de Sociologia
Autora: Profa. Jane Barros Almeida
Colaboradoras: Profa. Maria José da Silva Dias
Profa. Tânia Sandroni
Professora conteudista: Jane Barros Almeida
Doutora em Sociologia pela Unicamp (2014), mestre em Educação, na área de Trabalho e Educação, pela
Universidade Federal Fluminense – UFF (2007) e graduada em Ciências Sociais – Sociologia pela Unicamp (2004).
Foi professora substituta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj-FEBF). Trabalhou como pesquisadora
e gestora executiva do Projeto Outro Brasil – Laboratório de Políticas Públicas, em que atuou na área de educação
e formação popular (Uerj), e foi orientadora de aprendizagem do Curso de Especialização lato sensu de Formação
Docente em Educação Profissional na Saúde na EaD/Ensp/Fiocruz. Possui experiência com a modalidade EaD,
assim como dialoga com as áreas de saúde pública e coletiva. Atualmente é professora adjunta da Universidade
Paulista – UNIP e da Uniesp‑SP.
CDU 301
U420.45 – 20
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Carla Moro
Juliana Mendes
Sumário
Temas Emergentes de Sociologia
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8
Unidade I
1 TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA.......................................................................................................9
1.1 A persistência da desigualdade e a estratificação social: o debate acerca da
interseccionalidade e dos marcadores sociais das diferenças.......................................................9
1.2 As bases sociais da desigualdade.................................................................................................... 10
1.3 O neoliberalismo e o chão social contemporâneo da desigualdade................................ 13
1.4 Os marcadores sociais das diferenças teóricas e estruturais............................................... 14
1.5 Apontando caminhos: a interseccionalidade e a Teoria da Articulação
de Stuart Hall................................................................................................................................................. 17
2 FIM DA CENTRALIDADE DO TRABALHO: UM NOVO TIPO DE SOCIEDADE OU
NOVAS FORMAS DE PRECARIZAÇÃO?......................................................................................................... 19
2.1 O trabalho perde sua centralidade: o discurso para a fundação de uma
nova sociedade.............................................................................................................................................. 20
2.2 A gênese da Teoria da Sociedade da Informação.................................................................... 25
2.3 Trabalho e conhecimento sob a ótica da Teoria do Valor..................................................... 27
2.4 A falácia da “revolução tecnológica”............................................................................................ 27
2.5 A tentativa de hegemonizar o trabalho imaterial................................................................... 30
2.6 A centralidade do trabalho: trabalho como gênese da sociedade capitalista.............. 34
2.7 A metamorfose do trabalho: novas formas de precarização na sociedade
do capital......................................................................................................................................................... 38
2.8 A empregabilidade como solução para o desemprego estrutural..................................... 39
2.9 Quem é o precariado?......................................................................................................................... 41
3 EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI: RELATÓRIO DELORS – UMA PROPOSTA DE
EDUCAÇÃO PÓS‑MODERNA, UMA QUESTÃO PARA A SOCIOLOGIA............................................... 43
3.1 Educação para o século XXI: Projeto Delors............................................................................... 44
3.2 Pós‑modernidade: o discurso do “novo” na tentativa de revitalizar o “velho”........... 51
4 EDUCAÇÃO AO LONGO DE TODA A VIDA: MÉSZÁROS VERSUS DELORS................................... 58
Unidade II
5 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: OS RECURSOS NATURAIS DIANTE DOS DESAFIOS
CONTEMPORÂNEOS............................................................................................................................................ 70
5.1 A relação homem‑natureza.............................................................................................................. 70
5.2 Desenvolvimento sustentável: uma realidade possível?....................................................... 71
5.3 A crise hídrica: uma das facetas contemporâneas da crise ambiental........................... 72
5.4 A ação dos movimentos sociais....................................................................................................... 74
6 PERSPECTIVAS TEÓRICAS DA SOCIOLOGIA............................................................................................ 76
6.1 O pós‑estruturalismo francês e os culturalistas ingleses...................................................... 76
6.1.1 Os estudos culturais: uma nova perspectiva sobre a cultura e o sujeito.......................... 77
6.2 Stuart Hall: historicização radical do sujeito............................................................................. 79
6.3 Anthony Giddens: o teórico da terceira via................................................................................ 80
7 O PÓS‑ESTRUTURALISMO FRANCÊS: A RADICALIZAÇÃO HISTÓRICA......................................... 80
7.1 Michel Foucault: sujeito e poder.................................................................................................... 82
7.2 A Sociologia Pública de Michel Borawoy.................................................................................... 83
7.3 Florestan Fernandes: um representante da sociologia pública brasileira....................... 85
8 O MARXISMO COMO MÉTODO SOCIOLÓGICO..................................................................................... 87
APRESENTAÇÃO
Parte‑se das seguintes questões: quais são os temas recorrentes da Sociologia contemporânea e
quais sãos as teorias explicativas que dão conta da análise dos problemas atuais? A disciplina Temas
Emergentes de Sociologia abordará a permanência de problemas estruturais da sociedade contemporânea
e de novos temas que ganham relevância num contexto de mudanças sociais. Trataremos tanto das
desigualdades sociais quanto da interseccionalidade das formas de estratificação social em curso, bem
como problematizaremos as permanências e mudanças do cenário atual.
Com base nisso, a disciplina se voltará para a análise do trabalho na sociedade contemporânea.
Analisará especificamente a condição do trabalhador assalariado, bem como os limites da expansão
desse mercado e suas consequências para a vida social, especificamente os problemas inerentes ao
processo de flexibilização do trabalho.
O livro‑texto tratará a questão das lutas sociais pela preservação do meio ambiente analisadas
como um tema emergente na Sociologia contemporânea, que é vista como elemento central para a
preservação do direito à vida das próximas gerações.
Por fim nos voltamos para as análises teóricas do mundo contemporâneo. Quais são as matrizes
teóricas que explicam os problemas da sociedade atual? A partir das releituras contemporâneas do
marxismo, procuramos compreender a profundidade analítica do interacionismo simbólico e a
emergência de uma nova forma de fazer Sociologia, voltada para o público, e não só para a Academia.
Espera‑se que este livro‑texto contribua para subsidiar sua compreensão dos novos temas colocados
pela sociedade contemporânea e das novas perspectivas teóricas que procuram dar conta da explicação
dos fenômenos sociais.
O propósito aqui é fornecer ao aluno material de apoio para o acompanhamento da disciplina Temas
Emergentes de Sociologia. As questões que o permeiam são: quais são os grandes temas emergentes no
campo da Sociologia? Quais são os pressupostos teóricos que permitem a compreensão desses temas?
7
INTRODUÇÃO
A Sociologia é uma ciência que analisa as formas de interação dos indivíduos em sociedade. Por ter
um objeto de estudo vivo e em constante movimento, é uma ciência que busca compreender e analisar
o fluxo permanente das mudanças sociais.
A disciplina Temas Emergentes de Sociologia busca compreender algumas das questões centrais
colocadas pela realidade contemporânea, como a permanência e o crescimento das desigualdades sociais
em meio ao grande desenvolvimento científico e tecnológico das últimas décadas. A partir de uma
consistente análise teórica, busca‑se demonstrar como as formas de estratificação social se relacionam
com outros elementos marcadores sociais da desigualdade, como gênero e etnia.
O trabalho, visto como atividade fundamental da sociabilidade humana, é analisado a partir das
novas configurações que assume nas últimas décadas e da tão propagada revolução tecnológica com o
crescimento sem precedentes do trabalho imaterial. Parte‑se de uma análise teórica que revisita parte
considerável da produção intelectual contemporânea.
A questão ambiental não poderia estar de fora de uma obra que busca analisar os temas emergentes
na Sociologia contemporânea. Em seguida, analisamos a problemática ambiental e as formas de ativismo
dos movimentos sociais contemporâneos.
A seguir, analisamos o debate sobre a produção sociológica estadunidense voltada para o grande
público com base na compreensão dos postulados de Burawoy, que preconiza uma sociologia pública. No
Brasil, a produção teórica de Florestan Fernandes é analisada a partir dos postulados da Sociologia Pública.
8
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Unidade I
1 TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Como outro tema emergente, a nova dinâmica do mundo do trabalho, suas características atuais e
as definições acerca do conceito de precariado serão apresentadas e desenvolvidas.
Por fim, será apresentada a proposta de educação para o século XXI, já que, com base nas questões
apresentadas, a educação assumiu um papel temático importante nas pesquisas contemporâneas,
cabendo à Sociologia refletir sobre seus limites e potencialidades.
Os décimos populacionais são extremos – os 10% mais ricos e mais pobres da população – o que,
segundo o IBGE (2013), não apresentou uma alteração significativa capaz de provocar mudanças na
estrutura da sociedade brasileira, marcada pela desigualdade social.
9
Unidade I
Contudo, para além de discutir a desigualdade, temos como foco a discussão a respeito da transformação
das diferenças em desigualdade com o debate contemporâneo denominado “marcadores sociais da diferença”,
que se apresenta como um campo de produção de conhecimento e pesquisa das Ciências Sociais.
Por fim, serão apresentadas reflexões acerca do debate sobre a interseccionalidade como possiblidade de
construção de novas formas de sociabilidade e como reflexão teórica sobre a superação das desigualdades.
Após 2008, o mundo entrou em um processo de crise econômica sem precedentes. Tendo como
locus inicial uma das principais potências mundiais, os Estados Unidos, a crise do capital financeiro,
por meio da “bolha imobiliária”, fez milhões de pessoas em todo o mundo sentirem os efeitos da crise,
comparada apenas, segundo inúmeros economistas, com a Crise de 1929. Todavia, esta última provocou
uma reorganização no sistema capitalista mundial, imprimindo uma nova forma de organizar a produção
e expandindo as áreas de intervenção do Estado.
Saiba mais
AS VINHAS da ira. Diretor: John Ford. Estados Unidos, 1940. 128 minutos.
Contudo, o cenário político e social do século XXI não é o mesmo. As possiblidades de expansão do
capitalismo também se mostram em menor escala, já que é cada vez menos possível a existência de
áreas e territórios em que o capitalismo não esteja presente.
10
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
O filósofo Karl Marx, em obras como Manifesto do Partido Comunista, mas de modo mais preciso
em O Capital, deixa claro o caráter estrutural das crises capitalistas, evidenciando que, de tempos
em tempos, o capitalismo entra em crises de superprodução. Isso evidencia o caráter “anárquico” da
produção capitalista, que, ao visar ao acúmulo de capital em detrimento do “bem‑estar” de todos, acaba
por não planejar a produção a partir das necessidades humanas, mas, sim, do capital.
Saiba mais
A crise mais recente, iniciada em 2008 e ainda em curso, precedeu a anterior, que se iniciou ao
final dos anos de 1970 e provocou uma reconfiguração dos Estados e das relações de trabalho. O
neoliberalismo, como sistema social e político, configurou-se como uma retomada dos ideários liberais
do início do século XX, em que o Estado deve intervir o mínimo possível na economia. Esta seria uma
saída para recuperar o “desenvolvimento” econômico, mantendo em altos níveis o acúmulo de capital.
Saiba mais
Para garantir a adesão obrigatória dos países a esse sistema internacional, foi necessário modificar
a estrutura de funcionamento dos Estados em todo o mundo. O neoliberalismo seria a nova doutrina
que determinaria as relações entre Estado e sociedade, ou melhor, Estado e mercado, sobretudo
o internacional. Como mencionou Souza (2002), uma doutrina teórico‑política que terá na sua
materialidade um novo tipo de Estado que cumpra um papel diferenciado daquele do Estado antecessor.
A primeira experiência de um governo neoliberal aconteceu na Inglaterra, com a figura de Margareth
Thatcher, que assumiu o governo inglês em 1979. O Estado neoliberal passou a ser um novo modelo de
Estado global. Para Torres (1998, p. 114):
11
Unidade I
Saiba mais
O Estado neoliberal foi comumente denominado Estado Mínimo na literatura sociológica. Entretanto,
alguns autores, como Leher e Barreto (2008), precisarão o fato de o Estado ser mínimo para o social,
mas máximo para o capital. O argumento mobilizado é o de que, diante da crise e para a recuperação
é necessário cortar custos, diminuir os gastos do Estado e reorganizar a produção social. Por exemplo,
foram realizadas privatizações de áreas consideradas pela Constituição Brasileira de 1988 como sociais
e de responsabilidade do Estado.
Saiba mais
Para além dessa reconfiguração do Estado, outra forma de o mercado resolver a crise de superprodução
é a demissão em massa. No mundo, mas sobretudo no Brasil, os anos de 1990 de muitas demissões, o
que se convencionou chamar de reestruturação produtiva.
12
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Observação
O grande exército de reserva tem na sua composição 30% da juventude desempregada. Essa
juventude é, em sua maioria, formada por negros, mulheres homossexuais, ou seja, os mais vulneráveis.
Estes são os verdadeiros marcadores sociais da diferença.
Tais marcadores assumem, de maneira ainda mais aguda no neoliberalismo, papéis de marcadores
das desigualdades: o capitalismo transforma diferenças culturais em desigualdade social. Os
marcadores sociais da diferença, como as questões étnica, de gênero e sexual, atuam nesse estágio do
capitalismo de maneira que reforçe a hierarquia a partir do padrão branco, heterossexual e masculino
de poder. O capitalismo se alia à opressão para melhor explorar a força de trabalho e precarizar as
condições dos trabalhadores.
13
Unidade I
As diferenças culturais, que se tornam sociais, como a maneira de vestir e o tipo de cabelo, roupa e
gestos são “naturalizadas” como indícios de criminalidade. Exemplo disso é o genocídio da população
negra na periferia (NO BRASIL..., 2013):
• 77% dos jovens vítimas de homicídios são negros, dos quais mais de 90% do sexo masculino.
• Entre 2002 e 2012, o número de homicídios de jovens brancos caiu 32,3%, enquanto a quantidade
de jovens negros assassinados subiu 32,4%.
• Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre racismo no Brasil, revela que
a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de
um branco.
• Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre racismo no Brasil, revela que
a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de
um branco.
• Entre os brasileiros com idade de 15 a 29 anos, a situação piora. Em 2002, o total de jovens negros
mortos foi 71,7% maior que o de brancos. Em 2010, a discrepância subiu para 153,9%. Naquele
ano, 19.840 jovens afrodescendentes foram mortos, ante 6.503 brancos.
• Dos 16,2 milhões de pobres existentes no Brasil em 2010, 11,5 milhões eram negros.
Discutir as diferenças e as desigualdades sociais faz parte dos temas clássicos da Sociologia. Contudo,
esse tema pode ser apresentado e estudado a partir de diferentes perspectivas e visões sociais de mundo.
Diante da inegável estratificação social e da desigualdade na sociedade mundial, especificamente na
brasileira, novos conceitos e categorias de análise são apresentados. Assim, trataremos dos marcadores
sociais da diferença e da interseccionalidade.
A análise se deu a partir dos anos 1960 para além do debate soberano de classe, e outros marcadores
sociais da diferença apareceram. Os estudos culturais, advindos da nova esquerda do Reino Unido,
inauguraram esse debate. As bases teóricas e conceituais têm Stuart Hall como principal percursor, mas
dialogam com M. Foucault, E. Said e, mais recentemente, Judith Butler.
nesse campo de estudo, mas como mais um dos marcadores, o classismo, distinguindo‑se de uma leitura
estrutural de classe, específica dos estudos marxistas.
Segundo Hall (2000), a sociedade moderna, iluminista, construiu um processo de normatização, tendo
como foco o sujeito moderno, racional, bem como a identidade rígida, não flexível, capaz de impor um
padrão de comportamento, de gênero, de sexualidade, dentre outros, que o autor denomina regulação
normativa. Esta objetiva construir um mundo ordenado; contudo, essa ordenação impõe sempre um
processo de rupturas, provocando mudanças sociais. Nesse sentido, as rupturas são recorrentes, pois os
sujeitos são mais diversos do que as normas impostas e se identificam a partir do processo de identificação.
Para Hall (2000), a identificação consiste no processo de subjetivação da identidade, um processo nunca
completo, condicional, sujeito ao jogo da différance, uma categoria ambivalente. Nesse sentido, a identidade
é um conceito estratégico e posicional e está sujeita a uma historicização radical.
Saiba mais
O sexo, segundo Butler (2001), aparece como construção do ideal materializado através do tempo. Isso
ocorre por meio das normas regulatórias que trabalham para materializar o sexo no corpo, materializar as
diferenças sexuais a serviço da heteronormatividade. Como heteronormatividade entende‑se o padrão
de normatizar a heterossexualidade como regra, padrão do ser normal. Segundo Warner (1993; 1999),
que escreve nos anos 1990, esta é uma forma de imposição de padrões de poder que subjugam os que se
distanciam e ousam transgredir um suposto padrão de sexualidade. Nesse sentido, a homossexualidade
ou a transexualidade entram no campo oposto à norma regulatória.
Observação
15
Unidade I
uma construção social. Construímos socialmente os determinados papéis sociais de homens e mulheres.
Logo, o conceito de gênero é social e relacional. John Scott escreveu, em 1990, Gênero, uma Categoria
Sutil de Análise, de base pós‑estruturalista, objetivando desconstruir o conceito de gênero binário e
universal. O autor faz um esforço para apresentar esse conceito de modo analítico e não descritivo.
Como consequência, auxilia na desconstrução do gênero binário, masculino e feminino, pensando novas
possiblidades de identidade. Desfaz a dicotomia entre sexo e gênero no que se refere a desconstruir
uma leitura de que o sexo é biológico e o gênero é social. Para Scott (1990), o gênero é um marcador
de diferenças, socialmente construído, que hierarquiza as diferenças sexuais por meio das relações de
poder. O conceito de sexo estaria subsumido ao de gênero e não dicotomizado no debate natureza e
cultura. Segundo Butler (2001), será necessário historicizar o corpo e o sexo. Para tanto, a autora defende
a performance como solução. Já que identidades e gêneros não são fixos, rígidos, e sim históricos, eles
podem variar conforme a situação e as relações vividas, no caso dos transgêneros. Para Saffioti (1997),
ao encarar o gênero como categoria analítica, pode‑se perder a potência de luta contra o patriarcado
que estaria embutido na leitura de gênero como construção social.
16
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
A racialização, ou diferenças étnicas, apresentam-se como marcador social das diferenças, assim
como sexo e gênero. Stuart Hall, nos anos 1980, escreveu Race, Articulation and Societies Structured
in Dominance, em que aponta a racialização como o poder de desumanizar identificando o outro,
um processo histórico que essencializa a normalidade, o ideal de humano. Esse processo resulta na
construção do não branco, pois o branco aparece como o padrão do ideal, da beleza, da norma, levando
a posturas discriminatórias e racistas, que subjugam os que não se localizam no suposto padrão.
Em síntese, os estudos em torno dos marcadores sociais da diferença compreendem que as diferenças
são construídas socialmente, apesar de serem “naturalizadas”. Assim, como construções sociais, podem
e devem ser desconstruídas. Os marcadores sociais podem ser instrumentos essenciais para o combate
à desigualdade material e simbólica.
Segundo Moya (2010), essa linha de pesquisa e análise das diferenças compreende a desigualdade
como resultado de um processo de construção e intersecção das diferenças sociais. Essa linha se
opõe a uma suposta leitura economicista que desconsideraria total ou parcialmente as intersecções
entre gênero, raça e sexo. Moya (2010) revela que, na atualidade, o discurso da diversidade pressupõe
a desigualdade e a opressão como resultado das diferenças sociais. Para a autora, a desigualdade e
a diferença se reconfiguram no Brasil na contemporaneidade. A solução se daria pelo processo de
identificação, assimilando e incluindo os que se encontram supostamente excluídos ou marginalizados
na sociedade. Não há uma proposição de transformação das relações normativas. Eis o problema central.
Hall (1980) pertence à denominada nova esquerda no Reino Unido, responsável por fundar o campo
de pesquisa e estudos denominado Estudos Culturais. Esse campo expressa uma perspectiva analítica
capaz de se opor ao stalinismo e à visão reducionista e economista do marxismo, assim como critica
o eurocentrismo marxista. Todavia, recupera o legado marxista, no que se refere a sua capacidade de
problematização do mundo social. Para evidenciar como as estruturas econômicas se conectam com as
divisões raciais, Hall apresenta a Teoria da Articulação.
Essa teoria objetiva identificar a relação entre as perspectivas econômicas e sociais a partir das
categorias classe e raça, o que é uma importante contribuição para as leituras simplistas que ignoram a
perspectiva de classe, numa compreensão de que na suposta sociedade pós‑moderna o debate de classe
teria perdido a sua centralidade. Autores como André Gorz (2005) expressam essa leitura; contudo,
Antunes (2009) apresenta a impossibilidade dessa visão social de mundo diante da realidade concreta
e objetiva. Ainda que o desemprego tenha se tornado estrutural e os postos de trabalho formal tenham
diminuído, o trabalho e a ausência dele ainda assumem o centro da preocupação dos trabalhadores,
assim como não é possível falar em produção de capital sem extração de mais‑valia, sem trabalho
produtivo e, portanto, sem trabalhador.
No que se refere às leituras que possuem as diferenças culturais como foco, Henry Giroux (1996)
apresenta uma leitura do multiculturalismo distinta das leituras liberais e conservadoras. Segundo o
autor, o multiculturalismo liberal trabalha com a pluralidade de modo descontextualizado historicamente,
17
Unidade I
buscando uma harmonia via Estado. Já os conservadores entendem o debate sobre o multiculturalismo
e a diversidade cultural como uma força desestabilizadora, capaz de levar à fragmentação social. Esse
conceito surge nos anos 1970, com o objetivo de analisar a diversidade cultural. Para Giroux (1996),
o multiculturalismo pode ser apreendido como termo de luta. Isso demanda uma reformulação da
memória histórica, da identidade e da política de diferenças, de modo individual e social, apresentando
a diferença como potência de luta e de transformação social e cultural das relações hierarquizadas.
Assim, as ações afirmativas, como as cotas para negros, e as ações para mulheres e população LGBT,
surgem como elemento tático para desconstruir as relações monoculturais e os padrões de normatividade.
Na mesma direção de apontar para a perspectiva de superação das relações opressoras, Judith Butler
(2001), abordando o sexo, aponta que a desidentificação coletiva com as normas e os padrões regulatórios
pelos quais as diferenças sexuais se materializam se dão a partir da performance, levando a um processo
de recontextualização de novas perspectivas de vivenciar e experimentar a sexualidade e o corpo.
Nesse sentido, como solução para a desconstrução das hierarquias entre as diferenças, autores no
campo dos estudos pós‑estruturalistas e pós‑modernos apontam a interseccionalidade como perspectiva.
Identificam uma relação intrínseca entre as diferentes forças de opressão que se somam e são articuladas
para construir a hegemonia de um determinado padrão. No entanto, a compreensão de que as opressões
se interseccionam, de modo que aumentem a opressão sobre o sujeito, a exemplo de uma mulher, negra e
não heteronormativa, revela a potencialidade da interseccionalidade; uma forma de encontrar saídas para
essa condição, no que se refere a de parecer que não são lutas separadas e fragmentadas.
Saiba mais
18
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
O final do século XX foi agraciado pelo debate no campo da Sociologia do Trabalho acerca do fim ou
não do trabalho. Na década de 1980, Andre Gorz escreveu Adeus ao Proletariado: para Além do Socialismo,
afirmando a superação da sociedade do trabalho e, portanto, da classe trabalhadora. Segundo Gorz (2005),
havia uma tendência ao desaparecimento do trabalho assalariado diante da crise econômica, social e política
evidenciada pela impossibilidade do pleno emprego. Somada a isso, a crescente utilização da tecnologia na
produção levaria a um franca diminuição dos postos de trabalho, o que o autor denomina trabalho útil, e
liberaria o tempo das pessoas para algo mais produtivo e prazeroso. O fim da centralidade do trabalho, para
Gorz (2005), possibilitaria a construção de uma nova sociabilidade, não mais fundada no trabalho.
Além de Andre Gorz, o Grupo Krisis, liderado pelo alemão Robert Kurz, lançou o Manifesto contra
o Trabalho (1999). O documento apontava que a crise vivenciada mostrava os limites da sociedade
do trabalho, avaliando a crescente utilização da tecnologia robótica como elemento para reforçar o
fim da centralidade do trabalho. Essa tese foi reforçada pela leitura de Francis Fukuyama em O Fim da
História e o Úlitmo Homem (1992), que apontava o fim da luta de classes e do conflito entre projetos
distintos, após a queda do Muro de Berlim.
19
Unidade I
As teses sobre o fim do trabalho não abandonam as perspectivas de que atividades laborativas
devem ocorrer socialmente, mas identificam uma tendência ao fim do trabalho assalariado, material,
formal, indicando que o capitalismo estaria se findando e dando início a novas formas de sociabilidade
e de sociedade. A partir do debate sobre o fim do trabalho, da perda de sua centralidade e, portanto, do
surgimento de novas formas de sociabilidade, apresentaremos elementos dessa teoria e sua consequência.
Em um pequeno artigo reproduzido pela comissão e elaborado pelo Instituto Sindical Europeu, sob
o título Para uma Política da Escolha do Tempo de Trabalho, aparece o nome de André Gorz. Não nos
ateremos aqui ao conteúdo da discussão do artigo, porém não poderemos desconsiderar o nome desse
autor. André Gorz é um dos principais autores a realizar o debate sobre o fim do trabalho assalariado,
material. Uma nova etapa se deflagraria, na qual novas formas de trabalho, a tecnologia e o conhecimento
assumiriam papel central, assim como a ideia desenvolvida de trabalho imaterial. André Gorz desenvolve
essa tese juntamente com Maurizio Lazzarato, Toni Negri e Michael Hardt, autores que nos serão úteis
para compreender o conceito de trabalho imaterial.
Saiba mais
A teoria social apresentada por esses quatro autores possui elementos em comum capazes de nos
levar a uma mesma articulação de concepção de sociedade e, por conseguinte, de trabalho: a percepção
do advento das tecnologias da informação e a nova forma de trabalho, o trabalho imaterial. Assim,
percebemos afinidades e elos capazes de articulá‑los em uma mesma totalidade. Não nos ateremos aqui
20
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
aos seus pontos de diferenciação, pois acreditamos que esses elementos não seriam suficientemente
capazes de distorcer o conceito central de trabalho imaterial aqui pesquisado. Centrar‑nos‑emos,
portanto, nas similitudes.
Segundo Gorz (2005), estaríamos vivenciando uma nova forma de capitalismo fundado na economia
do conhecimento. Para Negri e Hardt (2000), seria uma economia da informação. Os dois conceitos
não possuem diferenças substanciais, ambos são pautados pelo desenvolvimento das tecnologias da
informação. Esse tipo de capitalismo se diferenciaria do capitalismo econômico, ou de tipo econômico,
predominante nas sociedades modernas. A nova forma de capitalismo, com predominância do
conhecimento, configuraria um tipo de capitalismo pós‑moderno, uma nova faceta do sistema capitalista
que estaria centrada no capital dito imaterial.
O trabalho material imediato estaria ligado à periferia do processo de produção, pois o trabalho
imaterial complexo aparece nessa nova forma de capitalismo como centro de criação de valor. Portanto,
não poderíamos mais falar sobre processo de trabalho como sinônimo do processo de produção no
interior do sistema de capitais. Isso ocorreria, para Gorz (2005), em razão do fato de o trabalho imediato
não ser mais central, mesmo sendo indispensável, ou seja, o trabalho imaterial tem o conhecimento
como a principal força produtiva, de onde se obtém a extração de mais‑valia.
Era importante mostrar que esse trabalho imaterial, naquilo que tem
de principal, não repousa sobre os conhecimentos desses prestadores
e fornecedores. Antes de mais nada, ele repousa sobre as capacidades
expressivas e cooperativas que não se podem ensinar, sobre uma vivacidade
presente na utilização dos saberes e que faz parte da cultura do cotidiano.
Essa é uma grande diferença entre os trabalhadores de manufaturas ou de
indústrias taylorizadas e aqueles do pós‑fordismo (GORZ, 2005, p. 19).
Diante da afirmação de Gorz, esse novo tipo de trabalho imporia uma nova compreensão da Lei
do Valor, ou seja, uma nova Teoria do Valor que não teria mais o trabalho imediato produtivo como
a mercadoria capaz de produzir mais valor, mais‑valia. Na economia do conhecimento, a existência
do conhecimento como principal força produtiva representaria uma crise do valor. Segundo Negri e
Hardt (2000), o trabalho imaterial traz uma nova Teoria do Valor fundada na subjetividade, no saber e
no conhecimento. Nesse sentido, caberia a nós compreender o que seria um trabalho de tipo imaterial
gênese da nova concepção de valor ou de uma nova Teoria do Valor.
21
Unidade I
22
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
O conhecimento para além do tipo tradicionalmente apreendido nas instituições escolares é inscrito
no cotidiano. Um conhecimento‑saber que pertence também à cultura desse cotidiano, competências
que adquirimos ao longo da vida. Para Negri e Hardt (2000), não apenas a inteligência, mas também o
afeto é mobilizado para servir a produção, a tal ponto de levar‑nos a uma noção de vida inseparável da
produção. Portanto, tornar‑se‑ia um capital humano. Segundo Gorz (2005, p. 20), o que as empresas
determinam hoje como capital humano é um recurso gratuito para elas, “uma ‘externalidade’ que se
produz sozinha, e que continua a se produzir, e da qual as empresas apenas captam a canalizam a
capacidade de se produzir”. O trabalhador agora seria visto como um autoempreendedor, ou um
empreendedor de si.
Contudo, apesar de essa forma constituir‑se ainda como uma nova face do mesmo sistema capitalista
na sua dimensão agora pós‑moderna, Gorz (2005) chama nossa atenção para o fato de a economia do
conhecimento, fundada no trabalho imaterial, descortinar uma contradição, um conflito no interior dessa
23
Unidade I
nova forma de capital. Mesmo com todos os esforços do capital, este não se apropriaria totalmente do
conhecimento produzido no interior do sistema de produção, não sendo possível instrumentalizá‑lo na
sua totalidade. Para o autor, o conhecimento como força produtiva principal é um produto que resulta,
em grande parte, de “uma atividade coletiva não remunerada”, da “produção de si” ou de uma “produção
de subjetividade”. Assim, o conhecimento seria em “grande parte inteligência geral”, cultura comum, saber
vivo: “Ele não tem valor de troca, o que significa que ele pode, em princípio, ser partilhado à vontade,
segundo a vontade de cada um e de todos, gratuitamente, especialmente na internet” (GORZ, 2005, p.
36). Assim, o capitalismo fundado na economia do conhecimento de tipo cognitivo traria os genes de uma
negação, de uma superação do capitalismo de tipo econômico comercial, moderno e tradicional.
Suas propriedades, em suma, se opõem ponto por ponto àquelas do capital em sentido econômico.
O capital conhecimento não pode funcionar como capital senão no quadro, ou melhor, no interior
do capitalismo, quando ele é alterado por sua associação com as formas tradicionais, financeiras e
materiais do capital. Não se trata de capital no sentido usual, nem tem como destinação primária
servir à produção de sobrevalor, nem mesmo de valor, no sentido usual. Não significa o advento de
um hipercapitalismo ou de pancapitalismo, como sua denominação poderia fazer acreditar, mas, ao
contrário, contém os germes de uma negação e de uma superação do capitalismo, do trabalho como
mercadoria e das trocas comerciais (GORZ, 2005).
Ainda segundo o autor, mesmo o conhecimento instrumentalizado pelo capital possui um elemento
“de verdade” que liberta, pois todo conhecimento, mesmo o técnico, “é não somente fonte potencial
de riqueza e de sentido, mas também de riqueza em si”, ou seja, ele seria fonte de riqueza como força
produtiva, logo força de trabalho, e é riqueza como fonte de sentido em si (GORZ, 2005, p. 55). Neste
último encontraríamos o potencial de superação e a negação do capitalismo de tipo econômico. Assim, o
capital humano se mostraria como uma peça fundamental no processo de superação. O novo trabalhador
autoempreendedor refém do capital humano pode ser o sujeito desencadeador do processo revolucionário,
que levaria a humanidade para uma sociedade do saber e da inteligência – a sociedade da cultura.
Gorz (1982, 2004, 2005), assim como Negri e Hardt (2000), compreende que o capitalismo do
saber, na economia do conhecimento, germina a semente capaz de nos levar a uma sociedade melhor,
a uma sociedade mais igualitária fundada na cultura e no conhecimento. A concepção de trabalho
imaterial, como citamos anteriormente, apresenta‑se conectada à tese da sociedade da informação.
24
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Se, na perspectiva dos autores aqui estudados, o trabalho imaterial é o arauto de um novo período da
história ou de uma nova fase da sociedade contemporânea que se diferencia do capitalismo de tipo
econômico e tradicional, qual seria o tipo de sociedade capaz de materializar e organizar esse novo
trabalho? A comissão nos aponta como resposta a sociedade da informação. Tanto Gorz (1982, 2004,
2005) quanto Negri e Hardt (2000) declaram a existência de um tipo de capitalismo pós‑moderno.
Entender o ponto de intersecção entre essas concepções de sociedade faz‑se necessário neste momento.
A partir desses elementos apresentados, remontaremos a totalidade para compreender onde se localiza
a tese da sociedade da informação, ou seja, qual a sua relação com o trabalho imaterial que impõe o
conhecimento como principal força produtiva.
Saiba mais
Yoneji Masuda (1905‑1995) foi um sociólogo japonês cuja atividade profissional e acadêmica teve
importância decisiva na definição de um modelo de sociedade tecnológica para o Japão. Foi um dos
primeiros autores a conceituar a sociedade contemporânea como a “sociedade da informação”. Foi
professor da Universidade de Aomuri. Autor de diversos livros sobre tecnologia e sociedade.
Daniel Bell (1919‑2011) foi um sociólogo estadunidense. Era professor emérito da Universidade de
Harvard. Jean‑François Lyotard (1924‑1998) foi um sociólogo francês e um dos principais pensadores
sobre a pós‑modernidade.
25
Unidade I
Saiba mais
Da década de 1960 até o princípio de 1970, vários sociólogos ilustres formularam uma interpretação
sobre a sociedade moderna, que rotularam de Teoria da Sociedade Pós‑industrial. Segundo Kumar (1997),
com a Crise do Petróleo em 1973, os debates que eram travados pelos sociólogos diziam respeito aos “limites
do crescimento” pela contenção do industrialismo, o que não significava uma reflexão sobre os seus limites de
exploração. “Tratavam do recrudescimento dos conflitos distributivos à medida que as sociedades industriais
deixavam de ser capazes de fornecer compensações a despeito do aumento de crescimento” (KUMAR, 1997,
p. 14). Para o autor, um estado de espírito de crise substituiu o otimismo da década de 1960.
Partidos de direita exploraram esse estado de espírito, pregando uma volta aos valores e costumes
“vitorianos” de esforço pessoal e laissez‑faire. Pediam o abandono do planejamento central e da
intervenção do Estado, os aspectos mais óbvios da acomodação pós‑1945 e principal premissa da Teoria
Pós‑industrial. Em outras palavras, a crise estava colocada, seria necessário compreendê‑la a partir
das condições objetivamente postas e pensar em propostas que pudessem garantir sua superação.
Para os teóricos da década de 1970 que estavam analisando e tentando compreender esse período de
transição, as sociedades industriais teriam cruzado uma linha divisória em que não seria mais possível
compreendê‑la a partir de análises clássicas sobre o capitalismo e a sociedade industrial (KUMAR, 1997).
Com a produção industrial em crise, altos índices de desemprego e inflação e, portanto, queda
da lucratividade, os limites do sistema social eram anunciados. Contudo, ao mesmo tempo que se
anunciavam os limites, ocorriam crescimento e desenvolvimento da tecnologia, fruto do capital
acumulado em longos anos de alta lucratividade do capital industrial, o que dava vazão a novos ramos
e novas formas de organizar o trabalho, elementos que chamaram a atenção de muitos teóricos.
26
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Kumar (1997) identifica três correntes da Teoria Pós‑industrial, cujos teóricos irão pensar e formular
hipóteses acerca da nova realidade social com o objetivo de encontrar explicação para as mudanças e
para os novos elementos que se apresentam no cenário mundial. A primeira compreende a sociedade
pós‑industrial como a sociedade da informação; a segunda emerge das correntes de esquerda e mantém
no seu conjunto preceitos e elementos marxistas de análise – assim, a sociedade industrial seria a
sociedade pós‑fordista; e, por último, aquela para a qual a sociedade pós‑industrial é, na verdade, uma
sociedade pós‑moderna.
A primeira e a última sustentam a tese de que estaríamos vivenciando um novo modelo de sociedade,
ainda não finalizado, que abandonou a era moderna, a centralidade do trabalho material, assalariado,
dando lugar a novas formas de sociabilidade, novas relações com o trabalho e o conhecimento. Essas
teses acabam impondo uma discussão de grande envergadura para a Sociologia e para o conjunto da
sociedade. No limite, estão dizendo que as teses marxistas, baseadas na Teoria do Valor‑trabalho – a
qual é gênese da produção de valor e, portanto, de capital – não seriam mais pertinentes ou aplicáveis
na realidade.
Nesse sentido, faz‑se necessário resgatar os princípios da Teoria do Valor marxista, com o objetivo
de estabelecer um diálogo com os teóricos e sociólogos que reivindicam uma suposta superação dessa
visão social de mundo.
A tese da centralidade do conhecimento serve como grande arauto indicativo de um novo “período”
histórico ao adentramos o século XXI. A gênese dessa primazia era o fenômeno da revolução tecnológica
na sociedade que libertara o cognitivo, o imaterial, para a produção de bens e serviços, ou seja, o
conhecimento tornou‑se a principal força produtiva na atualidade.
Assim, podemos afirmar que a centralidade do conhecimento possui alguns alicerces balizadores:
(1) o mundo do trabalho passou por transformações a partir da era da informática, da constatação
de uma “revolução tecnológica”; (2) o trabalho imediato, material, cedeu lugar a um tipo e trabalho
que necessita ainda mais do cognitivo, um trabalho de tipo imaterial; (3) seria o conhecimento, na
atualidade, a principal força produtiva, o que significa dizer que é deste sujeito, o conhecimento, que
se extrai o “sobretrabalho”, a mais‑valia. Isso alimentaria a ideia de que a libertação do conhecimento
pudesse significar uma diminuição do desemprego, das desigualdades de desenvolvimento, com a
ampliação da democracia, ou seja, a liberação da ciência e da tecnologia poderiam dar elementos a uma
nova sociedade com maior tempo destinado à educação, agora, ao longo de toda a vida.
Partem da ideia de uma “revolução tecnológica” capaz de impor novas demandas ao conjunto da
sociedade e, consequentemente, novas formas de organização do trabalho.
Sob a luz do materialismo histórico podemos concluir que uma mudança estrutural capaz de alterar
o processo pela raiz, portanto radical, deveria apresentar ao conjunto da sociedade uma modificação
das relações sociais de produção. Do ponto de vista histórico, podemos elencar exemplos de revoluções
em que a mudança, ou transformação radical das relações de produção, aparece como condição para o
processo revolucionário. São exemplos desses processos: a Revolução Francesa, a Revolução Industrial
e a Revolução Russa.
A Revolução Francesa, assim como a Revolução Industrial, faz parte do mesmo processo desencadeado
pelas revoluções burguesas. Em ambos os casos, a transformação se deu de forma estrutural. As
relações de produção foram totalmente modificadas: o feudalismo foi substituído pelo capitalismo;
o modo de produção social foi transformado, e o trabalho ficou subsumido ao capital, estabelecendo
novas relações sociais de produção, agora não mais entre o senhor e seu servo, ou entre o mestre e o
aprendiz, mas entre o capitalista, ou seja, o burguês, e o trabalhador. Da mesma forma, a Revolução
Russa apresenta uma mudança estrutural nas relações sociais de produção. Por meio de um processo
revolucionário, os trabalhadores tomam o poder, os burgueses são destituídos e abre‑se o processo para
a extinção do estado burguês em torno de uma proposta comunal, em que as relações de produção,
capital-trabalhador, são destruídas com o objetivo de construir uma relação igualitária e de fato justa
em que todos façam parte do processo de concepção e produção de valores de uso úteis à coletividade
social. Contudo, vale lembrar que esse processo foi interrompido e a Revolução Russa não atingiu seu
objetivo: a extinção do estado burguês.
Entretanto, não podemos fazer essa mesma inferência no que diz respeito à discussão acerca
da revolução tecnológica que estaríamos sofrendo na atualidade. Não podemos inferir uma real
modificação nas relações de produção na sociedade atual. O desenvolvimento da ciência e da técnica
é evidente, contudo não suficiente para uma transformação estrutural das relações sociais. Por mais
sensíveis que possamos ser aos novos elementos conjunturais, não podemos negar a existência de um
pequeno grupo de pessoas que possui os meios de produção e a existência do restante, da maioria da
população mundial, que, por não ter a posse desses meios de produção, necessitam vender a sua força
de trabalho a fim de garantir a sua sobrevivência. Segundo Antunes (2005), dois terços da humanidade
que trabalha encontram‑se nos chamados países emergentes – Ásia, Oriente, África e América Latina –,
sem contar que cerca de 1 bilhão e 200 milhões encontram‑se, segundo dados da OIT, precarizados ou
desempregados. Todos sob a égide das mesmas relações de produção capitalista.
28
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Do ponto de vista ideológico, para Romero (2005), a tecnologia seria usada para explicar o
desenvolvimento e as determinações do movimento histórico. Em uma perspectiva evolucionista, a
história da humanidade seria contada a partir do desenvolvimento da dimensão unilateral das forças
produtivas, que seriam o motor do desenvolvimento histórico. Isso vai ao encontro da tese de Marx
explicitada em O Capital, ao mencionar as relações de produção como norteadoras do processo histórico.
Marx é bastante claro ao apresentar a discussão sobre a subsunção formal do trabalho ao capital, em
que, logo após os processos revolucionários, radicais e estruturais, não teria havido de imediato uma
modificação substancial no que diz respeito à técnica e à tecnologia empregadas no processo de trabalho.
Contudo, o trabalho fora subsumido ao capital, ou seja, estava subordinado às relações de produção do
capital ao capitalista. Nesse sentido, o desenvolvimento, ou evolução da técnica ou tecnologia, somente
pode ser usado como matriz elucidativa da história no interior de teorias evolucionistas e positivistas
da sociedade.
A noção fetichista da tecnologia viria com o pressuposto de neutralidade no que concerne às relações
de produção capitalista. A tecnologia seria apresentada como elemento independente das relações
sociais, capaz de se desenvolver pelo impulso natural da história humana, no qual as forças produtivas
seriam o desenvolvimento contínuo das técnicas da produção e, portanto, desprovidas das relações
sociais determinantes. “A técnica e a ciência aplicadas à produção capitalista devem ser entendidas
como uma relação de exploração que se estabelece entre os capitalistas e os trabalhadores, como um
método específico e aprimorado de extração de mais‑valia relativa” (ROMERO, 2005, p. 17).
O que para Marx seria um método específico de extração de mais‑valia tipicamente capitalista é
lido por alguns autores como um processo diferenciado do modo de produção capitalista, um processo
de revolução social via tecnologia, o que legitimaria os arautos da “nova sociedade”, ou sociedade
29
Unidade I
da informação. Contudo, concluímos que a tese da “revolução tecnológica” ignora uma análise da
totalidade, secundarizando as relações sociais de produção em favor da noção de neutralidade das
forças produtivas. É salutar evidenciar que as forças produtivas são compostas por uma tríade: o homem
(trabalho vivo), a natureza (matéria‑prima) e a técnica (ciência, tecnologia). Basear o desenvolvimento
histórico na evolução da técnica, ou ainda da tecnologia, é lançar mão de uma perspectiva unilateral das
forças produtivas, rejeitando intencionalmente as outras duas dimensões, o que, para Romero (2005),
não é uma insuficiência teórica, mas um momento específico da luta de classes.
Esse momento específico da luta de classes ao qual se refere Romero diz respeito à necessidade da
burguesia de manter-se no poder, por isso não é insuficiência ou falta de clareza teórica.
A tese de que a tecnologia propiciará uma revolução estrutural e organizacional na sociedade revela
a intencionalidade de um discurso pouco sólido ou meramente parcial da realidade. Compreender as
mudanças na forma de organizar o trabalho ou ainda no tipo de trabalho na sociedade atual não
significa assumir que a sociedade capitalista, fundada no trabalho, tenha sido superada. A tentativa de
forjar uma mudança radical na sociedade contemporânea ou na sociedade do futuro tem o seu auge na
formulação do novo conceito de trabalho ou na nova caracterização que se faz dele hoje. A concepção
de trabalho imaterial é subsidiária da noção de uma transformação radical, da emergência de uma nova
sociedade, no caso da sociedade da informação.
Lembrete
Para os principais teóricos, como Gorz, Negri, Hardt e Lazzarato, o trabalho imaterial seria a nova
forma de trabalho hegemônica em uma sociedade fundada na economia do conhecimento ou mesmo
em um tipo de capitalismo pós‑moderno – de qualquer maneira, em uma sociedade não classicamente
capitalista. Entende‑se como sociedade classicamente capitalista aquela baseada na produção de tipo
industrial e no trabalhador formal de carteira assinada que necessita ser educado nas competências
30
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
tradicionais a fim de cumprir o seu papel de “cidadão”. O trabalho imaterial não demandaria mais
somente capacidades técnicas ou habilidades para a repetição; a subjetividade e os saberes cotidianos
seriam o novo tipo de conhecimento necessário para esse novo tipo de trabalho.
Lessa (2002b) faz um esforço na tentativa de precisar com o maior rigor possível o conceito de trabalho
imaterial. Ele vai buscar referências do texto de Lazzarato, Le ‘cycle’ de la production immatérielle, e
consegue perceber de maneira bastante clara a primazia desse conceito. Evidencia‑se, nessa leitura, que
o conceito de trabalho imaterial não se baseia no intercâmbio homem‑natureza, mas, sim, na “atividade
estética”, “subjetiva” (LESSA, 2002b, p. 14).
É salutar ressaltar o emaranhado intencional apresentado por esses autores acerca do conceito
de trabalho. Para Hardt, Negri e Lazzarato, segundo Lessa (2002b), não há uma distinção entre
trabalho, do ponto de vista ontológico, e trabalho abstrato, do ponto de vista do capital fornecedor
de valores de troca. A negação de um tipo de trabalho alienado, na atualidade, mediante o trabalho
de tipo imaterial, subjetivo e, portanto, mais libertador, não consegue atingir a ontologia do trabalho
na sua essência, ou seja, não se pode negar a existência do trabalho ignorando a sua centralidade
na sociedade (mais adiante aprofundaremos essas razões). Essa perspectiva mais libertadora, não
alienante, surge na tentativa de identificar na atualidade a superação da distinção, fruto da divisão
social do trabalho, entre manual e intelectual.
Como esse trabalho é executado de maneira coletiva e em rede de fluxo, estamos inclinados a
ampliar o conceito de trabalho para a totalidade da vida social, ignorando suas esferas (circulação,
produção, consumo).
Isso implica ignorar a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, pois tudo seria produtivo,
a vida seria produtiva e se subsumiria totalmente ao capital. Se tudo é produtivo, não teríamos como
separar, a não ser abstratamente, o trabalho manual do trabalho intelectual. “As novas formas de ver,
de sentir, demandam novas tecnologias e novas tecnologias demandam novas formas de sentir e ver”
(GORZ, 2005, p. 14). Novamente a reificação da tecnologia como sujeito determinante mostra‑se notória
no interior do debate acerca do trabalho imaterial e da centralidade do conhecimento.
31
Unidade I
A comunicação, meio pelo qual os trabalhadores devem se relacionar nessa rede de fluxo, é vista,
no interior das teorias contemporâneas aqui citadas, como uma esfera independente; esfera ou
espaço em que a subjetividade é o combustível, independentemente das relações sociais de produção
e da contradição de classe. A ideia dessa comunicação autônoma ou mesmo acima das relações de
dominação é coerente com a concepção de não distinção entre “trabalho e capital”, ou mesmo com
a tese do “trabalhador social” evidenciada por Lessa. A mistura dessas relações findaria com a linha
divisória de classe ou mesmo atenuaria essa relação, o que justificaria, por teóricos defensores da tese do
trabalho imaterial, uma crença libertária na subjetividade. Essa crença não estaria totalmente a serviço
das relações de classe dominante, pois possibilitaria uma emergência da positividade e da autonomia
do trabalhador diante do processo de trabalho, o que seria possível pela superação da contradição
intrínseca da sociedade do capital. Com a não contradição capital-trabalho dissimula‑se a noção de
poder na sociedade e dilui‑se, consequentemente, o embate entre as classes, o que, segundo Lessa
(2002b), caracterizaria uma tentativa de construção de uma identidade absoluta entre capital e trabalho.
Diante da impossibilidade de construção de uma identidade absoluta, de um pacto social entre capital
e trabalho, a própria noção de desmaterialização ou ainda imaterialização do trabalho é insustentável.
O trabalho tem por seu nódulo mais decisivo a transformação do real, não
há nenhum ato de trabalho que não transforme o real. Nem mesmo na
concepção de Hardt, Lazzarato e Negri: também para eles o trabalho (mesmo
o “imaterial”) produziria identificações trocadas enquanto valores de uso no
mercado. Ora, se o “trabalho imaterial” produziu algo, e se essa produção possui
um valor de uso e é trocada, tem necessariamente que possuir propriedades,
utilidades e, portanto, algum tipo de materialidade. Se o trabalho produz algo
que tem existência fora da subjetividade que o criou – e só desse modo pode
ser trocado entre indivíduos pela mediação do mercado – não há como se
negar que esse objeto possui uma materialidade portadora de utilidade, uma
materialidade que expressa (na acepção de nossos autores) as necessidades
de quem as produziu. Portanto, mesmo no interior do referencial de Negri,
Lazzarato e Hardt, a qualificação de imaterial que conferem ao trabalho é
extremamente questionável (LESSA, 2003, p. 14).
A inferência sobre a tese desses autores ser fantasiosa encontra eco na própria definição do
conceito de trabalho imaterial: para além de ser uma qualificação questionável ao trabalho, aponta
uma certa imprecisão na caracterização. Os autores descrevem o trabalho imaterial, mas não o definem
precisamente. Para Lessa (2002a), todo esse conceito fora construído com o objetivo de defender a tese
de que existe uma mudança no modo de produção capaz de apresentar a emergência do embrião de
um modo de produção novo, mais libertário, comunal. Seria como se os trabalhadores estivessem mais
autônomos e independentes em relação à máquina nesse novo modo de produção, contudo as relações
não se alteram, pois eles continuam a ser explorados. Nesse sentido, o conceito de trabalho imaterial só
teria uma função: confundir ainda mais a situação do trabalhador de total precarização, de gestor do
seu capital humano, revestindo‑a de certa independência e autonomia pela liberação da subjetividade,
dos saberes e do conhecimento.
De fato, Lessa (2002a) atinge o ponto neural dessa discussão. Uma nova sociedade emergiria sem
alterar, necessariamente, as relações de produção. Uma sociedade da informação, do saber, centrada na
subjetividade e, portanto, no conhecimento representaria o futuro sem alterar as relações de dominação
do passado. O trabalho imaterial como categoria‑chave para a nova sociedade mostra‑se insuficiente,
pois corrobora a tese da não transformação radical, da não revolução e, portanto, da não alteração
33
Unidade I
substancial do status quo da sociedade do capital. Uma vez evidenciado que a tese da “revolução
tecnológica” – como arauto de uma nova lógica e, consequentemente, do trabalho imaterial, elemento
concreto dessa nova realidade – não supera a pseudoconcreticidade, ou seja, a dimensão fenomênica
da realidade, é necessário denunciarmos a falsidade da tese da centralidade do conhecimento e da
emergência deste como principal força produtiva.
A Teoria do Valor em Marx localiza o trabalho assalariado (o trabalho imediato) como a principal
força produtiva. Logo, seria o trabalho vivo imediato o responsável pela produção de mais‑valor e,
portanto, de capital. Não estamos aqui nos propondo a fazer um estudo aprofundado sobre a Teoria
do Valor em Marx, pois sabemos que por sua riqueza e densidade só esse conceito já seria capaz de
gerar uma dissertação. Contudo nos dispomos, neste momento, a apresentar a estrutura geral capaz
de explicar a lógica interna dessa teoria.
Antes de iniciarmos o debate acerca da Teoria do Valor, é salutar compreender a definição de Marx
sobre trabalho, categoria e elemento central da sua análise. Para o autor, o trabalho é um processo que
ocorre entre o homem e a natureza, capaz de dotar o homem de humanidade, de sentido. O homem
entra em contato com a natureza com a intencionalidade de transformá‑la e, com isso, possibilitar
a sua própria existência. Ao entrar em contato com a natureza, ele a transforma e se transforma
simultaneamente nesse processo. Assim, ele difere do animal, que, por mais sagaz que seja, não possui
a condição de prefigurar o final do seu trabalho. A teleologia, ou clareza da finalidade, é o que difere o
pior arquiteto da melhor abelha. Este é o processo de trabalho: a objetivação do movimento, da agitação
interativa entre o homem e a natureza.
34
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Marx (1975) ratifica escritos anteriores ao afirmar que o motor do desenvolvimento da história são
as relações sociais de produção, e não as forças produtivas. Para o autor, as relações sociais estabelecidas
pelo modo de produção são as responsáveis pelo desencadeamento histórico. As relações sociais de
produção no Período Feudal organizavam as forças produtivas: era a partir das relações entre senhor e
servos que a produção era tocada e que as forças produtivas se desenvolviam. Por exemplo, a necessidade
do arado para que o servo ganhasse tempo, cultivasse a terra do senhor com maior rapidez e, assim,
sobrasse mais tempo para cuidar de sua própria plantação. Esse é apenas um simples exemplo de como
as forças produtivas, sobretudo na sua dimensão técnica, se desenvolviam em favor dos interesses das
relações sociais de produção estabelecidas e de acordo com elas. O sistema de trabalho se mostrava
muito mais organizado diante dessa configuração social. A diminuição do nomadismo e a necessidade
de cultivo da terra a partir da relação de produção estabelecida impuseram uma dinâmica nova ao
desenvolvimento das forças produtivas. A fim de possibilitar um maior desenvolvimento dessas forças
produtivas foi necessário, em um determinado momento da história, romper com as relações de produção
anteriores. Com as revoluções burguesas, as relações de produção foram transformadas. Em vez de servo
e senhores, trabalhadores e capitalistas, burgueses estabeleceram as novas relações de produção social.
Em uma concepção dialética é difícil, a não ser para fins didáticos, separar claramente em linhas
distintas as relações de produção e as forças produtivas. Entretanto, Marx faz essa inferência acerca do
motor de desenvolvimento da história a partir da discussão apresentada sobre a subsunção formal e real
do trabalho ao capital, soterrando a análise evolucionista da história que se baseava no desenvolvimento
das forças produtivas para explicar os períodos históricos, a história da humanidade.
Observação
Acompanharemos essa discussão de maneira mais sistemática mais adiante. Contudo, para Marx,
independentemente das relações de produção, ao longo da história da humanidade, o trabalho exerce
a sua centralidade a fim de dar sentido à vida humana. Nessa perspectiva, segundo a interpretação que
Antunes faz de Mészáros, o trabalho é central:
35
Unidade I
O trabalho é intrínseco ao ser social, é ontológico, pois dá sentido à existência do ser. Entretanto,
essa dimensão positiva e criadora do trabalho, ou mesmo do processo de trabalho, presente na sua
gênese, é secundarizada e subsumida quando o trabalho é apropriado pelo capital. O sistema capitalista
se utiliza do trabalho vivo como uma mercadoria, ou melhor, como a mercadoria principal do processo
de produção. Este depende centralmente dos meios de produção, pertencentes aos capitalistas. Ao
apropriar‑se dos meios de produção e, por conseguinte, das forças produtivas, inclusive o trabalho vivo,
o capital se personifica no sujeito do capitalista. A dimensão negativa do trabalho é apresentada.
Observação
Marx define como trabalho vivo aquele realizado pelo ser humano,
trabalhador ou trabalhadora, responsável pela produção de mais‑valia.
O trabalho morto, definido como oposição ao trabalho vivo, é trabalho
humano objetivado em uma máquina. A máquina, em ação-interação
conjunta com o trabalho humano, potencializa a extração da mais‑valia
relativa típica do sistema capitalista de produção.
Naturalmente nos outros modos de produção existiam, de maneira acentuada, formas de apropriação
do trabalho alheio; contudo, somente no capitalismo o trabalho se subsume ao capital, de maneira que
não há escolha para o trabalhador: ou se vende como mercadoria, ou se priva da vida. No entanto,
mesmo essa relação é representada no teatro da vida como o mais simples ato de liberdade, em que os
trabalhadores oferecem sua força de trabalho e, em troca, recebem o seu salário a fim de garantir a sua
subsistência.
Saiba mais
ISTVÁN Mészáros. Roda Viva. Memória Roda Viva. São Paulo: Fapesp, 2002.
2 minutos. Disponível em: <http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/266
/entrevistados/istvan_meszaros_2002.htm>. Acesso em: 14 set. 2016.
36
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Observação
Dito isso, se é verdade que sem trabalho assalariado não há produção de mais‑valia, também é
verdadeiro que a extração de mais‑valia, ou o processo de valorização do capital, consiste em extrair do
trabalhador o maior número de horas de trabalho não pagas possível, de maneira que garanta a reprodução
do dinheiro em capital. As horas de trabalho determinadas para a fabricação de um determinado produto,
ou mercadoria, são mensuradas a partir de uma média geral. Essa média geral de horas de trabalho
utilizado considera a totalidade de trabalhadores que executam determinada função. Justamente a partir
da quantidade de horas de trabalho se fundamenta o valor do salário do trabalhador. Nesse sentido, surge
37
Unidade I
o conceito de trabalho abstrato, que possibilita ao capitalista abstrair qualquer especificidade do trabalho
concreto, imediato, em horas mensuráveis. Não interessa ao capitalista a finalidade das mercadorias, ou
seu valor de uso: somente interessa o número de horas utilizadas no seu processo de produção, o que
determinará o seu valor de troca e, por consequência, a sua mais‑valia.
São duas as formas de extração de mais‑valia: absoluta e relativa. A primeira se refere à simples
ampliação da jornada de trabalho; a segunda, à utilização da tecnologia na produção para aumentar a
produtividade e, logo, o excedente. Não se trata aqui de detalhar esses dois tipos ou ainda a combinação
contemporânea de outras, mas de reforçar que não existe produção de capital, na sociedade capitalista,
que não parta da exploração do trabalho assalariado, material e imediato.
Segundo Antunes (2009), o mundo do trabalho viveu nos últimos anos metamorfoses que
levaram os países de capitalismo avançado a um processo franco de desindustrialização. Esta afetou
também os países ditos periféricos, levando a uma diminuição da classe trabalhadora industrial. Isso
38
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
O capitalismo contemporâneo, ainda mais complexo, não deixou de ser capitalismo, não abandonou
a exploração, a extração de mais‑valia, mas a intensificou criando novas formas de trabalho. A ampliação
dos postos no setor de serviços e o advento da tecnologia impactaram de modo significativo essa
metamorfose. “Ao invés do adeus ao proletariado, temos um amplo leque diferenciado de agrupamento
e segmentos que compõem a classe‑que‑vive‑do‑trabalho” (ANTUNES, 2009, p. 210). Conforme
apresentado na Teoria do Valor, é justamente pelo fato de o capital não poder eliminar o trabalho
vivo da produção de valores que deve aumentar a produtividade e intensificar as formas de extração
de sobretrabalho, dando vazão a essas formas distintas de trabalho precário. Para além disso, Antunes
(2009) aponta que a ideia de ciência como principal força produtiva do conhecimento esconde o fato de
que trabalho vivo e tecnologia constroem uma relação de simbiose e que não são ideias contraditórias
e antagônicas no capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, a ciência depende das relações sociais de
produção, capital versus trabalho, para se desenvolver.
Assim, o capitalismo apresenta soluções individuais e cartesianas para os problemas atuais, a exemplo
do desemprego e das formas precárias de trabalho, delegando ao indivíduo a responsabilidade pela sua
condição de empregável. Uma das saídas apresentadas é a empregabilidade.
Trata‑se de um grande “apelo” feito à educação. Esta se torna o centro do processo, porque oferece a
empregabilidade e, diante das exigências do mercado, faz-se mais que necessária, tanto para a garantia
de continuidade de emprego quanto para a conquista de um novo posto de trabalho. Isso vai ao encontro
da teoria defendida por Gaudêncio Frigotto. Para o autor (FRIGOTTO, 2001), estaríamos vivenciando um
rejuvenescimento da teoria do capital humano, talvez com um invólucro mais “social”, mas, de qualquer
forma, a educação manteria a sua função potencializando a força de trabalho.
39
Unidade I
40
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
É interessante notar que a resposta para o desemprego, que é estrutural, coloca-se no marco da
incapacidade do trabalhador de possibilitar o pleno emprego diante da sua fragilidade na formação.
Contudo, esse discurso não se sustenta mais. A educação vista como panaceia, como potencializadora
de desenvolvimento, a partir da Teoria do Capital Humano capaz de levar um país ao desenvolvimento
econômico, cai por terra ao se analisar os recentes fenômenos ocorridos da Europa e nos EUA, ou seja,
nos países centrais. A taxa de desemprego nesses países vem crescendo, e a ideia de pleno emprego há
muito foi abandonada. A educação não foi capaz de garantir a solução para os problemas estruturais;
não possibilitou a paz, tampouco o desenvolvimento econômico, evidenciando e reafirmando a tese de
Frigotto (1989) de que o determinante vira determinado.
Enquanto a educação é tida, na ótica do capital humano, como fator básico de mobilidade social, de
aumento da renda individual ou de desenvolvimento econômico, nessas análises, o “fator econômico”,
traduzido por um conjunto de indicadores socioeconômicos, é posto como o maior responsável pelo
acesso à escola, pela permanência na instituição e pelo rendimento ao longo dessa trajetória. Novamente,
o determinante torna-se determinado.
O autor nos mostra como o discurso que se baseia na ideia da educação como potencializadora do
desenvolvimento social não se sustenta, já que é determinado pelas relações de classe estabelecidas
pelas relações de produção da sociedade. Em outras palavras, as oportunidades em garantir melhores
postos de formação estão intimamente relacionadas com o poder econômico de cada um na sociedade,
o que, por sua vez, é determinado pelo seu local na produção e pelas relações sociais de produção.
O trecho citado ainda remete à noção de um modelo econômico concentrador, um Estado forte e
centralizador. Contudo, em seu livro Educação e a Crise do Capitalismo Real (2000), Frigotto fala sobre o
rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano como um resgate desta em um novo contexto histórico,
em um mundo globalizado, neoliberal e extremamente individualista, que impõe a necessidade de
“requalificação”, de “novos saberes”, e que forja novos conceitos diante da incapacidade de dar respostas
eficazes à humanidade.
Apesar da aparência fenomênica de estarmos em um mundo “novo” que se apresentaria por meio
de novas alternativas de trabalho e novas exigências de formação, ele se revela como o mesmo velho
mundo, da mesma velha ordem capitalista. As condições concretas e as relações sociais de produção não
apresentaram mudanças radicais.
As saídas para os problemas do mundo do trabalho apresentadas pela sociedade do capital têm se
mostrado ineficazes, segundo Antunes (2009). Logo, um novo tipo de trabalhador emerge nesse cenário.
Antunes (2009) iniciou um debate acerca do potencial de mobilização dos novos trabalhadores, mais
qualificados e mais precarizados, que seriam capazes de impulsionar mudanças com vistas a melhores
41
Unidade I
Para Braga (2013), o precariado brasileiro é formado por trabalhadores jovens, não qualificados ou
semiqualificados, precarizados, sub‑remunerados, sem experiência sindical prévia e com bloqueios na
sua ação coletiva mediante as relações de trabalho estabelecidas. Esse tipo de trabalhador encontra‑se
espremido entre a “ameaça da exclusão social e o incremento da exploração econômica” (BRAGA, 2013,
p. 16). Nesse sentido, ele está no coração da produção capitalista e expressa sua necessidade máxima de
superexploração; como parte integrante da classe trabalhadora e diante da condição salarial, expressa
o processo de mercantilização do trabalho em curso. Braga (2013) contraria a visão de Guy Standing,
autor do livro The Precariat: The New Dangerousclass (2011), que identifica o precariado como uma
“nova classe social”.
Saiba mais
Para Alves (2011), o precariado é a camada média do proletariado urbano, parte da classe
trabalhadora; jovens adultos altamente especializados que se inserem no mercado de trabalho de
forma precária. Esse recorte sociológico – juventude, precariedade salarial e nível educacional superior
– torna‑se crucial para apreendermos as contradições radicais da ordem sociometabólica do capital
no século XXI. O autor parte da avaliação de que, nos últimos anos, as pessoas ficaram mais tempo na
escola, e a oferta de profissionais com ensino médio e superior aumentou. Hoje, é possível constatar
por meio de dados oficiais que aumentou o número de jovens que concluíram o ensino médio; com o
crescimento das universidades e dos programas sociais de inclusão, o nível superior também apresentou
um número maior de matrículas. Essa avaliação não pode ser realizada de modo descolado da concepção
de empregabilidade e da retomada da educação como potencializadora das condições de disputa e
competição no mercado de trabalho. Segundo Alves (2011), esse quadro possibilitou uma maior oferta
de trabalhadores assalariados altamente escolarizados, a maior parte deles jovens recém‑graduados, o
que não significa que o salário aumentou em relação ao emprego anterior sem a mesma qualificação.
Essas seriam as condições concretas para explicar o potencial à luta e à organização dos setores.
42
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Braga (2006) e Alves (2011) identificam o potencial de luta, ainda que apresentem diferença sobre a
caracterização do precariado. Contudo, argumentam que o precariado é parte da classe trabalhadora e
fruto de uma nova configuração.
Ao afirmarmos que a proposta de educação para o século XXI inscrita no Relatório Delors (DELORS,
1998), educação ao longo de toda a vida, é uma proposta de educação pós‑moderna, assumimos
uma perspectiva crítica na tentativa de revelar a real dimensão política dessa proposta. Como a
pós‑modernidade é um arcabouço teórico capaz de justificar a fragmentação e a não totalidade do
mundo, ou seja, a negação da totalidade capitalista, faz‑se necessário objetivar os caminhos e percursos
dessa teoria. Buscaremos comprovar teoricamente que a sociedade capitalista não foi superada na prática.
As relações de produção do capital ainda imperam na totalidade das relações sociais, gerenciando‑as.
Observação
Saiba mais
43
Unidade I
Em meados da década de 1990, Frederico Mayor, diretor da Unesco, convocou Jacques Delors,
que, por sua vez, reuniu personalidades de todas as regiões do mundo para coordenar a Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI. Em 1996 foi publicado o resultado do trabalho,
intitulado Educação: Um Tesouro a Descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional
sobre a Educação para o Século XXI.
A Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI foi composta por mais quatorze
membros. A Unesco destaca a positividade do fato de estes membros pertencerem a horizontes
culturais e profissionais diversos, pois esse elemento ajudaria a Comissão na difícil tarefa de repensar a
educação diante da “extrema diversidade de situações que há no mundo, de concepções de educação
e suas modalidades de organização” (DELORS, 1998). Segundo Colin Power (1997), para a Comissão,
as “escolhas educativas são, no fim das contas, uma escolha de sociedade”, ou seja, o documento
não refletiria, necessariamente, um plano de reformas detalhadas, mas, sim, um campo de reflexão e
discussão sobre as escolhas que “deverão ser feitas” ao elaborar uma política educacional. O objetivo da
Comissão era, então, pensar a Educação para o futuro diante das transformações sociais, sobretudo as
desencadeadas pelo mundo do trabalho. Uma nova sociedade necessitaria de uma nova formação, seria
então necessário repensar as ideias de Educação Permanente:
Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2004, p. 65), “Essa comissão identificou tendências e
necessidades no cenário de incertezas e hesitações que caracterizam este final de século enfatizando o
papel de que a educação deveria assumir”.
Foram escolhidas seis pistas de reflexão e de trabalho que permitiram à Comissão encarar a sua
tarefa do ponto de vista das finalidades (individuais e sociais) do processo educativo: educação e
cultura; educação e cidadania; educação e coesão social; educação, trabalho e emprego; educação e
desenvolvimento; educação, investigação e ciência. As seis pistas foram completadas pelos estudos
de três temas transversais, mais diretamente relacionados com o funcionamento dos sistemas
educativos, a saber: as tecnologias da comunicação; os professores e o processo pedagógico;
financiamento e gestão.
As seis pistas escolhidas para balizar as reflexões da Comissão tinham como objetivo captar os
elementos centrais que poderiam explicar as transformações sociais do último período, possibilitando
sínteses para uma proposta educacional mais condizente com a realidade. O relatório se colocou como
44
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
de fundamental importância para as reformas educacionais em vários países. Segundo Shiroma, Moraes
e Evangelista (2004, p. 70):
O Relatório Delors foi organizado em três partes seguidas de um epílogo e do apêndice. Cada
parte apresenta uma divisão em capítulos e, no término destes, são dirigidas pistas e recomendações
– uma espécie de síntese mais diretiva acerca do que foi apresentado. A primeira parte se restringe
aos Horizontes e é subdividida em três capítulos: I – Da comunidade de base à sociedade mundial;
II – Da coesão social à participação democrática; III – Do crescimento econômico ao desenvolvimento
humano. Na segunda parte são apresentados os Princípios, subdivididos em dois capítulos: IV – Os
quatro pilares da Educação; V – A educação ao longo de toda a vida. A terceira parte, a maior delas, é
intitulada Orientações: VI – Da Educação Básica à Universidade; VII – Os professores em busca de novas
perspectivas; VIII – Opções Educativas: o papel do político; IX – Cooperação internacional: educar a
aldeia global. No epílogo são apresentados textos elaborados pelos membros da Comissão, contribuições
individuais, com a intenção de mostrar a diversidade da discussão; são onze no total e se restringem a
uma análise de cada localidade onde eles estão inseridos.
O quarto de século que agora finda ficou assinalado por notáveis descobertas
e progressos científicos, numerosos países – ditos emergentes – libertaram‑se
do subdesenvolvimento, o nível de vida continuou a progredir, a ritmos muito
diferentes, conforme os países. E, contudo, parece dominar no mundo um
sentimento de desencantamento que contrasta com as esperanças surgidas
logo a seguir à Segunda Guerra Mundial (DELORS, 1998, p. 12‑3).
tensões latentes que já existiam entre nações, etnias e comunidades religiosas, constituindo outros tantos
focos de agitação ou causas de conflitos declarados. A entrada nesse mundo multirrisco, ou pressentido
como tal, e constituído por elementos ainda por decifrar é uma das características dos finais do século XX
que perturba e inquieta profundamente a consciência mundial.
A ideia de globalização das relações internacionais, bem como da abertura de fronteiras econômicas
e, sobretudo, financeiras apresentada é adensada pelo papel das novas tecnologias na atualidade, que
teriam feito a humanidade entrar em uma nova era social. A real possibilidade de uma comunicação
universal traz à tona a viabilidade de abrirmos as fronteiras, pois, ao abolir as distâncias, estaríamos
contribuindo muito para moldar a sociedade do futuro, que se diferenciaria da sociedade do passado.
Essa possibilidade de comunicação propiciada pela sociedade contemporânea imporia uma nova agenda
à democracia e à educação em escalas globais.
Ficam evidentes as bases que fundamentam uma nova proposta educacional – o surgimento da
sociedade da informação. Esta seria então a sociedade do futuro que se delineia no presente. Não seria
mais possível pensarmos em uma formação para o emprego “estável” de tipo “industrial”; a sociedade
da informação imporia um novo tipo de trabalho, um trabalho que caminha cada vez mais para uma
dimensão da imaterialidade. Somados a isso, os problemas provocados pelo mundo multifacetado, os
conflitos culturais e étnicos em maior dimensão, segundo a Comissão, após a queda do muro, devem
ser relevados para repensar o papel da educação. A proposta anterior de educação, apresentada pelo
Relatório Faure, não daria mais conta da nova realidade, por isso a necessidade de ampliar o conceito
de Educação Permanente.
Com a meta de solucionar esses problemas ou ao menos contribuir para as soluções, o Relatório
reivindica de algum modo o surgimento de um “novo humanismo”, que a Educação deverá ajudar a
fazer nascer. Em um mundo multifacetado, multirrisco, deve‑se estimular os laços de solidariedade
a fim de substituir a “interdependência rala” (DELORS, 1998, p. 47). O “novo humanismo” seria um
componente ético essencial, “um grande espaço dedicado ao conhecimento das culturas e dos valores
espirituais das diferentes civilizações e ao respeito pelos mesmos para contrabalançar uma globalização
em que apenas se observam aspectos econômicos ou tecnicistas” (DELORS, 1998, p. 49). O maior risco é
provocar uma ruptura entre uma minoria apta a movimentar‑se nesse mundo novo em formação e uma
maioria que começa a sentir‑se um joguete dos acontecimentos, impotente para influenciar o destino
coletivo, com o risco de um recuo democrático e múltiplas revoltas (DELORS, 1998, p. 50).
Para o Relatório Delors, a exigência democrática, parte integral de qualquer projeto educativo,
é reforçada pela emergência espetacular da sociedade da informação, o que constituiria, segundo
o documento, um dos fenômenos mais promissores do final do século XX. Para a Comissão, o
aparecimento da sociedade da informação corresponderia a um duplo desafio: para além da
democracia que já expusemos os motivos brevemente, seria a educação a outra faceta, ou talvez
a faceta principal, desse desafio (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 66). Caberia aos
sistemas educativos a socialização dessas informações, garantindo que ocorra de maneira que
possibilite a sua proliferação, não as restringindo a um pequeno grupo de pessoas. Para isso seria
necessário um sistema educacional diferenciado. Constata‑se, também, o surgimento de uma
sociedade cognitiva diante do advento e do progresso da ciência e da tecnologia; para tanto,
seria necessário repensar o sistema educacional.
No plano dos Princípios, são apresentados os quatro pilares nos quais a nova proposta de Educação
deveria se apoiar. São quatro aprendizagens fundamentais caras à nova dimensão cognitiva da sociedade:
A comissão revela a dimensão da educação permanente que deve ser ampliada. É necessário que
avancemos para além do aprender a fazer e do aprender a ser do relatório anterior. As exigências da
sociedade contemporânea nos colocariam a tarefa de aprender novas competências que, segundo a
comissão, deveriam estar além da formação imediata voltada para o trabalho. Seriam competências que
precisariam ser adquiridas para que os indivíduos conseguissem se movimentar e compreender o novo
48
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
mundo e a nova realidade social que vêm se configurando desde o final do século XX e que apontam os
desafios a serem enfrentados no século XXI.
O relatório pondera essa análise sobre a desmaterialização do trabalho quando cita os casos da África
Subssariana, da América Latina e da Ásia. Ao fazer isso, descortina o fato de que nesses países só uma
pequena parte da população tem emprego e recebe salário. As competências seriam do tipo tradicional,
uma vez que a maioria da população que possui emprego ainda estaria empregada em economias de
subsistência; no entanto, isso não seria um problema, pois as novas competências são pensadas a partir
da ideia de uma “qualificação social” para a vida, e não meramente “profissional” (SHIROMA; MORAES;
EVANGELISTA, 2004, p. 96).
Eis que surge, como proposta do Relatório, o novo conceito de educação ao longo de toda a vida,
capaz de dar respostas aos problemas levantados anteriormente pelo documento. Uma nova proposta
educacional para uma nova sociedade bem mais dinâmica.
O novo conceito educacional surge do pressuposto de que a sociedade da informação traz consigo
o embrião de uma sociedade educativa. Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2004), o documento
recomenda que se explore o potencial educativo dos meios de comunicação, da profissão, da cultura e
do lazer, redefinindo os tempos e espaços destinados à aprendizagem.
O documento apresenta a necessidade de educar a partir das competências que sejam úteis às
atividades existentes no “novo” mundo do trabalho. Assim, a educação de adultos e o ensino e a
formação técnica assumem um papel de centralidade, sobretudo para os países tidos como “em
desenvolvimento”. O relatório argumenta que os programas de alfabetização de adultos seriam mais
atraentes se destinados a este tipo de ensino. A universidade também teria um novo papel: além de
possibilitar o desenvolvimento econômico, teria a função de formar ao longo de toda a vida. São
as universidades, antes de tudo, que reúnem “um conjunto de funções tradicionais associadas ao
progresso e à transmissão do saber: pesquisa, inovação, ensino e formação, educação permanente”
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 141). As universidades deveriam estar “abertas” a
oferecer a possibilidade de aprender a distância, em vários momentos da vida, ou seja, formar novos
intelectuais, de todos os níveis – os presenciais e os formados a distância.
49
Unidade I
O relatório chama a atenção para o elemento central desse novo processo educacional: o professor,
aquele que será o responsável pela formação dos “novos” sujeitos. A preocupação com os professores é
notória no documento. Para além de medidas que indicam a necessidade de uma formação de professores,
pois eles seriam os responsáveis pelo fornecimento da chave para a sociedade da informação – ou a
nova relação professor-aluno, que colocaria o docente como “acompanhante”, que ajuda a organizar
o saber, e não mais alguém que transmita o conhecimento –, o relatório traz elementos a respeito da
organização da categoria no mundo todo.
Contudo, para que todas as orientações sejam seguidas, é necessário compreender o “papel do
político” nessa nova configuração. A Comissão se coloca favorável à ampla descentralização dos
sistemas educativos, amparada na autonomia das escolas e no apoio da comunidade a agentes locais.
Essa descentralização impõe uma diversidade de financiamentos que acaba por estabelecer a existência
de novos parceiros para a implementação dessa proposta de educação e para a retomada de antigos:
organismos internacionais, Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros.
A busca por consenso e pelo fim do conflito faz o Estado e o poder público assumir novas funções,
garantindo uma regulamentação do sistema educativo descentralizado. Segundo o relatório, o Estado
deve assumir um “certo” número de responsabilidades com a sociedade civil, já que a educação não
deve ser simplesmente controlada pelas leis do mercado (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004,
p. 174), mas não nega essa dimensão. Assim, sobretudo nos países tidos como “em desenvolvimento”,
o diálogo permanente com partidos políticos, sindicatos, empresas, associações profissionais e outros
pode assegurar estabilidade e durabilidade aos programas educativos. Cabe ao Estado e ao poder público
forjarem esse consenso.
Todavia, o Estado não poderia agir isoladamente, desconsiderando a “aldeia global”. A cooperação
internacional é a única saída para a solução dos problemas que agora se colocam no marco da
globalização; segundo o Relatório Delors, “a construção de um mundo melhor – ou menos pior –
tornou‑se mais do que nunca, tarefa de todos” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004, p. 195).
Cabe a participação de múltiplos parceiros para a consolidação desta nova tarefa – a educação
para o século XX, as organizações internacionais e intergovernamentais, governos, organizações
não governamentais, o mundo da indústria e o dos negócios, organizações profissionais e sindicais
e, evidentemente, “no domínio que nos ocupa, os atores dos sistemas educativos e do mundo
intelectual” (DELORS, 1998, p. 196). Por fim, registra‑se o papel da Comissão e da Unesco na
implementação dessa proposta educacional.
A Comissão faz votos para que a Unesco possa ser dotada, pelos
Estados-membros, dos meios necessários para levar a bom termo as
múltiplas tarefas de que está incumbida. O que supõe, em primeiro lugar,
capacidade de ampliar e reforçar futuramente todo um conjunto de ações
baseadas em sua experiência e em ideias inovadoras, a fim de estimular, em
especial através de alianças e de parcerias entre países, o desenvolvimento
dos sistemas educativos nacionais. A Comissão confia à Unesco o
compromisso de promover, também, por intermédio de seu programa, o
conceito de educação ao longo de toda a vida, proposto neste relatório,
50
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
O Relatório Delors, fruto do trabalho da Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI, traz à tona um novo conceito de educação capaz de dar respostas aos desafios do novo século.
Educação ao longo de toda a vida é a proposta educacional que permeia análises, orientações e princípios
apresentados pelo documento.
Logo, a proposta de educação ao longo de toda a vida seria uma proposta educacional capaz de
articular as novas exigências do mundo do trabalho, formando e conformando mão de obra equivalente
às demandas e, ao mesmo tempo, daria uma resposta às crises provocadas pela sociedade, que não
mais absorve toda a mão de obra do período anterior ao desenvolvimento do capital, flexibilizando e
reestruturando os espaços educativos e o papel da educação.
A educação ao longo da vida seria um tipo de educação permanente que se colocaria de maneira mais
ampliada. Essa proposta explora o potencial educativo da sociedade ao percebê‑la como “aprendente”
(SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004), focalizando as possibilidades de novos saberes, a construção de
novos conhecimentos a partir da comunicação e troca de informações. Contudo, o corolário da nova proposta
é fundamentado na tese de que vivemos, ou viveremos, no século XXI, em uma sociedade em que teremos de
desenvolver novas competências capazes de nos conformar à nova ordem ou lógica social.
Essa nova proposta educacional terá novos aliados a fim de garantir os seus objetivos. Além do Estado, a
mídia (formadores privados), os empregadores e os trabalhadores serão a base de sustentação de um novo tipo
de educação. Apresenta‑se diferente da proposta educacional anterior, pois as ações não estão mais centradas
no Estado‑nação, tampouco as recomendações se restringem a um pedido de aumento de investimento de
verbas públicas para a educação. A educação ao longo de toda a vida nos parece ser centrada em outro tipo
de saber, um saber mais flexível e volátil, intimamente relacionado com a constatação, apresentada pelo
Relatório Delors, da existência de uma nova sociedade – a sociedade da informação.
pós‑modernidade. Esta seria responsável por apagar as linhas divisórias entre o político, o social e o
cultural, consequentemente afastando qualquer possibilidade de hierarquia ou determinação histórica.
Tal fato, para muitos autores, é visto positivamente, pois refletiria a complexidade das relações sociais
no mundo contemporâneo, que necessitaria de formas arrojadas e ousadas para ler a realidade, em
oposição a fórmulas prontas, rígidas e fixas.
Em oposição a Jean François Lyotard e outros, como Yoneji Masuda, Krishan Kumar e Daniell Bell, que
corroboram uma visão positiva e progressista da pós‑modernidade, Fredric Jameson (1996, p. 29) afirma que a
pós‑modernidade se coloca como uma “dominante cultural”, expressando‑se pela sociedade do consumo, das
mídias, da informação e da sociedade eletrônica, não devendo ser lida como um estilo. O autor afirma ainda
que o debate sobre a pós‑modernidade não se coloca somente no plano da teoria, mostrando as consequências
práticas dessas novas formulações. A crescente importância do conhecimento, da tecnologia e da informação na
contemporaneidade imporia ritmos e novas exigências para a coletividade social. Para o autor,
A tecnologia pode servir como uma forma abreviada para designar o poder
do propriamente humano e, portanto, antinatural presente no trabalho
humano descartado acumulado em nossas máquinas – um poder alienado, o
que Sartre chama de contrafinalidade do prático‑inerte, que se volta contra
nós em formas irreconhecíveis e parece constituir‑se no horizonte distópico
massivo de nossa práxis coletiva e individual (JAMESON, 1996, p. 61).
Em outras palavras, para o autor, o desenvolvimento da técnica ou, ainda, da tecnologia se apresenta
como um elemento responsável pelo aprisionamento do humano. Produto da ação coletiva, das relações
de produção social, a tecnologia não pode ser entendida descolada e acima dessas relações; pelo
contrário, ela reafirma o poder da propriedade privada dos meios de produção sobre o trabalho humano.
A pós‑modernidade alimentar‑se‑ia dessas novas relações criadas no interior da mesma sociedade
do capital. Nesse sentido, a nova cultura pós‑moderna global, segundo Jameson (1996), é americana
e a expressão superestrutural da dominação dos Estados Unidos sobre o mundo. Os Estados Unidos
representariam a potencialidade suprema do desenvolvimento da sociedade capitalista e, portanto, a
sociedade norteadora das relações impositivas.
Para o autor, a cultura pós‑moderna está intimamente relacionada à sociedade do consumo, refletindo
a fase do capitalismo atual, o capitalismo multinacional globalizado (chefiado pelos norte‑americanos).
Seguindo as leituras de Ernesto Mandel, Jameson (1996) afirma que essa fase do capitalismo se
constitui como a mais pura forma de capital que jamais existiu: um momento de grande expansão que
atinge áreas até então fora do mercado: “a cultura”, a ”subjetividade” e o “conhecimento”. Portanto, a
pós‑modernidade seria a lógica cultural do tipo de capitalismo avançado e globalizado.
Um outro autor que partilha desse pressuposto é Perry Anderson (1995). Para ele, a grandiosidade de
Jameson está em conceber o pós‑moderno como um estágio do capitalismo, no qual a cultura se torna
coextensiva à economia. Anderson constata que a pós‑modernidade, como dominante cultural, surgiu
em sociedades capitalistas bastante ricas e com altos índices de consumidores, no “Primeiro Mundo”,
mas reconhece que seu potencial expansionista está predestinado ao avanço da indústria da imagem,
que invade todo o globo impondo novas formas e prioridades.
52
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
O sistema de produção capitalista, o capitalismo tardio, como salienta Jameson (1996), ocupou-se
de áreas até então não comerciáveis mercadologicamente. Aprisionou a subjetividade de maneira jamais
experimentada na história da humanidade, tudo isso em prol da manutenção da sua taxa de lucro a fim
de garantir a manutenção da acumulação de capitais em momento de grande miséria da humanidade.
Saiba mais
Harvey (2005) buscará a gênese dessas mudanças e transformações denominadas por Jameson
(1996) e Anderson (1995) como um período de dominação cultural. O autor estuda a mudança no
modelo de produção capitalista e as transformações ocorridas na organização da produção fordista,
que ocasionaram o surgimento de um novo regime de produção e acumulação capitalistas denominado
acumulação flexível (HARVEY, 2005). A crise no padrão de acumulação anterior e o surgimento do
novo regime de acumulação teriam imposto mudanças na forma de organização do capital e, como
consequência, na forma de organização da sociedade. O capitalismo, para manter a sua acumulação,
teve de reorganizar-se, reestruturar‑se.
Saiba mais
53
Unidade I
A aceleração do tempo de giro do capital está intimamente relacionada à ênfase dada à informação nesse
período de acumulação. Somente um sistema capaz de se reorganizar, reestruturando‑se com tamanha
velocidade, e de atingir toda a extensão global conseguirá sobreviver à crise do período anterior. Harvey
(2005) reafirma a tese de que o saber na pós‑modernidade se torna uma mercadoria‑chave a ser vendida
a quem puder pagar. O saber, antes visto, idealmente, como elemento livre, incapaz de ser aprisionado e,
portanto, um bem da humanidade, assume agora uma dimensão mercadológica. O saber relacionado com
a informação é o alicerce que permitirá a fluidez do capital financeiro, novo coordenador das relações de
troca do capital. O papel de gerente do sistema capitalista é assumido pelo capital financeiro no período de
crise dos anos 1970 e início dos anos 1980, tendo o capital produtivo como seu subordinado indispensável,
pois sem a extração de mais‑valia não se tem o lucro dos capitalistas.
Observação
Chesnais (2003, p. 52) explica de maneira clara e objetiva a relação entre globalização-mundialização
e acumulação com dominância financeira.
Para garantir a adesão obrigatória dos países ao sistema internacional, foi necessário modificar a
estrutura de funcionamento dos Estados em todo o mundo. O neoliberalismo seria a nova doutrina
que determinaria as relações entre Estado e sociedade, ou melhor, Estado e mercado, sobretudo
o internacional. Como mencionou Souza (2002), uma doutrina teórico‑política que terá na sua
materialidade um novo tipo de Estado que cumpra um papel diferenciado daquele do Estado antecessor.
Saiba mais
Observação
55
Unidade I
Longe de nos limitarmos a uma análise mecânica da história, não podemos desconsiderar que as
mudanças no regime de produção capitalista terão algum reflexo na vida social. Não ignoramos a
complexidade das relações na atualidade, entretanto não inferimos a superação do sistema vigente.
Para Harvey (2005), ainda não está claro se o que vivemos configura-se como um novo modo de
regulamentação: “Há sempre o perigo de confundir as mudanças transitórias e efêmeras com as
transformações de natureza mais fundamental da vida político‑econômica” (HARVEY, 2005, p. 19).
Contudo, não podemos negar a existência de novas mediações que ao longo do tempo propiciam uma
superestrutura com o objetivo de dar respostas a essas novas necessidades da produção capitalista.
Observação
Saiba mais
56
TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Harvey (2005) prossegue e afirma que a trajetória do capitalismo de modo algum é previsível. A
pergunta norteadora é: “Foi lucrativo?”. Nesse sentido, a especulação sempre foi a base norteadora.
Segundo o autor, o capitalismo sempre dependeu, para o seu crescimento ou a sua simples manutenção,
de “novos produtos, novas tecnologias, novos espaços e localizações, novos processos de trabalho”
(HARVEY, 2005, p. 307). O discurso hegemônico, dominante e pós‑moderno costuma considerar a vida
cultural num plano exterior ao da lógica capitalista. Como se as pessoas tivessem a “liberdade” de
construir, a partir da sua vontade, sua própria história; assim, acabam por considerar a determinação
econômica irrelevante, mesmo na famosa “última instância”.
como simples mercadoria a ser vendida pelos seus proprietários, a educação é o espaço privilegiado de
reprodução e produção cultural no interior da sociedade, sobretudo, da sociedade contemporânea.
A proposta de educação ao longo de toda a vida inscrita e proposta pelo Relatório Delors e
encomendada pela Unesco teria como tarefa enfrentar três grandes desafios: garantir o ingresso dos
países no campo de ciência e tecnologia; adaptar as diferentes culturas à sociedade da informação, e,
por conseguinte, ao novo tipo de trabalho; e viver democraticamente. Esses desafios foram estabelecidos
a partir de uma constatação de mudanças sociais, de uma nova configuração societal e da necessidade
de construção do novo cidadão, o cidadão do mundo, capaz de interferir nesse novo processo. Uma vez
concluído que não houve mudanças e rupturas substanciais, exemplificar essa articulação do novo faz
parte da compreensão da construção ideológica necessária para a manutenção do status quo.
A nova proposta educacional para o século XXI deveria promover a construção de um novo
humanismo. Não mais o humanismo reivindicado pela Revolução Francesa, necessariamente, mas um
humanismo de tipo novo, que dê resposta a um mundo multirrisco, globalizado, cheio de conflitos
culturais e étnicos; um humanismo que restabeleça os laços de solidariedade (DELORS, 1998, p. 47). Os
laços de solidariedade, por sua vez, estimulariam a participação dos cidadãos nas decisões políticas, o
que é possível por meio do exercício de uma democracia viva, participativa, na qual os cidadãos sejam
de fato indivíduos ativos e atuantes.
A constatação do conflito é evidente, e a educação é o “remédio” para esse mal, a chave‑mestra para
a construção da nova sociabilidade imposta pelo desenvolvimento “natural” da ciência e da tecnologia.
A presença de uma sociedade cognitiva, que imporia novos pilares educativos (aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser), aparece como resultado da sociedade
multiforme, complexa e em rápida transformação, na qual o trabalho imaterial e o conhecimento
são as novas ferramentas a serem adquiridas pelos cidadãos. A sociedade da informação imporia uma
necessidade de maior articulação entre os povos, reconfigurando o papel do político num contexto de
globalização. Essa reconfiguração do papel do político exigiria, num mundo multirrisco, uma maior
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TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
articulação entre as forças sociais em prol do bem comum; novos parceiros do Estado capazes de
possibilitar a concretização desse suposto “bem comum”. Os novos parceiros são apresentados como
empresários, industriais e homens de negócios.
A construção do consenso pelo Estado, conjuntamente com os seus novos parceiros, faz‑se necessária
para a manutenção do sistema capitalista e para controlar o caos, os conflitos e a insatisfação popular.
A incapacidade do sistema capitalista de se propagandear e a necessidade de dissimulação da realidade,
da construção de uma nova atmosfera, diante do fracasso das suas promessas (de liberdade, igualdade
e fraternidade) evidenciam‑se com a imposição das teses pós‑modernas. As categorias historicamente
utilizadas e reivindicadas pelos movimentos progressistas de esquerda são assimiladas e ressignificadas
em uma outra lógica, não a emancipadora, mas a mantenedora da ordem capitalista. Segundo Gramsci
(1978), os conceitos e as categorias não são estanques, mas construídos historicamente, podendo ser
esvaziados de conteúdo ou até mesmo alterados mediante o contexto histórico conjuntural.
O debate realizado por Mészáros (2005) no seu livro A Educação para Além do Capital é central para
elucidar esse emaranhado pós‑moderno e, sobretudo, o papel estratégico da educação. Para o autor, a
única possibilidade real de uma educação humanista, democrática e progressista se daria no marco de
uma educação para além do capital. Ele argumenta que não haveria nenhuma possibilidade do novo
que prescindisse de uma mudança radical e estrutural da sociedade do capital.
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Unidade I
Mészáros (2005) demonstra que os sistemas educativos estão intimamente relacionados com o
processo de reprodução do capital. Não há possibilidade de desarticulação. Por meio da educação,
segundo o autor, ocorre a “interiorização” das normas e regras sociais, de modo que faça o indivíduo
reproduzi‑los para garantir a manutenção da ordem e a reprodução do sistema na sua totalidade.
“Isso faria com que a ‘a brutalidade e a violência’ pudessem ser ‘relegadas a um segundo plano’
(embora de modo algum permanentemente abandonadas)” (MÉSZÁROS, 2005, p. 44) e utilizadas
apenas mediante períodos agudos de crise do sistema e de necessidade de garantir a repressão da
resistência ou da contestação.
Em outras palavras, não existe possibilidade de mudança real na educação em prol de alternativas
mais humanistas e democráticas na mesma estrutura institucional. A mudança real e concreta pela qual
a educação pode desempenhar um papel importante necessitaria, segundo Mészáros (2005), romper
e superar o processo de interiorização propiciado pela educação. Essa superação seria possível apenas
mediante a transformação radical da estrutura de funcionamento da sociedade capaz de produzir esse
sistema internalizante de produção de consenso. É nesse sentido que a proposta de educação para o
século XXI do Relatório Delors é sofisticada. Com o objetivo de superar uma análise simplista, identifica os
limites estabelecidos pela educação formal e, por isso, propõe uma nova educação, mais abrangente, que
não desconsidere as outras esferas de convívio social. O trabalho, o lazer, as mídias são espaços também
educativos, que podem educar e formar os cidadãos ao longo de toda a vida. Assim, a proposta de educação
para o novo milênio se apresenta como uma alternativa, pelo menos fenomenicamente, viável para uma
sociedade em constante mudança. Todavia, há apenas um detalhe substancial: a inexistência de uma
ruptura radical e estrutural na sociedade atual que possa negar a existência da sociedade de classe.
Não havendo de fato uma ruptura substancial com a ordem estabelecida, a percepção de
outras formas de educação para além da educação formal, de modo que garanta competências
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TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
não necessariamente aprendidas nos sistemas de ensino formal e, sim, na vida cotidiana, revela
um grande potencial de controle no interior dessa proposta. Se não rompe com a lógica societal
existente, essa proposta com ares progressistas acaba por subsumir toda a vida humana ao capital,
todas as esferas de reprodução e produção da vida articuladas, de maneira jamais vista antes. Isso
corrobora a tese de Jameson (1996) de que esta seria a forma mais pura de dominância do capital
jamais vista na história da humanidade.
Educação ao longo de toda a vida, uma forma de educação continuada reivindicada por Mészáros
(2005), é uma proposta de educação apenas possível em uma sociedade na qual homens e mulheres se
encontram em situação de livres associados ao sistema de produção social. Somente assim a educação
poderá extrapolar os seus limites institucionais e se tornar universal de fato. Contrariamente a isso, qualquer
proposta ou projeto de educação que se coloque neste marco evidenciam‑se falaciosos. A proposta de novos
métodos diante da mesma estrutura se apresenta no marco das políticas reformistas, que são variações
pós‑modernas das táticas do capital para manter o consenso e seu padrão de acumulação.
Contudo, Mészáros (2005) chama atenção para a dimensão estratégica da Educação no sentido
mais amplo. Apenas a mais vasta concepção de educação poderia propiciar uma mudança substancial
no interior das relações sociais. “Esta maneira de abordar os assuntos é, de fato, tanto a esperança
como a garantia do êxito possível” (MÉSZÁROS, 2005, p. 48). De fato, o autor já nos deu algumas pistas
acerca da instrumentalização da educação em prol de uma mudança radical e estrutural. Segundo ele,
não existirá possibilidade de superação se esta não for construída de maneira coletiva. Para legitimar
tal afirmação, o autor recupera as teses de Gramsci sobre o fato de todos, homens e mulheres, serem
intelectuais e, por isso, poderem contribuir para novas sínteses e para a produção de novos pensamentos
não hegemônicos.
Portanto,
A fim de reclamar de fato o domínio da educação ao longo de toda a vida, Mészáros nos alerta para
a necessidade de desafiar as formas atuais de interiorização. Para tanto, a educação também exerce um
papel estratégico. Como já vimos, para o bem ou para o mal, a educação é utilizada para a manutenção
e a legitimação da ordem ou para a construção de uma nova lógica societal, e é nesse sentido que
devemos disputá‑la, com a perspectiva de instrumentalizá‑la mediante a necessidade de construção de
uma outra sociedade. “É este o modo como uma contraconsciência estrategicamente concebida, como
a alternativa necessária à interiorização dominada colonialmente, poderia realizar sua grandiosa missão
educativa” (MÉSZÁROS, 2005, p. 57‑8).
Para Mészáros (2005), não existe uma forma de superação da ordem que prescinda do trabalho.
É por meio dessa atividade concreta que trabalhadores e trabalhadoras tiram conclusões e tomam
consciência da sua posição na hierarquia social. Obviamente esse processo de tomada de consciência
possui diferentes níveis e formas de apreensão da realidade. Contudo, a tomada de consciência
individual e coletiva da possibilidade e da necessidade urgente de transformação não prescinde de
experiências concretas e cotidianas desses trabalhadores. Com a condição real da subsunção da vida ao
capital, segundo a proposta de educação para o novo milênio, as possibilidades de resistência podem
encontrar obstáculos ainda maiores. Contudo, as contradições e experiências coletivas também podem,
dialeticamente, propiciar um maior avanço na consciência.
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TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
Assim, a partir das contribuições de Mészáros (2005), podemos elucidar que a proposta de Educação
para o século XXI – educação ao longo de toda a vida –, é de manutenção da ordem, de construção de
consenso e de controle de toda a vida do(a) trabalhador(a) e que se utiliza de conceitos e categorias
historicamente tidas como progressistas ressignificando‑as e esvaziando‑as de conteúdo emancipador.
As contribuições de Mészáros (2005) nos auxiliam adensando a análise e enriquecer de conteúdo a
contradição interna presente na proposta educacional do século XXI. As questões levantadas pelo autor
auxiliam na desmistificação da possibilidade de mudanças significativas sem rupturas estruturais e
apontam para a emergência de propormos, coletivamente, uma educação para além do capital.
Assim, fica evidente que a proposta de educação concebida pelo Relatório Delors é de educação
pós‑moderna e se projeta como progressista, como a reinvenção do novo, mas no interior da mesma
lógica capitalista. Isso só se torna possível mediante a negação da totalidade, a apologia à fragmentação
e a recuperação do discurso acerca da subjetividade. A dimensão que nega a totalidade permite a negação
da sociedade capitalista e o surgimento de novos tipos de sociedade (da informação, do conhecimento)
mediante as mesmas estruturas sociais estabelecidas, ou seja, um novo discurso para a velha estrutura
social, evidentemente, com uma nova “roupagem”. É uma construção superestrutural necessária para a
manutenção da ordem nessa fase do sistema do capital.
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Unidade I
Resumo
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Exercícios
– A cada 7.2 segundos uma mulher é vítima DE VIOLÊNCIA FÍSICA. (Fonte: Relógios da Violência,
do Instituto Maria da Penha)
– Em 2013, 13 mulheres morreram todos os dias vítimas de feminicídio, isto é, assassinato em
função de seu gênero. Cerca de 30% foram mortas por parceiro ou ex. (Fonte: Mapa da Violência
2015)
– Esse número representa aumento de 21% em relação à década passada. Ou seja, temos
indicadores de que as mortes de mulheres estão aumentando.
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Unidade I
– No estado de Roraima, metade das acusações de violência doméstica prescreve antes de
alguém ser acusado. Não foi conduzida nenhuma investigação nos 8.400 boletins de ocorrência
acumulados na capital Boa Vista. (Dados do levantamento realizado pela Human Rights Watch
em 2017)
– 2 em cada 3 universitárias brasileiras disseram já ter sofrido algum tipo de violência (sexual,
psicológica, moral ou física) no ambiente universitário. (Fonte: Pesquisa “Violência contra a mulher
no ambiente universitário”, do Instituto Avon, de 2015)
I – Na charge, a sombra da cruz faz referência ao símbolo do sexo feminino e a flor representa um
gesto de respeito, que indica que a violência contra as mulheres vem diminuindo, ao contrário do que
dizem os dados do texto.
III – A não referência da charge e do texto às classes socioeconômicas das mulheres agredidas indica
que se trata de um problema que não é social, pois se relaciona apenas com o gênero das vítimas.
A) I e III, apenas.
B) I e II, apenas.
C) II e III, apenas.
D) II, apenas.
E) I, II e III.
I – Afirmativa incorreta.
Justificativa: a charge não indica que a violência vem diminuindo. A intenção da frase é justamente
denunciar o feminicídio.
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TEMAS EMERGENTES DE SOCIOLOGIA
II – Afirmativa correta.
Justificativa: os dados revelam que, além do gênero, a questão da etnia também é relevante para o
problema. Mulheres negras recebem a soma de duas forças opressoras.
Justificativa: o problema é social, pois envolve toda a sociedade. O texto não apresenta dados
relativos à violência contra a mulher de acordo com a classe socioeconômica, o que não indica que a
questão de classe não esteja envolvida no problema.
Questão 2. Leia o trecho de uma entrevista da professora Ludmila Costhek Abílio e analise as
afirmativas a seguir.
A uberização é um processo novo, entretanto os seus elementos centrais são uma espécie de atualização
de características constitutivas do mercado de trabalho brasileiro, por exemplo. E características centrais
à acumulação capitalista, mas que são facilmente invisibilizadas. A viração é um termo muito expressivo
e que poderia ser mais utilizado para compreendermos o mundo do trabalho brasileiro. Na década de
1990 foi utilizado pela professora Maria Filomena Gregori para analisar a trajetória de meninos de rua
e suas formas de sobrevivência, assim como pela professora Vera Telles, para definir a trajetória entre
trabalho formal e informal, atividades lícitas e ilícitas, empregos, bicos, trabalhos sem forma trabalho
que constituem a sobrevivência na periferia.
A economia digital deu visibilidade e, podemos dizer, subsumiu de forma organizada, racionalizada e
produtiva, a viração. O que isso quer dizer? Primeiramente que o trabalho sem lastro, o trabalho que se
realiza sem a forma socialmente estabelecida – que passa por regulamentações do Estado, que confere
uma identidade profissional, que oferecia uma estabilidade que tem também dimensões subjetivas
(como dizia Castells, a “possibilidade de planejar o futuro”) – agora torna-se uma fonte evidente da
exploração do trabalho que conta com alto desenvolvimento tecnológico, uma atuação predatória sobre
o mercado da mobilidade urbana no caso do Uber, e de dimensões globais.
As dualidades entre trabalho formal e informal, entre trabalho produtivo e improdutivo, e outras
linhas divisórias que acabam desembocando na separação entre os que estão dentro e os que estão
fora dos circuitos da acumulação acabam por obscurecer o papel que diversos trabalhos têm no ciclo
global do capital, sua importância, seja como fonte de trabalho produtivo não pago, seja como fonte de
eliminação de custos e riscos para o capital. O que é fundamental para a compreensão da uberização, e
até mesmo para considerá-la uma definição cabível ou relevante, é tirar um olho da inovação tecnológica
para olhar o que há de mais precário e socialmente invisível no mundo do trabalho. Em realidade,
a combinação entre precarização e desenvolvimento tecnológico está no cerne do desenvolvimento
capitalista, é isto que a uberização deixa evidente.
Entretanto, a novidade de ter uma multidão de trabalhadores “prestando serviços” para uma única
empresa, a qual terceiriza o controle e gerenciamento do trabalho ao mesmo tempo que detém a
propriedade sobre eles e extrai lucro desta relação, não é assim tão nova. Por exemplo, o exército de 1,4
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Unidade I
milhão de revendedoras de cosméticos da empresa Natura, mulheres que combinam as revendas com
diversas outras ocupações e atividades, que gerenciam seu próprio trabalho, em um trabalho que nem
mesmo tem a forma trabalho bem definida. Para o lado de dentro da fábrica, o trabalho desta multidão
é muito bem administrado, informalidade se torna informação, em uma fábrica que praticamente tem
sua produção sob encomenda – feita por esta multidão de trabalhadoras.
I – A autora critica o que ela denomina a uberização do trabalho, pois, neste novo contexto, observa-
se a precarização das condições de trabalho, característica marcante da atual fase do capitalismo.
A) I, II e III.
B) I e III, apenas.
C) I e II, apenas.
D) II e III, apenas.
E) III, apenas.
I – Afirmativa correta.
Justificativa: a autora afirma que o novo contexto é marcado pelo desenvolvimento tecnológico e
pela precarização das condições de trabalho.
II – Afirmativa incorreta.
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Justificativa: a autora aponta que a acumulação de capital se dá com novas formas de exploração
do trabalho.
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