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Resumo
A autora narra a análise de três irmãs, no crepúsculo de
suas vidas, desafio que empreendeu, transitando numa
configuração singular, inspirada por um artigo de Joel
Birman, “Insuficientes, um esforço a mais para sermos
irmãos” (2000).
Palavras-chave
inspiração; fraternidade; função fraterna;
complexo fraterno; luto.
Dois anos antes de me procurar, ela escrevessem sobre lembranças e fatos que
rompera o contato com as irmãs em virtude desejavam me comunicar e sobre as asso-
de mais um desentendimento, e necessi- ciações e reflexões surgidas a partir das ses-
tava de ajuda para reencontrá-las e retomar sões realizadas. Os textos eram enviados
a conversa. pelo correio e me mantinham em contato
Uma amiga em comum as aconselhara com três mulheres inteligentes, sensíveis
a procurar um psicanalista com disponi- e empenhadas. Eu os lia durante o mês e,
bilidade suficiente para a circunstância nos encontros seguintes, apontava dados,
apresentada, pois havia dois obstáculos a palavras e comentários que haviam cha-
enfrentar: o ritmo dos encontros e as dis- mado minha atenção – tanto pela diferença
tâncias geográficas – as três moravam em na abordagem e compreensão de situações
diferentes estados do Brasil. vivenciadas por elas quanto por experiên-
O texto de Birman emergiu de maneira cias e visões tão próximas que configura-
imediata em minha mente, e a psicanálise – vam laços profundos.
seu corpo teórico, técnico e seu método – Outra proposta era de avaliarmos, de
me convocou à coragem de acolher uma tempos em tempos, o sentido do processo
configuração incomum. para elas e a motivação para continuarmos
Se a iniciativa de retomar o contato foi o trajeto.
da mais velha das três, como no filme de E, assim, fomos trabalhando, cons-
Lynch seriam as mais novas que cruzariam truindo nossa trajetória.
o território brasileiro. Inicialmente, atravessamos uma “enxur-
A primeira sessão aconteceu uma semana rada” de queixas de L. em relação às irmãs:
após o telefonema, o que indicava um desejo invejosas de sua beleza, falharam com ela
compartilhado de resgatar o diálogo. em momentos críticos; localizava o pior
deles no momento de sua desastrosa sepa-
ração, quando se negaram a ser suas fiado-
A trajetória ras, fato que, segundo ela, contribuiu para
o problema de relacionamento com duas
Por um ano e meio nos encontramos aos de suas três filhas.
domingos, segundas e quartas-feiras, três Tristeza e desânimo eram a tônica para
sessões seguidas de um intervalo de trinta N., a irmã do meio. “Esse assunto é recor-
dias entre elas. rente, muito discutido, e não saímos do
Duas questões se apresentavam: como lugar”, dizia a caçula A.
mantê-las ligadas ao processo? Como pro- L. rebatia qualquer argumento com
mover o fluxo da narrativa com interrup- intensa irritação, dizendo não aguentar
ções de trinta em trinta dias? mais essas “santinhas, perfeitinhas, para
Desde o início, eu não podia ocu-
par outra posição que não fosse ativa. A
cada material surgido, eu propunha que
quem tudo dá certo, e que vivem bem com de L. Aquilo que elas poderiam chamar
sua prole”. de pitis, uma palavra que indicava algo da
Inveja antiga de um lado, inveja atual ordem de uma baixa tolerância à frustra-
de outro. ção, eu escutava como mais do que isso:
L. relatou que, depois de toda a dificul- não era só uma personalidade volunta-
dade que tinha enfrentado em sua vida, um riosa em ação. Além da atual dor da perda
golpe irreparável ainda havia ocorrido: per- de C., parecia ter se desenrolado uma vida de
dera sua filha mais velha, C., depois de uma desafios críticos que não se resolveram de
sofrida doença. Uma alma irritadiça, dilace- uma forma menos sofrida.
rada e em frangalhos pela morte da filha. A tristeza apareceu com força. L. relem-
Percebi o olhar comovido e compreen- brou a proximidade das irmãs durante a
sivo das irmãs, mas havia também cansaço doença e a morte de C., e acrescentou não
e censura, por conta de a família estar sem- ter mais lágrimas para chorar.
pre às voltas com os problemas de L., seus Impossível não se emocionar. Olhei
“pitis”, desde a infância. com profundo respeito pela sua vida e sua
“Sou um poço de problemas”, L. dizia fre- dor e pelo fato de ainda estar, aos 68 anos,
quentemente, e “a vida não me dá trégua.” lutando para cuidar dos seus conflitos.
Se, por muitas vezes, N. e A. foram soli- Foi N. quem escreveu “quero mudar o
dárias, ampararam L., cuidaram das três disco, mas sem medo” e discorreu sobre ter
queridas sobrinhas e estiveram ao lado da feito muita psicoterapia para curar suas
irmã em toda a doença de C., elas foram doenças psicossomáticas, que a acom-
insuficientes em momentos críticos; reco- panhavam desde a infância, e curar-se
nheciam isso, mas rebatiam a ideia fixa de também da culpa que carregava de ter
L. de que não a ajudaram porque não que- estragado a vida da irmã.
riam. E a inveja coloria as interpretações Nos textos de L. também surgiu a ruína
da mais velha. de seu mundo infantil quando N. nasceu:
Um pedido da mãe a N. e a A. surge o pai, a mãe e ela viviam no Rio de Janeiro,
na conversa: “Aconteça o que acontecer, cercados por uma rede fraterna de vizinhos
nunca internem sua irmã, fiquem sempre generosos. Quando a mãe engravidou, o
ao lado dela”. Esse pedido reverberava há pai foi transferido para trabalhar em São
quarenta anos – uma promessa que procu- Paulo. A adaptação da família foi difícil,
ravam cumprir, relevando muitas crises de e a mãe tornou-se uma mulher irritável e
L. em relação a elas. impaciente.
Enfatizei, para as três, o empenho em O nascimento de N. assemelhou-se, para
cumprir essa promessa, mas a impossibi- L., ao que Freud (1905, citado por Kaës,
lidade de atender a todas as necessidades 2011, p. 25) sublinhou sobre a queda narcí-
sica e o impacto que a vinda ao mundo de
um irmãozinho ou irmãzinha pode trazer
e o ódio a esse intruso. Mas seria só essa
curiosidade, pela atração e pela rejeição que Oeste do Brasil, numa família numerosa,
um sujeito experimenta diante de um outro treze filhos. Era a terceira e desde cedo aju-
semelhante, que, em seu mundo interno, dou a cuidar dos irmãos menores. Algumas
ocupa o lugar de um irmão ou irmã” (p. 11). crianças morreram, todas mais novas que a
A tônica das primeiras sessões das irmãs mãe, com idades e de causas diferentes.
fora a rivalidade, a inveja – de um lado, Dirigi-me a L. e disse: “Sua mãe não foi
L. invejada na infância; de outro, ela res- assustada por N., e sim pelas experiências
sentida e invejando a vida atual das irmãs. dolorosas e os fantasmas do passado”.
No entanto, outros aspectos do complexo A associação, construída com elas, entre
fraterno, desenvolvido segundo Kaës, como os dois tempos do passado, promoveu uma
o amor, a curiosidade, a atração e as identifi- pequena aproximação entre L. e N.
cações, necessitavam ser investigados. Foi necessário explicitar o ponto de con-
tato, o momento de intenso sofrimento par-
tilhado pelas duas, mas as consequências
Retomando o trajeto diferentes para cada uma delas: em L., uma
perturbação em seu desenvolvimento psí-
Compartilhamos um percurso, partindo quico, e, em N., um quadro duradouro
de uma relação pulsante e viva, carregada de problemas de pele e alergias sérias,
de hostilidade e ressentimento, e atingimos atenuado com muitos anos de trabalho
aquilo que parecia ser a primeira fratura na psicoterapêutico.
função do cuidado com o outro: o trata- E ainda tínhamos que lidar com a devas-
mento escolhido pelo tio materno e pelo pai. tadora perda de C., a “pá de cal” na vida
No momento até aqui relatado, podía- turbulenta de L.
mos compreender o alcance do pedido da Relatos comovidos sobre a doença e a
mãe de que as irmãs nunca internassem L. morte da filha e sobrinha querida, “garota
Uma interrogação marcava presença: doce e talentosa, a artista da família”, tra-
será que entre o nascimento de L. e N. a zem à tona muitas lembranças de momen-
mãe perdera algum bebê? tos de proximidade e solidariedade.
Diante da negação de qualquer acon- L. recupera duas irmãs, insuficientes,
tecimento desse tipo, insisti que a inten- mas que acompanharam o processo, soli-
sidade do desespero da mãe e a fantasia dárias e ativas, cuidando, cada uma a seu
singular, morte de um bebê, pareciam modo, dela e de C.
indicar que ela vivenciara algo assim, em Surgiu, então, o projeto de publicar um
algum momento de sua vida. livro com uma história infantil, escrita por
Então, as três irmãs compartilharam a L. e ilustrada por C.
seguinte narrativa: a mãe nasceu no Centro- N. e A. oferecem ajuda, mas conseguem
compreender a falta de coragem e energia
de L., e que esta ajuda seria insuficiente
diante do sofrimento e do desalento da irmã.
A fraternidade, pois, implica essa igual- isso ainda existe no nosso mundo, apesar
dade dos sujeitos perante o mundo, fundada de todos os pesares” (p. 175).
que foi na precariedade, acompanhada da Procurei narrar a experiência vivida
solidariedade entre eles. durante o trabalho analítico com L., N. e
Porém, Birman nos alerta que A., em sua busca de alguma compreensão
para desentendimentos e conflitos que se
a fraternidade não é absolutamente uma repetiam ao longo de suas vidas, expressões
substância permanente e consistente, mas de uma fratura da função fraterna: uma
sim um estado que pode, contudo, se pro- história verdadeira de perdas traumáticas
longar ou se dissolver, de acordo com o que nos conduziu a um luto impedido de
desejo dos sujeitos que participam nesta elaboração, transmitido de geração para
rede de laços inter-humanos. Isto porque geração, até a morte de C.
a qualquer momento alguém ou um grupo A coragem dessas irmãs para realizar
de pessoas pode se acreditar superior aos essa trajetória analítica, propiciando que
demais, pretendendo sair dessa rede e ocu- revisitássemos juntas um doloroso passado,
par uma posição de absoluta soberania. ressignificando as experiências traumáticas
(2000, p. 186) desse passado e revelando novos sentidos,
possibilitou a reconstrução da solidarie-
Podemos compreender melhor o alcance dade e o resgate do sentimento de frater-
do artigo “Insuficientes, um esforço a mais nidade para elas.
para sermos irmãos”, quando o autor des- Depois de um ano e meio, encerramos
taca que o Festival de Cannes, de 1999, nosso trabalho, mas até hoje ocupo um
trouxe à luz uma resposta ao mal-estar que lugar de encontro e amparo em momentos
vivenciamos há tempos nessa sombria reali- de conflito pontual ou de uma mudança de
dade atual. Tanto assim que até um diretor rota, necessária, que pode impactar princi-
como David Lynch, cujos filmes se caracte- palmente a mais velha.
rizam por um tom amargo e árido, procu- A última vez que as vi foi em 2014,
rou resgatar, em Uma história verdadeira, durante o lançamento do livro de L., que
o cultivo dos bons sentimentos, como o da contou com a fundamental colaboração
fraternidade. de sua filha caçula. Momento importante,
Para Birman, este filme não é a narração talvez com o valor da elaboração do luto
de uma fábula, e sim uma verdadeira histó- da morte da mais velha. Ao seu lado, na
ria. Ele ainda interpreta a obra como uma mesa em que autografava sua obra, estava
mensagem do diretor a todos nós: “Como a foto de C. e, ao redor dela, toda a família
se quisesse nos dizer, em alto e bom som, e vários amigos, L. parecia serena.
La autora narra el análisis conjunto de tres The author describes the psychoanalysis of three
hermanas, en el crepúsculo de sus vidas, desafío sisters in the sunset of their lives. The author
que emprendió, transitando por una configuración undertook this challenge, going through a singular
singular, inspirada por un artículo de Joel Birman, configuration, inspired by Joel Birman’s article,
“Insuficientes, un esfuerzo más para que seamos “Being insufficient, our extra effort to be brothers”
hermanos” (2000). (2000).
Palabras clave: inspiración; fraternidad; función Keywords: inspiration; fraternity/brotherhood; fraternal
fraternal; complejo fraterno; luto. function/brotherly function; fraternal complex/
brother complex; mourning.
Referências
Birman, J. (2000). Insuficientes, um esforço a mais para Kaës, R. (2011). O complexo fraterno (L.M. E. Orth, Trad.).
sermos irmãos. In M.R. Kehl (Org.), Função fraterna Aparecida, SP: Ideias & Letras.
(pp. 171-208). Rio de Janeiro: Relume Dumará. Sater, A. & Teixeira, R. (1992). Tocando em frente [gravada
Freud, S. (1993). Tótem y tabú. In S. Freud, Obras comple- por Almir Sater]. In Almir Sater ao vivo [CD]. Sony
tas (J.L. Echeverry, Trad., Vol. 13, pp. 11-191). Buenos Music.
Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1913)