimento (ASHOKA, 2012).

181
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

ideias que permeiam e se materializam dentro das políticas sociais nesta


última década.

Os documentos elaborados
pela consultoria McKinsey
Como já destacamos, a consultoria McKinsey elabora documentos
que visam analisar temáticas diversas; para esta parte do trabalho foram
escolhidos dois documentos: “Cinco prioridades para as políticas públicas
do Brasil” (McKINSEY & COMPANY, 2005), que trata de uma visão macro
sobre o cenário brasileiro, e o outro documento apresenta um estudo na
área da educação: “Como um sistema escolar de baixo desempenho pode
evoluir para tornar-se bom? E como um sistema de bom desempenho pode
atingir o nível de excelência?” (McKINSEY & COMPANY, 2007). Os do-
cumentos numa pretensa “neutralidade” buscam avaliar no plano macro e
microeconômico a realidade brasileira, principalmente em relação à busca
de crescimento do Produto Interno Bruto – PIB, juntamente com o desen-
volvimento e a melhoria da educação.

O primeiro documento analisado: as cinco prioridades


para as políticas públicas do Brasil
Este estudo propôs cinco conjuntos de medidas prioritárias, destina-
das a eliminar as barreiras à produtividade, cuja implantação tem como
retorno o crescimento do Produto Interno Bruto, PIB, para um índice sus-
tentável de 7 por cento ao ano, colocando o país num patamar de rápido
desenvolvimento econômico. Para isso, o documento recomenda que o Brasil
necessita combater a grande informalidade que prejudica a concorrência;
reduzir o consumo exagerado por parte do governo, que tende a manter
elevado o custo de capital; tornar o sistema judicial e outros serviços públi-
cos como a saúde e a educação eficientes; e desenvolver uma infraestrutura
adequada. Cabe destacar que a última prioridade está vinculada ao com-
prometimento do país em relação a uma visão de longo prazo para a eco-
nomia e a forma de implementação das medidas indicadas.

182
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O estudo informa que, ao mapearem as barreiras ao crescimento da


produtividade em oito setores principais da economia brasileira: agricultu-
ra, automotivo, varejo de alimentos, governo, construção civil, bancos de
varejo, siderurgia e telecomunicações, foi encontrado que as barreiras es-
truturais são responsáveis pela distância econômica entre o Brasil e os Esta-
dos Unidos. Fazendo uma relação comparativa entre países que não pos-
suem a mesma matriz econômica. Por outro lado, identifica que o Brasil
apresenta uma modesta receita per capita que se reflete na produção de
produtos e serviços como baixo valor agregado, que identifica um parque
industrial atrasado em relação aos países que utilizam a tecnologia de
forma intensa. A segunda barreira é o baixo custo da mão de obra, em
relação ao investimento em bens de capital, considerado pelos economistas
da McKinsey como fator determinante da riqueza de uma nação. Levando
em conta que o que se busca é maximizar o retorno dos investidores, não
significando que há uma preocupação com o bem-estar dos trabalhadores
ou seus postos de trabalho.
A visão homogeneizada da realidade social e econômica do Brasil
com outros 17 países, onde a consultoria indicou a criação das mesmas
políticas sociais e econômicas como garantia para o crescimento produtivo,
não avaliam a história, as estruturas produtivas e laborais, bem como a
própria territorialidade. Entretanto, para a consultoria, a questão da infor-
malidade é o ponto central em relação à produtividade dos países em desen-
volvimento.

Informalidade
Importante constatar que esse trabalho sobre a produtividade brasi-
leira não é algo novo. O mesmo fora elaborado oito anos antes, em 1998,
pela própria McKinsey. Nesse período, ela informava que, em vez de traba-
lhadores individuais com caixas de ferramentas, houvesse mais empresas
de construção; em vez de vendedores de rua, existissem lojas de departa-
mentos. O primeiro é observado no crescimento ocorrido no período de
2004 a 2008, em que a construção civil cresceu a uma taxa média de 5,1%
acima da economia nacional. Entretanto, o Produto Interno Bruto, PIB, no
mesmo espaço de tempo foi de 4,8% (MIRANDA, 2011).

183
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

Esse item é uma das categorias fundamentais do Programa de Acele-


ração do Crescimento – PAC. Além dos cursos ministrados pelo Ministério
do Trabalho, a inserção do trabalho feminino na área da construção civil,
reforçado nos programas como Cimento e Batom, desenvolvido pelas Se-
cretarias de Políticas para Mulheres e o Ministério do Trabalho e Emprego,
MTE.
A informalidade não está desconectada das outras prioridades, pois
ela está ligada à redução dos gastos governamentais, bem como está ligada
à questão educacional; segundo a consultoria, são alavancas competitivas,
uma vez que incentivam a otimização dos processos e, consequentemente,
a produtividade. Da mesma forma, segundo a consultoria, a redução da
informalidade diminuirá as distorções nos custos relativos ao capital e mão
de obra, incentivando a automação e um maior ganho de participação de
mercado para as empresas mais produtivas. Finalmente, com um menor
nível de informalidade, há maior atratividade do país como foco de investi-
mentos.
Estamos diante do que Karl Marx (2004) argumentava que o proces-
so de acumulação capitalista é consequentemente a reprodução das rela-
ções capitalistas de produção. A sociedade tende a se perpetuar à medida
que a produção seja renovada; isso é possível com o reinvestimento do va-
lor realizado no mercado na produção (MARX, 2004). Logo a redução da
informalidade está centrada na mudança dos processos produtivos e na
mudança tecnológica, na qual a introdução de novos métodos de produção
faz parte da existência do capitalismo. Pois, segundo Marx (2004) a pressão
da concorrência força os capitalistas a inovar constantemente e desse modo
a ampliar as forças de produção.
Uma dessas ampliações foi realizada pela Espanha, país em profun-
da crise econômica, que nos anos 1990 simplificou seu sistema de tributa-
ção, introduzindo regulamentações de mão de obra mais flexíveis; além
disso, criou um órgão para combater a sonegação fiscal, o que resultou em
um aumento de 75% nos impostos arrecadados de pequenas e médias em-
presas (McKINSEY, 2005). Fato que revela que o cuidado com a informa-
lidade não passa de um discurso para proteger o grande capital em detri-
mento do pequeno. Outro destaque anunciado pela McKinsey foi o caso do
Chile através da reforma do setor de serviços domésticos, inserindo um

184
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

salário mínimo para o trabalhador doméstico menor do que os demais traba-


lhadores, segundo relatório da McKinsey6. Nesse caso, a recomendação não
indica uma busca pela equidade dos trabalhadores, porém uma distorção que
a médio prazo aumenta as distorções entre os mais ricos e os mais pobres.

Gasto do governo
O segundo aspecto levantado pela consultoria diz respeito à questão
do desequilíbrio fiscal. O Brasil, segundo o relatório, gasta muito mais do
que arrecada. Perfazendo gastos por parte do governo em despesas de con-
sumo, que incluem gastos com seguridade social, saúde e aposentadorias e
salários do setor público. Além disso, há despesas, investimentos e paga-
mentos da dívida pública. Esse gasto representa mais de 40% do PIB, o que
tende a aumentar, pois as despesas com bem-estar social têm aumentado
nos últimos anos.
Algumas sugestões emanadas no documento para redução das des-
pesas governamentais centram-se no aumento da idade mínima para apo-
sentadoria, dissociação do aumento das aposentadorias pelo salário míni-
mo, redução das alíquotas de impostos e redução das taxas de juros (McKIN-
SEY, 2005).
A McKinsey destaca que através da redução substancial do consumo
do governo como percentual do PIB possibilitará ao Brasil gerar um ciclo
virtuoso em que uma despesa pública menor permitiria ao governo reduzir
os impostos e o peso da dívida do setor público. A primeira iniciativa gover-
namental poderia auxiliar na diminuição da informalidade, e a segunda
iniciativa ajudaria na redução das taxas de juros; isso se refletiria no au-
mento de investimentos, fazendo a economia crescer. Consequentemente,
haveria um aumento da receita fiscal, o que permitiria investimentos públi-
cos em infra-estrutura, incentivando a produtividade de vários setores eco-
nômicos, gerando mais crescimento econômico e, quiçá, a redução maior
da dívida e dos encargos sociais no Brasil (McKINSEY, 2005, grifo nosso).

6
Leia o artigo “As Cinco Prioridades para a Economia no Brasil”. Disponível em: <http://
download.mckinseyquarterly.com/BrazilMGI_Portuguese.pdf>.

185
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

Embora a consultoria oriente para a criação de um “ciclo virtuoso”


por parte do governo brasileiro na redução de seus gastos públicos, inclusi-
ve em alguns momentos o relatório elogia o desempenho brasileiro, ao
mesmo tempo critica a aplicação dos recursos públicos nos programas soci-
ais. Entretanto, em sua análise, em nenhum momento faz alusão a que boa
parte desses gastos é composta por avais dados pelo governo brasileiro para
empresas privadas e para o terceiro setor.

Sistema Judiciário
A reforma do judiciário brasileiro de acordo com a McKinsey é o
início de uma mudança mais ampla para a expansão de tais mudanças em
outros serviços públicos prestados pelo Estado, como a saúde e a educação.
A consultoria ainda destaca que nossa ineficiência é responsável pelo distan-
ciamento da produtividade estrutural entre nosso país e os Estados Unidos.
A ineficiência não deve ser combatida com um número maior de juí-
zes, pois esses já embolsam boa parte dos recursos governamentais, além
do grande número de funcionários de apoio que os mesmos utilizam. Para
reduzir e quiçá acabar com essa ineficiência, a McKinsey (2005) sugere
simplificação da legislação brasileira, racionalização do uso do judiciário
por parte das instituições públicas e inclusão da colaboração de autorida-
des financeiras e sociais para a criação de normas administrativas, indican-
do quando recorrer aos serviços judiciais. Tudo isso em prol da redução do
número de ações no judiciário.
Nesse item, a consultoria faz uma longa argumentação e sugere que
as mudanças a serem implementadas no judiciário serviriam de “bom exem-
plo para reformas a serem feitas nas áreas da saúde, educação e em outros
serviços públicos” (McKINSEY, 2005, p. 3).
No entanto, essa simplificação sugerida não leva em conta as profun-
das diferenças entre esses setores. A educação, por exemplo, não goza de
todos os benefícios sociais e salariais do judiciário. De fato, o crescimento
salarial do magistério e da saúde depende do poder executivo; o setor judi-
ciário legisla por conta própria. Desse modo, a sugestão de replicar para
todo o setor público é inviável.

186
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Infraestrutura
De acordo com o documento elaborado pela McKinsey sobre as Cin-
co Prioridades para o Brasil (McKINSEY & COMPANY, 2005), os investi-
mentos em infraestrutura decresceram assustadoramente. Isso resultou em
estradas, usinas de energia elétrica, portos e saneamento inadequados. Criou-
se um distanciamento da produção brasileira em relação à americana. Para
reduzir tal distanciamento em relação aos países desenvolvidos, o Brasil
deverá investir de US$20 bilhões a US$36 bilhões anuais. O documento
informa que, para custear esse valor, urge a necessidade da criação de par-
cerias público-privadas com regulamentações simplificadas e vantajosas para
ambas as partes (McKINSEY, 2005).
Uma regulamentação clara e justa para parcerias público-privadas é igual-
mente importante. Em Bogotá, capital da Colômbia, essas regras foram fun-
damentais para o sucesso do novo sistema de ônibus urbanos, que reduziu o
número de acidentes fatais em 90 por cento e a poluição em 43 por cento,
criando ao mesmo tempo 18.000 novos empregos. Para isso, foi desenvolvi-
do um sistema sustentável no longo prazo, evitando subsídios, delegando ao
setor privado a responsabilidade pelas operações, gerenciando as receitas
por meio de um fundo administrado pelo Banco Lloyds e limitando as inter-
ferências do governo (McKINSEY, 2005, p. 78).

As parcerias na realidade estimulam a participação reduzida do Es-


tado, sendo esse o principal parceiro para o alcance das metas do capital
através de isenções, de subvenções, de empréstimos, onde o país capta os
recursos, aumentando a sua dívida, e ao mesmo tempo é o principal garan-
tidor, diminuindo os riscos dos parceiros privados, entre outras vantagens.
Para que o Brasil atinja as quatro prioridades acima destacadas, faz-
se necessário que a quinta prioridade venha ao encontro de outros dois
elementos: o primeiro é a garantia do total comprometimento em relação
às metas de longo prazo, sendo assumidas por políticos de diversos parti-
dos, funcionários públicos federais, estaduais e municipais e líderes empre-
sariais da iniciativa privada. A McKinsey sugere que, para o alcance das
prioridades, se fazem necessários três mandatos presidenciais para garantia
das mudanças a serem realizadas, bem como de contratos, normas e regula-
mentações acordadas (McKINSEY, 2005). Desse modo, suas sugestões co-
locam em risco a própria soberania do Estado brasileiro.

187
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

O segundo elemento diz respeito à coordenação e ao monitoramen-


to das implementações das sugestões colocadas pela consultoria. Elas te-
riam de ser realizadas mediante políticas públicas pelos ministérios e ór-
gãos competentes. Sugerem ainda a criação de um órgão de coordenação
central. Segundo a McKinsey (2005), esses responsáveis pelo processo
devem ser:
[...] respeitados pelos diversos setores por sua experiência e competência e
oriundos de partidos políticos diversos e de outros contextos da sociedade.
A unidade poderia responder diretamente ao presidente do Brasil e ser ori-
entada por acadêmicos independentes, especialistas internacionais e empre-
sários de destaque. Ela poderia coordenar o trabalho de subunidades especi-
ais, que trabalhariam com as áreas selecionadas para reforma – uma subuni-
dade de combate à informalidade, por exemplo, poderia apoiar os esforços
dos diversos segmentos, ministérios e estados, bem como do legislativo e do
judiciário. Finalmente, ela poderia propor metas, definir como acompanhar
o avanço dos trabalhos, monitorar os resultados e fornecer metodologias e
soluções a ministérios e órgãos responsáveis pela implementação de medi-
das específicas (McKINSEY, 2005, p. 70).

Novamente é retomada a questão das parcerias público-privadas, agora


no ideário de que a iniciativa privada é quem administra melhor, mas so-
bretudo é quem garantirá o sucesso das medidas a serem implantadas, in-
terferindo no desenho da administração e estrutura do Estado. Levando
em conta que esses órgãos supragovernamentais não contribuem nem for-
talecem um sistema democrático. Pois a aplicação de princípios de negócios,
organização, administração, lei e marketing e o bom desenvolvimento de
um sistema de coleta de dados que proporcione informações necessárias
sobre elaboração, implementação e controle de políticas públicas não ga-
rantem que essas assegurem o bem-estar social ou que melhorem, magica-
mente, os problemas de desenvolvimento do país. Apenas verificamos que
a participação desses big bosses na gestão da coisa pública não reproduzirá o
sucesso empresarial por eles alcançado para o âmbito do Estado, onde ocorre
uma correlação de forças que não tem relação direta com ganhos de eficá-
cia ou eficiência. Ou como Ravitch (2011, p. 26) afirma: “o apelo do mer-
cado é a ideia de que a libertação do governo é a solução por si só”.
Cabe destacar que tais ideários são propagados para a educação, fi-
cando evidenciado no documento: “Como um sistema escolar de baixo
desempenho pode evoluir para tornar-se bom? E como um sistema de bom

188
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

desempenho pode atingir o nível de excelência?”. E é este documento que


analisaremos a seguir.

O segundo documento analisado: Como um sistema escolar


de baixo desempenho pode evoluir para tornar-se bom?
E como um sistema de bom desempenho pode atingir
o nível de excelência?
Neste documento aparecem claramente alguns dos pressupostos que
orientam o trabalho da consultoria. Escolhemos este estudo que envolve,
em primeiro lugar, o Brasil. Em segundo lugar, ele está plenamente orienta-
do pela filosofia McKinsey para a educação.
A investigação, por eles coordenada, foi realizada em vinte siste-
mas de diferentes partes do mundo. A amostra foi composta por sistemas
educacionais com desempenho positivo, embora não tivessem o mesmo
nível. A questão da pesquisa era descobrir “como cada um dos sistemas
educacionais obteve ganhos significativos, sustentados e generalizados em
termos de resultados dos alunos, medidos por exames internacionais e
nacionais” (McKINSEY, 2007, p. 2). O estudo utilizou entrevistas e cons-
truiu uma base de dados que eles apresentam como sendo:
[...] a mais abrangente base de dados de reforma de sistemas escolares ja-
mais reunida no mundo – o presente relatório identifica os elementos de
reforma passíveis de reprodução em sistemas educacionais de outras partes
do mundo, em sua transição de desempenho fraco para satisfatório, e daí
para bom e finalmente excelente (MCKINSEY, 2007, p. 3).

Entre os sistemas analisados se encontram alguns nacionais e outros


regionais pelos diferentes continentes; elas foram: Armênia, Aspire (siste-
ma escolar dos Estados Unidos no regime de charter), Boston (Massachu-
setts, EUA), Chile, Cingapura, Coreia do Sul, Eslovênia, Inglaterra, Gana,
Hong Kong, Jordânia, Letônia, Lituânia, Long Beach (Califórnia, EUA),
Madhya Pradesh (Índia), Minas Gerais (Brasil), Ontário (Canadá), Polô-
nia, Saxônia (Alemanha) e Western Cape (África do Sul).
Essa amostra revela que os tipos de organizações nacionais são colo-
cados no mesmo patamar dos sistemas locais. De modo que todos são vis-
tos como casos isoláveis do seu contexto nacional ou regional.

189
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

A parte mais relevante desse trabalho pode ser resumida nos oito acha-
dos desta pesquisa: o tempo de obter ganhos com as reformas; a ênfase no
processo; o aprendizado das experiências; o contexto não é determinante;
existem intervenções comuns a fazer; o equilíbrio entre autonomia e uni-
formidade da prática de ensino; as reformas são provocadas por eventos
específicos; e a continuidade da liderança é essencial.

O tempo de obter ganhos com as reformas


O primeiro achado refere-se ao tempo necessário para obter ganhos
com as reformas educacionais. Na visão da consultoria, um sistema pode
obter ganhos significativos, não importando qual seja seu ponto de partida,
referindo-se ao desempenho dos alunos, verificando que em seis anos ou
menos é possível imprimir reformas positivas.
Acreditamos que esse resultado alicerça a celebração de futuros tra-
balhos de consultoria; de algum modo, ter essa medida lhes garante que, ao
serem contratados, eles poderão apresentar resultados práticos ao longo do
período.

A ênfase no processo
As reformas teriam que dar ênfase ao processo – esse é o segundo
achado. Eles sustentam que, quando os resultados obtidos pelos alunos fi-
caram estagnados ou regrediram, verificava-se uma ênfase muito reduzida
em “processos” no debate educacional.
As melhorias no desempenho do sistema baseado na necessidade de:
a) provocar mudanças nas estruturas, estabelecendo novas instituições ou
implementando novos tipos de escola, ou mesmo modificando os anos e ní-
veis de escolaridade, ou descentralizar as responsabilidades dentro do siste-
ma; b) provocar mudanças no financiamento na aplicação de recursos com a
alocação de mais pessoal da educação (pagamento de mensalidades, por exem-
plo) nas escolas ou incrementar o financiamento público dos sistemas; c)
provocar mudanças nos processos, modificando o currículo e melhorando a
maneira como os professores ensinam e como os diretores lideram.

190
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Avaliamos que esse achado resume dois tipos de raciocínio. Inicial-


mente, qualquer análise simples do sistema escolar, com olhar de bom sen-
so ou simples conhecimento de administração, identificaria que esses são
os elementos de melhoria de qualquer desempenho. Finalmente, o achado
abre espaço para diversos trabalhos a serem implementados pela mesma
consultoria.

Aprendizado das experiências


No terceiro patamar de achados está o aprendizado através de expe-
riências. Esse se refere à análise que reconhece que os sistemas em transi-
ção, o desempenho satisfatório para o bom, têm como foco o estabeleci-
mento dos alicerces de coleta de dados, organização, financiamento e ges-
tão pedagógica. Enquanto os sistemas de bom desempenho a caminho do
ótimo buscam estruturar a profissão de professor, de modo a definir os re-
quisitos, as práticas e os planos de carreira com a mesma clareza encontra-
da nas carreiras de medicina e direito.
A melhoria dos sistemas educacionais não avança quando se faz apenas
o que fora sucesso no passado. Os exemplos apontados são as intervenções
realizadas por Madhya Pradesh (Índia), Minas Gerais (Brasil) e Western Cape
(África do Sul) em sua trajetória do baixo desempenho para o desempenho
satisfatório, destacando que eles mostram semelhanças surpreendentes.
Pensamos que não cabe dúvida; existem sistemas em que há maiores
dificuldades em gerir bem seus sistemas de informação, que valorizam pouco
seus profissionais, e principalmente sistemas que não valorizam o conheci-
mento acumulado historicamente. Ou seja, que estão sempre iniciando, re-
formando e reorganizando, não podem ter um desempenho positivo de lon-
go prazo. De fato, o conhecimento acumulado nas ciências sociais, particu-
larmente na educação, nos orienta para que se aposte em políticas de Estado
– de longo prazo – em detrimento de políticas de governo – de curto prazo.

O contexto não é determinante


O quarto resultado encontrado refere-se ao contexto. Para os consul-
tores, esse elemento não é determinante. Para eles, todos os sistemas que

191
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

apresentam melhorias implementaram conjuntos semelhantes de interven-


ções para avançar de um determinado nível para o nível seguinte, indepen-
dentemente da cultura, geografia, política ou história. “O contexto do siste-
ma pode não determinar o que precisa ser feito, mas determina, isto sim,
como deve ser feito” (McKINSEY, 2007, p. 3). Embora cada etapa de de-
sempenho esteja relacionada a um conjunto comum de intervenções, verifi-
caram substancial variação na maneira como o sistema implementa tais
intervenções em termos de sua sequência e de tempo necessário.
Ponderamos que esse é sem dúvida o achado que vai contra o ideário
de heterogeneização e de respeito às diferenças étnico-culturais. Não levar
em conta os aspectos contextuais nega a grande parte da riqueza que a
própria humanidade tem percebido nas suas diferenças entre os diversos
sistemas.

Existem intervenções comuns a fazer


Eles verificaram, no quinto ponto, que existem intervenções comuns
a fazer. A recomendação é resumida em seis tipos de intervenções, que
ocorreram igualmente em todos os estágios de desempenho dos sistemas.
Aparecem de forma clara: a capacitação dos professores (em termos de
habilidades de ensino) e de gestão dos diretores; a avaliação dos alunos; o
aperfeiçoamento dos sistemas de dados; a facilitação das melhorias medi-
ante a introdução de documentos de política e leis sobre educação; a revi-
são de normas e currículos; e a garantia de uma estrutura adequada de
recompensa e remuneração para professores e diretores. Para nós, esse é
mais um dos conjuntos de recomendações que não superam o senso co-
mum ou o bom senso na gestão escolar na atualidade.

O equilíbrio entre autonomia e


uniformidade da prática de ensino
O sexto achado refere-se ao equilíbrio entre autonomia e uniformi-
dade da prática de ensino. Afirmam que os sistemas de desempenho consi-
derados “fracos” e/ou “satisfatórios” avançam por meio de um centro que

192
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

intensifica e determina a prática de ensino das escolas e professores, porém


essa abordagem não funciona para sistemas que já se encontram no pata-
mar de desempenho “bom” ou um nível acima. Nesses sistemas, ao contrá-
rio, observaram que o avanço decorre do aumento das responsabilidades e
flexibilidades proporcionadas pelos gestores centrais para que escolas e pro-
fessores modelem a prática de ensino. Verificou-se que, para um terço dos
sistemas educacionais, que avançam de “bom para ótimo”, tanto como para
pouco menos de dois terços dos que estão na jornada de “ótimo para excelen-
te”, houve um movimento de descentralização nas funções pedagógicas, de-
legando-as para o escalão médio (por exemplo, distritos) ou para as escolas.
Do nosso ponto de vista, esse item parece que é o mais importante
achado dentro da questão pedagógica. De fato, esse estudo demonstra que
sistemas de baixo rendimento requerem tutela na equalização do desempe-
nho dos alunos. Obviamente, essa atitude provoca um sufoco em sistemas
mais organizados, já que a interferência e a regulação estremadas geram a
perda de autonomia, que provoca atitudes negativas, baseadas na frustra-
ção e no tolhimento da criatividade.

As reformas são provocadas por eventos específicos


O sétimo achado de pesquisa verificou que as reformas são provoca-
das por eventos específicos. Esses episódios foram agrupados por circuns-
tâncias comuns, que foram responsáveis por gerar as condições, quais se-
jam: o impacto da crise socioeconômica nos sistemas; um relatório crítico,
de grande repercussão, sobre o desempenho do sistema; e uma mudança de
liderança. Esse último evento traz benefícios aos líderes que iniciam as re-
formas. Parece-nos que a grande utilidade desse achado é que ele identifica
os melhores momentos para as atividades de consultoria.

A continuidade da liderança é essencial


O oitavo achado constata que a continuidade das lideranças imple-
mentadoras das reformas garantem que as mudanças se efetivem. Por esse
argumento, as lideranças não são fundamentais apenas para desencadear a

193
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

reforma, mas também para sustentá-las. Dois aspectos destacam-se nos lí-
deres de sistemas educacionais com melhorias: a longevidade e o cuidado
com a formação da geração seguinte de líderes. Esse aspecto garante a con-
tinuidade em longo prazo dos objetivos de reforma. Supomos que nada é
mais verdadeiro do que reconhecer que a permanência de lideranças à fren-
te de sistemas garante a implementação e o realinhamento de ações e polí-
ticas educacionais.
O resumo executivo na versão em português do relatório dessa pes-
quisa finaliza afirmando:
O desafio fundamental a ser vencido pelos líderes dos sistemas de ensino é
como conduzir o sistema rumo a melhores resultados dos alunos. Essa jor-
nada é ainda mais complexa porque os pontos de partida são diferentes, os
contextos variam e os líderes se defrontam com múltiplas escolhas e combi-
nações de ações a tomar ao longo do caminho – um passo inadequado pode
inadvertidamente levá-los a ingressar em um curso não desejado. É certo
que não existe um percurso único para melhorar o desempenho dos siste-
mas escolares; contudo, a experiência dos vinte sistemas em melhoria que
analisamos mostra que a natureza do caminho trilhado por eles têm fortes
aspectos comuns. O presente relatório descreve os aspectos dessa trajetória
que são universais, aqueles que são específicos ao contexto, e a interação
entre ambos. Esperamos que essas experiências possam trazer benefícios
para sistemas escolares do mundo todo, cada qual em seu percurso próprio
rumo à melhoria (McKINSEY, 2007, p. 4).

Interpretamos que esse período revela a grande contradição que re-


presenta esse trabalho, primeiro por ele não se reconhecer como descritivo
e sim propositivo. Reconhece que há grandes diferenças contextuais, ao
mesmo tempo como sustenta que seus achados são passiveis de replicar
para o mundo todo.

Considerações finais
Diante dos documentos analisados, podemos verificar que essa con-
sultoria, como qualquer outra, sutilmente preserva seu espaço de trabalho e
de abrangência. No entanto, os achados da consultoria não são novidades.
De fato, os governos, se bem intencionados e com estrutura institucional,
conseguem elaborar suas políticas e ações no espectro apontado na pesqui-
sa. A questão que fica visível é a forma como eles vendem as ideias, algu-

194
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

mas vezes consagradas, como inéditas e legítimas, mas construídas fora do


espectro democrático esperado.
Os trabalhos realizados não possuem neutralidade como querem fa-
zer parecer; o serviço oferecido aos governos amarra de maneira sutil o
fornecimento de soluções para as empresas da sua carteira; na realidade,
eles trabalham fazendo as costuras, contatos, ou seja, eles fazem o meio de
campo.
O foco da educação baseada na performática e na avaliação de de-
sempenho dos alunos afasta as políticas do verdadeiro objetivo da educa-
ção, qual seja, formar cidadãos capazes de adquirir e produzir conhecimen-
to que garanta a sua cidadania. De acordo com Ravitch (2011, p. 252), “as
nossas escolas não irão melhorar se nós continuarmos a focar apenas na
leitura e na matemática [...] não produzirão egressos que estejam prontos
para a universidade e o mercado de trabalho moderno”. O sistema escolar
que os defensores do capital estão a louvar, atualmente, não reproduz em
curto prazo e muito menos a longo prazo uma educação compreensiva de
aspectos como as artes, nem equipa os alunos para tomar decisões basea-
das em conhecimento, refletido de debate e razão. Muito menos estão a
preparar os estudantes para responsabilidades de cidadania em uma demo-
cracia (RAVITCH, 2011). O objetivo da educação é “educar as crianças
para que elas se tornem pessoas responsáveis com mentes bem desenvolvi-
das e um bom caráter” (RAVITCH, 2011, p. 254). Portanto as consultorias,
antes de replicar suas sugestões e ideias aos quatro ventos, deveriam redefi-
nir o que entendem por aprendizagem.
Desse modo, é importante diferenciar qual o conceito defendido para
a educação, para a função da escola em cada sociedade. O conhecimento
acumulado nessa área mostra-nos que os fenômenos sociais possuem parti-
cularidades, características, propriedades locais que sofrem influências ex-
ternas, mas que se alteram de forma particular em cada contexto histórico
e cultural em cada região e estado.
Com este trabalho tentamos de forma sucinta alertar para esse movi-
mento silencioso das consultorias como meio para adaptar o capitalismo
vigente ao trabalho dos governos na elaboração de políticas públicas. Nesse
sentido, Peroni (2012, p. 6) alerta para o avanço da “tão batalhada demo-

195
BITTENCOURT, J. M. V.; OLIVEIRA, M. de F. • A influência das consultorias internacionais...

cracia”, ao mesmo tempo em que se verifica o esvaziamento das políticas


sociais, ao verificarmos que os governantes ficam influenciados pelas reco-
mendações dessas consultorias que possuem legitimidade controversa e
ambígua.

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196
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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197
Relação público-privada no
Programa de Desenvolvimento da Educação:
uma análise do plano de ações articuladas

Alexandre José Rossi


Liane Maria Bernardi
Lucia Hugo Uczak

Introdução
Este artigo é parte de uma pesquisa realizada pelo grupo de pesquisa-
dores vinculados ao Programa de Pós Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, que trata das “Parcerias entre siste-
mas públicos e instituições do terceiro setor no Brasil, Argentina, Portugal
e Inglaterra: implicações para a democratização da educação”, coordena-
do pela professora Vera Maria Vidal Peroni.
Abordaremos a política educacional implementada pelo governo de
Luiz Inácio Lula da Silva e mantida por Dilma Rousseff a partir do Plano
de Metas Compromisso Todos pela Educação e da implantação do Progra-
ma de Desenvolvimento da Educação (PDE). O programa materializou-se,
entre outras formas, no instrumento chamado PAR – Plano de Ações Arti-
culadas, que, partindo de um diagnóstico da realidade educacional local,
apresentou ações e subações de assistência técnica e financeira aos municí-
pios e estados com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação – IDEB.
A questão norteadora do texto indaga como o setor privado adentra
e influencia o setor público e quais as implicações para a democratização
da educação. A base material da pesquisa traz os dados coletados nos docu-
mentos disponibilizados pelo MEC: Decreto nº 6.094/07, Guia de Ações
2011-2014, Guia de Tecnologias Educacionais e os próprios instrumentos
de elaboração do diagnóstico e do planejamento disponibilizados através
do Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle (SIMEC).

198
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A sustentação teórica do estudo está nos argumentos de Ellen Wood (2003),


Carlos Montaño (2005), Nalú Farenzena (2012), Vera Peroni (2011) e Chris-
tian Laval (2004).
Esse plano já está em sua segunda edição, sendo que a primeira ocor-
reu de 2007 a 2011 e a segunda de 2011 até 2014. Envolvendo a sociedade
civil nesse processo de elaboração do diagnóstico, da escolha das ações a
partir de defasagens ou dificuldades apresentadas e do acompanhamento
da execução do programa, o governo propôs autonomia para a escolha de
ações e a possibilidade de todos os municípios aderirem ao programa, rom-
pendo com práticas clientelistas e publicizando os critérios de atendimento
de assistência. Ao mesmo tempo, propôs uma série de ações em que apre-
senta parcerias privadas como alternativa para equacionar problemas apre-
sentados. Destacaremos essas parcerias dentro do PAR, analisando as con-
tradições apresentadas pela política.
O artigo está organizado em três seções: (i) Plano de Desenvolvimen-
to da Educação, em que apresentamos o Plano de Metas Compromisso
Todos pela Educação, mostrando como se constituiu a política do PDE; (ii)
Plano de Ações Articuladas, em que evidenciamos a materialização do PDE
na educação básica através do PAR e destacamos o diagnóstico e a elabora-
ção do plano onde demonstramos a relação público-privada proposta pelo
mesmo; (iii) Guia de Tecnologias Educacionais, que é uma das ações pro-
postas pelo PAR, que exemplifica como se realizam as parcerias, destacan-
do as possibilidades de parcerias pré-qualificadas pelo MEC. Por fim, faze-
mos algumas considerações preliminares sobre a política do PDE/PAR.

1. Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE


O Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação é uma políti-
ca pública que integra o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE.
Como o próprio nome já diz, é um plano que prevê o desenvolvimento da
educação no Brasil com o objetivo de investir na educação básica através de
projetos que envolvam toda a comunidade escolar por meio de iniciativas
que garantam o sucesso e a permanência com qualidade do aluno na escola.
O Compromisso Todos pela Educação apresenta propostas alinha-
das com as reformas educacionais implementadas em vários países euro-

199
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

peus e latino-americanos a partir da década de 1990, cujo objetivo central


referia a melhoria da qualidade da educação, o que inclui ampliação de
jornada escolar, universalização do atendimento, propostas de avaliação
em larga escala, incentivos à realização de parcerias externas, buscando
apoio às atividades educacionais, investimento em formação inicial e conti-
nuada e valorização dos profissionais da educação, entre outras questões
(BARÃO, 2009).
O Plano de Desenvolvimento da Educação foi criado e lançado em
2007 pelo Ministério da Educação (MEC). Tal plano segue as recomenda-
ções contidas no Decreto nº 6.094/07, que tem como objetivo a melhoria
da qualidade da educação básica no Brasil. O decreto é constituído de 28
diretrizes, as quais englobam aspectos relacionados ao acesso e à perma-
nência dos alunos na escola; também trata da organização do trabalho pe-
dagógico, bem como sobre a formação e a carreira dos profissionais da
educação, a gestão da escola e das redes de ensino, a valorização dos profis-
sionais da educação, entre outras questões. O Plano de Metas trata-se de
uma política intergovernamental que foi proposta pelo governo federal e,
de acordo com Farenzena (2012, p. 11), “conta com sua intervenção na
promoção e na implementação das ações e envolve, igualmente, com as
mesmas funções, as redes estaduais e municipais de ensino, mediante a ade-
são dos perspectivos poderes executivos”.
Entre as 28 diretrizes, destacamos as diretrizes XXVII e XXVIII, pois
nos chama a atenção a questão de sugerir parcerias público-privadas.
XXVII - firmar parcerias externas à comunidade escolar, visando a melho-
ria da infraestrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais e
ações educativas;
XXVIII - organizar um comitê local do compromisso, com representantes
das associações de empresários, trabalhadores, sociedade civil, Ministério
Público, Conselho Tutelar e dirigentes do sistema educacional público, en-
carregado da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metas
de evolução do IDEB (BRASIL, Decreto Nº 6.094, de 24 de abril de 2007).

Como podemos perceber, entre as 28 diretrizes do Decreto nº 6.094/


07, duas delas pressupõem que os entes federados, ao aderir ao PDE, de-
vem firmar parcerias com entidades externas à escola. Na diretriz XXVII
coloca como meta que os entes federados firmem parcerias externas à co-
munidade escolar, com vistas à melhoria da infraestrutura da escola e à

200
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

promoção de projetos socioculturais. Aqui observamos uma prerrogativa


de desobrigação do papel do Estado com o provimento e a manutenção da
educação, repassando o que é de sua responsabilidade às escolas.
Na diretriz XXVIII, o que nos chama a atenção é o fato de que o
comitê local1 deve ser composto, entre outros, por representantes das asso-
ciações de empresários. Entendemos que essa sugestão proposta pelo de-
creto sugere que se envolvam entidades com uma lógica de mercado dentro
da escola pública, influenciando a elaboração e acompanhamento de polí-
ticas educacionais. Também sugere parceria com a sociedade civil, sem no-
mear o que ou quem é.
Segundo Camini (2008), as informações veiculadas através do site do
MEC e nas entrevistas concedidas aos veículos de comunicação na data de
lançamento do programa definiam o PDE como uma “proposta de aliança
de organizações sociais, gestores públicos, secretarias da educação e repre-
sentantes da sociedade civil e da iniciativa privada com o fim de garantir
Educação Básica de qualidade para os brasileiros” (HADDAD apud CA-
MINI, 2008, p. 86).
Percebemos que, na fala do então ministro da Educação, sociedade
civil e iniciativa privada, estão postas como realidades distintas, quando
essencialmente não o são; conforme explicitado por Montaño (2005), a
realidade não se divide em primeiro, segundo e terceiro setores, “para
além do campo das ideias” (MONTAÑO, 2005, p. 181). No movimento do
real, as linhas que dividem esses setores são tênues, de modo que esses são
conceitos em disputa e, portanto, serão utilizados de acordo com os interes-
ses daqueles que os manuseiam. Para o autor em questão, o termo terceiro
setor “é carente de rigor teórico” (Ibidem) e traduz-se em um conceito de-
sarticulador do social, pois ele pressupõe a existência de um primeiro e de
um segundo setores na esfera social.
Amparados na discussão teórica de Montaño sobre o terceiro setor,
parece-nos que para o Estado organizações sem fins lucrativos e não gover-
namentais (ONGs), movimentos sociais, organizações e associações comu-

1
Ver seção ii.

201
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

nitárias, instituições de caridade de cunho religioso ou de atividades filan-


trópicas, fundações/associações empresariais, todas essas instituições cons-
tituem o chamado terceiro setor, ou seja, tudo aquilo que estaria fora do
primeiro setor (Estado) e do segundo (mercado). Essa gama de instituições
e organizações estariam localizados na sociedade civil (MONTAÑO, 2005,
p. 182).
De acordo com Rossi (2010), à medida que o terceiro setor é identifi-
cado pelo princípio da diferença, ou seja, aquilo que não é nem primeiro
nem segundo setor sucumbiria ao arcabouço do terceiro setor e colocaria
em pé de igualdade movimentos sociais antagônicos. Nesse sentido, é fun-
damental, ao discutirmos sociedade civil, não perdermos de vista o atraves-
samento da perspectiva de classe; senão corremos o risco de homogeneizá-
la do ponto de vista das lutas sociais.
Aqui dialogamos com Ellen Wood (2003), a qual afirma que socieda-
de civil se tornou uma expressão “mágica e adaptável” a qualquer situação,
melhor dizendo, a situação que interessa àqueles que estão no poder, usado
para identificar uma “arena fora do Estado” (WOOD, 2003, p. 208) e se
tornando um conceito tão amplo capaz de abranger todas as instituições e
relações da economia capitalista, do sindicato à própria empresa capitalis-
ta, ou seja, coloca a sociedade burguesa como a sociedade civil. De certo
modo, “trata-se da privatização do poder público que criou o mundo histo-
ricamente novo da sociedade civil” (Idem, p. 127), esvaziando assim a de-
mocracia como luta.
O PDE foi pensado com o propósito de agrupar todas as ações e
projetos no âmbito da educação que já vinham sendo desenvolvidos através
das secretarias do MEC, como, por exemplo, Secretaria de Educação Con-
tinuada, Alfabetização e Diversidade, Secretaria de Educação Básica, Se-
cretaria de Educação Profissional e Tecnológica, bem como agrupar ações
e projetos desenvolvidos no âmbito da educação por outros ministérios.
Nas palavras do ex-ministro Fernando Haddad, o PDE também pode ser
entendido “como plano executivo, como conjunto de programas que visam
dar consequência às metas quantitativas estabelecidas no Plano Nacional
de Educação” (BRASIL, MEC, Plano de Desenvolvimento da Educação,
2007, p. 07).

202
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Lucia Camini (2008) também relata em seu trabalho que “o PDE se


apresenta como um enorme guarda-chuva para um conjunto de ações pre-
existentes no Ministério da Educação e algumas ações novas ou remode-
ladas” (ARAUJO apud CAMINI, 2008, p. 58). E ainda destaca algum
aspecto da fala do secretário executivo do MEC, José Henrique Pain, o
qual define o PDE como “um conjunto de ações estratégicas que tem
como objetivo melhorar a qualidade da educação” (PAIN apud CAMINI,
2008, p. 59).
No âmbito do Plano de Metas, estados e municípios foram “convo-
cados” pelo então ministro da Educação a aderir ao Compromisso Plano
de Metas – Compromisso Todos Pela Educação. A adesão habilitou os mu-
nicípios e estados a elaborar o Plano de Ações Articuladas (PAR). O Plano
de Desenvolvimento da Educação é materializado através do PAR. Tal pla-
no possui em certa medida uma proposta que visa garantir a qualidade da
educação quando anuncia que pretende acabar com as desigualdades
socioeducacionais construídas historicamente no Brasil, propondo a assis-
tência técnico-financeira a todos os entes federados que aderiram ao plano.
Em 2007, os municípios e todos os estados estavam habilitados a ela-
borar o PAR. Deu-se então início ao processo de implementação da políti-
ca, que apresentaremos na sequência.

2. Plano de Ações Articuladas – PAR


O Plano de Desenvolvimento da Educação condicionou a assistência
técnica e financeira do Ministério da Educação à assinatura, pelos estados
e municípios, do plano de metas Compromisso Todos pela Educação. Depois
da adesão ao Compromisso, os municípios deveriam elaborar o Plano de
Ações Articuladas, um instrumento para os estados e municípios se conec-
tarem aos programas federais. Quase a totalidade dos 5.563 municípios e
todos os 26 estados e Distrito Federal aderiram ao Compromisso, portanto
poderiam elaborar o PAR.
Antes de explicitarmos o processo do PAR, faz-se necessário retomar
os conceitos de assistência técnica e financeira já mencionados. Segundo
Nalú Farenzena (2012), é preciso considerar a autonomia dos sistemas de
ensino e o que significa dar assistência às redes escolares:

203
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

[...] o caráter de amparo, apoio, suporte, ajuda ou auxílio parece ser o que
mais se adéqua à atribuição da União de assistir técnica e financeiramente
aos estados, Distrito Federal e aos municípios. O apoio e o auxílio – quer
dizer, a assistência – são posicionados como o modo concreto, o instrumen-
to que viabiliza o exercício das funções redistributiva e supletiva da União,
de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão
mínimo de qualidade do ensino. Já o termo técnica, que adjetiva a assistên-
cia, encaminha para a compreensão de que os apoios ou suportes são estea-
dos num conhecimento especializado – o qual tem uma base referencial téc-
nico científica – e visam atingir determinado resultado (FARENZENA, 2012,
p. 14).

Desse modo, a assistência passa a ser um apoio capaz de suplemen-


tar as capacidades dos estados e municípios, oferecendo recursos técnicos e
financeiros com efeito redistributivo (Ibidem). Para o PAR, tudo o que não
seja transferência de recursos é considerado assistência técnica e compreen-
de, entre outros, a oferta de assessorias, cursos, avaliações, estudos. As parce-
rias vão se dar no âmbito da assistência técnica, não financeira. Porém,
mesmo não havendo repasses diretos de recursos para estados e municípios,
a assistência técnica pressupõe custos que são sustentados através de recur-
sos públicos federais.
O PAR é o planejamento multidimensional da política de educação
que cada rede pública de educação deve fazer para um período de quatro
anos – 2007 a 2011 –, e recentemente foi elaborado um novo plano que vai
de 2011 a 2014.
O roteiro oferecido pelo MEC para ajudar na elaboração do PAR é
constituído de três etapas: o diagnóstico da realidade da educação e a ela-
boração do plano são as primeiras etapas e estão na esfera do município
ou estado. A terceira etapa é a análise técnica, feita pela Secretaria de
Educação Básica do Ministério da Educação e pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE). Depois da análise técnica, o
FNDE emite um termo de cooperação com as ações de responsabilidade
de execução dos entes federados e do MEC, no qual constam os progra-
mas aprovados e classificados segundo a prioridade municipal. O termo
de cooperação detalha a assistência técnica do MEC – que pode ser por
um período de até quatro anos do PAR, não constando nesse termo as
ações de assistência financeira, pois essas são assinadas e detalhadas em
outro acordo específico.

204
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Na etapa de diagnóstico e elaboração do PAR, os municípios chama-


dos prioritários2 contaram com a assessoria de técnicos do MEC e de uni-
versidades públicas conveniadas com o Ministério e também de ONGs e
técnicos da UNESCO para a discussão e elaboração do plano no processo
de implementação da política. Depois de elaborado o plano, ele deveria ser
enviado ao MEC, onde passou por uma análise técnica, feita por consulto-
res, e o plano poderia sofrer alterações e adequações nas ações cuja respon-
sabilidade de execução fosse do MEC.
No âmbito dos estados e municípios, o PAR é coordenado pela secre-
taria municipal e estadual de educação, devendo ser elaborado com a parti-
cipação de gestores, de professores e da comunidade educacional local, or-
ganizações governamentais e não governamentais. Assim ficava determi-
nada a existência de uma Equipe Local com membros da própria secreta-
ria, do sistema de educação e convidados para elaborar, implementar e
monitorar a execução do PAR. Essa pluralidade deveria garantir a partici-
pação dos diversos segmentos para a elaboração do diagnóstico da realida-
de do município e a lisura do processo. Após o plano ser aprovado pelo
MEC, iniciava a sua execução, e um novo grupo deveria ser nomeado atra-
vés de ato legal, publicado no Diário Oficial do Município para ser o Comi-
tê Local Compromisso Todos pela Educação, encarregado de mobilizar a
sociedade e acompanhar as metas de evolução do IDEB. Na prática, mui-
tas Equipes Locais tornaram-se Comitês Locais de Acompanhamento e
Avaliação do Plano de Ações Articuladas em cada município3.
Destacamos que a constituição das Equipes e dos Comitês Locais se
configuram num instrumento de controle social e do exercício da democra-
cia, pois a diretriz 28ª do Plano de Metas sugere que sejam considerados
em sua composição os representantes da sociedade civil – associação de
empresários e trabalhadores –, Ministério Público, Conselho Tutelar, Câ-

2
Para o MEC, municípios prioritários são os que apresentaram o pior desempenho na avaliação
do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) nos anos de 2005 e 2007 e que,
portanto, seriam prioritariamente atendidos pelo Programa PAR. Na prática, porém, todos os
municípios brasileiros puderam aderir ao Compromisso e ter acesso ao PAR.
3
Essa afirmação é oriunda de dois membros do grupo dessa pesquisa terem trabalhado como
assessores técnicos do PAR em diversos municípios, acompanhando sua implantação e moni-
toramento.

205
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

mara Legislativa e dirigentes do sistema público, ou seja, “entidades ou


cidadãos que têm compromisso com a construção da educação” (BRA-
SIL/MEC, 2013). Por outro lado, essa identificação é realizada pelo prefei-
to ou governador, que nomeia o comitê através de portaria e que pode man-
ter praticas clientelistas de convocar seus apoiadores, restringindo a atua-
ção desses no controle e ou críticas à execução do plano. Isso, no entanto,
não desmerece a criação de um órgão fiscalizador e de acompanhamento
social que poderia ter critérios mais claros de composição e eleição por
seus pares de alguns membros, especialmente os ligados aos setores públi-
cos e associações.
O PAR pode ser considerado também um instrumento de diagnósti-
co que os estados, municípios e Distrito Federal fazem dos seus sistemas de
ensino. Esse diagnóstico da situação educacional que vem sendo realizado
nos municípios brasileiros está estruturado em quatro grandes dimensões4:
gestão educacional, formação de professores e dos profissionais de serviço
de apoio escolar, práticas pedagógicas e avaliação, infraestrutura física e
recursos pedagógicos.
Para auxiliar os municípios e estados na elaboração dos seus planos,
o MEC disponibilizou um Guia Prático de Ações5 com o objetivo de orien-
tar a definição das ações que farão parte do PAR, o qual se encontra estru-
turado a partir das quatro dimensões acima citadas.
No PAR 2007-2011, cada dimensão é composta por áreas6 de atua-
ção, e cada área apresenta uma série de indicadores específicos que repre-
sentam algum aspecto ou característica da realidade a ser avaliada e expres-
sam algum aspecto da realidade a ser observada, medida, qualificada e ana-
lisada. Os indicadores são quantificáveis e estão distribuídos da seguinte
forma: dimensão 01 – 05 áreas e 20 indicadores, dimensão 02 – 05 áreas e

4
São agrupamentos de grandes traços ou características referentes aos aspectos de uma institui-
ção ou de um sistema sobre os quais se emite juízo de valor e que, em seu conjunto, expressam
a totalidade da realidade local (BRASIL/MEC, Instrumento de Campo, 2007, p. 12).
5
O Guia Prático de Ações, assim como a política, vem sofrendo transformações desde o início
da implementação do PAR.
6
Conjunto de características comuns usadas para agrupar, com coerência lógica, os indicadores.
Entretanto, não são objetos de avaliação e pontuação (BRASIL/MEC, 2007).

206
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

10 indicadores, dimensão 03 – 02 áreas e 08 indicadores e dimensão 04 – 03


áreas e 14 indicadores, totalizando 52 indicadores7 (BRASIL, MEC, Ins-
trumento de Campo, 2007).
No PAR 2011-2014 são mantidas as 4 dimensões assim distribuídas:
dimensão 01 – 05 áreas e 28 indicadores, dimensão 02 – 05 áreas e 17 indi-
cadores, dimensão 03 – 03 áreas e 15 indicadores e dimensão 04 – 04 áreas
e 22 indicadores, totalizando 72 indicadores8 (BRASIL, MEC, 2011).

Quadro 1 - Dimensões do diagnóstico do PAR

Dimensões PAR 2007/2011 PAR 2011/2014


Área Indicador Área Indicador
Gestão Educacional 5 20 5 28
Formação Professores e profissionais de apoio 5 10 5 17
Práticas pedagógicas e avaliação 2 8 3 15
Infraestrutura física e recursos pedagógicos 3 14 4 22
Total 15 52 17 72

Quadro elaborado a partir dos dados do site do SIMEC.

Esses indicadores serão pontuados segundo critérios9 cuja descrição


corresponde a quatro níveis e foram construídos a partir das diretrizes esta-
belecidas no Decreto 6.094/2007. O município ou estado, no momento de
realizar o seu diagnóstico da situação educacional, terá que pontuar os in-
dicadores propostos nos instrumentos de campo. Esses critérios de pontua-
ção valem para as quatro dimensões acima explicitadas nas duas edições
do PAR. Essa pontuação corresponde a quatro níveis, sendo:
Critério de pontuação 4 – a descrição aponta para uma situação positiva,
ou seja, para aquele indicador não serão necessárias ações imediatas;

7
Para maiores detalhamentos referente às áreas e indicadores, ver Guia Prático de Ações do
MEC de 2007.
8
Para maiores detalhamentos referente às áreas e indicadores, ver Guia Prático de Ações do
MEC de 2011.
9
Critérios são os padrões que servem de base para comparação, julgamento ou apreciação de
um indicador (CAMINI, 2008, p. 116 ).

207
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

Critério de pontuação 3 – a descrição aponta para uma situação satisfató-


ria, com mais aspectos positivos que negativos, ou seja, o município desen-
volve, parcialmente, ações que favorecem o desempenho do indicador;
Critério de pontuação 2 – a descrição aponta para uma satisfação insufi-
ciente, com mais aspectos negativos do que positivos. Serão necessárias ações
imediatas que poderão contar com o apoio técnico ou financeiro do MEC;
Critério para a pontuação 1 – a descrição aponta para uma situação críti-
ca, de forma que não existem aspectos positivos, apenas negativos ou inexis-
tentes. Serão necessárias ações imediatas que poderão contar com apoio
técnico e/ou financeiro do MEC (BRASIL/MEC, Instrumento de Campo,
MEC, 2007)

Como podemos observar, os itens pontuados pelo município com os


números 1 (um) e 2 (dois) representam suas maiores prioridades, e para
cada um deles o MEC apresenta uma ação para ser cadastrada, que, por
sua vez, se desdobra em um conjunto de subações que poderão auxiliar os
municípios a melhorar a situação do indicador. As pontuações 03 e 04 indi-
cam que a descrição é positiva ou satisfatória; nesse caso, não era disponibi-
lizada nenhuma ação. Na versão do PAR 2011-2014, é possível cadastrar
ações independentes do critério de pontuação.
Vamos nos deter na versão atual do PAR para destacar a possibilida-
de de parcerias público-privadas no diagnóstico e nas estratégias de ações.
Ao observarmos a Dimensão 1 – Gestão Educacional –, identificamos a
presença de parceria externa para a realização de atividades complementa-
res aos alunos, já no diagnóstico:
Indicador 2: Existência de parcerias externas para realização de atividades
complementares que visem à formação integral dos alunos.
(1) Quando não existem acordos com parceiros externos (ONGs, institutos,
fundações, etc.) para o desenvolvimento de atividades complementares, nem
planejamento da secretaria municipal de educação para fazer parcerias.
(2) Quando existem acordos, por parte de algumas escolas e/ou da secreta-
ria municipal de educação, com parceiros externos (ONGs, institutos, fun-
dações, etc.) para o desenvolvimento de atividades complementares, que vi-
sem à formação integral dos alunos. Não há iniciativa da secretaria e das
demais escolas para ampliar o atendimento.
(3) Quando existem, por parte de algumas escolas, acordos com parceiros
externos (ONGs, institutos, fundações, etc.) para o desenvolvimento de ati-
vidades complementares às realizadas nas escolas que visem à formação
integral dos alunos. Esses acordos são de conhecimento da secretaria muni-
cipal de educação, que apoia e busca formas de expandir o atendimento às
demais escolas da rede.

208
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

(4) Quando existem, por parte da secretaria municipal de educação e de


todas as escolas, acordos com parceiros externos (ONGs, institutos, funda-
ções, etc.) para o desenvolvimento de atividades complementares às realiza-
das nas escolas, visando à formação integral dos alunos (BRASIL, MEC.
Instrumento de Campo PAR, 2011-2014) (grifo nosso).

Na questão de diagnóstico destacada acima, pressupõe-se que os es-


tados e municípios possam ter parcerias externas para a realização de ativi-
dades complementares que visem à formação integral dos alunos ou, caso
não as tenha, abre a possibilidade de uma ação que sugere a realização
dessas parcerias, conforme podemos ver na citação abaixo:
Ação: 1.5.2.3 - Implementar parcerias externas (outras secretarias e ór-
gãos governamentais, ONGs, fundações) para a realização de atividades
nas escolas nos finais de semana.
Estratégia de Implementação: Instituição de comitê encarregado de conta-
tar instituições – governamentais e do terceiro setor – com vistas a oferecer
atividades educativas, culturais, esportivas e de qualificação profissional para
atendimento da comunidade nas escolas abertas nos finais de semana (BRA-
SIL, MEC. Instrumento de Campo PAR, 2011-2014) (grifos nossos).

Na dimensão 3 – Práticas pedagógicas e avaliação –, também encon-


tramos a indicação de parcerias para a correção do fluxo escolar no instru-
mento.
Estratégia de implementação:
Estudos, seminários e palestras para os professores e gestores sobre corre-
ção do fluxo escolar.
Identificação e localização dos alunos da rede municipal de ensino em
situação de distorção idade-série e elaboração de um plano para imple-
mentação de ações com vistas à regularização do fluxo escolar.
Seleção e implementação de programa de correção de fluxo escolar, pré-
qualificado pelo Ministério da Educação e disponibilizado no Guia de Tec-
nologias Educacionais/SEB (BRASIL, MEC. Instrumento de Campo PAR,
2011-2014) (grifos nossos).

Na dimensão 4 – Infraestrutura Física e Recursos Pedagógicos, nova-


mente encontramos no diagnóstico o destaque de ferramentas e materiais
pré-qualificados10:

10
São tecnologias pré-selecionadas pelo MEC. Ver maiores detalhes na seção iii.

209
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

Indicador: 4. Utilização de processos, ferramentas e materiais de natureza


pedagógica pré-qualificados pelo MEC (Guia de tecnologias educacionais).
1. Quando a secretaria de educação desconhece os processos, ferramentas
e materiais de natureza pedagógica pré-qualificados pelo MEC (tecnolo-
gias educacionais constantes do Guia de Tecnologias Educacionais) e não
sabe se essas tecnologias são implementadas em suas escolas.
2. Quando a secretaria de educação conhece e implementa, em menos de
50% das escolas da rede, processos, ferramentas e materiais de natureza
pedagógica pré-qualificados pelo MEC (tecnologias educacionais constan-
tes do Guia de Tecnologias Educacionais). As tecnologias educacionais pos-
suem coerência metodológica com as diretrizes da secretaria de educação e
são implementadas considerando, em parte, as especificidades de cada esco-
la e seu projeto pedagógico (PP).
3. Quando a secretaria de educação conhece e implementa, em mais de
50% das escolas da rede, processos, ferramentas e materiais de natureza
pedagógica pré-qualificados pelo MEC (tecnologias educacionais constan-
tes do Guia de Tecnologias Educacionais). As tecnologias educacionais pos-
suem coerência metodológica com as diretrizes da secretaria de educação e
são implementadas considerando as especificidades de cada escola e seu
projeto pedagógico (PP).
4. Quando a secretaria de educação conhece e implementa, em todas as
escolas da rede, processos, ferramentas e materiais de natureza pedagógica
pré-qualificados pelo MEC (tecnologias educacionais constantes do Guia
de Tecnologias Educacionais). As tecnologias educacionais possuem coe-
rência metodológica com as diretrizes da secretaria de educação e são im-
plementadas considerando as especificidades de cada escola e seu projeto
pedagógico (PP) (BRASIL, MEC. Instrumento de Campo PAR, 2011-2014)
(grifos nossos).

Como fica visível nos destaques acima, já se pressupõe que as secre-


tarias de educação conheçam e façam uso das ferramentas e materiais de
natureza pedagógica indicados no Guia de Tecnologias Educacionais, que
se constitui em uma das ações do Guia Prático de Ações, que apresenta as
ações e subações que poderão se dar em forma de apoio técnico ou finan-
ceiro do MEC.
O apoio técnico do MEC caracteriza-se principalmente pela distri-
buição de kits pedagógicos, cursos de formação inicial e continuada, em
nível de graduação, aperfeiçoamento ou especialização, melhoramento da
estrutura física das escolas, distribuição de equipamentos de informática e
materiais pedagógicos, melhoria de acervo bibliográfico, etc. O apoio fi-
nanceiro caracteriza-se como repasse direto de recursos financeiros para

210
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

construção de centros de educação infantil, ampliação de quadras esporti-


vas, melhoria e ampliação do espaço físico, etc.
Relembrando que o foco deste artigo é apresentar e analisar as parce-
rias público-privadas no PDE/PAR, nos dedicaremos a olhar para o Guia
de Tecnologias Educacionais, em que encontramos a oferta de maior nú-
mero de parcerias.

3. Guia de tecnologias educacionais11


Elaborado o Plano de Ações Articuladas e indicadas as ações onde
são necessárias intervenções, surge outra ferramenta que visa oferecer op-
ções para as escolas adquirirem materiais e tecnologias para o desenvolvi-
mento da educação. Trata-se do Guia de Tecnologias Educacionais, do-
cumento elaborado pelo MEC e disponibilizado aos municípios brasilei-
ros. Segundo o Aviso de Chamamento Público 01/2009, o MEC conside-
ra Tecnologias Educacionais: “processos, ferramentas e materiais de na-
tureza pedagógica que estejam aliados a uma proposta educacional que
evidencie sólida fundamentação teórica e efetiva coerência metodológi-
ca”.
O Guia é um documento que contém a descrição de diversas tecno-
logias e informações suplementares acerca de materiais pedagógicos ela-
borados por instituições ou empresas públicas e/ou privadas e que são
pré-qualificadas pelo MEC. Cabe destacar que o MEC avalia e pré-quali-
fica aquelas tecnologias e materiais que considera inovadores e capazes
de promover a qualidade da educação básica em todas as etapas e moda-
lidades. Com objetivo de disseminar tecnologias inovadoras essa pré-qua-
lificação se realiza a partir de critérios próprios e, após a avaliação da
implantação e implementação, podem ser certificadas pelo MEC caso se
constate que tenham “gerado impacto positivo na evolução dos indicado-

11
O MEC considera Tecnologias Educacionais: “processos, ferramentas e materiais de natureza
pedagógica que estejam aliados a uma proposta educacional que evidencie sólida fundamen-
tação teórica e efetiva coerência metodológica” (Aviso de Chamamento Público 01/2009 – ).

211
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

res da qualidade da educação básica” (BRASIL, 2009). Todo esse proces-


so agrega valor às tecnologias sugeridas; esse fator pode ser usado pelas
empresas privadas como uma espécie de ‘selo de qualidade’ ao referir nas
campanhas publicitárias que determinado produto foi ‘certificado’ pelo
MEC. Podemos encontrar esse ‘selo’ no projeto de Robótica e Mecatrôni-
ca Educacional desenvolvido pela PETe12 – empresa de planejamento em
educação tecnológica, que consta no site “Tecnologia recomendada pelo
MEC”. Ou ainda em peças publicitárias do Grupo Positivo, que tem mais
de 54% da linha de informática destinada ao mercado de governo, linha
essa responsável pelo gigantesco crescimento alcançado pela empresa nos
últimos anos.
O Guia tem como objetivos:
– disseminar padrões de qualidade de tecnologias educacionais que orien-
tem a organização do trabalho dos profissionais da Educação Básica;
– estimular especialistas, pesquisadores, instituições de ensino e pesquisa e
organizações sociais para a criação de tecnologias educacionais que contri-
buam para elevar a qualidade da Educação Básica;
– fortalecer uma cultura de produção teórica voltada à qualidade na área da
educação básica e seus referenciais concretos (BRASIL, MEC. 2011/2012,
p. 15).

Na primeira versão do Guia em 2009, constavam seis categorias.


Na versão seguinte de 2011/2012, houve o acréscimo de outra categoria:
a Educação Infantil. É importante notar que a da Emenda Constitucional
59 de 2009 estende a oferta obrigatória e gratuita da educação básica a
partir dos 4 anos de idade, o que, por um lado, avança na extensão do
atendimento do direito à educação, por outro, também amplia um seg-
mento com grande crescimento no mercado educacional, o que é mais
um fator a possibilitar a realização de parcerias, dada a inexistência de
estrutura do setor público para o pleno atendimento dessa demanda. No
quadro a seguir, fizemos o comparativo entre o número de tecnologias
externas e as desenvolvidas pelo MEC e a variação desses números nas
duas edições do Guia.

12
WWW.pete.com.br

212
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Quadro 2

Tecnologia Tecnologia
Item Categoria desenvolvida externa Total
pelo MEC ao MEC
2009 2011 2009 2011 2009 2011
1 Gestão da Educação 09 11 06 07 15 18
2 Ensino-Aprendizagem 04 09 51 51 55 60
3 Formação dos profissionais da educação 10 12 14 15 24 27
4 Educação Inclusiva 06 11 01 01 07 12
5 Portais Educacionais 04 05 12 11 16 16
6 Diversidade e Educação de Jovens e Adultos 10 17 07 11 17 28
7 Educação Infantil – – – 08 – 08
8 TOTAL 43 65 91 104 134 169

Quadro elaborado a partir dos Guias de Tecnologias Educacionais, 2009 e 2011/2012.

O primeiro dado que chama nossa atenção no quadro é o número


bem superior de tecnologias desenvolvidas por iniciativas externas ao MEC.
Segundo o Aviso de Chamamento Público do MEC 01/2009, poderiam
apresentar propostas de tecnologias “quaisquer pessoas físicas ou jurídicas
nacionais, de direito público ou privado, tais como: institutos de ensino
superior, centros e museus de ciências, instituições educacionais, organiza-
ções não governamentais, fundações, organizações empresariais e centros
de pesquisa”.
Obervando o Guia, constata-se a presença do setor privado em quase
todas as categorias, porém se destaca a concentração predominante numa
área estratégica para a educação, que é o Ensino-Aprendizagem. Das 60
tecnologias pré-qualificadas, 51 são externas ao MEC, e dessas, 06 são de
entidades públicas, 01 de pessoa física, 31 de empresas com fins lucrativos e
13 do terceiro setor, ou seja, entidades públicas não estatais. Nesse segmen-
to estão incluídas as organizações não governamentais (ONGs), as asso-
ciações como GEEMPA e CENPEC e institutos como Alfa e Beto, Ayr-
ton Senna e Unibanco. O gráfico abaixo mostra a quantidade de tecnolo-
gias indicadas, agrupadas conforme o tipo de empresas.

213
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

Gráfico 1 - Tipos de empresas que ofertam tecnologias pré-qualificadas

Gráfico elaborado a partir dos dados do Guia de Tecnologias Educacionais do MEC 2011.

A parceria público-privada na categoria ensino-aprendizagem repre-


senta mais do que a oferta de serviço ou material pedagógico. Ela pode vir
a ser determinante para o currículo escolar, influenciando a concepção de
educação da escola; afinal, definir o que se ensina é uma das atribuições do
coletivo de cada unidade escolar através da elaboração do Projeto Político
Pedagógico da escola e dos planos de estudos. Já a escolha das tecnologias
é uma decisão dos gestores da escola, o que pode ou não envolver a consul-
ta aos pares. Associamo-nos ao questionamento proposto por Peroni (2011,
p.37) quando pergunta “o que significa o sistema público abrir mão das
suas prerrogativas de ofertar educação pública de qualidade e comprar um
produto pronto, o que se dá desde o currículo escolar, já que as aulas vêm
prontas e os professores não podem modificá-las [...]”?
As tecnologias são ofertadas para o todo o país, sem considerar as
diferenças regionais, pois os materiais são padronizados e replicáveis. To-
memos por exemplo a alfabetização em que foram pré-qualificadas as se-

214
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

guintes tecnologias, entre outras: o Método das boquinhas13; o Programa


Alfa e Beta, que oferece um conjunto de materiais ao aluno e manuais de
orientação para o professor, utilizando-se do método fônico14; o Circuito
Campeão do Instituto Ayrton Senna, que traz um conjunto de materiais
para o aluno e todo o planejamento do professor, que precisa ser seguido
rigorosamente. Consideramos que todos os materiais citados trazem limi-
tações enquanto proposta pedagógica e minimizam a autonomia pedagógi-
ca da escola e do professor e, em alguns casos, com implicações na gestão
da escola e do sistema de ensino. Podemos evidenciar essa situação na par-
ceria com o Instituto Ayrton Senna, em que se verifica nos termos do con-
trato15 que desde o professor até o secretário de educação todos têm as tare-
fas determinadas e monitoradas pelo Instituto. Essas condicionalidades alte-
ram as funções dos gestores, pois transformam “os sujeitos responsáveis pela
educação em burocratas que preenchem muitos papéis, o que, inclusive, con-
traria a LDB/96, no que se refere à gestão democrática da educação” (PE-
RONI, 2011, p. 37).
Ao adotar métodos padronizados e replicáveis, entendemos que es-
tamos ferindo o princípio constitucional da gestão democrática no que se
refere à autonomia pedagógica da escola e do professor, conquistado atra-
vés de duras lutas, ainda recentes em nossa história, princípio esse que asse-
gura o direito de autoria do currículo e metodologia adequada ao contexto
da escola e reconhece professores e alunos como sujeitos históricos.
Outro aspecto que chama nossa atenção no Guia é na categoria de
educação inclusiva, em que aparece apenas uma tecnologia externa ao

13
Consta no material que se trata do método fonovisuoarticulatório, embasado teoricamente no
construtivismo, porém o conteúdo do livro do aluno destaca a memorização e a silabação
como nos exemplos de frases: O sapo pula. O pirulito tem um palito. O piloto pegou um lápis.
Ou no texto que traz a orientação ao professor: “Leia junto com as crianças, pois há letras que
ainda não foram aprendidas”. Paulo é piloto da polícia. Ele pilota avião, jato e pula de para-
quedas. Outro dia, ele passou por cima de São Paulo e pôde ver pessoas pulando no trampolim
de uma piscina. Ele levou sua família para passear de avião, e todos pediram para ele pousar e
levantar bem ligeiro. Paulo acha muito legal ser piloto da polícia.
14
Exemplo de texto no livro do aluno: O melão mela. E o mamão mela? A lama é mole e mela.
A lama é mole e mela? A mamãe mia? A mamãe da Mimi mia. Miau! A meia da Ema. Meia
da ema? Ema de meia? Melou? Melou!
15
Para um estudo detalhado sobre a parte jurídica das parcerias, ver PIRES, Daniela (2009). A confi-
guração jurídica e normativa da relação público-privada no Brasil e na promoção do direito à educação.

215
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

MEC. Cabe perguntar o motivo da pouca procura de parcerias externas


nesse segmento.
O MEC legitima através do Guia de Tecnologias a entrada do setor
privado na educação, fortalece a ideologia e a lógica de mercado, estabele-
cendo as parcerias, o que, em nossa compreensão, contradiz os princípios e
fins da educação nacional estabelecidos na lei de diretrizes e bases. Concor-
damos com Laval (2004, p. 111): “Essa intervenção mais direta e mais ativa
das empresas em matéria de pedagogia, de conteúdos e de validação das
grades curriculares e dos diplomas constitui uma pressão da lógica do mer-
cado de trabalho sobre a esfera educativa”.

Algumas considerações
Neste artigo, abordamos o PDE/PAR, evidenciando as possibilida-
des de parcerias público-privadas que se abrem a partir da elaboração do
Plano de Ações Articuladas aos estados e municípios ao realizar o plano,
buscando destacar os caminhos pelos quais o setor privado adentra e influ-
encia o setor público nas políticas educacionais e as implicações para a
democratização da educação.
No estudo em questão, observamos desde o Decreto nº 6.094/07,
passando pelo diagnóstico, Guia de Ações e Guia de Tecnologias que as
parcerias são mapeadas e estimuladas caso os sistemas não as tenham.
Ao mesmo tempo que a política avança na questão da oferta de assis-
tência técnica e financeira com critérios de conhecimento público e de um
diagnóstico da realidade local, rompendo com práticas clientelistas e desi-
guais entre sistemas, qualificando a participação democrática entre os en-
tes federados, possibilitando exercer o controle social através dos Comitês
Locais e chegando onde nunca antes o Estado esteve presente na educação
básica, contraditoriamente, o conteúdo da proposta apresenta elementos
que desresponsabilizam o Estado como executor da política, transferindo a
qualificação da educação para as parcerias com entidades do setor privado,
que se pautam pela lógica de mercado. Coincidentemente, o Estado apre-
senta um discurso que referenda a gestão democrática estabelecida consti-
tucionalmente, defendendo a participação de todos na construção da quali-

216
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

dade da educação, colocando-se a partir do setor público como promotor


desse processo e ao mesmo tempo escolhe como interlocutores para a cons-
trução dessa proposta parceiros cujas práticas são gerenciais, sustentadas
por concepções mercadológicas.
Também entendemos que, ao comprar tecnologias e serviços do se-
tor privado, o Estado deixa de investir na educação pública, repassando a
responsabilidade da qualificação do atendimento para o mercado e des-
responsabilizando-se da sua função. Tal estratégia fortalece um nicho de
mercado onde os “empresários da educação” têm no Estado o seu princi-
pal cliente.
Aos analisarmos a história da educação brasileira, constatamos que
o governo federal historicamente esteve pouco presente na oferta da educa-
ção básica, pois quem predominou foi o setor privado sobre o público. Com
a política do PDE/PAR, percebemos que o Estado tem chamado para si a
responsabilidade de garantia da universalização da educação básica públi-
ca e de qualidade; podemos dizer que ele está presente, porém de forma
contraditória, pois ao mesmo tempo em que ele promove a política pública,
ele também sugere as parcerias com o privado, como ficou evidente na aná-
lise do instrumento do PAR e no Guia de Tecnologias. Nesse sentido, ques-
tionamos que modelo de Estado é esse que está presente na oferta de políti-
cas educacionais. O que se percebe é que o Estado se faz presente, porém
muitas vezes essa presença se materializa através da parceria com o setor
privado, que aplica a gestão gerencial, observada em partes do conteúdo do
PAR e do Guia de Tecnologias Educacionais.
As tecnologias e os produtos ofertados pelas parcerias privadas che-
gam até as escolas com a promessa de qualificação da educação, influencian-
do a ação pedagógica, como vimos na seção iii, onde analisamos o Guia de
Tecnologias; a maior oferta de parcerias está no ensino-aprendizagem. O
Estado oferece assistência técnica anunciando a qualificação da educação,
porém constatamos um retrocesso pedagógico, como exemplificamos na
questão da alfabetização, pois as novas tecnologias de uso educativo oferta-
das podem ser consideradas “ilusões pedagógicas” (LAVAL, 2004, p. 127),
pois são instrumentos prontos, replicáveis e padronizados, que afirmam
resolver os problemas com pouca ou nenhuma participação do professor

217
ROSSI, A. J. et al. • Relação público-privada no Programa de Desenvolvimento da Educação

no processo, comprometendo a autonomia da escola e a formação do sujei-


to histórico, uma vez que permite ao mercado construir o conteúdo da edu-
cação pública.

Referências
BARÃO, G. O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE): uma política edu-
cacional do capital. Boletim Germinal – Grupo de Estudos e Pesquisas Marxismo,
História, Tempo Livre e Educação, n. 9, nov. 2009. Disponível em: <http://
www.uel.br/revistas/germinal/n9-112009.htm#3plano>. Acesso em: 07 jan. 2013.
BRASIL. Guia de Tecnologias Educacionais 2011/12/organização COGETEC. Brasí-
lia: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2011. 196 p.
______. Plano de ações articuladas – PAR – 2011-2014. Guia prático de ações para
municípios. Brasília: Ministério da Educação. 2011.
______. Aviso de Chamamento Público MEC/SEB/SECAD/SEED/SEESP Nº. 1/2009.
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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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219
Expansão da Educação Infantil
através da parceria público-privada:
algumas questões para o debate (quantidade
versus qualidade no âmbito do direito à educação)

Maria Luiza Rodrigues Flores


Maria Otília Kroeff Susin

Introdução
Este artigo analisa implicações da política de conveniamento entre o
poder público e instituições privadas sem fins lucrativos para a oferta de
Educação Infantil no Brasil, integrando-se a uma pesquisa maior, que ana-
lisa as parcerias público-privadas no âmbito da Educação Básica brasileira.
A pergunta norteadora do estudo indaga até que ponto a política de parce-
rias público-privadas (PPP) democratiza a educação para as crianças de zero
a seis anos, considerados os princípios da Constituição Federal de 1988 –
CF/88 e a realidade social, econômica, cultural e educacional de nosso país.
A metodologia do estudo envolveu uma análise da legislação vigente
para a educação nacional e seu financiamento, incluindo documentos ofi-
ciais produzidos no âmbito do governo federal que orientam a oferta edu-
cacional. O documento intitulado “Orientações sobre convênios entre se-
cretarias municipais de educação e instituições comunitárias, confessionais
ou filantrópicas sem fins lucrativos para a oferta de Educação Infantil” (BRA-
SIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b) teve uma análise específica
por ser esse o documento orientador para acordos firmados entre o poder
público e instituições da sociedade civil, emitido pelo Ministério da Educa-
ção/Secretaria da Educação Básica/Coordenação Geral da Educação In-
fantil/COEDI. Além desse documento, analisamos a Medida Provisória
nº 562 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2012a), de 20 de março de

220
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

2012, convertida na Lei 12.695 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL,


2012b), de 25 de julho de 2012.
A década de 1990 constituiu-se em um momento político-econômico
específico de crise do capital e minimização do Estado, cujas consequências
se expressaram de maneira mais radical em cortes efetivados nas políticas
sociais, promovendo a expansão da política de parcerias entre o poder públi-
co e entidades privadas. Sendo assim, a base teórica do estudo incluiu apro-
fundamento sobre a configuração do Estado na perspectiva da crise do capi-
tal (HARVEY, 1989; MÉSZÁROS, 2002; PERONI, 2010) e estudos sobre as
políticas públicas de Educação Infantil, incluindo as concepções atuais desse
campo de atuação na Educação Básica (CAMPOS, 2012; BARBOSA, 2009).
Para atender o objetivo proposto, o artigo está organizado a partir
das seguintes seções: (1) a reconfiguração do Estado e suas implicações
para o financiamento educacional, abordando desde a reconfiguração do
papel do Estado a partir da década de 1990 às legislações e documentos
oficiais vigentes que dão sustentação a políticas de parceria público-priva-
da para a oferta de educação; (2) novos conceitos, velhos dilemas: a Edu-
cação Infantil entre o avanço das concepções e os riscos de retrocesso nas
práticas, na qual essa etapa é apresentada por meio dos documentos le-
gais que a normatizam e do avanço conceitual que hoje constitui o acú-
mulo da área, situando alguns dilemas de seu panorama político-educaci-
onal na atualidade; e (3) repercussões do panorama macroeconômico no
contexto da expansão da oferta de Educação Infantil, abordando de ma-
neira analítica as condições de financiamento e os arranjos realizados entre
o poder público e entidades da sociedade civil para a oferta dessa etapa
nas últimas décadas.
Nas considerações finais, retomamos a pergunta inicial sobre as re-
percussões do conveniamento entre o poder público municipal e entidades
do terceiro setor para a ampliação da oferta de vagas na faixa etária da
Educação Infantil no que se refere à sua democratização. A partir das aná-
lises produzidas, apontamos algumas implicações dessa política no que se
refere à garantia do direito à educação para as crianças pequenas, conside-
rando os aspectos quantidade versus qualidade na oferta dessa etapa educa-
cional.

221
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

A reconfiguração do Estado e suas implicações


para o financiamento educacional
A política de atendimento à infância, baseada na participação da
sociedade civil em conjunto com o Estado, é uma prática que remonta ao
período em que as políticas voltadas às crianças pequenas, principalmen-
te àquelas destinadas às crianças mais pobres, eram vinculadas à Assis-
tência Social. No Brasil, essa política foi desenvolvida por várias décadas
pela Legião Brasileira de Assistência/LBA, entidade extinta pelo Gover-
no Federal no início da década de 1990, período em que se inicia a imple-
mentação das práticas neoliberais de minimização do Estado em relação
às políticas sociais, amparada em argumentos acerca da necessidade de
priorização dos recursos financeiros para a alavancagem da economia e
de um prometido desenvolvimento do país.
A política de minimização do Estado, iniciada na gestão do presidente
Fernando Collor de Mello (1990/1992), cujo programa de governo apontava
a busca de uma estabilização econômica do país, confiscou a poupança, con-
gelou salários, demitiu funcionários públicos e extinguiu autarquias, funda-
ções e empresas públicas com a argumentação de “enxugamento da máqui-
na estatal”. Essa política de caráter neoliberal, iniciada pelo Governo Collor,
teve prosseguimento no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995/2002)
por meio do Ministério da Reforma do Estado – MARE, sob a responsabili-
dade do ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. É de autoria desse ministro o
Plano de Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, MARE, 1995), cujas
bases políticas estavam ancoradas nos pressupostos da terceira via.
Tanto a terceira via como o neoliberalismo têm o Estado como pres-
suposto para as crises enfrentadas pelo capital, alegando que aquele se tor-
nou gigante e ineficiente. As duas correntes identificam-se em um diagnós-
tico conservador para as crises, mas diferem no “tratamento” indicado. En-
quanto a terceira via prega a reforma do Estado por meio de uma “siner-
gia” com a sociedade civil, o neoliberalismo afirma a necessidade de sua
extinção, defendendo a liberdade da economia e a regulação dessa pelo
mercado. O principal criador do conceito de terceira via, o sociólogo An-
thony Giddens foi um dos teóricos do nNovo Trabalhismo Britânico, base
de sustentação teórica do primeiro-ministro britânico Tony Blair.

222
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Nesse período particular do capitalismo que vivemos nas últimas dé-


cadas (PERONI, 2010), ficam evidentes as relações entre a política econô-
mica global e a minimização do Estado, manifestas através da redução de
crescimento, do elevado nível de desemprego e da degradação das condi-
ções de vida de grande parte da população. Essa realidade torna as popula-
ções pobres cada vez mais carentes de serviços públicos, que precisariam
ser ampliados e assegurados através de políticas sociais.
Nessas últimas décadas, a política econômica brasileira tem seguido
os ditames da política econômica global, apoiada em um diagnóstico con-
servador das causas da crise fiscal do Estado. Assim são adotadas práticas
de corte de recursos nos investimentos em políticas destinadas às camadas
populares, justificadas por uma necessidade de desoneração do Estado, para
que esse possa vir a impulsionar o crescimento econômico.
A parceria com organizações da sociedade civil para operacionaliza-
ção de serviços do Estado é uma das formas indicadas pelo Ministério da
Reforma do Aparelho de Estado/MARE, definindo essa prática como uma
publicização dos serviços públicos, havendo ainda utilização de outras es-
tratégias, como a terceirização e a privatização, também recomendadas.
Para Bresser Pereira (BRASIL, MARE, 1995), diferentemente do consenso
até então, não existiriam somente duas propriedades no Brasil: a pública e
a privada. Haveria, ainda, a propriedade pública não estatal, onde se daria
a publicização dos serviços de responsabilidade estatal.
Na propriedade privada, a regulação é feita pelo mercado, sem o exer-
cício do poder do Estado. Na propriedade estatal, financiada com recursos
públicos, é onde se cumpre o poder do Estado. Na publicização de serviços
de responsabilidade do Estado, proposta pelo Plano de Reforma do Apare-
lho do Estado (BRASIL, MARE, 1995), há investimento de recursos públi-
cos, mas a regulação desse serviço, o controle propriamente dito, seria da
sociedade civil.
É nessa última forma de propriedade proposta pela terceira via, a
“publicização”, que se insere a possibilidade de parceria entre o poder pú-
blico e as organizações sem fins lucrativos da sociedade civil, que passam a
assumir determinados serviços de responsabilidade do Estado. Para Mon-
taño (2002), a publicização seria, de fato, uma privatização disfarçada.

223
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

Atualmente, o conveniamento para a oferta de Educação Infantil no


Brasil caracteriza-se como uma parceria entre o poder público e entidades
privadas sem fins lucrativos, que podem ser comunitárias, confessionais ou
filantrópicas, administradas por associações de moradores, entidades reli-
giosas ou beneficentes, instaladas em comunidades que necessitem desses
serviços.
Nesse contexto, tais convênios, ao ampliarem a oferta da Educação
Infantil, garantem, em muitos municípios brasileiros, uma ampliação de
vagas necessárias, seja pela demanda social, seja pelas exigências legais de
expansão da oferta. Em certos casos, essa opção se dá na contingência de
ofertar mais vagas; nem sempre considerando todos os critérios legais para
essa oferta. Essas novas vagas, mesmo que não sejam de responsabilidade
integral do poder público, às vezes são consideradas pela população, erro-
neamente, como educação pública, quando se trata, em verdade, de uma
vaga em instituição privada não particular, com financiamento total ou
parcial a partir de recursos do poder público municipal.
Nesse sentido, é importante destacarmos algumas questões sobre o
financiamento da educação como condição fundamental para a efetivação
desse direito. Esse financiamento tem sua história marcada por fundos con-
tábeis criados através de Emendas Constitucionais – EC a partir de recur-
sos previstos no artigo 212 da CF/88 (BRASIL, CONGRESSO NACIO-
NAL, 1988) para investimento na educação básica pública. Esses fundos
são de abrangência diferenciada, constituídos pelos recursos dos estados e
municípios, cuja redistribuição se dá de acordo com o número de matrícu-
las declaradas nos censos escolares. Em sua origem, essa política previa,
também, a disponibilização de recursos da União, de maneira suplementar
à capacidade de investimento dos municípios e estados.
O primeiro desses fundos, o Fundo de Manutenção e Desenvolvi-
mento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUN-
DEF, regulamentado pela Lei nº 9.424/96 (BRASIL, CONGRESSO NA-
CIONAL, 1996b), teve origem na EC nº 14/96 (BRASIL, CONGRESSO
NACIONAL, 1996a) e destinava-se apenas ao Ensino Fundamental, não
incluindo as matrículas da Educação Infantil, do Ensino Médio e nem do
Ensino Fundamental na modalidade educação de jovens e adultos – EJA.
É fato que, durante sua vigência, o FUNDEB representou uma limitação

224
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

objetiva para a realização de investimentos em Educação Infantil para cer-


tos municípios, que deixaram de atender à demanda social crescente.
Em 2007, foi emitida a EC 53/2006, abrindo a possibilidade da exis-
tência do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
Pública e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, regu-
lamentado pela Lei Federal nº 11.494 (BRASIL, CONGRESSO NACIO-
NAL, 2007), de 20 de junho de 2007, sendo esse destinado a toda a Educa-
ção Básica e suas modalidades (educação especial, de jovens e adultos, in-
dígena e no campo). A criação do FUNDEB regulamentou o repasse de
recursos públicos para toda a Educação Básica, estendendo essa prerrogati-
va para as vagas existentes em instituições privadas sem fins lucrativos, for-
talecendo, em certo sentido, a manutenção e inclusive a ampliação da polí-
tica de conveniamento com financiamento público.
A despeito da exigência legal quanto à integração das instituições de
Educação Infantil aos sistemas de ensino para ocorrer o repasse de verbas
públicas, em certos contextos, tem-se observado haver estabelecimentos
conveniados que não se encontram autorizados para funcionamento e, por-
tanto, ainda não integram o sistema educacional, fato que impediria essas
matrículas de serem declaradas no Censo Educacional do Instituto Nacio-
nal de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, de onde
são retirados os dados para a remuneração das matrículas ofertadas pelos
municípios. A obtenção de uma autorização de funcionamento pressupõe
o atendimento aos critérios exigidos nas normativas nacionais, estaduais
e/ou municipais, contribuindo para essa observância o montante de recur-
sos repassados pelo poder público em troca das vagas conveniadas.
As dificuldades para que uma instituição conveniada se adeque às
exigências do respectivo sistema de educação podem estar na remuneração
per capita da matrícula, quando essa é feita por um valor inferior àquele
necessário para uma oferta de qualidade. Um dos argumentos dos gestores
municipais para um repasse de valor aquém daquele de referência do FUN-
DEB em seu estado é o Art. 22 do Capítulo V da Lei n.º 11.494/2007, que
define: “Pelo menos 60% (sessenta por cento) dos recursos anuais totais
dos Fundos serão destinados ao pagamento da remuneração dos profissio-
nais do magistério da educação básica em efetivo exercício na rede públi-
ca” (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2007). Carreira e Pinto (2007)

225
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

desenvolvem estudos sobre o custo-aluno-qualidade-inicial – CAQi, eviden-


ciando que o recurso destinado à educação básica na atualidade, considera-
dos os valores do FUNDEB, é insuficiente para um financiamento adequa-
do dentro dos padrões de qualidade (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
2006; 2009), considerando-se as especificidades da Educação Infantil.
Em 2009, o Ministério da Educação produziu o documento “Orien-
tações sobre convênios entre secretarias municipais de educação e institui-
ções comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos para a
oferta de Educação Infantil”, visando oferecer uma “[...] referência para os
municípios na construção da política de conveniamento” (BRASIL, MEC,
2009b, p. 7). O documento foi elaborado de forma coletiva e contou com a
participação de representações de diversas entidades em âmbito nacional e
internacional, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura-Unesco. Quanto ao aspecto legal, o documento con-
templa, além do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL,
CONGRESSO NACIONAL, 1990) e da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação – LDBEN 9394/96 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1996),
as normativas nacionais do Conselho Nacional de Educação, bem como
salienta aquelas definidas pelos sistemas de ensino e seus órgãos normati-
zadores.
Composto de três partes, na primeira delas intitulada “Conceituação
Básica”, o material apresenta os aspectos legais “[...] e as concepções que
fundamentam a Educação Infantil, sua estrutura e funcionamento nos sis-
temas de ensino” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b), abor-
dando aspectos referentes ao componente pedagógico da Educação Infan-
til, enfatizando a construção coletiva de um projeto político pedagógico
para orientar as práticas pedagógicas cotidianas, com professores habilita-
dos para atuar em espaços institucionais e não domésticos, que poderão ser
públicos ou privados, submetidos ao controle social.
No que se refere ao direito das crianças e das famílias, o documento
enfatiza a CF/88 bem como a responsabilidade dos entes federados, sem
omitir a função prioritária do município nessa oferta, pautando a atribui-
ção compartilhada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
cípios na garantia desse direito. Na primeira parte do documento, afirma-
se que o convênio é uma forma de descentralização, por tempo determina-

226
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do, da execução de programas ou projetos, em que o poder público se com-


promete a repassar recursos a uma instituição privada que mediante plano
de trabalho executa determinado serviço e presta contas do uso da verba
pública.
A segunda parte do documento em análise orienta para a realização
de um diagnóstico da realidade de cada município, destacando a importân-
cia da atuação integrada de outros setores do governo municipal na imple-
mentação de uma política municipal de Educação Infantil que considere a
situação de cada uma das instituições. Para a realização do diagnóstico,
são sugeridos temas como o cadastro no Censo Escolar do Instituto Nacio-
nal de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira/INEP; o número de crianças
atendidas na instituição por faixa etária em jornada integral ou parcial; a
existência de crianças aguardando vaga na instituição; seu quadro de recur-
sos humanos; a formação de professores em exercício, ressaltando ser in-
dispensável que os profissionais que atuam com as crianças sejam habilita-
dos para o exercício do magistério. Há, ainda, os quesitos sobre o respeito
aos direitos trabalhistas dos profissionais das instituições; a formação con-
tinuada daqueles que atuam com as crianças; a formação dos profissionais
nos cargos de coordenação pedagógica e administração; a existência de pro-
jeto político-pedagógico; a situação do espaço físico e infraestrutura; auto-
rização da instituição pelo respectivo conselho de educação; a existência de
algum tipo de conveniamento no município.
Por fim, a terceira parte do documento, “Formulação da política mu-
nicipal de Educação Infantil”, tem por objetivo esclarecer as dúvidas dos
municípios relacionadas à aplicação da Lei do FUNDEB, bem como suge-
rir “[...] procedimentos para organização do processo de conveniamento”
(BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b, p. 9). O texto sugere
que os municípios se apropriem dos conteúdos da lei e se familiarizem com
o cálculo dos repasses; as contribuições do Fundo para as instituições con-
veniadas; e as exigências legais a serem cumpridas por essas para que as
matrículas a serem por elas oferecidas sejam consideradas na distribuição
desses recursos. Trata, ainda, do período em que essas serão consideradas
na distribuição dos recursos do Fundo; as exigências quanto à aplicação
desses; o percentual dos recursos do Fundo que podem ser repassados para
as instituições comunitárias, pelo município, entre outros tópicos.

227
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

Ainda nesta terceira parte, constam informações sobre a responsabi-


lidade da Secretaria Municipal de Educação no que se refere às questões
pedagógicas relacionadas ao conveniamento e quanto ao acompanhamen-
to e avaliação do mesmo por meio das diversas secretarias municipais en-
volvidas, incluindo-se a gestão financeira e legal de funcionamento das ins-
tituições.
No que se refere à definição de critérios para as entidades serem in-
cluídas no convênio, o documento orienta as Secretarias de Educação para
que estabeleçam um “[...] padrão de conveniamento para ação conjunta com
as instituições educacionais privadas sem fins lucrativos, comunitárias, filan-
trópicas e confessionais, com vistas a um atendimento educacional” (BRA-
SIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009b, p. 27). Nos itens finais desta
terceira parte, é destacada a importância de ampla divulgação do convênio,
dos padrões, critérios e requisitos exigidos, podendo ser utilizado o chama-
mento público para a formalização do convênio, depois de selecionadas pela
Secretaria de Educação as instituições contempladas, as quais devem ser “[...]
convocadas para firmar convênio” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCA-
ÇÃO, 2009b, p. 28). Como partes integrantes de um documento de convê-
nio, o texto destaca como indispensáveis: obrigações mútuas; aplicação de
recursos; gerenciamento; documentação exigida; prestação de contas; re-
tenção de recursos; saldos financeiros; dotação orçamentária; vigência; res-
cisão; publicação e foro.1
Em que pese a possibilidade desse documento ser visto como um
incentivo à prática do conveniamento como estratégia de expansão da ofer-
ta de Educação Infantil, trata-se de um material que vem atender uma ne-
cessidade, na medida em que a prática da parceria público-privada no terri-
tório nacional já era, à época, uma realidade.2 Considerando que esse tipo
de convênio se efetiva com recursos públicos que deveriam ser fiscalizados

1
Nesse documento do MEC, há, ainda, diversos anexos disponibilizados aos municípios como
referências para a elaboração de termos de convênio.
2
Como exemplo dessa expansão, podemos citar Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul,
onde a expansão das vagas nos últimos anos se deu prioritariamente através de convênios. Em
1996, a capital tinha 5.125 crianças em creches conveniadas e 5.955 em Escolas Municipais de
Educação Infantil. Em 2011, esses números passaram respectivamente para 13.574 e 5.759
crianças.

228
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

não só pelo poder público, mas pela sociedade civil, impõe-se a necessidade
da publicidade das exigências legais e sociais para a efetivação dessas par-
cerias com mais qualidade, é, sem dúvida, do MEC esse papel indutor.
A proliferação das práticas de conveniamento em detrimento da apli-
cação de recursos públicos exclusivamente em educação pública também
encontra apoio legal na Medida Provisória nº 562, de 20 de março de 2012,
convertida na Lei nº 12.695/12, que, entre outros, altera o artigo 8º da Lei
nº 11.494/2007, do FUNDEB, permitindo o que segue:
§ 1º Será admitido, para efeito da distribuição dos recursos previstos no
inciso II do caput do art. 60 do ADCT, em relação às instituições comunitá-
rias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o
poder público, o cômputo das matrículas efetivadas:
I - na educação infantil oferecida em creches para crianças de até 3 (três)
anos;
II – [...]
§ 3º Será admitido, até 31 de dezembro de 2016, o cômputo das matrículas
das pré-escolas, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, sem fins lucra-
tivos, conveniadas com o poder público e que atendam às crianças de 4 (qua-
tro) e 5 (cinco) anos, observadas as condições previstas nos incisos I a V do
§ 2o, efetivadas, conforme o censo escolar mais atualizado até a data de pu-
blicação desta Lei (Lei nº 11.494/2007, art. 8º – BRASIL, CONGRESSO
NACIONAL, 2007).

Com essa modificação na Lei do FUNDEB, foi estendida a possibili-


dade de atendimento de matrículas da Educação Infantil em creches e pré-
escolas através da parceria público-privada até o ano de 2016, quando fin-
dará o prazo legal para a implementação universal da Emenda Constitucio-
nal 59/09 – EC 59/093 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2009).
Ressalvando-se a importância dessa restrição legal, para que o poder públi-
co venha a assumir a totalidade das matrículas da primeira etapa da Educa-
ção Básica, é necessário que nos próximos anos sejam previstas metas e
recursos orçamentários para tal no Plano Nacional de Educação e nos res-
pectivos planos estaduais e municipais de educação. Os planos orçamentá-
rios plurianuais devem prever, ainda, novas fontes de recursos, de maneira

3
A Emenda Constitucional 59/09 – EC alterou a CF/88, tornando obrigatória a matrícula na
pré-escola para as crianças de 4 e 5 anos, dando como prazo para sua efetivação o ano de 2016.

229
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

a garantir a ampliação do per capita atual, condição indispensável para o


aumento da oferta de vagas e para a garantia de padrões de qualidade.
Na seção seguinte, abordaremos o atendimento às crianças até 6 anos
no Brasil, buscando evidenciar os avanços legais existentes nas últimas dé-
cadas. Destacaremos que as políticas públicas para a oferta dessa etapa edu-
cacional ainda carecem de efetiva consolidação em termos de equidade e
qualidade na garantia do direito à educação, em consequência de fatores
diversos, incluindo-se as questões de natureza macroeconômica que reper-
cutem diretamente no financiamento dessa etapa educacional.

Novos conceitos, velhos dilemas: a Educação Infantil entre


o avanço das concepções e os riscos de retrocesso nas práticas
A necessidade de políticas públicas voltadas à criança acompanha a
história da própria infância no mundo como um todo. Desde o surgimento
das Rodas de Expostos no Brasil4, no século XVIII, as crianças mais vulne-
ráveis e desvalidas recebiam um atendimento social diferenciado, com uma
mistura de filantropia e assistencialismo, configurando-se aí a vivência de
uma infância limitada à origem socioeconômica das mesmas.
Quando do surgimento de estabelecimentos educacionais específicos
para crianças menores de 7 anos, essa dicotomia se mantém, pois eram as
crianças das classes mais favorecidas que tinham acesso aos jardins de in-
fância. O atendimento institucional às crianças pobres a partir de meados
da década de 1950 continuava ocorrendo através da filantropia, por meio
da assistência social, com foco no atendimento à necessidade da mulher
trabalhadora, sendo esse direito da mãe trabalhadora inscrito em legislação
específica na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (BRASIL, CON-
GRESSO NACIONAL, 1960) na década de 1960.
A construção dos documentos legais que reconhecem a criança pe-
quena como sujeito de direitos vem acontecer na década de 1980, como

4
“As Rodas de Expostos eram asilos administrados pelas Santas Casas, possuindo um mecanis-
mo giratório que garantia sigilo na entrega das crianças, através do qual eram recebidos os
expostos, crianças recém-nascidas, abandonadas por suas famílias” (FLORES, 2007, p. 42).

230
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

decorrência dos movimentos de luta pela cidadania, após a ditadura militar


no Brasil (1964-1984). A produção teórica e legal das últimas décadas de-
monstra a preocupação cada vez maior sobre a temática da infância e sina-
liza para um avanço conceitual que foi arduamente construído com o em-
penho da sociedade e dos grupos de estudiosos desse campo. Contudo o
maior desafio na atualidade é unir o texto legal e o avanço teórico à realida-
de, materializando os avanços havidos. Ou seja, garantir os direitos sociais
a todos, com equidade, incluída a dimensão da qualidade, independente-
mente da origem socioeconômica das crianças.
Quando falamos em educação infantil hoje, pode ser consenso entre
alguns grupos a compreensão de que essa etapa é um tempo/espaço de
vivência da infância enquanto fase diferenciada do ser humano. A vivência
da cidadania para todas as crianças, aqui e agora, exige espaços de educa-
ção coletiva, devidamente adequados ao ordenamento legal vigente e sub-
metidos à supervisão e ao acompanhamento tanto pelos órgãos competen-
tes como pela sociedade civil.
Do ponto de vista jurídico, a partir do texto do Art. 208 da CF/88,
podemos afirmar o direito de todas as crianças até 6 anos à educação: “O
dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: IV
– atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de
idade” (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1988). Mais adiante, o
Art. 227 da Lei Maior vai afirmar: “É dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação” (BRASIL, CONGRES-
SO NACIONAL, 1988). Daí afirmarmos que o direito à educação para as
crianças pequenas foi apenas recentemente adquirido.
Dois anos depois da aprovação da CF/88, o Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA/90, em seu Art. 4° (BRASIL, CONGRESSO NACIO-
NAL, 1990), ratifica esse direito, que mais adiante, na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 1996 – LDBEN 9394/96, será
apresentado como responsabilidade prioritária da esfera pública municipal
em regime de colaboração com os estados. É então que a Educação Infantil
passa a ser reconhecida como primeira etapa da Educação Básica, pois o
artigo 29 afirma: “A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Bási-

231
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

ca, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos
de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, comple-
mentando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, CONGRESSO
NACIONAL, 1996).
Entendemos que o arcabouço jurídico elencado é fortalecido com a
aprovação da Resolução CNE/CES nº 01/2006 (BRASIL, CONSELHO
NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2006), que institui as Diretrizes Curricu-
lares Nacionais para os Cursos de Pedagogia. Em seu Art. 5º, essa norma
afirma a dimensão educacional dessa etapa da Educação Básica, quando
preconiza que a educação e o cuidado das crianças pequenas matriculadas
na Educação Infantil devem ser efetivados por profissionais do Magistério
com habilitação em nível superior, curso de licenciatura: “O egresso do
curso de Pedagogia deverá estar apto a: [...] II - compreender, cuidar e edu-
car crianças de zero a cinco anos, de forma a contribuir para o seu desenvol-
vimento nas dimensões, entre outras, física, psicológica, intelectual, social”
(BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2006).
Nas últimas décadas, o Ministério da Educação, a partir da criação
de uma coordenação própria para a Educação Infantil, a COEDI/MEC,
contribuiu para a consolidação do campo a partir da formulação e divulga-
ção de inúmeros documentos. Destacamos a seguir alguns deles: Referen-
ciais Curriculares Nacionais – 1998 (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDU-
CAÇÃO, 1998a); Parecer 022/98 do CNE/CEB (BRASIL, 1998b); Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) estabele-
cidas pela Resolução CNE/CEB nº 01/1999 (BRASIL, CONSELHO NA-
CIONAL DE EDUCAÇÃO, 1999). Aquilo que veio se consolidando en-
quanto concepção de Educação Infantil nesses documentos é representati-
vo do avanço da área, resultado do acúmulo construído em termos de pes-
quisas e práticas de educação e cuidado das crianças pequenas, como afir-
ma Barbosa (2009):
Apesar de as instituições de atendimento para crianças pequenas, como os
jardins de infância e creches, já estarem presentes na sociedade brasileira
desde o século 19, a sua inserção nos espaços de gestão da educação é bas-
tante recente. Estas conquistas iniciaram-se nos debates da Constituição
Federal, nas deliberações da LDB e do PNE, com a inclusão da Educação
Infantil como parte da Educação Básica do país, e continuaram com a deci-
são da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação de

232
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

estabelecer Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, definindo clara-


mente a especificidade deste nível de educação (BARBOSA, 2009, p. 170).

Dando continuidade a esse processo de consolidação da dimensão


educacional da Educação Infantil nos planos teórico e legal, outros docu-
mentos foram produzidos, afirmando a importância da formulação e da
efetivação de políticas para a área, bem como estabelecendo parâmetros e
critérios norteadores dessa oferta. Entre esses, destacamos: a Política Nacio-
nal de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à
educação (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO MEC, 2006a), os
Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL,
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006b) e Indicadores da Qualidade na
Educação Infantil (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009).
Daremos aqui especial ênfase à última publicação citada, por dois
motivos. Em primeiro lugar, podemos encontrar nesse documento a siste-
matização de um avanço teórico importante na área, construído nas últi-
mas décadas, pois o mesmo propõe parâmetros e indicadores atualizados e
próprios de uma instituição de Educação Infantil que respeita os direitos
das crianças pequenas; em segundo lugar, configura-se em um “[...] instru-
mento de autoavaliação da qualidade das instituições de Educação Infantil
[...]” por meio de “[...] um processo participativo e aberto a toda a comuni-
dade”, oportunizando que as instituições identifiquem seu próprio cami-
nho em direção a uma educação de qualidade, oferecendo parâmetros de
análise das condições de atendimento aos seus familiares (BRASIL, MI-
NISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 9).
Como esse documento encontra-se disponível para download no site
do Ministério da Educação, qualquer creche ou pré-escola pode utilizá-lo,
assim como uma rede municipal que deseje avaliar a qualidade da Educa-
ção Infantil ofertada. O referido documento propõe a análise da qualidade
mediante sete dimensões e vários indicadores entendidos como “[...] sinais
que revelam aspectos de determinada realidade e que podem qualificar algo
[...]”, considerados como elementos importantes em instituições de Educa-
ção Infantil que respeitam os direitos fundamentais das crianças (BRASIL,
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 15).
Cada uma das sete dimensões presentes nesse documento aborda um
aspecto essencial na organização da oferta ou mesmo articula vários que se

233
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

inter-relacionem e, em seu conjunto, o instrumento oferece e problematiza


questões que levam a uma avaliação da própria realidade, permitindo a
participação de todos os envolvidos. A dimensão “Planejamento Institucio-
nal” aponta indicadores referentes à proposta pedagógica, ao planejamen-
to, acompanhamento e avaliação e ao registro da prática educativa; “Multi-
plicidade de Experiências e Linguagens” é outro aspecto de análise com
indicadores referentes a experiências saudáveis com o corpo, expressão por
meio das diferentes linguagens plásticas, musicais e corporais, estímulo à
linguagem oral e escrita, reconhecimento e valorização das diferenças.
“Interações”, dimensão central nas experiências de educação coleti-
va, envolve indicadores como o respeito à dignidade, ao ritmo, à identida-
de, desejos e interesses das crianças e respeito às ideias e produções; en-
quanto “Promoção da Saúde” traz indicadores que apontam para a ali-
mentação saudável, limpeza, salubridade e conforto do ambiente e segu-
rança. Como aspecto central na organização da prática pedagógica, “Espa-
ços, Materiais e Mobiliários” destaca indicadores referentes a esses itens e
que favoreçam experiências saudáveis, seguras e desafiadoras às crianças;
com materiais variados e acessíveis, respondendo, também, aos interesses e
necessidades dos adultos que trabalham com essas crianças.
“Formação e Condições de Trabalho das Professoras e Demais Pro-
fissionais” enfatiza indicadores como formação inicial e continuada dos pro-
fessores e condições de trabalho adequadas. Por fim, a dimensão “Coopera-
ção e Troca com as Famílias e Participação na Rede de Proteção Social” traz
indicadores sobre o respeito e acolhimento, o acompanhamento das famílias
às vivências e produções das crianças e a participação da instituição na rede
de proteção dos direitos da criança.
Para o Ministério da Educação, o processo de autoavaliação sugeri-
do nesse documento possibilita realizar um diagnóstico das instituições de
Educação Infantil, que, por sua vez, deverá resultar em planos de ação cujo
principal objetivo é “construir um atendimento de qualidade”. Esses pla-
nos deverão ser acompanhados e avaliados por uma comissão representati-
va da comunidade escolar com a tarefa de monitoramento dos mesmos
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 28). O Ministério da Educação
recomenda, ainda, que esse material seja utilizado pelas instituições de Edu-

234
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

cação Infantil, pelos Conselhos de Educação e pelas Secretarias Munici-


pais de Educação5.
Expressando a necessidade de consolidação dos avanços da área, após
dez anos de vigência da Resolução 01/99, ocorreu um processo de revisão
das Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN para a área, desenvolvido a
partir de discussão nacional envolvendo vários segmentos da sociedade. O
Parecer CNE/CEB nº 20/2009 (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO, 2009c) justifica a necessidade de uma revisão das DCN para
a Educação Infantil, culminando com a edição da Resolução CNE/CEB
nº 05/2009 (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
2009d). Essa norma avança em termos de conteúdo conceitual e normativo
em diversos aspectos dessa oferta educacional e indica as interações e brin-
cadeiras como eixo da organização do trabalho pedagógico junto às crian-
ças pequenas.
A Emenda Constitucional 59/09 – EC (BRASIL, CONGRESSO
NACIONAL, 2009), ainda que por um lado fortaleça o direito à educação
das crianças de 4 e 5 anos, por outro lado, ameaça a unidade da Educação
Infantil estabelecida na LDBEN 9394/96 (BRASIL, CONGRESSO NA-
CIONAL, 1996), podendo fragilizar a recente conquista do status educacio-
nal para o atendimento às crianças bem pequenas. Tornando-se a pré-escola
direito público subjetivo, corre-se o risco de que a etapa creche perca espaço
nas políticas educacionais nos municípios, considerada a demanda universal
para a faixa etária de 4 e 5 anos e a necessidade de maiores investimentos
para a oferta de educação para as crianças até 3 anos.
Campos (2012) chama a atenção para os baixos índices históricos no
atendimento às crianças de 0 a 3 anos no país, alertando, ainda, serem as
crianças mais pobres aquelas mais privadas desse direito, pois, no momen-
to em que a obrigatoriedade se aplica apenas à faixa etária de 4 e 5 anos, os
municípios com poucos recursos financeiros para investimento educacio-

5
As Secretarias Municipais de Educação são os órgãos governamentais responsáveis pela admi-
nistração das instituições de educação dos sistemas municipais de ensino, bem como mantene-
doras das instituições de educação da rede própria. Os conselhos municipais de educação,
quando possuem a função normativa, e os conselhos estaduais são os responsáveis pela regula-
mentação e fiscalização da oferta de educação nos respectivos sistemas.

235
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

nal podem optar por “políticas pequenas para as crianças pequenas” (CAM-
POS, 2012), opção comum a vários países latino-americanos, com políticas
de atenção de caráter socioeducativo ou mesmo meramente assistencial e
não educacional, havendo, inclusive, o risco do repasse desse atendimento
de forma preferencial para as entidades filantrópicas.
Nesse sentido, Flores, Santos e Klemann (2009) apresentam alguns
aspectos que se encontram ameaçados em função da falta de financiamen-
to adequado para o atendimento na etapa creche. Entre eles, podemos citar
um fato bastante comum nas instituições conveniadas: a atuação de profis-
sionais sem a habilitação estabelecida pela LDBEN em função do custo da
contratação de professoras habilitadas em número suficiente para atender à
relação adulto/criança definida nas normativas.
Como outra questão destacada por Flores; Santos; Klemann (2009),
temos a retração da oferta de vagas para as crianças bem pequenas, assim
como a redução da oferta de atendimento em tempo integral, duas práticas
que já vêm sendo observadas em diferentes estados do país. Esses movi-
mentos promovem uma perda na unidade pedagógica da Educação Infan-
til e, ao mesmo tempo, um retrocesso a partir da negação do direito consti-
tucional à educação para as crianças até 3 anos.
Na seção seguinte, abordaremos algumas consequências da política
de conveniamento para a oferta de Educação Infantil, em um contexto
macropolítico de crise do capital, no qual ocorre o incentivo à realização de
convênios entre o poder público e entidades privadas do terceiro setor. Esse
incentivo se sustenta no fato de ser essa uma forma mais ágil e também de
menor custo para o atendimento aos direitos da população, mas que, nem
sempre, em nosso entendimento, garante os princípios constitucionais.

Repercussões do panorama macroeconômico no


contexto da expansão da oferta de Educação Infantil
Quando as entidades da sociedade civil, historicamente responsáveis
pela reivindicação e pelo controle social das políticas públicas, assumem
encargos do Estado acabam sendo, de certa forma, “cooptadas” a partir de
uma inversão de competências. Muitas vezes, distanciadas de seu papel ori-
ginal, geram um vazio no espaço que ocupavam como demandantes por

236
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

políticas sociais garantidoras dos direitos de cidadania. Esse processo de


cooptação de tal força de trabalho muitas vezes é repassado à sociedade sob
um discurso de “empoderamento” das entidades privadas sem fins lucrati-
vos, especialmente aquelas de natureza comunitária, quando, de fato, trata-
se de uma questão complexa.
Segundo Gohn (2011), os movimentos sociais surgidos na década de
1970 fortaleceram-se na década de 1980 como uma ação organizada da
sociedade civil com vistas à reivindicação dos direitos sociais, contribuindo
para consolidar muitas conquistas na Constituição Federal de 1988 – CF/
88 (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1988). Contudo, ao longo das
últimas décadas, como uma das consequências do processo de minimiza-
ção do Estado, temos observado, cada vez em maior escala, um protagonis-
mo de entidades do terceiro setor no que se refere a uma responsabilização
pela oferta de serviços públicos, entre eles a educação.
Em relação à parceria entre o poder público e a iniciativa privada
para a oferta de educação básica escolar6, chamamos a atenção para alguns
aspectos nos quais identificamos indicadores de precarização do atendi-
mento ao direito público subjetivo à educação. Questionamos se, nesses
casos, o conveniamento das organizações sociais sem fins lucrativos não
seria, em si, um processo de “enfraquecimento” dessas entidades em rela-
ção a seu papel social próprio e não de fortalecimento das mesmas, como
se poderia supor.
Quando essas instituições do terceiro setor assumem a oferta de edu-
cação, observa-se, em certos contextos, uma oferta precária de atendimen-
to ao direito social à educação, inclusive pela falta de condições técnicas de
muitas instituições. É comum encontrarmos o atendimento sendo realiza-
do em espaços escolares por oficineiros, monitores ou colaboradores que
não possuem formação adequada, realizando um trabalho descontextuali-
zado da proposta pedagógica institucional. Em função dos poucos recursos
repassados pelo Estado em troca dessa parceria e também pelo fato desses

6
Atualmente, essa forma de parceria pode ser encontrada em toda a Educação Básica, incluindo
as modalidades de Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos e, ainda, a Educação
Profissional.

237
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

contratados, em muitos casos, não possuírem formação apropriada, aca-


bam recebendo baixa remuneração, formando um círculo vicioso entre a
má remuneração e a baixa qualidade do atendimento.
Entendemos que com essa “cooptação” da força de trabalho dos mo-
vimentos sociais para a garantia de serviços de responsabilidade do Estado
na área da educação, temos, ainda, uma perda quanto ao controle social
tanto do gasto do recurso como da qualidade do serviço público. Quando
esses movimentos oferecem um serviço à comunidade em lugar do poder
público, entidades conveniadas e gestor público perdem a legitimidade para
monitorar e avaliar a qualidade desse serviço: um, porque está ocupado em
dar conta daquilo que foi contratado para oferecer; o outro, por estar contra-
tando um terceiro para uma oferta que é de sua responsabilidade.
Com financiamento inadequado e alta demanda, essa etapa sofre con-
sequências como a retração da oferta e/ou o prejuízo às condições de qua-
lidade necessárias, levando alguns municípios à opção pelo conveniamen-
to. No caso das entidades conveniadas, a maioria delas ainda complementa
os recursos públicos recebidos por meio da cobrança de mensalidades e/ou
da arrecadação de doações, tendo em vista que o repasse do recurso públi-
co para tais instituições, em vários casos, é menor do que o valor de referên-
cia do FUNDEB para essa etapa.
A cobrança de mensalidades ou “contribuições” das famílias por parte
das instituições conveniadas é considerada ilegal, conforme o disposto no
Art. 8º da Lei do FUNDEB (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 2007),
que estabelece a proibição de qualquer cobrança nos casos de convênio,
afirmando a igualdade de condições para o acesso e a permanência na es-
cola, bem como a gratuidade a todos os alunos.
A parceria público-privada para a oferta de Educação Infantil no Brasil
tem se constituído como uma política preferencial para a ampliação desse
serviço, principalmente nas capitais e cidades com maior índice populacio-
nal, constando não só dos programas dos governos municipais, mas figuran-
do como uma política respaldada nacionalmente desde a inclusão das insti-
tuições privadas sem fins lucrativos no repasse de recursos do FUNDEB.
Quando um município não remunera a matrícula da instituição con-
veniada pelo mesmo valor de referência do FUNDEB, o convênio configu-
ra-se como uma alternativa de ampliação do acesso à educação de custo

238
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

menor do que aquele praticado no referido Fundo, já em si insuficiente,


prejudicando a qualidade da educação oferecida às crianças.
Cabe aqui destacar que existem casos de instituições conveniadas que
ainda não se encontram cadastradas e credenciadas junto aos sistemas de
ensino, conforme determina a legislação vigente, deixando de atender aos
critérios mínimos de qualidade, a despeito do repasse de recursos públicos
que recebem.7 Susin (2005; 2009) aprofunda estudos sobre a qualidade da
oferta de Educação Infantil no município de Porto Alegre, evidenciando,
como uma de suas conclusões, a falta do cumprimento de parâmetros pre-
sentes no ordenamento legal vigente por parte de diversas creches comuni-
tárias conveniadas.
O estudo evidencia que as condições socioeconômicas diferenciadas
presentes na Educação Infantil comunitária resultam em diferenças na qua-
lidade da educação ofertada pelo estabelecimento conveniado. As institui-
ções com mais recursos oferecem melhores condições de qualidade, que se
materializam no espaço físico, nos materiais pedagógicos e na habilitação e
formação continuada dos professores. Já a análise das condições de oferta
nas comunidades mais carentes revela precariedade nesses aspectos, fazen-
do com que se perca de vista o paradigma da igualdade e do direito de todo
cidadão a uma educação de qualidade, assegurada como princípio consti-
tucional (SUSIN, 2009).
Parece óbvio, mas é necessário dizer que, se o recurso repassado é
insuficiente, seria de se esperar que a qualidade do atendimento ofertado
fosse insuficiente. Afinal, muitas instituições sem fins lucrativos não possu-
em uma mantenedora suficientemente estruturada para garantir um inves-
timento per capita dentro dos padrões de qualidade exigidos. Insumos como
estrutura física, materiais, profissionais e alimentação adequados à faixa
etária de zero até seis anos exigem recursos significativos.
E aqui é preciso destacar a inconsistência de discursos que separam
as questões de quantidade e qualidade na oferta educacional. Mesmo sen-
do um conceito reinterpretado em cada contexto, a qualidade na educação

7
Conforme Art. 89 da LDBEN 9394/96: “As creches e pré-escolas existentes ou que venham a
ser criadas deverão, no prazo de três anos, a contar da publicação desta Lei, integrar-se ao
respectivo sistema de ensino” (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, 1996).

239
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

da primeira infância, reconhecida internacionalmente como necessária para


o desenvolvimento de um país, demanda insumos específicos para que se
atinjam os resultados esperados e para que a cidadania se efetive desde as
turmas onde são atendidos bebês.
A ampliação da oferta de vagas através de convênios, que poderia ser
entendida como uma democratização da Educação Infantil, pois, de fato,
amplia o número de crianças atendidas, por outro lado, à medida que reali-
za sem a garantia dos princípios constitucionais de gratuidade, laicidade e
qualidade, pode também ser considerada uma pseudodemocratização da
educação.
Afirmamos isso, uma vez que essa educação aquém dos padrões de
qualidade estabelecidos é oferecida, justamente, para aquelas camadas mais
vulneráveis da população e, ainda, em certos casos, na perspectiva de uma
política assistencial, quando não assistencialista. Para que pudéssemos afir-
mar que estaria havendo uma efetiva democratização da Educação Infan-
til, além do acesso a uma vaga, seria necessário que as camadas menos
privilegiadas da população fossem atendidas com políticas educacionais
garantidoras de inclusão com equidade e qualidade.

Considerações finais
O objetivo deste artigo foi avaliar se a parceria público-privada para a
oferta de Educação Infantil se configura, de fato, como uma democratiza-
ção dessa etapa da Educação Básica. Um breve desenvolvimento teórico a
respeito da crise do capital foi necessário para que se compreendesse a pers-
pectiva de conveniamentos entre o poder público e instituições privadas
filantrópicas desde um contexto ampliado de análise. Questões relativas ao
financiamento educacional contribuem na compreensão acerca da opção
de certos governantes, nas últimas décadas, por políticas de parceria públi-
co-privada, ao invés da expansão da rede pública de Educação Infantil, a
despeito do ordenamento legal vigente com reiteradas referências e indica-
ções a padrões mínimos de qualidade.
Nas últimas décadas, leis federais legitimam a parceria público-priva-
da ao regulamentarem o repasse de recursos públicos para matrículas da
Educação Infantil das instituições comunitárias, confessionais, filantrópicas,

240
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sem fins lucrativos, conveniadas com o poder público. Documentos oficiais


orientam a prática da parceria público-privada, instruindo os municípios sobre
a adequada celebração de convênios com organizações da sociedade civil.
A partir da análise da legislação, dos documentos normativos e ori-
entadores em nível nacional e da fundamentação teórica aqui desenvolvi-
da, entende-se que o afastamento do Estado da oferta de educação para as
crianças pequenas, cedendo lugar ao protagonismo de entidades da socie-
dade civil, é uma questão complexa, haja vista o contexto macroeconômi-
co que aí repercute, assim como algumas configurações na relação público-
privado que se estabelecem a partir dessa parceria.
A responsabilização da sociedade civil por demandas do Estado, des-
de nosso ponto de vista, tem resultado em uma perda política que enfraque-
ce a luta dos movimentos sociais por seus direitos, fragilizando seu papel
específico de controle sobre a oferta de serviços de responsabilidade do poder
público. Quando a comunidade se torna responsável pelo serviço, ocorre
uma diminuição não só de sua luta pelo direito à oferta de mais serviços,
que venham a atender suas necessidades, como também do acompanha-
mento e controle social sobre esses conveniamentos, responsabilidade da
própria sociedade e do poder público.
Essa dupla fragilização na ação fiscalizadora pode prejudicar a quali-
dade da educação ofertada, tanto no que diz respeito aos processos pedagó-
gicos como aos de gestão e avaliação institucionais e de aplicação dos re-
cursos públicos. Pesa para essa problemática, em prejuízo à qualidade, o
sistema atual de financiamento da educação brasileira. Além do fato de
que o custo/aluno/ano praticado pelo FUNDEB, especialmente para a etapa
creche, não cobrir o gasto realizado pelos municípios, existe ainda a ques-
tão da diferença a menor do recurso repassado às instituições conveniadas
em troca das matrículas por essas assumidas. Existem evidências empíricas
de que esse repasse insuficiente leva à precarização do trabalho nessas ins-
tituições conveniadas, no que se refere à remuneração e às condições de
trabalho dos profissionais que atuam com as crianças, bem como em rela-
ção aos insumos disponibilizados.
A partir das análises aqui desenvolvidas e respondendo ao questiona-
mento inicial deste artigo, entendemos ser inadequada a separação das ques-
tões de direito ao acesso e à qualidade na análise da democratização da

241
FLORES, M. L. R.; SUSIN, M. O. K. • Expansão da Educação Infantil através da parceria público-privada

Educação Infantil quando se trata de oferta por meio de parceria público-


privada, pois, historicamente, no Brasil, as crianças das classes menos privi-
legiadas sempre foram aquelas privadas dos direitos sociais como um todo
e não só na educação.
Disponibilizar justamente às camadas mais vulneráveis da popula-
ção um serviço que não efetiva simultaneamente o direito ao acesso e à
qualidade não significa uma democratização no sentido pleno dado a essa
palavra no texto constitucional brasileiro. Considerados os princípios cons-
titucionais de gratuidade, laicidade e qualidade, entendemos que não hou-
ve democratização efetiva quando uma vaga é ofertada em um estabeleci-
mento privado sem fins lucrativos sem atender aos parâmetros nacionais de
qualidade. Afirmamos isso desde uma perspectiva que reivindica a supera-
ção da dicotomia entre quantidade e qualidade na ampliação da oferta edu-
cacional dirigida a crianças até 6 anos.

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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244
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

As parcerias público-privadas na
educação brasileira e as decorrências
na gestão da educação: o caso do
Instituto Ayrton Senna (IAS)1

Luciani Paz Comerlatto


Maria Raquel Caetano

Considerações iniciais
Este artigo apresenta como tema as parcerias público-privadas na
educação. Visa analisar as decorrências dessas parcerias no contexto da
educação brasileira no que diz respeito ao exercício da gestão democrática.
Para isso, apresenta o Instituto Ayrton Senna (IAS) como exemplo concre-
to da educação impregnada da lógica empresarial2, adotando como parâ-
metro o mercado através das indicações de produtividade, eficiência e efi-
cácia. Apresentamos a tese de que a adoção do gerencialismo na educação
compromete a autonomia do sujeito histórico social, aqui entendida en-
quanto a capacidade de pensar, criar, criticar, construir e reconstruir indivi-
dualmente e, sobretudo, coletivamente3 a sua vida no processo histórico,
independente da sua condição social, étnica e de gênero.
Desde as últimas décadas do século passado, vivenciamos, no con-
texto da educação pública brasileira, a inserção da lógica privada na gestão

1
Este artigo integra a pesquisa “Parcerias entre sistemas públicos e instituições privadas do
terceiro setor: Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra: implicações para a democratização da
educação”, que se propõe analisar a relação entre o público e o privado e as consequências
para a democratização da educação no Brasil, Argentina, Inglaterra e Portugal e o que se
entende em cada país por público e privado, democracia e direito à educação – CNPQ, coorde-
nado pela prof. Dra.Vera Maria Vidal Peroni da UFRGS.
2
Utilizamos a expressão gerencialismo como sinônimo de gestão da educação sob a lógica em-
presarial.
3
O coletivo aqui se refere à sociedade como um todo.

245
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

das redes de ensino e na gestão da escola pública, através das parcerias,


com instituições públicas não estatais, tais como ONGS e institutos. Essas
parcerias, devido a seus princípios teóricos metodológicos, baseados em
projetos educacionais heterônomos, embasados em perspectivas privadas,
mercadológicas, vêm na contramão das lutas sociais historicamente cons-
truídas, principalmente a partir da década de 1980, por uma sociedade mais
democrática e, no contexto da educação, pela gestão democrática, afirma-
da constitucionalmente no ano de 1988, cujo princípio fundamental é a
autonomia escolar nas dimensões pedagógica, administrativa, jurídica e fi-
nanceira. De acordo com Comerlatto (2013, p. 112), a autonomia escolar
refere-se ao direito da comunidade educativa de pensar, debater, planejar,
elaborar, decidir, executar e responsabilizar-se por tudo o que diz respeito ao
movimento do real escolar, baseado nas aspirações coletivas.
Partimos da premissa de que a função da escola é contribuir no pro-
cesso de formação do sujeito histórico social. No entanto, para analisar os
limites e possibilidades da concretização dessa função, também é necessá-
rio compreender as relações estabelecidas pela educação no contexto do
sistema capitalista4, envolvendo Estado, Gestão Pública, Gestão Escolar e
Gestão de Sala de Aula5.
O estudo da educação, nas suas múltiplas relações, remete-nos ao
entendimento sobre a tese da qual partimos e que iremos desenvolver no
decorrer deste artigo: as parcerias público-privadas desencadeiam uma cres-
cente perda de autonomia das redes públicas de ensino e consequentemen-
te da gestão educacional escolar, promovendo a coisificação humana en-
tendida, conforme Comerlatto (2013, p.17), como a condição de subordi-
nação que a lógica privada mercadológica atribui ao ser humano de ser
apenas executor e operador de propostas e projetos previamente definidos.
De acordo com essa tese, evidenciamos a contradição da educação
no sistema capitalista: se, por um lado, a priori, ela tem a função de contri-
buir na construção do sujeito histórico social, desenvolvendo suas habilida-
des, construindo valores de vivência coletiva, por outro lado, de acordo

4
Para aprofundar essa discussão, sugerimos o estudo da obra “Para além do Capital”, de Istvan
Mészáros.
5
Ver Comerlatto (2013).

246
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

com o atual momento histórico, ela busca estratégias para educar com vis-
tas às necessidades do mercado. Segundo Marx (1989), no contexto do sis-
tema capitalista, a educação está a serviço da promoção das qualificações
necessárias ao funcionamento da economia e a busca do controle político.
Essa contradição remete a uma nova forma de gerir as lutas que his-
toricamente estavam sob a responsabilidade do Estado. Segundo Mészáros
(2005, p. 25),
poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos sociais
mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados. Consequentemen-
te, uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a corres-
pondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da
sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções
de mudança (MÉSZÁROS, 2005, p. 35).

As mudanças no papel do Estado6, ocorridas na transição do século


XX para o XXI, servem como exemplo da relação de imbricação apontada
por Mészáros, em que o Estado se desresponsabiliza do seu papel de execu-
tor das políticas sociais, repassando tal responsabilidade para o público não
estatal ou para o setor privado7. Configura-se a adoção da lógica privada da
gestão empresarial pela gestão pública, por entendê-la como mais produtiva
e eficiente em todas as esferas da sociedade. Nessa conjuntura, delega-se ao
mercado o poder de decisão na coisa pública. Para Mészáros (2005, p. 25),
as mudanças sob tais limitações, apriorísticas e prejulgadas, são admissíveis
apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso
da ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determina-
ções estruturais fundamentais da sociedade como um todo, em conformida-
de com as exigências inalteráveis da lógica global de um determinado siste-
ma de reprodução (MÉSZÁROS, 2005, p. 25).

A razão da lógica privada, assim como a do mercado, de intervir nas


“questões públicas” é ideologicamente justificada pelo diagnóstico da ine-
ficiência da gestão pública, afirmando que “tudo o que é público e gratuito

6
Ver PERONI, Vera. Mudanças na configuração do estado e sua influência na política educacio-
nal. In: Dilemas da educação brasileira em tempos de globalização neoliberal: entre o público e o priva-
do. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006, v. 3, p. 11-24.
7
Sabemos que esse processo de minimização do Estado (característico dos anos 1990) já se
reconfigurou nos anos 2000. No entanto, mantém o favorecimento ao setor empresarial, dele-
gando-o à gestão das políticas sociais.

247
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

é ineficiente”. Ou seja, sob o ponto de vista do sistema capitalista, a educa-


ção pública precisa ser gerida como empresa, pois é na lógica empresarial
que se encontram os critérios, processos e indicadores de gestão eficiente e
de sucesso. Tal perspectiva fundamenta e justifica as alterações no sistema
de avaliação escolar vivenciado nas últimas décadas, tanto em nível de ava-
liação externa como na concepção de avaliação do processo de ensino-apren-
dizagem no contexto escolar.
Nesse cenário, destacamos nos sistemas de ensino, na gestão escolar
e na gestão de sala de aula a execução de práticas teóricas metodológicas,
inspiradas no sistema empresarial, a serviço do mercado, afirmando os ter-
mos: produtividade, competição, eficiência, eficácia, sucesso e controle como
sinônimo de qualidade. Como exemplo dessa perspectiva de gestão da edu-
cação, apresentaremos no decorrer do texto o Instituto Airton Senna8. No
caso da gestão escolar, o controle é exercido pelo gestor sobre todos os su-
jeitos da educação, visando à eficiência e eficácia escolar, pautada nos re-
sultados quantificadores como forma de se legitimar no mercado. Para La-
val (2004, p. 257),
[...] os gerentes aparecem como “[...] ‘verdadeiros chefes’ encarregados de
aplicar eficazmente as políticas de modernização decididas pelas altas esfe-
ras e capazes de mobilizar as energias; de introduzir as inovações e de con-
trolar os professores na base” [...] (LAVAL, 2004).

Nesse sentido, os recursos técnicos, tais como controles estatísticos,


padronizações e avaliações de produtividade, etc., procuram atingir metas
de eficiência e eficácia previamente definidas em planos estratégicos e acor-
dos mediante a lógica da meritocracia. Sendo assim, a competitividade
aparece como o principal fator para desencadear a ‘qualidade’ das escolas.
Segundo Laval (2004, p. 209),
Esse vasto movimento de avaliação [...] é inseparável da subordinação cres-
cente da escola aos imperativos econômicos. Ela acompanha a “obrigação
de resultados” conhecida por se impor tanto à escola como a toda organiza-

8
Esse tema foi aprofundado na pesquisa nacional “Análise das consequências de parcerias firma-
das entre municípios brasileiros e a Fundação Ayrton Senna para a oferta educacional” (2008-
2011), cujo objetivo foi analisar as características dos Programas Escola Campeã e Gestão Nota 10,
propostos pelo Instituto Ayrton Senna, e as consequências de sua implantação para a oferta e a
gestão da educação em nove municípios brasileiros, sob a coordenação da professora Dra. Vera
Maria Vidal Peroni e da Dra. Theresa Maria de Freitas Adrião.

248
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ção produtora de serviços. Nisso, ela participa das reformas “centradas na


competitividade” visando fixar e elevar os níveis escolares esperados e, para
isso, normalizar os métodos e conteúdos do ensino (LAVAL, 2004).

Dessa forma, a escola aparece a ‘serviço’ dos ditames do sistema ca-


pitalista e por isso reproduz as suas exigências. Nesse sentido, as avaliações
externas funcionam, entre outras coisas, como mecanismos de regulação
da lógica instituída. E falando a partir de Marx, podemos dizer que as rela-
ções econômico-sociais determinam a superestrutura, a forma de conduzir
a educação. O que também aparece em Laval (2004) ao dizer que a compe-
tição econômica mundial ameaça que todo sistema educativo se reduza a
um produtor do “capital humano” necessário às empresas. E ainda para
esse autor, a competição exige formar cidadãos clientes e consumidores;
privatizar a cultura escolar; substituir a formação de valores solidários, hu-
manistas, pela cultura competitiva, baseada nos valores do consumismo e
do individualismo. Dessa forma, a privatização do ensino envolve muito
mais do que a simples cobrança por um serviço. Ela influencia conteúdos,
procedimentos e relações de poder dentro da escola que passa a funcionar
com base no dogma do mercado.
Dentro desta mesma linha de pensamento que valoriza a orientação empre-
sarializada e mercantilizada da educação, os seus defensores tendem a invocar
o carácter salutar e salvífico, da competição entre escolas, propondo então,
entre outras medidas: inscrições e políticas de portas abertas; publicação de
indicadores de performance e publicitação da imagem da escola; publicitação
de rankings de escolas; contratação de professores com capacidades especi-
ais; ofertas diferenciadas de atividades complementares, competição por
recursos públicos, por apoios empresariais ou de partenariado; novas fór-
mulas de gestão com uma menor preocupação pela legitimidade das pres-
sões e protestos públicos; profissionalização da gestão; maior atenção ao
controle dos resultados e às medidas e padrões de performance; racionaliza-
ção de metas e procedimentos despolarizados politicamente; prossecução
do objetivo da total quality management. Nesta competição, não só as escolas
privadas ganhariam em termos de eficiência, mas também as escolas públi-
cas estatais obteriam bons resultados, sobretudo se se “privatizassem”, ou
seja, se adotassem as práticas e as políticas da gestão privada (CHUBB &
MOE, 1990), proclamada como modelo de excelência (ESTEVÃO, 2009, p.
40-41).

O que podemos perceber é que a determinação da gestão educacio-


nal mediante a lógica do mercado – gerencialismo – é algo externo, mas
não só externo, pois constitui substancialmente a própria forma de se pen-

249
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

sar a educação. E essa forma ideológica e ‘traiçoeira’ de se apropriar dos


bens públicos pelos interesses privados sempre caracterizou a sociedade
capitalista. Onde, segundo Marx, o Estado não passa de um comitê da bur-
guesia. O que vem na contramão daquilo que deveria ser o foco da educa-
ção: a formação do sujeito histórico na integralidade, que é simultanea-
mente individual e coletivo e cujas relações sociais irão contribuir para a
reprodução e/ou transformação social. Dourado (2007) elucida a nossa
discussão ao dizer que:
A concepção de educação é entendida, aqui, como prática social, portanto,
constitutiva e constituinte das relações sociais mais amplas, a partir de em-
bates e processos em disputa que traduzem distintas concepções de homem,
mundo e sociedade. Para efeito desta análise, a educação é entendida como
processo amplo de socialização da cultura, historicamente produzida pelo
homem, e a escola, como lócus privilegiado de produção e apropriação do
saber, cujas políticas, gestão e processos se organizam, coletivamente ou
não, em prol dos objetivos de formação. Sendo assim, políticas educacionais
efetivamente implicam o envolvimento e o comprometimento de diferentes
atores, incluindo gestores e professores vinculados aos diferentes sistemas
de ensino (DOURADO, 2007, p. 923-924)9.

A concepção de educação de Dourado (2007) contribui para o nosso


entendimento sobre a função social da escola, a qual para nós consiste na
mediação do processo de aquisição da condição humana de viver no, com e
para o coletivo. Ou seja, a escola tem a função de cooperar com a transfor-
mação do sujeito individual, com interesses privados em busca de promo-
ções individuais, para o sujeito coletivo, com interesses coletivos, em prol do
coletivo. Essa é para nós uma questão central: a educação focada em compe-
tições, resultados, planejamentos heterônomos (material replicável, modelos
de aulas pré-definidos de norte a sul do Brasil) possibilita a construção dos
sujeitos críticos e autônomos, a gestão democrática da educação?
Entendemos que a democracia favorece o processo do sujeito consti-
tuir-se histórico social. Para isso, o dialogo coletivo é imprescindível. No
que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem escolar, o planeja-
mento de ensino é o ponto de partida para que a escola cumpra a sua fun-

9
Políticas e gestão da educação básica no Brasil: limites e perspectivas Educ. Soc., Campinas, vol.
28, n. 100 – Especial, p. 921-946, out. 2007. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>.

250
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ção social. Esse deve estar fundamentado no Projeto Político-Pedagógico e


também no Regimento Escolar10, previamente construído por, no mínimo,
representações de todos os segmentos que compõem a escola, desencade-
ando o exercício da participação e da responsabilidade coletiva. Evitando,
assim, um ensino desinteressante e desconectado da realidade, em que es-
tudantes e professores não se compreendem como seres participantes do
seu processo histórico. Nesse sentido, Paro (2010, p. 62) contribui com a
nossa reflexão ao afirmar que:
Ao impor um ensino desinteressante no qual à criança cabe apenas obedecer
às determinações do professor e da escola, independentemente de sua von-
tade e interesse, a escola tradicional concorre para desenvolver um tipo de
obediência e passividade que não é compatível com o exercício democrático
de cidadãos autônomos, incutindo valores que favorecem a constituição de
indivíduos acostumados a dominar os mais fracos e a obedecer sem resistên-
cia aos mais fortes (PARO, 2010).

Nessa conjuntura, compreendermos que a escola deva propiciar um


debate com toda a comunidade escolar sobre o que ensinar, para que ensi-
nar e qual a sua função na sociedade. Entendendo que o planejamento de
ensino voltado à formação do sujeito histórico social exige conhecimento
do espaço singular, particular e universal na perspectiva histórico-científi-
ca; formação continuada; abertura ao diálogo coletivo; tempo e disposição
para o planejamento; disciplina; definição de uma identidade, respeitando
a subjetividade, a objetividade e as diferenças tanto do educando como do
educador; compromisso social com a educação.
Nesse sentido, acreditamos que, no sistema capitalista, onde a socie-
dade está organizada em classes sociais, com direitos e deveres atrelados à
sua condição socioeconômica, a aprendizagem não está centrada apenas
no querer fazer individual, mas sim como produto do diálogo coletivo (sis-
tema e escola com todos os seus interlocutores).
Nesse contexto, estão postas duas propostas antagônicas sobre a fun-
ção da educação escolar, em que cada uma apresenta especificidades coe-
rentes com as suas respectivas finalidades, gestão democrática e gestão ge-

10
Tais documentos, quando construídos coletivamente, baseados na práxis, configuram um va-
lor essencial, um elo de ligação entre o coletivo escolar.

251
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

rencialista da educação. A primeira visa contribuir na formação do sujeito


histórico na integralidade e, por isso, preocupa-se em oferecer espaços de
desenvolvimento do sujeito em todos os aspectos que envolvem a sua cons-
tituição, primando pelo processo de construção que contribui na formação
de uma sociedade emancipatória, participativa, dialógica, crítica e coleti-
va. A segunda visa contribuir na formação do sujeito para o mercado de
trabalho, cuja finalidade é habilitar técnica, social, ideologicamente esse
sujeito com fins no mercado de produção e acumulação do capital, onde a
sociedade é produtora e promotora da acumulação e, por isso, deve ser
reprodutora, individualista e competitiva. O sujeito é o meio de se chegar
ao fim, que nada mais é do que acumulação, lucro e desenvolvimento.
A partir dessa reflexão inicial, apresentamos a seguir o Instituto Ayr-
ton Senna como modelo concreto da inserção da lógica privada, gerencia-
lista na educação brasileira.

O Instituto Ayrton Senna


O Instituto Ayrton Senna é uma entidade de assistência social sob a
forma de associação civil de caráter filantrópico, constituída em novembro
de 199411, presidida por Viviane Senna, irmã do piloto Ayrton Senna. Con-
forme dados do site em 2012, o Instituto Ayrton Senna apresenta-se como
uma instituição da sociedade civil cuja missão são a produção e a aplicação
em escala de conhecimento e inovação em educação integral de crianças e
jovens. A parceria do Instituto Ayrton Senna com secretarias de educação
abrange um em cada quatro municípios brasileiros.
Os recursos financeiros do IAS advêm de parcerias entre o instituto e
as empresas privadas e públicas, de doações, de contribuições recebidas e
de contratos de sublicença de uso da marca Senna, da imagem do piloto

11
A instituição (IAS) saiu do papel em 15 dias para absorver a fortuna que o piloto tinha a
receber por conta de contratos publicitários em andamento. Em 1995, o ano da largada, as
doações somaram R$ 1 milhão. Nos 12 meses seguintes, houve uma ligeira aceleração – R$
1,2 milhão. Em 1997, liberou R$ 5 milhões, marca superada pelos R$ 9 milhões que garanti-
ram combustível, em 1998, para projetos educativos de impacto. Disponível em: <http://
epoca.globo.com/edic/19990503/soci3.htm>. Acesso em: 25 out. 2009.

252
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Ayrton Senna, dos direitos autorais patrimoniais sobre o logotipo do Insti-


tuto Ayrton Senna.
Conforme o balanço social 2009, em 13 de julho de 1998, em ato do
Poder Executivo, publicado no Diário Oficial de 17 de julho de 1998, o
Instituto Ayrton Senna foi declarado instituição de utilidade pública em
âmbito federal, estando isento dos impostos incidentes sobre o seu patri-
mônio, sua renda e seus serviços, em conformidade com o disposto no arti-
go 150, inciso VI, alínea “c” da Constituição Federal. O instituto também
está livre das contribuições para a seguridade social por força do disposto
no parágrafo 7º do artigo 195 da Constituição Federal.
Se considerarmos a inserção do IAS, verificamos que ele alcança
todas as regiões do Brasil. O site do instituto permite afirmar que em 1998
eram 24 municípios que utilizavam os programas, em 2011 já são 1.300
municípios em 24 estados do país adotando algum programa ofertado pelo
IAS. Foram 74 mil educadores capacitados e 2 milhões de crianças e jovens
atendidos. Na tabela abaixo, apresentamos os números dos programas en-
tre alunos, educadores, municípios e estados.

Números dos programas do Instituto Ayrton Senna

Atendimento* Educadores Municípios Estados


Acelera Brasil 41.508 3.143 544 24
Se Liga 45.838 3.442 581 24
Circuito Campeão 500.588 25.189 348 20
Gestão Nota 10 1.297.158 39.019 535 19
Fórmula da Vitória 6.198 344 2 2
SuperAção Jovem 150.646 1.668 293 1
Educação pela Arte 3.124 143 10 8
Educação pelo Esporte 2.290 143 8 6
Escola Conectada 1.814 188 4 2
Formações em Educação a Distância — 1.614 — —

* Número de atendimentos é o número de estudantes que se beneficiam em cada progra-


ma. Em alguns casos, um mesmo estudante pode ser beneficiado por dois programas
distintos, já que demandam ações diferenciadas, com práticas e metodologias específicas.
Fonte: Siasi/Instituto Ayrton Senna, 2011.

253
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

Em 2008, o Se Liga, o Acelera Brasil e o Circuito Campeão foram


pré-qualificados pelo Ministério da Educação como ferramentas de apoio
aos sistemas públicos de ensino para a promoção da qualidade da educa-
ção12. Confirmando esse dado, constatou-se que o IAS possui financiamen-
to público através das “parcerias” com instituições governamentais em que
o instituto, através de suas tecnologias educacionais, as dispõe para prefei-
turas, governos estaduais e, mais recentemente, através do convênio de Tec-
nologias Educacionais, para o Ministério da Educação. O Guia de Tecno-
logias Educacionais, lançado em junho de 2008, apresenta a descrição de
todos os programas, entre eles o Acelera Brasil, programa de correção de
fluxo, e o Programa Circuito Campeão, de gerenciamento de aprendiza-
gem dos alunos com foco nos anos iniciais13.
No balanço social realizado pelo IAS e disponível na sua página ele-
trônica, consta que, em 25 de julho de 2009, o instituto firmou um contrato
com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para
atender os municípios que manifestassem interesse pelas tecnologias de-
senvolvidas pelo IAS, denominadas “Acelera Brasil” e “Se Liga”, num pe-
ríodo de dezoito meses a contar da assinatura do contrato. O valor total
faturado do contrato firmado com o Ministério da Educação (“MEC”) foi
de R$ 18.404.37514.
O alcance dos programas do instituto no Brasil é preocupante, pois,
considerando os diferentes cenários socioeconômicos e culturais das regiões

12
Dados coletados do site: <http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/br/default.asp>.
Acesso em: 04 abr. 2010.
13
O Guia de Tecnologias Educacionais foi criado com o objetivo de apoiar os sistemas públicos
de ensino na busca de soluções que promovam a qualidade da educação. O guia é composto
da descrição de cada tecnologia e de informações que auxiliam os gestores a conhecer e iden-
tificar aquelas que possam contribuir para a melhoria da educação em suas redes de ensino. O
guia está organizado em cinco blocos: gestão da educação, ensino-aprendizagem, formação
de profissionais da educação, educação inclusiva e portais educacionais. Os sistemas que, ao
elaborarem o PAR, incluírem como demanda as tecnologias que consideram importantes para
o desenvolvimento do seu trabalho, serão atendidos pelo Ministério. Fonte: <http://
www.mec.gov.br>. O material também foi divulgado para as secretarias municipais de educa-
ção de todo o Brasil.
14
Condicionado ao número de crianças atendidas pelo projeto e está sendo pago pelo FNDE ao
instituto em sete parcelas, correspondentes à execução integral das sete fases contratadas, as
quais são calculadas de acordo com o número de alunos atendidos nos municípios já referidos.

254
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do país, evidenciamos, através das pesquisas já realizadas, que um mesmo


programa é aplicado de norte a sul, chamado de “programas em larga esca-
la”, que, conforme já indicado acima, desconsideram as especificidades
concretas a partir das quais os sujeitos se constituem. Quando, para Vivia-
ne Senna, a causa do “não aprendizado”, que leva à repetência e à evasão,
é a má qualidade do ensino e não a subnutrição ou a falta de estímulo.
Conforme podemos evidenciar na sua declaração realizada à Revista Ges-
tão e Inovação (2007, p. 10): É justamente a incapacidade da escola de
ensinar. Tanto assim que, quando você faz a escola ensinar, as crianças apren-
dem e são a mesma criança, a mesma professora, a mesma escola. A única
diferença é que essa escola passou a funcionar.
Viviane Senna, presidente do IAS, afirma que o instituto contribui
para inserir no currículo e na rotina escolar diversas estratégias e práticas
inovadoras para que cada criança e cada jovem possam se desenvolver em
suas múltiplas competências cognitivas e não cognitivas, reforçando com
isso o aprendizado das disciplinas regulares e contribuindo para lidar com
as exigências que surgem a cada dia no novo mundo do trabalho e no con-
vívio social. Para ela,
[...] o atraso educacional se reflete na economia, de modo claro, com a falta
de profissionais capazes de fazer a diferença num mercado global extrema-
mente competitivo, dominado por produtos e serviços de alto valor agregado
em termos criativos, científicos e tecnológicos. Também o cenário político
global, incluindo o dos movimentos sociais, requer competências mais am-
plas, pois exigem-se posicionamento e tomada de decisões difíceis. Portanto,
educação de qualidade, em larga escala, é mais do que nunca uma chave para
enfrentar os maiores desafios do presente e do futuro (SENNA, 2011).

A fala de Senna remete a um caráter salvacionista da educação15,


inserido permanentemente nos discursos dos programas do Instituto Ayr-
ton Senna, o que ‘explica’, em parte, a aderência e abrangência deles na
educação brasileira. Entendemos que a afirmação de Senna de que a falta
de profissionais capacitados faz a diferença num mundo competitivo está
de acordo com a perspectiva teórica que compreende a educação como
serviço para e do mercado. Ou seja, para Senna, os programas do IAS de-

15
O discurso salvacionista da educação tem sido comum nos atuais discursos proferidos pelo
empresariado em relação à educação brasileira.

255
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

vem, em primeira instância, formar mão de obra para servir ao mercado. A


educação aparece como a mediadora para esse fim.
Os programas do Instituto Ayrton Senna caracterizam-se como pro-
gramas de gestão da escola e da aprendizagem. Pois, de acordo com o ins-
tituto, a raiz dos principais problemas encontrados nas escolas brasileiras
está na necessidade de uma gestão mais eficiente de recursos, focada em
resultados. Por isso sugere o Programa “Gestão Nota 10”, que oferece
capacitação e ferramentas gerenciais para as secretarias da educação e para
os gestores escolares.
Em relação ao processo de aprendizagem, a gestão escolar ocorre
por meio do Programa Circuito Campeão, que orienta e monitora direta-
mente as ações educacionais de combate ao analfabetismo e à baixa apren-
dizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para atender esses alu-
nos, o IAS apresenta os programas Se Liga, Acelera Brasil e Fórmula da
Vitória (IAS, 2011).
A inserção do Instituto Ayrton Senna nas redes de ensino público do
país ocorre a partir do que ele denomina como soluções educacionais, que
apresentam na sua base uma concepção de educação, que não é neutra,
conforme poderemos observar no decorrer deste artigo. A proposta é de
implementação dos conceitos iniciais dos Quatro Pilares da Educação –
aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a conviver e aprender a fazer
–, desenvolvidos pela Unesco em 1988 e lançados no Brasil com o Relató-
rio Delors.
O instituto traduziu esses conceitos em habilidades e competências
que podem ser desenvolvidas na escola, com ações práticas, para formular
propostas objetivas às políticas públicas. As soluções, segundo o instituto,
ajudam a desenvolver nos estudantes as competências cognitivas e não cog-
nitivas necessárias para que possam enfrentar os desafios do século 21, como
cidadãos, profissionais e agentes políticos, econômicos e sociais. Para o IAS,
a amplitude do trabalho articulado pelas soluções educacionais permite que,
separadamente ou em conjunto, elas funcionem como elementos de políti-
cas públicas. E isso tem ocorrido em diversas regiões do Brasil, mesmo
quando parcerias formais chegam ao fim.
Percebemos em nossos estudos que um dos objetivos do IAS é tornar
os programas de uma instituição privada em política pública para as redes

256
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

de ensino, ou seja, inserir a lógica da gestão privada no ensino público, o


que interfere na formação dos educadores, dos gestores e na formação do
sujeito histórico e social.
Partindo do suposto da igualdade de oportunidades para todos, pela
via da educação, o documento da Unesco retoma e atualiza o “conceito de
educação ao longo de toda a vida, de modo a conciliar a competição, que
estimula a cooperação e a solidariedade que une” (JACOMELLI, 2008, p.
165). Esse conceito visa como fazer com que cada indivíduo saiba conduzir
o seu destino em um mundo onde a rapidez das mudanças se conjuga com
o fenômeno da globalização, para modificar a relação que homens e mu-
lheres mantêm com o espaço e o tempo.
Nessa perspectiva está a discussão da qualificação do trabalhador pela
via da aquisição de competências. Não há mais período na vida e na escola
predeterminado. O trabalhador competente ou flexível é aquele que desen-
volve atitudes voltadas para a resolução de problemas, que se adapta a qual-
quer situação no ambiente de trabalho, sabendo trabalhar em equipe (idem).
A escola, em qualquer momento da vida do indivíduo, deve prepará-lo para
a aquisição de competências básicas para o mundo do trabalho.
Problematizando acerca das competências e da formação do aluno,
Marise Ramos (2001, p. 130) contribuiu afirmando que “descarta-se a edu-
cação para a cidadania em favor da educação para a produtividade, uma
educação baseada em procedimentos” (RAMOS, 2001). Um dos argumen-
tos a favor das competências era a aproximação entre escola e trabalho como
tentativa de mudar a relação entre a teoria e a prática, entre o geral e o
específico. Para ela, “transpor essa mesma lógica para o sistema educacio-
nal seria subordinar-se às exigências do mercado, o qual poderia estabele-
cer inclusive os padrões de qualidade” (RAMOS, 2001, p. 130). Isso pode-
ria reduzir o ensino a um treinamento ao qual Ramos (2011) se opõe, ao
alertar que, nessa ótica, “a função educativa começa a ser marcada também
por uma perspectiva individualizante e adaptativa da sociedade às incerte-
zas da contemporaneidade” (RAMOS, 2001, p. 131).
A proposta dos quatro pilares da educação, propostos por Delors, já
apresentados acima, mostra que as diferenças individuais são consideradas
importantes e fundamentais para que cada indivíduo encontre o melhor
lugar nessa sociedade. Na perspectiva de que a sociedade está em constan-

257
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

tes modificações, diminuindo a importância dos conteúdos escolares, que


são reduzidos a meras informações, e defendendo a necessidade de aqui-
sição de um saber imediato e utilitário, o que se contrapõe à nossa visão
de formação. Como os programas do instituto são prontos, padroniza-
dos, a função do professor fica restrita a de um técnico atuando apenas
como um executor das decisões já estabelecidas. Nesses termos, o conhe-
cimento não resultaria de um esforço social e historicamente determina-
do de compreensão da realidade. O conhecimento só é válido por sua
utilidade ou viabilidade.
O enfoque nas competências reconfigura o papel da escola com um
projeto de sociedade em curso. Esse projeto tem interferências na gestão da
educação e da escola e, especialmente, no trabalho do professor. Compre-
endemos que os processos de gestão escolar não se fazem no vazio ou de
forma neutra. O processo de gestão realiza-se no seio de uma formação
econômico-social, sendo, portanto, determinado pelas forças concretas,
presentes na realidade (PARO, 2010). A gestão da escola relaciona-se dire-
tamente com a concepção de educação e de homem que se quer formar.
Como já apresentamos, a concepção de educação que defendemos é aquela
que visa formar o homem na sua integralidade como sujeito histórico, polí-
tico e social.
O Instituto Ayrton Senna, ao oferecer seus programas prontos, pre-
tende a formação de um determinado cidadão, já que sua proposta não é
neutra, mas intencional. O IAS tem mostrado que seus programas podem
ser desenvolvidos independentemente da concepção de educação e método
de trabalho, ou seja, os programas podem ser utilizados para escolas de
todo o Brasil, pois trabalham com o foco do gerenciamento.
Uma das características das soluções educacionais apresentadas pelo
IAS é o modelo de gestão integrada. Com ele, toda a rede se mantém co-
nectada e monitorada, desde as secretarias de educação até cada uma das
escolas, compartilhando dados e metas, articulando os recursos com o ob-
jetivo de melhorar o aprendizado e o desenvolvimento dos alunos. Para
realizar tal intento, utiliza-se do SIASI (Sistema Ayrton Senna de Informa-
ções), em que o controle de todo o processo fica a cargo do IAS através das
informações enviadas pelas escolas e secretarias de educação ao instituto.

258
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Quanto a essa questão, Viviane Senna informa que sabe on-line o que está
acontecendo nas escolas:
Posso escolher uma escola e saber até quantos livros o aluno leu, em que
lição ele está etc. Nós montamos todo esse processo. O professor passa os
dados para o supervisor, que assiste à aula desse professor, de 15 em 15 dias,
para acompanhá-lo. O supervisor é capacitado para ver onde o professor
está acertando e onde não está. Temos também uma avaliação externa, con-
tratada. Ou seja, o que fazemos é uma dupla checagem. A gestão tem de ser
muito eficiente. O professor não é funcionário nosso, nós não podemos de-
miti-lo e ele não ganha mais por trabalhar mais ou para que o sistema real-
mente funcione (SENNA, 2007, p. 10).

O controle do processo educacional não é mais da escola, dos profes-


sores e dos alunos. Ele é exercido pelo Instituto Ayrton Senna nas redes de
ensino do país, possuindo informações privilegiadas sobre a educação pú-
blica e interferindo nas mesmas. Para isso, utiliza os três efes: eficiência,
eficácia e efetividade na formação de educadores. São gestores, coordena-
dores e professores formados, que são a alma do sucesso de todo o processo
educacional.
De acordo com o IAS, o instituto oferece como soluções para os pro-
blemas da educação brasileira as seguintes características: efetivas, pois são
oferecidas de acordo com a necessidade de cada instituição; eficazes, por-
que dão certo; e eficientes, porque são viáveis (MISKALO, 2009). Nesse
caso, a efetividade diz respeito à capacidade de se promoverem resultados
pretendidos. Para Marinho e Façanha (2001), a eficiência denotaria com-
petência para se produzirem resultados com dispêndio mínimo de recursos
e esforços, e a eficácia, por sua vez, remete a condições controladas e a
resultados desejados de experimentos, critérios que, se deve reconhecer, não
se aplicam automaticamente às características e à realidade dos programas
sociais (p. 2), pois precisam de um grande trabalho para que sejam incorpo-
rados pelas pessoas que os utilizam.
Constata-se que, na área educacional do IAS, a eficácia é alcançada
quando os programas atingem seus objetivos, obtêm resultados satisfatórios
no processo ensino-aprendizagem e quando atendem às necessidades da so-
ciedade em geral e do aluno em particular. Nesse aspecto, parte do pressu-
posto de que produzir com melhor qualidade significa produzir com maior

259
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

produtividade, ou seja, com menos desperdício e menos retrabalho e, nesse


caso, com custos menores dentro de uma lógica empresarial.
O Instituto Ayrton Senna “trabalha com as redes de ensino na reali-
zação de diagnósticos educacionais, buscando compreender as necessida-
des de cada uma das redes segundo seu contexto geográfico, econômico e
sociocultural” (IAS, 2011). Para ele, o respeito a essas realidades leva à
construção de soluções customizáveis, capazes de atender às mais específi-
cas necessidades de cada rede. “Essa racionalidade permite evitar o des-
perdício do dinheiro público com ações que apenas remediam as consequên-
cias, sem solucionar as causas” (IAS, 2011). Essas ações customizáveis têm
como parâmetro o fazer mais com menos e para esse intento usam a padro-
nização muito utilizada em processos de gestão empresarial e é considera-
da, segundo Falconi (1992), “a mais fundamental das ferramentas geren-
ciais”, sendo à base da rotina. É a atividade sistemática de estabelecer e
utilizar padrões em que, após o padrão estabelecido, qualquer pessoa possa
utilizá-lo. Para compreender o conceito, é necessário conhecer o padrão
que é “um documento condensado estabelecido para um objeto, método, pro-
cedimento, responsabilidade, dever, [...] com o objetivo de unificar e simpli-
ficar de tal maneira que seja conveniente e lucrativo para as pessoas envol-
vidas” (FALCONI, 1992, p. 5).
Gomes (1994, p. 71), na mesma linha de Falconi (1992), define que
os padrões são “métodos específicos de trabalho para: planejar processos,
executar tarefas e treinar operadores”. Segundo ele, não se podem contro-
lar processos de trabalho diário sem padronização. A padronização para a
qualidade dos processos de rotina diária, segundo Gomes (1994, p.72), são:
“manter a escola sob controle, garantir domínio tecnológico e delegar auto-
ridade. Quando os principais processos de uma escola estão padronizados,
seu serviço torna-se previsível” (GOMES, 1994). É através da padroniza-
ção dos programas que o IAS chega a várias escolas do Brasil, pois utiliza
os mesmos processos independentemente se a escola é do norte ou do sul
do país, ou mesmo da concepção de educação que cada escola utiliza. Por-
tanto o controle, a produtividade, a eficácia, o foco nos resultados estão
presentes nos programas educacionais do IAS, assim como estão presentes
nas empresas, o que limita a atuação das redes e escolas e redefine a gestão
educacional.

260
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O foco em resultados está expresso também na cultura da avaliação.


Para o IAS, é “fundamental mensurar o processo e o que ainda necessita de
adequações para aprimorar o resultado, as soluções e as ações” (IAS, 2011).
Somado ao monitoramento do processo, utiliza-se de avaliações externas
dos resultados e do impacto gerado pelo trabalho realizado em parceria
com as redes escolares. Podemos verificar essa afirmação nas informações
abaixo em que o enfoque no resultado gerencial prepondera sobre o proces-
so de ensino-aprendizagem.

99,1% Administram as escolas de acordo com os padrões estabelecidos


97,4% Asseguram o cumprimento dos dias letivos previstos para o mês
98,9% Registram fielmente a assiduidade de todos os servidores da escola
98,5% Gerenciam os resultados mensais dos alunos
96,3% Tomaram decisões a partir do gerenciamento de dados
99,4% Favoreceram o desenvolvimento profissional da equipe
99,6% Foram acessíveis à comunidade escolar (pais, professores, alunos,
servidores)
99,1% Forneceram merenda regularmente
98,2% Asseguram em tempo a distribuição de material escolar aos alunos
97,2% Atenderam os prazos estabelecidos

Fonte: SIASI/Instituto Ayrton Senna, 2011. Relatório de Resultados 2011.

Da mesma forma, os coordenadores e professores demonstraram ter


desenvolvido competências para gerir o processo educacional, assumindo
a responsabilidade e o compromisso junto aos alunos. Avaliados individu-
almente pelos seus diretores, eles tiveram uma expressiva confirmação de
que, com a parceria, estão no caminho certo, adotando as boas práticas
propostas pelos programas Se Liga e Acelera Brasil.

98,85% Favoreceram a construção da boa autoestima pelos alunos


98,65% Seguiram as orientações gerenciais do programa
98,4% Planejaram coletivamente a partir das matrizes de habilidades
95,75% Consideraram o resultado das avaliações nos planejamentos

261
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

99% Dominaram os conteúdos a serem ensinados


97,65% Cumpriram a rotina prevista para o desenvolvimento da aula
98,5% Desenvolveram todas as atividades e conteúdos previstos no
material dos alunos
97,05% Mantiveram salas com ambientação pedagógica estimuladora da
aprendizagem
84,25% Leram todos os livros de literatura disponibilizados para a turma
98,85% Leram em voz alta para os alunos, pelo menos, uma vez por semana
94,15% Construíram semanalmente um texto coletivo
96,85% Atenderam as dificuldades dos alunos através de atividades
diversificadas
Fonte: SIASI/Instituto Ayrton Senna, 2011. Relatório de Resultados 2011.

Nessa lógica apresentada pelo IAS, o ensino está divorciado da apren-


dizagem. O sucesso ou fracasso da escola, dos professores e dos alunos
passa a ser equacionado a partir das suas possibilidades individuais, consti-
tuídas a partir de seu esforço e de sua adequação ao modelo imposto a ele.
Tal modelo é construído a partir da lógica mercadológica emprestada do
gerencialismo empresarial: relação custo/benefício, empreendedorismo,
eficiência/eficácia, competências e habilidades. Essa lógica visa transfor-
mar o cidadão político em cidadão-cliente. A avaliação dos professores é
realizada tendo como base os manuais do IAS: seguiram os manuais/não
seguiram os manuais, como mostram as questões elencadas acima.

Algumas considerações
Com base na exposição acima, evidenciamos que o IAS apresenta
uma proposta de gestão educacional pautada na lógica empresarial, a servi-
ço do mercado, e utiliza-se de promessas salvacionistas para inserir-se e
manter-se no campo da educação brasileira, que nas últimas décadas tem
sido foco de interesses diversos, inclusive lucrativos em termos econômi-
cos, uma vez que favorece, através de incentivos de isenção e/ou diminui-
ção de impostos, o empresariado brasileiro. Essas promessas encontram
sustentação nos constantes discursos, inclusive midiáticos, de que a educa-

262
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

ção pública brasileira encontra-se em estado de precariedade, fundamental-


mente pela ausência de uma gestão ‘eficiente e eficaz’, tal como funcionam
as empresas privadas, cujo foco encontra-se nos resultados.
Os programas do instituto funcionam como uma espécie de “carti-
lha” ou “apostila” com soluções para cada suposto problema da educação.
Se o problema apresentado é gestão, oferece-se o Programa Gestão Nota
10; se é alfabetização, o Programa é o Circuito Campeão. Isso remete à
afirmação de que há um projeto de sociedade sendo pensado e engendrado
pelos ideólogos que defendem a educação voltada para o mercado e não
para a democracia.
Esses programas são contraditórios ao processo de democratização
da educação brasileira, pois não há participação das diferentes comunida-
des escolares na elaboração dos mesmos e muito menos na necessidade e/ou
viabilidade em aplicá-los. No limite, os sujeitos participam apenas do ‘de-
bate’ de como operacionalizar o projeto já definido previamente pelo IAS.
Ou seja, os programas em ‘larga escala’, replicáveis, são heterônomos e
não possibilitam a participação dos reais interessados: a comunidade esco-
lar. Logo interferem e dificultam o exercício da gestão democrática da edu-
cação, cujos maiores princípios são a autonomia, a participação e o diálogo
da/na comunidade educativa, fundamentados nas suas características par-
ticulares em consonância ao campo universal em que se encontram. Para
Comerlatto (2013, p. 212),
a gestão da educação do IAS, através da sua proposta organizacional, estra-
tégica e gerencialista, abstrai-se das condições histórico-sociais dos sujeitos
da educação, desconsiderando a sua forma de viver, representar, pensar, cri-
ar, criticar e transformar, reduzindo-os a sujeitos executores de tarefas, re-
plicadores de propostas heterônomas, impondo-lhes um processo de coisifi-
cação humana (COMERLATTO, 2013).

Entendemos que a gestão gerencialista do IAS, cujo caráter é centra-


lizador, abstrato e tecnicista, promove a coisificação humana, produzindo,
conforme Marx afirma nos Manuscritos econômicos filosóficos, uma relação de
estranhamento do trabalhador ao produto de seu trabalho, devido ao cará-
ter alienante das relações, em oposição à promoção da autonomia, caracte-
rística da gestão democrática.

263
COMERLATTO, L. P.; CAETANO, M. R. • As parcerias público-privadas na educação brasileira...

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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/br. Acesso em: 10 out. 2009.

265
Sistema de ensino Aprende Brasil
– Grupo POSITIVO

Monique Robain Montano

Este artigo decorre de parte de uma pesquisa em andamento no gru-


po pertencente ao Núcleo de Política e Gestão da Educação da Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, que discute as “Parcerias entre
sistemas públicos e instituições do terceiro setor no Brasil, Argentina, Por-
tugal e Inglaterra: implicações para a democratização da educação”, coor-
denada pela Dra. Prof. Vera Maria Vidal Peroni.
Este artigo pretende expor algumas das reflexões acerca das implica-
ções entre o público e as instituições privadas para o ensino público a partir
da compra de sistema de ensino e de tecnologias educacionais produzidas
pelo Grupo POSITIVO1, quais sejam: para a gestão democrática, para o
acesso e para a melhoria da qualidade da educação pública.
Essa apreciação decorre de pesquisa documental e conteúdos dispo-
nibilizados no sítio da empresa em questão e sítios governamentais. Para
tanto, esta análise apresenta o contexto em que surgem as tecnologias da
educação, as características dessas e abrangência, seguida por uma análise
da parceria e suas implicações.
Num cenário de diminuição da atuação do Estado para a superação da
crise do capital, desempenhando um papel de regulador da economia para
evitar a redução dos lucros, abalizando o mercado como parâmetro de quali-
dade e bem como arrefecendo os investimentos para as políticas sociais, o
Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, oficialmente lançado pelo
Ministério da Educação em 2007, traz o discurso da potencialização da edu-
cação no país. As razões e os princípios apresentados para a consecução do

1
Sobre o tema ver ADRIÃO (2010); ADRIÃO, GARCIA, BORGHI (2009) e ADRIÃO et al.
(2009a).

266
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

plano afirmam que só há garantia do “[...]desenvolvimento nacional se a


educação for alçada à condição de eixo estruturante da ação do Estado de
forma a potencializar seus efeitos. Reduzir desigualdades sociais e regionais
se traduz na equalização das oportunidades de acesso à educação de qualida-
de” (p. 5). Constou da agenda do PDE o fortalecimento para a Educação
Básica, propondo o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação,
materializado nos municípios por meio do Plano de Ações Articuladas –
PAR. Entre os incrementos à qualificação da educação estão as tecnologias
educacionais2, política a ser executada pelos municípios, uma das ações inse-
ridas nas dimensões do PAR, com vistas à melhoria do IDEB.
Um dos programas do governo federal implantado e implementado
ao Distrito Federal, aos estados e municípios a partir de 2007, por meio do
Ministério da Educação – MEC, foi o Programa Nacional de Tecnologia
Educacional (ProInfo), que instrumentalizou as escolas públicas de Educa-
ção Básica com computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais.
Em contrapartida aos entes federados, compete garantir a estrutura ade-
quada para receber os laboratórios e capacitar os educadores para o uso das
máquinas e tecnologias. Ao aderir ao programa, os municípios assumiram
compromisso com as diretrizes do mesmo. Consta do termo que os entes
que aderirem ao programa deverão aprovisionar a infraestrutura adequa-
da, os serviços de manutenção e segurança para os ambientes tecnológicos
destinados às escolas e Núcleos de Tecnologia Educacional – NTE. Da
mesma forma, fica ao encargo desses a formação dos profissionais para
utilização pedagógica das Tecnologias da Informação e Comunicação-TICs,
além do fornecimento dos recursos e das condições necessárias ao trabalho
dos núcleos no desenvolvimento e acompanhamento das ações de capaci-
tação nas escolas. Também destina a responsabilidade do suporte técnico e
manutenção dos equipamentos nos laboratórios após o término da garan-
tia da empresa fornecedora.

2
As tecnologias educacionais compreendem material educativo, sejam Softwares ou Jogos Edu-
cacionais. Esses sistemas são moldados com conteúdos pré-determinados para utilização em
turmas de alunos, acompanhados por educadores, necessitando, no entanto, que esses profissio-
nais possuam conhecimento básico em informática.

267
MONTANO, M. R. • Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO

Concomitante a esse programa, o governo implantou também o Progra-


ma Nacional de Formação Continuada em Tecnologia Educacional (ProInfo
Integrado), voltado à formação dos profissionais da educação por meio de
portal e com disponibilização de conteúdos e recursos multimídia e digitais.
No ano de 2009, o Ministério da Educação abre edital com o objetivo
da identificação de parcerias que possuíssem tecnologias educacionais com
“potencial para promover a qualidade em todas as etapas da educação bási-
ca pública” (portal.mec.gov.br). A partir da chamada pública, avaliação e
pré-qualificação, o sítio governamental passa a divulgar parceiros que de-
senvolvem tecnologias educacionais em conjunto com as tecnologias de-
senvolvidas pelo Ministério da Educação, a fim de que essas possam ser
adquiridas para uso nas escolas públicas brasileiras pelos gestores educa-
cionais, com a finalidade de apoiar os sistemas públicos de ensino na busca
por soluções que promovam a qualidade da educação. Nesse cenário e com
esse fomento, a presença da iniciativa privada na educação pública cresceu
de forma significativa. O grupo POSITIVO consta nesse Guia das Tecnolo-
gias na relação dos portais educacionais.

O Grupo POSITIVO
Fundado na década de 1970, por um grupo de oito professores, ini-
ciou com um curso pré-vestibular e uma gráfica para impressão de material
didático. Posteriormente, ampliou sua atuação educacional abrindo uma
escola de Ensino Médio, investindo na produção de microcomputadores.
Cabe ressaltar que nessa época o Brasil ainda não estava aberto à importa-
ção de equipamentos informatizados. Na década de 1990, então, cria uma
universidade e expansão da produção de microcomputadores para atendi-
mento da demanda das escolas conveniadas privadas, aliando a oferta de
material impresso e equipamentos informatizados. Concomitante a isso, a
partir de uma reorganização, passou a distribuir seu sistema de ensino para
escolas conveniadas.
Dados do próprio site demonstram que a expansão da venda de siste-
mas de ensino para a rede pública ocorre a partir do ano de 2001, aproxi-
madamente. Destaca-se que, em meados da década de 1990, o Ministério

268
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

da Administração Federal e Reforma do Estado promove a Reforma do


Aparelho do Estado com a racionalização de recursos, diminuindo o seu
papel no que se refere ao investimento para as políticas sociais. Essa delimi-
tação das funções do Estado põe junto à redução do tamanho do Estado a
privatização, a terceirização e a transferência para o setor público não esta-
tal os serviços sociais e científicos que o Estado deveria prestar.
Atualmente, o Positivo promove, para a educação pública e privada,
desde a fabricação de microcomputadores até a produção de softwares, apli-
cativos educacionais e desenvolvimento de portais de internet. Hoje seus pro-
dutos estão direcionados para áreas do ensino-aprendizagem, formação de
profissionais da educação, gestão da educação e portais educacionais.
A partir das informações expressas no sítio, verifica-se que o grupo
Positivo comercializa tecnologias educacionais para países da América do
Sul, África, Europa, Ásia, Oriente Médio e Estados Unidos; no Brasil, co-
mercializa seus produtos nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.
Essa empresa oferta, entre outros, produtos nas áreas educacional, gráfico-
editorial e produtos de informática. Na área educacional, seus produtos
são destinados a dois públicos: para escolas da rede pública e para escolas
da rede privada, contidas nessa as suas próprias escolas. Os conteúdos de-
senvolvidos objetivam atingir a Educação Básica e Superior. Compreen-
dem os produtos da área educacional os sistemas de ensino e conteúdos
pedagógicos por meio de quatro portais: o Portal Aprende Brasil, o Portal
Educacional, o Portal Universitário e o Portal Positivo.
A área gráfico-editorial é composta por duas empresas: a Editora
POSITIVO e a POSIGRAF. A primeira oferta livros didáticos, paradidáti-
cos e de interesse geral, entre eles o minidicionário Aurélio e material de
apoio aos sistemas, como, por exemplo, a revista Aprende Brasil. Já a
POSIGRAF é responsável pela impressão dos livros didáticos das escolas
POSITIVO, revistas, periódicos, publicações especiais e impressos comer-
ciais e promocionais. A área da informática, além de produzir computado-
res, softwares, é responsável pelo desenvolvimento, gerenciamento das tec-
nologias educacionais, de serviços de capacitação de professores/usuários
e suporte técnico.
Conforme mencionado, a oferta da área educacional compõe-se de
dois sistemas de ensino, um destinado às escolas particulares e outro direcio-

269
MONTANO, M. R. • Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO

nado às escolas das redes públicas. Nos sistemas são encontrados conteúdos
programáticos, como áreas das linguagens, exatas, ciências humanas, entre
outras que atendem toda a Educação Básica com sugestões de atividades
ou mesmo planejamento de aulas. Entretanto, para acessar qualquer con-
teúdo ou recurso, faz-se necessário a instalação do sistema operacional pago.
Em ambos os sistemas, a compra ocorre por opção do gestor, seja da
escola da iniciativa privada ou pelo secretário de educação no caso para as
escolas da rede pública. Os produtos que compõem o sistema comercializa-
do para a rede privada compreendem livros didáticos, com conteúdos para
a educação infantil até cursos preparatórios para o ingresso no curso supe-
rior; assessoria pedagógica; assessoria em gestão escolar e o portal POSITI-
VO. Dos itens integrantes do sistema destinado à rede pública estão livros
didáticos, da Educação Infantil ao Ensino Médio; assessoria pedagógica; o
portal Aprende Brasil e o Sistema de monitoramento. No caso das redes
públicas, não há oferta de material preparatório para o ingresso no curso
superior.
Um olhar mais aproximado entre os itens dos produtos disponibili-
zados aos diferentes conveniados revela sutil diferença aqui expressa. A
assessoria pedagógica para a rede privada propõe-se o aperfeiçoamento e a
capacitação a partir de formação continuada para a equipe docente. Já para
a rede pública, apresenta como proposta a oferta de cursos e o atendimento
pedagógico personalizado com equipes de profissionais especializados, os
professores, os coordenadores das escolas e das secretarias de educação,
com vistas a subsidiar e garantir a funcionalidade do sistema.
Quanto à assessoria pedagógica especializada para as conveniadas
privadas está a oferta de suporte para garantia de adequação à proposta
metodológica das escolas parceiras; para as escolas da rede pública, a asses-
soria pedagógica personalizada implica tornar operacional o Sistema de
Ensino Aprende Brasil, a metodologia para o uso do livro didático, bem
como para a utilização das ferramentas e dos conteúdos disponibilizados
no Portal Aprende Brasil e para o planejamento e avaliação.
Quanto ao programa para os cursos ofertados pelo assessoramento
pedagógico, existe também um diferencial para aquele oferecido à iniciati-
va privada e aquele à rede pública; qual seja: para as escolas privadas o

270
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

curso tem o foco regional, nas áreas do conhecimento e de metodologia


visando ao aperfeiçoamento de gestores e formação continuada de profes-
sores. Para o sistema público, o curso apresenta dois eixos: um para a im-
plantação do Sistema de Ensino Aprende Brasil e sua proposta pedagógica
e o segundo com foco na metodologia com o objetivo de formação continua-
da, ou seja, uma padronização para todas as escolas com o objetivo de fun-
cionamento do sistema implantado e com a padronização de metodologia
que desconsidera a complexidade da escola, o compromisso e a construção
de um projeto político-pedagógico coletivo, longe do incentivo à autono-
mia dos professores, além de uma padronização curricular desconsideran-
do as diferenças sociais e culturais nos municípios e regiões.
O último item integrante da cesta do Sistema de Ensino Aprende
Brasil compreende o sistema de monitoramento, que se constitui em ferra-
menta tecnológica educacional de acesso do prefeito, do secretário de edu-
cação e dos gestores educacionais para verificação do desempenho da edu-
cação pública do município, visualizando as ações e atividades realizadas
nas escolas da rede. Esse sistema de monitoramento permite tanto à insti-
tuição privada como ao gestor público acompanhar o desenvolvimento do
programa. Com a possibilidade de monitoramento que o programa com-
prado pela Prefeitura oferece ao gestor ficam disponibilizados os dados do
município; já à empresa privada POSITIVO estão disponibilizadas as in-
formações de todos os sistemas públicos onde atuam, o que lhe permite a
apropriação de uma base de dados significativa, que lhe dá subsídios para
interferir nas políticas públicas educacionais. O sistema de ensino reserva-
do às escolas públicas totaliza o atendimento a 400 mil alunos em mais de
2.300 escolas públicas3 no país.
O caráter não governamental assumido pelo Terceiro Setor, que implica não
ser submetido ao controle institucional, aponta uma importante questão na
medida em que essas organizações têm um poder cada vez maior. Segundo
Fernandes, “formam um mercado de trabalho específico, influenciam a le-
gislação em seus mais variados domínios e condicionam os orçamentos dos
governos, das empresas e dos indivíduos” (FERNANDES, 1994, apud PE-
RONI, 2010, s/p.).

3
Dados disponibilizados no sítio do Grupo Positivo.

271
MONTANO, M. R. • Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO

Segundo consta no site, o grupo de empresas apresenta como missão


a formação do ser humano e pretende alcançar seu ideal por meio da edu-
cação integral e pela inovação tecnológica. A visão expressa no site preten-
de alcançar o patamar de referência empresarial na área da educação nos
mercados em que atua.
A Positivo Informática tem como estrutura de gestão um Conselho
de Administração e a Diretoria. O primeiro é um órgão colegiado de cará-
ter deliberativo, composto por sete conselheiros, na maioria acionistas. O
colegiado tem como atribuições a orientação geral dos negócios, eleição da
direção e fiscalização da concernente gestão. Quanto à diretoria, atualmen-
te é composta por 10 membros, sendo Hélio Bruck Rotenberg Diretor Pre-
sidente.

O sistema de ensino Aprende Brasil em prática


A adoção do sistema de ensino Aprende Brasil tem como implica-
ções a rigorosidade de conteúdos pensados para um programa anual, orga-
nizados em séries/anos e com orientações metodológicas para o trabalho
do professor e que tem como foco a sequência de aprendizagem de conteú-
do e a utilização do planejamento de forma inflexível para a ação docente.
É sabido que a diversidade presente regionalmente, de escola para escola e
entre turmas, exige a variação de práticas pedagógicas, em que o professor
faz muitas opções para os conteúdos a serem trabalhados, os objetivos a
serem alcançados e mesmo na avaliação, para que no decorrer da sua ativi-
dade o aluno obtenha sucesso em sua aprendizagem. Entendemos que o
planejamento não pode ser efetivado de maneira mecânica, desvinculado
do contexto em que está inserido e com o contexto dos alunos. Nessa con-
tratação, o segmento professores, no que tange ao processo pedagógico,
fica colocado à condição de executor de tarefas.
O sistema de monitoramento do portal Aprende Brasil permite a ex-
tração de relatório a partir do “login” do aluno ou do professor. O relatório
registra blogs acessados, atividades mais acessadas, quais escolas, horários,
conteúdos, acessos por escola. O monitoramento desenvolvido junto aos
professores caracteriza-se enquanto controle à medida que os professores

272
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

das turmas realizam relatórios de todas as atividades desenvolvidas com as


crianças em todos os dias da semana, a fim de entregá-los aos monitores do
Positivo. A construção de um projeto pedagógico elaborado pela escola,
assim como o planejamento coletivo possibilitam aos professores discuti-
rem a pertinência, bem como a significação do conteúdo para o planeja-
mento.
Tanto a Constituição Federal de 1988, assim como a Lei 9394/96
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, apontam para
uma educação gestada democraticamente em um processo construído co-
letivamente. Os educadores têm historicamente lutado pela democratiza-
ção da educação pública, e suas demandas a partir de muita luta foram
parcialmente incorporadas ao corpo de algumas legislações educacionais.
Também o MEC disponibiliza em seus documentos apontadores a qualida-
de gestada democraticamente, como colocado, por exemplo, no referencial
para os indicadores da educação de qualidade na educação, que dizem a
quem compete a definição pela qualidade.
Além da padronização do método e material, a adoção de sistemas
de ensino elaborados por parte dos gestores rompe com a proposta de
processo coletivo da educação pública, pensada a partir das questões sociais
colocadas para a escola enquanto consequência das diferenças sociais im-
postas pelo modelo econômico estabelecido; percebe-se a ausência do
acompanhamento do controle social na gestão e aplicação dos recursos
públicos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu
artigo 206, traz em seu bojo a gestão democrática como princípio, assim
como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, o princí-
pio da escola pública de qualidade, a liberdade de ensino e a construção dos
projetos pedagógicos participativamente construídos, fundamentados no
trabalho coletivo, fruto da luta da sociedade brasileira pela escola pública e
educação de qualidade para todos.
Importante destacar que a escola tem como função social o desenvol-
vimento pleno do indivíduo, e nesse sentido a LDBEN postula em seu Tí-
tulo II - Dos Princípios e Fins da Educação Nacional que:

273
MONTANO, M. R. • Sistema de ensino Aprende Brasil – Grupo POSITIVO

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios


de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cida-
dania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensa-
mento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VII - valorização do profissional da educação escolar;
VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legisla-
ção dos sistemas de ensino;
IX - garantia de padrão de qualidade;
X - valorização da experiência extraescolar;
XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
XII - consideração com a diversidade étnico-racial.

O contrassenso expresso na aquisição de sistemas de ensino padroni-


zados, à revelia do que estabelecem os princípios da legislação educacional
para uma educação pública, está para o desmantelamento de uma escola
que se entende enquanto lugar de concepção de cultura, construção de
aprendizagens, concepção, realização e avaliação de seu projeto educativo,
que organiza sua prática pedagógica com base na sua comunidade educacio-
nal e diversidade nela expressa. Nesse sentido compete ao Poder Público e à
sociedade o fortalecimento das relações entre escola e sistema de ensino para
a consolidação de uma escola pública democrática e de qualidade social.
Certamente uma mudança na concepção colocada para a melhoria
da educação necessita da mobilização das comunidades escolares, pensada
organicamente, bem como da ininterrupta luta dos educadores pela quali-
dade social da escola pública.

Referências
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privado sobre a política educacional local. FASE 1, 2010, 117 p.
______; GARCIA, T.; BORGHI, R.; ARELARO, R. Estratégias municipais para a
oferta da educação básica: análise de parcerias público-privado no estado de São Pau-
lo, 2009, 360 p.

274
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

______ et al. Uma modalidade peculiar de privatização da educação pública: a aqui-


sição de “sistemas de ensino” por municípios paulistas. Educ. Soc., out. 2009, vol.
30, n. 108, p .799-818.
BRASÍLIA. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil
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________. Presidência da República. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996.
Casa Civil, 1998.
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MEC (coordenadores). São Paulo: Ação Educativa, 2007, 3. ed. ampliada.
MÉSZAROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo; Campinas: Edito-
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PERONI, V. M. V. Políticas públicas e gestão da educação em tempos de redefinição do
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terceiro setor. Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra: implicações para a democra-
tização da educação. Porto Alegre, RS, financiada pelo CNPQ (2011-2014).
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http://portal.mec.gov.br/. Acesso em: 01 set. 2012.
http://www.pead.faced.ufrgs.br/. Acesso em: 01 nov. 2012.

275
Relação público-privada na
Educação Básica no Brasil: uma análise
da proposta do Instituto Unibanco
para o Ensino Médio público

Marcelisa Monteiro

Introdução
Este artigo apresenta uma análise da parceria entre o Instituto Uni-
banco e os governos estaduais na gestão da Educação Básica brasileira atra-
vés das tecnologias educacionais desenvolvidas para o Ensino Médio públi-
co mediante o questionamento sobre como o privado entra, influencia e se
materializa no setor público. Questões que advêm da pesquisa mais ampla
intitulada Parcerias entre sistemas públicos e instituições do terceiro setor: Brasil,
Argentina, Portugal e Inglaterra e as implicações para a democratização da educa-
ção, coordenada pela prof. Dra. Vera Maria Vidal Peroni.
Inicialmente, o artigo situa os movimentos do processo histórico e
as correlações de forças que permitem a entrada do setor privado no setor
público em forma de “quase mercado”, ou seja, quando o privado modi-
fica o conteúdo do público, mesmo mantendo-o público. Justificando, as-
sim, a presença do Instituto Unibanco nas escolas públicas em alguns
estados brasileiros. Para tal, o estudo apoia-se no referencial teórico com
base em Peroni (2010), Ball (2010), Freitas (2009), Wood (2003) e Gramsci
(1980).
A seguir, apresenta o Instituto Unibanco e, mediante resultados par-
ciais da análise documental, mostra as suas iniciativas no sentido de trans-
ferir seus programas para os governos estaduais em forma de políticas pú-
blicas, qualificadas pelo Ministério da Educação.

276
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A última parte é dedicada à análise, nos limites deste artigo, da con-


cepção político-educacional1 do conteúdo da proposta do Instituto Uni-
banco, enquanto um indicador que evidencia contradições entre o proces-
so de materialização da política através das tecnologias educacionais do
instituto e o avanço na democratização da educação. E as considerações
finais enfatizam os questionamentos sobre a parceria público-privada neste
estudo.

A entrada do Instituto Unibanco nas escolas públicas


A partir dos movimentos nacional e internacional, podemos perce-
ber as práticas neoliberais em relação às reformas educacionais iniciadas
na década de 1990 e lideradas pelos organismos internacionais – principal-
mente o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento –
que condicionam a concessão de empréstimos aos Estados nacionais da
América Latina à implantação dessas reformas2.
As correlações de forças entre o Estado e a sociedade civil são, cada
vez mais, constitutivas das políticas que vêm se materializando no Brasil.
No caso específico da educação, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (LDB/
96), que estava no bojo da reforma educacional brasileira, ilustra a reconfi-
guração do papel do Estado sob a ideologia neoliberal, em que ele passou a
concentrar a direção e o controle de todo o sistema, mas partilhando o
provimento desse serviço com a sociedade. Conforme a análise realizada
por Krawczyk e Vieira (2008), o debate em defesa da educação que vinha

1
Parte dos resultados desta análise advém da coleta de dados para construção do Projeto de
Tese: “Práticas Educativas: as relações de forças e a produção de sentidos no trabalho docen-
te”, que analisa o Projeto Jovem de Futuro, empreendido pelo Instituto Unibanco junto às
escolas públicas, apresentado em dezembro de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orien-
tação da Profa. Dra. Carmen Lucia Bezerra Machado.
2
Conforme Peroni (2010, p. 222), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvi-
mento (BID) organizam documentos específicos para cada país que tome seus empréstimos. O
memorando (CAS 1997) do Banco Mundial para o Brasil indica que o país deve “aumentar o
tempo de instrução e qualidade do ensino”, e, em contrapartida, a instituição “vai exigir uma
melhor definição nas contas nos níveis nacional e subnacional, um aumento da participação
do setor privado e da sociedade civil na educação e no melhor gerenciamento das escolas”.

277
MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

desde a disputa política pela democratização da sociedade na década de


1980 foi perdendo força, ao longo do processo de tramitação da LDB/96,
mudando a correlação de forças sociais e promovendo o projeto neolibe-
ral de Estado, o que alterou as prioridades e as orientações na política
educacional na década de 1990.
Após a década de 1990, esses movimentos se intensificam à medida
que o capital busca superar sua crise através de estratégias como neolibera-
lismo, globalização, reestruturação produtiva e Terceira Via, as quais rede-
finem a relação entre o público e o privado (PERONI, 2010). A partir des-
ses movimentos, fica evidente que a tão propalada separação entre econô-
mico e político, assim como entre Estado e sociedade civil, se trata apenas
de uma estratégia do capital para, através dos seus representantes ou, como
define Gramsci, da sua “fração de partido”, assegurar seus projetos, uma
vez que “o próprio liberalismo é um programa político, um programa que
interfere no programa econômico do Estado e em quem dirige o Estado”
(GRAMSCI, 1980, p. 32).
A separação entre o econômico e o político como uma estratégia do
capital também é apontada por Wood (2003), quando ela defende que, ao
deslocar questões essencialmente políticas como a disposição do poder de
controlar a produção e a apropriação ou a alocação do trabalho e dos recur-
sos sociais para outra esfera, o capitalismo privatiza o poder político.
A relação entre economia e política é basilar para entender a entrada
do setor privado no público, em especial na área da educação, quando as
políticas educacionais vêm se constituindo na relação e correlação de for-
ças entre os movimentos sociais, empresários, organismos governamentais
e não governamentais.
Nesse sentido, a Terceira Via, através do público não estatal – sem
fins lucrativos –, representa, neste estudo, a porta de entrada do Instituto
Unibanco às escolas públicas. Tendo em vista que os convênios e acordos
entre Estado e os setores privados permitem que as escolas continuem sen-
do públicas e gratuitas para os alunos, mas sob a lógica gerencialista da
gestão privada. Justificando, assim, a implementação de programas estraté-
gicos de gestão empresarial voltados à educação, entre os quais se encon-
tram as tecnologias e metodologias do Instituto Unibanco.

278
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

O Projeto Jovem de Futuro: validação e transferências


de tecnologias educacionais para os estados
O Instituto Unibanco foi criado no ano de 19823 com o propósito de
promover as ações e os investimentos sociais do Unibanco, que, atualmen-
te, integra o conglomerado Itaú Unibanco, mas foi a partir de 2007 que
direcionou o foco de suas atividades para o Ensino Médio público.
As relações entre o público e o privado com base nas interações dos
setores econômicos e políticos da sociedade vão se materializando nos acor-
dos de cooperação técnica para o desenvolvimento de estudos, projetos,
pesquisas e avaliações na área de educação entre o Instituto Unibanco, re-
presentado pelo seu presidente Pedro Moreira Salles, e a Secretaria de As-
suntos Estratégicos do Governo Federal (SAE), representado pelo ministro
Moreira Franco.
O foco do acordo, realizado em setembro de 20114, são as escolas
públicas de Ensino Médio, mediante a adoção do Projeto Jovem de Futuro do
Instituto Unibanco. E prevê três linhas de ação: capacitação, apoio técnico
e avaliação.
O Instituto Unibanco responde pela disponibilização de recursos e
dados necessários à execução dos trabalhos e indica um técnico para acom-
panhar as atividades previstas. Já a SAE oferece o apoio técnico e metodo-
lógico à elaboração de pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho de
Gestão de Conhecimento do Instituto Unibanco, além de se responsabili-
zar pelas avaliações de impacto dos projetos conduzidos pelo Instituto
Unibanco, realizadas por Ricardo Paes de Barros, o subsecretário da SAE,
e pelo pesquisador João Pedro Azevedo (Banco Mundial).
Wanda Engel, ex-chefe da Divisão de Desenvolvimento Social
do Banco Interamericano de Desenvolvimento e ex-ministra de Estado de
Assistência Social entre 1999 e 2002 na gestão de Fernando Henrique Car-

3
Esses dados foram extraídos do site www.institutounibanco.org.br, dos exemplares de divulga-
ção das tecnologias e metodologias do Instituto Unibanco, produzidos pelo próprio instituto e
distribuídos nas escolas que desenvolvem suas tecnologias e do http://portal.mec.gov.br/ do
Ministério da Educação.
4
http://www.sae.gov.br/site/?p=7567.

279
MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

doso, esteve à frente da superintendência executiva do Instituto Unibanco


até 2012. A partir de agosto de 2012, assumiu a superintendência o ex-
secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Minis-
tério da Educação, Ricardo Henriques. Já a presidência do Instituto Uniban-
co está sob a responsabilidade de Pedro Moreira Salles, presidente do conse-
lho de administração do Itaú Unibanco, e na vice-presidência, Pedro Sam-
paio Malan, ex-ministro da Fazenda do governo Fernando Henrique.
O Instituto Unibanco estabelece parcerias com estruturas governa-
mentais, empresas, organizações da sociedade civil (ONGs) e o meio aca-
dêmico. Entre as parcerias realizadas ao longo do ano de 20105, destaca-se
a Fundação Itaú Social (FIS), que apoiou uma série de linhas de pesquisa
patrocinadas pelo Instituto Unibanco sobre políticas públicas com vistas à
formação de professores e coordenadores pedagógicos, entre outras. Con-
forme o Relatório de Atividades de 2011 do Instituto, a parceria se mantém
através dos dois conselhos das instituições, que compartilham decisões e
estabelecem uma ação integrada.
Os projetos do Instituto Unibanco estão inseridos junto ao Guia de
Tecnologias do Ministério da Educação (MEC) de 2009, que faz parte do
Plano de Ações Articuladas (PAR). Esse compõe mais de 40 ações criadas
em conjunto com Municípios, Estados ou Distrito Federal, estando no bojo
do Plano de Desenvolvimento da Educação e do Plano de Metas Compro-
misso Todos Pela Educação (PDE). O Guia de Tecnologias do MEC está
dividido em seis blocos, e o Instituto Unibanco integra dois desses blocos:
Gestão da Educação, com o Projeto Jovem de Futuro, e Ensino-Aprendiza-
gem, com o Projeto Entre Jovens.
O Projeto Jovem de Futuro define-se por ser um projeto de Gestão Es-
colar para resultados, mantido por um fundo endowment 6, instituído para
financiar suas atividades. Tem como missão, mediante um apoio técnico e
financeiro, contribuir para o desenvolvimento de jovens em situação de

5
Dados extraídos do “Relatório de Atividades do ano de 2010” do Instituto Unibanco. Os rela-
tórios de atividades de todos os anos são disponibilizados no site e alguns deles nas escolas
onde o Projeto Jovem de Futuro é desenvolvido.
6
Conforme o Relatório de Atividades de 2010 (p.13), “as atividades do Instituto Unibanco são
mantidas por um fundo patrimonial, criado exclusivamente para esse fim. Esse sistema de
dotação não depende de aportes adicionais”.

280
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

vulnerabilidade, concebendo, validando e disseminando tecnologias e me-


todologias sociais para aumentar a efetividade das políticas e práticas vi-
gentes nas escolas públicas de Ensino Médio. Um dos seus objetivos estra-
tégicos é incentivar e apoiar a formulação de políticas públicas integradas
voltadas à juventude.
Quanto ao apoio financeiro, constitui-se em um repasse de R$ 100,00
por aluno e por ano. O recurso é entregue à Associação de Pais e Mestres
ou similar durante os três anos de duração do projeto na escola. Já quanto
ao apoio técnico, refere-se às capacitações em planejamento e gestão admi-
nistrativo-pedagógica, uso didático dos resultados de avaliações e suporte
técnico de um supervisor para grupos de cinco escolas.
Na fase de validação, o Instituto Unibanco é responsável direto pelo
Projeto Jovem de Futuro junto às escolas, que é desenvolvido em parceria com
as Secretarias de Educação, as quais definem suas prioridades geográficas
ou de grupos específicos de escolas. O projeto é apresentado ao grupo de
escolas prioritárias; logo após, as escolas que aderem são pareadas para a
realização de um sorteio que define a composição dos grupos de interven-
ção e de controle.
As escolas do grupo de intervenção ou de tratamento são aquelas
onde projeto vai ser desenvolvido efetivamente; já as escolas que compõem
o grupo de controle não participam diretamente da ação, mas servem de
parâmetro para avaliar a evolução proporcionada pela tecnologia; por isso
se comprometem a realizar todas as avaliações de desempenho propostas
pelo Instituto Unibanco, com o compromisso de se tornar grupo de inter-
venção no final de três anos. A avaliação de impacto é realizada pela com-
paração entre os resultados dos dois grupos.
Cabe à escola escolher um grupo gestor, constituído por integrantes
da comunidade escolar, o qual será responsável pela elaboração/execução
de um plano estratégico7 de acordo com as metodologias preestabelecidas

7
Conforme o “Manual para elaboração do Plano de Melhoria da Qualidade do Ensino” do
Instituto Unibanco – versão 24-2-2009, o método se baseia no “Marco Lógico, que é um méto-
do de planejamento desenvolvido no final dos anos 60 por uma empresa de consultoria privada
nos EUA, a pedido da United States Agency for International Development (USAID)”. Cabe
lembrar que a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)

281
MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

pelo instituto e que assuma o compromisso de melhorar o desempenho de


seus alunos, principalmente em língua portuguesa e matemática.
No ano de 2009, a distribuição geográfica das escolas e os investi-
mentos entre os estados em que o projeto foi sendo desenvolvido estão re-
presentados neste quadro:

Escolas atendidas pelo Instituto Unibanco por regiões – 2009

ANO/ 2009 Escolas Investimentos Atendimento


RS 22 R$ 3.362.000,00 37.394
MG 20 R$ 2.898.000,00 33.908
SP 46 R$ 5.127.000,00 66.000
Total 88 R$ 1.387.000,00 137.302
Fonte: www.institutounibanco.org.br

Em 2010, quando o Instituto Unibanco concluiu os três anos previs-


tos para a validação do Projeto Jovem de Futuro, a distribuição geográfica
de atendimento às escolas está representada no quadro abaixo:

Escolas atendidas pelo Instituto Unibanco por regiões – 2010

ANO/ 2010 Escolas


RS 22
MG 20
SP 41
RJ 15
Quadro elaborado a partir dos dados extraídos do Relatório de Atividades 2010 do Instituto
Unibanco

atua como reforço à política externa dos Estados Unidos. Os acordos entre o MEC-USAID
tiveram influência nas reformas do ensino brasileiro no período da ditadura militar e inseriam-
se num contexto histórico fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capi-
tal humano, isto é, pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econô-
mico. Sobre os acordos entre MEC-USAID, ver os estudos de ARAPIRACA, José Oliveira
(1982), ALVES, Márcio Moreira (1968) e GOERTZEL, Ted (1967).

282
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

A partir de 2011, após a avaliação do primeiro ciclo de três anos do


projeto, iniciou-se o processo de transferência. O projeto tornou-se política
pública através da parceria com o Governo Federal por meio do MEC e
com os governos dos estados de Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas
Gerais, Pará e São Paulo, denominando-se Programa Ensino Médio Inova-
dor/Jovem de Futuro (ProEMI/Jovem de Futuro).
A fase de transferência consiste na apropriação dos projetos do Insti-
tuto Unibanco por parte dos estados, ficando sob sua responsabilidade o
custeio de implantação, acompanhamento e avaliação, mas que será opera-
cionalizada com o apoio técnico do Instituto Unibanco através de Unida-
des de Apoio (UNAs) em cada capital para atuar em parceria com as equi-
pes das Secretarias de Educação.
Conforme o Relatório de Atividades de 2011 do Instituto Uniban-
co, na atual fase de transferência, a parceria público-privada passa a arti-
cular-se em três esferas de participação: ao Instituto Unibanco cabe res-
ponsabilizar-se em promover as capacitações em Gestão para Resultados
aos órgãos estaduais e às escolas; as Secretarias de Educação são respon-
sáveis pela supervisão; e o MEC fica responsável pelo financiamento. Ain-
da conforme o Relatório de Atividades 2011 (p. 24), “além de se associar
à proposta educativa do Instituto Unibanco, o MEC assumiu a responsa-
bilidade por repassar os recursos para o desenvolvimento da ação direta-
mente às escolas atendidas por meio do Programa Dinheiro Direto na
Escola (PDDE)8”.

8
“Criado em 1995, o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) tem por finalidade prestar
assistência financeira, em caráter suplementar, às escolas públicas da educação básica das re-
des estaduais, municipais e do Distrito Federal e às escolas privadas de educação especial man-
tidas por entidades sem fins lucrativos, registradas no Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS) como beneficentes de assistência social, ou outras similares de atendimento direto e
gratuito ao público. Em 2009, com a edição da Medida Provisória nº 455, de 28 de janeiro
(transformada posteriormente na Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009), foi ampliado para
toda a educação básica, passando a abranger as escolas de ensino médio e da educação
infantil.” Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/dinheiro-direto-escola/dinhei-
ro-direto-escola-apresentacao.

283
MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

Concepção político-educacional do Instituto Unibanco:


afinal estamos avançando na democratização da educação?
No Brasil, a luta dos movimentos sociais e dos trabalhadores em edu-
cação pela universalização, acesso e qualidade da educação sempre esteve
voltada aos direitos à igualdade, à justiça social e à proposta de uma forma-
ção humana para os cidadãos. Tais disputas continuam cada vez mais ten-
cionadas pela correlação de forças entre essas propostas dos movimentos
sociais e àquelas voltadas à formação de capital humano para adaptação à
organização e, atualmente, à reestruturação produtiva, que são empreendi-
das pelos empresários e agências multilateriais.
O pano de fundo dessas disputas é, portanto, a concepção político-
educacional que ora avança no sentido da democratização da educação,
pensando a formação da juventude de forma mais integral e humana, como
um direito do cidadão e uma obrigação do Estado com vistas a atingir a
justiça social, e ora limita esse movimento, ao pensá-la somente como for-
mação para o mercado de trabalho, cuja responsabilização é transferida
para os diferentes segmentos da sociedade.
O Instituto Unibanco, sendo um projeto social amplo, de âmbito eco-
nômico e de direção política, faz parte da correlação de forças que tomam
a educação e o currículo como campo de disputas. A sua proposta educati-
va, implementada junto às escolas, tem uma concepção de educação volta-
da à formação e à inserção das novas gerações no mercado de trabalho,
atribuindo a conclusão do Ensino Médio às condições de empregabilidade.
O Projeto Jovem de Futuro é uma tecnologia do Instituto Unibanco,
que, para ser operacionalizada no interior das escolas, conta com um apor-
te teórico-prático, que são as metodologias. Através das metodologias são
disponibilizados materiais didáticos para o desenvolvimento de uma série de
temáticas junto aos jovens, que vão desde projetos de vida, meio ambiente
até alguns bem específicos, como educação financeira, formação de líderes,
atitudes e comportamentos adequados para o mercado de trabalho. São
materiais didáticos, como, por exemplo, “Livro do Professor”, com plane-
jamentos prontos para serem trabalhados em sala de aula pelo professor,
mas também ações a serem realizadas por toda a comunidade escolar, que
implicam práticas de competitividade entre as escolas a fim de receber pre-

284
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

miações, como é o caso de uma metodologia chamada Superação, carro-


chefe do Projeto Jovem de Futuro, que envolve todas as escolas conveniadas
com o Instituto Unibanco.
Com o Projeto Jovem de Futuro desenvolvido nas escolas da Educação
Básica e pública dos estados brasileiros, o setor privado influencia o setor
público mediante uma gestão escolar para resultados, pautada por testes
padronizados e avaliações de desempenho. Tal empreendimento configura
o que Ball (2010, p. 28) chama de “contratualismos e formas jurídicas que
estão sendo estendidas ao processo educacional como um componente-chave
da economia do conhecimento”, em que o “valor do conhecimento passa a
ser determinado pelo seu impacto e que tem implicações nas novas formas
de gestão da sociedade e suas populações através do uso do conhecimento
governante”.
Ainda segundo esse autor, esse novo tipo de conhecimento – esse
regime de números – que constitui um recurso através do qual a vigilância
pode ser exercida e que é empregado em esquemas como o Programa Inter-
nacional de Avaliação de Alunos (PISA), sistemas nacionais de avaliação,
tabelas de desempenho escolar, comparações de testes, indicadores de ren-
dimento, etc., são formas com as quais os estados monitoram, dirigem e
reformam seus sistemas educacionais através de metas e intervenções acio-
nadas por desempenho (RINNE; KALLO apud BALL, 2010).
Nessa mesma linha, Freitas (2009) considera que o interesse do setor
privado nesses desempenhos e na agenda educacional com base em respon-
sabilização e meritocracia se deve ao fato das novas tecnologias demanda-
rem trabalhadores qualificados, mas também precarizados. Os testes pa-
dronizados, segundo esse autor, vêm responder ao interesse das corpora-
ções por informar, para além dos conhecimentos dos alunos, o nível socio-
econômico, sendo um importante instrumento de redirecionamento da for-
ça de trabalho.
Um dos argumentos do Instituto Unibanco para investir no Ensino
Médio é que “o acesso, permanência e conclusão do Ensino Médio podem
aumentar a inserção dos jovens no mercado de trabalho e ser o elemento de
quebra no ciclo intergeracional de pobreza” e que “o jovem que abandona
o Ensino Médio deixa de ser cliente das políticas de educação e tende a ser

285
MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

alvo das políticas de assistência social e de segurança pública”9. Tal concep-


ção evidencia a forma como o privado vem redefinindo o público, inclusive
“por dentro” da escola, não considerando a totalidade das políticas sociais
enquanto direito social dos cidadãos. E, mesmo desenvolvendo suas tecno-
logias através do Guia de Tecnologias do Ministério da Educação, ou seja,
sendo parte integrante das políticas educacionais do país, compreende-as
como um empreendimento em que os jovens são “clientes” e, tendo uma
proposição bem definida de formação para o mercado de trabalho e não
para formação enquanto um direito social de todo cidadão para constitui-
ção da sua condição humana, independente da necessidade de empregabi-
lidade.
Analisando as tecnologias e metodologias do Instituto Unibanco,
observamos que, para além do foco no mercado de trabalho, os testes pa-
dronizados desconsideram a diversidade dos jovens e as diferentes realida-
des escolares. Apontam, portanto, uma contradição em relação às exigên-
cias do próprio capital, em relação à força de trabalho, porque vivemos um
grande avanço tecnológico, em que se fazem necessárias agilidade de racio-
cínio, autonomia, criatividade, bem como novas formas de sociabilidade e
de pensar a juventude. Conforme Oliveira e Gomes (2011, p. 77), “vivemos
um momento no qual não se pode mais pensar a juventude como um reser-
vatório de uma futura massa de trabalhadores”.
A proposta de gestão do Instituto Unibanco prevê uma organização
pautada pela separação entre o planejamento e a execução, bem como a
divisão fragmentada para execução do trabalho no espaço escolar, seguin-
do a lógica hierárquica do modelo empresarial. O Projeto Jovem de Futu-
ro, por exemplo, desenvolve-se dentro da escola a partir de planos de ação
com metas e resultados esperados, pré-determinados pelo Instituto Uni-
banco, com uma margem de autonomia para elaboração de atividades e
subatividades planejadas por uma equipe gestora que tem uma pequena
representatividade da comunidade escolar e sequer é escolhida por esta co-
munidade. Portanto, vai na contramão da ideia de um planejamento parti-

9
Exemplar de divulgação do Instituto Unibanco intitulado: “O que faz o Instituto Unibanco”,
distribuído nas escolas estaduais com as quais tem convênio e disponibilizado no seu site.

286
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

cipativo e coletivo, enquanto uma ferramenta do processo de gestão demo-


crática da educação.
Tendo em vista que o conteúdo do modelo de gestão do Instituto
Unibanco tem como objetivo “aplicar suas ações em qualquer realidade,
mantendo a concepção e o desenvolvimento de suas tecnologias e metodo-
logias educacionais dentro de um ciclo de produção que visa blindar essas
iniciativas contra possíveis desvios em sua futura transferência e reprodu-
ção”10. Questionamos a possibilidade de uma efetiva democratização por
meio das suas práticas educativas, uma vez que se apoiam em instrumentos
pedagógicos padronizados e replicáveis de forma indiscriminada, descon-
siderando as particularidades regionais construídas historicamente e a im-
portância da autonomia das comunidades escolares na elaboração dos seus
próprios projetos político-pedagógicos.

Considerações finais
A análise das tecnologias e metodologias educacionais do Instituto
Unibanco, enquanto parte do movimento histórico e das correlações de
forças constitutivas das políticas educacionais, permitiram alguns questio-
namentos sobre as implicações decorrentes das parcerias entre o sistema
público e as instituições do terceiro setor para o processo de democratiza-
ção da educação.
As disputas em torno dos programas a serem implementados junto
às escolas públicas representam disputas entre projetos societários diferen-
tes, por isso a universalização da educação, a ampliação do acesso, a quali-
dade, a inclusão e a autonomia são antigas questões de luta da sociedade
brasileira em relação ao processo de democratização. Tomando-os como
indicadores, percebemos que, se por um lado, o Estado incrementa as polí-
ticas públicas, disponibilizando uma série de programas destinados à edu-
cação de maneira geral e ao Ensino Médio, em particular, promovendo sua
expansão. Por outro, ao repassar para o setor privado o poder de definição

10
Conforme apresentação do Ciclo de Produção de Tecnologias e Metodologias encontrado no
Relatório de Atividades do Instituto Unibanco, referente ao ano de 2010.

287
MONTEIRO, M. • Relação público-privada na Educação Básica no Brasil

da concepção e do conteúdo das propostas para a educação destinada aos


jovens que se formam nos espaços escolares públicos, modifica o caráter e
os sentidos das questões de luta.
Percebemos um aumento dos programas e projetos voltados à Edu-
cação Básica, mas, por outro lado, existem indícios de uma perda em rela-
ção à gestão democrática das escolas, como, por exemplo, referente aos
projetos político-pedagógicos, que não sabemos até que ponto ainda são
resultantes de uma construção participativa e coletiva da comunidade es-
colar. Tendo em vista que, de maneira geral, os programas do setor priva-
do replicam modelos de planejamentos para serem executados pelas es-
colas, como no caso do Instituto Unibanco, que propõe o Plano de Me-
lhoria da Qualidade do Ensino Médio11 para escolas de diferentes estados
brasileiros.
Contudo, questionamos a intervenção do setor privado, em especial,
as tecnologias educacionais do Instituto Unibanco tanto pelas implicações
ao processo de democratização da educação como pelas contradições evi-
denciadas. Entre elas, destaca-se a proposta que o projeto tem para as esco-
las, a qual se baseia numa organização do trabalho que divide a comunida-
de escolar entre aqueles que são responsáveis por planejar, organizar, exe-
cutar, controlar e avaliar de forma hierárquica e fragmentada, num período
em que os intelectuais orgânicos do capital sugerem a formação de quadros
de profissionais multifuncionais, com capacidade de tomar decisões, autô-
nomos e empreendedores.
Nesse sentido, encontramos contradições entre as próprias propostas
dos setores privados e o momento particular do capitalismo. Pois vivemos
um tempo que demanda novas formas de sociabilidade para uma juventu-
de que nasceu na era tecnológica, sendo contraditória uma formação com
base em instrumentos, tecnologias e metodologias padronizadas.

11
Ver www.institutounibanco.org.br.

288
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Referências
ANDRÉ, Claudio Fernando (Org.). Guia de Tecnologias Educacionais 2009. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2009.
BALL, Sttephen J. Vozes/Redes Políticas e um Currículo Neoliberal Global. In:
PEREIRA, Maria Zuleide Costa [et al.] (Orgs.). João Pessoa: Editora Universitária
da UFPB, 2010.
INSTITUTO UNIBANCO. Relatório de Atividades 2010. Publicação Instituto Uni-
banco. Itaim Bibi, SP, junho/2010.
FREITAS, Luiz Carlos. Responsabilização, meritocracia, privatização: conseguiremos esca-
par do neotecnicismo? Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br/seminário 3>.
2011.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 1980.
KRAWCZYK, Nora Rut; VIEIRA, Vera Lúcia. A reforma educacional na América
Latina nos anos 1990: uma perspectiva histórico-sociológica. São Paulo: Xamã, 2008.
OLIVEIRA, Ramon de; GOMES, Alfredo M. A expansão do ensino médio: esco-
la e democracia. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 5, n. 8, p. 69-81, jan./jun.
2011. Disponível em: <http://www.esforce.org.br>.
PERONI, Vera Maria Vidal. A democratização da educação em tempos de parce-
rias entre o público e o privado. Revista de Educação Pública – v. 19, n. 40, maio-ago.
Cuiabá: EdUFMG, 2010.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialis-
mo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.

289
O Programa Nacional de Acesso ao
Ensino Técnico e Emprego – Pronatec:
um olhar a partir das relações
entre o público e o privado

Maurício Ivan dos Santos


Romir de Oliveira Rodrigues

Introdução
Nos últimos anos, com o crescimento econômico experimentado na
economia brasileira, um dos elementos que tem ganhado destaque na agenda
nacional é a questão da qualificação dos trabalhadores para acompanhar
esse processo de expansão econômica. Nessa perspectiva, o debate sobre a
Educação Profissional e Tecnológica – EPT, em todos os seus níveis, assu-
me uma posição central e torna-se um campo de disputa entre os vários
sujeitos, públicos e privados, envolvidos com esse nível de ensino.
Buscando interferir nesse cenário, foi criado pelo governo brasileiro,
por meio da Lei 12.513, em 26 de dezembro de 2011, o Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec –, que se constitui em
um conjunto de ações que visam ampliar a oferta de vagas na EPT brasilei-
ra. Com metas ousadas de atender oito milhões de beneficiados, criação de
200 novas escolas técnicas federais e investimento de um bilhão de reais, o
Pronatec ocupa, atualmente, o centro do debate sobre a Educação Profissi-
onal e apresenta, em sua estrutura, espaços onde se evidenciam relações
entre o público e o privado para o atendimento de suas metas.
Este texto tem como objetivo analisar o Pronatec em sua dimensão
de política pública e, principalmente, nos aspectos em que são identificadas
inter-relações entre o público e o privado de maneira a possibilitar a emer-
gência das contradições em suas concepções e práticas.

290
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Por se tratar de um programa em fase inicial de implantação e no


recorte específico deste texto, a metodologia utilizada foram a análise de
fontes primárias, documentos e leis que o estabeleceram e a revisão biblio-
gráfica sobre os temas relacionados à EPT e ao contexto do sistema do
capital na atualidade.
É importante ressaltar que as ideias apresentadas são resultado de
um processo de pesquisa que tem uma dupla vinculação: primeiro, respon-
de ao Programa de Fomento Interno do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS – Campus Canoas,
dentro do projeto “A Relação entre o Público e o Privado na Educação
Profissional e Tecnológica em tempos de redefinição do papel do Estado”;
segundo, integra o Projeto Produtividade “Parcerias entre sistemas públi-
cos e instituições do terceiro setor: Brasil, Argentina Portugal e Inglaterra e
as implicações para a democratização da educação”, coordenado pela pro-
fessora Doutora Vera Maria Vidal Peroni, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
Para atingir o objetivo proposto, o texto está organizado em três se-
ções, que, apesar de suas especificidades, estão organicamente articuladas.
A primeira seção trata dos elementos estruturais que fundamentam a con-
cepção e a implantação do Pronatec, com destaque para a discussão do
Novo-Desenvolvimentismo, que desenha um novo papel para o Estado, e
do propalado “apagão” da mão de obra, considerado um obstáculo para o
atual processo de desenvolvimento econômico brasileiro e fundamento dos
discursos que embasam o programa. As ações do Pronatec são desdobra-
das na segunda seção, com destaque para as que apresentam evidências de
repasse de recursos públicos para o setor privado. Na terceira seção, são
apontadas algumas questões para a compreensão do Pronatec no atual ce-
nário da EPT brasileira, em especial nas relações previstas entre entes pú-
blicos e privados, e indicados alguns movimentos necessários para a conti-
nuidade da pesquisa com o objetivo de avaliar os possíveis desdobramentos
do programa para a democratização da educação profissional.

291
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

Novo-Desenvolvimentismo e o “apagão” da mão de obra:


as bases estruturantes do discurso de implantação do Pronatec
As políticas públicas para a Educação Profissional e Tecnológica,
como todas as políticas sociais, devem ser cotejadas com as políticas econô-
micas, pois, como lembra Vieira (1992, p. 21), “não se pode analisar a polí-
tica social sem se remeter à questão do desenvolvimento econômico, ou
seja, à transformação quantitativa e qualitativa das relações econômicas,
decorrentes do processo de acumulação particular do capital”.
Como características centrais do atual período do capitalismo, Pero-
ni (2008) salienta que, para superar a crise nas taxas de lucro, especialmen-
te a partir da década de 1980, foram implantadas estratégias de superação –
neoliberalismo, globalização, reestruturação produtiva e terceira via – que
acabaram por redefinir o papel do Estado, diminuindo sua atuação como
executor das políticas sociais.
Embora integrando esses movimentos, Branco (2009) aponta que o
contexto político sul-americano se modifica a partir do final da década de
1990, quando o modelo neoliberal apresenta sinais de esgotamento, com a
consequente estagnação econômica dos países dessa região. Boschi e Gai-
tán (2008, p. 306), ao examinarem esse período histórico, apontam para
uma “virada ideológica na orientação dos governos em direção a concep-
ções antineoliberais”. Acompanhando esse movimento, o Brasil apresenta
uma alteração na função do Estado, que passa a operacionalizar novas di-
nâmicas, que, em seu conjunto, podem ser caracterizadas, segundo Bresser
Pereira (2006), Branco (2009) e Veiga (2006), como Novo-Desenvolvimen-
tismo.
Na definição de Bresser Pereira (2006, p. 12), o Novo-Desenvolvi-
mentismo consiste “em um conjunto de propostas de reformas institucio-
nais e de políticas econômicas, por meio das quais as nações de desenvolvi-
mento médio buscam, no início do século XXI, alcançar os países desen-
volvidos”. Para isso, o autor (2006, p. 18) afirma que “as instituições devem
garantir a propriedade e os contratos ou, mais amplamente, o bom funcio-
namento dos mercados, que esses, por sua vez, promoverão automatica-
mente o desenvolvimento” (BRESSER PEREIRA, 2006). O Estado passa
a ter, na avaliação de Bresser Pereira (2006), a função de propor um “gran-

292
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

de acordo” entre as classes sociais, uma integração entre os diferentes estra-


tos, visualizando o horizonte comum do desenvolvimento econômico, for-
mando assim uma “verdadeira nação”.
Em contraposição, Branco (2009, p. 78) coloca que, desde sua ori-
gem, o Estado moderno funciona como “o guardião, em última instância,
da ordem burguesa, que produz e reproduz as desigualdades sociais de di-
versas formas, com central importância na existência da propriedade priva-
da”. Dessa forma, o “grande acordo” social proposto pelos novos-desen-
volvimentistas, com o objetivo comum de alcançar o desenvolvimento eco-
nômico, induzido por um Estado promotor do bem-estar universal, acima
dos interesses de classe, não é aplicável no âmbito do capitalismo. Na
dinâmica do sistema do capital, o Estado configura-se como ator funda-
mental, reforçando, através de suas políticas, sua atuação como represen-
tante dos interesses do capital, criando as condições necessárias para a
sua reprodução.
Nesse sentido, o protagonismo do Estado para o fortalecimento do
sistema do capital, pode ser traçado um paralelo com o Nacional-Desen-
volvimentismo brasileiro, característico das décadas de 1940 a 1970, que,
baseado em trabalhos produzidos por intelectuais cepalinos1 e isebianos2,
representou uma alternativa para a superação do subdesenvolvimento lati-
no-americano e consequente consolidação do capitalismo nessa região. O
Nacional-Desenvolvimentismo previa uma intervenção direta do Estado
na economia, atuando como promotor do desenvolvimento a partir de in-
vestimentos na infraestrutura através de obras estruturantes.

1
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi criada em 25 de feve-
reiro de 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e tem sua
sede em Santiago, Chile. É uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas
(ONU). Foi criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento
econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção
e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as
demais nações do mundo.
2
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros ou ISEB foi um órgão criado em 1955, vinculado
ao Ministério de Educação e Cultura, dotado de autonomia administrativa, com liberdade de
pesquisa, de opinião e de cátedra, destinado ao estudo, ao ensino e à divulgação das ciências
sociais. O instituto funcionou como núcleo irradiador de ideias e tinha como objetivo principal
a discussão em torno do desenvolvimentismo e, a princípio, a função de validar a ação do
Estado durante o governo de Juscelino Kubitschek. Foi extinto após o golpe militar de 1964.

293
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

Porém, no quadro teórico do Novo-Desenvolvimentismo, esse prota-


gonismo estatal assume contornos diferenciados e, apesar de também pre-
ver um forte planejamento no setor de infraestrutura, modificam-se os pro-
cedimentos. Segundo Branco (2009), o Estado passa a atuar como uma
instância reguladora das atividades econômicas, criando as condições pro-
pícias para o capital realizar seus investimentos financeiros. Essa mudança
no papel do Estado durante o Novo-Desenvolvimentismo se consolida, entre
outras formas, por meio do repasse de verbas públicas para o setor privado
nas chamadas Parcerias Público-Privadas – PPP. Um exemplo disso pode
ser percebido a partir dos investimentos destinados às diversas etapas e ações
do Plano de Aceleração da Economia – PAC3, onde grandes obras estrutu-
rais, em vários setores, como de transportes, são transferidos para a inicia-
tiva privada através de concessões de uso e financiadas por instituições pú-
blicas de fomento.
Trata-se, portanto, de um Estado que, amparado em um projeto de
desenvolvimento que articula os interesses particulares nacionais e regio-
nais, como afirmam Boschi e Gaitán (2008, p. 306), “pode se constituir
como regulador das assimetrias do mercado e como garantia das condições
de inclusão social”. Visando atingir esse objetivo, emerge o conceito de
“Equidade Social”, apontado por Sicsú, Paula e Michel (2004) como um
dos pilares fundamentais do Novo-Desenvolvimentismo e consolidado em
estratégias de transformação produtiva que permitam compatibilizar um
crescimento econômico sustentável com uma melhor distribuição de ren-
da. No entanto, Branco (2009) questiona essa linha de raciocínio ao anali-
sar que, mesmo apresentando um viés mais progressista para a abordagem
do conceito, permanecem inalteradas suas características essenciais de na-
turalização das relações econômicas e de colocar o indivíduo e, portanto,
suas diferenças como centro dos processos capitalistas. Nesse sentido, o
autor afirma:

3
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi criado em 2007 no segundo mandato
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2007-2010) e se propôs a retomada do planejamento
e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país,
contribuindo para o seu desenvolvimento acelerado e sustentável, o aumento da oferta de
empregos, a geração de renda e a elevação do investimento público e privado em obras fun-
damentais.

294
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Hoje se admite amplamente que as diferenças naturais podem ser, em boa


medida, neutralizadas por competências adquiridas através, por exemplo,
da educação, que passa a ser instrumentalizada como um meio de capacitar
seres humanos para a concorrência no mercado de trabalho. Em termos
políticos, os novo-desenvolvimentistas, ao se guiarem pelo conceito de equi-
dade social, defendem a promoção da igualdade de oportunidades entre os
indivíduos via educação. A educação, portanto, antes uma forma de eman-
cipação humana, fica, de acordo com essa perspectiva, inteiramente subor-
dinada aos requisitos de habilidades necessárias aos processos de produção
de mercadorias comandados pelo capital (BRANCO, 2009, p. 82).

Nessa composição, a qualificação da mão de obra é compreendida


como investimento econômico, insumo para o desenvolvimento dos pro-
cessos produtivos e não como direito dos trabalhadores. É a Teoria do Ca-
pital Humano, resgatada em suas bases, reafirmando o tecnicismo na busca
por superar a defasagem entre os avanços tecnológicos e a capacidade dos
trabalhadores em lidar com eles, origem de um suposto “apagão” de mão
de obra. A educação profissional torna-se, então, uma ferramenta central
para suplantar essa defasagem e, ao mesmo tempo, relega para o âmbito da
iniciativa pessoal a busca por qualificar-se para a inserção no mercado de
trabalho.
Analisando a questão do “apagão” da mão de obra no Brasil, Nasci-
mento (2011) esclarece que a escassez de mão de obra, em termos econômi-
cos, seria representada por uma demanda superior à oferta disponível de
profissionais com o perfil buscado pelos empregadores. Em seu estudo, o
autor utiliza a evolução dos salários e a rotatividade como indicadores para
verificar a existência de uma efetiva carência de trabalho qualificado, espe-
cialmente em ocupações típicas de carreiras técnico-científicas de nível su-
perior e médio, sendo as últimas o foco dos cursos previstos no Pronatec.
Para isso analisou os dados mensais do Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados – CAGED –, do Ministério do Trabalho e Emprego, no pe-
ríodo de janeiro de 2003 a junho de 2011, concluindo que: (i) a taxa de rota-
tividade, que corresponde à diferença entre o número de admitidos e desliga-
dos em um determinado período, mostra-se estável; e (ii) o diferencial salari-
al entre os admitidos e desligados permanece negativo, com os admitidos
obtendo rendimentos médios no mínimo 15% inferiores aos desligados.
Portanto, ao analisar esses dados, Nascimento (2011, p. 26 e 27) con-
clui que eles “não sugerem que o Brasil tenha passado qualquer período de

295
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

escassez generalizada de profissionais de carreiras técnico-científicas” (NAS-


CIMENTO, 2011). O autor destaca, porém, que, devido ao fato de estarem
agregadas ocupações muito diversas no escopo da pesquisa, em nível mais
detalhado, possa se “revelar escassez de profissionais em ocupações especí-
ficas” (NASCIMENTO, 2011).
Reforçando essa análise, a pesquisa de Nonato, Pereira, Nascimento
e Araújo (2011) sobre o perfil da força de trabalho brasileira apresenta um
quadro de aumento da escolaridade da População em Idade Ativa – PIA.
Avaliando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD
– e de projeções demográficas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE –, os autores (2011, p. 34) demonstram que “a parcela
da PIA com maiores níveis de escolaridade tem apresentado um aumento
significativo, de forma que, no final da década de 2000, 40,4% da PIA já se
encontravam nos níveis médios e/ou superior de escolaridade”. Esses da-
dos apresentam maior contraste quando cotejados com os indicadores do
início da década de 1980 que apresentavam, nessa mesma escolaridade,
apenas 12,7% da população. Nesse sentido, os autores da pesquisa (2011,
p. 35) apontam para os próximos anos que a PIA no Brasil “apresentará
um perfil com nível de escolaridade cada vez maior, devido à permanência
mais prolongada da população na escola e à expansão nos níveis de ensino
médio e superior, bem como em vista das perspectivas de crescimento da
educação profissional, científica e tecnológica”.
Essa contradição entre os dados apresentados pelas pesquisas avalia-
das e o discurso sobre o “apagão” da mão de obra, presente na fundamen-
tação do Pronatec, precisa ser compreendida no conjunto de movimentos
que constituem o programa. Ainda mais quando esse fenômeno tornou-se
uma das principais justificativas para a emergência na implantação do pro-
grama e argumento presente nas análises realizadas pelos meios de comu-
nicação e, portanto, de forte impacto na população.

O Pronatec na fronteira entre o público e o privado


A Educação Profissional e Tecnológica consolida-se, na última déca-
da, como uma das principais políticas públicas implantadas pelo Governo
Federal na área da educação, sendo composta por um conjunto de ações e

296
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

programas desde a reformulação das Escolas Técnicas e Centros Tecnoló-


gicos, com a implantação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia4, até programas focalizados, como o Mulheres Mil5. Em seu
conjunto, essas ações e programas levaram a Rede Federal a apresentar o
incremento, no período 2006 a 20106, de 107% nas matrículas da rede fede-
ral, considerando apenas as ofertas articuladas ao Ensino Médio, e de 75%
no número de estabelecimentos. Se a análise for ampliada, envolvendo to-
das as redes públicas (federal, estadual e municipal), os resultados demons-
tram um aumento de 80,97%7 nas matrículas durante esse mesmo período.
Todo esse incremento, porém, não consegue reverter a característica
histórica de predomínio da oferta privada da EPT no Brasil, que, em 2010,
respondia por 56,49%8 do total das matrículas. Nesse cenário, o Sistema
Nacional de Aprendizagem (Sistema S) assume um papel destacado, confor-
me corrobora o fato de, em 2010, o Serviço Nacional da Indústria (SENAI)
responder, isoladamente, por 28%9 das matrículas na Educação Profissio-
nal de nível técnico na rede privada.
Segundo Manfredi (2002), o Sistema S, criado na década de 1940
durante o Governo Vargas10, representa, na sua origem, uma estratégia
empregada pelos industriais paulistas para disciplinar o trabalhador brasi-
leiro e garantir a paz social, alicerçando-se nas premissas de colaboração
entre capital e trabalho e na representação de que a indústria interessava a

4
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia foram criados em dezembro de 2008
pela Lei 11.892, formando um novo modelo de educação profissional, oferecendo cursos téc-
nicos em nível médio, cursos superiores de tecnologia, licenciaturas, mestrados e doutorados.
5
Ação voltada, inicialmente, para a formação de mil mulheres em situação de risco social das
regiões Norte e Nordeste, articulando elevação de escolaridade e formação profissional, acha-
se atualmente disseminada em outras regiões do país.
6
Dados do Inep/Mec.
7
Dados do Inep/Mec.
8
Dados do Inep/Mec.
9
Relatório Anual SENAI 2010. Disponível em: <http://www.senai.br/infografico/relatorioa-
nual2010/relatorio_anual_2010.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2012.
10
Cabe ressaltar que, durante a década de 1940, o Governo Vargas, conhecido como o Estado
Novo, foi um período ditatorial marcado por medidas de total intolerância e cerceamento, por
exemplo, diante das iniciativas autônomas dos trabalhadores, em razão do controle e do en-
quadramento sindical, com a promulgação da legislação de natureza corporativista.

297
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

todos os brasileiros, independente da classe social. O Sistema S possui uma


estrutura híbrida, na qual sua gestão é privada, orientada por empresários,
sem a efetiva participação do governo e trabalhadores. No entanto, a maior
parte de seus recursos é pública, proveniente das contribuições compulsórias
incidentes sobre a folha de pagamento das empresas de determinados seto-
res, arrecadadas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), ór-
gão do governo federal.
Segundo Cunha (2000), o Sistema S foi adequando seu projeto às
transformações econômicas e políticas ocorridas na sociedade brasileira,
passando por três fases: a primeira, nos anos 1950 e 1960, com a expan-
são da industrialização de base, quando a aprendizagem foi substituída
pelo treinamento a partir de cursos de curta duração. Na segunda, nos
anos 1970, devido às transformações na legislação educacional, foram
criados cursos técnicos de nível médio, voltados a determinadas especiali-
dades. A terceira, a partir do final da década de 1990, devido à reestrutu-
ração dos processos produtivos advindos da globalização econômica e a
transformações ocorridas nas políticas educacionais, foram criados cur-
sos de nível superior e programas de consultoria e assessoria, indo, por-
tando, além da educação.
Buscando interferir nesse contexto, o Programa Nacional de Acesso
ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec – contempla um conjunto de
ações que visam ampliar a oferta de vagas na EPT brasileira. Para atingir
suas metas, os objetivos do Pronatec são: (i) expandir, interiorizar e demo-
cratizar a oferta de cursos de Educação Profissional Técnica de nível médio
e de cursos e programas de Formação Inicial e Continuada (FIC) de traba-
lhadores; (ii) fomentar e apoiar a expansão da rede física de atendimento
da Educação Profissional e Tecnológica; (iii) contribuir para a melhoria da
qualidade do Ensino Médio Público por meio da educação profissional; e
(iv) ampliar as oportunidades educacionais dos trabalhadores por meio do
incremento da formação profissional.
Para cumprir esses objetivos, foram definidas as seguintes ações: (i)
ampliação de vagas e expansão da Rede Federal de Educação Profissional
e Tecnológica; (ii) fomento à ampliação de vagas e à expansão das redes
estaduais de educação profissional; (iii) incentivo à ampliação de vagas e à

298
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

expansão da rede física de atendimento dos Serviços Nacionais de Apren-


dizagem; (iv) oferta de Bolsa-Formação nas modalidades Estudante e Tra-
balhador; (v) financiamento da Educação Profissional e Tecnológica (FIES);
e (vi) expansão da oferta de Educação Profissional e Técnica de nível mé-
dio na modalidade de educação a distância – E-TEC.
Visando à concretização dessas ações, o Pronatec desenvolve as se-
guintes iniciativas: (i) expansão da Rede Federal de EPT; (ii) Bolsa-Forma-
ção Estudante e Trabalhador, essa última nas modalidades Seguro-Desem-
prego e Inclusão Produtiva; (iii) FIES Técnico Estudante e Empresa; (iv) E-
TEC Brasil; (v) Brasil Profissionalizado; (vi) continuidade do Acordo de
Gratuidade Sistema S; e (vii) ampliação da capacidade do Sistema S.
Como a centralidade da análise em curso se dá na relação entre os
agentes públicos e privados para a consecução dessas iniciativas, serão de-
talhadas as que, em sua formatação, evidenciam esse relacionamento. Na
Exposição de Motivos Interministerial n° 19, de 28.04.2011, que encami-
nhou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei do Pronatec, o próprio
Governo Federal afirma existir a necessidade de conjugar esforços para
garantir a expansão da educação profissional e tecnológica com qualidade,
contando com a participação da rede privada, e conclui que “nesse contex-
to, as entidades do chamado ‘Sistema S’ têm importantíssimo papel a de-
sempenhar” (MEC/MTE/MF/MP/MDS, 2011).
Dentro dessa perspectiva, a Bolsa-Formação tem por objetivo ampliar
a oferta de EPT para estudantes do Ensino Médio da rede pública e para
trabalhadores a partir da concessão de bolsas financiadas pelo Governo Fe-
deral para ocupar vagas em cursos ofertados pelas Redes Públicas e Sistema
S. A Bolsa-Formação é dividida em três modalidades: (i) estudantes, com
oferta de cursos de Formação Inicial e Continuada e cursos técnicos conco-
mitantes aos estudantes do Ensino Médio Público; (ii) trabalhador – moda-
lidade Seguro-Desemprego, a partir da oferta de cursos FIC para beneficiá-
rios do seguro-desemprego, com recorte inicial de reincidência, baixa escola-
ridade e faixa etária; e (iii) trabalhador – modalidade Inclusão Produtiva,
com oferta de cursos FIC, Brasil Alfabetizado e Mulheres Mil, atendendo o
público dos programas federais de inclusão social, especialmente o Bolsa-
Família, com recorte inicial de baixa escolaridade e faixa etária.

299
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

É importante destacar que essa ação do programa, em especial na


Bolsa-Formação modalidade estudantes, retoma a concomitância na ofer-
ta da educação profissional de nível médio, separada e complementar ao
Ensino Médio, pressupondo a existência de matrículas distintas para cada
curso. A proposta do programa é que os estudantes do Ensino Médio das
redes públicas cursem a formação geral em suas escolas de origem e, em
contraturno, utilizando as estruturas instaladas na região, públicas ou pri-
vadas, desenvolvam a formação profissional. O impacto para a aprendiza-
gem dos estudantes e a convivência com institucionalidades distintas, mui-
tas vezes com diferenças significativas em sua estrutura física, equipamen-
tos, recursos humanos, formas de gestão e em seu papel social, precisa ser
melhor avaliado sob o risco de serem criadas falsas dicotomias, valorizan-
do um dos polos como modelo de eficiência, especialmente quando forem
matrículas em instituições públicas – educação básica – e privadas – educa-
ção profissional.
Essa questão assume outros desdobramentos, pois, desde o Decreto
5154, de 23 de julho de 2004, a concomitância havia sido secundarizada pela
priorização dada aos cursos integrados. O Ensino Médio Integrado é carac-
terizado, entre outros elementos, pela articulação entre conteúdos do Ensino
Médio e da formação profissional, que devem ser trabalhados de forma inte-
grada durante todo o curso e pela oportunidade de elevar a escolaridade si-
multaneamente com a aquisição de uma formação específica para a inclusão
no mundo do trabalho. Essa prioridade para o Ensino Médio Integrado como
caminho para o desenvolvimento da qualificação profissional pode ser iden-
tificada, por exemplo na Lei 11892, de 29 de dezembro de 2008, que cria os
Institutos Federais, ao definir, em seu Art. 7°, parágrafo I, “ministrar educa-
ção profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos
integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da
educação de jovens e adultos” como um de seus objetivos principais.
Essa inflexão, no referencial do Pronatec, na forma de oferta da for-
mação profissional, da integração para a concomitância, indica uma mu-
dança na concepção da educação profissional e seu papel no desenvolvi-
mento econômico e social do país. A forma integrada de oferta da educa-
ção profissional, segundo o secretário de Educação Profissional e Tecnoló-

300
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

gica do período, Eliezer Pacheco, propunha a criação de um novo desenho


institucional com a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia e estava inserida num planejamento de nação soberana e demo-
crática, comprometida com uma educação emancipatória, vinculada ao
mundo do trabalho. Com isso, segundo Pacheco (2011, p. 15), esse novo
desenho buscaria promover “uma formação profissional mais abrangente e
flexível, com menos ênfase na formação para ofícios e mais na compreen-
são do mundo do trabalho e em uma participação qualitativamente supe-
rior nele”.
Essa perspectiva perde força com a implantação do Pronatec e a reto-
mada da forma concomitante de oferta de educação profissional de nível
médio, apontando para uma concepção de educação com forte vinculação
ao mercado, de caráter tecnicista e ancorada na Teoria do Capital Huma-
no. Essa concepção transparece nos documentos relacionados ao progra-
ma, como demonstra a Exposição de Motivos Interministerial n° 19, de
28.04.2011, ao afirmar ser o objetivo principal do programa a oferta de
“oportunidade de formação profissional aos trabalhadores e jovens estu-
dantes brasileiros, criando condições favoráveis para sua inserção no mer-
cado de trabalho”. Essa estratégia, segundo o documento, visa superar um
dos maiores problemas para a continuidade do crescimento econômico ex-
perimentado pelo Brasil nos últimos anos, “que é a falta de mão de obra
qualificada”.
Nesse sentido, é importante observar que essa mudança, priorizando
a concomitância, reflete a prioridade que essa forma de oferta possui na
rede privada. Comparando dados de matrícula da educação profissional de
2011, do Inep/MEC, a rede privada respondia por 49,79% das matrículas
da forma concomitante e apenas 8,37% da forma integrada. Esse direcio-
namento está vinculado, entre outros fatores, à cultura institucional, espe-
cialmente do Sistema S, que historicamente não desenvolve a escolarização
dos seus estudantes, priorizando sua formação profissional estrito senso e
ao custo necessário para o desenvolvimento da forma integrada, que, para
ser executada com qualidade, demanda um grande investimento, desde es-
paços físicos adequados até um corpo docente mais numeroso.

301
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

Outra iniciativa do Pronatec, articulada ao repasse de recursos para


instituições privadas e dividido nas modalidades Estudante e Empresa, é o
FIES Técnico, que consiste no provimento de linha de crédito para estu-
dantes, trabalhadores empregados e setor empresarial para o custeio de cur-
sos da EPT no Sistema S e em instituições privadas habilitadas pelo Minis-
tério da Educação – MEC.
Outra iniciativa relacionada diretamente com o Sistema S é o Acor-
do de Gratuidade, que prevê ampliar progressivamente a aplicação em ma-
trículas gratuitas de cursos técnicos e FIC dos recursos recebidos através da
Contribuição Compulsória (fundos públicos) até a meta de 66,67% das
matrículas em 2014.
Como referência para análise do Acordo de Gratuidade, o Relatório
Geral 2011, do SENAC, apresenta alguns indicativos dos resultados do
Programa SENAC de Gratuidade (PSG), que desenvolve cursos de Forma-
ção Inicial e Continuada (FIC) e de nível médio (sem escolarização). Se-
gundo o relatório, foram 249.776 matrículas nos cursos que integram o
PSG, representando 21,14% do total de matrículas do SENAC em 2011.
Em relação às metas do Acordo, esses números apontam para uma supera-
ção de 8% do previsto para o período. Não existe, porém, no referido docu-
mento, indicação de quais são os eixos tecnológicos e o formato dos cursos
que foram oferecidos pelo PSG, o que dificulta uma análise qualitativa dos
mesmos e, na ótica de Grabowski (2010), devem ter um acompanhamento
mais efetivo, pois podem ser oferecidas “vagas nas áreas mais baratas, nos
cursos que não exigem grandes tecnologias e grandes laboratórios”.
O Relatório Geral 2011, do SENAC, apresenta o Pronatec como uma
das ações de gratuidade, apesar de ter linha de crédito específica para o
desenvolvimento de seus cursos, com repasse de recursos, no caso do Bol-
sa-Formação Estudante e Trabalhador, diretamente do FNDE, conforme
Resolução CD/FNDE Nº 62, de 11 de novembro de 2011. Em 2011, foram
apenas 9.231 matrículas em cursos presenciais FIC (mínimo de 160 horas),
sendo que, para 2012, estão previstas 295 mil vagas.
A ampliação da capacidade do Sistema S é uma iniciativa do Prona-
tec, que objetiva ampliar e readequar a infraestrutura e os equipamentos
dos Serviços Nacionais de Aprendizagem, visando atender o aumento da

302
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

demanda induzido pelo atendimento induzido pelo Pronatec. O financia-


mento tem como fonte o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), que, em 2012, já repassou 1,5 bilhão ao Programa
SENAI para a competitividade industrial para investimento em obras de
infraestrutura (construção, modernização e ampliação de unidades), além
da aquisição de máquinas e equipamentos destinados ao aparelhamento
das unidades.
É importante salientar a mudança ocorrida no enquadramento insti-
tucional do Sistema S, que, de acordo com o artigo 20 da Lei 12.513, passa
a integrar o sistema federal de ensino, mantendo, porém, “autonomia para
a criação e oferta de cursos e programas de educação profissional e tecnoló-
gica, mediante autorização do órgão colegiado superior do respectivo de-
partamento regional da entidade, resguardada a competência de supervi-
são e avaliação da União”. Dessa forma, segundo artigo 6º da mesma lei, a
União fica autorizada a “transferir recursos financeiros às instituições de
educação profissional e tecnológica das redes públicas estaduais e munici-
pais ou dos serviços nacionais de aprendizagem correspondentes aos valo-
res das bolsas-formação” e, como registra o parágrafo 1° do referido artigo,
“as transferências de recursos de que trata o caput dispensam a realização
de convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere, observada
a obrigatoriedade de prestação de contas da aplicação dos recursos”.
Ainda nessa direção, a Resolução/FNDE/CD/Nº 31, de 1º de julho
de 2011, que dispõe sobre a descentralização e execução de créditos orça-
mentários do FNDE para órgãos e entidades da administração pública fe-
deral, em seu artigo 1º, dispensa a apresentação de certidões de regularida-
de e as consultas ao Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor
público federal (Cadin) e ao Sistema Integrado de Administração Financei-
ra do governo Federal (SIAFI), bastando a realização de Termo de Coope-
ração.
Essas mudanças estão consonantes, conforme apresentado anterior-
mente, com a base de justificação teórica do governo e consolidam-se em
toda a documentação legal que sustenta o Pronatec. Isso pode ser evidencia-
do nas considerações preliminares da Resolução CD/FNDE Nº 62, de 11 de
novembro de 2011, que afirma a “necessidade de integrar as principais redes

303
DOS SANTOS, M. I.; RODRIGUES, R. de O. • O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

ofertantes de forma a compartilhar experiências e unir esforços de forma a


garantir a democratização e interiorização da oferta de educação profissio-
nal e tecnológica no país”. Compreender o Pronatec é, portanto, analisar
essas inter-relações entre as esferas pública e privada que sustentam o pro-
grama e percebê-lo como integrante de um movimento de escala superior,
que fundamenta a formatação do atual Estado brasileiro e consolida-se em
suas políticas públicas.

Conclusões preliminares da análise


de um programa em andamento
A análise realizada, tendo como ponto de partida os documentos e
leis que implantaram o Pronatec, indica que o Sistema S é um agente fun-
damental desse programa, sendo contemplado como beneficiário direto e
preferencial de recursos públicos em muitas das iniciativas do programa.
Essa centralidade dos Serviços Nacionais de Aprendizagem assume maior
relevo quando fica indicada uma inter-relação entre essas iniciativas. Ou
seja, de um lado, o Acordo de Gratuidade pode gerar, para o Sistema S,
uma diminuição nas receitas devido à obrigatoriedade da aplicação dos
recursos recebidos da contribuição compulsória – de caráter público – na
ampliação de vagas gratuitas nos cursos de formação inicial e continuada
ou de qualificação profissional. Por outro, a Bolsa-Formação, o FIES Téc-
nico e a Ampliação da Capacidade do Sistema S promovem mecanismos
de compensação com o ingresso de novos recursos.
O ingresso do Sistema S no sistema federal de ensino vem a corrobo-
rar com essa conclusão, pois, entre outras coisas, facilita o repasse de recur-
sos públicos diretamente, sem a necessidade de realização de convênios ou
de seguir as demais diretrizes das políticas públicas da EPT devido à per-
manência de sua autonomia pedagógica, financeira e administrativa.
Essa centralidade no setor privado também pode ser percebida na
priorização da oferta de educação profissional de nível médio de forma
concomitante, focalizada no treinamento de mão de obra com o objetivo
de atender as demandas do mercado de trabalho. Nessa perspectiva, o Pro-
natec caminha em direção contrária ao conjunto de políticas que estavam

304
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

sendo implementadas pelo Governo Federal, cujo enfoque era propiciar ao


trabalhador o ingresso no mundo do trabalho de forma autônoma, com o
desenvolvimento integral de suas potencialidades, visando interferir nos
processos produtivos e gerar novas tecnologias. Analisar as alterações na
correlação de forças entre os envolvidos na definição das políticas públicas
da EPT é central para compreender essa mudança de enfoque das políticas
e tarefa importante para a continuidade da pesquisa.
Nesse sentido, o trabalho a partir dos dados referentes à execução do
Pronatec, como número de vagas preenchidas, áreas tecnológicas de abran-
gência e características organizativas e curriculares dos cursos, torna-se fun-
damental para analisar essas conclusões iniciais. Dessa forma, será possível
também verificar o protagonismo das instituições privadas na oferta dos
cursos da EPT a partir de financiamento público e avaliar os possíveis des-
dobramentos do programa para a democratização do acesso, da gestão e da
qualidade na educação profissional brasileira.

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306
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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307
A relação entre a educação pública e a privada
na Educação Especial brasileira

Fabíola Borowsky

Introdução
Este artigo é parte da pesquisa “Parcerias entre sistemas públicos e
instituições do terceiro setor no Brasil, Argentina, Portugal e Inglaterra:
implicações para a democratização da educação”, coordenada pela profes-
sora Vera Maria Vidal Peroni, vinculada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O texto apresenta os estudos realizados até o presente momento den-
tro da pesquisa, que abarcam a Educação Especial1. Buscamos, no decorrer
do processo de investigação, compreender como instituições privadas atua-
ram no campo da Educação Especial (EE) e como essa relação está confi-
gurada hoje no Brasil.
O objetivo do artigo é discutir como se deu a relação público-privada
na EE no decorrer de sua história no Brasil, como se constitui hoje essa
relação e apresentar suas contradições.
Para isso, analisamos a história da Educação Especial, especialmen-
te os estudos de Gilberta de Martino Jannuzzi (2006). Utilizamos dados do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e
também documentos e legislação elaborados entre os anos de 1988 e 2011,
momento em que a área ganha força no país em nível de Estado. As contri-
buições, principalmente de Rosalba Cardoso Garcia (2009 e 2004), Vera Maria

1
A Educação Especial é uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e mo-
dalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e servi-
ços e orienta quanto à sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns
do ensino regular. O público-alvo da Educação Especial são alunos com deficiência, transtor-
nos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2008).

308
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Vidal Peroni (2009), Nalú Farenzena e Maria Gorete Farias Machado (2006),
Élcia Esnarriaga de Arruda, Mônica Kassar e Marielle Santos (2006) e Juca
Gil et al (2010), sustentam as discussões que vêm sendo realizadas.
O texto está organizado em três momentos. Inicialmente, fizemos
um resgate histórico de como se deu a oferta de EE no Brasil. Após, apre-
sentamos como está organizada hoje a área em questão2 e quais os princi-
pais programas de governo que a orientam. Em seguida, apontamos, na
legislação, onde está garantido o financiamento público a instituições pri-
vadas. Por fim, tecemos considerações preliminares sobre a política de EE.

Breve retrospectiva histórica da oferta


de Educação Especial no Brasil
Historicamente, a Educação Especial foi considerada mais um servi-
ço de caráter filantrópico do que propriamente um direito social. A partir
da década de 1980, porém, ela entra para a pauta da universalização do
direito à educação, inicialmente com a Constituição de 1988.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educa-
ção Inclusiva mostra que
No Brasil, o atendimento às pessoas com deficiência teve início na época do
Império, com a criação de duas instituições: O Imperial Instituto dos Meni-
nos Cegos, em 1854, atual Instituto Benjamin Constant – IBC e o Instituto
dos Surdos mudos, em 1857 [...]. No início do século XX, é fundado o Insti-
tuto Pestalozzi (1926), instituição especializada no atendimento às pessoas
com deficiência mental; em 1945, é criado o primeiro atendimento educacio-
nal especializado às pessoas com superdotação na Sociedade Pestalozzi, por
Helena Antipoff (BRASIL, 2008).

Na década de 1960, clínicas e serviços particulares de atendimento,


muitos com apoio educacional, foram reunindo pessoas e profissionais in-

2
A Educação Especial tinha, até início do ano de 2012, uma secretaria própria dentro do Minis-
tério da Educação (MEC), chamada Secretaria de Educação Especial (SEESP). Devido a uma
nova compreensão da área (que será mais bem explicada posteriormente), na perspectiva da
Educação Inclusiva, a Educação Especial passa a integrar, para fins administrativos, a Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). Em alguns
momentos, o presente texto trará referências encontradas no site da SEESP, que não disponibi-
liza mais as informações.

309
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

teressados no problema. Comprova-se certa pressão em torno do tema. Em


1973, o MEC cria o Centro Nacional de Educação Especial – CENESP,
responsável pela gerência da Educação Especial no Brasil, que, sob a égide
integracionista, impulsionou ações educacionais voltadas às pessoas com
deficiência e às pessoas com superdotação, mas ainda configuradas por cam-
panhas assistenciais e iniciativas isoladas do Estado (JANNUZZI, 2006).
Nesse momento, não se efetiva uma política pública de acesso uni-
versal à educação, permanecendo a concepção de “políticas especiais” para
tratar da educação de alunos com deficiência. Na metade da década de
1980, é criado o Conselho Nacional para Integração da Pessoa com Defi-
ciência (CORDE), visando maior abrangência que o CENESP e, numa
época de nova tentativa de redemocratização nacional, traz também a mar-
ca de alguma participação dos próprios deficientes, o que não acontecia
anteriormente (JANNUZZI, 2006).
Após esse período, com a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (1996) e políticas integracionistas, começa a
se efetivar a oferta de serviço educacional público às pessoas com deficiên-
cia em escolas especiais e classes especiais (dentro de escolas regulares).
Isso não quer dizer que a oferta privada se extingue, pois a mesma exerce
grande força política no interior do Estado.
Seguindo esse movimento (que ocorre também em outros países), as
políticas de integração passam a ser substituídas pelas chamadas políticas de
inclusão, visando à extinção das classes e escolas especiais. A proposta da
chamada educação inclusiva é que os alunos público-alvo da Educação Es-
pecial sejam matriculados em salas de aula regulares e tenham atendimento
complementar em salas de apoio dentro da escola regular e em turno oposto.
Tais políticas se mantêm nos dias de hoje, porém com algumas modificações.
Sobre esse movimento histórico, Peroni (2009) contribui para o de-
bate:
Após muita luta para ser garantida como um direito, a educação dos sujei-
tos com deficiência é garantida na legislação, mas a sua implementação so-
freu os impactos das redefinições no papel do Estado e dificuldades na sua
materialização. O poder público historicamente desresponsabilizou-se da edu-
cação especial e, no momento em que estava iniciando a ser entendida como
um direito, a nova conjuntura de racionalização de recursos dificulta a im-
plementação com qualidade das políticas e restringe a ampliação de escolas
públicas de educação especial (PERONI, 2009, p. 01-02).

310
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

As políticas continuam hoje restringindo a existência de escolas pú-


blicas de Educação Especial, movimento que se fortaleceu com a Reforma
do Estado brasileiro. Sobre isso, Garcia (2009) também traz contribuições
importantes:
Historicamente, a educação especial brasileira foi estruturada sobre poucas
instituições públicas e uma rede paralela de instituições privadas que desen-
volveram o trabalho em regime de convênios com secretarias de educação
nos estados e municípios. [...] A reforma do Estado brasileiro nos anos 1995
favoreceu uma situação que já estava naturalizada para a educação especial,
qual seja a relação público/privado na execução do atendimento educacio-
nal. As instituições privado-assistenciais assumiram o atendimento de edu-
cação especial, recebendo financiamentos públicos, que podem servir para a
estrutura física, o transporte escolar e mesmo para a sustentação do quadro
de professores, muitos deles cedidos pelas secretarias estaduais e/ou muni-
cipais (GARCIA, 2009, p. 03).

Atualmente, a Educação Especial é chamada de Educação Inclusi-


va3. O atendimento complementar em salas de recursos é entendido como
“atendimento educacional especializado4” (AEE), que pode ser realizado
nas escolas ou em centros especializados, públicos ou privados. As salas de
apoio passaram a se denominar Salas de Recursos Multifuncionais5, e o
papel do professor também se modificou através da ampliação de algumas
funções e da supressão de outras6.

3
Essa não é apenas uma mudança na nomenclatura, mas sim na compreensão da área. A respei-
to dessa discussão, exclusão/inclusão educacional, que não poderá ser aqui desenvolvida devi-
do às limitações físicas do artigo, concordamos com Oliveira (2004) que afirma que os concei-
tos exclusão/inclusão não podem ser compreendidos como novos paradigmas sociais, visto
que são formas contemporâneas de aparecimento da lógica interna do sistema capitalista. Para
maiores esclarecimentos sobre o debate, ver OLIVEIRA, Avelino da Rosa. Marx e a exclusão.
Pelotas: Seiva, 2004. 162p.
4
De acordo com o decreto 6.571/2008 “§1º, considera-se atendimento educacional especializa-
do o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucio-
nalmente, prestado de forma complementar ou suplementar à formação dos alunos no ensino
regular” (BRASIL, 2008b, p. 01).
5
“(...) as salas de recursos multifuncionais são ambientes dotados de equipamentos, mobiliários
e materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado”
(BRASIL, 2010, p. 05).
6
Sobre isto ver BOROWSKY, Fabíola. Fundamentos teóricos do Curso de Aperfeiçoamento de Profes-
sores para o Atendimento Educacional Especializado (2007): novos referenciais? Dissertação (Mes-
trado em Educação). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.

311
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

Essa reconfiguração pela qual tem passado a Educação Especial quan-


to ao tipo de educação ofertada aos alunos, quanto às concepções e termi-
nologias empregadas e ao papel do professor suscita a ideia de que a rela-
ção público-privado, que já existia através de convênios, esteja se fortale-
cendo com a ideia de a Educação Especial ser um serviço de ordem técnica
que não precisa ocorrer no seio da escola, apesar de percebermos maior
atuação do Estado na área.

Como está configurada hoje a Educação Especial no Brasil


O Brasil tem avançado bastante nas duas últimas décadas na esfera
jurídica, no que diz respeito aos direitos das pessoas com deficiência. Mui-
tas leis conquistadas são resultados de lutas dos movimentos sociais em
prol da igualdade de direitos. Podemos verificar a expressão dessas con-
quistas nos diversos documentos orientadores e normatizadores da área.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva tem objetivo amplo, ultrapassando os níveis da educação e esten-
dendo-se à comunidade, como pode ser observado na passagem abaixo:
[...] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos glo-
bais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os
sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participa-
ção, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; trans-
versalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil
até a educação superior; oferta do atendimento educacional especializado;
formação de professores para o atendimento educacional especializado e
demais profissionais da educação para a inclusão; participação da família e
da comunidade; acessibilidade arquitetônica, nos transportes, nos mobiliá-
rios, nas comunicações e informação; e articulação intersetorial na imple-
mentação das políticas públicas (BRASIL, 2008, p. 14).

Diante desse arcabouço legal, o Governo Federal, na gestão de Luís


Inácio Lula da Silva (2002-2010), criou programas de governo que deram
novas características à política nacional, os quais são mantidos pelo atual
governo na gestão de Dilma Roussef (2011-2014). Os programas “Implan-
tação de Salas de Recursos Multifuncionais”7 (BRASIL, 2010), “Educação

7
“O Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, instituído pelo MEC/
SEESP por meio da Portaria Ministerial nº 13/2007, integra o Plano de Desenvolvimento da

312
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Inclusiva: direito a diversidade8” (BRASIL, 2005) e “Escola Acessível9”


são direcionados à educação básica, e o “Programa Incluir10” é direciona-
do ao Ensino Superior. Todos eles são organizados pelo sistema de editais
de concorrência.
Dessa forma, a política de educação inclusiva articula um progra-
ma ao outro, visando atingir todos os níveis de ensino. É importante des-
tacar a contribuição de Garcia (2009), que nos lembra que os programas
aqui citados foram elaborados dentro do Plano de Desenvolvimento da
Educação – PDE, plano de metas do governo federal que apresenta diver-
sos projetos para os diferentes níveis e modalidades da educação nacio-
nal.
Além disso, a autora afirma que esse movimento implica a presen-
ça do Estado na criação de mecanismos públicos de Educação Especial,
embora, segundo as Diretrizes Operacionais da Educação Especial para o
Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica (BRASIL,
2009), assim como já constava na Resolução nº 2 de 2001, o atendimento

Educação – PDE, destinando apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino para garantir o
acesso ao ensino regular e a oferta do AEE aos alunos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e/ou altas habilidades/superdotação” (BRASIL, 2010, p. 09).
8
Visa “(...) a formação de gestores e educadores para efetivar a transformação dos sistemas
educacionais em sistemas educacionais inclusivos, tendo como princípio a garantia do direito
dos alunos com necessidades educacionais especiais de acesso e permanência, com qualidade,
nas escolas regulares” (BRASIL, 2005, p. 09). Esse programa vem sendo implementado pelo
MEC e pela antiga SEESP desde 2003 numa lógica de municípios-polos que exercem o papel
de multiplicadores. A inspiração de tal programa é o conhecido material da Unesco “Forma-
ção de Professores: as necessidades especiais na sala de aula” (GARCIA, 2009).
9
“Promover a acessibilidade e inclusão de estudantes com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades/superdotação matriculados em classes comuns do ensino
regular, assegurando-lhes o direito de compartilharem os espaços comuns de aprendizagem,
por meio da acessibilidade ao ambiente físico, aos recursos didáticos e pedagógicos e às comu-
nicações e informações” (BRASIL, 2012, p. 05-06) é a meta desse programa, que disponibiliza
recursos por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola – PDDE, às escolas contempladas
pelo Programa Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais.
10
Objetiva “promover a inclusão de estudantes com deficiência na educação superior, garantin-
do condições de acessibilidade nas Instituições Federais de Educação Superior”. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view =article&id=
17433&Itemid=817>. Acesso em: 28 jan. 2013.

313
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

educacional especializado possa ser realizado pelos centros especializados


mantidos pelas instituições privado-assistenciais, desde que conveniadas com
as redes de ensino (GARCIA, 2009).
Com essas ações, evidenciam-se mudanças nos índices de acesso da
pessoa com deficiência às escolas. Segundo dados do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (BRASIL, 2011b),
em 2010 houve um aumento de 10% no número de matrículas nessa mo-
dalidade de ensino. Em 2009, havia 639.718 matrículas, e, em 2010,
702.603. Quanto ao número de alunos incluídos em classes comuns do
ensino regular e em EJA, o aumento foi de 25%. Nas classes especiais e
nas escolas especiais, houve diminuição de 14% no número de alunos.
Em 2007, 62,7% do total de matrículas da educação especial estavam nas
escolas públicas e 37,3% nas escolas privadas. Em 2010, esses números
alcançaram 75,8% nas públicas e 24,2% nas escolas privadas, mostrando
a ampliação do acesso dos alunos público-alvo da Educação Especial à
escola pública.
Do total de matrículas de alunos público-alvo da Educação Especial, a
maioria se encontra em escolas públicas, sejam elas especiais ou regulares.
Porém, quando analisamos as matrículas dos alunos público-alvo da Edu-
cação Especial em escolas especiais, vemos que a maioria (65%) se concen-
tra em escolas privadas (BRASIL, 2011b).
Isso nos leva a questionar a quem a política de inclusão está benefici-
ando, já que alunos com maiores comprometimentos ou aqueles que não se
enquadram nessa política, os que a escola regular não consegue atender,
estão nas escolas especiais e privadas. Há uma demanda significativa, a
qual a política não contempla.
Aqueles que necessitam de escolas especiais encontram-se, em sua
maioria, na rede privada, como podemos observar no comparativo entre os
anos de 2007 e 2010:

314
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Distribuição das matrículas de Educação Especial


por Dependância Administrativa
Brasil – 2007-2010

Fonte: BRASIL (2011b)

Observamos, então, que o número de alunos em escola especial tem


reduzido, mas na escola privada tem reduzido pouco. Isso nos remete à
discussão sobre a legitimidade que as escolas privadas têm quanto ao aten-
dimento dessa demanda em relação ao pensamento hegemônico de descré-
dito da escola pública para essa função. Além disso, questionamos o fo-
mento a essas instituições consideradas prestadoras de serviço, já que agora
a Educação Especial é considerada um serviço. O incentivo é dado a essas
instituições através da oferta de verbas públicas para o financiamento das
mesmas, como poderemos ver no item seguinte, onde é legalmente emba-
sado esse financiamento.

A garantia legal de financiamento público


a instituições privadas
No intuito de compreender como se materializam as parcerias já re-
feridas entre o sistema público e o setor privado na EE, realizamos um
levantamento dos documentos que orientam a formação de convênios e
aqueles que regulamentam essas parcerias.

315
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

A Lei nº 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação


Nacional, quando trata da EE, já mencionava a possibilidade de convênios
na área: “Art. 60. Os órgãos normativos dos sistemas de ensino estabelece-
rão critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, espe-
cializadas e com atuação exclusiva em Educação Especial, para fins de apoio
técnico e financeiro pelo Poder Público” (BRASIL, 1996) [grifo nosso].
Com relação aos documentos específicos da EE, trouxemos passa-
gens do Parecer nº 17, de 3 de julho de 2001, do Conselho Nacional de
Educação, que orienta sobre as diretrizes para a EE no país. Esse parecer
ressalta que
4.1 - No âmbito político
Essa política inclusiva exige intensificação quantitativa e qualitativa na for-
mação de recursos humanos e garantia de recursos financeiros e serviços de
apoio pedagógico públicos e privados especializados para assegurar o de-
senvolvimento educacional dos alunos (BRASIL, 2001, p. 13).
O “lócus” dos serviços de educação especial
Os sistemas públicos de ensino poderão estabelecer convênios ou parcerias
com escolas ou serviços públicos ou privados, de modo a garantir o atendi-
mento às necessidades educacionais especiais de seus alunos, responsabili-
zando-se pela identificação, análise, avaliação da qualidade e da idoneida-
de, bem como pelo credenciamento das instituições que venham a realizar
esse atendimento, observados os princípios da educação inclusiva (BRA-
SIL, 2001, p. 19).

A Resolução nº 2, de 11 de setembro de 2001, documento de lei que


estabelece as diretrizes nacionais para a EE, traz uma passagem sobre o
credenciamento de instituições que podem estabelecer convênios com o
sistema público:
Art. 14. Os sistemas públicos de ensino serão responsáveis pela identifica-
ção, análise, avaliação da qualidade e da idoneidade, bem como pelo cre-
denciamento de escolas ou serviços, públicos ou privados, com os quais estabe-
lecerão convênios ou parcerias para garantir o atendimento às necessidades edu-
cacionais especiais de seus alunos, observados os princípios da educação
inclusiva (BRASIL, 2001b, p. 4) [grifo nosso].

Com esses primeiros documentos citados, já percebemos que, nos


anos em que a chamada educação inclusiva começava a se firmar no campo
da EE, intitulando-se um novo paradigma educacional, o incentivo à ini-
ciativa privada continuava a existir e ganhava legitimidade através da legis-
lação, revelando as contradições dessa política.

316
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Em 2007, o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento


do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério)11 foi substituído
pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), que, apesar de se-
melhante ao FUNDEF, ampliou suas propostas para a educação básica.
Com essa substituição, o diferencial entre os valores destinados aos alunos
dos anos iniciais do Ensino Fundamental e a Educação Especial passou
dos 7% (FUNDEF) para 20% (GIL et al, 2010). Além disso, foi implemen-
tada, a partir de 2010, a dupla contagem da matrícula dos alunos da educa-
ção regular da rede pública, que recebem atendimento educacional especi-
alizado (seja ele público ou privado), ou seja, destinação de valor dobrado a
alunos da Educação Especial que recebem o AEE.
O Decreto nº 6571, de 17 de setembro de 2008, que dispõe sobre o
AEE, aponta que receberão duplo financiamento do FUNDEB os alunos
matriculados em escolas regulares e no AEE (de instituições públicas ou
não) e remete-se ao Decreto 6253, de 13 de novembro de 2007, que dispõe
sobre o FUNDEB:
Art. 14. Admitir-se-á, a partir de 1º de janeiro de 2008, para efeito da distri-
buição dos recursos do FUNDEB, o cômputo das matrículas efetivadas na
educação especial oferecida por instituições comunitárias, confessionais ou filan-
trópicas sem fins lucrativos, com atuação exclusiva na educação especial, con-
veniadas com o poder executivo competente (BRASIL, 2007, s/n) [grifo
nosso].

11
O FUNDEF foi regulamentado pelo Decreto nº 2.264, de junho de 1997. Foi implantado,
nacionalmente, em 1º de janeiro de 1998, quando passou a vigorar a nova sistemática de redistri-
buição dos recursos destinados ao Ensino Fundamental. A maior inovação do FUNDEF consis-
tiu na mudança da estrutura de financiamento do Ensino Fundamental no país (1ª a 8ª séries
do antigo 1º grau), ao subvincular a esse nível de ensino uma parcela dos recursos constitu-
cionalmente destinados à educação. A Constituição de 1988 vincula 25% das receitas dos
estados e municípios à educação. Com a Emenda Constitucional nº 14/96, 60% desses recur-
sos (o que representa 15% da arrecadação global de estados e municípios) ficam reservados ao
Ensino Fundamental. Além disso, introduz novos critérios de distribuição e utilização de 15%
dos principais impostos de estados e municípios, promovendo a sua partilha de recursos entre
o governo estadual e seus municípios, de acordo com o número de alunos atendidos em cada
rede de ensino. Genericamente, um fundo pode ser definido como o produto de receitas espe-
cíficas, que, por lei, vincula-se à realização de determinados objetivos. O FUNDEF é caracte-
rizado como um fundo de natureza contábil. Disponível em: <http://mecsrv04.mec.gov.br/
sef/fundef/funf.shtm>. Acesso em: 27 jan. 2013.

317
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

Com isso observamos novos contornos na organização estatal. Os


dois fundos previram valores financeiros diferenciados a serem destinados
às instituições que atendem a educação especial, sejam elas públicas ou
privadas. Valores esses mais elevados do que os aportados às escolas co-
muns. Gil et al (2010, p. 20) afirmam que “(...) os fatores de ponderação
estipulados para o FUNDEB não estão assentados em dados técnicos que
evidenciem as justificativas de suas diferenciações e as decisões sobre esses
valores advêm essencialmente dos embates políticos entre diferentes grupos”.
A Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009, que institui as Diretrizes
Operacionais para o AEE, também enfatiza a participação das instituições
privadas no AEE.
Art. 1º Para a implementação do Decreto nº 6.571/2008, os sistemas de
ensino devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns do
ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), oferta-
do em salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Edu-
cacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confes-
sionais ou filantrópicas sem fins lucrativos (BRASIL, 2009, p. 01) [grifo nosso].

Sobre onde deve ocorrer o AEE, o documento reafirma:


Art. 5º O AEE é realizado, prioritariamente, na sala de recursos multifuncio-
nais da própria escola ou em outra escola de ensino regular, no turno inverso
da escolarização, não sendo substitutivo às classes comuns, podendo ser re-
alizado, também, em centro de Atendimento Educacional Especializado da
rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas
sem fins lucrativos, conveniadas com a Secretaria de Educação ou órgão
equivalente dos Estados, Distrito Federal ou dos Municípios (BRASIL, 2009,
p. 02).

O mesmo documento reforça o duplo financiamento pelo FUNDEB:


Art. 8º Serão contabilizados duplamente, no âmbito do FUNDEB, de acor-
do com o Decreto nº 6.571/2008, os alunos matriculados em classe comum
de ensino regular público que tiverem matrícula concomitante no AEE.
Parágrafo único. O financiamento da matrícula no AEE é condicionado à
matrícula no ensino regular da rede pública, conforme registro no Censo
Escolar/MEC/INEP do ano anterior, sendo contemplada: (...)
d) matrícula em classe comum e em centro de Atendimento Educacional
Especializado de instituições de Educação Especial comunitárias, confessio-
nais ou filantrópicas sem fins lucrativos (BRASIL, 2009, p. 02).

Ou seja, no ano em questão, a EE já se reconfigurava quanto ao mo-


delo de atendimento agora chamado de AEE, considerado um serviço,

318
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

porém se reafirma uma prática historicamente consolidada na área, qual


seja, a política de conveniamentos.
Nessas passagens, questionamos também que, se o AEE implica a
existência da sala de recursos multifuncional e o mesmo pode ser realizado
em instituições privadas, logo as instituições privadas também podem rece-
ber a sala multifuncional e todos os equipamentos dela decorrentes, finan-
ciados pelo sistema público.
Chamamos atenção também para o Programa Dinheiro Direto na
Escola (PDDE), o qual se realiza com verbas do FNDE, que na Resolução
nº 17, de 19 de abril de 2011, dispõe sobre os procedimentos de adesão e
habilitação e as formas de execução e prestação de contas referentes ao
PDDE: “CONSIDERANDO a política de estímulo ao fortalecimento da
participação social e da autogestão dos estabelecimentos de ensino públi-
cos, e privados sem fins lucrativos que ministram educação especial, como meio
de consolidação da escola democrática” (BRASIL, 2011, p. 01) [grifo nos-
so]. Nessa passagem, o documento coloca a parceria público-privada como
meio de consolidação da escola democrática e leva-nos a questionar tal
afirmação, visto que, em nosso entender, uma escola democrática não se
caracteriza pela parceria com o setor privado.
O mesmo documento, quando descreve o programa, destaca:
Art. 1º O Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) consiste na destina-
ção anual, pelo FNDE, de recursos financeiros, em caráter suplementar, a
escolas públicas e privadas de educação especial, que possuam alunos ma-
triculados na educação básica, com o propósito de contribuir para o provi-
mento das necessidades prioritárias das escolas beneficiárias que concor-
ram para a garantia de seu funcionamento e para a promoção de melhorias
em sua infra-estrutura física e pedagógica, bem como incentivar a autoges-
tão escolar e o exercício da cidadania com a participação da comunidade no
controle social (BRASIL, 2011, p. 02).

Percebemos aqui as parcerias sendo utilizadas como justificativa para


a participação social. Entendemos que nos documentos confundem-se con-
ceitos como democracia e participação social e que esse último refere-se à
participação de instituições privadas sem fins lucrativos.
Sobre os beneficiários do PDDE, o documento salienta:
Art. 2º Os recursos financeiros do PDDE destinam-se a beneficiar as escolas:
(...) II - privadas de educação básica, na modalidade de ensino especial,
recenseadas pelo MEC no ano anterior ao do atendimento, mantidas por

319
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

entidades definidas na forma do inciso III, parágrafo único, do art. 4º (BRA-


SIL, 2011, p. 02).

Percebemos que documentos mais abrangentes referentes à educa-


ção básica, sempre que tratam da EE, referem-se a instituições privadas
sem fins lucrativos.
Por fim, o mais recente documento da área, o Decreto 7611, de 17 de
novembro de 2011, que dispõe sobre a Educação Especial, o atendimento
educacional especializado e dá outras providências:
DECRETA:
Art. 1o O dever do Estado com a educação das pessoas público-alvo da edu-
cação especial será efetivado de acordo com as seguintes diretrizes:
(...) VIII - apoio técnico e financeiro pelo Poder Público às instituições pri-
vadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educa-
ção especial.
(...) Art. 5o A União prestará apoio técnico e financeiro aos sistemas públi-
cos de ensino dos Estados, Municípios e Distrito Federal e a instituições
comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos (BRASIL,
2011c, p. 01).

Com esses elementos, iniciamos algumas análises a respeito de como


vem se reconfigurando a Educação Especial em alguns aspectos e em ou-
tros mantém antigas concepções. Entendemos que o fato de a EE ter sido
garantida legalmente enquanto direito público não extingue práticas his-
tóricas na área. Buscando olhar a totalidade das relações sociais, pensa-
mos que, apesar de avanços conquistados, a atual política reconfigura a
área em favor da manutenção de uma lógica que favorece instituições pri-
vadas e fomenta um pensamento hegemônico de descrédito da escola
pública.
Para contribuir com essas discussões, utilizamos um estudo de Fa-
renzena e Machado (2006), que nos mostra que o custo-aluno-ano médio
nacional12 na Educação Especial é de R$ 4.283,21, enquanto que na Educa-
ção Infantil (creches) é de R$ 2.538,55 e pré-escola é de R$ 1.109,19; no
Ensino Fundamental Inicial (EFI), é de R$ 1.004,29 e Final de R$ 1.002,44;

12
Custo-aluno-ano quantifica monetariamente os recursos utilizados, por aluno matriculado, no
período de um ano. O custo-aluno-qualidade seria o valor, por aluno, no período de um ano,
dos recursos necessários ou desejáveis para um ensino de qualidade (FARENZENA, 2006).

320
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

no Ensino Médio R$ 1.307,82 e na Educação de Jovens e Adultos R$


831,3613. Ou seja,
Na educação especial, o custo-aluno-ano médio nacional (R$4.283,21) é mais
de quatro vezes o valor do EFI (R$1.004,29). Dos cinco estados da amostra
que contam com escolas que oferecem educação especial (atendimento ex-
clusivamente especializado), os custos dessa modalidade sempre são mais
do que o dobro daquele do EFI (FARENZENA e MACHADO, 2006, p.
285-286).

Esses dados nos levam a entender que a inclusão de alunos público-


alvo da EE em escolas regulares significa uma economia importante para
os cofres públicos, o que poderia justificar as grandes campanhas em favor
da inclusão e pelo fim das escolas especiais públicas.
Complementando essas análises, a relação entre o custo do aluno na
EE estatal e na não estatal suscita outras discussões. Arruda, Kassar e San-
tos (2006) mostraram que em 2004 a média anual de um aluno de uma
instituição pública não estatal era de R$ 218,50 e, no mesmo ano, a média
anual de um aluno de uma instituição pública era de R$ 109,53.
Ao analisar recursos repassados a uma instituição específica, as auto-
ras constataram que o financiamento das instituições privado-assistenciais
é predominantemente público. Dessa forma, se pensarmos na redução de
gastos ao Estado, não é estranho assisti-lo assumindo a execução do atendi-
mento da EE através da política de inclusão (ARRUDA, KASSAR e SAN-
TOS, 2006).
Encontramos, com essas análises, contradições referentes ao papel
do Estado para com a EE, visto que documentos orientam a inclusão esco-
lar dos alunos com deficiência em escolas públicas do ensino regular, em-
bora se incentive o AEE em instituições privadas através do repasse de re-
cursos públicos e a legislação assegure a coexistência de ambas as institui-
ções. Há uma indefinição sobre o papel dessas instituições diante do movi-
mento de inclusão dos alunos com deficiência, sendo que muitas têm reor-
ganizado suas práticas, transformando-se em centro de AEE.

13
A pesquisa envolveu apenas escolas especiais públicas. Aqui apenas expusemos os dados a
título de comparação, sem considerar as diferenças econômicas regionais e o número de esco-
las de cada Estado que participaram da pesquisa.

321
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

Considerações finais
Observamos que, historicamente, o descompromisso do Estado na
Educação Especial é mais evidente do que no restante da educação e que o
setor privado sempre foi mais atuante na área. Porém, com o chamado
movimento de inclusão escolar de alunos com deficiência, percebemos o
Estado atuando na área, mas de forma diferenciada e contraditória, já que
ao mesmo tempo fomenta a participação de instituições privadas na oferta
de atendimento.
Analisando a questão dentro do movimento histórico da sociedade
capitalista, é possível perceber que, no Brasil, as políticas educacionais para
as pessoas com deficiência são criadas na medida em que a sociedade as vê
como capazes de integrar a força de trabalho ou no intuito de liberar a
família para o trabalho. Além disso, esse movimento poderia contribuir
para o aumento da produtividade como alavanca do progresso e do desen-
volvimento do país, onde a escola passa também a ter o objetivo de prevenir
a delinquência e manter a “ordem” do sistema (JANNUZZI, 2006).
A Educação Especial historicamente foi ofertada pelo setor privado,
enquanto o Estado esteve isento dessa responsabilidade. Com movimentos
oriundos da sociedade, essa passa a ser considerada um direito público. Con-
tudo, políticas de conveniamento fazem com que instituições privadas sem
fins lucrativos atendam a maior parte dos sujeitos da Educação Especial,
durante um longo tempo. A reforma do Estado reforça essa situação, que já
era uma prática comum na Educação Especial.
Atualmente, a política prevê o chamado atendimento educacional
especializado, que pode ocorrer dentro das escolas regulares (no que antes
se chamavam salas de recursos) e/ou nos centros de especializados, que são
as escolas especiais transformadas nesse novo modelo de atendimento, em
turno inverso ao da escola regular, dentro da perspectiva da chamada inclu-
são. Essa reconfiguração pela qual tem passado a Educação Especial quan-
to ao tipo de educação ofertada aos alunos, quanto às terminologias e ao
papel do professor, não ocorre no que diz respeito ao local onde deve ocor-
rer, já que a política não extingue a oferta de Educação Especial privada
mas, pelo contrário, a fomenta e legitima.

322
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Ou seja, essa política chamada inovadora, que anuncia todos na mes-


ma escola, não diz que escola é essa. Ela não rompe com a lógica histórica
da Educação Especial de financiamento público a instituições privadas.
Parece-nos que os documentos estão mais ‘preocupados’ em definir se a
escola deve ser regular ou especial, mas não se deve ser pública. Tais ele-
mentos revelam algumas das contradições dessa política.
Percebemos que o Estado se coloca como provedor não da Educação
Especial, mas do chamado AEE, que, como visto em outras pesquisas14, se
constitui em instrumentos e técnicas de acessibilidade e não garante a
aprendizagem dos alunos. Ainda assim, o Estado responsabiliza também a
sociedade pela oferta de Educação Especial, transferindo a instituições pri-
vadas apoio financeiro em detrimento da escola pública.
A Educação Especial já vinha sendo tratada como um serviço (BRA-
SIL, 2001), no caso, um serviço educacional especializado complementar,
suplementar ou substitutivo à educação regular. Agora, as salas de recursos
multifuncionais como lócus do atendimento educacional especializado rei-
teram essa compreensão de educação como serviço. A concepção de “ser-
viço” está articulada às definições acerca da responsabilidade sobre o aten-
dimento educacional especializado (GARCIA, 2009). Remete a ideia de
que a Educação Especial possa ser ofertada enquanto prestação de serviço
e não como um processo de escolarização caracterizado na educação bási-
ca como um todo.
Observamos que, ao mesmo tempo em que a política avança na pos-
sibilidade de matrícula de pessoas com deficiência enquanto direito públi-
co, ela reitera antigas concepções quanto a esse atendimento ser ofertado
pelo setor privado. A política avançou quanto ao número de alunos matri-
culados em escolas públicas e quanto à criação de salas de recursos multi-
funcionais em escolas regulares. Porém, ao mesmo tempo esses alunos são
incentivados a frequentar escolas e/ou centros privados para fazer o AEE.
Conforme os dados apresentados, a frequência de alunos com defi-
ciência em escolas públicas regulares é mais barato ao Estado do que na
escola conveniada e mais barato ainda do que na escola especial pública.

14
BOROWSKY (2010); LEHMKUHL (2011).

323
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

Isso justifica a atuação do Estado em prol da inclusão em escola regular


pública e do fim das escolas especiais públicas. Porém, politicamente, a
força das instituições privado-assistenciais garante a sua atuação na EE en-
quanto prestação de serviço.
Também entendemos que, ao gastar com instituições privadas e con-
vênios, o Estado deixa de investir em escolas públicas, uma verba que é
pública, e acaba por repassar a responsabilidade de qualificação para o se-
tor privado, em detrimento da escola pública, que fica cada vez mais desa-
creditada.
Assim, vemos que juntamente aos documentos oficiais que incenti-
vam as parcerias público-privadas, as leis federais as legitimam perante a
sociedade. O Estado coloca-se como provedor dos serviços que vão garan-
tir o fim da exclusão de alunos com deficiências das escolas, anunciando
qualidade na educação, entretanto está apenas reforçando uma situação
segregatória já consolidada na área e agora trazida para junto da escola.

Referências
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atendimento de uma pessoa com necessidades especiais em instituições pública
estatal e não estatal, em MS, 2004. In: Educação Especial em Foco: questões contem-
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324
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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______. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
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325
BOROWSKY, F. • A relação entre a educação pública e a privada na Educação Especial brasileira

JANNUZZI, Gilberta. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do


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ção continuada. [Dissertação]. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianó-
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326
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado:


a parceria público-privada nas políticas
de educação de jovens e adultos

Denise Maria Comerlato


Jaira Coelho Moraes

Com o objetivo de analisarmos a relação entre o público e o privado


e as consequências para a democratização da educação, caracterizamos neste
texto as duas principais propostas de alfabetização para jovens e adultos
em execução no Brasil. Para tanto, traremos elementos da história da edu-
cação e sua relação com as reformas do Estado a partir dos anos 1990,
entre as quais se destaca o estímulo à parceria público-privada no campo
educacional.
Nesse contexto, efetivam-se a organização não governamental AlfaSol
e o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), os quais descrevemos desde seus
sujeitos às formas de estruturação, implementação e desenvolvimento. O
PBA é parte integrante da política de Educação de Jovens e Adultos (EJA)
do governo federal desde 2003 e é considerado pelo Ministério de Educa-
ção (MEC) uma das portas de entrada para o Ensino Fundamental de jo-
vens, adultos e idosos. A AlfaSol também desenvolve ações voltadas para a
alfabetização inicial e teve seu início em 1997 como programa de alfabeti-
zação do governo federal sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso
(FHC). Em 2002, passou a ser uma associação da sociedade civil sem fins
lucrativos e, em 2007, uma organização não governamental (ONG).
A relevância deste estudo está diretamente relacionada ao fato da
AlfaSol poder executar políticas públicas de educação em forma de parce-
ria com governos municipais e estaduais, entre elas o PBA. Outro fator que
justifica nosso estudo é a constatação de que a queda do analfabetismo
adulto no Brasil tem sido residual em comparação aos investimentos reali-
zados pelo governo federal.

327
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

A Alfabetização Solidária – AlfaSol


O Programa Alfabetização Solidária foi criado em 1997 pelo Conse-
lho do Programa Comunidade Solidária – um fórum de desenvolvimento
de ações sociais, cuja base de funcionamento é a parceria entre governo
federal, iniciativa privada e sociedade civil. Com origem em 1996, esse pro-
grama era voltado para a assistência social e coordenado pela então primei-
ra-dama, Dra. Ruth Cardoso. E, conforme Barreyro (2005), foi muito criti-
cado no início por estar ligado à distribuição de cestas básicas, o que levou
o Comunidade Solidária a mudar de foco, escolhendo alguns eixos de tra-
balho, tais como o fortalecimento da sociedade civil, que se concentrou na
promoção do voluntariado e do “terceiro setor”, e o desenvolvimento de
programas inovadores, entre esses o Alfabetização Solidária.
Tal iniciativa ocorreu após anos sem políticas públicas voltadas para
a alfabetização de adultos, pois não havia projetos federais desde 1990 com
a extinção do Projeto Educar. Cabe ressaltar que o Programa Alfabetiza-
ção Solidária foi lançado em data posterior à homologação da Lei de Dire-
trizes e Bases – LDB 9394/96, que deveria garantir a oferta do ensino fun-
damental e médio a todos, mesmo àqueles que não tiveram acesso ou con-
tinuidade de estudos na idade própria. Também posterior ao veto do presi-
dente da República Fernando Henrique Cardoso, em 1996, dos recursos do
FUNDEF1, destinados à Educação de Jovens e Adultos.
A criação do Programa Alfabetização Solidária fundamenta-se em
dois grandes marcos políticos anteriores. Por um lado, a promulgação da
Lei Orgânica de Assistência Social2 (LOAS) em 1993, estimulando políti-
cas sociais, inclusive por meio de serviços ofertados por entidades e organi-
zações de assistência social sem fins lucrativos, voltadas para a população
em situação de pobreza e/ou vulnerabilidade social e pessoal. E, por outro,

1
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Ma-
gistério. O FUNDEF, que vigorou de 1997 a 2006, é caracterizado como um fundo de natureza
contábil que repassa recursos aos estados e municípios, de acordo com coeficientes de distribui-
ção estabelecidos e publicados previamente. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br>. Acesso
em: 27 nov. 2012.
2
Lei que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742.htm>.

328
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

a Reforma do Estado a partir de 1995, na qual tem grande importância a


aprovação da lei das Organizações Sociais – Lei nº 9.637/1998, fundamen-
tada nas ideias inovadoras do então ministro da Administração Federal,
Bresser Pereira, acerca de “público não estatal”. Essa lei inaugurou uma
nova compreensão do público a partir da possibilidade de setores privados
atuarem em esfera pública por meio de parcerias.
Foi essa possibilidade de parceria público-privada que permitiu a so-
lidificação do Programa Alfabetização Solidária em acordos firmados en-
tre governo federal, iniciativa privada, instituições de ensino superior, socie-
dade civil e governos municipais, quando esse se transformava em 1998 em
sociedade civil sem fins lucrativos (Associação de Apoio ao Programa Alfabeti-
zação Solidária – AAPAS) e tornava-se responsável pela execução do mes-
mo. Essa novidade gerou, inclusive, questionamentos acerca do caráter do
programa, se esse se tratava de uma ação civil ou de um programa de gover-
no, como defendia o próprio ministro da Educação da época, Prof. Paulo
Renato de Souza. Tal esclarecimento foi prestado pela auditoria do Tribu-
nal de Contas União (TCU), que explicitou em documento que a Ação
Alfabetização Solidária de Jovens e Adultos era da responsabilidade do
Ministério da Educação (TCU, 2003, p. 10).
O Programa Alfabetização Solidária (PAS) teve início nas regiões do
Norte e Nordeste, em municípios que apresentavam extrema pobreza, com
baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e alto índice de analfa-
betismo, muitas vezes implantado junto a outras políticas sociais, tendo por
objetivo
[...] contribuir para a redução do analfabetismo e para a ampliação da oferta
pública de Educação de Jovens e Adultos no Brasil e no mundo por meio da
articulação de uma rede de parceiros, envolvendo Instituições de Ensino
Superior, empresas, governos (municipais, estaduais e federal) e pessoas físi-
cas (VÓVIO, 2006, p. 7).

Em 2002, a entidade executora do Programa de Alfabetização pas-


sou a ser uma Organização Não Governamental (ONG) com o nome de
AlfaSol. Dados explicitados no relatório de 13 anos do Alfabetização
Solidária mostram que, até o ano de 2009, 5,5 milhões de alunos foram
atendidos em 2.433 municípios brasileiros e 254 mil alfabetizadores capa-
citados. Também tinha contado com 209 parceiros (iniciativa privada, ins-

329
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

tituições governamentais e internacionais) e 371 Instituições de Ensino


Superior (IES).
A AlfaSol foi também se aperfeiçoando e desenvolvendo programas
e ações relacionados à educação. Alguns dos principais listados no relató-
rio por Gonçalves (2009) são: o Programa Fortalecendo a EJA (destinado a
gestores municipais e cursos de capacitação de professores de EJA da rede
municipal de ensino); Alfabetização Inicial de Jovens e Adultos (com atua-
ção em áreas rurais e grandes centros urbanos); o Programa Telesol (meto-
dologia desenvolvida pela Fundação Roberto Marinho, que visa promover
a formação de professores da rede pública de ensino do ponto de vista das
especificidades da EJA). Além disso, a AlfaSol tem ações voltadas para a
cooperação técnica internacional em parceria com a Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), órgão do Ministério das Relações Exteriores, e já atuou
no Timor Leste, na Ásia, em Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo
Verde, na África, e na Guatemala, na América Central.3
Em relação à Alfabetização de Jovens e Adultos, a AlfaSol desenvol-
ve o Programa Nacional, que atua principalmente em comunidades rurais
distantes no interior do Nordeste com populações ribeirinhas semi-isoladas
no Norte, em comunidades do semiárido e nas periferias das metrópoles
brasileiras. Os educadores são selecionados entre a população local e cha-
mados de alfabetizadores populares, sendo exigido o Ensino Médio como
escolaridade mínima. As instituições de Ensino Superior, considerando os
princípios pedagógicos da AlfaSol, são responsáveis pela seleção e capaci-
tação dos alfabetizadores. O programa desenvolve ações pedagógicas du-
rante 8 meses com o jovem e adulto alfabetizando.
Em relação à concepção de alfabetização, no site da AlfaSol4 consta:
O analfabetismo está atrelado aos demais indicadores da desigualdade social
e condena gerações de jovens e adultos à negação do direito fundamental de
expressão e transformação de sua vida pessoal e comunitária. O jovem e o
adulto egressos das salas da AlfaSol, mais do que prontos para a continui-
dade de seu processo de escolarização, são ativos na mobilização de suas
comunidades em torno do direito de todos ao acesso à educação. Invertem

3
Disponível em: <http://www.alfabetizacao.org.br/site/atuacao_internacional.asp>.
4
Disponível em: <http://www.alfabetizacao.org.br/site/eja.asp>.

330
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

índices e apropriam-se dos saberes acumulados pela sociedade para a rees-


crita de sua história (ALFASOL, 2012, [s.p.]).

Nessa citação, duas noções importantes para definir alfabetização na


concepção da AlfaSol: a primeira trata a alfabetização como um direito
fundamental e a segunda compreende a alfabetização como leitura do mun-
do, capaz de transformar os sujeitos alfabetizandos em agentes de transfor-
mação social. Desse modo, poderia associar-se a concepção de alfabetiza-
ção da AlfaSol à perspectiva crítica de educação. Porém faz-se necessária
uma análise para diferenciar de outros programas ou campanhas de alfabe-
tização que conhecemos em nossa história.
De acordo com Gonçalves (2009), em documento oficial da ONG:
O grande diferencial entre a oferta de alfabetização inicial por parte da Alfa-
Sol e as campanhas de alfabetização reside na lógica “da necessidade de
conhecimento mínimo” (muitas vezes restrita à escrita do nome) por parte
dessas campanhas e a busca de satisfação das “necessidades básicas de apren-
dizagem” por parte da AlfaSol, como princípio que considera percursos,
cultura e conhecimentos prévios do aluno, além de base para a construção
de proposta educativa identificada com a especificidade do processo de en-
sino e aprendizagem de jovens e adultos (GONÇALVES, 2009, p. 18-19).

A AlfaSol também afirma nesse documento que busca a continuidade


do atendimento de escolarização dessa população através do incentivo e da
colaboração na elaboração de projetos de EJA nos municípios em que atua.
No entanto, o trabalho com os chamados alfabetizadores populares é
realizado na forma de voluntariado, com recebimento de bolsa-auxílio, de
modo que se estabelece uma relação precária de trabalho, também tempo-
rário e em grande parte desenvolvido em locais inadequados para o ensino.
Esses dados nos remetem à sua similaridade com antigas campanhas de
alfabetização, desenvolvidas na história da educação brasileira. Por outro
lado, a proposta da AlfaSol também se afasta dos trabalhos de educação
popular de inspiração freiriana, nos quais o engajamento dos educadores
se dava pela militância política e pelo compromisso com a transformação
social.
No caso da AlfaSol, os alfabetizadores são capacitados pela própria
entidade por meio de parcerias com as Instituições de Ensino Superior e
necessariamente não apresentam formação pedagógica anterior e nem com-
prometimento político. Como exemplo, os dados do Programa Adote um

331
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

Aluno5 trazem a informação de que 71,1% dos educadores tinham apenas


o Ensino Médio. Outro dado importante é que, do total desses, 39,6% se
declararam alfabetizadores populares, tendo na atividade a sua profissão, e
18,2% se declararam desempregados. No caso, observa-se que quase 60%
dos educadores, somando os declarados alfabetizadores e desempregados,
têm nesse programa de alfabetização seu provável meio de sustento. Desse
modo, o programa também serve para a promoção social de jovens e adul-
tos que atuam como alfabetizadores na comunidade.
Outros dados fornecidos no documento “Campanha Adote um Alu-
no” da AlfaSol sobre uma ação em centro urbano mostram que, em 2009,
47,5% das aulas aconteceram na casa do alfabetizador e 33,2% em escolas.
Se, por um lado, é surpreendente que quase a metade das aulas se desenvol-
via em locais inadequados, por outro, também é questionável que um terço
das aulas ocorria em escolas, onde jovens e adultos deveriam ter direito ao
ensino regular de EJA, com professores formados e com todos os recursos
que a instituição tem obrigação de oferecer.
Ainda, a AlfaSol nessa “Campanha Adote um Aluno” propõe que
qualquer cidadão adote um analfabeto por R$ 30,00 ao mês durante oito
meses. Essa campanha deixa transparecer outras concepções, agora de anal-
fabeto, pois a adoção sugere uma pessoa de menor idade, ou seja, alguém
que não assume plenamente os compromissos e responsabilidades da vida
adulta, que precisa ser tutelada, cuidada. Desse modo, a “Campanha Ado-
te um Aluno” traduz uma velha concepção difundida entre os políticos
brasileiros na primeira metade do séc. XX: a do analfabeto como um cida-
dão pela metade, como um incapaz (COMERLATO, 2000). Essa visão do
sujeito analfabeto é contrária não só à perspectiva crítica, mas também à
atual legislação de EJA (CNE 11/2000), que compreende o sujeito jovem e
adulto analfabeto como possuidor de cultura e linguagem própria, popular,
nem sempre coincidente com os saberes escolares, mas nem por isso com
menor valor. No caso dessa campanha, a imagem de analfabeto difundida
pela ideia de adoção é inclusive contrária à concepção apresentada pela

5
ALFASOL – CAMPANHA ADOTE UM ALUNO. Disponível em: <http://www.alfasol.org.br/
aapas_site/hotsite/arquivos/resultados_campanha_2009.pdf>.

332
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

própria AlfaSol, que diz considerar “percursos, cultura e conhecimentos


prévios do aluno” (GONÇALVES, 2009, p. 20).
Outros aspectos que consideramos importantes destacar dizem res-
peito ao financiamento e à articulação público-privada relacionados à Al-
faSol. Cabe ressaltar que os dados financeiros não são de fácil acesso. Mas,
para se ter uma ideia da dimensão da ação, dados coletados e analisados
por Di Pierro (2002) indicam que o Programa Alfabetização Solidária (PAS)
captou nos anos de 2001 e 2002, anos finais do governo FHC, valores da
ordem de R$ 80 a R$ 100 milhões, o que representou, segundo o seu estu-
do, entre 20 e 25% dos investimentos federais na educação de jovens e adul-
tos naqueles anos.
Em 2003, com o lançamento de um novo programa de alfabetização
do governo federal, a AlfaSol passou a executar, além de suas próprias ações,
as do Programa Brasil Alfabetizado através das parcerias firmadas com es-
tados e municípios. A parceria pode ser exercida de várias formas, seja por
meio de indicações de ações específicas nas quais se possam implementar
políticas públicas, seja pela formalização de convênios e repasse dos recur-
sos necessários para a efetivação de ações de alfabetização e Educação de
Jovens e Adultos (EJA). Desse modo, uma organização sem fins lucrativos
pode executar políticas públicas em educação.
Um exemplo dessa execução de política pública pode ser observado
em notícia publicada no site da AlfaSol sobre o início do programa TeleSol
em Teresina-PI: “Em 2012 serão, ao todo, 7.604 alunos atendidos e 399
professores e educadores capacitados em 311 turmas divididas nos 1º e 2º
segmentos (do TeleSol) e no Programa Brasil Alfabetizado”6. Ainda no
município de Teresina-PI, a AlfaSol, através de uma de ações, o TeleSol
(que faz uso de vídeos em metodologia desenvolvida em parceria com a
Fundação Roberto Marinho), é quem tem realizado o Ensino Fundamen-
tal da Educação de Jovens e Adultos na rede pública do município (Revista
EJ, págs. 12 e 13)7.

6
ALFASOL. Atuação internacional. Disponível em: <http://www.alfabetizacao.org.br/site/
atuacao_internacional.asp>.
7
Revista Escrevendo juntos: Uma publicação da alfabetização solidária, julho 2008/junho 2009
– nº 38/39. Disponível em: <http://www.cereja.org.br/site/_shared%5CFiles%5C_cer_old%5
Canx%5Cej38-39.pdf >.

333
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

Essas informações nos fazem indagar sobre o papel do Estado no


processo de desenvolvimento da educação e questionar que conceito de
democratização da educação de jovens e adultos é colocado nesse modelo
de parceria Estado-Sociedade.
Outro dado relevante é que, no ano de 2007, o INEP8 registrou um
total de 4,9 milhões de matrículas em EJA, considerando todos os segmen-
tos e modalidades. Importa aqui observar que esse total de matrículas re-
presenta apenas 8,21% do volume estimado de analfabetos funcionais no
Brasil (GONÇALVES, 2009).
Esses dados, que poderiam justificar a necessidade de continuidade
da AlfaSol, porque existe uma demanda real, também colocam em questão
a sua eficácia, visto que as suas ações não representaram nesses quase 15
anos de atuação, de forma geral, um impacto significativo no decréscimo
dos índices nacionais de analfabetismo.

O Programa Brasil Alfabetizado


Ao analisarmos o Programa Brasil Alfabetizado, programa do gover-
no federal desde 2003, deparamo-nos com o discurso da tentativa de superar
o analfabetismo, universalizando a alfabetização de jovens, adultos e idosos e
a progressiva continuidade dos estudos em níveis mais elevados. Entretanto,
os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística –
IBGE, referentes à década de 2000-2010, demonstram que ainda estamos
distantes dessa realidade, uma vez que a taxa de analfabetismo para 2010, do
total da população de 15 anos ou mais, foi de 9,6%, o que representa mais de
13 milhões de analfabetos absolutos no Brasil. Essa pesquisa indica, ainda,
que o número de pessoas com mais de 15 anos que não conseguem sequer
escrever um bilhete diminuiu apenas 1,1% nos últimos três anos.
Com o objetivo de contribuir para superar o analfabetismo no Brasil,
promovendo o acesso à educação como direito de todos, em qualquer mo-
mento da vida, o Programa Brasil Alfabetizado teve início em 2003 no go-
verno do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Esse vem sen-

8
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

334
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

do desenvolvido em todo o território nacional, com atuação mais intensa


nos 1.928 municípios com taxa de analfabetismo igual ou superior a 25%.
Sua execução é descentralizada por meio da transferência de recursos fi-
nanceiros, em caráter suplementar, do governo federal aos entes federados
que aderirem ao programa.
O tempo para a alfabetização é de seis a oito meses de duração (240 a
320 horas) com uma carga horária mínima de 40 horas presenciais para a
formação inicial de alfabetizadores e coordenadores de turmas, conforme a
Resolução CD/FNDE nº 32, de julho de 20119. A seleção dos alfabetiza-
dores, coordenadores e tradutores – intérpretes de libras é feita preferen-
cialmente precedida de chamada pública, sendo que os critérios para essa
seleção são os seguintes, conforme art. 12 dessa Resolução:
I - o candidato deve, preferencialmente, ser professor das redes públicas de
ensino;
II - deve ter, no mínimo, formação de nível médio completo;
III - ter experiência anterior em educação, preferencialmente em educação
de jovens adultos (BRASIL, 2011, p. 9).

Nessa forma de seleção dos alfabetizadores, é comum um nível de


formação média ou ainda em nível fundamental, similar a programas de
governos anteriores, e que igualmente se mantinham com educadores vo-
luntários. Nos dados apresentados pelo Ministério da Educação e Cultura
(MEC), divulgados em 2012, sobre a avaliação do PBA, pode-se observar
que grande parte são alfabetizadores populares e/ou desempregados (51%).
Do total avaliado, apenas 22% são professores alfabetizadores.
No quadro abaixo, observa-se o nível de formação dos alfabetizado-
res informado nessa apresentação do MEC:

Nível de formação e ocupação dos alfabetizadores

Nível de formação
Fundamental Médio Superior Pós-Graduação
4% 81% 15% 0
Fonte: MEC (2012)

9
Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/fnde/legislacao/resolucoes/resolucoes-2011?start=40>.

335
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

Por esse documento avaliativo do MEC se vê que o nível de forma-


ção que têm os alfabetizadores do PBA é bastante precário, tendo em vista
que a maioria apresenta somente o Ensino Médio. Também o Tribunal de
Contas da União (TCU), em 2006, quando avaliou o programa, já havia
detectado que “para 52% dos alfabetizadores era a primeira experiência
com esse tipo de atividade e 87% dos entrevistados tinham, no mínimo, o
Ensino Médio completo”. O que demonstra, à semelhança da AlfaSol, o
caráter assistencialista do programa também para os alfabetizadores.
Em relação aos sujeitos incluídos no programa, entre 2003 e 2010, o
PBA atendeu 12.075.428 alfabetizandos. E, de acordo com os dados dispo-
níveis no Sistema Brasil Alfabetizado (SBA), das 1.552.673 pessoas em pro-
cesso de alfabetização no Ciclo 2010, aproximadamente 69% das matricu-
las estavam na faixa etária dos 30 aos 64 anos de idade, demonstrando que
parte significativa dos beneficiários do programa encontrava-se em idade
economicamente ativa.
Cabe salientar que o PBA vem sendo modificado desde o seu início,
e as alterações ocorreram, em grande parte, em razão das avaliações reali-
zadas pelo TCU (Tribunal de Contas da União) e também por conta de
uma avaliação do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas),
sob a coordenação de João Pedro Azevedo10, conforme consta no site da
Ação Educativa11.

10
Economista na Unidade de Redução da Pobreza e Gestão Econômica da América Latina e
Caribe do Banco Mundial. Antes de entrar para o banco, era um pesquisador do Instituto
Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada e superintendente de Monitoramento e Avalia-
ção na Secretaria de Finanças do Estado do Rio de Janeiro. Ele é o atual presidente do
Comitê Executivo da Rede de Pobreza e Desigualdade do BID-Banco Mundial-PNUD-
LACEA e fez ampla consultoria e pesquisa para o Banco Mundial, BID, PNUD, UNESCO,
o Departamento Britânico de Trabalho e pensão, e os ministérios brasileiros da Educação e
da Assistência Social.
11
A Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação é uma associação civil sem fins
lucrativos, fundada em 1994. Atualmente, seu programa é constituído por várias linhas de
atuação: elaboração de propostas pedagógicas, materiais didáticos e paradidáticos; forma-
ção de educadores; avaliação de programas, pesquisa e monitoramento de políticas públicas
e participação em redes, comissões e fóruns. A coleção didática Viver, Aprender, voltada à
alfabetização e à educação básica de pessoas jovens e adultas, é um dos destaques da área.
Em 2010, a importância da coleção foi reconhecida com a aprovação dos livros destinados
ao primeiro e ao segundo segmentos do Ensino Fundamental no PNLD (Programa Nacio-
nal do Livro Didático) para EJA.

336
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Os dados dessa avaliação foram apresentados em setembro de 2012


pelo Ministério da Educação durante um seminário em Brasília com espe-
cialistas e pesquisadores. Desenhada desde 2004 até 2007, a avaliação aponta
para o alto índice de evasão e a falta de continuidade nos estudos. Outros
aspectos foram observados, além das denúncias de “turmas fantasmas”,
como o fato de muitos municípios não oferecerem a possibilidade de conti-
nuar o Ensino Fundamental na rede pública de educação de jovens e adul-
tos, sendo comprovada a ineficácia do programa no que diz respeito à ofer-
ta de educação contínua aos jovens e adultos.
Para a coleta das informações, na pesquisa de avaliação realizada
pelo IPEA, foram utilizados diversos instrumentos como registros admi-
nistrativos do programa (como o sistema informatizado das turmas), dados
do IBGE, visitas a turmas e entrevistas com gestores. Mas, apesar de todo
esse empenho, segundo o coordenador Azevedo, houve dificuldade de “ava-
liar um programa social que não foi desenhado para ser avaliado”.
Em relação à concepção teórico-metodológica definida no progra-
ma, no documento “Coleção Educação para Todos”12, lançado pelo IPEA,
UNESCO e MEC em 2004, podemos observar que a perspectiva é voltada
para uma compreensão imediata de decifração de códigos. A justificativa
apresentada para tal perspectiva é que se trata de uma educação inicial que
não precisaria de maior aprofundamento, como esclarece esse documento,
no caso da escrita.
Assume-se aqui uma concepção de aprendizado da língua escrita, que en-
volve quatro grandes dimensões cognitivas: I. O domínio de competências
que tendem a contribuir para o processo inicial de apropriação do sistema
de escrita, servindo de base tanto ao desenvolvimento do processo de leitura
quanto ao de escrita; II. O desenvolvimento da capacidade de decifração,
quer dizer, de transformar sinais gráficos ou grafemas em fonemas, com
maior ou menor nível de fluência; III. O desenvolvimento da capacidade de
escrita, especificamente as capacidades de escrever palavras memorizadas,
codificar palavras simples; IV. O desenvolvimento do processo de compre-
ensão de textos (AZEVEDO [org.], 2006, p. 16).

12
A Coleção Educação para Todos, lançada pelo Ministério da Educação e pela UNESCO em
2004, é um espaço para a divulgação de textos, documentos, relatórios de pesquisas e eventos,
estudos de pesquisadores, acadêmicos e educadores nacionais e internacionais, que têm por
finalidade aprofundar o debate em torno da busca de educação para todos.

337
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

Com o objetivo de verificar até que ponto o programa vinha contri-


buindo para a construção de conhecimentos dos jovens e adultos, a avalia-
ção demonstrou que há efeito positivo do programa sobre os alunos com
habilidades bem iniciais no processo de leitura; entretanto o mesmo contri-
bui pouco para os alunos de níveis mais altos.
Outra conclusão desses testes diz respeito às atividades de ensino de-
senvolvidas pelo Brasil Alfabetizado, consideradas “insuficientes para ha-
bilitar o aluno aos níveis mais altos em decorrência das concepções de ensi-
no dos alfabetizadores”, pois ignorariam o conceito de letramento13 e os
conhecimentos trazidos pelos alunos.
Já o Tribunal de Contas da União (TCU), quando realizou avaliações
sobre o Programa Brasil Alfabetizado referentes aos anos 2003-2006, verificou
falhas na articulação entre os gestores municipais de educação e os parceiros
que atuavam no nível local, o que também provocou mudanças no PBA.
Algumas dessas mudanças expressaram-se na forma de repasse dos
recursos e nos valores pagos correspondentes às bolsas. Antes, em 2003, o
repasse era feito sem controle às organizações/entidades. De 2004 a 2005,
o repasse de recursos efetivava-se automaticamente pelo Ministério da Edu-
cação aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, ainda sem necessi-
dade de convênio, acordo, contrato, ajuste ou instrumento congênere, me-
diante depósito em conta-corrente específica. A partir de 2006, os recursos
passaram a ser transferidos aos Entes Executores em 2 (duas) parcelas após
a validação do Plano Plurianual de Alfabetização pela SECAD/MEC14 e
após a inserção pelos Entes Executores15 dos cadastros no SBA.
Cabe ressaltar que, a partir de 2004, o Sistema Brasil Alfabetizado (SBA)
passa a centralizar todas as informações das etapas de análise de projetos/
planos pedagógicos e de distribuição de recursos (declarações de compromis-
so, plano pedagógico, entre outros). Além disso, o novo sistema agrega os
relatórios de acompanhamento dos parceiros, que incluem campos fechados,
podendo ser rapidamente sistematizados e utilizados como indicadores para
o monitoramento do programa, e campos abertos, que podem ser analisa-

13
Conforme Soares (1995, p. 10), “numa dimensão social ou cultural, letramento é o uso que se
faz das habilidades de leitura/escrita para responder às demandas sociais”.
14
SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade.
15
Entes Executores corresponde aos estados, municípios e Distrito Federal.

338
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

dos por amostragem, gerando, para a equipe pedagógica, informações com


maior detalhamento sobre os projetos. Outra mudança importante ocor-
rida em 2005 é o fato de agora o sistema poder ser acessado também pelos
parceiros, enquanto que, em 2004, o acesso era restrito à equipe do MEC.
Essa mudança parece ter gerado um controle maior sobre os recursos
destinados ao programa. Por outro lado, há grandes falhas ainda no controle
em relação à inadequação e à insuficiência de instalações físicas, sendo que,
muitas vezes, as aulas ocorrem, por exemplo, em salão de igreja, na casa do
alfabetizador ou até mesmo em campo aberto, como foi constatado pelo TCU.
O mesmo ocorre em relação ao acompanhamento da aprendizagem do alfa-
betizando e ao detalhamento das turmas implantadas por município.
Outra mudança relativa ao controle foi a fixação de valores para pa-
gamento de bolsas por turma e não mais por aluno, o que possibilitou o
registro dos alunos que realmente frequentavam as aulas de alfabetização,
uma vez que foram constatados, como já foi dito antes, casos de alunos
“fantasmas” em 2003.
Cabe ressaltar que os valores destinados ao pagamento de bolsas con-
tinuaram irrisórios, deixando de ser um atrativo para profissionais com maior
nível de formação, sendo que até 2012 esse valor variou entre 250 (alfabeti-
zador e tradutor-intérprete por turma) e 500 reais (coordenador de turmas),
como mostra o quadro abaixo:
Valores pagos aos Alfabetizadores e Coordenadores nos Programas
Alfabetização Solidária e Brasil Alfabetizado – Período 1997-2010
Programa Alfabe-
Programa Brasil Alfabetizado
tização Solidária
1997-2002 2003 2004-2006 2007 2010
R$ 300,00 para Remuneração máxima Remuneração máxima R$ 200,00 Bolsa classe I
Coordenador mensal de R$ 375,00. mensal de R$ 295,00. Alfabetizador e R$ 250,00
R$ 120,00 para De acordo com o Alfabetizador Tradutor-intérprete Alfabetizador
Alfabetizador do número de alunos parcela fixa de Libras Bolsa classe II
Projeto Nacional por turma. (R$ 120,00) e variável R$ 300,00 R$ 275,00
R$ 200,00 para R$ 15,00 por por alfabetizando em Supervisor (pop. Carcerária)
Alfabetizadores aluno/mês, em sala de aula (grupo de 15 Bolsa classe III
dos Grandes máximo 25 alunos (R$ 7,00) alfabetizadores) R$ 250,00
Centros Urbanos por turma Tradutor de Libras
Bolsa classe IV
Coord. de turmas
R$ 500,00
Bolsa classe V
Duas turmas
R$ 500,00
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras, com base nas informações dos documentos pesquisados.

339
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

Nesse quadro se observa que os valores pagos aos voluntários, em


forma de bolsa, desde 1997 a 2007, pouco se alteraram, mantendo valores
considerados como uma ajuda de custo. No que tange ao programa como
um todo, com base nas informações aqui destacadas, cabe salientar que,
com a implantação do PBA, a responsabilidade pelo controle burocrático e
administrativo recaiu sobre os distintos executores. A prestação de contas,
portanto, passou a ser controlada de forma efetiva pelo sistema implantado
SBA.
A compreensão do atual programa de alfabetização, implantado pelo
então governo do presidente Lula (2003-2010) e dado continuidade no atual
governo da presidenta Dilma Rousseff, abrange muitos aspectos, porém
consideramos importante alguns destaques relacionados à história e funda-
mentalmente ao percurso da alfabetização de jovens e adultos a partir do
final da década de 1980 até a virada do século XXI. Nesse percurso, para
alfabetização de jovens e adultos, ainda que a Constituição de 1988 tenha
ampliado o dever do Estado em relação à EJA, garantindo o Ensino Fun-
damental para todos, e a década de 1990 tenha exibido elevado número de
analfabetos16, o que ainda ocorre é a omissão do governo federal na articu-
lação de uma política efetiva de alfabetização de jovens e adultos no Brasil.

Algumas considerações
O Programa Nacional de Alfabetização da AlfaSol e o Programa
Brasil Alfabetizado mantêm muitas semelhanças. Tanto que se confundem
nos locais onde a AlfaSol executa o Brasil Alfabetizado. E a AlfaSol, uma
organização privada, sem fins lucrativos, apresenta ainda uma diversidade
de ações capaz de penetrar, de forma legal, nas políticas públicas munici-
pais, estaduais e nacional, ofertando orientação de projetos, capacitação de
professores e até mesmo a metodologia para o trabalho com estudantes da
educação de jovens e adultos no Ensino Fundamental.

16
Conforme CURY (2000), o IBGE apontava, no ano de 1996, 15.560.260 pessoas analfabetas
na população de 15 anos de idade ou mais, perfazendo 14,7% do universo de 107.534.609
nessa faixa populacional.

340
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Os dados apresentados no texto apontam que tanto a AlfaSol como o


Programa Brasil Alfabetizado cumprem uma função assistencialista junto
ao “alfabetizador popular”, ao ser fonte de sustento para muitos e, prova-
velmente, auxiliar na sua promoção social junto à comunidade. Nesse sen-
tido, também se observa que a finalidade das ações está voltada para o de-
senvolvimento local, de municípios e regiões com baixo IDH (Índice de
desenvolvimento Humano) e que são também as regiões com maiores índi-
ces de analfabetismo. Desse modo, esses programas de alfabetização carac-
terizam-se como políticas de governo, paliativos e temporários, e não como
uma política de Estado, de caráter permanente, que garantiria o acesso dos
cidadãos aos direitos explicitados em leis nacionais.
Apesar da AlfaSol e do Programa Brasil Alfabetizado trazerem em sua
proposta o incentivo à implementação da EJA nos municípios e isso repre-
sentar um avanço em relação às campanhas anteriores de alfabetização, o
tempo de alfabetização para o educando é de no máximo oito meses. Desse
modo, o que se apresenta são apenas propostas de alfabetização inicial, sem
garantia de continuidade. Também, com uma alfabetização rudimentar, o
sujeito é considerado analfabeto funcional, pois não consegue fazer uso da
leitura e escrita nas demandas cotidianas.
Entendemos assim que a referência à democratização do ensino e a
uma formação sólida do professor/educador para o seu exercício profissio-
nal junto aos jovens, adultos e idosos está diretamente relacionada à função
política da educação. A ONG AlfaSol e o Programa Brasil Alfabetizado
apresentados neste texto não respondem a algumas demandas históricas
da educação de jovens e adultos, como o acesso a uma educação de boa
qualidade que ultrapasse níveis de utilitarismo adequados às necessida-
des mínimas do mercado de trabalho. O estudo revela, portanto, a neces-
sidade de políticas voltadas para a educação de jovens, adultos e idosos,
que coloquem essa população no Plano da Educação Básica, conforme
determina a lei.
Observamos que, com a falta de recursos financeiros para os níveis
da educação que não são considerados prioritários e com a transferência de
responsabilidades para os estados, municípios e organizações não governa-
mentais, ficam esvaziadas as ações do governo federal em favor da alfabeti-
zação de jovens e adultos em um movimento crescente desde 1997. Essa

341
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

forma de governar, que redefiniu o papel do Estado, desvencilhando-se dos


compromissos sociais e, no caso específico da EJA, produzindo políticas
assistencialistas, está plenamente de acordo com a política neoliberal insta-
lada pela ordem capitalista mundial na década de 1990, como aponta Pero-
ni (2003, p. 97).
É necessário ressaltar que se, por um lado, a atual LDB, promulgada
em 1996, reafirma o direito à educação de todos, independente da idade, e
reconhece a EJA como modalidade própria, ainda hoje ela ocupa lugar
secundário nas políticas educacionais. Como afirmam os autores Paiva,
Machado e Ireland (2004, p. 88), “dispondo de financiamento escasso, os
programas da EJA não contam com recursos materiais e humanos condi-
zentes com a demanda por atender”.
Assim, o que ocorre é um distanciamento entre o que se propõe le-
galmente e o que se realiza concretamente a favor desses que foram coloca-
dos à margem do processo educacional. Como salienta Cury (2000, p. 05),
o analfabetismo “representa uma dívida social não reparada para com os
que não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e leitura como bens
sociais, na escola ou fora dela”, pois nosso modelo de sociedade não permi-
te a todos o acesso ao conhecimento formal. Outro modelo só seria possí-
vel, como diz Ferraro (2009, p.195), “se transformar a lógica de exclusão
que historicamente veio regendo o processo de escolarização das camadas
populares”. Ou, de forma geral, superar o atual sistema, pois como afirma
Wood (2006, p. 23), “o capitalismo tem a capacidade de fazer uma distri-
buição universal de bens políticos sem colocar em risco suas relações cons-
titutivas, suas coerções e desigualdades”. Por isso também a complexidade
para entendermos a democracia, sua real possibilidade e concretude, no
que diz respeito aos limites de emancipação humana, relacionada a seu
tempo e espaço.
Nesta breve apresentação da AlfaSol e do Programa Brasil Alfabeti-
zado, vimos que as ações, dentro de suas contradições, mais do que permi-
tir o acesso da população à alfabetização, vem contribuindo para a manu-
tenção das desigualdades sociais. Isso ocorre em razão da oferta de uma
alfabetização inicial em caráter temporário, sem garantia de continuidade,
com alfabetizadores populares com pouca formação pedagógica, caracteri-

342
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

zados como voluntários, que apresentam vínculos precários de trabalho


enquanto bolsistas dos programas e cujo processo educacional muitas ve-
zes se desenvolve em locais inadequados para a aprendizagem. Nesse senti-
do, as ações apresentadas parecem servir mais como um programa de assis-
tência social ao promover, de forma temporária, um trabalho para a popu-
lação carente e desempregada.
Também a possibilidade de uma ONG, no caso a AlfaSol, executar
além do PBA outros programas de governo locais traz uma grande novida-
de no campo das políticas públicas. As políticas públicas podem agora ser
executadas por instituições privadas com suas orientações pedagógicas e
sem que se tenha acesso fácil aos dados, especialmente os financeiros. No
entanto, sabe-se que a população da EJA, excluída do sistema educacional
na chamada “idade própria” e, portanto, também excluída socialmente,
muitas vezes vê esses programas de alfabetização como um amparo por
parte dos governos.
Se, por um lado, a ampliação do atendimento de uma população que
estava desassistida pode ser vista como um avanço para a democracia, pois
permite, mesmo com todas as falhas, uma possibilidade de acesso à apren-
dizagem da alfabetização. Por outro, os elementos considerados em nossa
análise impedem o reconhecimento de um avanço educacional capaz de
colaborar efetivamente com o desenvolvimento da democracia no país. Os
programas apresentados expressam novas formas de realização do capital
privado, que passam por dentro do espaço do público, fazendo com que
garantias legais conquistadas na Constituição de 1988 e na Lei de Diretri-
zes e Bases Brasileira de 1996 sejam minimizadas.
Uma modificação que se pode considerar um avanço em relação a
programas anteriores foi a implantação de um sistema de controle (Sistema
Brasil Alfabetizado) que possibilita maior acesso aos dados e controle da
forma de repasse dos recursos e valores pagos correspondentes às bolsas
pagas aos voluntários. Essa mudança gerou um controle maior sobre os
recursos destinados ao programa, porém ainda apresenta falhas no contro-
le em relação à inadequação e à insuficiência de instalações físicas, no acom-
panhamento da aprendizagem do alfabetizando e no detalhamento das tur-
mas implantadas por município.

343
COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

Por fim, entendemos que há esforço dos governos no sentido de ele-


var as taxas de alfabetismo no país e para isso se evocam medidas e ações
que poderiam contribuir para essa finalidade. Porém consideramos que o
campo da educação de jovens, adultos e idosos, em específico da alfabetiza-
ção, ainda carece de políticas que assegurem a articulação efetiva entre o
investimento econômico realizado e que deveria ser ampliado, com um pro-
jeto educacional vinculado a uma sociedade justa e mais humana.

Referências
ALFASOL. Programa de alfabetização de Jovens e Adultos. Disponível em: <http://
www.alfabetizacao.org.br/site/eja.asp>. Acesso em: 02 jun. 2012.
________. Campanha Adote um Aluno. 2009. Disponível em: <http://www.alfasol.
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BARREYRO, Gladys Beatriz – FEUSP /EACH-USPO. Programa Alfabetização
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Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

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cação. Conselho Deliberativo. Resolução CD/FNDE nº 32 de 1º de julho de 2011: esta-
belece orientações, critérios e procedimentos relativos à transferência automática a
estados, municípios e ao Distrito Federal dos recursos financeiros do programa
Brasil Alfabetizado no exercício de 2011, bem como ao pagamento de bolsas aos
voluntários que atuam no programa. Disponível em: <www.fnde.gov.br/index.php/
ph-arquivos/.../5-2011?...no-322011. 2011>. Acesso em: 01 nov. 2012.
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COMERLATO, D. M.; MORAES, J. C. • AlfaSol e Programa Brasil Alfabetizado

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FERRARO, Alceu Ravanello. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo:
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GONÇALVES, Edneia. Alfabetização Solidária, 13 anos: percursos e parcerias
(coord.). São Paulo: Alfabetização Solidária, 2009.
PAIVA, Jane; MACHADO, Maria Margarida; IRELAND, Timothy. Educação de
jovens e adultos: uma memória contemporânea, 1996-2004. Brasília: UNESCO, MEC,
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PERONI, Vera Maria Vidal. Política educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos
1990. São Paulo: Xamã, 2003.
SOARES, Magda B. Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e pers-
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VÓVIO, Cláudia Lemos (assessoria e texto). Alfabetização Solidária: projeto político
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WOOD, Ellen M. Democracia contra Capitalismo: a renovação do Materialismo His-
tórico. São Paulo: Boitempo, 2006.

346
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Sobre autores e autoras

Alexandre José Rossi: Licenciado em Filosofia e Especialista em Fundamentos da


Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Mes-
tre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
junto à linha de pesquisa de Políticas e Gestão de Processos Educacionais, onde
atualmente realiza o doutorado. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos
de Políticas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Tem pesquisado, na área de políticas educacio-
nais, as políticas para a diversidade.
E-mail: aj_rossi@yahoo.com.br

Antonio Olmedo: É membro britânico da Academia Internacional Newton,


baseado no Departamento de Humanidades e Ciências Sociais, Instituto de
Educação da Universidade de Londres, Reino Unido. Trabalha atualmente em
dois projetos de pesquisa, um em privatizações e novas tecnologias da política
na política educacional espanhola, e outro na análise de redes de política globais
e “nova filantropia”.

Daniela de Oliveira Pires: Possui graduação em História Licenciatura Plena pela


Universidade Federal de Santa Maria e graduação em Direito pelo Centro Uni-
versitário Franciscano. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. É doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Atualmente é professora nos cursos de Direito e Pedagogia e
exerce a função de Coordenadora da Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão na
Universidade Luterana do Brasil – Campus Guaíba.
E-mail: danielaopires@yahoo.com.br
Denise Maria Comerlato: Possui graduação em Pedagogia e mestrado e doutora-
do em Educação pela UFRGS. É professora adjunta do Departamento de Estu-
dos Especializados da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, onde desenvolve ações e estudos na área da Educação de Jovens
e Adultos. Coordena o Núcleo Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão
em Educação de Jovens e Adultos – NIEPE-EJA e é membro do Núcleo de
Estudos de Politicas e Gestão da Educação, ambos da Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: denise.comerlato@gmail.com

347
Sobre os(as) autores(as)

Fabíola Borowsky: É graduada em Educação Especial pela Universidade Federal


de Santa Maria, mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Cata-
rina, doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e professora da Rede Municipal de Educação da Prefeitura de Porto Alegre,
onde atua na Educação Especial.
E-mail: fabiolaborowsky@yahoo.com.br
Fátima Antunes: Doutora em Educação, área de conhecimento de Sociologia da
Educação, é professora associada do Instituto de Educação e investigadora do
Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho.
Jaira Coelho: Possui Licenciatura Plena em Pedagogia pela Instituição Educacio-
nal São Judas Tadeu (2005) e mestrado em Educação pela Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul (2010). Atualmente é bolsista Capes/REUNI e dou-
toranda do curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Experiência na área de Educação, com ênfase
nas seguintes temáticas: Formação de professores para a Educação Básica e
Políticas Públicas para Educação de Jovens e Adultos.
E-mail: jaira.cmoraes@hotmail.com
Jaqueline Marcela Villafuerte Bittencourt: Possui Doutorado (2011) e Pós-dou-
torado (2012) em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Tem experiência nessa área com ênfase em Política Educacional, atuando nos
seguintes temas: Alimentação Escolar, Efetividade Social e Avaliação de Políti-
cas Educacionais, Análise da Relação Público/Privada da Educação, Educa-
ção Comparada e Gestão Democrática.
E-mail: jackiebt@gmail.com
João Barroso: Vice-reitor da Universidade de Lisboa e professor catedrático do
Instituto de Educação da mesma Universidade. É licenciado em História pela
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, possui o Diplome d’ Études
Approfondies (DEA) em Ciências da Educação pela Universidade de Bordéus
(França) e é doutorado e agregado em Ciências da Educação pela Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Exerce a sua
atividade docente e de investigação no domínio da Política e da Administração
da Educação, tendo coordenado a equipe portuguesa nos projetos de investiga-
ção: Reguleducnetwork - “Changes in regulation modes and social production
of inequalities in education systems: a European Comparison” (2001-2004) e
Knowandpol – The role of Knowledge in the construction and regulation of
health and education policy in Europe: convergences and specificities among
nations and sectors” (2006-2011), financiados pela União Europeia (fifth and six-

348
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

th Framework Programme for Research). É autor de diversos livros, capítulos de


livros e artigos publicados em Portugal, Brasil, Espanha, França e Bélgica.
E-mail: jbarroso@ie.ul.pt
Laura R. Rodríguez: Universidad Nacional de Luján, profesora investigadora en Polí-
tica educacional. Doctoranda en Ciencias Sociales/Universidad de Buenos Aires.
E-mail: laurobrodri@gmail.com
Liane Maria Bernardi: Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul – UFRGS (em andamento). Mestre em Educação (UFRGS/
2007). Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de História (1991). Graduação
em Estudos Sociais (1989). Professora da Rede Municipal de Porto Alegre e
Professora Colaboradora do Curso de Pós-Graduação em Gestão Escolar
UFRGS/MEC.
E-mail: lianehelo@terra.com.br
Licício C. Lima: É professor catedrático do Departamento de Ciências Sociais da
Educação, do Instituto de Educação da Universidade do Minho, Braga, Portu-
gal. Tem lecionado disciplinas nos domínios da Sociologia das Organizações
Educativas, Administração Educacional, Métodos de Investigação e Políticas
de Educação de Adultos, tendo sido professor convidado e dirigido cursos e
seminários em universidades portuguesas e em várias universidades da Alema-
nha, Brasil, Espanha, França, Holanda e Reino Unido. É autor, coautor e editor
de uma centena e meia de obras, incluindo mais de trinta livros, publicadas em
treze países e em seis distintas línguas.
E-mail: llima@ie.uminho.pt
Lucia Hugo Uczak: Pedagoga. Mestre em Educação pela UFRGS (2005) e douto-
randa em Educação pela UFRGS, na linha de Políticas e Gestão de Processos
Educacionais. Atualmente é professora na Universidade Feevale na área da edu-
cação.
E-mail: lucia.hugo@yahoo.com.br
Luciani Paz Comerlatto: É doutora em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Educação pela Pontifícia Universida-
de Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), especialista em Psicopedagogia
pela mesma universidade e licenciada em História pela Faculdade Porto Ale-
grense de Educação Ciências e Letras (FAPA). Pesquisadora do Nucleo de Es-
tudos de Políticas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Bolsista do curso de Pedago-
gia Parfor do IFRS – Campus Porto Alegre.
E-mail: lucianipaz@gmail.com

349
Sobre os(as) autores(as)

Marcelisa Monteiro: Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (em andamento). Mestre em Educação (UFRGS/2003). Gra-
duação em Pedagogia (1995) e Ciências Sociais (1999) pela Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora Substituta junto ao Depar-
tamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (2008-2010).
E-mail: marcelisam@yahoo.com.br>
Maria de Fátima Oliveira: Possui mestrado (2007) em Educação pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul, pós-graduação em Controladoria (UFRGS/
2000) e graduação em Administração de Empresas (PUC/1995). Tem experi-
ência na área da educação com ênfase em Formação de Professores, atuando
nos seguintes temas: Gestão Democrática, Políticas Públicas, Análise da Rela-
ção Público/Privada da Educação. Além de experiência docente na área da
administração.
E-mail: marfatima8@hotmail.com
Maria Luiza Rodrigues Flores: Graduada em Letras pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (1992), mestrado(2000) e doutorado (2007) em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é pro-
fessora adjunta do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de
Educação da UFRGS, atuando na área de Política e Gestão da Educação. Mem-
bro de Comitê Diretivo do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil
– MIEIB e da Coordenação Colegiada do Fórum Gaúcho de Educação Infantil
nas gestões 2009-2010 e 2011-2012. Tem experiência na área de Educação, com
ênfase em Políticas Públicas de Educação e Legislação Educacional, atuando
principalmente nos seguintes temas: políticas públicas de Educação Infantil,
políticas públicas de Ensino Fundamental, currículo e trabalho docente.
E-mail: malurflores@gmail.com
Maria Otília Kroeff Susin: Graduada em História pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (1982), com mestrado (2005) e doutorado(2009)
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de
pesquisa sobre Políticas Públicas e Processo de Gestão. É professora da Secreta-
ria Municipal de Educação de Porto Alegre. Atualmente é Assessora Pedagógi-
ca do Conselho Municipal de Educação. Tem experiência na área de Educação,
com ênfase em Administração Educacional, atuando principalmente nos se-
guintes temas: gestão democrática, educação infantil, público não estatal, fi-
nanciamento da educação e conselho de educação.
E-mail: otiliasusin@gmail.com

350
Redefinições das fronteiras entre o público e o privado: implicações para a democratização da educação

Maria Raquel Caetano: É doutora em Educação pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Educação pela Pontifícia Universida-
de Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e graduada em Pedagogia. Profes-
sora da Educação Superior na FACCAT. Pesquisadora do Núcleo de Estudos
de Políticas e Gestão da Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: caetanoraquel2013@gmail.com
Maurício Ivan dos Santos: Especialista em Educação Profissional Integrada à
Educação Básica, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (2009). Professor de História do ensino
básico, técnico e tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-
nologia do RS – Campus Canoas.
E-mail: mauricio.santos@canoas.ifrs.edu.br
Monique Robain Montano: Possui graduação em Pedagogia, especialização pela
UFRGS. É professora da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre,
atuando no Conselho Municipal de Educação. Tem experiência na área de Edu-
cação, com ênfase em Gestão, atuando principalmente nos seguintes temas:
políticas públicas, democratização, inclusão, diversidade e educação especial.
E-mail: moniquerobain@gmail.com
Raquel Varela: Historiadora, investigadora doutorada da Universidade Nova de Lis-
boa (UNL), Portugal, e do International Institute for Social History, Amsterdã.
Romir de Oliveira Rodrigues: Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (2006). Professor de Geografia do Ensino Médio e Tecnoló-
gico e coordenador do PROEJA do Instituto Federal do Rio Grande do Sul –
Campus Canoas.
E-mail: romirrodrigues@pro.via-rs.com.br
Sandra Isabel Mateus Duarte: Licenciou-se em Matemática – Ramo Ensino na
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto em 1999. Em 2002 fez na
mesma instituição de ensino o Mestrado em Estatística. Desde 1998 é professo-
ra do 3º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário de Matemática. A
partir de 2006 é professora dos quadros do Ministério de Educação. Foi co-
autora de dois manuais escolares de matemática para alunos dos 7º e 8º anos de
escolaridade. Foi dirigente sindical do Sindicato de Professores da Grande Lis-
boa entre 2007 e 2010. Sempre foi ativista em movimentos sindicais e não sindi-
cais de professores e encarregados de educação.
E-mail: sandra.i.m.duarte@gmail.com

351
Sobre os(as) autores(as)

Stephen J. Ball: É professor de Sociologia da Educação no Departamento de Ciên-


cias Humanas e Ciências Sociais e Centro de Estudos Políticos da Educação Crí-
tica, do Instituto de Educação da Universidade de Londres, Reino Unido e Dire-
tor Editorial do Jornal de Política da Educação. Publicações recentes incluem: O
Debate da Educação: diplomacia e política no século 21 (Bristol: Policy Press, 2008) e
Como as escolas fazem política (Routledge and Global Education Inc., 2012).
E-mail s.ball@ioe.ac.uk
Susana E. Vior: Universidad Nacional de Luján, Directora Maestría en Política y
Gestión de la Educación, Profesora investigadora en Política educacional.
E-mail: svior@unlu.edu.ar
Vera Maria Vidal Peroni: É doutora em Educação e professora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) nos cursos de graduação e pós-gra-
duação em Educação. É pesquisadora em produtividade CNPQ. Participa do
grupo nacional de pesquisa sobre a relação entre o público e o privado na Educa-
ção. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Política Educacional,
atuando principalmente nos seguintes temas: Estado e política educacional,
política educacional brasileira, relação público/privada. Sua pesquisa mais re-
cente trata das parcerias entre sistemas públicos e instituições privadas do ter-
ceiro setor e as implicações para a democratização da educação no Brasil, Ar-
gentina, Portugal e Inglaterra.
E-mail: veraperoni@gmail.com

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