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Capítulo I

Hora de Partir?

A manhã se apresentava fria e úmida na cidade de Tunts, a brisa do mar soprava fortes
rajadas de vento para a cidade trazendo sal e areia. Meldels, um elfo do Sol, remanescente de uma
linhagem nobre, cabelos loiros e arrepiados, pele clara e olhos castanhos claros foi o primeiro a deixar
a cama da estalagem onde ele e seus amigos passaram a noite. Era um quarto pequeno no segundo
andar da construção, três camas beliches se espremiam uma nas outras, a única e pequena janela dava
vista para uma viela e, a também única, porta era para o corredor e para as escadas que levavam ao
primeiro andar.

O elfo se vestiu, pegou seu sobretudo roxo com adornos de peles, arrumou o cabelo, e
desceu as escadas a procura do bar que ficava no primeiro andar. Sua fome era enorme e ele não
aguentava mais esperar para saborear uma grande caneca de chá e alguns ovos. Há alguns dias não
tinha uma refeição digna. O bar era arejado, ocupava grande parte do primeiro andar da estalagem,
algumas mesas se dispunham nada simétricas pelo salão e a aparência matinal não era nada
convidativa, a sujeira e o cheiro de cerveja amanhecida nos tampos das mesas e no chão impregnavam
o ambiente, por sorte as janelas estavam abertas e o cheiro não chegava a incomodar tanto. Uma criança
de mais ou menos sete anos se encarregava de um balde com água e começava a limpeza que não seria
fácil.

Como a fome não podia esperar Meldels se deslocou até o balcão de madeira no canto
direito da sala, ao lado da porta de entrada do local, onde uma senhora de uns 35 anos, cabelos ruivos
encaracolados, de médio porte, esguia e sorridente se prostrava.

‒ Deseja alguma coisa? ‒ perguntou ela. Sua voz era estridente e alta. Era a voz que ele
havia ouvido a noite toda ordenando à cozinha por comida e aceitando pedidos de bebidas.

‒ Quero uma grande caneca de chá preto e alguns ovos fritos, se tiver algum pão também
vou querer. Estou faminto. Há vários dias não tenho um café da manhã decente e entendo esta ser a
melhor refeição do dia, ‒ respondeu Meldels, com uma voz ainda fraca de quem acabara de acordar.

‒ Eu concordo, o café da manhã é muito importante mesmo. Já vou providenciar o pedido,


somente pedimos que acerte o valor antes pois estamos acostumados a receber viajantes que comem e
somem. Não me leve a mal mas esta é a ordem do dono do estabelecimento e apenas a sigo .‒ disse
ela sem se envergonhar, afinal estava acostumada a atender todo tipo de pessoa que ali se hospedava.
O valor é de duas peças de ouro.

‒- Sem problemas distinta dama. Todavia somente tenho essa moeda no valor de cinco
peças de ouro então gostaria que, se possível, a senhora acrescentasse mais uma porção de pães e uma
garrafa de cerveja para viagem, assim nem eu e nem você temos prejuízo. Vou me sentar naquela mesa
ao fundo próximo a janela, assim tenho uma vista do porto.

A senhora concordou, recebeu o valor, colocou em um baú com mais algumas moedas, o
trancou e se dirigiu a cozinha. Durante aquela manhã seria apenas ela e a criança a tomar conta do
estabelecimento. O dono, um homem alto, gordo, careca, de aproximadamente 40 anos e seu filho mais
velho, também alto e careca, porém com um porte físico atlético, que os tinham recebido na noite
anterior, haviam saído para comprar os mantimentos e reabastecer a despensa. Durante as manhãs, a
estalagem permanecia fechada e somente poderiam ali trafegar os hóspedes. Uma vez que saíssem só
poderiam retornar no período vespertino.

Se deslocou para a mesa quadrada, feita de madeira de demolição ou resto de algum barco,
que ficava encostada na parede. Haviam na mesa dois bancos grandes sem encosto, da mesma madeira
da mesa, que acomodavam aproximadante seis pessoas. O cheiro era igual ao cheiro de todo o local,
mas esta mesa por estar mais arejada já não fedia tanto. Aliás parecia ser o melhor lugar do bar pois
tinha a vista do salão inteiro. Escolheu o banco de frente para o salão e igualmente de frente para o
balcão se acomodando para esperar a comida ordenada.

Sentado na mesa do bar o elfo observava o menino esfregar o chão com muito pouca
vontade. O dia não parecia muito bom pra ele mas era o seu trabalho. Olhou de relance pela janela, viu
que alguns barcos se aproximavam do porto e se lembrou que deveria procurar uma embarcação que
os tirasse de Calindora.

‒ Mas para onde? Para Alemmar ou talvez Irla Handia ‒ pensou. Já estivera em Irla
Handia, o outro continente ao norte, há muito tempo e os últimos acontecimentos indicavam que
deveria para lá voltar.

Tigrael, seu amigo elfo que ainda dormia havia passado por muitos apuros, tendo sua vida
quase ceifada por seu Irmão. Kaah Puk, um halfling, integrante da companhia, também havia se ferido
muito na última jornada e necessitava de uma nova energia para se recuperar. Por fim, Lucandorff, o
mago, tinha uma bússola que apontava incessantemente para noroeste em direção a Falátia.

Sem comunicar os amigos, decidiu que naquele dia encontraria uma embarcação que os
levasse para o norte em direção à Irla Handia. Esperava que isso não fosse problema para os demais.
Decidiu que procuraria um Barco para Azken ou numa melhor sorte um barco que adentrasse a Baia
de Barne e os deixassem mais próximos à Falátia, na cidade portuária de Atea. Os pensamentos iam
longe e por uns minutos a fome havia sido deixada de lado, todavia o cheiro que vinha da cozinha
anunciava que seu desjejum estava a caminho.

Não demorou muito e Soznia, a atendente trouxe a bandeja com os ovos a caneca de chá
preto e os pães. Também trouxe enrolada em um pano sujo os pães sobressalentes e uma garrafa escura
que parecia conter cerveja. Colocou a comida sobre a mesa, se despediu e voltou para seus afazeres
na cozinha. A estalagem não estava muito cheia mas logo os demais hóspedes acordariam e poderiam
requerer algo.

O chá preto era forte e com um gosto muito amargo, não era o melhor já provado, parecia
velho e guardado há muito tempo. Os ovos, em contrapartida estavam ótimos. Três grandes ovos
mexidos e muito bem temperados. Cortou o pão, recheou com os ovos e deu uma grande bocada.
Saboreou cada nota daquela simples refeição como se fosse a última. Sabia que se conseguisse o barco
não teria ovos por algum tempo. No máximo pão seco e suco de alguma laranja velha para evitar o
escorbuto. Comer era um dos prazeres do elfo. Sua taverna preferida era a do Tigre Banguela, em
Rubenor, onde se podia tomar o melhor vinho de uvas Silvestres e comer um grande omelete de ovo
de ursos coruja, bacon de javali e perninhas de rã cantadoras do lago Ulmer

Não demorou e viu seu amigo Lucandorf aparecer no local, ainda desajeitado, parecia que
tinha tido pesadelos a noite toda e suas olheiras eram gigantes. Lembravam o urso panda. Ele estava
com suas vestes e trazia consigo o grimório do Diabo da Montanha, item que havia conseguido dias
antes e a bússola dourada que ao ser colocada sobre o livro apontava para noroeste.

Lucandorf estava intrigado com o acontecido pois até então a bússola nada fazia, era
apenas um artefato de ouro no qual havia encontrado magia e decidiu trazê-la consigo. Também estava
curioso. Queria entender as anotações em uma língua que jamais tinha visto. As olheiras do mago
logo foram explicadas. Ao se sentar à mesa disse para o colega, que acabava de colocar a última fatia
de pão na boca, que passara a noite toda tentando entender o texto mas a única palavra que conseguira
ler por estar escrita no alfabeto Calindoriano era “ZURIA”.

Nesse momento Meldels quase engasga. Ao ouvir a palavra tudo fez ainda mais sentido.
A sensação de que deveria ir a Falátia ou a Irla Handia estava certa e não por acaso. Aquele grimório
de alguma maneira indicava aquilo.

‒- Zuria é a regente de Falátia, meu amigo. Uma guerreira muito conhecida em terras
além deste continente. Ela Governa há mais de 80 anos; não a conheço mas sua fama é muito grande.
Liderou a ofensiva nortenha e desenhou os termos de pacificação da costa oeste. Disse o bardo após
retomar o ar. Já estive naquele continente há uns 20 anos. Conheci as principais cidades e as histórias
do local. Acho que poderá encontrar as respostas para seus questionamentos se formos para lá. Tome,
coma este pão enquanto encomendou mais comida para nossos amigos que já devem estar acordando.
Ao dizer isso Meldels abriu o embrulho, entregou um dos pães ao amigo cerrou seu punho direito
estalou os dedos da mão esquerda e a moeda que havia sido usada para pagar a sua conta reapareceu
em sua mão. Se dirigiu ao balcão ordenou à senhora mais três chás e, igualmente, três omeletes. Pagou
Outra vez com a moeda e subiu as escadas para ver se os outros dois dorminhocos já haviam acordado.

Ao subir as escadas percebeu que o local não estava tão cheio. Além de seu quarto, apenas
mais um dos outros seis quartos estava ocupado. Percebeu pois era o único com a porta fechada e um
ronco alto se ouvia. Nem precisou andar mais, Tigrael e Kaah Puk já haviam levantado e se
encaminhavam para o bar. A cara de poucos amigos dos dois não escondia que haviam tido muitos
problemas nos dias anteriores. As cicatrizes ainda não curadas não deixava mentir.

Tigrael, era um elfo guerreiro, de olhos ansiosos, cabelos bagunçados, pele bronzeada e
corpo flexível. Era patrulheiro nas bordas da Floresta Encantada. Há alguns dias recebera uma cicatriz
enorme em seu peito que nem magicamente havia sido curada. Suas raízes foram expostas, ele era um
príncipe e seus pais, aos quais depositara seu amor, não eram os pais biológicos, esses foram mortos
há muitos anos. Os sentimentos ainda eram ambíguos e as dores físicas e mentais eram aparentes.

Kaah Puk era um halfling Xáire, pele morena com tatuagens tribais pretas e vermelhas
pelo corpo todo e cabeça, olhos pretos selvagens; cabelos verdes em moicano seguindo até o meio das
costas como uma crina, costeletas e sobrancelhas volumosas e bagunçadas da mesma cor, descendente
direto da linhagem principal de um dos quatro Grandes Irmãos, Peregrin Pûk, nasceu com a bênção da
Floresta, marcado pelos cabelos verdes e dotado de um grande poder. Também nos últimos dias teve
sua vida no fio da navalha, muitas cicatrizes em seu corpo e sua alma tinham sido feitas. Não obstante
tinha perdido sua lança e escudos de estimação, uma das últimas lembranças de seu povo e suas
origens. Sua irritação também se dava por ser druida da floresta se sentia muito incomodado em estar
dormindo em uma estalagem em uma das principais cidades de Calindora.

‒- Que bom que acordaram, já encomendei o desjejum para os dois, mesmo sabendo que
você não precisa se alimentar Kaah. Comer algo é um prazer que nem você pode negar. ‒ disse
sorridente. Vamos descer que eu e Lucandorf temos algumas novidades para lhes contar.

Os três desceram a escada ignorando o quarto fechado a sua esquerda. Se dirigiram à


mesa onde Lucandorf examinava mais uma vez a bússola e o grimório do mago. Existiam muitas
páginas em branco entre os feitiços anotados e aquilo não fazia nenhum sentido. Ademais tinham
muitas anotações em um alfabeto desconhecido por ele o que o deixava muito inquieto. Estava tão
entretido que não havia notado que a comida estava na mesa e um pequeno camundongo se aproximava
dos pães.

Ao ver os amigos se aproximando o jovem mago nota a comida, espantou o ratinho, pegou
um dos pães secos recheia com o omelete e deu uma grande bocada. Ele se surpreendeu com o gosto
da comida. Assim como Meldels e seus outros dois amigos, ele também não se alimentara bem nos
dias anteriores. Suspeitou que o tempero que melhor tempera qualquer comida é a fome.

Os quatro se acomodaram na mesa, Tigrael e Kaah Puk se serviram de uma porção de


comida. Uma rajada de ar frio entrou no local. A maresia deixava o clima mais estranho. Estavam no
verão mas a manhã era fria. Uma frente fria vinda do sul trazia os ventos e, provavelmente, agitaria o
mar por uns dias. A lua cheia dos próximos dias também aumentaria a maré, assim, o quanto antes
zarpassem para o desconhecido, melhor. Um porém, Meldels não havia contado aos amigos sobre a
viagem.

‒- Meus amigos, depois de comerem devemos arrumar nossas coisas o mais rápido
possível e partir pois ainda devemos encontrar um barco para nos deslocarmos para Irla Handia. D ‒
disse o bardo sem titubear e como se tudo já estivesse arranjado e explicado aos demais. Sua entonação
inspirava confiança e suas aulas de interpretação quando jovem lhe concedia esse dom. Parecia natural
ao dizer qualquer coisa ainda que fosse as maiores barbaridades audíveis.

‒- O que você quer dizer com Irla Handia? ‒ perguntou Kaah Puk, ainda mal acordado e
mal humorado.

‒- E quem decidiu que vamos para este lugar ai ? ‒ complementou Tigrael, com um tom
de desaprovação.

‒- Me perdoem, por um lapso de memória esqueci de lhes contar algumas coisas. Como
sabido não somos mais bem vistos em algumas partes deste reino. Também não temos mais muito o
que fazer nesta cidade. Não é a cidade de nenhum de nós e nada nos oferece. Ontem, ao analisar sua
bússola e o grimório do Diabo da Montanha, Lucandorf descobriu que eles, por algum motivo, indicam
a direção de Faláatia. Ainda há o nome da Regente deste reino nos escritos. D ‒ disse Meldels em um
tom de voz calmo.

‒- Isso mesmo. Bem, pelo menos quanto ao nome “Zuria” escrito no grimório e quanto a
búBussola. Quanto às demais afirmações eu não tenho certeza. Desconheço o continente citado e sua
história. Sempre que coloco a bússola sobre o livro ela deixa de marcar errado e aponta para noroeste.
Além do mais, quando a coloco em cima do nome seu ponteiro muda de cor, fica branco e isso me
tirou o sono. ‒ disse Lucandorf ainda com uma fatia de pão na boca.
‒ E quem garante que isso está indicando para este tal continente, como se chama,
Orlandia? R ‒ retrucou o druida.

‒ Também nunca ouvi falar de Falandia e Hirlátia. Não confio muito em grimórios que
indicam locais e muito menos em bússolas mágicas. Estamos todos machucados, quebrados, não temos
tanto dinheiro. Sinto cheiro de mais problemas. ‒ complementou o guerreiro, após beber um grande
gole do chá amargo e fazer uma careta.

‒ Irla Handia, meus amigos, Irla Handia. O continente ao norte. Uma grande ilha cheia
de novas histórias e novas aventuras. Podemos descobrir o que esse grimório está querendo nos
mostrar. Podemos tentar encontrar a cura para sua cicatriz meu amigo. Ouvi histórias de uma floresta
mágica ao norte da ilha, que muito pode te interessar Kaah. Se meu palpite estiver errado, podemos
apenas voltar e cada um toma seu rumo. ‒ contemporizou Meldels com uma voz charmosa.

‒- Estou disposto a descobrir o que está por trás dessa bússola e desse livro. Não tenho
nada melhor a fazer, não mais sou um Vagalume. Há muito tempo tenho esse item e até o momento
não sabia o que fazer com ele. Acho que vou aceitar a sugestão de Meldels. Ele se mostrou um grande
companheiro em nossa última jornada e nada indica que estará fazendo isso para me prejudicar.
Gostaria muito que os demais nos acompanhassem afinal funcionamos bem juntos e precisarei de toda
ajuda necessária para a nova empreitada. Entretanto todos nós somos livres e caso queiram podem
tomar seus rumos e partirem para onde bem entenderem ‒ disse Lucandorf.

‒- Seria ótimo. A ilha é linda naturalmente. A sua história riquíssima. Não perderão nada
conhecendo um novo continente. Novas habilidades podem ser descobertas, novos contatos podem ser
feitos, uma infinidade de oportunidades. Ou..., ‒ o bardo faz uma pausa dramática. Vocês podem voltar
a vida que tinham antes de se enrolarem com Solaris e Ras. Se preferirem esta segunda opção, prometo
que quando voltar conto as novas histórias vividas e lhes trago algumas lembranças para lhes dar caso
nos encontremos novamente. ‒ complementou o bardo agora entusiasmado com o aceite de seu amigo
mago. Não estaria sozinho nessa nova viagem.

O silêncio ecoou por um instante, somente se ouviam o barulho da água no balde enquanto
o menino ainda esfregava o chão e o vento de fora da taverna,que na viela em que se encontravam,
assoviava alto. Os quatro agora amigos, se encontravam em uma situação jamais vivida. Na outra
ocasião não tiveram essa opção. Seguiram juntos pois era a única saída e suas vidas estavam
igualmente em perigo. Agora era diferente. Cada um poderia escolher o que fazer. Cada um tinha uma
natureza, planos para sua vida. Tigrael precisava encontrar quem dizimara sua aldeia. Kaah Puk ainda
era um emissário da nova diáspora. Todos ficaram pensativos e não balbuciaram mais nenhuma palavra
até que toda comida e chá não mais restasse.
O silêncio foi quebrado pelo barulho vindo do segundo andar. A pessoa que roncava alto
havia acordado e estava descendo as escadas e, provavelmente, se juntaria a eles no bar. Não na mesma
mesa pois haviam muitas outras vazias, mas no local. O barulho do ranger das escadas de madeira e
as batidas secas de botas denunciavam o ser que descia e de alguma forma quebrava a tensão que
pairava no ar. Os amigos sentados à mesa não falaram nada mas suas feições mostravam que estavam
curiosos com quem apareceria.

Até o menino, agora mais sujo de fuligem, que limpava a sala parou intrigado para ver
quem descia as escadas fazendo tanto barulho. Por um instante se apoiou no velho e encardido esfregão
e apenas observou. Nem era tanto barulho mas a manhã estava tão quieta que até o barulho dos roedores
que habitavam as frestas da construção pareceria o bramido de um olifante adulto grande.

O Barulho foi se aproximando e logo surgiu um homem de média estatura, vestindo um


turbante vermelho com bordados que cobria seu rosto, roupas de couro batido e utensílios comum aos
piratas. Trazia pendurado em suas vestes coisas de diferentes lugares do mundo conhecido e
desconhecido em uma harmonia exageradamente singular. Era bem alinhado apesar da rusticidade de
suas vestes entretanto uma coisa chamava muito a atenção: calçava botas de pares diferentes. Uma
delas de cano longo feita de couro de jacaré e adornada com pedras semipreciosas e uma fivela dourada
e a outra de cano mais baixo, prateada, aparentemente com escamas de algum animal marinho, sem
muito adorno ou cor. Ambas pareciam da mesma altura de solado o que não fazia aquela pessoa
mancar.

A pessoa passou pelo bar, ignorou o menino que nesse momento já voltara esfregar o
chão, e se dirigiu para a mesa no canto oposto ao que estavam sentados. Uma mesa redonda também
de madeira, com quatro cadeiras de assento redondo sem encosto. Se acomodou em um destas cadeiras,
colocou a mão em um dos bolsos, tirou uma fruta que aparentava ser uma maçã, esfregou-a num pano
tão sujo que seria melhor comer do jeito que estava e a mordeu. Em nenhum momento olhou para os
quatro amigos que neste momento apenas o observavam.

‒- Então? Estamos todos de acordo em partir hoje? A frente fria se aproxima e a lua cheia
também. Se enrolarmos mais um pouco perdemos a oportunidade e não sei quantos dias teremos que
esperar aqui. Não obstante percebi que vários novos barcos aportaram e algum deles deve nos levar ao
nosso destino. ‒ exclamou Meldels, tornando-se novamente o centro das atenções da mesa.

‒- Eu concordo em partirmos. Preciso de algum tempo para organizar minhas coisas e por
mim podemos sair e procurar mantimentos e o transporte. Podemos também coletar mais informações
com as pessoas no porto sobre esse novo continente que o nosso músico quer nos apresentar ‒
respondeu Lucandorf, decidido a descobrir o que aqueles itens significavam. A curiosidade era um de
seus maiores problemas e já o tinha colocado em situações muito complicadas, todavia dessa vez sua
curiosidade estava amparada em dois itens mágicos e tinha o apoio de mais uma pessoa que concordara
e o incentivara a partir.

Os dois que já haviam se pronunciado se olharam e então olharam para os outros dois que
ainda permaneciam em silêncio pensativos. Sobrepesavam todas as opções que lhes restavam e se a
nova jornada lhes seria de alguma valia. Não eram tão amigos para aceitarem embarcar em uma
aventura tão grande sem antes analisarem bem o caso. Sabiam que Meldels renunciou seu privilégio
nobre, abandonou sua casa e familiares para rodar o mundo, conhecer contar e fazer história, então
qualquer oportunidade de sair dali seria uma ótima pedida e para ele fazia sentido. Não duvidavam
muito de seus conhecimentos pois nos momentos em que estavam juntos todas as informações sobre
as histórias do mundo conhecido por ele trazidas eram úteis e verdadeiras contudo aquilo seria
suficiente? Lucandorf também não inspirava muita confiança. Será que valeria a pena abandonar o
continente por uma bússola que não apontava para o norte? As dúvidas eram muitas.

Soznia aparecera no balcão e chamou seu filho que limpava o salão:

‒- Piotr, traga já esse balde pra cá. Preciso que vá até o porto e traga algum peixe. O
senhor que está sentado sozinho na mesa quer peixe para o almoço, já encomendou ontem a noite e
me esqueci de informar ao senhor Lindberg e seu filho para trazerem peixe. O valor pago foi alto e
não ficariam satisfeitos com a devolução do dinheiro. Traga um grande peixe. Vá, ande logo. E quando
voltar trate de parar de enrolar. Já está limpando há mais de uma hora e ainda não limpou um quarto
do salão. Deixe de ficar abanando o rabo e trabalhe. Dependemos desse dinheiro para sobreviver.

A cena acalmou os ânimos dos quatro amigos que acharam engraçada a forma como a
mãe se dirigiu ao menino anunciando o prato pedido pelo desconhecido como se não houvesse mais
ninguém no ambiente. Com os ânimos mais calmos Kaah Puk disse:

‒- Não estava muito disposto a deixar Calindora, mas entendo que devo seguir com vocês.
Tenho uma dívida de vida com os dois que me salvaram então, apesar de ser contra a ideia, irei. Mas
já aviso que caso não me sinta confortável ou logo após chegarmos onde a bússola aponta devo voltar
para cá. Ainda tenho muito a fazer por aqui. Um segundo Expurgo está próximo, e apenas saí do
isolamento para coletar informações e avisar os sábios do continente. Também esta seria uma forma
de provar que não sou um traidor conforme vocês me intitularam.

Tigrael nesse momento olha com uma cara de desaprovação para os três. Não está nem
um pouco confortável com a ideia de deixar Calindora. Ainda mais após se descobrir um nobre. Mas
sabe que tal informação não é tão boa. Sua linhagem nobre não é das melhores. Seus pais biológicos
haviam sido mortos por seu avô que num ritual tentou dominar o continente. Se permanecesse sozinho
com essa informação seria alvo constante. A contragosto percebe que no momento a melhor opção é
se juntar aos três amigos nessa jornada, se fortalecer em terras onde é desconhecido e voltar mais
preparado para sua terra é uma boa justificativa.

‒- Acho que vocês precisarão de punhos nesta jornada. Um pouco de força pura e bruta
nunca é demais. Sem mim o grupo é composto apenas por não combatentes. Pude perceber isso em
nossa última incursão. Então a contragosto, me junto a vocês. Preciso me tornar mais forte e acredito
que a viagem para Horladia vai ser de grande Valia.

‒- Irla Handia! ‒ exclamou o bardo. Você tem que aprender o nome do local. Caso se
perca no mar, deve saber pra onde ir ‒ disse isso e riu.

Nesse momento ao ouvir o nome do continente o homem até então sentado na mesa
sozinho sem conversar com ninguém se vira para os amigos debatendo e fala:

‒- Perdoem-me a intromissão, mas não pude deixar de ouvir. Vocês estão indo para onde
em Irla Handia? Tenho um barco saindo esta noite do porto em direção ao continente. É um barco
cargueiro mas posso transportá-los até lá, caso seja de vosso interesse. Vou até a cidade portuária de
Sartzen, faço apenas uma parada no farol de Lanus para deixar alguns mantimentos e então sigo para
Sartzen.

Os quatro então silenciaram e olharam para a estranha figura que até então os ignorava.
Sua voz era forte. No momento que viraram para o estranho, este tirou o capuz e revelou sua face.
Olhos raivosos de um negro profundo e nariz fino, sua pele é queimada pelo sol e exalta o moreno
mais claro, cabelo preto como corvo, crespo e emaranhado em tranças adornadas com ossos e jóias,
presas em com coque alto. Abaixo dos olhos e cobrindo todo zigomático, tatuagens feitas a contragosto
finalizando com uma barba baixa que se prende ao queixo.

‒- Me perdoem mais uma vez, esqueci de me apresentar. Me chamo Pepr. Sou o imediato
num navio cargueiro chamado Zathara. Estamos levando chá de boldo, cânhamo, pitaia e peiote do
deserto profundo para Sartzan. São especiarias muito valiosas naquela cidade. Nosso barco não é muito
grande mas é rápido e ágil. Não é confortável também pois não é um navio de passageiros, todavia
consigo um local para colocar mais quatro redes caso queiram. Não cobrarei caro pois o navio nem é
meu. Apenas estarei lucrando um pouco. Eu ajudo e vocês me ajudam. Um bom negócio, não é? ‒
termina a frase e sorri, revelando seus dentes grandes e brancos com um diastema central.

A proposta do marinheiro pareceu interessante e veio a calhar. Mas não parecia muito
certo já fechar o contrato de transporte, pois ainda que verbal, seria um contrato. Precisavam conhecer
a pessoa que os transportaria e o barco, antes de literalmente embarcarem na jornada. As feições dos
quatro amigos denunciavam a desconfiança. Percebendo a tensão causada, Pepr voltou a falar.
‒- Não precisam decidir agora. Ainda é cedo e só partiremos tarde da noite. Os homens
estão carregando o barco e somente terminarão no final da tarde. Podem almoçar comigo, encomendei
um pequeno banquete e serão bem vindos a mesa. Apenas tragam as bebidas e se juntem a mim na
refeição. Assim nos conhecemos melhor o que tornará a proposta mais viável. E não se acanhem, caso
queiram ver o barco, informo que está no porto na plataforma de número sete. Não lhes será permitido
embarcar pois da mesma forma que podem estar desconfiados de mim meus marinheiros serão
desconfiados de vocês. Podem olhar por fora e verão que é um belo barco. A tripulação também não é
grande, então se vocês aceitarem a carona me ajudam na navegação. Uma mão lava a outra e as duas
lavam as partes.

A proposta do estranho marinheiro parecia ter mais corpo agora. Já tinham mais
informações, poderiam ver o barco e conheceriam seu imediato mais a fundo no almoço por este
proporcionado. Já tinham uma garrafa de cerveja adquirida por Meldels e precisariam apenas gastar
mais umas poucas moedas. Ainda que não aceitassem a viagem o almoço estaria garantido por uma
pequena quantia.

‒- Será um prazer almoçar com você, e queremos sim ver seu barco. Vamos subir,
organizar nossas coisas e por volta de meio dia retornamos para o almoço. ‒ respondeu Tigrael seco e
objetivo. Não esboçou qualquer sentimento. Se levantou olhou para os amigos e saiu em direção ao
quarto. Foi seguido por Lucandorf e Kaah Puk que assentiram com a cabeça para o homem da mesa
ao lado.

Meldels olhou mais uma vez pela janela e pensou que tudo estava indo muito bem, nem
precisara sair da estalagem e já tinha uma proposta de viagem para onde tinha desejo de ir. Outrossim
estava desconfiado pois tudo estava indo muito certo e a vida real não é assim. De qualquer forma ele
se sentiu entusiasmado tomou ar, pegou a garrafa de cerveja que estava sobre a mesa se despediu de
Pepr com um até logo e subiu para o quarto para arrumar suas coisas. De qualquer forma partiriam
hoje, no barco Zathara ou em qualquer outro que pudessem ir para o norte.

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