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Temas Emergentes

de Sociologia
Autora: Profa. Jane Barros Almeida
Colaboradoras: Profa. Maria José da Silva Dias
Profa. Tânia Sandroni
Professora conteudista: Jane Barros Almeida

Doutora em Sociologia pela Unicamp (2014), mestre em Educação, na área de Trabalho e Educação, pela
Universidade Federal Fluminense – UFF (2007) e graduada em Ciências Sociais – Sociologia pela Unicamp (2004).
Foi professora substituta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj-FEBF). Trabalhou como pesquisadora
e gestora executiva do Projeto Outro Brasil – Laboratório de Políticas Públicas, em que atuou na área de educação
e formação popular (Uerj), e foi orientadora de aprendizagem do Curso de Especialização lato sensu de Formação
Docente em Educação Profissional na Saúde na EaD/Ensp/Fiocruz. Possui experiência com a modalidade EaD,
assim como dialoga com as áreas de saúde pública e coletiva. Atualmente é professora adjunta da Universidade
Paulista – UNIP e da Uniesp‑SP.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A447t Almeida, Jane Barros de.

Temas Emergentes de Sociologia. / Jane Barros de Almeida. 2. ed.


São Paulo: Editora Sol, 2020.

108 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Temas emergentes. 2. Sociologia. 3. Conflitos socioambientais.


I. Título.

CDU 301

U420.45 – 20

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


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Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Carla Moro
Juliana Mendes
Sumário
Temas Emergentes de Sociologia

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA.......................................................................................................9
1.1 A persistência da desigualdade e a estratificação social: o debate acerca da
interseccionalidade e dos marcadores sociais das diferenças.......................................................9
1.2 As bases sociais da desigualdade.................................................................................................... 10
1.3 O neoliberalismo e o chão social contemporâneo da desigualdade................................ 13
1.4 Os marcadores sociais das diferenças teóricas e estruturais............................................... 14
1.5 Apontando caminhos: a interseccionalidade e a Teoria da Articulação
de Stuart Hall................................................................................................................................................. 17
2 FIM DA CENTRALIDADE DO TRABALHO: UM NOVO TIPO DE SOCIEDADE OU
NOVAS FORMAS DE PRECARIZAÇÃO?......................................................................................................... 19
2.1 O trabalho perde sua centralidade: o discurso para a fundação de uma
nova sociedade.............................................................................................................................................. 20
2.2 A gênese da Teoria da Sociedade da Informação.................................................................... 25
2.3 Trabalho e conhecimento sob a ótica da Teoria do Valor..................................................... 27
2.4 A falácia da “revolução tecnológica”............................................................................................ 27
2.5 A tentativa de hegemonizar o trabalho imaterial................................................................... 30
2.6 A centralidade do trabalho: trabalho como gênese da sociedade capitalista.............. 34
2.7 A metamorfose do trabalho: novas formas de precarização na sociedade
do capital......................................................................................................................................................... 38
2.8 A empregabilidade como solução para o desemprego estrutural..................................... 39
2.9 Quem é o precariado?......................................................................................................................... 41
3 EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI: RELATÓRIO DELORS – UMA PROPOSTA DE
EDUCAÇÃO PÓS‑MODERNA, UMA QUESTÃO PARA A SOCIOLOGIA............................................... 43
3.1 Educação para o século XXI: Projeto Delors............................................................................... 44
3.2 Pós‑modernidade: o discurso do “novo” na tentativa de revitalizar o “velho”........... 51
4 EDUCAÇÃO AO LONGO DE TODA A VIDA: MÉSZÁROS VERSUS DELORS................................... 58
Unidade II
5 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: OS RECURSOS NATURAIS DIANTE DOS DESAFIOS
CONTEMPORÂNEOS............................................................................................................................................ 70
5.1 A relação homem‑natureza.............................................................................................................. 70
5.2 Desenvolvimento sustentável: uma realidade possível?....................................................... 71
5.3 A crise hídrica: uma das facetas contemporâneas da crise ambiental........................... 72
5.4 A ação dos movimentos sociais....................................................................................................... 74
6 PERSPECTIVAS TEÓRICAS DA SOCIOLOGIA............................................................................................ 76
6.1 O pós‑estruturalismo francês e os culturalistas ingleses...................................................... 76
6.1.1 Os estudos culturais: uma nova perspectiva sobre a cultura e o sujeito.......................... 77
6.2 Stuart Hall: historicização radical do sujeito............................................................................. 79
6.3 Anthony Giddens: o teórico da terceira via................................................................................ 80
7 O PÓS‑ESTRUTURALISMO FRANCÊS: A RADICALIZAÇÃO HISTÓRICA......................................... 80
7.1 Michel Foucault: sujeito e poder.................................................................................................... 82
7.2 A Sociologia Pública de Michel Borawoy.................................................................................... 83
7.3 Florestan Fernandes: um representante da sociologia pública brasileira....................... 85
8 O MARXISMO COMO MÉTODO SOCIOLÓGICO..................................................................................... 87
APRESENTAÇÃO

A premissa que norteia a missão da Universidade Paulista – UNIP e o curso de Licenciatura em


Sociologia é atuar para o progresso da comunidade, para o fortalecimento da solidariedade entre os
homens e para o desenvolvimento do país. Assim, a disciplina Temas Emergentes de Sociologia tem
como objetivo habilitar profissionais para o exercício da docência e para que sejam capazes de analisar e
compreender a realidade social em seus múltiplos aspectos. Preparar profissionais éticos e competentes,
com sólida formação teórica e metodológica nas áreas que compõem o campo científico das Ciências
Sociais – Antropologia, Sociologia e Ciência Política.

Parte‑se das seguintes questões: quais são os temas recorrentes da Sociologia contemporânea e
quais sãos as teorias explicativas que dão conta da análise dos problemas atuais? A disciplina Temas
Emergentes de Sociologia abordará a permanência de problemas estruturais da sociedade contemporânea
e de novos temas que ganham relevância num contexto de mudanças sociais. Trataremos tanto das
desigualdades sociais quanto da interseccionalidade das formas de estratificação social em curso, bem
como problematizaremos as permanências e mudanças do cenário atual.

A seguir, a disciplina analisará as possibilidades de inclusão social de amplos contingentes


populacionais que se encontram às margens dos direitos sociais. Essa análise se pauta pela compreensão
dos rumos do mercado de trabalho e do sentido da educação na contemporaneidade.

Com base nisso, a disciplina se voltará para a análise do trabalho na sociedade contemporânea.
Analisará especificamente a condição do trabalhador assalariado, bem como os limites da expansão
desse mercado e suas consequências para a vida social, especificamente os problemas inerentes ao
processo de flexibilização do trabalho.

O livro‑texto tratará a questão das lutas sociais pela preservação do meio ambiente analisadas
como um tema emergente na Sociologia contemporânea, que é vista como elemento central para a
preservação do direito à vida das próximas gerações.

Por fim nos voltamos para as análises teóricas do mundo contemporâneo. Quais são as matrizes
teóricas que explicam os problemas da sociedade atual? A partir das releituras contemporâneas do
marxismo, procuramos compreender a profundidade analítica do interacionismo simbólico e a
emergência de uma nova forma de fazer Sociologia, voltada para o público, e não só para a Academia.

Espera‑se que este livro‑texto contribua para subsidiar sua compreensão dos novos temas colocados
pela sociedade contemporânea e das novas perspectivas teóricas que procuram dar conta da explicação
dos fenômenos sociais.

O propósito aqui é fornecer ao aluno material de apoio para o acompanhamento da disciplina Temas
Emergentes de Sociologia. As questões que o permeiam são: quais são os grandes temas emergentes no
campo da Sociologia? Quais são os pressupostos teóricos que permitem a compreensão desses temas?

7
INTRODUÇÃO

A Sociologia é uma ciência que analisa as formas de interação dos indivíduos em sociedade. Por ter
um objeto de estudo vivo e em constante movimento, é uma ciência que busca compreender e analisar
o fluxo permanente das mudanças sociais.

A disciplina Temas Emergentes de Sociologia busca compreender algumas das questões centrais
colocadas pela realidade contemporânea, como a permanência e o crescimento das desigualdades sociais
em meio ao grande desenvolvimento científico e tecnológico das últimas décadas. A partir de uma
consistente análise teórica, busca‑se demonstrar como as formas de estratificação social se relacionam
com outros elementos marcadores sociais da desigualdade, como gênero e etnia.

O trabalho, visto como atividade fundamental da sociabilidade humana, é analisado a partir das
novas configurações que assume nas últimas décadas e da tão propagada revolução tecnológica com o
crescimento sem precedentes do trabalho imaterial. Parte‑se de uma análise teórica que revisita parte
considerável da produção intelectual contemporânea.

Em uma sociedade em constante processo de transformação, as mudanças nas relações de trabalho


reverberam na educação. Diante disso, são analisados os pressupostos do relatório delors para a educação
do século XXI.

A questão ambiental não poderia estar de fora de uma obra que busca analisar os temas emergentes
na Sociologia contemporânea. Em seguida, analisamos a problemática ambiental e as formas de ativismo
dos movimentos sociais contemporâneos.

As novas perspectivas teóricas de análise da sociedade contemporânea são evidenciadas na descrição


do pós‑estruturalismo francês e no pensamento de Michel Foucault. Os estudos culturais ingleses são
evidenciados a partir das produções teóricas de Stuart Hall e Antony Giddens.

A seguir, analisamos o debate sobre a produção sociológica estadunidense voltada para o grande
público com base na compreensão dos postulados de Burawoy, que preconiza uma sociologia pública. No
Brasil, a produção teórica de Florestan Fernandes é analisada a partir dos postulados da Sociologia Pública.

Concluímos nosso percurso abordando os temas da Sociologia contemporânea com a análise da


atualização da perspectiva marxista.

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TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Unidade I
1 TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Nesta unidade serão abordados temas emergentes e contemporâneos da Sociologia com o


objetivo de apresentar reflexões com vistas a adensar a análise da sociedade atual. Para tanto, foram
selecionados alguns temas que mais se sobressaíram e se colocaram ao centro do debate dentro e fora
das universidades.

Num primeiro momento, apresentar‑se‑á o tema da interseccionalidade e dos marcadores sociais


das diferenças como um dos referenciais de análise contemporânea para o fenômeno das diferenças
sociais existentes no interior da sociedade.

Como outro tema emergente, a nova dinâmica do mundo do trabalho, suas características atuais e
as definições acerca do conceito de precariado serão apresentadas e desenvolvidas.

Por fim, será apresentada a proposta de educação para o século XXI, já que, com base nas questões
apresentadas, a educação assumiu um papel temático importante nas pesquisas contemporâneas,
cabendo à Sociologia refletir sobre seus limites e potencialidades.

1.1 A persistência da desigualdade e a estratificação social: o debate acerca


da interseccionalidade e dos marcadores sociais das diferenças

Segundo dados do IBGE (2013, p. 173):

Entre 2004 e 2012, a evolução da apropriação da renda total pelos décimos


inferiores da distribuição foi positiva até o sétimo décimo e negativa para
os três últimos. A melhora relativa na participação dos indivíduos na renda
total não foi, entretanto, suficiente para alterar substancialmente o quadro
de desigualdades de renda do País, uma vez que a apropriação das rendas
pelos décimos populacionais permanece extremamente desigual.

Os décimos populacionais são extremos – os 10% mais ricos e mais pobres da população – o que,
segundo o IBGE (2013), não apresentou uma alteração significativa capaz de provocar mudanças na
estrutura da sociedade brasileira, marcada pela desigualdade social.

Esses dados apenas reforçam a pertinência do debate atual, evidenciando e constatando a


desigualdade como elemento presente e, de algum modo, estrutural à sociedade brasileira.

9
Unidade I

Contudo, para além de discutir a desigualdade, temos como foco a discussão a respeito da transformação
das diferenças em desigualdade com o debate contemporâneo denominado “marcadores sociais da diferença”,
que se apresenta como um campo de produção de conhecimento e pesquisa das Ciências Sociais.

Por fim, serão apresentadas reflexões acerca do debate sobre a interseccionalidade como possiblidade de
construção de novas formas de sociabilidade e como reflexão teórica sobre a superação das desigualdades.

1.2 As bases sociais da desigualdade

Após 2008, o mundo entrou em um processo de crise econômica sem precedentes. Tendo como
locus inicial uma das principais potências mundiais, os Estados Unidos, a crise do capital financeiro,
por meio da “bolha imobiliária”, fez milhões de pessoas em todo o mundo sentirem os efeitos da crise,
comparada apenas, segundo inúmeros economistas, com a Crise de 1929. Todavia, esta última provocou
uma reorganização no sistema capitalista mundial, imprimindo uma nova forma de organizar a produção
e expandindo as áreas de intervenção do Estado.

Saiba mais

Filmes sobre a Crise de 1929:

ÁGUA para elefantes. Diretor: Francis Lawrence. Estados Unidos, 2011.


115 minutos.

AS VINHAS da ira. Diretor: John Ford. Estados Unidos, 1940. 128 minutos.

Contudo, o cenário político e social do século XXI não é o mesmo. As possiblidades de expansão do
capitalismo também se mostram em menor escala, já que é cada vez menos possível a existência de
áreas e territórios em que o capitalismo não esteja presente.

Figura 1 – Pobreza no Brasil

10
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

O filósofo Karl Marx, em obras como Manifesto do Partido Comunista, mas de modo mais preciso
em O Capital, deixa claro o caráter estrutural das crises capitalistas, evidenciando que, de tempos
em tempos, o capitalismo entra em crises de superprodução. Isso evidencia o caráter “anárquico” da
produção capitalista, que, ao visar ao acúmulo de capital em detrimento do “bem‑estar” de todos, acaba
por não planejar a produção a partir das necessidades humanas, mas, sim, do capital.

Saiba mais

Para compreender melhor, leia:

MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

A crise mais recente, iniciada em 2008 e ainda em curso, precedeu a anterior, que se iniciou ao
final dos anos de 1970 e provocou uma reconfiguração dos Estados e das relações de trabalho. O
neoliberalismo, como sistema social e político, configurou-se como uma retomada dos ideários liberais
do início do século XX, em que o Estado deve intervir o mínimo possível na economia. Esta seria uma
saída para recuperar o “desenvolvimento” econômico, mantendo em altos níveis o acúmulo de capital.

Saiba mais

Sobre a crise de 2008, assista ao filme:

TRABALHO interno. Diretor: Charles Ferguson. Estados Unidos, 2010.


120 minutos.

Para garantir a adesão obrigatória dos países a esse sistema internacional, foi necessário modificar
a estrutura de funcionamento dos Estados em todo o mundo. O neoliberalismo seria a nova doutrina
que determinaria as relações entre Estado e sociedade, ou melhor, Estado e mercado, sobretudo
o internacional. Como mencionou Souza (2002), uma doutrina teórico‑política que terá na sua
materialidade um novo tipo de Estado que cumpra um papel diferenciado daquele do Estado antecessor.
A primeira experiência de um governo neoliberal aconteceu na Inglaterra, com a figura de Margareth
Thatcher, que assumiu o governo inglês em 1979. O Estado neoliberal passou a ser um novo modelo de
Estado global. Para Torres (1998, p. 114):

Os governos neoliberais propõem noções de mercado aberto e tratados de


livre-comércio, redução do setor público e diminuição do intervencionismo
Estatal na economia e na regulação do mercado [...], propõe‑se a diminuição da
participação financeira do Estado no fornecimento de serviços sociais (incluindo
educação, saúde, pensões e aposentadorias, transportes públicos e habitações
populares) e sua subsequente transferência ao setor privado (privatização).

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Unidade I

Saiba mais

Perry Anderson desenvolve mais as questões sobre a teoria neoliberal em:

ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P.


(Org.). Pós‑neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

O Estado neoliberal foi comumente denominado Estado Mínimo na literatura sociológica. Entretanto,
alguns autores, como Leher e Barreto (2008), precisarão o fato de o Estado ser mínimo para o social,
mas máximo para o capital. O argumento mobilizado é o de que, diante da crise e para a recuperação
é necessário cortar custos, diminuir os gastos do Estado e reorganizar a produção social. Por exemplo,
foram realizadas privatizações de áreas consideradas pela Constituição Brasileira de 1988 como sociais
e de responsabilidade do Estado.

Partes significativas de saúde, educação e aposentadoria foram destinadas à iniciativa privada


por meio de escolas privadas, universidades, planos de saúde e fundos de pensão, destinando
somente aos que não podem pagar as escolas públicas, a saúde pública, entre outros. É possível
perceber uma inversão na ideia de direito universal presente na Constituição de 1988, pois ele se
restringe àqueles que não podem pagar, aos mais pobres, implicando inclusive na qualidade dos
serviços e no tipo de serviço prestado. Isso representa uma transformação dos direitos sociais
em mercadorias.

Saiba mais

Para saber mais sobre a implantação do neoliberalismo, leia:

MARIANI, E. J. A trajetória de implantação do neoliberalismo. Revista


Urutágua, Maringá, n. 13, ago./nov. 2007. Disponível em: <http://www.
urutagua.uem.br/013/13mariani.htm>. Acesso em: 30 ago. 2016.

Para além dessa reconfiguração do Estado, outra forma de o mercado resolver a crise de superprodução
é a demissão em massa. No mundo, mas sobretudo no Brasil, os anos de 1990 de muitas demissões, o
que se convencionou chamar de reestruturação produtiva.

Segundo Antunes (2009), restruturação produtiva é o processo de reorganização da produção,


que levou a uma nova configuração das plantas fabris, demissão em massa, terceirização, trabalhos
precários e temporários e demanda de um novo tipo de trabalhador (polivalente). Para Harvey
(1981, 2005), trata‑se de um regime de acumulação flexível, que acaba por quebrar a rigidez do fordismo.
Esse regime se caracteriza por constante mudança tecnológica, automação, procura de novos mercados

12
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

e produtos, obsolescência programada, superação das fronteiras nacionais geográficas em busca de


produção mais barata, fusões e medidas para acelerar o tempo de giro do capital.

1.3 O neoliberalismo e o chão social contemporâneo da desigualdade

Em síntese, o neoliberalismo impõe um processo de reorganização do Estado e reestruturação


da produção, denominada por Ernesto Mandel como capitalismo tardio. Concretamente, a política
neoliberal implica cortes nas áreas sociais, ajustes ficais e privatização. Essas medidas se expressam
diretamente no aumento da desigualdade social e econômica da sociedade brasileira. Segundo Alves
(2011), a sociedade atual se configura como do tipo capitalista manipulatória, que objetiva capturar a
subjetividade dos trabalhadores.

Observação

O capitalismo tardio é precedido pela primeira fase, o capitalismo


extensivo, quando há uma preocupação central em expandir a força
de trabalho, extinção das terras comunais, transformação destas em
propriedade privada e trabalho assalariado. Em seguida, há o estágio
intensivo, com aumento da produtividade do trabalho, o que depende do
desenvolvimento das técnicas e do aumento do nível de subsistência de
consumo do trabalhador. Nesse estágio cresce o antagonismo dialético
entre Estado e mercado. O estágio intensivo estoura com uma crise de
superprodução pós-anos 1970, o que seria a fase do capitalismo tardio.
Essa expressão surgiu em 1929, em um momento de saturação do
estágio intensivo, mas permaneceu latente durante o welfare state. As
consequências externas do capitalismo tardio foram: desindustrialização,
privatização dos serviços, serviços transformados em mercadorias,
terceirizações e flexibilização do trabalho.

Como consequência da captura da subjetividade, surge a figura do precariado. Apesar de diferenças


na definição, autores como Alves (2011) e Braga (2006, 2009, 2013), compreendem essa categoria como
um setor mais precarizado entre os proletários, e a juventude seria um alvo privilegiado.

O grande exército de reserva tem na sua composição 30% da juventude desempregada. Essa
juventude é, em sua maioria, formada por negros, mulheres homossexuais, ou seja, os mais vulneráveis.
Estes são os verdadeiros marcadores sociais da diferença.

Tais marcadores assumem, de maneira ainda mais aguda no neoliberalismo, papéis de marcadores
das desigualdades: o capitalismo transforma diferenças culturais em desigualdade social. Os
marcadores sociais da diferença, como as questões étnica, de gênero e sexual, atuam nesse estágio do
capitalismo de maneira que reforçe a hierarquia a partir do padrão branco, heterossexual e masculino
de poder. O capitalismo se alia à opressão para melhor explorar a força de trabalho e precarizar as
condições dos trabalhadores.
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Unidade I

As diferenças culturais, que se tornam sociais, como a maneira de vestir e o tipo de cabelo, roupa e
gestos são “naturalizadas” como indícios de criminalidade. Exemplo disso é o genocídio da população
negra na periferia (NO BRASIL..., 2013):

• 77% dos jovens vítimas de homicídios são negros, dos quais mais de 90% do sexo masculino.

• Segundo dados do Mapa da Violência de 2014, a principal vítima é a juventude pobre e de


baixa escolaridade; nos homicídios de pessoas na faixa entre 15 e 29 anos de idade.

• Entre 2002 e 2012, o número de homicídios de jovens brancos caiu 32,3%, enquanto a quantidade
de jovens negros assassinados subiu 32,4%.

• Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre racismo no Brasil, revela que
a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de
um branco.

• Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre racismo no Brasil, revela que
a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de
um branco.

• Entre os brasileiros com idade de 15 a 29 anos, a situação piora. Em 2002, o total de jovens negros
mortos foi 71,7% maior que o de brancos. Em 2010, a discrepância subiu para 153,9%. Naquele
ano, 19.840 jovens afrodescendentes foram mortos, ante 6.503 brancos.

• Dos 16,2 milhões de pobres existentes no Brasil em 2010, 11,5 milhões eram negros.

• Cerca de 65% da população carcerária brasileira são negros.

1.4 Os marcadores sociais das diferenças teóricas e estruturais

Discutir as diferenças e as desigualdades sociais faz parte dos temas clássicos da Sociologia. Contudo,
esse tema pode ser apresentado e estudado a partir de diferentes perspectivas e visões sociais de mundo.
Diante da inegável estratificação social e da desigualdade na sociedade mundial, especificamente na
brasileira, novos conceitos e categorias de análise são apresentados. Assim, trataremos dos marcadores
sociais da diferença e da interseccionalidade.

A análise se deu a partir dos anos 1960 para além do debate soberano de classe, e outros marcadores
sociais da diferença apareceram. Os estudos culturais, advindos da nova esquerda do Reino Unido,
inauguraram esse debate. As bases teóricas e conceituais têm Stuart Hall como principal percursor, mas
dialogam com M. Foucault, E. Said e, mais recentemente, Judith Butler.

Os marcadores sociais da diferença explicam como a desigualdade é construída socialmente e


hierarquizada: raça, gênero e sexualidade. Segundo Almeida et al. (2001), as diferenças são tidas como
“naturais”, quando, na verdade, são construídas socialmente. A categoria de classe também se insere
14
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

nesse campo de estudo, mas como mais um dos marcadores, o classismo, distinguindo‑se de uma leitura
estrutural de classe, específica dos estudos marxistas.

Segundo Hall (2000), a sociedade moderna, iluminista, construiu um processo de normatização, tendo
como foco o sujeito moderno, racional, bem como a identidade rígida, não flexível, capaz de impor um
padrão de comportamento, de gênero, de sexualidade, dentre outros, que o autor denomina regulação
normativa. Esta objetiva construir um mundo ordenado; contudo, essa ordenação impõe sempre um
processo de rupturas, provocando mudanças sociais. Nesse sentido, as rupturas são recorrentes, pois os
sujeitos são mais diversos do que as normas impostas e se identificam a partir do processo de identificação.
Para Hall (2000), a identificação consiste no processo de subjetivação da identidade, um processo nunca
completo, condicional, sujeito ao jogo da différance, uma categoria ambivalente. Nesse sentido, a identidade
é um conceito estratégico e posicional e está sujeita a uma historicização radical.

Saiba mais

Para saber mais, leia:

HALL, S. Identidade cultural na pós‑modernidade. Rio de Janeiro:


Lamparina, 2014.

Como a identidade é sujeita à historicização, as experiências concretas vivenciadas ao longo da


história e das redes de sociabilidade vão construindo o sujeito e, portanto, sua identidade. As diferenças
emergem de modo constante. Por exemplo, Judith Butler (2001) vai pensar o sexo por meio do corpo
como um dos marcadores sociais das diferenças.

O sexo, segundo Butler (2001), aparece como construção do ideal materializado através do tempo. Isso
ocorre por meio das normas regulatórias que trabalham para materializar o sexo no corpo, materializar as
diferenças sexuais a serviço da heteronormatividade. Como heteronormatividade entende‑se o padrão
de normatizar a heterossexualidade como regra, padrão do ser normal. Segundo Warner (1993; 1999),
que escreve nos anos 1990, esta é uma forma de imposição de padrões de poder que subjugam os que se
distanciam e ousam transgredir um suposto padrão de sexualidade. Nesse sentido, a homossexualidade
ou a transexualidade entram no campo oposto à norma regulatória.

Observação

Judith Butler é uma filósofa pós‑estruturalista estadunidense, uma das


principais teóricas da questão contemporânea do feminismo e da Teoria
Queer. É professora da Universidade de Yale.

O gênero, masculino ou feminino, também é um marcador social da diferença. Como apontou


Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna‑se mulher”. Essa leitura compreende o gênero como

15
Unidade I

uma construção social. Construímos socialmente os determinados papéis sociais de homens e mulheres.
Logo, o conceito de gênero é social e relacional. John Scott escreveu, em 1990, Gênero, uma Categoria
Sutil de Análise, de base pós‑estruturalista, objetivando desconstruir o conceito de gênero binário e
universal. O autor faz um esforço para apresentar esse conceito de modo analítico e não descritivo.
Como consequência, auxilia na desconstrução do gênero binário, masculino e feminino, pensando novas
possiblidades de identidade. Desfaz a dicotomia entre sexo e gênero no que se refere a desconstruir
uma leitura de que o sexo é biológico e o gênero é social. Para Scott (1990), o gênero é um marcador
de diferenças, socialmente construído, que hierarquiza as diferenças sexuais por meio das relações de
poder. O conceito de sexo estaria subsumido ao de gênero e não dicotomizado no debate natureza e
cultura. Segundo Butler (2001), será necessário historicizar o corpo e o sexo. Para tanto, a autora defende
a performance como solução. Já que identidades e gêneros não são fixos, rígidos, e sim históricos, eles
podem variar conforme a situação e as relações vividas, no caso dos transgêneros. Para Saffioti (1997),
ao encarar o gênero como categoria analítica, pode‑se perder a potência de luta contra o patriarcado
que estaria embutido na leitura de gênero como construção social.

Figura 2 – Os desafios da mulher brasileira

16
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

A racialização, ou diferenças étnicas, apresentam-se como marcador social das diferenças, assim
como sexo e gênero. Stuart Hall, nos anos 1980, escreveu Race, Articulation and Societies Structured
in Dominance, em que aponta a racialização como o poder de desumanizar identificando o outro,
um processo histórico que essencializa a normalidade, o ideal de humano. Esse processo resulta na
construção do não branco, pois o branco aparece como o padrão do ideal, da beleza, da norma, levando
a posturas discriminatórias e racistas, que subjugam os que não se localizam no suposto padrão.

Em síntese, os estudos em torno dos marcadores sociais da diferença compreendem que as diferenças
são construídas socialmente, apesar de serem “naturalizadas”. Assim, como construções sociais, podem
e devem ser desconstruídas. Os marcadores sociais podem ser instrumentos essenciais para o combate
à desigualdade material e simbólica.

Segundo Moya (2010), essa linha de pesquisa e análise das diferenças compreende a desigualdade
como resultado de um processo de construção e intersecção das diferenças sociais. Essa linha se
opõe a uma suposta leitura economicista que desconsideraria total ou parcialmente as intersecções
entre gênero, raça e sexo. Moya (2010) revela que, na atualidade, o discurso da diversidade pressupõe
a desigualdade e a opressão como resultado das diferenças sociais. Para a autora, a desigualdade e
a diferença se reconfiguram no Brasil na contemporaneidade. A solução se daria pelo processo de
identificação, assimilando e incluindo os que se encontram supostamente excluídos ou marginalizados
na sociedade. Não há uma proposição de transformação das relações normativas. Eis o problema central.

1.5 Apontando caminhos: a interseccionalidade e a Teoria da Articulação de


Stuart Hall

Hall (1980) pertence à denominada nova esquerda no Reino Unido, responsável por fundar o campo
de pesquisa e estudos denominado Estudos Culturais. Esse campo expressa uma perspectiva analítica
capaz de se opor ao stalinismo e à visão reducionista e economista do marxismo, assim como critica
o eurocentrismo marxista. Todavia, recupera o legado marxista, no que se refere a sua capacidade de
problematização do mundo social. Para evidenciar como as estruturas econômicas se conectam com as
divisões raciais, Hall apresenta a Teoria da Articulação.

Essa teoria objetiva identificar a relação entre as perspectivas econômicas e sociais a partir das
categorias classe e raça, o que é uma importante contribuição para as leituras simplistas que ignoram a
perspectiva de classe, numa compreensão de que na suposta sociedade pós‑moderna o debate de classe
teria perdido a sua centralidade. Autores como André Gorz (2005) expressam essa leitura; contudo,
Antunes (2009) apresenta a impossibilidade dessa visão social de mundo diante da realidade concreta
e objetiva. Ainda que o desemprego tenha se tornado estrutural e os postos de trabalho formal tenham
diminuído, o trabalho e a ausência dele ainda assumem o centro da preocupação dos trabalhadores,
assim como não é possível falar em produção de capital sem extração de mais‑valia, sem trabalho
produtivo e, portanto, sem trabalhador.

No que se refere às leituras que possuem as diferenças culturais como foco, Henry Giroux (1996)
apresenta uma leitura do multiculturalismo distinta das leituras liberais e conservadoras. Segundo o
autor, o multiculturalismo liberal trabalha com a pluralidade de modo descontextualizado historicamente,
17
Unidade I

buscando uma harmonia via Estado. Já os conservadores entendem o debate sobre o multiculturalismo
e a diversidade cultural como uma força desestabilizadora, capaz de levar à fragmentação social. Esse
conceito surge nos anos 1970, com o objetivo de analisar a diversidade cultural. Para Giroux (1996),
o multiculturalismo pode ser apreendido como termo de luta. Isso demanda uma reformulação da
memória histórica, da identidade e da política de diferenças, de modo individual e social, apresentando
a diferença como potência de luta e de transformação social e cultural das relações hierarquizadas.

Assim, as ações afirmativas, como as cotas para negros, e as ações para mulheres e população LGBT,
surgem como elemento tático para desconstruir as relações monoculturais e os padrões de normatividade.
Na mesma direção de apontar para a perspectiva de superação das relações opressoras, Judith Butler
(2001), abordando o sexo, aponta que a desidentificação coletiva com as normas e os padrões regulatórios
pelos quais as diferenças sexuais se materializam se dão a partir da performance, levando a um processo
de recontextualização de novas perspectivas de vivenciar e experimentar a sexualidade e o corpo.

Nesse sentido, como solução para a desconstrução das hierarquias entre as diferenças, autores no
campo dos estudos pós‑estruturalistas e pós‑modernos apontam a interseccionalidade como perspectiva.
Identificam uma relação intrínseca entre as diferentes forças de opressão que se somam e são articuladas
para construir a hegemonia de um determinado padrão. No entanto, a compreensão de que as opressões
se interseccionam, de modo que aumentem a opressão sobre o sujeito, a exemplo de uma mulher, negra e
não heteronormativa, revela a potencialidade da interseccionalidade; uma forma de encontrar saídas para
essa condição, no que se refere a de parecer que não são lutas separadas e fragmentadas.

Reed (2015), pesquisador norte‑americano, entende que a interseccionalidade acaba expressando


um campo de estudos em torno da Política de Identidades, que afasta a discussão de classe social,
secundarizando essa perspectiva. Reed apresenta que a interseccionalidade não pode desconsiderar a
intersecção entre classe e raça, assim como gênero e sexo, na sociedade capitalista. Dessa forma, Reed
apresenta uma leitura classista a respeito da interseccionalidade e aponta que as saídas se concentram
em torno da compreensão de que há uma perspectiva de classe que agrava a situação de opressão. É o
mesmo que evidenciar como um homem negro no poder ou mesmo uma mulher, caso não se alie aos
interesses da maioria, mais pobre, podem exercer o mesmo poder que um homem branco, considerado
o padrão de normatividade.

Saiba mais

Leia o Estatuto da Igualdade Racial:

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da


Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13
de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro
de 2003. Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/portal‑antigo/Lei%20
12.288%20‑%20Estatuto%20da%20Igualdade%20Racial.pdf>. Acesso
em: 30 ago. 2016.

18
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

MARCONDES, M. M. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das


condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013.
Disponível em: <http://www.seppir.gov.br/assuntos/mulheres>. Acesso
em: 13 set. 2016.

Assim, é possível constatar a importância de desconstruir o padrão, a norma regulatória, e não


apenas de equacionar a diversidade. Entretanto, essa desconstrução passa por um debate a respeito
da sociedade de classes sociais, na qual interesses econômicos e políticos fazem parte da estratégia de
construção e consolidação de padrões e normas sociais regulatórias.

Figura 3 – Marcha das mulheres negras

2 FIM DA CENTRALIDADE DO TRABALHO: UM NOVO TIPO DE SOCIEDADE OU


NOVAS FORMAS DE PRECARIZAÇÃO?

O final do século XX foi agraciado pelo debate no campo da Sociologia do Trabalho acerca do fim ou
não do trabalho. Na década de 1980, Andre Gorz escreveu Adeus ao Proletariado: para Além do Socialismo,
afirmando a superação da sociedade do trabalho e, portanto, da classe trabalhadora. Segundo Gorz (2005),
havia uma tendência ao desaparecimento do trabalho assalariado diante da crise econômica, social e política
evidenciada pela impossibilidade do pleno emprego. Somada a isso, a crescente utilização da tecnologia na
produção levaria a um franca diminuição dos postos de trabalho, o que o autor denomina trabalho útil, e
liberaria o tempo das pessoas para algo mais produtivo e prazeroso. O fim da centralidade do trabalho, para
Gorz (2005), possibilitaria a construção de uma nova sociabilidade, não mais fundada no trabalho.

Além de Andre Gorz, o Grupo Krisis, liderado pelo alemão Robert Kurz, lançou o Manifesto contra
o Trabalho (1999). O documento apontava que a crise vivenciada mostrava os limites da sociedade
do trabalho, avaliando a crescente utilização da tecnologia robótica como elemento para reforçar o
fim da centralidade do trabalho. Essa tese foi reforçada pela leitura de Francis Fukuyama em O Fim da
História e o Úlitmo Homem (1992), que apontava o fim da luta de classes e do conflito entre projetos
distintos, após a queda do Muro de Berlim.

19
Unidade I

As teses sobre o fim do trabalho não abandonam as perspectivas de que atividades laborativas
devem ocorrer socialmente, mas identificam uma tendência ao fim do trabalho assalariado, material,
formal, indicando que o capitalismo estaria se findando e dando início a novas formas de sociabilidade
e de sociedade. A partir do debate sobre o fim do trabalho, da perda de sua centralidade e, portanto, do
surgimento de novas formas de sociabilidade, apresentaremos elementos dessa teoria e sua consequência.

Serão apresentados os argumentos construídos em torno da perspectiva que apontou o fim do


trabalho como horizonte, indicando uma forte tendência ao deslocamento da Teoria do Valor, não mais
baseada no trabalho, na extração de mais‑valia ou na produção de capital. Para os teóricos do fim do
trabalho, o advento da tecnologia, a ausência de empregos formais e tradicionais e a diminuição dos
postos de trabalho elegeram o conhecimento como nova fonte de valor e de construção de valor. Assim,
surge uma nova forma de trabalho pretensamente hegemônica: o trabalho não material, imaterial.

Em seguida, serão resgatados elementos da Teoria do Valor-trabalho, na tentativa de contrapor a


tese de que o trabalho não assume mais papel central na contemporaneidade, afirmando a relevância e
a importância do trabalho assalariado para a produção de capital, indicando que, apesar das mudanças
e metamorfoses, ainda vivenciamos a sociedade capitalista. Por fim, serão apresentadas análises acerca
do mundo do trabalho atual, sua nova configuração, metamorfoses e o papel dos sujeitos nesse novo
contexto, a exemplo do precariado.

2.1 O trabalho perde sua centralidade: o discurso para a fundação de uma


nova sociedade

Em um pequeno artigo reproduzido pela comissão e elaborado pelo Instituto Sindical Europeu, sob
o título Para uma Política da Escolha do Tempo de Trabalho, aparece o nome de André Gorz. Não nos
ateremos aqui ao conteúdo da discussão do artigo, porém não poderemos desconsiderar o nome desse
autor. André Gorz é um dos principais autores a realizar o debate sobre o fim do trabalho assalariado,
material. Uma nova etapa se deflagraria, na qual novas formas de trabalho, a tecnologia e o conhecimento
assumiriam papel central, assim como a ideia desenvolvida de trabalho imaterial. André Gorz desenvolve
essa tese juntamente com Maurizio Lazzarato, Toni Negri e Michael Hardt, autores que nos serão úteis
para compreender o conceito de trabalho imaterial.

Saiba mais

Para saber mais, leia:

GORZ, A. Metamorphoses du travail. França: Folio France, 2004.

A teoria social apresentada por esses quatro autores possui elementos em comum capazes de nos
levar a uma mesma articulação de concepção de sociedade e, por conseguinte, de trabalho: a percepção
do advento das tecnologias da informação e a nova forma de trabalho, o trabalho imaterial. Assim,
percebemos afinidades e elos capazes de articulá‑los em uma mesma totalidade. Não nos ateremos aqui

20
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

aos seus pontos de diferenciação, pois acreditamos que esses elementos não seriam suficientemente
capazes de distorcer o conceito central de trabalho imaterial aqui pesquisado. Centrar‑nos‑emos,
portanto, nas similitudes.

Segundo Gorz (2005), estaríamos vivenciando uma nova forma de capitalismo fundado na economia
do conhecimento. Para Negri e Hardt (2000), seria uma economia da informação. Os dois conceitos
não possuem diferenças substanciais, ambos são pautados pelo desenvolvimento das tecnologias da
informação. Esse tipo de capitalismo se diferenciaria do capitalismo econômico, ou de tipo econômico,
predominante nas sociedades modernas. A nova forma de capitalismo, com predominância do
conhecimento, configuraria um tipo de capitalismo pós‑moderno, uma nova faceta do sistema capitalista
que estaria centrada no capital dito imaterial.

O capitalismo moderno, centrado na valorização de grandes massas de capital fixo material, é


cada vez mais rapidamente substituído por um capitalismo pós‑moderno centrado na valorização
de um capital dito imaterial, qualificado também de “capital humano”, “capital do conhecimento” ou
“capital inteligência”. Essa mutação é acompanhada de novas metamorfoses do trabalho (GORZ, 2005).
Diferentemente do tipo de capitalismo tipicamente moderno, em que o trabalho abstrato simples
exercia a sua hegemonia, na economia do conhecimento, o tipo de trabalho predominante é o trabalho
complexo, no qual o conhecimento é tido como a principal força produtiva.

O trabalho material imediato estaria ligado à periferia do processo de produção, pois o trabalho
imaterial complexo aparece nessa nova forma de capitalismo como centro de criação de valor. Portanto,
não poderíamos mais falar sobre processo de trabalho como sinônimo do processo de produção no
interior do sistema de capitais. Isso ocorreria, para Gorz (2005), em razão do fato de o trabalho imediato
não ser mais central, mesmo sendo indispensável, ou seja, o trabalho imaterial tem o conhecimento
como a principal força produtiva, de onde se obtém a extração de mais‑valia.

Era importante mostrar que esse trabalho imaterial, naquilo que tem
de principal, não repousa sobre os conhecimentos desses prestadores
e fornecedores. Antes de mais nada, ele repousa sobre as capacidades
expressivas e cooperativas que não se podem ensinar, sobre uma vivacidade
presente na utilização dos saberes e que faz parte da cultura do cotidiano.
Essa é uma grande diferença entre os trabalhadores de manufaturas ou de
indústrias taylorizadas e aqueles do pós‑fordismo (GORZ, 2005, p. 19).

Diante da afirmação de Gorz, esse novo tipo de trabalho imporia uma nova compreensão da Lei
do Valor, ou seja, uma nova Teoria do Valor que não teria mais o trabalho imediato produtivo como
a mercadoria capaz de produzir mais valor, mais‑valia. Na economia do conhecimento, a existência
do conhecimento como principal força produtiva representaria uma crise do valor. Segundo Negri e
Hardt (2000), o trabalho imaterial traz uma nova Teoria do Valor fundada na subjetividade, no saber e
no conhecimento. Nesse sentido, caberia a nós compreender o que seria um trabalho de tipo imaterial
gênese da nova concepção de valor ou de uma nova Teoria do Valor.

21
Unidade I

Figura 4 – Economia do conhecimento

O trabalho imaterial seria o trabalho que produz o conteúdo informacional e cultural da


mercadoria (LAZZARATO, 1992). A subjetividade, para o autor, apareceria como principal característica
ou qualidade desse novo tipo de trabalho e deveria ser incentivada com a intenção de ser extraída ao
máximo do trabalhador.

A ampliação das formas de trabalho imaterial torna‑se, portanto, outra


tendência do sistema de produção contemporâneo, uma vez que ele carece
crescentemente de atividades de pesquisa, comunicação e marketing para
a obtenção antecipada das informações oriundas do mercado (LAZZARATO
apud ANTUNES, 2009, p. 126).

Para Lazzarato (1992), o trabalho imaterial se encontraria na fusão produção‑consumo, ativando a


produção coletiva, a comunicação com o consumidor e o interior do processo produtivo. O autor corrobora
a tese de Gorz ao afirmar que o trabalho manual direto, o trabalho imediato, seria, na nova sociedade,
substituído por um trabalho de maior dimensão intelectual. Negri e Hardt (2000) chegam à mesma
conclusão e reafirmam que os governos que prosperarão nesse novo mundo serão aqueles capazes de se
adaptar à nova configuração imaterial da força de trabalho. Os autores avaliam também que existe uma
preponderância do tipo de trabalho imaterial no setor de serviços, mas salientam que a característica,
antes restrita a esse tipo de setor, é expandida a todo o sistema produtivo, hegemonicamente. Negri e
Hardt (2000) precisam os tipos de trabalho imaterial que assumem a nova centralidade social:

Em resumo, podemos distinguir três tipos de trabalho imaterial que


conduzem o setor de serviços ao topo da economia internacional. O primeiro
está implicado em uma produção industrial que tem se informatizado e
incorporado tecnologias de comunicação de forma que a transformam no
próprio processo de produção. A manufatura é considerada um serviço, e
o trabalho material da produção de bens duráveis se mistura no que se
configura um trabalho imaterial. O segundo é o trabalho imaterial e as tarefas

22
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

analíticas e simbólicas, que se subdividem em manipulações inteligentes e


criativas por um lado e tarefas simbólicas rotineiras, por outro. Finalmente,
um terceiro tipo de trabalho imaterial implica na produção e manipulação de
afetos, e requer contato humano (virtual e real), trabalho de forma corporal.
Estes são os três tipos de trabalho, que dirigem a pós‑modernização da
economia global (NEGRI; HARDT, 2000, p. 256).

A centralidade do conhecimento, do cognitivo e do subjetivo no sistema de produção traz


consequências capazes de nos levar a uma nova leitura da sociedade. Diante de um suposto novo
cenário, necessita‑se também compreender as novas demandas impostas pelo trabalho imaterial ao
trabalhador. Segundo Negri e Hardt (2000, p. 241, tradução nossa), “A reestruturação da produção, do
fordismo até o pós‑fordismo, da modernização à pós‑modernização, foi antecipada pela ascensão de
uma nova subjetividade”. Essa nova subjetividade é uma das principais características a serem exploradas
e afloradas no novo trabalhador. Nesse novo contexto, o trabalhador passa a ser responsável pela sua
própria produção, ou melhor, ele seria um produto do conhecimento socialmente produzido. Gorz (2005,
p. 19) cita Yann Moulier‑Boutang para reforçar a tese de que o trabalhador, sobretudo na atualidade,
não se apresentaria mais como uma força de trabalho na qual “as capacidades predeterminadas seriam
inculcadas pelo empregador, mas como um produto que continua ele mesmo a se produzir”.

O conhecimento para além do tipo tradicionalmente apreendido nas instituições escolares é inscrito
no cotidiano. Um conhecimento‑saber que pertence também à cultura desse cotidiano, competências
que adquirimos ao longo da vida. Para Negri e Hardt (2000), não apenas a inteligência, mas também o
afeto é mobilizado para servir a produção, a tal ponto de levar‑nos a uma noção de vida inseparável da
produção. Portanto, tornar‑se‑ia um capital humano. Segundo Gorz (2005, p. 20), o que as empresas
determinam hoje como capital humano é um recurso gratuito para elas, “uma ‘externalidade’ que se
produz sozinha, e que continua a se produzir, e da qual as empresas apenas captam a canalizam a
capacidade de se produzir”. O trabalhador agora seria visto como um autoempreendedor, ou um
empreendedor de si.

O trabalhador autoempreendedor definiria o fim do trabalho assalariado, do tipo tradicional, de


carteira assinada e direitos trabalhistas assegurados. “O desemprego desaparecia ao mesmo tempo em que
desaparece o regime salarial [...] Se existem desempregados é sinal que sua empregabilidade está em falta”
(GORZ, 2005, p. 26). Essa nova imposição ao trabalhador fora construída pela nova forma do capital, a
economia do conhecimento, como uma maneira eficiente de superar a fronteira até então intransponível
entre capital e trabalho, empresa e trabalhador, de subsunção total de si ao capital. Diante dessa nova
relação do trabalhador com seu trabalho, ao tornar‑se um gerente de si, o trabalhador transforma a vida
em um capital precioso. Para Gorz (2005), o capital humano se estende ao longo de toda a vida. Cada
um deverá gerir seu capital humano ao longo de toda a sua vida, deverá continuar a investir em estágios
de formação e compreender que a possibilidade de vender sua força de trabalho depende do trabalho
gratuito, voluntário e invisível, por meio do qual ele sempre poderá reproduzi‑la.

Contudo, apesar de essa forma constituir‑se ainda como uma nova face do mesmo sistema capitalista
na sua dimensão agora pós‑moderna, Gorz (2005) chama nossa atenção para o fato de a economia do
conhecimento, fundada no trabalho imaterial, descortinar uma contradição, um conflito no interior dessa
23
Unidade I

nova forma de capital. Mesmo com todos os esforços do capital, este não se apropriaria totalmente do
conhecimento produzido no interior do sistema de produção, não sendo possível instrumentalizá‑lo na
sua totalidade. Para o autor, o conhecimento como força produtiva principal é um produto que resulta,
em grande parte, de “uma atividade coletiva não remunerada”, da “produção de si” ou de uma “produção
de subjetividade”. Assim, o conhecimento seria em “grande parte inteligência geral”, cultura comum, saber
vivo: “Ele não tem valor de troca, o que significa que ele pode, em princípio, ser partilhado à vontade,
segundo a vontade de cada um e de todos, gratuitamente, especialmente na internet” (GORZ, 2005, p.
36). Assim, o capitalismo fundado na economia do conhecimento de tipo cognitivo traria os genes de uma
negação, de uma superação do capitalismo de tipo econômico comercial, moderno e tradicional.

Suas propriedades, em suma, se opõem ponto por ponto àquelas do capital em sentido econômico.
O capital conhecimento não pode funcionar como capital senão no quadro, ou melhor, no interior
do capitalismo, quando ele é alterado por sua associação com as formas tradicionais, financeiras e
materiais do capital. Não se trata de capital no sentido usual, nem tem como destinação primária
servir à produção de sobrevalor, nem mesmo de valor, no sentido usual. Não significa o advento de
um hipercapitalismo ou de pancapitalismo, como sua denominação poderia fazer acreditar, mas, ao
contrário, contém os germes de uma negação e de uma superação do capitalismo, do trabalho como
mercadoria e das trocas comerciais (GORZ, 2005).

Ainda segundo o autor, mesmo o conhecimento instrumentalizado pelo capital possui um elemento
“de verdade” que liberta, pois todo conhecimento, mesmo o técnico, “é não somente fonte potencial
de riqueza e de sentido, mas também de riqueza em si”, ou seja, ele seria fonte de riqueza como força
produtiva, logo força de trabalho, e é riqueza como fonte de sentido em si (GORZ, 2005, p. 55). Neste
último encontraríamos o potencial de superação e a negação do capitalismo de tipo econômico. Assim, o
capital humano se mostraria como uma peça fundamental no processo de superação. O novo trabalhador
autoempreendedor refém do capital humano pode ser o sujeito desencadeador do processo revolucionário,
que levaria a humanidade para uma sociedade do saber e da inteligência – a sociedade da cultura.

O novo trabalhador tido como neoproletariado‑pós‑indútrial representa subjetivamente o elemento


central dessa possibilidade de revolução. Para Gorz (2005), isso será feito por dentro do sistema, explorando
suas brechas, e não por elementos externos a ele. Essa perspectiva “progressista” também é compartilhada
por Negri e Hardt (2000). Ambos percebem “brechas” nesse novo tipo de trabalho capazes de evidenciar a
contradição e propiciar uma superação capaz de nos levar a uma sociedade do saber.

A dimensão social imediata da exploração do trabalho vivo imaterial submete


o trabalho em todos os elementos relacionais que definem o social, mas
também, ao mesmo tempo, ativa os elementos críticos que desenvolvem
o potencial de insubordinação e rebelião através de todo o conjunto de
práticas trabalhistas (MEGRI; HARDT, 2000, p. 29).

Gorz (1982, 2004, 2005), assim como Negri e Hardt (2000), compreende que o capitalismo do
saber, na economia do conhecimento, germina a semente capaz de nos levar a uma sociedade melhor,
a uma sociedade mais igualitária fundada na cultura e no conhecimento. A concepção de trabalho
imaterial, como citamos anteriormente, apresenta‑se conectada à tese da sociedade da informação.
24
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Se, na perspectiva dos autores aqui estudados, o trabalho imaterial é o arauto de um novo período da
história ou de uma nova fase da sociedade contemporânea que se diferencia do capitalismo de tipo
econômico e tradicional, qual seria o tipo de sociedade capaz de materializar e organizar esse novo
trabalho? A comissão nos aponta como resposta a sociedade da informação. Tanto Gorz (1982, 2004,
2005) quanto Negri e Hardt (2000) declaram a existência de um tipo de capitalismo pós‑moderno.
Entender o ponto de intersecção entre essas concepções de sociedade faz‑se necessário neste momento.
A partir desses elementos apresentados, remontaremos a totalidade para compreender onde se localiza
a tese da sociedade da informação, ou seja, qual a sua relação com o trabalho imaterial que impõe o
conhecimento como principal força produtiva.

Saiba mais

Consulte a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e veja o vídeo


institucional produzido pelo Escritório da OIT no Brasil. Ele mostra a visão da
Organização sobre o Trabalho Decente, com depoimentos de especialistas nas
áreas de trabalho escravo, trabalho infantil, gênero e raça, por representantes
do Governo, de organizações de empregadores e de trabalhadores.

TRABALHO decente no Brasil. Brasília: OIT, 2016. 19 minutos. Disponível


em: <http://www.ilo.org/brasilia/centro‑de‑informacoes/v%C3%ADdeos/
WCMS_504158/lang‑‑pt/index.htm>. Acesso em: 14 set. 2016.

2.2 A gênese da Teoria da Sociedade da Informação

Antes mesmo de analisarmos a sociedade da informação é necessário remontarmos o cenário teórico


ao qual essa concepção de sociedade se filia. Nortearemos o trabalho pela leitura de alguns teóricos,
como Yoneji Masuda, Krishan Kumar, Daniell Bell, e Jean‑François Lyotard, na intenção de compreender
em que consiste e onde se localiza a sociedade da informação, o “conhecimento” na atualidade. Esses
autores podem ser entendidos como referenciais das teorias sociais contemporâneas.

Yoneji Masuda (1905‑1995) foi um sociólogo japonês cuja atividade profissional e acadêmica teve
importância decisiva na definição de um modelo de sociedade tecnológica para o Japão. Foi um dos
primeiros autores a conceituar a sociedade contemporânea como a “sociedade da informação”. Foi
professor da Universidade de Aomuri. Autor de diversos livros sobre tecnologia e sociedade.

Krishan Kumar nasceu em 1942 e é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de


Virgínia, nos EUA. Graduado pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e fez seu doutorado na
London School of Economics.

Daniel Bell (1919‑2011) foi um sociólogo estadunidense. Era professor emérito da Universidade de
Harvard. Jean‑François Lyotard (1924‑1998) foi um sociólogo francês e um dos principais pensadores
sobre a pós‑modernidade.
25
Unidade I

Saiba mais

Leia as obras desses autores publicadas no Brasil:

BELL, D. O fim das ideologias. Brasília: Unb, 1980.

KUMAR, K. Da sociedade pós‑industrial à pós‑moderna: novas teorias


sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

LYOTARD, J. F. O pós‑moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

MASUDA, Y. A sociedade da informação como sociedade pós‑industrial.


Rio de Janeiro: Rio/Embratel, 1980.

Revelamos a materialidade dessa concepção ao identificar o momento e o estágio do sistema


produtivo em que surgem as primeiras discussões acerca de uma nova sociedade. Torna‑se, a partir
daí, impossível localizar a discussão a respeito da sociedade da informação sem nos atermos às teses
da sociedade pós‑industrial; assim, podemos identificar a discussão não somente sobre a sociedade da
informação, mas também sobre a sociedade pós‑moderna.

Da década de 1960 até o princípio de 1970, vários sociólogos ilustres formularam uma interpretação
sobre a sociedade moderna, que rotularam de Teoria da Sociedade Pós‑industrial. Segundo Kumar (1997),
com a Crise do Petróleo em 1973, os debates que eram travados pelos sociólogos diziam respeito aos “limites
do crescimento” pela contenção do industrialismo, o que não significava uma reflexão sobre os seus limites de
exploração. “Tratavam do recrudescimento dos conflitos distributivos à medida que as sociedades industriais
deixavam de ser capazes de fornecer compensações a despeito do aumento de crescimento” (KUMAR, 1997,
p. 14). Para o autor, um estado de espírito de crise substituiu o otimismo da década de 1960.

Partidos de direita exploraram esse estado de espírito, pregando uma volta aos valores e costumes
“vitorianos” de esforço pessoal e laissez‑faire. Pediam o abandono do planejamento central e da
intervenção do Estado, os aspectos mais óbvios da acomodação pós‑1945 e principal premissa da Teoria
Pós‑industrial. Em outras palavras, a crise estava colocada, seria necessário compreendê‑la a partir
das condições objetivamente postas e pensar em propostas que pudessem garantir sua superação.
Para os teóricos da década de 1970 que estavam analisando e tentando compreender esse período de
transição, as sociedades industriais teriam cruzado uma linha divisória em que não seria mais possível
compreendê‑la a partir de análises clássicas sobre o capitalismo e a sociedade industrial (KUMAR, 1997).

Com a produção industrial em crise, altos índices de desemprego e inflação e, portanto, queda
da lucratividade, os limites do sistema social eram anunciados. Contudo, ao mesmo tempo que se
anunciavam os limites, ocorriam crescimento e desenvolvimento da tecnologia, fruto do capital
acumulado em longos anos de alta lucratividade do capital industrial, o que dava vazão a novos ramos
e novas formas de organizar o trabalho, elementos que chamaram a atenção de muitos teóricos.
26
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Kumar (1997) identifica três correntes da Teoria Pós‑industrial, cujos teóricos irão pensar e formular
hipóteses acerca da nova realidade social com o objetivo de encontrar explicação para as mudanças e
para os novos elementos que se apresentam no cenário mundial. A primeira compreende a sociedade
pós‑industrial como a sociedade da informação; a segunda emerge das correntes de esquerda e mantém
no seu conjunto preceitos e elementos marxistas de análise – assim, a sociedade industrial seria a
sociedade pós‑fordista; e, por último, aquela para a qual a sociedade pós‑industrial é, na verdade, uma
sociedade pós‑moderna.

A primeira e a última sustentam a tese de que estaríamos vivenciando um novo modelo de sociedade,
ainda não finalizado, que abandonou a era moderna, a centralidade do trabalho material, assalariado,
dando lugar a novas formas de sociabilidade, novas relações com o trabalho e o conhecimento. Essas
teses acabam impondo uma discussão de grande envergadura para a Sociologia e para o conjunto da
sociedade. No limite, estão dizendo que as teses marxistas, baseadas na Teoria do Valor‑trabalho – a
qual é gênese da produção de valor e, portanto, de capital – não seriam mais pertinentes ou aplicáveis
na realidade.

Nesse sentido, faz‑se necessário resgatar os princípios da Teoria do Valor marxista, com o objetivo
de estabelecer um diálogo com os teóricos e sociólogos que reivindicam uma suposta superação dessa
visão social de mundo.

2.3 Trabalho e conhecimento sob a ótica da Teoria do Valor

A tese da centralidade do conhecimento serve como grande arauto indicativo de um novo “período”
histórico ao adentramos o século XXI. A gênese dessa primazia era o fenômeno da revolução tecnológica
na sociedade que libertara o cognitivo, o imaterial, para a produção de bens e serviços, ou seja, o
conhecimento tornou‑se a principal força produtiva na atualidade.

Assim, podemos afirmar que a centralidade do conhecimento possui alguns alicerces balizadores:
(1) o mundo do trabalho passou por transformações a partir da era da informática, da constatação
de uma “revolução tecnológica”; (2) o trabalho imediato, material, cedeu lugar a um tipo e trabalho
que necessita ainda mais do cognitivo, um trabalho de tipo imaterial; (3) seria o conhecimento, na
atualidade, a principal força produtiva, o que significa dizer que é deste sujeito, o conhecimento, que
se extrai o “sobretrabalho”, a mais‑valia. Isso alimentaria a ideia de que a libertação do conhecimento
pudesse significar uma diminuição do desemprego, das desigualdades de desenvolvimento, com a
ampliação da democracia, ou seja, a liberação da ciência e da tecnologia poderiam dar elementos a uma
nova sociedade com maior tempo destinado à educação, agora, ao longo de toda a vida.

A fim de facilitar o acompanhamento, discutiremos cada ponto levantado, separadamente, para


desenvolver melhor a crítica sobre a tese da centralidade do conhecimento.

2.4 A falácia da “revolução tecnológica”

Teses sobre sociedade da informação, sociedade do conhecimento ou qualquer derivação do


gênero apontam a existência de uma fé profética no desenvolvimento das tecnologias na atualidade.
27
Unidade I

Partem da ideia de uma “revolução tecnológica” capaz de impor novas demandas ao conjunto da
sociedade e, consequentemente, novas formas de organização do trabalho.

Como “revolução” compreendemos qualquer processo capaz de propiciar transformações radicais,


portanto estruturais, em um determinado locus. Segundo o Dicionário Houaiss (2015), revolução significa
“conjunto de acontecimentos históricos que têm lugar numa sociedade e que envolvem geralmente o
país inteiro, quando parte dos insurgentes consegue tomar o poder, e mudanças profundas (políticas,
econômicas, sociais) se produzem na sociedade”. De qualquer modo, a revolução pressupõe uma
mudança estrutural. No caso, uma revolução tecnológica propiciaria uma mudança radical em todos os
níveis sociais na atualidade, de ordem política, social e econômica, a exemplo da Revolução Industrial.

Sob a luz do materialismo histórico podemos concluir que uma mudança estrutural capaz de alterar
o processo pela raiz, portanto radical, deveria apresentar ao conjunto da sociedade uma modificação
das relações sociais de produção. Do ponto de vista histórico, podemos elencar exemplos de revoluções
em que a mudança, ou transformação radical das relações de produção, aparece como condição para o
processo revolucionário. São exemplos desses processos: a Revolução Francesa, a Revolução Industrial
e a Revolução Russa.

A Revolução Francesa, assim como a Revolução Industrial, faz parte do mesmo processo desencadeado
pelas revoluções burguesas. Em ambos os casos, a transformação se deu de forma estrutural. As
relações de produção foram totalmente modificadas: o feudalismo foi substituído pelo capitalismo;
o modo de produção social foi transformado, e o trabalho ficou subsumido ao capital, estabelecendo
novas relações sociais de produção, agora não mais entre o senhor e seu servo, ou entre o mestre e o
aprendiz, mas entre o capitalista, ou seja, o burguês, e o trabalhador. Da mesma forma, a Revolução
Russa apresenta uma mudança estrutural nas relações sociais de produção. Por meio de um processo
revolucionário, os trabalhadores tomam o poder, os burgueses são destituídos e abre‑se o processo para
a extinção do estado burguês em torno de uma proposta comunal, em que as relações de produção,
capital-trabalhador, são destruídas com o objetivo de construir uma relação igualitária e de fato justa
em que todos façam parte do processo de concepção e produção de valores de uso úteis à coletividade
social. Contudo, vale lembrar que esse processo foi interrompido e a Revolução Russa não atingiu seu
objetivo: a extinção do estado burguês.

Entretanto, não podemos fazer essa mesma inferência no que diz respeito à discussão acerca
da revolução tecnológica que estaríamos sofrendo na atualidade. Não podemos inferir uma real
modificação nas relações de produção na sociedade atual. O desenvolvimento da ciência e da técnica
é evidente, contudo não suficiente para uma transformação estrutural das relações sociais. Por mais
sensíveis que possamos ser aos novos elementos conjunturais, não podemos negar a existência de um
pequeno grupo de pessoas que possui os meios de produção e a existência do restante, da maioria da
população mundial, que, por não ter a posse desses meios de produção, necessitam vender a sua força
de trabalho a fim de garantir a sua sobrevivência. Segundo Antunes (2005), dois terços da humanidade
que trabalha encontram‑se nos chamados países emergentes – Ásia, Oriente, África e América Latina –,
sem contar que cerca de 1 bilhão e 200 milhões encontram‑se, segundo dados da OIT, precarizados ou
desempregados. Todos sob a égide das mesmas relações de produção capitalista.

28
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Segundo Romero (2005, p. 23), a tecnologia, na atualidade, reveste-se de um componente ideológico


e fetichista, transformando‑se em um mito moderno, “pois tanto atualiza a ideia de destino quanto
funciona como explicação da gênese de uma nova sociedade”.

Figura 5 – A utilização da tecnologia na sociedade contemporânea

Do ponto de vista ideológico, para Romero (2005), a tecnologia seria usada para explicar o
desenvolvimento e as determinações do movimento histórico. Em uma perspectiva evolucionista, a
história da humanidade seria contada a partir do desenvolvimento da dimensão unilateral das forças
produtivas, que seriam o motor do desenvolvimento histórico. Isso vai ao encontro da tese de Marx
explicitada em O Capital, ao mencionar as relações de produção como norteadoras do processo histórico.
Marx é bastante claro ao apresentar a discussão sobre a subsunção formal do trabalho ao capital, em
que, logo após os processos revolucionários, radicais e estruturais, não teria havido de imediato uma
modificação substancial no que diz respeito à técnica e à tecnologia empregadas no processo de trabalho.
Contudo, o trabalho fora subsumido ao capital, ou seja, estava subordinado às relações de produção do
capital ao capitalista. Nesse sentido, o desenvolvimento, ou evolução da técnica ou tecnologia, somente
pode ser usado como matriz elucidativa da história no interior de teorias evolucionistas e positivistas
da sociedade.

A noção fetichista da tecnologia viria com o pressuposto de neutralidade no que concerne às relações
de produção capitalista. A tecnologia seria apresentada como elemento independente das relações
sociais, capaz de se desenvolver pelo impulso natural da história humana, no qual as forças produtivas
seriam o desenvolvimento contínuo das técnicas da produção e, portanto, desprovidas das relações
sociais determinantes. “A técnica e a ciência aplicadas à produção capitalista devem ser entendidas
como uma relação de exploração que se estabelece entre os capitalistas e os trabalhadores, como um
método específico e aprimorado de extração de mais‑valia relativa” (ROMERO, 2005, p. 17).

O que para Marx seria um método específico de extração de mais‑valia tipicamente capitalista é
lido por alguns autores como um processo diferenciado do modo de produção capitalista, um processo
de revolução social via tecnologia, o que legitimaria os arautos da “nova sociedade”, ou sociedade

29
Unidade I

da informação. Contudo, concluímos que a tese da “revolução tecnológica” ignora uma análise da
totalidade, secundarizando as relações sociais de produção em favor da noção de neutralidade das
forças produtivas. É salutar evidenciar que as forças produtivas são compostas por uma tríade: o homem
(trabalho vivo), a natureza (matéria‑prima) e a técnica (ciência, tecnologia). Basear o desenvolvimento
histórico na evolução da técnica, ou ainda da tecnologia, é lançar mão de uma perspectiva unilateral das
forças produtivas, rejeitando intencionalmente as outras duas dimensões, o que, para Romero (2005),
não é uma insuficiência teórica, mas um momento específico da luta de classes.

Esse momento específico da luta de classes ao qual se refere Romero diz respeito à necessidade da
burguesia de manter-se no poder, por isso não é insuficiência ou falta de clareza teórica.

[Seu desenvolvimento] engendrou uma massa de forças produtivas, para [a]


qual a [propriedade] privada tornou‑se um entrave, tal como a corporação
havia sido para a manufatura e o pequeno empreendimento agrícola
para o progresso do artesanato. Essas forças produtivas, sob o regime da
propriedade privada, experimentam apenas um desenvolvimento unilateral,
convertendo‑se para a maioria em forças destrutivas, e grande quantidade
delas não encontra a menor utilização sob este regime (MARX; ENGELS,
1999, p. 95).

A tese de que a tecnologia propiciará uma revolução estrutural e organizacional na sociedade revela
a intencionalidade de um discurso pouco sólido ou meramente parcial da realidade. Compreender as
mudanças na forma de organizar o trabalho ou ainda no tipo de trabalho na sociedade atual não
significa assumir que a sociedade capitalista, fundada no trabalho, tenha sido superada. A tentativa de
forjar uma mudança radical na sociedade contemporânea ou na sociedade do futuro tem o seu auge na
formulação do novo conceito de trabalho ou na nova caracterização que se faz dele hoje. A concepção
de trabalho imaterial é subsidiária da noção de uma transformação radical, da emergência de uma nova
sociedade, no caso da sociedade da informação.

Lembrete

Importante recuperar que a ideia de revolução está associada às


mudanças radicais. Logo, utilizar a ideia de revolução sem que isso signifique
uma ruptura estrutural nas relações sociais de produção é uma falácia, com
intencionalidade clara de falsear a realidade dos fatos.

2.5 A tentativa de hegemonizar o trabalho imaterial

Para os principais teóricos, como Gorz, Negri, Hardt e Lazzarato, o trabalho imaterial seria a nova
forma de trabalho hegemônica em uma sociedade fundada na economia do conhecimento ou mesmo
em um tipo de capitalismo pós‑moderno – de qualquer maneira, em uma sociedade não classicamente
capitalista. Entende‑se como sociedade classicamente capitalista aquela baseada na produção de tipo
industrial e no trabalhador formal de carteira assinada que necessita ser educado nas competências
30
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

tradicionais a fim de cumprir o seu papel de “cidadão”. O trabalho imaterial não demandaria mais
somente capacidades técnicas ou habilidades para a repetição; a subjetividade e os saberes cotidianos
seriam o novo tipo de conhecimento necessário para esse novo tipo de trabalho.

Lessa (2002b) faz um esforço na tentativa de precisar com o maior rigor possível o conceito de trabalho
imaterial. Ele vai buscar referências do texto de Lazzarato, Le ‘cycle’ de la production immatérielle, e
consegue perceber de maneira bastante clara a primazia desse conceito. Evidencia‑se, nessa leitura, que
o conceito de trabalho imaterial não se baseia no intercâmbio homem‑natureza, mas, sim, na “atividade
estética”, “subjetiva” (LESSA, 2002b, p. 14).

É salutar ressaltar o emaranhado intencional apresentado por esses autores acerca do conceito
de trabalho. Para Hardt, Negri e Lazzarato, segundo Lessa (2002b), não há uma distinção entre
trabalho, do ponto de vista ontológico, e trabalho abstrato, do ponto de vista do capital fornecedor
de valores de troca. A negação de um tipo de trabalho alienado, na atualidade, mediante o trabalho
de tipo imaterial, subjetivo e, portanto, mais libertador, não consegue atingir a ontologia do trabalho
na sua essência, ou seja, não se pode negar a existência do trabalho ignorando a sua centralidade
na sociedade (mais adiante aprofundaremos essas razões). Essa perspectiva mais libertadora, não
alienante, surge na tentativa de identificar na atualidade a superação da distinção, fruto da divisão
social do trabalho, entre manual e intelectual.

Como esse trabalho é executado de maneira coletiva e em rede de fluxo, estamos inclinados a
ampliar o conceito de trabalho para a totalidade da vida social, ignorando suas esferas (circulação,
produção, consumo).

[...] na produção, os membros da sociedade apropriam‑se [produzem, moldam]


dos produtos da natureza para as necessidades humanas; a distribuição
determina a proporção dos produtos de que o indivíduo participa; a troca
fornece‑lhe os produtos particulares em que queira converter a quantia
que lhe coube pela distribuição; finalmente no consumo, os produtos
convertem‑se em objetos de desfrute, de apropriação individual. A produção
cria os objetivos que correspondam às necessidades; a distribuição os
reparte de acordo com as leis sociais; a troca reparte de novo o que já está
distribuído segundo a necessidade individual, e finalmente, no consumo,
o produto desaparece do movimento social, convertendo‑se diretamente
em objeto e servidor da necessidade individual satisfazendo‑a no desfrute
(MARX, 1978, p. 107).

Isso implica ignorar a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, pois tudo seria produtivo,
a vida seria produtiva e se subsumiria totalmente ao capital. Se tudo é produtivo, não teríamos como
separar, a não ser abstratamente, o trabalho manual do trabalho intelectual. “As novas formas de ver,
de sentir, demandam novas tecnologias e novas tecnologias demandam novas formas de sentir e ver”
(GORZ, 2005, p. 14). Novamente a reificação da tecnologia como sujeito determinante mostra‑se notória
no interior do debate acerca do trabalho imaterial e da centralidade do conhecimento.

31
Unidade I

Como o “conjunto das relações sociais” tornou‑se produtivo, não temos


mais a distinção entre trabalho e capital, nem entre trabalhadores e
operários, todos são agora “sociais”: “trabalhador social”, “capital social”,
indivíduo “social”. No “novo modo de produção”, “Os trabalhadores não
mais são indivíduos comprados pelo capitalista, antes são sujeitos ativos
no comando do amálgama produção/circulação/consumo.” Na esfera da
produção, portanto, não haveria mais qualquer espaço para a velha luta de
classe e os conflitos antagônicos entre proletariado e burguesia: os conflitos
que ainda existem brotam dos resquícios da velha política que teimam em
não desaparecer. O comando do capital só pode se afirmar, hoje em dia,
do “exterior” da vida da nova sociedade pelo domínio “das tecnologias da
comunicação e de informação”. Conclusão: “Um novo terreno de luta se
abriu diante de nós e a questão da subjetividade está no seu centro” – a
palavra de ordem, agora, é dominar a comunicação (LESSA, 2002b, p. 15‑6).

A comunicação, meio pelo qual os trabalhadores devem se relacionar nessa rede de fluxo, é vista,
no interior das teorias contemporâneas aqui citadas, como uma esfera independente; esfera ou
espaço em que a subjetividade é o combustível, independentemente das relações sociais de produção
e da contradição de classe. A ideia dessa comunicação autônoma ou mesmo acima das relações de
dominação é coerente com a concepção de não distinção entre “trabalho e capital”, ou mesmo com
a tese do “trabalhador social” evidenciada por Lessa. A mistura dessas relações findaria com a linha
divisória de classe ou mesmo atenuaria essa relação, o que justificaria, por teóricos defensores da tese do
trabalho imaterial, uma crença libertária na subjetividade. Essa crença não estaria totalmente a serviço
das relações de classe dominante, pois possibilitaria uma emergência da positividade e da autonomia
do trabalhador diante do processo de trabalho, o que seria possível pela superação da contradição
intrínseca da sociedade do capital. Com a não contradição capital-trabalho dissimula‑se a noção de
poder na sociedade e dilui‑se, consequentemente, o embate entre as classes, o que, segundo Lessa
(2002b), caracterizaria uma tentativa de construção de uma identidade absoluta entre capital e trabalho.

A identidade absoluta entre capital e humanidade é, para sermos breves,


uma impossibilidade ontológica. É esta impossibilidade, sem tirar nem pôr,
o fundamento último da alienação (Entfremdung) que brota da regência
do capital. Quanto mais o capital se desenvolve, quanto mais ele penetra
no tecido social, mais se explicita a distância entre a reprodução do capital
e a reprodução social: a sociedade se torna crescentemente desumana,
alienada. Quanto mais desenvolvida a sociedade, mais divergentes se
tornam as necessidades autenticamente humanas e as necessidades da
autovalorização do capital. É justamente por essa razão que não há qualquer
possibilidade de uma humanização do capital ou, o que dá no mesmo, de
um capitalismo de face humana. A tese de Hardt, Negri e Lazzarato se
apoia, portanto, em uma pura fantasia: não vivemos hoje, nem poderemos
jamais viver, qualquer identidade absoluta entre o capital e a sociedade. Pelo
contrário, o desenvolvimento das forças produtivas evidencia a crescente
incompatibilidade entre capital e sociedade (LESSA, 2002b, p. 3).
32
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Diante da impossibilidade de construção de uma identidade absoluta, de um pacto social entre capital
e trabalho, a própria noção de desmaterialização ou ainda imaterialização do trabalho é insustentável.

O trabalho tem por seu nódulo mais decisivo a transformação do real, não
há nenhum ato de trabalho que não transforme o real. Nem mesmo na
concepção de Hardt, Lazzarato e Negri: também para eles o trabalho (mesmo
o “imaterial”) produziria identificações trocadas enquanto valores de uso no
mercado. Ora, se o “trabalho imaterial” produziu algo, e se essa produção possui
um valor de uso e é trocada, tem necessariamente que possuir propriedades,
utilidades e, portanto, algum tipo de materialidade. Se o trabalho produz algo
que tem existência fora da subjetividade que o criou – e só desse modo pode
ser trocado entre indivíduos pela mediação do mercado – não há como se
negar que esse objeto possui uma materialidade portadora de utilidade, uma
materialidade que expressa (na acepção de nossos autores) as necessidades
de quem as produziu. Portanto, mesmo no interior do referencial de Negri,
Lazzarato e Hardt, a qualificação de imaterial que conferem ao trabalho é
extremamente questionável (LESSA, 2003, p. 14).

A inferência sobre a tese desses autores ser fantasiosa encontra eco na própria definição do
conceito de trabalho imaterial: para além de ser uma qualificação questionável ao trabalho, aponta
uma certa imprecisão na caracterização. Os autores descrevem o trabalho imaterial, mas não o definem
precisamente. Para Lessa (2002a), todo esse conceito fora construído com o objetivo de defender a tese
de que existe uma mudança no modo de produção capaz de apresentar a emergência do embrião de
um modo de produção novo, mais libertário, comunal. Seria como se os trabalhadores estivessem mais
autônomos e independentes em relação à máquina nesse novo modo de produção, contudo as relações
não se alteram, pois eles continuam a ser explorados. Nesse sentido, o conceito de trabalho imaterial só
teria uma função: confundir ainda mais a situação do trabalhador de total precarização, de gestor do
seu capital humano, revestindo‑a de certa independência e autonomia pela liberação da subjetividade,
dos saberes e do conhecimento.

O conceito de “trabalho imaterial” é inaproveitável para a crítica radical do


mundo em que vivemos, tanto por ser uma contradição em termos como ainda
por estar carregado de um conteúdo ideológico conservador. Sua metodologia,
sua concepção da história, suas propostas éticas, sua interpretação do presente
etc. são reafirmações da velha tese de que a emancipação da humanidade não
requer preliminarmente a destruição da ordem do capital. Bem-pesadas as
coisas, as teorizações de Hardt, Lazzarato e Negri não contêm tantas novidades
como pretendem (LESSA, 2002a, p. 21).

De fato, Lessa (2002a) atinge o ponto neural dessa discussão. Uma nova sociedade emergiria sem
alterar, necessariamente, as relações de produção. Uma sociedade da informação, do saber, centrada na
subjetividade e, portanto, no conhecimento representaria o futuro sem alterar as relações de dominação
do passado. O trabalho imaterial como categoria‑chave para a nova sociedade mostra‑se insuficiente,
pois corrobora a tese da não transformação radical, da não revolução e, portanto, da não alteração
33
Unidade I

substancial do status quo da sociedade do capital. Uma vez evidenciado que a tese da “revolução
tecnológica” – como arauto de uma nova lógica e, consequentemente, do trabalho imaterial, elemento
concreto dessa nova realidade – não supera a pseudoconcreticidade, ou seja, a dimensão fenomênica
da realidade, é necessário denunciarmos a falsidade da tese da centralidade do conhecimento e da
emergência deste como principal força produtiva.

2.6 A centralidade do trabalho: trabalho como gênese da sociedade capitalista

A Teoria do Valor em Marx localiza o trabalho assalariado (o trabalho imediato) como a principal
força produtiva. Logo, seria o trabalho vivo imediato o responsável pela produção de mais‑valor e,
portanto, de capital. Não estamos aqui nos propondo a fazer um estudo aprofundado sobre a Teoria
do Valor em Marx, pois sabemos que por sua riqueza e densidade só esse conceito já seria capaz de
gerar uma dissertação. Contudo nos dispomos, neste momento, a apresentar a estrutura geral capaz
de explicar a lógica interna dessa teoria.

Antes de iniciarmos o debate acerca da Teoria do Valor, é salutar compreender a definição de Marx
sobre trabalho, categoria e elemento central da sua análise. Para o autor, o trabalho é um processo que
ocorre entre o homem e a natureza, capaz de dotar o homem de humanidade, de sentido. O homem
entra em contato com a natureza com a intencionalidade de transformá‑la e, com isso, possibilitar
a sua própria existência. Ao entrar em contato com a natureza, ele a transforma e se transforma
simultaneamente nesse processo. Assim, ele difere do animal, que, por mais sagaz que seja, não possui
a condição de prefigurar o final do seu trabalho. A teleologia, ou clareza da finalidade, é o que difere o
pior arquiteto da melhor abelha. Este é o processo de trabalho: a objetivação do movimento, da agitação
interativa entre o homem e a natureza.

Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao


homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos
favos de sua colmeia. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí‑lo
em cera. No fim do processo de trabalho obtém‑se um resultado que já no
início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente
(MARX, 1988, p. 143).

O processo de trabalho mencionado se objetiva na produção de valores de uso, de elementos que


sirvam para satisfazer a necessidade de uma determinada espécie, no caso, o homem. A fim de garantir
a produção desses valores de uso, são utilizados instrumentos, ferramentas, matéria‑prima e, ainda,
o próprio corpo humano (mãos, braços etc.), ou seja, meios de trabalho. Para Marx (1988, p. 144),
“os meios de trabalho não são só medidores de desenvolvimento da força de trabalho humana, mas
também indicadores das condições sociais das quais se trabalha”. Os meios de trabalho e a força de
trabalho compõem as forças produtivas de uma dada sociedade. Essas condições de trabalho vão se
transformando ao longo da história humana, mediante os desejos e as necessidades das relações de
produção estabelecidas.

34
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Marx (1975) ratifica escritos anteriores ao afirmar que o motor do desenvolvimento da história são
as relações sociais de produção, e não as forças produtivas. Para o autor, as relações sociais estabelecidas
pelo modo de produção são as responsáveis pelo desencadeamento histórico. As relações sociais de
produção no Período Feudal organizavam as forças produtivas: era a partir das relações entre senhor e
servos que a produção era tocada e que as forças produtivas se desenvolviam. Por exemplo, a necessidade
do arado para que o servo ganhasse tempo, cultivasse a terra do senhor com maior rapidez e, assim,
sobrasse mais tempo para cuidar de sua própria plantação. Esse é apenas um simples exemplo de como
as forças produtivas, sobretudo na sua dimensão técnica, se desenvolviam em favor dos interesses das
relações sociais de produção estabelecidas e de acordo com elas. O sistema de trabalho se mostrava
muito mais organizado diante dessa configuração social. A diminuição do nomadismo e a necessidade
de cultivo da terra a partir da relação de produção estabelecida impuseram uma dinâmica nova ao
desenvolvimento das forças produtivas. A fim de possibilitar um maior desenvolvimento dessas forças
produtivas foi necessário, em um determinado momento da história, romper com as relações de produção
anteriores. Com as revoluções burguesas, as relações de produção foram transformadas. Em vez de servo
e senhores, trabalhadores e capitalistas, burgueses estabeleceram as novas relações de produção social.

Em uma concepção dialética é difícil, a não ser para fins didáticos, separar claramente em linhas
distintas as relações de produção e as forças produtivas. Entretanto, Marx faz essa inferência acerca do
motor de desenvolvimento da história a partir da discussão apresentada sobre a subsunção formal e real
do trabalho ao capital, soterrando a análise evolucionista da história que se baseava no desenvolvimento
das forças produtivas para explicar os períodos históricos, a história da humanidade.

Observação

De modo algum, na nossa compreensão, isso alimenta interpretações de


que as forças produtivas, desligadas das relações de produção capitalista,
são apenas positividade. Partindo da análise marxista, identificamos que
mesmo a organização do trabalho, a disposição das forças produtivas, são
impregnadas dos elementos e mecanismos de controle necessários para a
manutenção da dominação e da exploração de classe.

Acompanharemos essa discussão de maneira mais sistemática mais adiante. Contudo, para Marx,
independentemente das relações de produção, ao longo da história da humanidade, o trabalho exerce
a sua centralidade a fim de dar sentido à vida humana. Nessa perspectiva, segundo a interpretação que
Antunes faz de Mészáros, o trabalho é central:

Os indivíduos devem reproduzir sua existência por meio de funções primárias


de mediações, estabelecidas entre eles e no intercâmbio e interação com
a natureza, dadas pela ontologia singularmente humana do trabalho, pelo
qual a autoprodução e a reprodução societal se desenvolvem (ANTUNES,
2009, p. 20).

35
Unidade I

O trabalho é intrínseco ao ser social, é ontológico, pois dá sentido à existência do ser. Entretanto,
essa dimensão positiva e criadora do trabalho, ou mesmo do processo de trabalho, presente na sua
gênese, é secundarizada e subsumida quando o trabalho é apropriado pelo capital. O sistema capitalista
se utiliza do trabalho vivo como uma mercadoria, ou melhor, como a mercadoria principal do processo
de produção. Este depende centralmente dos meios de produção, pertencentes aos capitalistas. Ao
apropriar‑se dos meios de produção e, por conseguinte, das forças produtivas, inclusive o trabalho vivo,
o capital se personifica no sujeito do capitalista. A dimensão negativa do trabalho é apresentada.

O capitalista só funciona enquanto capital personificado [ele] é o capital


enquanto pessoa; do mesmo modo o operário funciona unicamente
como trabalho personificado, [trabalho] que a ele pertence como suplício,
como esforço, mas que pertence ao capitalista como substância criadora
e incrementadora de riqueza [...] A dominação do capitalista sobre o
operário é, por conseguinte, a dominação da coisa sobre o homem [...]
(MARX, 1975, p. 44).

Observação

Marx define como trabalho vivo aquele realizado pelo ser humano,
trabalhador ou trabalhadora, responsável pela produção de mais‑valia.
O trabalho morto, definido como oposição ao trabalho vivo, é trabalho
humano objetivado em uma máquina. A máquina, em ação-interação
conjunta com o trabalho humano, potencializa a extração da mais‑valia
relativa típica do sistema capitalista de produção.

Naturalmente nos outros modos de produção existiam, de maneira acentuada, formas de apropriação
do trabalho alheio; contudo, somente no capitalismo o trabalho se subsume ao capital, de maneira que
não há escolha para o trabalhador: ou se vende como mercadoria, ou se priva da vida. No entanto,
mesmo essa relação é representada no teatro da vida como o mais simples ato de liberdade, em que os
trabalhadores oferecem sua força de trabalho e, em troca, recebem o seu salário a fim de garantir a sua
subsistência.

Saiba mais

Assista à entrevista do filósofo húngaro István Mészarós em uma de


suas visitas ao Brasil.

ISTVÁN Mészáros. Roda Viva. Memória Roda Viva. São Paulo: Fapesp, 2002.
2 minutos. Disponível em: <http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/266
/entrevistados/istvan_meszaros_2002.htm>. Acesso em: 14 set. 2016.

36
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

O processo de trabalho encontra aqui o processo de criação de valor, ou processo de valorização,


dando luz ao processo de produção de mercadorias. O trabalhador é, na verdade, a mercadoria mais
importante do capitalista, pois além de possuir o seu valor de uso e o valor de troca, ele é o único capaz
de gerar e produzir mais valor. Segundo Marx (1988, p. 361), “este tipo de intercâmbio entre capital e o
trabalho é o que serve de base à produção capitalista [...]”. O objetivo central é produzir mercadorias que
visam ao seu valor de troca, secundarizando o seu valor de uso.

Como a unidade do processo de produção de trabalho e processo de formação


de valor, o processo de produção é processo de produção de mercadorias;
como unidade de processo de trabalho e processo de valorização, ele
é processo de produção capitalista, forma capitalista de produção de
mercadorias (MARX, 1988, p. 155).

Em outras palavras, o processo de produção capitalista é o processo de produção de mercadorias e, por


conseguinte, processo de valorização. Nesse ponto já podemos concluir que: (1) o processo de produção
capitalista é processo de produção de mercadorias; (2) essencialmente, produção de mais‑valor, capital,
logo mais valia; (3) é “produção e reprodução do conjunto da relação numa escala alargada sobretudo
das relações sociais e históricas, não prescindindo, na totalidade do sistema, do trabalho assalariado,
do trabalho vivo, sendo este o responsável pela produção de mais‑valia” (MARX, 1975, p. 9). Resta
esclarecer este último ponto.

Observação

Marx deixa claro que o trabalho é ontológico e elemento fundamental


das relações sociais de produção de uma dada sociedade. A característica
intrínseca do sistema capitalista de produção das relações sociais é também
a de reprodução dessas relações, em que o trabalho exerce um papel central
nesse processo. A escola, os meios de comunicação e o lazer surgem como
derivações do trabalho, das relações sociais de produção estabelecidas por
meio das relações de trabalho, sendo necessário o sistema capitalista forjar
instituições e estruturas capazes de sustentar a necessidade de reprodução
do capital. Por isso, Marx nos alerta para o fato de que uma mudança real
e concreta só será possível com uma transformação substancial, radical, ou
seja, uma transformação das relações sociais de produção, que aprisionam
as forças vitais da humanidade em detrimento dos seus interesses de lucro.

Dito isso, se é verdade que sem trabalho assalariado não há produção de mais‑valia, também é
verdadeiro que a extração de mais‑valia, ou o processo de valorização do capital, consiste em extrair do
trabalhador o maior número de horas de trabalho não pagas possível, de maneira que garanta a reprodução
do dinheiro em capital. As horas de trabalho determinadas para a fabricação de um determinado produto,
ou mercadoria, são mensuradas a partir de uma média geral. Essa média geral de horas de trabalho
utilizado considera a totalidade de trabalhadores que executam determinada função. Justamente a partir
da quantidade de horas de trabalho se fundamenta o valor do salário do trabalhador. Nesse sentido, surge
37
Unidade I

o conceito de trabalho abstrato, que possibilita ao capitalista abstrair qualquer especificidade do trabalho
concreto, imediato, em horas mensuráveis. Não interessa ao capitalista a finalidade das mercadorias, ou
seu valor de uso: somente interessa o número de horas utilizadas no seu processo de produção, o que
determinará o seu valor de troca e, por consequência, a sua mais‑valia.

De fato, o sobretrabalho conceituado por Marx transformar‑se‑á, no interior do processo de


valorização, em mais‑valia. Equivale a dizer que, por exemplo, em uma jornada de trabalho de oito horas
diárias, quatro a cinco horas são necessárias para pagar o salário do trabalhador; seria a quantidade
de trabalho justa e necessária para reproduzir a sua força de trabalho. O restante, de três a quatro
horas, é utilizado como excedente, sobretrabalho, ou seja, horas em que o trabalhador exerce sua força
de trabalho gratuitamente para o capitalista, gerando a mais‑valia. Ou seja, a jornada de trabalho do
trabalhador se divide em trabalho necessário e sobretrabalho. Esse é o mecanismo de funcionamento
do trabalho assalariado que se caracteriza por uma parte que não é paga ao trabalhador. A Teoria do
Valor em Marx nos explica objetivamente como transformar o dinheiro do capitalista em mais dinheiro,
ou melhor, como transformar o dinheiro do capitalista em capital. Compreender a maneira pela qual se
dá esse processo de valorização do processo produtivo é essencial para analisar o papel da ciência e da
tecnologia no processo de produção capitalista.

São duas as formas de extração de mais‑valia: absoluta e relativa. A primeira se refere à simples
ampliação da jornada de trabalho; a segunda, à utilização da tecnologia na produção para aumentar a
produtividade e, logo, o excedente. Não se trata aqui de detalhar esses dois tipos ou ainda a combinação
contemporânea de outras, mas de reforçar que não existe produção de capital, na sociedade capitalista,
que não parta da exploração do trabalho assalariado, material e imediato.

Assim, é necessário repensarmos a tese da centralidade do conhecimento. A negação da Teoria do


Valor, do trabalho vivo, produtivo e assalariado só é possível com a negação da sociedade capitalista e,
por conseguinte, a emergência de uma nova sociedade, de uma nova lógica societal. Contudo, além do
discurso e de teorias inscritas no papel, são necessários elementos concretos e reais, que se objetivem
na história, para provar‑nos a existência de uma nova sociedade. Reiteramos a tese de Antunes (2009)
exposta em vários livros, mas centralmente em Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a Afirmação
e a Negação do Trabalho, no qual o autor identifica mudanças pelas quais o trabalho passou na
contemporaneidade, mas reifica o fato de o trabalho, apesar de mais complexo, mais cognitivo, precário
e multifacetado, ainda assumir a centralidade. O trabalho assalariado, ou mesmo a ausência deste, ainda
ocupa a centralidade na produção de capital e na preocupação da vida dos trabalhadores e jovens que
necessitam vender a força de trabalho para viver em sociedade.

Os pontos mais desenvolvidos apresentam a crítica à tese da centralidade do conhecimento.

2.7 A metamorfose do trabalho: novas formas de precarização na


sociedade do capital

Segundo Antunes (2009), o mundo do trabalho viveu nos últimos anos metamorfoses que
levaram os países de capitalismo avançado a um processo franco de desindustrialização. Esta afetou
também os países ditos periféricos, levando a uma diminuição da classe trabalhadora industrial. Isso
38
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

desencadeou o que Antunes denominou subproletarização do trabalho, expressa em variações do


trabalho informal: parcial, terceirizado, subcontratos, a maioria vinculada ao setor de serviços, o que
se configura como uma significativa heterogeneização, bem como complexificação e fragmentação
do trabalho (ANTUNES, 2009).

O capitalismo contemporâneo, ainda mais complexo, não deixou de ser capitalismo, não abandonou
a exploração, a extração de mais‑valia, mas a intensificou criando novas formas de trabalho. A ampliação
dos postos no setor de serviços e o advento da tecnologia impactaram de modo significativo essa
metamorfose. “Ao invés do adeus ao proletariado, temos um amplo leque diferenciado de agrupamento
e segmentos que compõem a classe‑que‑vive‑do‑trabalho” (ANTUNES, 2009, p. 210). Conforme
apresentado na Teoria do Valor, é justamente pelo fato de o capital não poder eliminar o trabalho
vivo da produção de valores que deve aumentar a produtividade e intensificar as formas de extração
de sobretrabalho, dando vazão a essas formas distintas de trabalho precário. Para além disso, Antunes
(2009) aponta que a ideia de ciência como principal força produtiva do conhecimento esconde o fato de
que trabalho vivo e tecnologia constroem uma relação de simbiose e que não são ideias contraditórias
e antagônicas no capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, a ciência depende das relações sociais de
produção, capital versus trabalho, para se desenvolver.

Em vez de substituição do trabalho pela ciência, ou ainda da substituição da


produção de valores pela esfera comunicacional, da substituição da produção
pela informação, o que vem ocorrendo no mundo contemporâneo é uma
maior inter‑relação, maior interpenetração, entre as atividades fabris e de
serviços, entre as atividades laborativas e as atividades de concepção, que
se expande no contexto da reestruturação produtiva do capital (ANTUNES,
2009, p. 223).

Assim, o capitalismo apresenta soluções individuais e cartesianas para os problemas atuais, a exemplo
do desemprego e das formas precárias de trabalho, delegando ao indivíduo a responsabilidade pela sua
condição de empregável. Uma das saídas apresentadas é a empregabilidade.

2.8 A empregabilidade como solução para o desemprego estrutural

Trata‑se de um grande “apelo” feito à educação. Esta se torna o centro do processo, porque oferece a
empregabilidade e, diante das exigências do mercado, faz-se mais que necessária, tanto para a garantia
de continuidade de emprego quanto para a conquista de um novo posto de trabalho. Isso vai ao encontro
da teoria defendida por Gaudêncio Frigotto. Para o autor (FRIGOTTO, 2001), estaríamos vivenciando um
rejuvenescimento da teoria do capital humano, talvez com um invólucro mais “social”, mas, de qualquer
forma, a educação manteria a sua função potencializando a força de trabalho.

39
Unidade I

Figura 6 – A centralidade do trabalho

Morta definitivamente a promessa do pleno emprego, restará ao indivíduo (e não ao Estado, às


instâncias de planejamento ou às empresas) definir suas próprias opções, suas próprias escolhas que
permitam (ou não) conquistar uma posição mais competitiva no mercado de trabalho. A desintegração da
promessa integradora deixará lugar à difusão de uma nova promessa, agora sim, de caráter estritamente
privado: a promessa da empregabilidade (GENTILI, 1998).

Hunt (1981) apresenta os quatro conjuntos de esquemas institucionais e comportamentais do


capitalismo, ou melhor, seus elementos principais. O primeiro seria a produção de mercadorias, orientada
pelo mercado; o segundo, a propriedade privada dos meios de produção; o terceiro, a força de trabalho
disponível no mercado, trabalho vivo; e, por último, o “comportamento aquisitivo, maximador, da maioria
dos indivíduos dentro do sistema econômico” (HUNT, 1981, p. 26). Podemos, com basea em Hunt (1981),
afirmar que a necessidade material de exacerbação do individualismo na atual fase da acumulação
capitalista é representada pela ideia de empregabilidade.

Cabe aos trabalhadores a responsabilidade, como mencionamos anteriormente, de garantir o seu


emprego. O indivíduo é superdimensionado com o propósito de encobrir a crise do capital que há muito
perdeu seu potencial criativo, acarretando uma maior competitividade: o companheiro, o trabalhador ao
lado, torna‑se o maior inimigo, e o empregador, mais um parceiro. A própria noção de empregabilidade
abarca uma totalidade de elementos beneficiadores do capital. Segundo Gentili (1998), a redução
dos encargos patronais, já que é responsabilidade do trabalhador arcar com os custos de formação, a
flexibilização trabalhista, propiciada pelo Estado, e a formação profissional permanente, mediante o temor
do desemprego, são elementos estruturantes das ideias de empregabilidade. Os que não estão buscando a
empregabilidade ou que não atendem aos requisitos e necessidades do mercado são “inempregáveis”.

O conceito de “inempregável” parece traduzir, no seu cinismo, a realidade de um discurso enfatizando


que a educação e a escola, nas suas diferentes modalidades institucionais, constituem sim uma esfera
de formação para o mundo do trabalho, mas essa inserção depende agora de cada um de nós. Alguns
triunfarão, outros fracassarão (GENTILI, 1998).

40
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

É interessante notar que a resposta para o desemprego, que é estrutural, coloca-se no marco da
incapacidade do trabalhador de possibilitar o pleno emprego diante da sua fragilidade na formação.
Contudo, esse discurso não se sustenta mais. A educação vista como panaceia, como potencializadora
de desenvolvimento, a partir da Teoria do Capital Humano capaz de levar um país ao desenvolvimento
econômico, cai por terra ao se analisar os recentes fenômenos ocorridos da Europa e nos EUA, ou seja,
nos países centrais. A taxa de desemprego nesses países vem crescendo, e a ideia de pleno emprego há
muito foi abandonada. A educação não foi capaz de garantir a solução para os problemas estruturais;
não possibilitou a paz, tampouco o desenvolvimento econômico, evidenciando e reafirmando a tese de
Frigotto (1989) de que o determinante vira determinado.

Enquanto a educação é tida, na ótica do capital humano, como fator básico de mobilidade social, de
aumento da renda individual ou de desenvolvimento econômico, nessas análises, o “fator econômico”,
traduzido por um conjunto de indicadores socioeconômicos, é posto como o maior responsável pelo
acesso à escola, pela permanência na instituição e pelo rendimento ao longo dessa trajetória. Novamente,
o determinante torna-se determinado.

Ou seja, a escolarização é posta como determinante da renda, de


ganhos futuros, de mobilidade, de equalização social pela equalização
das oportunidades educacionais (tese básica do modelo econômico
concentrador) (FRIGOTTO, 1989, p. 51).

O autor nos mostra como o discurso que se baseia na ideia da educação como potencializadora do
desenvolvimento social não se sustenta, já que é determinado pelas relações de classe estabelecidas
pelas relações de produção da sociedade. Em outras palavras, as oportunidades em garantir melhores
postos de formação estão intimamente relacionadas com o poder econômico de cada um na sociedade,
o que, por sua vez, é determinado pelo seu local na produção e pelas relações sociais de produção.
O trecho citado ainda remete à noção de um modelo econômico concentrador, um Estado forte e
centralizador. Contudo, em seu livro Educação e a Crise do Capitalismo Real (2000), Frigotto fala sobre o
rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano como um resgate desta em um novo contexto histórico,
em um mundo globalizado, neoliberal e extremamente individualista, que impõe a necessidade de
“requalificação”, de “novos saberes”, e que forja novos conceitos diante da incapacidade de dar respostas
eficazes à humanidade.

Apesar da aparência fenomênica de estarmos em um mundo “novo” que se apresentaria por meio
de novas alternativas de trabalho e novas exigências de formação, ele se revela como o mesmo velho
mundo, da mesma velha ordem capitalista. As condições concretas e as relações sociais de produção não
apresentaram mudanças radicais.

2.9 Quem é o precariado?

As saídas para os problemas do mundo do trabalho apresentadas pela sociedade do capital têm se
mostrado ineficazes, segundo Antunes (2009). Logo, um novo tipo de trabalhador emerge nesse cenário.
Antunes (2009) iniciou um debate acerca do potencial de mobilização dos novos trabalhadores, mais
qualificados e mais precarizados, que seriam capazes de impulsionar mudanças com vistas a melhores
41
Unidade I

condições de vida e trabalho, indo na contramão do fenômeno da reestruturação produtiva. Todavia,


Ruy Braga (2013) e Giovanni Alves (2011) deram continuidade ao tema e encontraram no precariado um
novo sujeito a ser investigado, assim como seu potencial de luta e mobilização.

Para Braga (2013), o precariado brasileiro é formado por trabalhadores jovens, não qualificados ou
semiqualificados, precarizados, sub‑remunerados, sem experiência sindical prévia e com bloqueios na
sua ação coletiva mediante as relações de trabalho estabelecidas. Esse tipo de trabalhador encontra‑se
espremido entre a “ameaça da exclusão social e o incremento da exploração econômica” (BRAGA, 2013,
p. 16). Nesse sentido, ele está no coração da produção capitalista e expressa sua necessidade máxima de
superexploração; como parte integrante da classe trabalhadora e diante da condição salarial, expressa
o processo de mercantilização do trabalho em curso. Braga (2013) contraria a visão de Guy Standing,
autor do livro The Precariat: The New Dangerousclass (2011), que identifica o precariado como uma
“nova classe social”.

Saiba mais

Para saber mais sobre as teorias do professor Ruy Braga, leia:

BRAGA, R. Uma sociologia da condição proletária contemporânea.


Tempo Social. São Paulo, v. 18, n. 1, p. 133‑52, 2006. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103‑20702006000
1&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 2 ago. 2016.

Os trabalhadores do telemarketing são exemplos da expressão do precariado. Na maioria jovens, eles


estão construindo aos poucos experiências de luta e resistência.

Para Alves (2011), o precariado é a camada média do proletariado urbano, parte da classe
trabalhadora; jovens adultos altamente especializados que se inserem no mercado de trabalho de
forma precária. Esse recorte sociológico – juventude, precariedade salarial e nível educacional superior
– torna‑se crucial para apreendermos as contradições radicais da ordem sociometabólica do capital
no século XXI. O autor parte da avaliação de que, nos últimos anos, as pessoas ficaram mais tempo na
escola, e a oferta de profissionais com ensino médio e superior aumentou. Hoje, é possível constatar
por meio de dados oficiais que aumentou o número de jovens que concluíram o ensino médio; com o
crescimento das universidades e dos programas sociais de inclusão, o nível superior também apresentou
um número maior de matrículas. Essa avaliação não pode ser realizada de modo descolado da concepção
de empregabilidade e da retomada da educação como potencializadora das condições de disputa e
competição no mercado de trabalho. Segundo Alves (2011), esse quadro possibilitou uma maior oferta
de trabalhadores assalariados altamente escolarizados, a maior parte deles jovens recém‑graduados, o
que não significa que o salário aumentou em relação ao emprego anterior sem a mesma qualificação.
Essas seriam as condições concretas para explicar o potencial à luta e à organização dos setores.

42
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

Braga (2006) e Alves (2011) identificam o potencial de luta, ainda que apresentem diferença sobre a
caracterização do precariado. Contudo, argumentam que o precariado é parte da classe trabalhadora e
fruto de uma nova configuração.

3 EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI: RELATÓRIO DELORS – UMA PROPOSTA DE


EDUCAÇÃO PÓS‑MODERNA, UMA QUESTÃO PARA A SOCIOLOGIA

Ao afirmarmos que a proposta de educação para o século XXI inscrita no Relatório Delors (DELORS,
1998), educação ao longo de toda a vida, é uma proposta de educação pós‑moderna, assumimos
uma perspectiva crítica na tentativa de revelar a real dimensão política dessa proposta. Como a
pós‑modernidade é um arcabouço teórico capaz de justificar a fragmentação e a não totalidade do
mundo, ou seja, a negação da totalidade capitalista, faz‑se necessário objetivar os caminhos e percursos
dessa teoria. Buscaremos comprovar teoricamente que a sociedade capitalista não foi superada na prática.
As relações de produção do capital ainda imperam na totalidade das relações sociais, gerenciando‑as.

Observação

Para os pós‑modernos, os ideais tão caros aos iluministas, como


liberdade, igualdade e fraternidade, e defendidos pela Revolução Francesa,
demonstraram, ao longo do período moderno, a impossibilidade de
concretização de fato. O projeto moderno iluminista não poderia garantir
esses direitos a todos.

Saiba mais

Leia a íntegra do Relatório Delors em:

DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco


da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (Relatório
Delors). Brasília; São Paulo: Unesco/MEC; Cortez, 1998. Disponível em:
<http://dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_
descobrir.pdf>. Acesso em: 15 set. 2016.

Necessitamos compreender as amarras e os emaranhados que fazem a conexão entre a


pós‑modernidade e a sociedade capitalista na sua fase atual. Compreender como a pós‑modernidade,
por meio de um discurso de negação da totalidade, da reintegração da subjetividade, da reinvenção do
novo, contribui para a consolidação e a perpetuação da “velha” e “repaginada” sociedade do capital.
Dando continuidade a essa exposição, elucidaremos o papel da educação como veículo estratégico das
teses pós‑modernas, uma vez que é responsável por uma dimensão importante da socialização dos
indivíduos no interior de uma dada sociedade. A educação é uma das faces de construção e reprodução
cultural e subjetiva da humanidade.

43
Unidade I

Por fim, apontaremos possibilidades e potencialidades de uma educação verdadeiramente humanista


e democrática na perspectiva do materialismo histórico, buscando evidenciar a possibilidade real da
construção de uma outra realidade para além do capital.

3.1 Educação para o século XXI: Projeto Delors

Em meados da década de 1990, Frederico Mayor, diretor da Unesco, convocou Jacques Delors,
que, por sua vez, reuniu personalidades de todas as regiões do mundo para coordenar a Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI. Em 1996 foi publicado o resultado do trabalho,
intitulado Educação: Um Tesouro a Descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional
sobre a Educação para o Século XXI.

A Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI foi composta por mais quatorze
membros. A Unesco destaca a positividade do fato de estes membros pertencerem a horizontes
culturais e profissionais diversos, pois esse elemento ajudaria a Comissão na difícil tarefa de repensar a
educação diante da “extrema diversidade de situações que há no mundo, de concepções de educação
e suas modalidades de organização” (DELORS, 1998). Segundo Colin Power (1997), para a Comissão,
as “escolhas educativas são, no fim das contas, uma escolha de sociedade”, ou seja, o documento
não refletiria, necessariamente, um plano de reformas detalhadas, mas, sim, um campo de reflexão e
discussão sobre as escolhas que “deverão ser feitas” ao elaborar uma política educacional. O objetivo da
Comissão era, então, pensar a Educação para o futuro diante das transformações sociais, sobretudo as
desencadeadas pelo mundo do trabalho. Uma nova sociedade necessitaria de uma nova formação, seria
então necessário repensar as ideias de Educação Permanente:

É que, além das necessárias adaptações relacionadas com a alteração da


vida profissional, ela deve ser encarada como uma construção contínua da
pessoa humana, dos seus saberes e aptidões, da sua capacidade de discernir
e agir (POWER, 1997, p. 18).

Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2004, p. 65), “Essa comissão identificou tendências e
necessidades no cenário de incertezas e hesitações que caracterizam este final de século enfatizando o
papel de que a educação deveria assumir”.

Foram escolhidas seis pistas de reflexão e de trabalho que permitiram à Comissão encarar a sua
tarefa do ponto de vista das finalidades (individuais e sociais) do processo educativo: educação e
cultura; educação e cidadania; educação e coesão social; educação, trabalho e emprego; educação e
desenvolvimento; educação, investigação e ciência. As seis pistas foram completadas pelos estudos
de três temas transversais, mais diretamente relacionados com o funcionamento dos sistemas
educativos, a saber: as tecnologias da comunicação; os professores e o processo pedagógico;
financiamento e gestão.

As seis pistas escolhidas para balizar as reflexões da Comissão tinham como objetivo captar os
elementos centrais que poderiam explicar as transformações sociais do último período, possibilitando
sínteses para uma proposta educacional mais condizente com a realidade. O relatório se colocou como
44
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

de fundamental importância para as reformas educacionais em vários países. Segundo Shiroma, Moraes
e Evangelista (2004, p. 70):

O Relatório Delors articula recomendações práticas a um forte viés moralista.


Prescreve orientações precisas aos vários níveis de ensino e revela uma
concepção bastante nítida de educação, de seu papel e possibilidades para
garantir a sobrevivência dos valores consensuais na sociedade, inculcando
um novo respeito às crenças culturais do Ocidente. Além disso, endossa as
recomendações para a formação docente, em orquestração afinada com as
demais agências e organizações multilaterais.

O Relatório Delors foi organizado em três partes seguidas de um epílogo e do apêndice. Cada
parte apresenta uma divisão em capítulos e, no término destes, são dirigidas pistas e recomendações
– uma espécie de síntese mais diretiva acerca do que foi apresentado. A primeira parte se restringe
aos Horizontes e é subdividida em três capítulos: I – Da comunidade de base à sociedade mundial;
II – Da coesão social à participação democrática; III – Do crescimento econômico ao desenvolvimento
humano. Na segunda parte são apresentados os Princípios, subdivididos em dois capítulos: IV – Os
quatro pilares da Educação; V – A educação ao longo de toda a vida. A terceira parte, a maior delas, é
intitulada Orientações: VI – Da Educação Básica à Universidade; VII – Os professores em busca de novas
perspectivas; VIII – Opções Educativas: o papel do político; IX – Cooperação internacional: educar a
aldeia global. No epílogo são apresentados textos elaborados pelos membros da Comissão, contribuições
individuais, com a intenção de mostrar a diversidade da discussão; são onze no total e se restringem a
uma análise de cada localidade onde eles estão inseridos.

O relatório é iniciado com a preocupação de delimitar o Horizonte ou o cenário no qual se localiza


o documento, com uma análise positiva em relação ao último quarto de século, denotando, porém, que
ainda assim é evidente um vasto sentimento de “desencantamento” do mundo.

O quarto de século que agora finda ficou assinalado por notáveis descobertas
e progressos científicos, numerosos países – ditos emergentes – libertaram‑se
do subdesenvolvimento, o nível de vida continuou a progredir, a ritmos muito
diferentes, conforme os países. E, contudo, parece dominar no mundo um
sentimento de desencantamento que contrasta com as esperanças surgidas
logo a seguir à Segunda Guerra Mundial (DELORS, 1998, p. 12‑3).

A partir da ideia de “desencantamento do mundo”, o documento tenta materializar as razões que o


sustentaram, identificando um clima de incerteza que seria vigente nos dias de hoje. A nova conjuntura
mundial teria imposto novas formas de sociabilidade. O fim da Guerra Fria representou a vitória de um dos
blocos do poder – o capitalista –, contudo a sensação inquietante do pós‑queda do Muro de Berlim, em
1989, é alimentada por novos conflitos de identidades entre nacionalidades, o que, segundo o relatório,
e um desafio para o novo milênio. Esses elementos explicariam, pelo menos em parte, a sensação de
desencantamento do mundo. A queda, em 1989, do bloco soviético virou uma página da história, mas,
paradoxalmente, o fim da Guerra Fria, que marcara os decênios precedentes, deu origem a um mundo
mais complexo, inseguro e, sem dúvida, mais perigoso. Talvez a Guerra Fria encobrisse há muito tempo as
45
Unidade I

tensões latentes que já existiam entre nações, etnias e comunidades religiosas, constituindo outros tantos
focos de agitação ou causas de conflitos declarados. A entrada nesse mundo multirrisco, ou pressentido
como tal, e constituído por elementos ainda por decifrar é uma das características dos finais do século XX
que perturba e inquieta profundamente a consciência mundial.

Mudanças sociais, portanto, são necessárias na tentativa de reverter o quadro apresentado.


Entretanto, essas mudanças não poderiam mais ser pensadas em uma perspectiva meramente local e
regional, mas, sim, no plano mais geral. De alguma forma isso já tinha sido apresentado pelo Relatório
Faure, que citava a “cooperação internacional”. No entanto, novos elementos conjunturais contribuem
para certo fortalecimento dessas posições.

Hoje em dia, grande parte do destino de cada um de nós, quer o queiramos


quer não, joga‑se num cenário em escala mundial. Imposta pela abertura das
fronteiras econômicas e financeiras, impelida por teorias de livre-comércio,
reforçada pelo desmembramento do bloco soviético, instrumentalizada pelas
novas tecnologias da informação a interdependência planetária não cessa
de aumentar, no plano econômico, científico, cultural e político. Sentida
de maneira confusa por cada indivíduo, tornou‑se para os dirigentes uma
fonte de dificuldades. A conscientização generalizada desta globalização
das relações internacionais constitui, aliás, em si mesma, uma dimensão do
fenômeno. E, apesar das promessas que encerra, a emergência deste mundo
novo, difícil de decifrar e, ainda mais, de prever, cria um clima de incerteza
e, até, de apreensão, que torna ainda mais hesitante a busca de uma solução
dos problemas realmente em escala mundial (DELORS, 1998, p. 35).

A ideia de globalização das relações internacionais, bem como da abertura de fronteiras econômicas
e, sobretudo, financeiras apresentada é adensada pelo papel das novas tecnologias na atualidade, que
teriam feito a humanidade entrar em uma nova era social. A real possibilidade de uma comunicação
universal traz à tona a viabilidade de abrirmos as fronteiras, pois, ao abolir as distâncias, estaríamos
contribuindo muito para moldar a sociedade do futuro, que se diferenciaria da sociedade do passado.
Essa possibilidade de comunicação propiciada pela sociedade contemporânea imporia uma nova agenda
à democracia e à educação em escalas globais.

A sociedade contemporânea é definida no momento em que o relatório identifica as mudanças no


mundo do trabalho e as novas exigências impostas pelo imperativo dessas transformações. A sociedade
do futuro que estaria sendo moldada, segundo o Relatório Delors (1998), surgiria da crise da sociedade
do passado. Assim, o conceito de trabalho é discutido pelo relatório, identificando suas transformações
e o grande número de desempregados atualmente. São essas mudanças que nos fazem caminhar para
uma vida mais dinâmica, instável e flexível.

De fato, a natureza do trabalho mudou profundamente no decorrer dos últimos


anos. Deu‑se, em particular, um nítido aumento do setor terciário que emprega
hoje um quarto da população ativa dos países em desenvolvimento e mais de
dois terços da dos países industrializados. O aparecimento e desenvolvimento
46
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

de sociedades da informação, assim como a busca do progresso tecnológico


que constitui, de algum modo, uma tendência forte dos finais do século XX,
sublinham a dimensão cada vez mais imaterial do trabalho e acentuam o papel
desempenhado pelas aptidões intelectuais e cognitivas. Já não é possível pedir
aos sistemas educativos que formem mão de obra para empregos industriais
estáveis. Trata‑se, antes, de formar para a inovação pessoas capazes de evoluir,
de se adaptar a um mundo em rápida mudança e capazes de dominar essas
transformações (DELORS, 1998, p. 72).

Ficam evidentes as bases que fundamentam uma nova proposta educacional – o surgimento da
sociedade da informação. Esta seria então a sociedade do futuro que se delineia no presente. Não seria
mais possível pensarmos em uma formação para o emprego “estável” de tipo “industrial”; a sociedade
da informação imporia um novo tipo de trabalho, um trabalho que caminha cada vez mais para uma
dimensão da imaterialidade. Somados a isso, os problemas provocados pelo mundo multifacetado, os
conflitos culturais e étnicos em maior dimensão, segundo a Comissão, após a queda do muro, devem
ser relevados para repensar o papel da educação. A proposta anterior de educação, apresentada pelo
Relatório Faure, não daria mais conta da nova realidade, por isso a necessidade de ampliar o conceito
de Educação Permanente.

Com a meta de solucionar esses problemas ou ao menos contribuir para as soluções, o Relatório
reivindica de algum modo o surgimento de um “novo humanismo”, que a Educação deverá ajudar a
fazer nascer. Em um mundo multifacetado, multirrisco, deve‑se estimular os laços de solidariedade
a fim de substituir a “interdependência rala” (DELORS, 1998, p. 47). O “novo humanismo” seria um
componente ético essencial, “um grande espaço dedicado ao conhecimento das culturas e dos valores
espirituais das diferentes civilizações e ao respeito pelos mesmos para contrabalançar uma globalização
em que apenas se observam aspectos econômicos ou tecnicistas” (DELORS, 1998, p. 49). O maior risco é
provocar uma ruptura entre uma minoria apta a movimentar‑se nesse mundo novo em formação e uma
maioria que começa a sentir‑se um joguete dos acontecimentos, impotente para influenciar o destino
coletivo, com o risco de um recuo democrático e múltiplas revoltas (DELORS, 1998, p. 50).

A fim de possibilitar a adaptação de culturas e a modernização das mentalidades, diminuindo as


diferenças entre as minorias e a maioria marginalizada, de modo que impeça as revoltas e conflitos, o
relatório reivindica a democracia como pressuposto básico para construir uma educação capaz de dar
respostas positivas às tensões e às necessidades concretas da sociedade do século XXI. Assim, a partir do
quadro apresentado, o documento identifica os três grandes desafios do século XXI: “a) ingresso de todos
os países no campo da ciência e da tecnologia; b) adaptação das várias culturas e modernização das
mentalidades à sociedade da informação e c) viver democraticamente, ou seja, viver em comunidade”
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 66). Todos esses elementos estariam ligados pela ideia de
democracia, única capaz de impedir o conflito e a integração na nova sociedade, nos campos da ciência
e do saber e no exercício da adaptação às novas regras de convivência em comunidade – na perspectiva
positiva da globalização.

Finalmente, se busca uma relação sinérgica entre a educação e a prática


de uma democracia participativa então, além da preparação de cada
47
Unidade I

indivíduo para o exercício dos seus direitos e deveres, convém apoiar‑se na


Educação permanente para construir uma sociedade civil ativa que, entre
os indivíduos dispersos e o longínquo poder político, permita a cada um
assumir a sua parte de responsabilidade como cidadão a serviço de um
destino autenticamente solidário. A educação dos cidadãos deve realizar‑se
durante toda a vida para se tornar uma linha de força da sociedade civil e da
democracia viva (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 63).

Para o Relatório Delors, a exigência democrática, parte integral de qualquer projeto educativo,
é reforçada pela emergência espetacular da sociedade da informação, o que constituiria, segundo
o documento, um dos fenômenos mais promissores do final do século XX. Para a Comissão, o
aparecimento da sociedade da informação corresponderia a um duplo desafio: para além da
democracia que já expusemos os motivos brevemente, seria a educação a outra faceta, ou talvez
a faceta principal, desse desafio (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 66). Caberia aos
sistemas educativos a socialização dessas informações, garantindo que ocorra de maneira que
possibilite a sua proliferação, não as restringindo a um pequeno grupo de pessoas. Para isso seria
necessário um sistema educacional diferenciado. Constata‑se, também, o surgimento de uma
sociedade cognitiva diante do advento e do progresso da ciência e da tecnologia; para tanto,
seria necessário repensar o sistema educacional.

No plano dos Princípios, são apresentados os quatro pilares nos quais a nova proposta de Educação
deveria se apoiar. São quatro aprendizagens fundamentais caras à nova dimensão cognitiva da sociedade:

aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão;


aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver
juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades
humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três
precedentes. [...] De fato, nas sociedades assalariadas que se desenvolveram
ao longo do século XX, a partir do modelo industrial, a substituição do
trabalho humano pelas máquinas tornou‑o cada vez mais imaterial e
acentuou o caráter cognitivo das tarefas, mesmo na indústria, assim
como a importância dos serviços na atividade econômica. O futuro destas
economias depende, aliás, da sua capacidade de transformar o progresso
dos conhecimentos em inovações geradoras de novas empresas e de novos
empregos. Aprender a fazer não pode, pois, continuar a ter o significado
simples de preparar alguém para uma tarefa material bem-determinada,
para fazê‑lo participar no fabrico de alguma coisa. (SHIROMA; MORAES;
EVANGELISTA, 2004, p. 90‑3).

A comissão revela a dimensão da educação permanente que deve ser ampliada. É necessário que
avancemos para além do aprender a fazer e do aprender a ser do relatório anterior. As exigências da
sociedade contemporânea nos colocariam a tarefa de aprender novas competências que, segundo a
comissão, deveriam estar além da formação imediata voltada para o trabalho. Seriam competências que
precisariam ser adquiridas para que os indivíduos conseguissem se movimentar e compreender o novo
48
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

mundo e a nova realidade social que vêm se configurando desde o final do século XX e que apontam os
desafios a serem enfrentados no século XXI.

O relatório pondera essa análise sobre a desmaterialização do trabalho quando cita os casos da África
Subssariana, da América Latina e da Ásia. Ao fazer isso, descortina o fato de que nesses países só uma
pequena parte da população tem emprego e recebe salário. As competências seriam do tipo tradicional,
uma vez que a maioria da população que possui emprego ainda estaria empregada em economias de
subsistência; no entanto, isso não seria um problema, pois as novas competências são pensadas a partir
da ideia de uma “qualificação social” para a vida, e não meramente “profissional” (SHIROMA; MORAES;
EVANGELISTA, 2004, p. 96).

Assim, evidencia‑se que a desmaterialização do trabalho aparece no interior do relatório


como referência para se pensar as novas competências, pois a existência desse tipo de trabalho
desmaterializado é parte integrante da sociedade que se configura – da sociedade da informação
– que descartaria outros tipos de trabalho e imporia uma nova formação para a vida. As novas
competências seriam úteis para uma sociedade em que qualidades individuais e cognitivas são
exacerbadas e necessárias para a vida coletiva. A partir dessa constatação, a Comissão Internacional
de Educação para o Século XXI demonstra a necessidade de reformas na educação a fim de adequar
o sistema às novas demandas.

Eis que surge, como proposta do Relatório, o novo conceito de educação ao longo de toda a vida,
capaz de dar respostas aos problemas levantados anteriormente pelo documento. Uma nova proposta
educacional para uma nova sociedade bem mais dinâmica.

O novo conceito educacional surge do pressuposto de que a sociedade da informação traz consigo
o embrião de uma sociedade educativa. Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2004), o documento
recomenda que se explore o potencial educativo dos meios de comunicação, da profissão, da cultura e
do lazer, redefinindo os tempos e espaços destinados à aprendizagem.

Portanto, a educação pré‑escolar, a educação básica, a educação de jovens e adultos, a educação


secundária e técnica e a universidade devem trabalhar na perspectiva de parceria com a comunidade.

O documento apresenta a necessidade de educar a partir das competências que sejam úteis às
atividades existentes no “novo” mundo do trabalho. Assim, a educação de adultos e o ensino e a
formação técnica assumem um papel de centralidade, sobretudo para os países tidos como “em
desenvolvimento”. O relatório argumenta que os programas de alfabetização de adultos seriam mais
atraentes se destinados a este tipo de ensino. A universidade também teria um novo papel: além de
possibilitar o desenvolvimento econômico, teria a função de formar ao longo de toda a vida. São
as universidades, antes de tudo, que reúnem “um conjunto de funções tradicionais associadas ao
progresso e à transmissão do saber: pesquisa, inovação, ensino e formação, educação permanente”
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 141). As universidades deveriam estar “abertas” a
oferecer a possibilidade de aprender a distância, em vários momentos da vida, ou seja, formar novos
intelectuais, de todos os níveis – os presenciais e os formados a distância.

49
Unidade I

O relatório chama a atenção para o elemento central desse novo processo educacional: o professor,
aquele que será o responsável pela formação dos “novos” sujeitos. A preocupação com os professores é
notória no documento. Para além de medidas que indicam a necessidade de uma formação de professores,
pois eles seriam os responsáveis pelo fornecimento da chave para a sociedade da informação – ou a
nova relação professor-aluno, que colocaria o docente como “acompanhante”, que ajuda a organizar
o saber, e não mais alguém que transmita o conhecimento –, o relatório traz elementos a respeito da
organização da categoria no mundo todo.

Contudo, para que todas as orientações sejam seguidas, é necessário compreender o “papel do
político” nessa nova configuração. A Comissão se coloca favorável à ampla descentralização dos
sistemas educativos, amparada na autonomia das escolas e no apoio da comunidade a agentes locais.
Essa descentralização impõe uma diversidade de financiamentos que acaba por estabelecer a existência
de novos parceiros para a implementação dessa proposta de educação e para a retomada de antigos:
organismos internacionais, Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros.

A busca por consenso e pelo fim do conflito faz o Estado e o poder público assumir novas funções,
garantindo uma regulamentação do sistema educativo descentralizado. Segundo o relatório, o Estado
deve assumir um “certo” número de responsabilidades com a sociedade civil, já que a educação não
deve ser simplesmente controlada pelas leis do mercado (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004,
p. 174), mas não nega essa dimensão. Assim, sobretudo nos países tidos como “em desenvolvimento”,
o diálogo permanente com partidos políticos, sindicatos, empresas, associações profissionais e outros
pode assegurar estabilidade e durabilidade aos programas educativos. Cabe ao Estado e ao poder público
forjarem esse consenso.

Todavia, o Estado não poderia agir isoladamente, desconsiderando a “aldeia global”. A cooperação
internacional é a única saída para a solução dos problemas que agora se colocam no marco da
globalização; segundo o Relatório Delors, “a construção de um mundo melhor – ou menos pior –
tornou‑se mais do que nunca, tarefa de todos” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 195).
Cabe a participação de múltiplos parceiros para a consolidação desta nova tarefa – a educação
para o século XX, as organizações internacionais e intergovernamentais, governos, organizações
não governamentais, o mundo da indústria e o dos negócios, organizações profissionais e sindicais
e, evidentemente, “no domínio que nos ocupa, os atores dos sistemas educativos e do mundo
intelectual” (DELORS, 1998, p. 196). Por fim, registra‑se o papel da Comissão e da Unesco na
implementação dessa proposta educacional.

A Comissão faz votos para que a Unesco possa ser dotada, pelos
Estados-membros, dos meios necessários para levar a bom termo as
múltiplas tarefas de que está incumbida. O que supõe, em primeiro lugar,
capacidade de ampliar e reforçar futuramente todo um conjunto de ações
baseadas em sua experiência e em ideias inovadoras, a fim de estimular, em
especial através de alianças e de parcerias entre países, o desenvolvimento
dos sistemas educativos nacionais. A Comissão confia à Unesco o
compromisso de promover, também, por intermédio de seu programa, o
conceito de educação ao longo de toda a vida, proposto neste relatório,
50
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

a fim de inscrevê‑lo progressivamente na realidade educativa do mundo


contemporâneo (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 207).

O Relatório Delors, fruto do trabalho da Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI, traz à tona um novo conceito de educação capaz de dar respostas aos desafios do novo século.
Educação ao longo de toda a vida é a proposta educacional que permeia análises, orientações e princípios
apresentados pelo documento.

Logo, a proposta de educação ao longo de toda a vida seria uma proposta educacional capaz de
articular as novas exigências do mundo do trabalho, formando e conformando mão de obra equivalente
às demandas e, ao mesmo tempo, daria uma resposta às crises provocadas pela sociedade, que não
mais absorve toda a mão de obra do período anterior ao desenvolvimento do capital, flexibilizando e
reestruturando os espaços educativos e o papel da educação.

O conceito de educação ao longo da vida [...] ultrapassa a distinção


tradicional entre educação inicial e educação permanente. Aproxima‑se
de um outro conceito proposto com frequência: o da sociedade educativa,
onde tudo pode ser ocasião para aprender e desenvolver os próprios talentos
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 117).

A educação ao longo da vida seria um tipo de educação permanente que se colocaria de maneira mais
ampliada. Essa proposta explora o potencial educativo da sociedade ao percebê‑la como “aprendente”
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004), focalizando as possibilidades de novos saberes, a construção de
novos conhecimentos a partir da comunicação e troca de informações. Contudo, o corolário da nova proposta
é fundamentado na tese de que vivemos, ou viveremos, no século XXI, em uma sociedade em que teremos de
desenvolver novas competências capazes de nos conformar à nova ordem ou lógica social.

Essa nova proposta educacional terá novos aliados a fim de garantir os seus objetivos. Além do Estado, a
mídia (formadores privados), os empregadores e os trabalhadores serão a base de sustentação de um novo tipo
de educação. Apresenta‑se diferente da proposta educacional anterior, pois as ações não estão mais centradas
no Estado‑nação, tampouco as recomendações se restringem a um pedido de aumento de investimento de
verbas públicas para a educação. A educação ao longo de toda a vida nos parece ser centrada em outro tipo
de saber, um saber mais flexível e volátil, intimamente relacionado com a constatação, apresentada pelo
Relatório Delors, da existência de uma nova sociedade – a sociedade da informação.

3.2 Pós‑modernidade: o discurso do “novo” na tentativa de revitalizar o


“velho”

É salutar neste momento recuperamos o conceito de pós‑modernidade apresentado por Krishan


Kumar. Segundo o autor, existiria uma diferença conceitual entre pós‑modernidade e pós‑modernismo
que seria preciso esclarecer (KUMAR, 1997). O pós‑modernismo estaria mais ligado à perspectiva de
crítica cultural, da arte na modernidade, enquanto a noção de pós‑modernidade estaria associada a
uma crítica mais geral à sociedade moderna. Contudo, ele mesmo chama atenção para o fato de que
os termos são usados correntemente como sinônimos, e isso nos daria uma real dimensão do que é a
51
Unidade I

pós‑modernidade. Esta seria responsável por apagar as linhas divisórias entre o político, o social e o
cultural, consequentemente afastando qualquer possibilidade de hierarquia ou determinação histórica.
Tal fato, para muitos autores, é visto positivamente, pois refletiria a complexidade das relações sociais
no mundo contemporâneo, que necessitaria de formas arrojadas e ousadas para ler a realidade, em
oposição a fórmulas prontas, rígidas e fixas.

Em oposição a Jean François Lyotard e outros, como Yoneji Masuda, Krishan Kumar e Daniell Bell, que
corroboram uma visão positiva e progressista da pós‑modernidade, Fredric Jameson (1996, p. 29) afirma que a
pós‑modernidade se coloca como uma “dominante cultural”, expressando‑se pela sociedade do consumo, das
mídias, da informação e da sociedade eletrônica, não devendo ser lida como um estilo. O autor afirma ainda
que o debate sobre a pós‑modernidade não se coloca somente no plano da teoria, mostrando as consequências
práticas dessas novas formulações. A crescente importância do conhecimento, da tecnologia e da informação na
contemporaneidade imporia ritmos e novas exigências para a coletividade social. Para o autor,

A tecnologia pode servir como uma forma abreviada para designar o poder
do propriamente humano e, portanto, antinatural presente no trabalho
humano descartado acumulado em nossas máquinas – um poder alienado, o
que Sartre chama de contrafinalidade do prático‑inerte, que se volta contra
nós em formas irreconhecíveis e parece constituir‑se no horizonte distópico
massivo de nossa práxis coletiva e individual (JAMESON, 1996, p. 61).

Em outras palavras, para o autor, o desenvolvimento da técnica ou, ainda, da tecnologia se apresenta
como um elemento responsável pelo aprisionamento do humano. Produto da ação coletiva, das relações
de produção social, a tecnologia não pode ser entendida descolada e acima dessas relações; pelo
contrário, ela reafirma o poder da propriedade privada dos meios de produção sobre o trabalho humano.
A pós‑modernidade alimentar‑se‑ia dessas novas relações criadas no interior da mesma sociedade
do capital. Nesse sentido, a nova cultura pós‑moderna global, segundo Jameson (1996), é americana
e a expressão superestrutural da dominação dos Estados Unidos sobre o mundo. Os Estados Unidos
representariam a potencialidade suprema do desenvolvimento da sociedade capitalista e, portanto, a
sociedade norteadora das relações impositivas.

Para o autor, a cultura pós‑moderna está intimamente relacionada à sociedade do consumo, refletindo
a fase do capitalismo atual, o capitalismo multinacional globalizado (chefiado pelos norte‑americanos).
Seguindo as leituras de Ernesto Mandel, Jameson (1996) afirma que essa fase do capitalismo se
constitui como a mais pura forma de capital que jamais existiu: um momento de grande expansão que
atinge áreas até então fora do mercado: “a cultura”, a ”subjetividade” e o “conhecimento”. Portanto, a
pós‑modernidade seria a lógica cultural do tipo de capitalismo avançado e globalizado.

Um outro autor que partilha desse pressuposto é Perry Anderson (1995). Para ele, a grandiosidade de
Jameson está em conceber o pós‑moderno como um estágio do capitalismo, no qual a cultura se torna
coextensiva à economia. Anderson constata que a pós‑modernidade, como dominante cultural, surgiu
em sociedades capitalistas bastante ricas e com altos índices de consumidores, no “Primeiro Mundo”,
mas reconhece que seu potencial expansionista está predestinado ao avanço da indústria da imagem,
que invade todo o globo impondo novas formas e prioridades.
52
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

O sistema de produção capitalista, o capitalismo tardio, como salienta Jameson (1996), ocupou-se
de áreas até então não comerciáveis mercadologicamente. Aprisionou a subjetividade de maneira jamais
experimentada na história da humanidade, tudo isso em prol da manutenção da sua taxa de lucro a fim
de garantir a manutenção da acumulação de capitais em momento de grande miséria da humanidade.

Saiba mais

Para saber mais sobre o assunto, leia:

HARVEY, D. Condição pós‑moderna. São Paulo: Loyola, 2005.

Harvey (2005) buscará a gênese dessas mudanças e transformações denominadas por Jameson
(1996) e Anderson (1995) como um período de dominação cultural. O autor estuda a mudança no
modelo de produção capitalista e as transformações ocorridas na organização da produção fordista,
que ocasionaram o surgimento de um novo regime de produção e acumulação capitalistas denominado
acumulação flexível (HARVEY, 2005). A crise no padrão de acumulação anterior e o surgimento do
novo regime de acumulação teriam imposto mudanças na forma de organização do capital e, como
consequência, na forma de organização da sociedade. O capitalismo, para manter a sua acumulação,
teve de reorganizar-se, reestruturar‑se.

A profunda recessão de 1973, exacerbada pelo choque do petróleo,


evidentemente retirou o mundo capitalista do sufocante torpor da estagflação
(estagnação da produção de bens e alta inflação de preços) e pôs em
movimento um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista.
Em consequência, as décadas de [19]70 e [19]80 formam um conturbado
período de reestruturação produtiva econômica e de reajuste social e político
[...] Isso obrigou a entrar em um período de racionalização, reestruturação
e intensificação do controle do trabalho (caso pudessem superar e cooptar
o poder sindical). A mudança tecnológica, a automação, a busca de novas
linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão geográfica para zonas de
controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para acelerar o tempo
de giro do capital passaram ao primeiro plano das estratégias corporativas
de sobrevivência em condições gerais de deflação (HARVEY, 2005, p. 139‑40).

Saiba mais

Para um maior aprofundamento nestas questões, leia:

HARVEY, D. A transformação político‑econômica do capitalismo no


final do século XX. In: ___. Condição pós‑moderna. 8. ed. São Paulo: Loyola,
1999. p. 115‑83.

53
Unidade I

A aceleração do tempo de giro do capital está intimamente relacionada à ênfase dada à informação nesse
período de acumulação. Somente um sistema capaz de se reorganizar, reestruturando‑se com tamanha
velocidade, e de atingir toda a extensão global conseguirá sobreviver à crise do período anterior. Harvey
(2005) reafirma a tese de que o saber na pós‑modernidade se torna uma mercadoria‑chave a ser vendida
a quem puder pagar. O saber, antes visto, idealmente, como elemento livre, incapaz de ser aprisionado e,
portanto, um bem da humanidade, assume agora uma dimensão mercadológica. O saber relacionado com
a informação é o alicerce que permitirá a fluidez do capital financeiro, novo coordenador das relações de
troca do capital. O papel de gerente do sistema capitalista é assumido pelo capital financeiro no período de
crise dos anos 1970 e início dos anos 1980, tendo o capital produtivo como seu subordinado indispensável,
pois sem a extração de mais‑valia não se tem o lucro dos capitalistas.

Utilizando o conceito de mundialização, François Chesnais aproxima‑se da análise de Jameson sobre


a globalização, compreendendo a mundialização como espaço de circulação, imposição e controle do
capital financeiro sobre todo o mundo.

Observação

François Chesnais não trabalha com o conceito de globalização; ele


prefere conceituar o período contemporâneo do capital como pertencente
ao fenômeno da mundialização. Contudo, nesse estágio do trabalho,
utilizaremos os conceitos como sinônimos a fim de, em um segundo
momento, aprofundar os estudos e compreender essencialmente as
diferenças e similitudes trabalhadas pelo autor diante da “escolha”
epistemológica do conceito de mundialização.

Chesnais (2003, p. 52) explica de maneira clara e objetiva a relação entre globalização-mundialização
e acumulação com dominância financeira.

O regime financeiro é uma produção dos países capitalistas avançados, com


os Estados Unidos e o Reino Unido à frente. Ele é indissociável das derrotas
sofridas pela classe operária ocidental, bem como da restauração capitalista
na ex‑União Soviética, e nas pretensas democracias populares. Ele não é
mundializado no sentido em que englobaria o conjunto da economia
mundial numa totalidade sistêmica. Inversamente, ele é efetivamente
mundializado no sentido em que seu funcionamento exige, a ponto de ser
consubstancial a sua existência, um grau bastante elevado de liberalização e
de desregulamentação [...]. Essas medidas não devem ser impostas somente
nos países onde o novo regime de acumulação foi implantado. Elas devem
ser impostas em todos os lugares. Um processo de construção institucional
intencional, tanto de fato quanto de direito, conduzido pelos Estados
Unidos, o G‑7, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (os
elaboradores do suposto “Consenso de Washington”), formalizado na Europa
pelo Tratado de Masstricht e apoiado em seguida pela Organização Mundial
54
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

do Comércio (OMC), tornou a “adesão” dos países obrigatória e reduziu sua


margem de escolha quanto às formas de sua ‘inserção internacional’ a sua
mais simples expressão.

Para garantir a adesão obrigatória dos países ao sistema internacional, foi necessário modificar a
estrutura de funcionamento dos Estados em todo o mundo. O neoliberalismo seria a nova doutrina
que determinaria as relações entre Estado e sociedade, ou melhor, Estado e mercado, sobretudo
o internacional. Como mencionou Souza (2002), uma doutrina teórico‑política que terá na sua
materialidade um novo tipo de Estado que cumpra um papel diferenciado daquele do Estado antecessor.

A primeira experiência de um governo neoliberal se fez presente na Inglaterra na figura de Thatcher,


que assumiu o governo inglês em 1979, como vimos anteriormente. O Estado neoliberal passa a
ser um novo modelo de Estado global. A crise do sistema é ocasionada pela mudança no regime de
produção-acumulação capitalista, que abre precedentes para um período de acumulação-produção
flexível do capital. O capital financeiro é o coordenador que desregula e enfraquece os Estados‑Nações
e, em contrapartida, fortalece os organismos internacionais ou multilaterais por meio de um fenômeno
tido como globalização-mundialização, com a ajuda do Estado redimensionado, agora sob outro gestor
– o capital financeiro. Concretamente, produz desemprego e formas precarizadas de trabalho por conta
dessa necessidade de reorganização.

Saiba mais

Perry Anderson desenvolve mais as questões sobre a teoria neoliberal em:

ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P.


(Org.). Pós‑neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

A mudança no regime (modelo) é representada superestruturalmente por uma crise de paradigmas


diante das noções tradicionais de classe, trabalho e ideologia:

Linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão,


identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal,
ou sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de
explicação (EAGLETON, 1998, p. 7).

Observação

Importante diferenciar regime ou modelo de modo de produção, pois


este último se mantém capitalista, mesmo com as mudanças fruto da
reestruturação.

55
Unidade I

Longe de nos limitarmos a uma análise mecânica da história, não podemos desconsiderar que as
mudanças no regime de produção capitalista terão algum reflexo na vida social. Não ignoramos a
complexidade das relações na atualidade, entretanto não inferimos a superação do sistema vigente.
Para Harvey (2005), ainda não está claro se o que vivemos configura-se como um novo modo de
regulamentação: “Há sempre o perigo de confundir as mudanças transitórias e efêmeras com as
transformações de natureza mais fundamental da vida político‑econômica” (HARVEY, 2005, p. 19).
Contudo, não podemos negar a existência de novas mediações que ao longo do tempo propiciam uma
superestrutura com o objetivo de dar respostas a essas novas necessidades da produção capitalista.

Observação

Modo de regulamentação: parte da escola de regulamentação francesa,


uma corrente do marxismo que estuda a interiorização das imposições do
capital por meio da sociabilidade e das relações e interações sociais.

Saiba mais

Veja a entrevista de David Harvey à TV Brasil em:

ESPAÇO PÚBLICO recebe o geógrafo marxista David Harvey. Brasília: TV


Brasil, [s.d.]. Disponível em: <http://tvbrasil.ebc.com.br/espacopublico/
episodio/espaco‑publico‑recebe‑o‑geografo‑marxista‑david‑harvey>.
Acesso em: 14 set. 2016.

Assim, tanto o neoliberalismo quanto a pós‑modernidade representam construções superestruturais


capazes de garantir a manutenção do sistema de produção de capital, num contexto de
globalização-mundialização. Se por um lado o neoliberalismo propõe uma linha tênue entre a sociedade
e o mercado, transformando tudo em mercadorias, bem como flexibilizando todos os direitos trabalhistas
e, por conseguinte, todos os direitos sociais, a pós‑modernidade imporia, por meio da dimensão cultural,
uma dinâmica capaz de controlar a subjetividade humana e, portanto, reproduzir a ideia de que a
cultura seria capaz de determinar todas as relações humanas. De alguma maneira, isso mascara a face
agressiva e impositiva do capital e das relações sociais de produção. Acreditamos que Harvey encontre
uma explicação satisfatória para o processo de reorganização do capital. Segundo o autor, o capital “é
um processo, não uma coisa” (HARVEY, 2005, p. 307).

É processo de reprodução da vida social por meio da produção de


mercadoria em que todas as pessoas do mundo capitalista avançado [ou
tardio] estão profundamente implicadas. Suas regras internalizadas de
operação são concebidas de maneira a garantir que ele seja um modo
dinâmico e revolucionário de organização social que transforma incansável
e incessantemente a sociedade em que está inserido. O processo mascara

56
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos


desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo
humano, transforma espaços e acelera o ritmo da vida. Ele gera problemas
de superacumulação para os quais há apenas um número limitado de
soluções possíveis (HARVEY, 2005, p. 307).

Harvey (2005) prossegue e afirma que a trajetória do capitalismo de modo algum é previsível. A
pergunta norteadora é: “Foi lucrativo?”. Nesse sentido, a especulação sempre foi a base norteadora.
Segundo o autor, o capitalismo sempre dependeu, para o seu crescimento ou a sua simples manutenção,
de “novos produtos, novas tecnologias, novos espaços e localizações, novos processos de trabalho”
(HARVEY, 2005, p. 307). O discurso hegemônico, dominante e pós‑moderno costuma considerar a vida
cultural num plano exterior ao da lógica capitalista. Como se as pessoas tivessem a “liberdade” de
construir, a partir da sua vontade, sua própria história; assim, acabam por considerar a determinação
econômica irrelevante, mesmo na famosa “última instância”.

Precisamente porque o capitalismo é expansionista e imperialista, a vida


cultural, num número cada vez maior de áreas, vai ficando ao alcance
do nexo do dinheiro e da lógica da circulação do capital. Na verdade,
isso provocou reações que vão da raiva e da resistência à tolerância e à
apreciação (e também neste aspecto não há nada de previsível). Mas o
alargamento e aprofundamento das relações sociais capitalistas com o
tempo são sem dúvida um dos fatos mais singulares e indiscutíveis [...]
(HARVEY, 2005, p. 308).

O alargamento das relações sociais capitalistas é justamente o que é capaz de propiciar a


pós‑modernidade. Ao ignorar a fronteira entre o político, o econômico e o cultural, abandonando
qualquer tipo de determinação em última instância, a pós‑modernidade possibilita o alargamento das
relações sociais capitalistas às áreas até então não aprisionadas. A cultura, a dimensão mais subjetiva da
vida, acaba por ser aprisionada pela lógica reprodutora de mercadorias. Isso nos leva a concordar com a
tese de Sanfelice (2003), quando este afirma que:

Seriam inúmeras as relações a se estabelecer entre as concepções e práticas


vigentes na educação hoje e a ideologia neoliberal, as relações destas com a
globalização e, por sua vez, as relações de todas elas com a pós‑modernidade
– entendida já dito como um sinal cultural de um novo estágio na história
do modo de produção reinante (SANFELICE, 2003, p. 11).

Diante dessas mudanças e transformações, a sociedade precisaria adequar-se às novas demandas


impostas pela própria história, ou pelo “sinal cultural de um novo estágio na história do modo de
produção reinante” (SANFELICE, 2003, p. 11). Assim, não poderíamos negar o papel estratégico da
educação no período histórico em que vivemos como locus privilegiado para realizar tal adequação,
instrumento privilegiado para a construção do consenso ou elemento capaz de garantir a reprodução
das relações sociais de produção. Seja como instrumento capaz de garantir a dominação cultural, seja
como forma de possibilitar uma formação de mão de obra capaz de responder às novas exigências ou
57
Unidade I

como simples mercadoria a ser vendida pelos seus proprietários, a educação é o espaço privilegiado de
reprodução e produção cultural no interior da sociedade, sobretudo, da sociedade contemporânea.

4 EDUCAÇÃO AO LONGO DE TODA A VIDA: MÉSZÁROS VERSUS DELORS

A proposta de educação ao longo de toda a vida inscrita e proposta pelo Relatório Delors e
encomendada pela Unesco teria como tarefa enfrentar três grandes desafios: garantir o ingresso dos
países no campo de ciência e tecnologia; adaptar as diferentes culturas à sociedade da informação, e,
por conseguinte, ao novo tipo de trabalho; e viver democraticamente. Esses desafios foram estabelecidos
a partir de uma constatação de mudanças sociais, de uma nova configuração societal e da necessidade
de construção do novo cidadão, o cidadão do mundo, capaz de interferir nesse novo processo. Uma vez
concluído que não houve mudanças e rupturas substanciais, exemplificar essa articulação do novo faz
parte da compreensão da construção ideológica necessária para a manutenção do status quo.

A nova proposta educacional para o século XXI deveria promover a construção de um novo
humanismo. Não mais o humanismo reivindicado pela Revolução Francesa, necessariamente, mas um
humanismo de tipo novo, que dê resposta a um mundo multirrisco, globalizado, cheio de conflitos
culturais e étnicos; um humanismo que restabeleça os laços de solidariedade (DELORS, 1998, p. 47). Os
laços de solidariedade, por sua vez, estimulariam a participação dos cidadãos nas decisões políticas, o
que é possível por meio do exercício de uma democracia viva, participativa, na qual os cidadãos sejam
de fato indivíduos ativos e atuantes.

Figura 7 – Educação inclusiva no Brasil

A constatação do conflito é evidente, e a educação é o “remédio” para esse mal, a chave‑mestra para
a construção da nova sociabilidade imposta pelo desenvolvimento “natural” da ciência e da tecnologia.
A presença de uma sociedade cognitiva, que imporia novos pilares educativos (aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser), aparece como resultado da sociedade
multiforme, complexa e em rápida transformação, na qual o trabalho imaterial e o conhecimento
são as novas ferramentas a serem adquiridas pelos cidadãos. A sociedade da informação imporia uma
necessidade de maior articulação entre os povos, reconfigurando o papel do político num contexto de
globalização. Essa reconfiguração do papel do político exigiria, num mundo multirrisco, uma maior

58
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

articulação entre as forças sociais em prol do bem comum; novos parceiros do Estado capazes de
possibilitar a concretização desse suposto “bem comum”. Os novos parceiros são apresentados como
empresários, industriais e homens de negócios.

A reconfiguração do papel do político, por conseguinte, levaria a uma descentralização da educação e


dos sistemas educativos, a fim de garantir uma participação mais democrática e plural. Na contramão de
uma proposta centralizada, autoritária, não mais cabível para o mundo pós‑moderno, a descentralização
da educação propiciaria maior autonomia das escolas e maior unidade entre Estado, comunidade e
iniciativa privada. Entretanto, caberia ao Estado forjar esse consenso, aplicando e propondo as reformas
educacionais necessárias à implementação da educação para o século XXI.

O panorama que acabamos de desenhar revela elementos progressistas e emancipadores no


interior da proposta. A constatação da crise, dos riscos e das mudanças é elemento capaz de garantir
a veracidade da análise. As ideias de uma democracia viva e participativa, de um novo humanismo,
do restabelecimento de laços de solidariedade, de uma educação mais autônoma, não centralizada,
e do papel da educação nesse contexto são questões historicamente reivindicadas por educadores e
movimentos sociais progressistas em todo o mundo. Contudo, em uma estrutura não transformada, tais
conceitos e categorias passam a ter outro sentido. A lógica do mercado – maior lucro, maior acumulação
– é o que norteia os elementos aparentemente democráticos.

A construção do consenso pelo Estado, conjuntamente com os seus novos parceiros, faz‑se necessária
para a manutenção do sistema capitalista e para controlar o caos, os conflitos e a insatisfação popular.
A incapacidade do sistema capitalista de se propagandear e a necessidade de dissimulação da realidade,
da construção de uma nova atmosfera, diante do fracasso das suas promessas (de liberdade, igualdade
e fraternidade) evidenciam‑se com a imposição das teses pós‑modernas. As categorias historicamente
utilizadas e reivindicadas pelos movimentos progressistas de esquerda são assimiladas e ressignificadas
em uma outra lógica, não a emancipadora, mas a mantenedora da ordem capitalista. Segundo Gramsci
(1978), os conceitos e as categorias não são estanques, mas construídos historicamente, podendo ser
esvaziados de conteúdo ou até mesmo alterados mediante o contexto histórico conjuntural.

O debate realizado por Mészáros (2005) no seu livro A Educação para Além do Capital é central para
elucidar esse emaranhado pós‑moderno e, sobretudo, o papel estratégico da educação. Para o autor, a
única possibilidade real de uma educação humanista, democrática e progressista se daria no marco de
uma educação para além do capital. Ele argumenta que não haveria nenhuma possibilidade do novo
que prescindisse de uma mudança radical e estrutural da sociedade do capital.

Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os processos


sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados.
Consequentemente, uma reformulação significativa da educação é
inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no
qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e
historicamente importantes funções de mudança (MÉSZÁROS, 2005, p. 25).

59
Unidade I

Mészáros (2005) demonstra que os sistemas educativos estão intimamente relacionados com o
processo de reprodução do capital. Não há possibilidade de desarticulação. Por meio da educação,
segundo o autor, ocorre a “interiorização” das normas e regras sociais, de modo que faça o indivíduo
reproduzi‑los para garantir a manutenção da ordem e a reprodução do sistema na sua totalidade.
“Isso faria com que a ‘a brutalidade e a violência’ pudessem ser ‘relegadas a um segundo plano’
(embora de modo algum permanentemente abandonadas)” (MÉSZÁROS, 2005, p. 44) e utilizadas
apenas mediante períodos agudos de crise do sistema e de necessidade de garantir a repressão da
resistência ou da contestação.

Todavia, ao interiorizar as onipresentes pressões externas, eles devem adotar


as perspectivas globais da sociedade mercantilizada como inquestionáveis
limites individuais a suas aspirações pessoais. Apenas a mais consciente
das ações coletivas poderá livrá‑los desta grave e paralisante situação. [...]
Nesta perspectiva, fica bastante claro que a educação formal não é a força
ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela
é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma
das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir
tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de dentro e por
meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados.
Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo a mera
tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação formal
a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja, a
tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência
humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito
educacional, as soluções “não podem ser formais; elas devem ser essenciais”.
Em outras palavras, elas devem abarcar a totalidade das práticas educacionais
da sociedade estabelecida (MÉSZÁROS, 2005, p. 45).

Em outras palavras, não existe possibilidade de mudança real na educação em prol de alternativas
mais humanistas e democráticas na mesma estrutura institucional. A mudança real e concreta pela qual
a educação pode desempenhar um papel importante necessitaria, segundo Mészáros (2005), romper
e superar o processo de interiorização propiciado pela educação. Essa superação seria possível apenas
mediante a transformação radical da estrutura de funcionamento da sociedade capaz de produzir esse
sistema internalizante de produção de consenso. É nesse sentido que a proposta de educação para o
século XXI do Relatório Delors é sofisticada. Com o objetivo de superar uma análise simplista, identifica os
limites estabelecidos pela educação formal e, por isso, propõe uma nova educação, mais abrangente, que
não desconsidere as outras esferas de convívio social. O trabalho, o lazer, as mídias são espaços também
educativos, que podem educar e formar os cidadãos ao longo de toda a vida. Assim, a proposta de educação
para o novo milênio se apresenta como uma alternativa, pelo menos fenomenicamente, viável para uma
sociedade em constante mudança. Todavia, há apenas um detalhe substancial: a inexistência de uma
ruptura radical e estrutural na sociedade atual que possa negar a existência da sociedade de classe.

Não havendo de fato uma ruptura substancial com a ordem estabelecida, a percepção de
outras formas de educação para além da educação formal, de modo que garanta competências
60
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

não necessariamente aprendidas nos sistemas de ensino formal e, sim, na vida cotidiana, revela
um grande potencial de controle no interior dessa proposta. Se não rompe com a lógica societal
existente, essa proposta com ares progressistas acaba por subsumir toda a vida humana ao capital,
todas as esferas de reprodução e produção da vida articuladas, de maneira jamais vista antes. Isso
corrobora a tese de Jameson (1996) de que esta seria a forma mais pura de dominância do capital
jamais vista na história da humanidade.

Educação ao longo de toda a vida, uma forma de educação continuada reivindicada por Mészáros
(2005), é uma proposta de educação apenas possível em uma sociedade na qual homens e mulheres se
encontram em situação de livres associados ao sistema de produção social. Somente assim a educação
poderá extrapolar os seus limites institucionais e se tornar universal de fato. Contrariamente a isso, qualquer
proposta ou projeto de educação que se coloque neste marco evidenciam‑se falaciosos. A proposta de novos
métodos diante da mesma estrutura se apresenta no marco das políticas reformistas, que são variações
pós‑modernas das táticas do capital para manter o consenso e seu padrão de acumulação.

A recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em


nome da presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações
particulares – ou nas suas variações “pós‑modernas”, a rejeição apriorística
das chamadas grandes narratives em nome de petitsrécits idealizados
arbitrariamente – é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar,
sem uma análise adequada, a possibilidade de qualquer sistema rival, e uma
forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista (MÉSZÁROS,
2005, p. 62‑3).

Contudo, Mészáros (2005) chama atenção para a dimensão estratégica da Educação no sentido
mais amplo. Apenas a mais vasta concepção de educação poderia propiciar uma mudança substancial
no interior das relações sociais. “Esta maneira de abordar os assuntos é, de fato, tanto a esperança
como a garantia do êxito possível” (MÉSZÁROS, 2005, p. 48). De fato, o autor já nos deu algumas pistas
acerca da instrumentalização da educação em prol de uma mudança radical e estrutural. Segundo ele,
não existirá possibilidade de superação se esta não for construída de maneira coletiva. Para legitimar
tal afirmação, o autor recupera as teses de Gramsci sobre o fato de todos, homens e mulheres, serem
intelectuais e, por isso, poderem contribuir para novas sínteses e para a produção de novos pensamentos
não hegemônicos.

Para Gramsci apud Mészáros (2005):

Não há qualquer atividade humana da qual se possa excluir toda a


intervenção intelectual – o Homo faber não pode ser separado do Homo
sapiens. Também todo homem, fora do seu emprego, desenvolve alguma
atividade intelectual; ele é, por outras palavras, um “filósofo”, um artista, um
homem experiente, ele partilha a concepção do mundo, ele tem uma linha
consciente de conduta moral, e, portanto, contribui no sentido de manter
ou mudar a concepção do mundo, isto é, no sentido de encorajar novas
formas de pensamento (GRAMSCI apud MÉSZÁROS, 2005, p. 19).
61
Unidade I

Portanto,

[...] em relação quer à “manutenção”, quer à “mudança” de uma dada


concepção do mundo, a questão fundamental é a necessidade de modificar,
de uma forma duradoura, o modo de interiorização historicamente
prevalecente. Romper a lógica do capital no âmbito da educação é
absolutamente inconcebível sem isto. E, mais importante, esta relação pode
e deve ser expressa também de uma forma concreta. Pois através de uma
mudança radical no modo de interiorização agora opressivo, que sustenta
a concepção dominante do mundo, o domínio do capital pode ser e será
quebrado (MÉSZÁROS, 2005, p. 52‑3).

A fim de reclamar de fato o domínio da educação ao longo de toda a vida, Mészáros nos alerta para
a necessidade de desafiar as formas atuais de interiorização. Para tanto, a educação também exerce um
papel estratégico. Como já vimos, para o bem ou para o mal, a educação é utilizada para a manutenção
e a legitimação da ordem ou para a construção de uma nova lógica societal, e é nesse sentido que
devemos disputá‑la, com a perspectiva de instrumentalizá‑la mediante a necessidade de construção de
uma outra sociedade. “É este o modo como uma contraconsciência estrategicamente concebida, como
a alternativa necessária à interiorização dominada colonialmente, poderia realizar sua grandiosa missão
educativa” (MÉSZÁROS, 2005, p. 57‑8).

Portanto, desde o início, o papel da educação é de importância vital para


romper com a interiorização predominante das escolhas políticas circunscritas
à “legitimação constitucional democrática” do Estado capitalista que
defende seus próprios interesses. Pois também esta “contrainteriorização”
(ou “contraconsciência”) exige a antecipação de uma visão geral, concreta
e abrangente, de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções
globais de decisão da sociedade, que vai muito além da expropriação, há
muito estabelecida, do poder de tomar todas as decisões fundamentais,
assim como das suas imposições sem cerimônia aos indivíduos, por meio de
políticas, como uma forma de alienação por excelência na ordem existente. [...]
Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente
maior que a negação do capitalismo. O conceito de ir para além do capital é
inerentemente concreto (MÉSZÁROS, 2005, p. 61).

Para Mészáros (2005), não existe uma forma de superação da ordem que prescinda do trabalho.
É por meio dessa atividade concreta que trabalhadores e trabalhadoras tiram conclusões e tomam
consciência da sua posição na hierarquia social. Obviamente esse processo de tomada de consciência
possui diferentes níveis e formas de apreensão da realidade. Contudo, a tomada de consciência
individual e coletiva da possibilidade e da necessidade urgente de transformação não prescinde de
experiências concretas e cotidianas desses trabalhadores. Com a condição real da subsunção da vida ao
capital, segundo a proposta de educação para o novo milênio, as possibilidades de resistência podem
encontrar obstáculos ainda maiores. Contudo, as contradições e experiências coletivas também podem,
dialeticamente, propiciar um maior avanço na consciência.
62
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

É isto que se quer dizer com a concebida “sociedade de produtores livremente


associados”. Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a
efetiva transcendência da autoalienação do trabalho seja caracterizada
como uma tarefa inequivocamente educacional. A respeito [disso] dois
conceitos-chave devem ser postos em primeiro plano: a universalização
da educação e a universalização do trabalho como uma atividade
humana autorrealizadora. De fato, nenhuma das duas é viável sem a outra.
Tampouco é possível pensar na sua estreita inter‑relação como um problema
para um futuro muito distante. Ele surge “aqui e agora”, e é relevante para
todos os níveis e graus de desenvolvimento socioeconômico (MÉSZÁROS,
2005, p. 65).

Todavia, ressalta Mészáros (2005), a real garantia de universalização do trabalho e da educação


só será possível mediante o rompimento com o processo de interiorização, que pode propiciar uma
sociedade em que homens e mulheres se associem livremente em prol da produção e da reprodução da
vida social. Esse processo é fundamentalmente educativo, na compreensão mais ampla de educação.

Assim, a partir das contribuições de Mészáros (2005), podemos elucidar que a proposta de Educação
para o século XXI – educação ao longo de toda a vida –, é de manutenção da ordem, de construção de
consenso e de controle de toda a vida do(a) trabalhador(a) e que se utiliza de conceitos e categorias
historicamente tidas como progressistas ressignificando‑as e esvaziando‑as de conteúdo emancipador.
As contribuições de Mészáros (2005) nos auxiliam adensando a análise e enriquecer de conteúdo a
contradição interna presente na proposta educacional do século XXI. As questões levantadas pelo autor
auxiliam na desmistificação da possibilidade de mudanças significativas sem rupturas estruturais e
apontam para a emergência de propormos, coletivamente, uma educação para além do capital.

Assim, fica evidente que a proposta de educação concebida pelo Relatório Delors é de educação
pós‑moderna e se projeta como progressista, como a reinvenção do novo, mas no interior da mesma
lógica capitalista. Isso só se torna possível mediante a negação da totalidade, a apologia à fragmentação
e a recuperação do discurso acerca da subjetividade. A dimensão que nega a totalidade permite a negação
da sociedade capitalista e o surgimento de novos tipos de sociedade (da informação, do conhecimento)
mediante as mesmas estruturas sociais estabelecidas, ou seja, um novo discurso para a velha estrutura
social, evidentemente, com uma nova “roupagem”. É uma construção superestrutural necessária para a
manutenção da ordem nessa fase do sistema do capital.

A insatisfação generalizada necessita de soluções que proponham mudanças sem rupturas e


transformações radicais e estruturais. A sofisticação do discurso pós‑moderno se objetiva em propostas
políticas concretas, como a que descrevemos, sobre a educação para o século XXI, de maneira que
garanta uma possibilidade maior de controle e de construção do consenso em um mundo onde o
capital se propõe a subsumir toda a vida, na tentativa de controlar a subjetividade em todos os seus
níveis possíveis. Nessa questão, Meszáros (2005) é muito claro ao se referir aos processos coletivos de
construção de rupturas. A grande questão que nos resta é avaliar qual a real possibilidade de controle
de toda a subjetividade humana a partir das estratégias do capital.

63
Unidade I

Resumo

Nesta unidade, estudamos que a desigualdade social é um tema central


para a Sociologia, já que as bases sociais que a produzem não foram
suprimidas. A crise mais recente, iniciada em 2008 e ainda em curso, foi
precedida pela crise que se iniciou no final dos anos 1970 e provocou uma
reconfiguração dos Estados e das relações de trabalho. O neoliberalismo,
como sistema social e político, configurou-se como uma retomada dos
ideários liberais do início do século XX, em que o Estado deveria intervir
o mínimo possível na economia. Essa seria uma saída para recuperar o
“desenvolvimento” econômico, mantendo em altos níveis o acúmulo de
capital. Assim, é possível dizer que o neoliberalismo segue como o chão
social das desigualdades sociais.

Nesse quadro, o campo de estudos dos marcadores sociais das diferenças


contribuiu para a análise dos elementos e mecanismos responsáveis por
transformar as diferenças em desigualdades sociais. Categorias como
gênero, sexualidade e etnia foram hierarquizadas por meio de um padrão de
normalidade, denominado heteronormatividade. A interseccionalidade e a
historização das identidades foram retomadas, visando à compreensão desse
fenômeno social e de sua faceta contemporânea, assim como apontando
perspectivas e caminhos de releituras para esse cenário de análise crítica.
Stuart Hall e Adolph Reed auxiliara na compreensão de que o debate das
identidades não deve ser entendido de maneira apartada do debate das
classes sociais, identificando os elementos da interseccionalidade.

Assim, o tema Trabalho e sua Centralidade foi recuperado por meio


de leituras e análises de diversos autores. A discussão sobre se o trabalho
ainda assume papel importante na definição de identidades sociais ou
mesmo na produção de valor da sociedade contemporânea revelou outra
discussão sobre as classes sociais, seu antagonismo e o modelo de sociedade
existente na contemporaneidade. Assim, ampliou‑se o debate sobre os
tipos de trabalho hegemônico – imaterial, flexível, precarizado – e o tipo de
sociedade vigente – sociedade do trabalho, sociedade do conhecimento –,
dentre outras reflexões. Com o auxílio de Antunes (2009), a centralidade do
trabalho foi comprovada, assim como a existência da sociedade capitalista,
apesar das novas configurações e das metamorfoses do mundo do trabalho.
Ideias como empregabilidade, precariado e trabalhador polivalente foram
apresentadas como expressões do mundo do trabalho contemporâneo.

Por fim, as questões apresentadas encontraram na educação, sobretudo


no projeto de educação para o século XXI encomendado pela Unesco,

64
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

educação ao longo de toda a vida, a possiblidade de materialização e de real


adequação dos sujeitos sociais às metamorfoses do mundo atual. Por fim,
reiteramos as bases necessárias à construção de uma educação ao longo
de toda a vida, buscando a real emancipação dos sujeitos e a superação das
bases sociais produtoras das desigualdades.

Exercícios

Questão 1. Considere a charge de Latuff a seguir e o trecho do texto de Nana Soares.

Disponível em: www.contee.org.br. Acesso em: 31 jan. 2016.

Violência doméstica e feminicídio

– A cada 7.2 segundos uma mulher é vítima DE VIOLÊNCIA FÍSICA. (Fonte: Relógios da Violência,
do Instituto Maria da Penha)

– Em 2013, 13 mulheres morreram todos os dias vítimas de feminicídio, isto é, assassinato em
função de seu gênero. Cerca de 30% foram mortas por parceiro ou ex. (Fonte: Mapa da Violência
2015)

– Esse número representa aumento de 21% em relação à década passada. Ou seja, temos
indicadores de que as mortes de mulheres estão aumentando.

– O assassinato de mulheres negras aumentou (54%) enquanto o de brancas diminuiu (9,8%).


(Fonte: Mapa da Violência 2015)

– Somente em 2015, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 realizou 749.024


atendimentos, ou 1 atendimento  a cada 42 segundos. Desde 2005, são quase 5 milhões de
atendimentos. (Dados divulgados pelo Ligue 180)

65
Unidade I

– No estado de Roraima, metade das acusações de violência doméstica prescreve antes de
alguém ser acusado. Não foi conduzida nenhuma investigação nos 8.400 boletins de ocorrência
acumulados na capital Boa Vista. (Dados do  levantamento realizado pela Human Rights Watch
em 2017)

– 2 em cada 3 universitárias brasileiras disseram já ter sofrido algum tipo de violência (sexual,
psicológica, moral ou física) no ambiente universitário. (Fonte: Pesquisa “Violência contra a mulher
no ambiente universitário”, do Instituto Avon, de 2015)

Disponível em: https://emais.estadao.com.br/blogs/nana-soares/em-numeros-a-violencia-contra-a-mulher-brasileira/.


Acesso em: 25 jun. 2018.

Com base na leitura, analise as afirmativas a seguir:

I – Na charge, a sombra da cruz faz referência ao símbolo do sexo feminino e a flor representa um
gesto de respeito, que indica que a violência contra as mulheres vem diminuindo, ao contrário do que
dizem os dados do texto.

II – O fato de o número de mulheres negras assassinadas ter crescido e o de mulheres brancas


assassinadas ter diminuído reforça a importância da perspectiva da interseccionalidade na análise do
problema, pois as forças de opressão se somam no caso das mulheres negras.

III – A não referência da charge e do texto às classes socioeconômicas das mulheres agredidas indica
que se trata de um problema que não é social, pois se relaciona apenas com o gênero das vítimas.

É correto o que se afirma em:

A) I e III, apenas.

B) I e II, apenas.

C) II e III, apenas.

D) II, apenas.

E) I, II e III.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a charge não indica que a violência vem diminuindo. A intenção da frase é justamente
denunciar o feminicídio.
66
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

II – Afirmativa correta.

Justificativa: os dados revelam que, além do gênero, a questão da etnia também é relevante para o
problema. Mulheres negras recebem a soma de duas forças opressoras.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: o problema é social, pois envolve toda a sociedade. O texto não apresenta dados
relativos à violência contra a mulher de acordo com a classe socioeconômica, o que não indica que a
questão de classe não esteja envolvida no problema.

Questão 2. Leia o trecho de uma entrevista da professora Ludmila Costhek Abílio e analise as
afirmativas a seguir.

A uberização é um processo novo, entretanto os seus elementos centrais são uma espécie de atualização
de características constitutivas do mercado de trabalho brasileiro, por exemplo. E características centrais
à acumulação capitalista, mas que são facilmente invisibilizadas. A viração é um termo muito expressivo
e que poderia ser mais utilizado para compreendermos o mundo do trabalho brasileiro. Na década de
1990 foi utilizado pela professora Maria Filomena Gregori para analisar a trajetória de meninos de rua
e suas formas de sobrevivência, assim como pela professora Vera Telles, para definir a trajetória entre
trabalho formal e informal, atividades lícitas e ilícitas, empregos, bicos, trabalhos sem forma trabalho
que constituem a sobrevivência na periferia.

A economia digital deu visibilidade e, podemos dizer, subsumiu de forma organizada, racionalizada e
produtiva, a viração. O que isso quer dizer? Primeiramente que o trabalho sem lastro, o trabalho que se
realiza sem a forma socialmente estabelecida – que passa por regulamentações do Estado, que confere
uma identidade profissional, que oferecia uma estabilidade que tem também dimensões subjetivas
(como dizia Castells, a “possibilidade de planejar o futuro”) – agora torna-se uma fonte evidente da
exploração do trabalho que conta com alto desenvolvimento tecnológico, uma atuação predatória sobre
o mercado da mobilidade urbana no caso do Uber, e de dimensões globais.

As dualidades entre trabalho formal e informal, entre trabalho produtivo e improdutivo, e outras
linhas divisórias que acabam desembocando na separação entre os que estão dentro e os que estão
fora dos circuitos da acumulação acabam por obscurecer o papel que diversos trabalhos têm no ciclo
global do capital, sua importância, seja como fonte de trabalho produtivo não pago, seja como fonte de
eliminação de custos e riscos para o capital. O que é fundamental para a compreensão da uberização, e
até mesmo para considerá-la uma definição cabível ou relevante, é tirar um olho da inovação tecnológica
para olhar o que há de mais precário e socialmente invisível no mundo do trabalho. Em realidade,
a combinação entre precarização e desenvolvimento tecnológico está no cerne do desenvolvimento
capitalista, é isto que a uberização deixa evidente.

Entretanto, a novidade de ter uma multidão de trabalhadores “prestando serviços” para uma única
empresa, a qual terceiriza o controle e gerenciamento do trabalho ao mesmo tempo que detém a
propriedade sobre eles e extrai lucro desta relação, não é assim tão nova. Por exemplo, o exército de 1,4
67
Unidade I

milhão de revendedoras de cosméticos da empresa Natura, mulheres que combinam as revendas com
diversas outras ocupações e atividades, que gerenciam seu próprio trabalho, em um trabalho que nem
mesmo tem a forma trabalho bem definida. Para o lado de dentro da fábrica, o trabalho desta multidão
é muito bem administrado, informalidade se torna informação, em uma fábrica que praticamente tem
sua produção sob encomenda – feita por esta multidão de trabalhadoras.

Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6826-uberizacao-traz-ao-debate-a-relacao-entre-precarizacao-do-trabalho-


e-tecnologia. Acesso em: 25 jun. 2018.

Com base na leitura e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas:

I – A autora critica o que ela denomina a uberização do trabalho, pois, neste novo contexto, observa-
se a precarização das condições de trabalho, característica marcante da atual fase do capitalismo.

II – A autora defende a ideia de que a informalidade e a terceirização dão flexibilidade às relações de


trabalho, o que é positivo para o trabalhador, que não precisa apelar para a “viração”.

III – Para a autora, a uberização do trabalho favorece os detentores do capital.

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III.

B) I e III, apenas.

C) I e II, apenas.

D) II e III, apenas.

E) III, apenas.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: a autora afirma que o novo contexto é marcado pelo desenvolvimento tecnológico e
pela precarização das condições de trabalho.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a autora afirma que a informalidade e a terceirização são prejudiciais ao trabalhador,


que perde direitos.

68
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA

III – Afirmativa correta.

Justificativa: a autora aponta que a acumulação de capital se dá com novas formas de exploração
do trabalho.

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