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A fratura da função fraterna

Eliana da Silveira Cruz Caligiuri

Revista Brasileira de Psicanálise Eliana da Silveira Cruz Caligiuri  é


volume 49, n. 3, p. 41-52 · 2015 membro associado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São
Paulo (SBPSP).

Resumo
A autora narra a análise de três irmãs, no crepúsculo de
suas vidas, desafio que empreendeu, transitando numa
configuração singular, inspirada por um artigo de Joel
Birman, “Insuficientes, um esforço a mais para sermos
irmãos” (2000).
Palavras-chave
inspiração; fraternidade; função fraterna;
complexo fraterno; luto.

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Inspiração que adquiriu, para mim, a qualidade de lei-


tura inesquecível e emocionante, o lugar
de uma inspiração.

D esde 1900, na passagem do século XIX


para o século XX, quando a psicanálise foi A escolha
lançada ao “mar da humanidade” através
de um dos textos de seu criador Sigmund A escolha de um recorte da profunda ela-
Freud, o fundamental A interpretação dos boração que Birman empreende em seu
sonhos, que os psicanalistas são fertiliza- texto foi necessária. Tentarei demonstrar o
dos por produções escritas de generosos sentido da articulação com o caso clínico
colegas, dedicados à transmissão e difusão que compartilharei com o leitor.
dos conceitos elaborados durante mais de O autor constrói parte da narrativa sobre
cem anos e, também, à reformulação de a fraternidade, palavra que “indica, direta-
tais conceitos diante das transformações mente, o seu sentido etimológico origi-
sociais, culturais e tecnológicas. nário, isto é, o frater, o irmão” (Birman,
De tempos em tempos, somos impac- 2000, p.  176), através da análise de três
tados por livros e artigos para além da filmes: Uma história verdadeira, do dire-
novidade. São escritos que provocam uma tor David Lynch, Tudo sobre minha mãe,
reviravolta na escuta e na compreensão das de Pedro Almodóvar, e Mifune, de Søren
narrativas de nossos analisandos, e desper- Jacobsen. São obras que ressaltam os temas
tam emoções profundas em nossas almas. da velhice e o laço fraternal, do feminino e
Isso foi o que a mim ocorreu durante a lei- o cuidado e da loucura, respectivamente.
tura do livro Função fraterna, organizado por O autor compõe o restante do texto com
Maria Rita Kehl, lançado no ano 2000, data o aprofundamento de suas ideias, inspira-
mítica da virada do século XX, cem anos após das por essas produções culturais. Para ele,
o lançamento da pedra fundamental dessa fraternidade ultrapassa os laços da família
área do conhecimento da psique humana. e os laços de sangue.
Uma publicação fundada no desejo com- Ao relatar a história de um homem que
partilhado de um grupo de autores com o decide iniciar uma viagem em um trator,
objetivo de problematizar a função fraterna atravessando vários estados norte-americanos,
na atualidade, trazendo à luz a discussão para o reencontro com seu irmão mais velho,
teórica sobre a função dos semelhantes em gravemente doente, e de quem se afastara
sua primeira encarnação na vida psíquica – por dez anos em virtude de um desentendi-
o irmão –, tanto na constituição de cada mento, Birman entrelaça o laço amoroso que
sujeito quanto na formação do laço social. os unia, os traços na memória de uma vida
No interior do livro encontrei o belís-
simo artigo “Insuficientes, um esforço a
mais para sermos irmãos”, de Joel Birman,

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compartilhada e ainda acrescenta um valor o travesti Agrado, “altruísta nos menores


positivo para a culpa, caso esta fosse uma detalhes de sua existência” (p. 179).
interpretação para compreender tal atitude: Será construída em torno da enfermeira,
após a trágica perda de seu filho, uma rede
ser alguém ainda empurrado por ações amoro- de mulheres que compartilham os desen-
sas e altruístas pela culpa é um signo alentador cantos com a vida e ajudam-se mutuamente,
de que algo da ordem do possível pode ainda promovendo um conforto recíproco “e uma
nos acontecer. Vale dizer, ser ainda um sujeito certa tolerância com o mal-estar da exis-
capaz de reparação das faltas para com as figu- tência, que se transforma até mesmo numa
ras amadas é um signo crucial de que o mundo experiência de alegria” (p. 180).
na atualidade ainda é eticamente habitável, Para o autor, esse filme narra também a
tendo em vista que traz de volta para a existên- condição masculina na atualidade: a difi-
cia a problemática da responsabilidade. (p. 177) culdade de reconhecer a mulher em sua
singularidade, gerando um desencanto e
Durante o percurso, o personagem viven- até uma impossibilidade de identificação
cia diversas situações em que a função fra- por parte do travesti, que deseja ser mulher
terna opera: alguns encontros fortuitos em para cuidar do outro.
que compartilha seus parcos recursos, e outros Para Birman, “o feminino é um dos polos
nos quais conta com o auxílio, o acolhimento possíveis da atualidade para algo que seja da
e o amparo de pessoas desconhecidas. ordem da fraternidade propriamente dita,
O que estimulava insistentemente o espí- na medida mesma em que a feminilidade
rito do homem, para tal árdua empreitada, implica cuidado com o outro” (p. 181).
eram a memória das conversas antigas, A leitura do livro citado, especialmente
sempre animadas, e o desejo de resgatar do artigo que destaquei até aqui, me acom-
tudo o que se perdera no “turbilhão de panhou em estado latente em alguns
duas vidas desencontradas” (p. 174). momentos e, em outros, iluminando aná-
O epílogo é o encontro emocionado do lises em que a função fraterna saltava aos
ancião, extenuado, com seu irmão mais olhos de forma manifesta.
velho, abatido pela doença, mas alegre e Mas nada próximo ao que ocorreu em
reconhecido com o generoso gesto. 2009 – portanto, nove anos após a leitura.
Se a narrativa de Lynch é a respeito de É o que apresentarei a seguir.
dois irmãos, no filme Tudo sobre minha
mãe serão as mulheres, não reunidas por
laços de sangue, as heroínas da fraterni- O rompimento
dade: uma enfermeira e mãe, uma prosti-
tuta e até um simulacro de mulher como Julho de 2009.
O silêncio se instaurara entre L. e suas
únicas irmãs, N. e A., quatro e oito anos
mais novas.

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Dois anos antes de me procurar, ela escrevessem sobre lembranças e fatos que
rompera o contato com as irmãs em virtude desejavam me comunicar e sobre as asso-
de mais um desentendimento, e necessi- ciações e reflexões surgidas a partir das ses-
tava de ajuda para reencontrá-las e retomar sões realizadas. Os textos eram enviados
a conversa. pelo correio e me mantinham em contato
Uma amiga em comum as aconselhara com três mulheres inteligentes, sensíveis
a procurar um psicanalista com disponi- e empenhadas. Eu os lia durante o mês e,
bilidade suficiente para a circunstância nos encontros seguintes, apontava dados,
apresentada, pois havia dois obstáculos a palavras e comentários que haviam cha-
enfrentar: o ritmo dos encontros e as dis- mado minha atenção – tanto pela diferença
tâncias geográficas – as três moravam em na abordagem e compreensão de situações
diferentes estados do Brasil. vivenciadas por elas quanto por experiên-
O texto de Birman emergiu de maneira cias e visões tão próximas que configura-
imediata em minha mente, e a psicanálise – vam laços profundos.
seu corpo teórico, técnico e seu método – Outra proposta era de avaliarmos, de
me convocou à coragem de acolher uma tempos em tempos, o sentido do processo
configuração incomum. para elas e a motivação para continuarmos
Se a iniciativa de retomar o contato foi o trajeto.
da mais velha das três, como no filme de E, assim, fomos trabalhando, cons-
Lynch seriam as mais novas que cruzariam truindo nossa trajetória.
o território brasileiro. Inicialmente, atravessamos uma “enxur-
A primeira sessão aconteceu uma semana rada” de queixas de L. em relação às irmãs:
após o telefonema, o que indicava um desejo invejosas de sua beleza, falharam com ela
compartilhado de resgatar o diálogo. em momentos críticos; localizava o pior
deles no momento de sua desastrosa sepa-
ração, quando se negaram a ser suas fiado-
A trajetória ras, fato que, segundo ela, contribuiu para
o problema de relacionamento com duas
Por um ano e meio nos encontramos aos de suas três filhas.
domingos, segundas e quartas-feiras, três Tristeza e desânimo eram a tônica para
sessões seguidas de um intervalo de trinta N., a irmã do meio. “Esse assunto é recor-
dias entre elas. rente, muito discutido, e não saímos do
Duas questões se apresentavam: como lugar”, dizia a caçula A.
mantê-las ligadas ao processo? Como pro- L. rebatia qualquer argumento com
mover o fluxo da narrativa com interrup- intensa irritação, dizendo não aguentar
ções de trinta em trinta dias? mais essas “santinhas, perfeitinhas, para
Desde o início, eu não podia ocu-
par outra posição que não fosse ativa. A
cada material surgido, eu propunha que

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quem tudo dá certo, e que vivem bem com de L. Aquilo que elas poderiam chamar
sua prole”. de pitis, uma palavra que indicava algo da
Inveja antiga de um lado, inveja atual ordem de uma baixa tolerância à frustra-
de outro. ção, eu escutava como mais do que isso:
L. relatou que, depois de toda a dificul- não era só uma personalidade volunta-
dade que tinha enfrentado em sua vida, um riosa em ação. Além da atual dor da perda
golpe irreparável ainda havia ocorrido: per- de C., parecia ter se desenrolado uma vida de
dera sua filha mais velha, C., depois de uma desafios críticos que não se resolveram de
sofrida doença. Uma alma irritadiça, dilace- uma forma menos sofrida.
rada e em frangalhos pela morte da filha. A tristeza apareceu com força. L. relem-
Percebi o olhar comovido e compreen- brou a proximidade das irmãs durante a
sivo das irmãs, mas havia também cansaço doença e a morte de C., e acrescentou não
e censura, por conta de a família estar sem- ter mais lágrimas para chorar.
pre às voltas com os problemas de L., seus Impossível não se emocionar. Olhei
“pitis”, desde a infância. com profundo respeito pela sua vida e sua
“Sou um poço de problemas”, L. dizia fre- dor e pelo fato de ainda estar, aos 68 anos,
quentemente, e “a vida não me dá trégua.” lutando para cuidar dos seus conflitos.
Se, por muitas vezes, N. e A. foram soli- Foi N. quem escreveu “quero mudar o
dárias, ampararam L., cuidaram das três disco, mas sem medo” e discorreu sobre ter
queridas sobrinhas e estiveram ao lado da feito muita psicoterapia para curar suas
irmã em toda a doença de C., elas foram doenças psicossomáticas, que a acom-
insuficientes em momentos críticos; reco- panhavam desde a infância, e curar-se
nheciam isso, mas rebatiam a ideia fixa de também da culpa que carregava de ter
L. de que não a ajudaram porque não que- estragado a vida da irmã.
riam. E a inveja coloria as interpretações Nos textos de L. também surgiu a ruína
da mais velha. de seu mundo infantil quando N. nasceu:
Um pedido da mãe a N. e a A. surge o pai, a mãe e ela viviam no Rio de Janeiro,
na conversa: “Aconteça o que acontecer, cercados por uma rede fraterna de vizinhos
nunca internem sua irmã, fiquem sempre generosos. Quando a mãe engravidou, o
ao lado dela”. Esse pedido reverberava há pai foi transferido para trabalhar em São
quarenta anos – uma promessa que procu- Paulo. A adaptação da família foi difícil,
ravam cumprir, relevando muitas crises de e a mãe tornou-se uma mulher irritável e
L. em relação a elas. impaciente.
Enfatizei, para as três, o empenho em O nascimento de N. assemelhou-se, para
cumprir essa promessa, mas a impossibi- L., ao que Freud (1905, citado por Kaës,
lidade de atender a todas as necessidades 2011, p. 25) sublinhou sobre a queda narcí-
sica e o impacto que a vinda ao mundo de
um irmãozinho ou irmãzinha pode trazer
e o ódio a esse intruso. Mas seria só essa

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configuração psíquica a assolar a relação Houvera uma ruptura longitudinal na


entre as duas? vida familiar. A mãe, que sempre cuidou
N. reagiu ao relato de L. sobre o fato dos irmãos, não contou com o amparo
de ela ter privilégios, cuidados e mimos, fraterno e, para L., a vinda da irmã trou-
e rebateu raivosamente: “Eu não trouxe a xera a perda do lar, de um funcionamento
desgraça para sua vida”. psíquico mais estável da mãe. Então, a
A palavra desgraça reverberou e interro- possível curiosidade a respeito do bebê
guei: por que a vinda de N. teria sido tão deslocou-se para um ambiente esquisito
danosa à irmã? habitado por uma população estranha.
L. tomou a palavra e narrou que N. nas-
ceu com baixo peso e saúde frágil, e que
sua mãe “enlouqueceu”, sendo internada Complexo fraterno
em um hospital psiquiátrico.
Fui surpreendida por essa informação. Inspirada que fui pelo artigo de Birman,
Uma história congelada foi-se derre- continuei pesquisando outras publicações
tendo durante a sessão, conforme os rela- sobre a importância das relações entre os
tos compartilhados entre as três iam se irmãos e encontrei o livro Complexo fraterno
sucedendo. (2011), de René Kaës, dedicado ao tema.
Havia um leitmotiv, um tema constante Segundo suas ideias, as relações entre
na família: a mãe “enlouquecera” com irmãos constituem um verdadeiro com-
uma ideia desesperadora e obsessiva de plexo, entendendo este como um “dos
que N. morreria. organizadores psíquicos inconscientes […]
O pai, ocupando cargo novo, sem con- de todo laço: de família, de casal, de grupo”
dições de cuidar dela, pediu ajuda a um (p. 46).
dos irmãos da mãe, que era psiquiatra. Para este autor, as relações entre irmãos
Diante do diagnóstico de uma psicose não se limitam à questão do intruso nem se
pós-parto, tomaram a decisão de interná- caracterizam só por ódio, ambição e inveja.
la. A mãe concordou impondo uma única Ele considera que o complexo fraterno
condição: levar as filhas com ela. As três “é constituído por diversos tipos de mate-
foram conduzidas a uma área isolada da riais: ele é sustentado pelos fantasmas do
instituição. desejo, investimentos pulsionais e de rela-
Sem outro adulto que se ocupasse dela, ção de objeto, identificações e imagos,
sem brinquedos, lápis ou papel, L. se dis- mecanismos de defesa, etc.” (p. 42).
traía olhando, através das janelas com gra- Às dimensões anteriores se articulam o
des, o pátio e os movimentos dos outros amor, a ambivalência, e sua estrutura é “orga-
habitantes do hospital. nizada conjuntamente pela rivalidade e pela
Essa dramática experiência operou uma
fratura indelével na função fraterna. Talvez
irreparável?

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curiosidade, pela atração e pela rejeição que Oeste do Brasil, numa família numerosa,
um sujeito experimenta diante de um outro treze filhos. Era a terceira e desde cedo aju-
semelhante, que, em seu mundo interno, dou a cuidar dos irmãos menores. Algumas
ocupa o lugar de um irmão ou irmã” (p. 11). crianças morreram, todas mais novas que a
A tônica das primeiras sessões das irmãs mãe, com idades e de causas diferentes.
fora a rivalidade, a inveja – de um lado, Dirigi-me a L. e disse: “Sua mãe não foi
L. invejada na infância; de outro, ela res- assustada por N., e sim pelas experiências
sentida e invejando a vida atual das irmãs. dolorosas e os fantasmas do passado”.
No entanto, outros aspectos do complexo A associação, construída com elas, entre
fraterno, desenvolvido segundo Kaës, como os dois tempos do passado, promoveu uma
o amor, a curiosidade, a atração e as identifi- pequena aproximação entre L. e N.
cações, necessitavam ser investigados. Foi necessário explicitar o ponto de con-
tato, o momento de intenso sofrimento par-
tilhado pelas duas, mas as consequências
Retomando o trajeto diferentes para cada uma delas: em L., uma
perturbação em seu desenvolvimento psí-
Compartilhamos um percurso, partindo quico, e, em N., um quadro duradouro
de uma relação pulsante e viva, carregada de problemas de pele e alergias sérias,
de hostilidade e ressentimento, e atingimos atenuado com muitos anos de trabalho
aquilo que parecia ser a primeira fratura na psicoterapêutico.
função do cuidado com o outro: o trata- E ainda tínhamos que lidar com a devas-
mento escolhido pelo tio materno e pelo pai. tadora perda de C., a “pá de cal” na vida
No momento até aqui relatado, podía- turbulenta de L.
mos compreender o alcance do pedido da Relatos comovidos sobre a doença e a
mãe de que as irmãs nunca internassem L. morte da filha e sobrinha querida, “garota
Uma interrogação marcava presença: doce e talentosa, a artista da família”, tra-
será que entre o nascimento de L. e N. a zem à tona muitas lembranças de momen-
mãe perdera algum bebê? tos de proximidade e solidariedade.
Diante da negação de qualquer acon- L. recupera duas irmãs, insuficientes,
tecimento desse tipo, insisti que a inten- mas que acompanharam o processo, soli-
sidade do desespero da mãe e a fantasia dárias e ativas, cuidando, cada uma a seu
singular, morte de um bebê, pareciam modo, dela e de C.
indicar que ela vivenciara algo assim, em Surgiu, então, o projeto de publicar um
algum momento de sua vida. livro com uma história infantil, escrita por
Então, as três irmãs compartilharam a L. e ilustrada por C.
seguinte narrativa: a mãe nasceu no Centro- N. e A. oferecem ajuda, mas conseguem
compreender a falta de coragem e energia
de L., e que esta ajuda seria insuficiente
diante do sofrimento e do desalento da irmã.

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Mulheres heroínas de uma saga femi- sentimento de destino trágico, à origem do


nina: uma mãe que “enlouqueceu” com qual a repetição acaba por animar a psique
medo da morte da filha e outra mãe que do irmão ou da irmã sobrevivente. (p. 219)
“enlouqueceu” de dor com a morte real
de uma filha. Durante o atendimento, e com o des-
congelar da história da mãe de L., N. e A.,
fui compreendendo e revelando às três que
Um luto não elaborado o que ocorrera com ela durante a gravi-
dez e nascimento de N. era apenas a ponta
Foi no livro citado de Kaës que encontrei do iceberg de perdas traumáticas, algumas
o capítulo “A morte de um irmão, o luto delas exatamente como as assinaladas por
de um filho”. Kaës, congeladas com a impossibilidade de
O autor sublinha que a morte precoce de serem elaboradas e compartilhadas. Esta-
um filho é uma situação anormal para pais e beleceu-se “uma aliança de silêncio, e um
filhos sobreviventes, e destaca que devemos pacto de desconhecimento (ou de resistên-
tomar em consideração as circunstâncias da cia) entre as gerações de tal sorte que nin-
morte, a diferença de idade entre o vivo e o guém seja confrontado com o trabalho de
morto, seus lugares no grupo familiar e que luto” (p. 219).
o destino psíquico da morte de um irmão
ou irmã está entrelaçado ao trabalho de luto
dos pais para seu filho. Memórias
Kaës nomeia algumas configurações
como pactos intergeracionais de resistên- Se os textos delas, sempre muito bem escri-
cia ao luto, quando situações traumáticas, tos, iluminavam e motivavam o desenrolar
como morte súbita de um bebê, mortes por das sessões, procurei ampliar o espaço não
acidente ou falecimento repentino no hos- só para a continuidade da narrativa, mas
pital, ocorrem e permanecem fora do luto também para a possibilidade de outro tipo
dos pais. Segundo ele: de linguagem. Com a informação dos gostos
familiares a respeito de literatura, pintura e
Nos lutos difíceis ou patológicos no filho, o música sugeri inicialmente a produção de
impacto dos lutos tornados impossíveis para desenhos de família, acompanhados de his-
a geração precedente fixa, na repetição do tórias. A produção de cada uma foi trazida
retorno do morto, uma relação com um em um encontro e houve uma transforma-
duplo não enterrado. ção no clima das sessões seguintes.
[…] De início, uma curiosidade se instau-
Essas histórias têm a particularidade de refe- rou entre elas: queriam ver suas produções,
rir-se à transmissão psíquica dos efeitos da
morte de um dos filhos sobre os irmãos e
irmãs e sobre sua descendência e de criar o

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comentavam semelhanças e diferenças e os ‚‚ elas na Kombi do pai na Fonte dos Amores;


traços característicos de cada uma. Inter- ‚‚ elas, a mãe e todos os netos;
pretaram-se umas às outras e se surpreen- ‚‚ a formatura de 15 anos de L.
deram com detalhes na composição das
famílias: na de L., todas as pessoas tinham Imagens que despertaram, naquele
a forma humana e ela, de mãos dadas com instante do percurso, uma “enxurrada”
o pai, ficava de um lado da folha, enquanto de lembranças significativas e esqueci-
sua mãe e as irmãs, de mãos dadas, do das: a fazenda dos avós, “o melhor lugar
outro lado. A fratura familiar. do mundo”, em que as férias eram sempre
N. elaborou uma colagem contendo alegres para elas.
uma pessoa em perigo e uma série de outras E nossa atenção dirigiu-se para duas das
pessoas na beira do lago, no alto de uma fotos: a primeira é a que mostra L. olhando
árvore, ninguém olhando para ninguém e com carinho para a bebezinha no seu colo,
muito menos para aquela que estava em imagem que trouxe um bem-estar para elas;
perigo. Relações fraturadas. Ausência de a segunda, a da formatura de L. – N. conta
fraternidade. que a irmã foi uma referência para ela quanto
A caçula A. desabafou que desenhar tinha ao jeito de se vestir, se maquiar, arrumar o
aliviado a “gastura” que sentia ao pensar cabelo, e que aquele dia foi muito especial,
que, “na altura dos 60 anos, ainda ­remoíam “ela parecia uma artista de cinema”; para os
mal-entendidos de forma amargurada”. 7 anos de A., foi um “maravilhamento”, toda
Encontros fora do consultório passaram a casa às voltas com a preparação da irmã,
a ocorrer e até um almoço na casa de L. “parecia estarmos no filme da Cinderela”.
Brincadeiras, piadas a respeito de idios- Momento marcante, quando surgiu
sincrasias de cada uma surgiram nas ses- uma agradável oposição à ideia de L. de
sões, acompanhadas de lembranças de que as irmãs eram só invejosas, como no
momentos de “camaradagem, conversas, conto de fadas.
filosofias, cumplicidade”, no dizer de A. Pessoas significativas em suas vidas cir-
A repercussão desta experiência me levou cularam nessas sessões e elas atualizaram
a sugerir a escolha de fotos significativas informações.
para cada uma delas. Ao longo do processo, minha presença
Surpresa geral ocorre com a apresenta- foi se transformando naquela que testemu-
ção das escolhidas: nha o intenso trabalho de resgate de uma
história fraterna, a reparação de danos,
‚‚ L. segurando N. no colo; algumas vezes involuntários, e a tentativa
‚‚ as três em uma charrete na fazenda dos de atenuar o sofrimento mais intenso de L.
avós; O apelo de N., “quero mudar o disco”,
despertou o desejo de adentrarmos nesse
terreno tão caro a elas. Sugeri que, além das
músicas significativas na vida de cada uma,

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escolhessem também aquelas que lembras- fraternidade, da operação da função fra-


sem as irmãs e, se pudessem gravá-las, eu terna, pois todo cuidado era pouco para
providenciaria uma forma de ouvirmos não ser guiada por uma ilusão ingênua e
juntas. N. e A. relataram quão agradável pueril da relação entre irmãos.
tinha sido a busca e a gravação das músicas Desde remotas eras, sabemos da exis-
em suas casas. L. não pôde gravar e trouxe tência de irmãos que não compartilham
sua seleção por escrito. E novamente ela qualquer sentimento fraterno, e a vida e
vivencia a experiência de ter muita coisa a literatura estão aí a nos contar histórias
em comum com as irmãs. A maior parte das carregadas de ódio entre os semelhantes.
suas escolhidas puderam ser ouvidas porque É em Freud, no vigoroso texto Totem e
estavam nos CDs das irmãs. tabu (1913/1993), que encontramos a nar-
Sessões divertidas, embaladas pelos pri- rativa sobre a formação do laço fraterno,
mórdios do rock‘n’roll, pelos Beatles e pela laço este fundado a partir da ideia da horda
MBP, e emocionantes, no instante em que primitiva e do limite imposto ao pai pri-
escutamos “Gente humilde”, de Chico mordial, onipotente e autossuficiente,
Buarque, “Tempo rei”, de Gilberto Gil, assassinado por aqueles que reconhece-
e “Tocando em frente”, de Almir Sater e ram sua própria condição de precarie-
Renato Teixeira, da qual reproduzo alguns dade e insuficiência diante de uma figura
versos: tão poderosa. No trecho que reproduzo a
seguir, Freud desenvolve suas ideias sobre
Todo mundo ama um dia as transformações ocorridas no grupo após
Todo mundo chora o parricídio:
Um dia a gente chega
E no outro vai embora Os sentimentos sociais fraternos, sobre os
Cada um de nós compõe quais descansa a grande subversão, conser-
a sua história vam a partir de então e por muito tempo
Cada ser em si carrega a influência mais profunda sobre o desen-
o dom de ser capaz volvimento da sociedade. Procuram expres-
E ser feliz. (1992) são na santidade do sangue em comum, no
realce da solidariedade entre todo vivo que
pertença ao mesmo clã. Assim os irmãos
Um final em aberto asseguram a vida uns aos outros, enun-
ciando que nenhum deles pode ser tratado
O percurso analítico com L., N. e A. foi por outro como todos em comum trataram
acompanhado por uma visão ampliada de o pai. (p. 147)

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A fraternidade, pois, implica essa igual- isso ainda existe no nosso mundo, apesar
dade dos sujeitos perante o mundo, fundada de todos os pesares” (p. 175).
que foi na precariedade, acompanhada da Procurei narrar a experiência vivida
solidariedade entre eles. durante o trabalho analítico com L., N. e
Porém, Birman nos alerta que A., em sua busca de alguma compreensão
para desentendimentos e conflitos que se
a fraternidade não é absolutamente uma repetiam ao longo de suas vidas, expressões
substância permanente e consistente, mas de uma fratura da função fraterna: uma
sim um estado que pode, contudo, se pro- história verdadeira de perdas traumáticas
longar ou se dissolver, de acordo com o que nos conduziu a um luto impedido de
desejo dos sujeitos que participam nesta elaboração, transmitido de geração para
rede de laços inter-humanos. Isto porque geração, até a morte de C.
a qualquer momento alguém ou um grupo A coragem dessas irmãs para realizar
de pessoas pode se acreditar superior aos essa trajetória analítica, propiciando que
demais, pretendendo sair dessa rede e ocu- revisitássemos juntas um doloroso passado,
par uma posição de absoluta soberania. ressignificando as experiências traumáticas
(2000, p. 186) desse passado e revelando novos sentidos,
possibilitou a reconstrução da solidarie-
Podemos compreender melhor o alcance dade e o resgate do sentimento de frater-
do artigo “Insuficientes, um esforço a mais nidade para elas.
para sermos irmãos”, quando o autor des- Depois de um ano e meio, encerramos
taca que o Festival de Cannes, de 1999, nosso trabalho, mas até hoje ocupo um
trouxe à luz uma resposta ao mal-estar que lugar de encontro e amparo em momentos
vivenciamos há tempos nessa sombria reali- de conflito pontual ou de uma mudança de
dade atual. Tanto assim que até um diretor rota, necessária, que pode impactar princi-
como David Lynch, cujos filmes se caracte- palmente a mais velha.
rizam por um tom amargo e árido, procu- A última vez que as vi foi em 2014,
rou resgatar, em Uma história verdadeira, durante o lançamento do livro de L., que
o cultivo dos bons sentimentos, como o da contou com a fundamental colaboração
fraternidade. de sua filha caçula. Momento importante,
Para Birman, este filme não é a narração talvez com o valor da elaboração do luto
de uma fábula, e sim uma verdadeira histó- da morte da mais velha. Ao seu lado, na
ria. Ele ainda interpreta a obra como uma mesa em que autografava sua obra, estava
mensagem do diretor a todos nós: “Como a foto de C. e, ao redor dela, toda a família
se quisesse nos dizer, em alto e bom som, e vários amigos, L. parecia serena.

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52 A fratura da função fraterna
Eliana da Silveira Cruz Caligiuri

La fractura de la función fraternal The fracture of the fraternal function

La autora narra el análisis conjunto de tres The author describes the psychoanalysis of three
hermanas, en el crepúsculo de sus vidas, desafío sisters in the sunset of their lives. The author
que emprendió, transitando por una configuración undertook this challenge, going through a singular
singular, inspirada por un artículo de Joel Birman, configuration, inspired by Joel Birman’s article,
“Insuficientes, un esfuerzo más para que seamos “Being insufficient, our extra effort to be brothers”
hermanos” (2000). (2000).
Palabras clave: inspiración; fraternidad; función Keywords: inspiration; fraternity/brotherhood; fraternal
fraternal; complejo fraterno; luto. function/brotherly function; fraternal complex/
brother complex; mourning.

Referências
Birman, J. (2000). Insuficientes, um esforço a mais para Kaës, R. (2011). O complexo fraterno (L.M. E. Orth, Trad.).
sermos irmãos. In M.R. Kehl (Org.), Função fraterna Aparecida, SP: Ideias & Letras.
(pp. 171-208). Rio de Janeiro: Relume Dumará. Sater, A. & Teixeira, R. (1992). Tocando em frente [gravada
Freud, S. (1993). Tótem y tabú. In S. Freud, Obras comple- por Almir Sater]. In Almir Sater ao vivo [CD]. Sony
tas (J.L. Echeverry, Trad., Vol. 13, pp. 11-191). Buenos Music.
Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1913)

[Recebido 19.08.2015, aceito em 02.09.2015] Eliana da Silveira Cruz Caligiuri


Rua Guilherme Bannitz, 90, conj. 34
04562-060 São Paulo, SP
Tel: 11 3845-5205
elianacali@terra.com.br

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