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A Bíblia:

já descascou este abacaxi?


Por Hermes C. Fernandes

Um dos lemas defendidos pelos reformadores é conhecido pela expressão do


latim “Sola Scriptura.” Basicamente, significa que a Bíblia é a única regra de fé e
prática do cristão. Ela tem sido considerada o instrumento por excelência
através do qual Deus escolheu Se revelar ao mundo.

Todo cristão genuíno há de demonstrar um apreço singular pelas Escrituras.


Entretanto, muitos se aproveitam deste lema para impor suas interpretações
particulares. Qualquer outra interpretação é tida por heresia e deve ser
descartada.

Uns fazem uma interpretação alegórica, outros preferem ser mais literais. Quem
estará certo? Que interpretação estaria mais próxima da verdade? Alguma seria
confiável o bastante? Algo como 100% certo?

Primeiro, temos que considerar que as Escrituras não são o único instrumento
pelo qual Deus Se revela aos homens. Antes que me tachem de herege, deixem-
me explicar:

Paulo, o maior defensor das Escrituras, afirma que “o que de Deus se pode
conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. Pois os seus
atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde
a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que
eles são inescusáveis” (Romanos 1:19-20).

As palavras do apóstolo dos gentios fazem eco ao que fora declamado por Davi:

“Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas
mãos. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite revela conhecimento a
outra noite. Não há fala, nem palavras; não se lhes ouve a voz.” Salmos 19:1-3

Observe ainda a recomendação feita no livro de Jó:

“Pergunte, porém, aos animais, e eles o ensinarão, ou às aves do céu, e elas lhe
contarão; fale com a terra, e ela o instruirá, deixe que os peixes do mar o
informem. Quem de todos eles ignora que a mão do SENHOR fez isso?” Jó 12.7-
9

Mesmo antes que o cânon fosse fechado, a Palavra de Deus Se revelava através
do livro da natureza. De modo que, mesmo um aborígene, perdido no outback
australiano, ou um índio brasileiro no alto Xingu, não poderá alegar que jamais
tenha tido oportunidade de conhecer a Deus.
Porém, as Escrituras nos fornecem a revelação dos propósitos de Deus ao longo
da história. Por isso, não se pode prescindir delas. Se pela natureza
vislumbramos Sua majestade e atributos, pelas Escrituras conhecemos Sua
vontade e propósito.

Engana-se quem imagina que a Bíblia serve como um livro de mágica, um


amuleto para espantar maus fluídos, ou um compêndio de autoajuda. Fechada,
nada tem de especial. Aberta, idem. Sua importância se impõe quando lida,
discernida e praticada. Nas palavras de Paulo, “toda Escritura é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir
em justiça” (2 Timóteo 3:16). Infelizmente, a maioria dos cristãos de nossos dias
recorre às suas páginas em busca de promessas a fim de reivindicá-las. Poucos a
buscam para serem confrontados, repreendidos, corrigidos e instruídos.

De fato, as Escrituras foram inspiradas pelo Espírito Santo. Sentimos este


testemunho em nosso espírito enquanto as lemos. E de acordo com Pedro, o
mesmo Espírito que a inspirou é quem está habilitado a interpretá-la.

“E temos ainda mais firme a palavra profética à qual bem fazeis em estar
atentos, como a uma candeia que alumia em lugar escuro, até que o dia
amanheça e a estrela da alva surja em vossos corações; sabendo primeiramente
isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a
profecia nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte
de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo.” 2 Pedro 1:19-21

Jesus garantiu que Seu Espírito nos guiaria a toda a Verdade. De nada adianta
dominarmos a arte hermenêutica, conhecermos a fundo as línguas originais, se
o Espírito Santo não for nosso guia. Ainda que contando com a direção do
Espírito, é improvável que façamos uma leitura cem por cento isenta. Nossa
subjetividade sempre interferirá na maneira como interpretamos seus textos. E
deve ser assim para que nos mantenhamos humildes, sem pretender sermos
donos da verdade. Apesar de a verdade revelada ser absoluta, nossa leitura
sempre será relativa. Sobra pouco lugar para a presunção. Mesmo os maiores
intérpretes da Bíblia, homens do quilate de Calvino, Lutero, Agostinho,
cometeram seus equívocos interpretativos, jamais reivindicando para si a
infalibilidade. Todos foram filhos de seu próprio tempo. Jesus admite tal
possibilidade em Seu diálogo com um doutor da Lei:

“E eis que se levantou certo doutor da lei e, para o experimentar, disse: Mestre,
que farei para herdar a vida eterna? Perguntou-lhe Jesus: Que está escrito na
lei? Como lês tu?” Lucas 10:25-26

Repare que são duas perguntas, uma de caráter objetivo e a outra de caráter
subjetivo. A resposta à pergunta “que está escrito na lei?” revela quem Deus é e
quais os Seus propósitos. Trata-se de uma verdade absoluta. Mas a pergunta
“Como lês tu?” revela quem somos, nossos pressupostos e preconceitos, e, por
isso mesmo, relativiza nossas leituras.
Aproximar-se das Escrituras é como olhar-se no espelho. Quão difícil é resistir à
tentação de conferir a aparência quando passamos por qualquer coisa que reflita
nossa imagem. Quando lemos a Bíblia, deparamo-nos com nossa própria
imagem que parece emergir do texto como um holograma; e, para que saibamos
se estamos bem ou não, precisamos de uma referência, de um padrão, e este é
ninguém menos que Jesus.

Ninguém lê a Bíblia exatamente como o outro. Não se trata de variantes


interpretativas, e sim, da imagem que ela reflete para nós. Cada um de nós está
num estágio distinto do outro. Por isso, Paulo diz que devemos andar de acordo
com o que já temos alcançado (Fp.3:16), na certeza de que Aquele que em nós
começou a boa empreitada, há de concluí-la dentro do prazo estabelecido pelo
Pai (Fp.1:6).

Repare no que Paulo diz:

“Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que cheguei a ser
homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos como por
espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte,
mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido.” 1
Coríntios 13:11-12

Na canção “A lua e eu”, Peninha cantava: “Quando olho no espelho, estou


ficando velho e acabado...” Ninguém escapa do espelho. Ele não costuma
mentir. Muito menos a Palavra de Deus. Ele revela o grau de maturidade a que
temos chegado.

Cada vez que recorremos às Escrituras, percebemos o quanto temos mudado,


seja para melhor ou para pior. Se tomarmos Jesus por referência, a tendência
será que nos tornemos cada vez mais parecidos com Ele. Mas se formos apenas
leitores, porém, não praticantes, nada mudará. Tiago diz: “Pois se alguém é
ouvinte da palavra e não cumpridor, é semelhante a um homem que contempla
no espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo e vai-se, e logo
se esquece de como era. Entretanto aquele que atenta bem para a lei perfeita, a
da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas executor da
obra, este será bem-aventurado no que fizer”(Tiago 1:23-25).

Precisamos ler as Escrituras tendo Jesus por referência. Tudo deve passar por
este filtro. E é aí que muitos tropeçam, pois seu conhecimento de Jesus está
condicionado pela cultura ou pelas teologias em voga em nossos dias. Em vez do
Jesus das Escrituras, seguem a um Jesus genérico, um ídolo inventado pela
imaginação humana.

Vale aqui a advertência de Paulo:


“Por isso daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne; e, ainda que
tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o
conhecemos desse modo.” 2 Coríntios 5:16

Não era à toa que Paulo confessava temer que muitos fossem enganados,
seguindo a outro Jesus, abraçando a outro Evangelho, e, por conseguinte,
recebendo outro espírito (2 Co.11:4). De fato, como diria o salmista, um abismo
chama outro abismo (Sl.42:7).

Esse “outro”Jesus não é um ídolo de gesso ou de metal carregado num andor,


mas uma projeção mal acabada daquilo em que temos nos tornado. Há uma
espécie de simbiose entre quem cultua e o que é cultuado (Sl.115:8). E por que
deve ser assim? Se Jesus é o mesmo ontem, hoje e eternamente, por que as
pessoas insistem em cultuar sua própria versão de Cristo?

Penso que há uma valiosa pista para que entendamos a razão de Deus permitir
tal coisa. Trata-se de uma palavra profética proferida por Simeão na ocasião em
que José e Maria levaram o menino para ser consagrado no Templo em
Jerusalém.

“E Simeão os abençoou e disse a Maria, mãe do menino: Esta criança é posta


para queda e elevação de muitos em Israel, para ser alvo de contradição e para
que se revelem os pensamentos de muitos corações.” Lucas 2:34

O mesmo Jesus que é pedra de esquina para alguns, serve de pedra de tropeço
para outros. Criamos um ídolo e tentamos identificá-lo com o Jesus das
Escrituras. Esse “Jesus Genérico” nada mais é do que fruto de nossas projeções.
Um ídolo feito a partir de ideias preconcebidas, alinhado a uma determinada
ideologia, justificado por dogmas forjados pela religião. Um Jesus feito à nossa
imagem, e que, acaba por revelar as reais motivações de nossos corações (Is.
44:13).

O Cristo autêntico não se dobra aos nossos caprichos, nem se presta a ser garoto
propaganda de ideologia alguma. Em vez de ser a imagem de quem o forjou, Ele
é a imagem do Deus invisível (Col.1:15). Quando fitamos os olhos n’Ele, somos
conformados à Sua própria imagem, pois para tal fomos predestinados
(Rm.8:29).

Jesus é a Palavra de Deus de uma maneira singular. O Verbo feito carne. Quer
saber como é Deus, vislumbre-O n’Ele, pois Ele e o Pai são Um. Ele não é uma
fotocópia, mas a expressão exata do Seu ser (Hb.1:3). Enquanto o livro da
natureza revela os atributos divinos (o seu poder e sabedoria), as Escrituras
revelam a Sua vontade, e Jesus revela Seu próprio Ser.

Geralmente um espelho tem sua moldura. Buscar nosso reflexo nesta moldura é
perda de tempo. Semelhantemente, temos que compreender que as Escrituras,
apesar de terem sido inspiradas pelo Espírito, foram escritas por homens dentro
de suas próprias culturas e cosmovisão.

Tomemos por analogia uma fruta. Há o pé de onde ela é colhida. Há a casca


onde ela se esconde. E há a polpa. A teologia nos oferece dois instrumentos que
devem ser usados na leitura das Escrituras. Trata-se da hermenêutica e da
exegese. Exegese equivale a colher a fruta do pé. Há que se compreender o
contexto no qual cada palavra foi escrita. Já a hermenêutica equivale a
descascar a fruta. Remover dela o invólucro cultural, nutrindo-se apenas de sua
polpa.

Cristo é, por assim dizer, a polpa, o suprassumo da fruta. Devemos ir às


Escrituras sempre em busca de Cristo. Ele é a figura central, os demais são
meros coadjuvantes. Se pararmos na casca, numa leitura superficial, não
encontraremos a mesma doçura encontra exclusivamente n’Ele. Há frutos,
como o abacaxi, cuja casca é espinhosa. Aqueles espinhos servem a um
propósito: proteger a polpa dos predadores, até que a fruta amadureça. Uma
leitura superficial do Antigo Testamento talvez desafie nossos escrúpulos
religiosos. Alguns chegam a se escandalizar com episódios em que Deus ordena
a destruição de toda uma nação. É difícil digerir uma casca tão grossa e
espinhosa. Porém, ela serviu a um propósito: proteger à estirpe de onde viria o
Salvador do Mundo.

O problema é que tem quem queira devolver a casca ao fruto, voltando aos
velhos rudimentos presentes na Antiga Aliança. Querem um Jesus guerreiro,
que destrua nossos inimigos, que mate os primogênitos do Egito, que patrocine
genocídios, que prescreva restrições dietéticas, que exija sacrifícios, etc. Se
alguém se satisfaz com a casca, nada posso fazer. Porém, eu prefiro a polpa com
toda a sua doçura.

Há muita discussão entre os teólogos se a Bíblia é ou apenas contém a Palavra


de Deus. Eu diria que ambas as coisas. A Bíblia é a Palavra de Deus com casca e
tudo. E ao mesmo tempo, Ela contém a Palavra de Deus em sua essência. Mas
não basta colhê-la e descascá-la. Temos que degustá-la, levá-la à boca, saboreá-
la, apropriando-nos da revelação nela contida, e colocando-a em prática.

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