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PRA DIZER QUE FOI ASSIM

(Histórias, memórias e outras invenções)


Alan Oliveira Machado

PRA DIZER QUE FOI ASSIM


(Histórias, memórias e outras invenções)

Ibicaraí, Bahia / 2015


Copyright 2015, Alan Oliveira Machado
Todos direitos desta edição reservados à
VIA LITTERARUM EDITORA
Rua Frederico Maron, 299 - Térreo - Centro
Ibicaraí - Bahia, Brasil - 45745-000
vleditora@vleditora.com.br
www.vleditora.com.br SUMÁRIO

REVISÃO A BUSCA DE SI PELA TOPOFILIA (Vitor Hugo Martins) .15


Ana Valéria Fink
LIÇÃO DA NATUREZA.............................................................15
foto de CAPA MEMÓRIAS DE UMA RUA ABANDONADA.......................17
Iuri Carvalho
DO ACASO AO MISTÉRIO......................................................23
diagramAção
SOB O SERENO FRIO DO BOQUEIRÃO..............................25
Claudiana Leite
QUEM FOI VICENTE VELOSO...............................................27
A LIBERDADE PELA SERVIDÃO............................................29
OS CAÇADORES DE MODÃO.................................................31

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


BAR CULTURAL.........................................................................35
BRIGA DE COMÉRCIO.............................................................39
A VIDA NA AREIA.....................................................................41
PELA JANELA..............................................................................43
O PRIMEIRO SÃO JOÃO, A GENTE NUNCA ESQUECE..45
MENINA OFERECIDA..............................................................49
SÓ SE FOR ROUBADO!.............................................................51
A SOLIDÃO CARREGAVA UM LOUCO................................55
Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, por
qualquer meio, total ou parcial, constitui violação da lei n 9.610/98.
ADENDO......................................................................................57
TUMASA É OSSO!......................................................................59
ALGUMA LUZ PARA O ANO NOVO.....................................63
A BUSCA DE SI PELA TOPOFILIA
LINDOVALDO............................................................................67
Vitor Hugo Martins*
O OURO DE MURIBECA..........................................................69
UM GOSTO MUITO ESPECIAL..............................................81
O BICHO.......................................................................................85 Alan Oliveira Machado é um baianinho porreta de Uibaí.
Conheço-o já há alguns anos e sei, ou penso saber, dos seus
POSFÁCIO ...................................................................................85 atributos éticos e morais como cidadão, profissional, poeta e
agora como cronista/contista, ou memorialista, ou invencio-
nista, com o seu Pra dizer que foi assim (Histórias, memórias
e outras invenções).
O que há nesse livro? De acordo com a minha modesta
leitura, histórias, memórias e ficções. O subtítulo está, pois,
exato. Assim, a infância e a adolescência do Autor são recu-
peradas pela crônica que, como se sabe, implica paixão urba-
na. Ou melhor, topofilia. Refiro-me aqui a algo muito sério, à
topofilia do menino/adolescente Alan Oliveira Machado. Sim,
porque as cidades/municípios, serras, bairros, avenidas, pra-
ças, ruas, casas, travessas, becos, terrenos baldios de nossas in-
fâncias nos acompanharão para sempre. E acompanham, sim,
Alan Oliveira Machado, agora já na idade madura (não entrou
no -enta, agora aguenta!), nestes textos de Pra dizer que foi
assim (Histórias, memórias e outras invenções). As perguntas
que não querem calar então são: por que o Autor prende-se
obsessivamente a esse topus? Por que não se afasta dele como
o diabo da cruz? Com toda certeza (e cerveja), por uma pul-
são consciente ou inconsciente. Topus, radical grego, entra na
composição de algumas palavras da Língua Portuguesa e pode
ser entendido de duas maneiras: como lugar, topógrafo, utopia;
mas também como assunto, tema, isotopia, topologia. Certo, e
aí retomamos a questão: a topofilia de Alan Oliveira Machado, risíveis, mas não para Deus? Essa arraia-miúda deambula por
manifesta em suas narrativas, é sinal do quê? O que este mani- nossas cidades frequentemente. Quem deveria reparar nela?
festo patente ocultará de manifesto latente? Respondo: a busca Os prefeitos, os edis, as instituições sociais e assistenciais? Está
de si. Afinal, “o menino não é o pai do homem”? bom, Jacaré! Quem a olha, vê, repara, é a sensibilidade de al-
Acredito, assim, ter encontrado a chave de leitura de Pra guns homens e mulheres que a escrevem. Que a transformam
dizer que foi assim (Histórias, memórias e outras invenções). em personagens. Veja-se, ainda nesse tópico, a leitura de Alan
Relevem, por favor, a petulância do degas aqui. Mas Uibaí, o Oliveira Machado dos loucos de Uibaí. Quase toda cidade pe-
Riacho Canabrava, a Rua do Cascalho e outros sítios e arredo- quena, como Uibaí (cerca de 15 mil habitantes), tem os seus
res e em especial a gente da aldeia da infância de Alan Oliveira loucos oficiais, seus loucos municipais: Tumasa, Chico de Elói,
Machado presentificam-se, eternizam-se nesse livro. O que ele, Tia Merinha...
Alan, viu e vivenciou, e a sua história são resgatadas pela me- Os loucos são-nos necessários para podermos compreen-
mória. Daí eu ter falado em crônica no segundo parágrafo, pois der os não loucos, a dialética da vida. Isso é matéria para Freud,
ela pressupõe tempo, tempo que teima em não passar. Assim: Lacan, Foucault e Bachelard, bem sei. Mas eu prefiro ficar com
pretérito imperfeito do indicativo. Cronista é aquele que lê e, o menino antigo Carlos Drummond de Andrade, para quem,
às vezes, translê o real circundante ou distante. Para fazê-lo, “O doido é sagrado”, verso do poema “Doido”, do livro Boitem-
dispõe da história e da memória. Aí está Uibaí, aí estão os ui- po II (1973). Sejamos meninos antigos também, como o poeta
baienses (gosto mais de uibaianos), que ficaram guardados na mineiro e Alan Oliveira Machado, lendo Pra dizer que foi as-
mente e no coração do cronista aqui em questão. Umas mais sim (Histórias, memórias e outras invenções), pois.1
chistosas, como “Os caçadores de modão” e “Lindovaldo”, ou-
tras mais reflexivas, como “Pela janela” e “A vida na areia”.
Certo, e as outras invenções? De algum modo, elas per-
meiam mesmo o factual das crônicas, pois a história e a memó-
ria são cavilosas como o quê! Mas não resta dúvida de que há
textos em Pra dizer que foi assim que apresentam mais a na-
tureza contística do que a cronística. São mais invenções, mais
ficções. Assim, o princípio da profundidade do conto se impõe
sobre o da horizontalidade da crônica. E aqui não estou me
referindo ao número de páginas de um texto ou outro, subli-
nho. Refiro-me, sim, às situações que criam atritos dos homens
entre si, dos homens com a sua própria natureza e dos homens
com a Natureza. O que dizer dos topônimos e antropônimos
das personagens de Pra dizer que foi assim, como, por exem-
plo, Rua do Cascalho, Povoado da Lagoa, Curral da Matança, * Vitor Hugo Martins é Professor Titular do curso de Letras da Univer-
Muribeca, Priquitim, Soizinha? E os bêbados, as ciganas, os sidade do Estado da Bahia, Campus XXI, Ipiaú. Poeta, cronista e contista.
profetas, os mendigos, os (mal)ditos, os excluídos dos homens, Autor de Cronicália (Ibicaraí: Via Litterarum, 2015).
As invenções deste livro são para os canabrabeiros, para
Uibaí, esse outro que também me constitui e que, de certa for-
ma, é dono das múltiplas vozes que se espalham pelos lastros
de tinta e de sentimentos que se seguem. Uibaí é único. Como
diz um velho parente bom de prosa, não se passa por aquele
pedaço de chão. Chega-se apenas! E, na saída, mesmo que defi-
nitiva, algo de grave e sublime ocorre: fica-se por lá eternamen-
te. Uibaí é o gigante miúdo plasmado em cada um de nós que
não se contém, por isso transborda.
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”
(ALBERTO CAEIRO, O Guardador de Rebanhos, XX, excerto)
LIÇÃO DA NATUREZA

N o início desta tarde, chovia aqui no bairro. O tempo som-


brio açoitava o telhado com rajadas intermitentes. Eu cor-
ri, como sempre, para a janela. Aninhado no parapeito, assistia
à suspensão gradual da chuva e aos fios de água formando uma
cortina cristalina ao longo do telhado. A chuva é agradável, o
sombrio dela não tem nada de melancolia. Não vejo negativida-
de naquele céu tingido de cinza, baixo e disforme como o teto
de uma caverna. Na verdade, corro à janela comumente para
contemplar o viço das árvores gotejando e a corredeira que se
forma à margem da rua.
Assistir à água descambando rua abaixo é uma experiência
maravilhosa. A água é alegre, forte e vibrante. Aquele barulho,
uma espécie de tagarelar líquido, me lembra a Fonte Grande
no  verde, como o canabrabeiro costuma dizer. E se a gente se
detém olhando a água corrente, sente a força e a determinação
com que ela avança rumo ao seu destino. Mas há também hu-
mildade na força vibrante da corredeira: ela não enfrenta tudo 
como se fosse invencível; pelo contrário, se curva a certos obs-
táculos, desvia-se de outros, muito embora atropele e até arras-
te alguns que querem ser mais do que são.
A água não vai além da sua medida. Ela mostra sempre ser
o que é e pronto. A água que escorre agora na borda da rua tem
um objetivo e segue obstinada rumo a alcançá-lo, sem saltar
fora de seu próprio limite. Ao contrário de muitas pessoas, a

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Alan Oliveira Machado

água não quer ir além do que é e nem aceita ser menos. Con-
templar silenciosamente a água da chuva descendo em enxur-
rada é uma lição. Há sabedoria naquele movimento inexorável
da natureza. Tenho para mim que ele nos diz: seja alegre, vi-
brante, siga firme o seu destino, não se abata por obstáculos MEMÓRIAS DE UMA
minúsculos e seja flexível com o que vai além de suas forças.
Mas siga, siga sempre... Alegre e vibrante em direção a seus ob-
RUA ABANDONADA
jetivos. Essa é a boa lição da natureza. OH! SIM, as ruas têm alma. Há ruas
honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras,
(01/12/09) ruas nobres, delicadas, trágicas, depra-
vadas, puras, infames, ruas sem história,
ruas tão velhas que bastam para contar a
evolução de uma cidade inteira”... (JOÃO
DO RIO, em A alma encantada das ruas)

O Cascalho é uma rua curiosa. Por um momento, a gente


pensa que ela é extensão da Rua Grande, já que o leito
do Riacho Canabrava segue sinuoso pelos fundos dos quintais,
cruza a Matinha e vai despontar lá adiante, próximo à entra-
da do Cancarote. Se realmente fosse a continuidade da Rua da
Igreja, teríamos de dizer, para fazer justiça, que ela é a conti-
nuidade abandonada em todos os sentidos. Entretanto, como
todo abandonado aprende a sobreviver, a gente vai ver que a
Cascalho sempre teve abundância de vida e de tudo.
Até os anos oitenta, quando o candeeiro ainda era uma
necessidade para muitos, o cidadão podia encontrar, na esqui-
na do prédio velho, a fábrica de seu Zuza Flandeiro, sortida de
vários modelos dessas rústicas luminárias. Podia também en-
comendar roupas da moda à costureira Bernadete. Descendo
mais um pouco, ao lado de Belita de Ricarte, quem precisasse
de algum móvel poderia encomendá-lo na marcenaria de Ar-
geu. Passando uma ou duas casas, havia a sapataria de Mané Sa-
pateiro, aliás, a rua contava ainda com a sapataria de Garibalde,
em frente à casa de Sinezão.

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

Tamboretes também você encomendava na Cascalho, lá A velha administrava a família com pulso firme, num sistema
na tamboreteria de Deblande, em frente à casa de Dona Ma- de matriarcado absoluto. A ela pertencia ainda a única casa
roca. Ali se encontravam os mais resistentes tamboretes feitos de farinha da cidade, também na Cascalho, pouco abaixo do
de são-joeiro maduro. Deblande, com mais de um metro e no- Curral da Matança.
venta de altura, nas horas vagas atuava como juiz de futebol, O Curral da Matança era um curral velho feito de
no único campo da cidade, também privilégio da Cascalho madeira de lei no qual os bois ficavam recolhidos esperando o
(nessa época ainda nem existia o Betonicão, lá na saída pra abate. Dia de abate dava uma mistura de medo, prazer e aven-
Hidrolândia). O filho da velha Cândia era um juiz desprovi- tura ver aqueles bichos furiosos, como que pressentindo a mor-
do de apito, mas durante o jogo carregava uma peixeira feita te, sendo laçados pelos vaqueiros Jaimim e Domingo Paieiro.
de corneta engastaiada na cintura, proporcional ao seu tama- A meninada ficava atônita diante de homens domando a for-
nho. Mediante aquela prova concreta de autoridade, ninguém ça bruta, com igual brutalidade. Tudo ali na Cascalho, o bicho
questionava a arbitragem. Quem teve o prazer de assistir aos imobilizado levando uma machadada no cachaço ou um tirão
sensacionais jogos do Fluminense de Uibaí, com Chiquinho de rifle bem no meio da testa.
de Jaime no gol, Sinozinho, João de Odetina, Quinquinha no Subindo a rua, a partir do Curral da Matança, ao lado da
ataque e Chiquinho de Paulo zagueirão, principalmente aos casa de Deblande havia o chiqueiro de Verneú, um criatório
treinos, sabe do que eu estou falando. Creio que Deblandão só grande que misturava caprinos, ovinos e porcos de raças va-
atuava nos treinos. riadas: Duroc, Piau, Baé, Beradeiro. O cheiro não era dos mais
Desculpem-me a irresistível digressão, estava falando de agradáveis, porém, em manhã de venda e capa de porco era di-
tamboretes. Pois bem, quem não quisesse os tamboretes de vertido ficar trepado na cerca de sisal vendo os homens estaba-
Deblande, poderia encomendá-los em Leno Sanfoneiro, mais nados atrás dos bichos. João-Capa-Porca afiando o canivete e
embaixo, próximo à casa de Domingo Dodô, este, um maluco os gritos do suíno sendo emasculado ou esterilizado. O porco
que descia a Cascalho com uma bicicleta barra circular a toda sem bagos saía meio envergonhado e a porca sem ovários meio
velocidade, atravessando tudo quanto é batume de mato, indo esguia e acanhada. Na pesagem, havia cada porcona de quinze
parar na porta da casa de Leno, com os dois pneus furados, arrobas desafiando os pesos da balança que era de se admirar.
cravejados de espinhos de malva de garrote. Era uma diversão Hoje, a travessa que liga a Cascalho àquela construção faraôni-
meio sem lógica, mas maluquice dispensa lógica. Voltando no- ca inacabada, que dizem ser de um ex-padre, ocupa exatamente
vamente aos tamboretes, Leno, além de fabricar esses impor- parte do espaço do antigo Chiqueiro de Verneú.
tantes utensílios, ainda fazia a fezinha na sanfona, animando Mais acima, muito depois da casa de Dona Nair de Valdi-
uma ou outra farra. vino, onde de manhã cedo se buscava o leite fresquinho saído
Da casa de Dona Maroca dava pra ver quase que fron- da ordenha, quase no meio da Rua do Cascalho, tínhamos o mais
talmente, entre a saída para o Janjão e a entrada para a Vere- generoso pomar de Uibaí, a casa de Dona Mariinha de Leandro,
dinha, a venda de Dona Antônia, mãe de Marinezão, Tineco, com um cercado imenso sortido das mais variadas fruteiras. Na
entre outros. Era uma birosquinha, mistura de venda e bar. casa da bondosa e paciente Dona Mariinha sempre era tempo de

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alguma coisa. Quando não era de manga, era de pinha, quando matéria que talvez mais importuna o povo: o cascalho pedrego-
não tinha pinha, tinha caju ou seriguela ou coco. A meninada so que levanta uma poeira branca e incômoda, à medida que os
se fartava em cima dos pés de manga-mamão, nos pés daquela carros vão passando.
manguinha miúda fiapenta e deliciosa, debaixo dos cajueiros Eis a Rua do Cascalho que também aceita ser chamada
ou atirando pedras nos coqueiros muito altos, em busca de co- de Rua Pé de Galinha, nome inventado por Ri de Valdivino,
cos velados. quando este observou corretamente que a rua se abria como
Para quem achava que a vida não deveria ter muita graça, um pé de galinha: um dedo seguindo em direção ao Mané Jan-
numa rua abandonada como aquela, aviso agora que nem falei jão, outro seguindo para a Veredinha e um último indo rumo à
do parque de vaquejadas que existiu por ali, nem do alarido de Boca D’ água.
carros e cavalos com toda sorte de gente vinda dos povoados
no dia da feira. Nem das manadas bovinas que se encontravam (Abril de 2006)
a caminho do pasto, obrigando os marruás dos rebanhos a en-
cenarem um espetacular duelo de chifres e forças em plena ma-
nhã de primavera. Nem das vacas paridas escorraçando tran-
seuntes desavisados e botando gente nos parapeitos de portas e
janelas; nem em Zé de Nica cantarolando pela rua canções de
Roberto Carlos, alheio a tudo e a todos, ou em Hora é Esta, sau-
doso personagem, entoando diuturnamente seu refrão, como
um relógio cuco:  – A hora é esta!  Ou em seu Genéis, pai de
Dona Zilda e de Dimari, um homem de força descomunal que,
já sexagenário, arrastava Cascalho acima uma árvore seca in-
teira, trazida sabe-se lá de qual distante capoeira, para cortar
no machado diante do ranchinho em que morava; ou no negro
Soizinha, pagodeiro, cheio de manha africana e de superlati-
vos... Figura simpaticíssima. Muito há para se falar sobre aquela
rua de minha infância e adolescência, a única atualmente a con-
tar com juazeiros frondosos a derramar suas sombras frescas
sobre o abafado da tarde.
O nome pomposo de general, o povo rejeitou e fez bem.
Rua que tem vida não merece nome de general, a bem da ver-
dade, nome nenhum que cheire a imposição. Rua que tem vida
se autonomeia. E é isso que acontece, não se vê gente falando
na Rua General Costa e Silva. Prefere-se a metonímia feita da

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DO ACASO AO MISTÉRIO

C omo diria Drummond, nasci em uma cidadezinha qual-


quer. Mas é exatamente nessas cidadezinhas longínquas,
onde o tempo congela os hábitos e as cenas cotidianas repetem-
-se anos a fio, que se escondem os mistérios mais fantásticos.
Acontece que por trás do fixo dos comportamentos quase sem-
pre desabrocha o inédito.
Regularmente volto a minha cidade natal. Quando ao lon-
ge começo a avistar o azul da serra que abriga o vale cruzado
por ruas de casas modestas, eclode em mim um tipo de emoção
motivada por saudosas imagens da infância. Ao chegar, inevita-
velmente saio a perambular pelas ruas da cidade e pelos povoa-
dos, sentindo o sabor do reencontro. Há um povoado em espe-
cial que sempre visitava para ver, no único arruado de casas, o
espetáculo dos flamboyants floridos. Cada casa tinha uma des-
sas frondosas árvores na porta. Com a chegada da primavera, a
rua ficava colorida de lado a lado. Era bonito de se ver. Disse era
e disse bem, pois o inédito aconteceu.
A última visita que fiz ao Povoado da Lagoa foi melancó-
lica. Em frente às casas apenas os tocos dos grandes troncos.
Havia silêncio e desolação. Os flamboyants calaram seu riso
colorido para sempre. Na ponta da rua, já perto do brejo, uma
pilha triste de troncos e toras de madeira jazia silenciosa como
um grande cemitério. Desapontado, parei à porta de uma casa e
perguntei ao senhor que ajustava as bruacas num jegue por que

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Alan Oliveira Machado

derrubaram todas as árvores da rua. O homem olhou-me com


certo desconforto. Respondeu, mesmo assim, que uma cigana
hospedara-se na primeira casa da entrada da rua e, ao partir,
alertara o dono de que a árvore do terreiro dele era maldita, de
que em toda casa com flamboyants à porta iria morrer gente. SOB O SERENO FRIO DO BOQUEIRÃO
E era verdade pura, continuou o lavrador, pois o dono da casa
morreu um mês depois e, passados quinze dias, a vizinha da
segunda casa também descansou das aflições terrenas... Então o
medo da maldição tomou conta do povo e as pessoas passaram

M
de casa em casa cortando as árvores amaldiçoadas.
olambo! Um molambo pintado de ilusões foi o que imagi-
Era inacreditável... Como as pessoas preferem o mistério à
nei, sentado à beira do penhasco com uma caneca de café
coincidência? Parece que a simples imagem da cigana, envolta
entre as mãos. Essa é a cena matutina de quem passou a noite
em presságios e imprecações de oráculo, carregou de medo e
sob o sereno frio do Boqueirão, cá no mais remoto da serra. A
sensações sombrias o mero acaso. O desconforto da rua sem
caneca esquentando as mãos e o café aquecendo o tumulto de
suas alegres árvores pagou o conforto da alma daqueles humil-
pensamentos que não se coadunam. Essa gente da Serra Azul é
des produtores rurais.
mesmo um caso sério. Não sei se choro diante da insignificância
Depois de uma muda peregrinação, tomei o rumo da cidade.
real ou se rio da megalomania disforme.  Um molambo de fogão,
Já em casa, quando o sol começava a se esconder atrás da serra, fui
daqueles bem fedidos, é isso que vislumbro! Um farrapo daqueles
à padaria da esquina buscar os pães do lanche. Ao lado da porta do
de limpar mesa de boteco tirando onda de lenço de odalisca. 
estabelecimento, alguns feixes de lenha: angico, aroeira e canela de
Como a vida pode se resumir a um teatrinho emocional
velho. Quando entrei, uma velha conversava com o padeiro: – O
de algumas dezenas de panacas encravados no pé de uma serra?
senhor num tá usando aquela lenha agourenta, tá? Deus me livre de
Como pode o pensamento não ultrapassar a cerca da vulgarida-
botar um pão assado com o calor daquela coisa na minha boca! A
de, da ânsia diminuta de ser sem ser? O que dizer da imensidão
velha saiu meio desconfiada. Perguntei ao padeiro qual era o pro-
da vida para quem o mundo não transpõe os mexericos da Rua
blema: – Ah, meu filho, comprei uma carga barata de lenha de flam-
Grande? Para quem nutre mitos menores do que a própria exis-
boyant lá da Lagoa, aí o diacho do povo cismou de não comprar mais
tência? E eu que já fui alegre quando não sabia desse comércio
pão aqui comigo. Foi o jeito gastar dinheiro com outra carga. Não sei,
da fantasia, dessa indústria primitiva da farsa: mitos de banca de
mas parece que essa gente não gosta muito do povo da Lagoa. Quem
camelô são mais sadios, pois já sabemos de suas fragilidades e de
vai lá entender gente, né? Agora tô penando com a freguesia! – De
seus defeitos. Mas venci tudo isso, como num rito de passagem,
fato, quem vai lá entender gente! – foi o que respondi ao padeiro.
e hoje nada me dá mais alegria do que saber a verdade, do que
Nem sei se valeria a pena contar-lhe o resto da história.
olhar e enxergar a encenação grosseira.
Aqui, a Serra Azul segue com suas farsas, seus mitos de
(2003)
meia tigela. “O mito é um nada que é tudo”, diria Fernando

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Pessoa! E digo mais: é um nada cheio de sangue humano, cheio


de sonhos e desejos! É tudo para quem teceu esse saco de refe-
rências e o encheu de si e do que o embala. Mas o mito é anêmico
quando a humanidade é mesquinha, quando é casca fragmenta-
da de contradições que não venceram o limbo; quando os sonhos QUEM FOI VICENTE VELOSO
não passam de cochilos entre a cozinha e o banheiro. 
O Pé de Serra com seus mitos bola de sabão: vazios, sem
peso e sem verticalidade. Flutuantes e sem referências que os
sustentem. Ai de quem teve o couro espichado para servir de
mito a essa gente. Os amadores camelôs de mitos não poupam
sacrifícios: tecem heróis que nunca existiram, guerreiros ini-
magináveis e vão fixando em cada eito de orgulho cultivado os
J á falei de mitos por aqui. É hora de desfazer pelo menos um.
Primeiro vou contar a história de Lingala Kembelle. Kembel-
le era um guerreiro banto que foi capturado na costa da Áfri-
piores espantalhos, as fantasias mais disformes. E vão matando ca, em 1793, pelo traficante de escravos Dom Álvares Fonseca.
a sua sede de ilusão, e vão saciando a sua vontade de pregar Trazido para a Bahia, Lingala, ainda no porão do navio por-
peças e de enganar... E vão enchendo o nada de nada e o tudo tuguês, havia se tornado líder de um grupo de 43 indivíduos
vai definhando na pobreza de sempre, no árido da caatinga, no bantos, depois de ter feito o parto de uma princesa do Congo
pedregulho e na garrancheira inóspita de toda vida. E não é integrante de tal grupo e de ter degolado um feitor que entra-
mais do que isso o que vejo daqui da beira deste precipício, com ra no porão para estuprar algumas crianças que integravam o
o sopro frio do amanhecer a dissipar a fumaça quente que se lote de escravos.
evade do café na caneca que me aquece as mãos.  Após chegarem ao Mercado Modelo, na Cidade da Bahia,
Apenas o repentino cheiro misto de imburana e caatinga- no mês de setembro do ano de 1793 de Nosso Senhor, os 43 ne-
-de-porco distrai o meu pensamento desses sentimentos tristes gros integrantes do grupo de Lingala Kembelle foram vendidos,
que me acodem nesta manhã de maio à beira de um penhasco junto com ele e mais outros que formavam um lote de 61 escra-
no boqueirão da Serra Azul. E o molambo vai se desfazendo aos vos, ao rico sobrinho de Belchior Dias Moreira, dono de minas
poucos em meu interior, como as folhas amareladas do imbu- de ouro nas lavras da Vila de Santo Antônio de  Jacobina. Nas
zeiro, lá embaixo, caindo, tocadas pela brisa da manhã.   minas, em situação degradante, no ano de 1797, Lingala liderou
uma revolta chamada Revolta da Lama Branca. Os negros do
(08-05-10) seu bando, cobertos da lama branca na qual ficavam atolados
o dia inteiro, no interior das minas, atacaram os sentinelas e
fizeram o feitor-mor de refém. A revolta só não chegou à Casa-
-grande do sobrinho de Belchior, porque um negro de dentro
da cozinha, de nome Yahlew Ngunda, que servia a ração na
senzala e nas minas e atendia pelo nome português de  Vicente

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Veloso, instigado por um dos sentinelas ligados ao feitor, ao le-


var a ração aos amotinados, enfiou um punhal enferrujado nas
costas de Lingala, atingindo-lhe mortalmente o coração.
Na verdade, o negro Vicente não era ingênuo. Relatos de den-
tro da própria senzala, após a revolta ser debelada com o extermí- A LIBERDADE PELA SERVIDÃO
nio de dezenove africanos do grupo de Lingala, abatidos a tiros de
mosquete, confirmam que Vicente Veloso (parece que ele detesta-
va o nome de origem, Yahlew Ngunda)  havia negociado com os
homens do feitor o assassinato do líder  Lingala Kembelle em troca
de um jegue, uma capanga com alguns nacos de carne seca, uma
rapadura, uma cabaça de água e um sabre meio desgastado.
No trato, o feitor diria ao sobrinho de Belchior que o ne- E ra um tempo em que naquela boca de grota homens viviam
como propriedades dos outros. Os da Casa-grande conta-
vam as demais almas como posses e exigiam delas a servidão
gro da cozinha havia sido assassinado na revolta dos escravos
das minas, para que, por fim, Vicente Veloso  caísse  fora com dos animais domésticos e a docilidade do respeito às cercas de
sua liberdade conseguida a troco do banho de sangue dos de arame. Eis que Negro Dimas destoava do lote doméstico por
sua própria etnia. Foi esse Vicente, egoísta, traidor e negador certo brilho que trazia nos olhos e pelo empenho obsessivo em
da própria raça, que se embrenhou na caatinga, chegando ao juntar contos de réis para pagar a alforria. Negro afoito e cheio
boqueirão da Canabrava, atravessando-o, para mais tarde dar de picardia, com franjas de altivez descendo da personalidade
notícias daquelas terras de águas frescas a um tal Venceslau Ma- e esvoaçando entre os iguais como um chamado de liderança e
chado,  lá para as bandas do Assuruá. um convite ao perigo da liberdade, o sujeito angariava alguma
Não há heroísmo algum, por parte de Vicente Veloso, no bem-querência entre os mais arredios à resignação.
que sobrou nos registros embolorados e fragmentados dos au- Mas a busca da alforria em nada se associava com o nobre
tos de um inquérito feito à época a pedido do sobrinho de Bel- desejo de liberdade que se supunha ser o motivo do brilho às
chior. O que consta é que o dono das minas, além do prejuí- vezes inflamado do negrume grande de seus olhos. O sujeito
zo de dezenove escravos novos e sadios (no total 21, contando queria ser mesmo era coroné, queria ser gente naquele jeito
com o negro fujão e com o líder assassinado), estava descon- torto de achar que ser gente é ser coroné. E essa ânsia soberba
fiado de que o feitor e o administrador das minas o estavam corroía a alma domesticada do negro e o fazia vacilar na tarefa
roubando e de que toda aquela revolta tinha sido insuflada para sofrida de juntar níqueis infinitamente até alcançar as dezenas
facilitar o desvio de uma quantidade razoável de ouro ainda não de milhares de réis necessários à aquisição do certificado de
contabilizado. O dono das minas pretendia esclarecer o ocorri- sua independência. Com frequência, não resistia à fraqueza
do em suas posses para poder condenar seu administrador e o de distribuir suas moedas sofridas a um ou outro do bando de
feitor, forçando-os a devolver o ouro roubado. iguais para que estes fingissem ser ele alguém que nunca fora.
E aqui e acolá pagava para dar uma cipoada num comparsa,
(09-06-2010) financiava o direito de desferir uns bons cascudos em algum

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Alan Oliveira Machado

moleque ávido por trocados, de modo que as economias da


alforria nunca atingiam o valor final. E de precipitação em
precipitação seguia Negro Dimas no contraditório de querer
ser algo que não era e de sabotar o projeto de libertação que no
mínimo poderia representar a possibilidade de ele pelo menos OS CAÇADORES DE MODÃO
ser ele mesmo.
Num despropósito além da conta, o negro se rendeu a uma
bajulação severa e doentia aos sinhozinhos da Casa-grande. E
aquele brilho dos olhos já não chamava tanta atenção quanto
a curva exageradamente acentuada na coluna e a beijação de
mão e os salamaleques e loas ufanáticas dedicadas à casta que
se portava como dona de tudo. Nessa toada, Dimas perdeu o L embro-me de que na década de 1980 surgiu um, por assim
dizer, movimento de juventude bastante curioso em Uibaí: a
caça aos “modes”. Não houve canabrabeiro com hormônio cor-
prumo a ponto de os próprios iguais se retarem com aquele
autoengano desastrado que fundia miséria existencial e delírio rendo nas veias que não participasse com alguma assiduidade
de grandeza... Tudo, tudo enfronhado na mais triste e abjeta da cruzada de combate ao uso do mode. Deixo logo claro que
servidão. E o negro, depois daquilo, pegou a delirar e a dizer esse fenômeno, a meu ver, se restringiu à urbe, não se estendeu,
que era político e a fazer movimento social, sempre sob o por conseguinte, ao município, felizmente.
olhar debochado e descrente daqueles que o controlavam, O mode é um vocábulo corrente em Uibaí, que muitas ve-
pendurados que estavam nas fraquezas do negro, inutilizando zes funciona como elemento interrogativo (advérbio interro-
qualquer efeito subversivo que porventura pudesse brotar de gativo):  Mode que tu num ganhou?  Como indicador de causa
seus arroubos. (conjunção subordinativa causal):  Não teve festa mode a chu-
E foi com uma mistura de surpresa e desprezo que muitos va! Outras vezes, como mera preposição: Olha o menino mode
começaram a bradar pelas ruas pedregosas e irregulares do o cachorro não morder! Não só o mode, mas o pissuir, o dispois,
arraial: – Vejam que bonito, Negro Dimas prestando serviços à o muntcho, dentre uma série de termos ainda em uso na Ca-
Casa-grande! Negro Dimas disse que não ia se envolver com nabrava, são remanescentes do Português falado no Brasil-
a política na Fazenda Boqueirão da Grota, botando panca de -Colônia. Muitos desses termos foram preservados em alguns
coroné, mas o Sinhorzim pegou o negro pela orelha e botou pra falares locais do País, devido ao isolamento de que gozavam
subir no palanque. Isso é o que tão dizendo de um lado, mas certos lugarejos, com relação aos grandes centros. Graças a es-
de outro tão falando que Negro Dimas fez foi pegar os mirréis ses rincões do País, que mantiveram vivas algumas marcas do
que estava guardando para a alforria e pagou para subir no falar colonial, é que a Universidade de São Paulo, unida a outros
palanque. Alimentando a fantasia de que também era coroné, centros de pesquisa, vem conseguindo fazer a reconstituição do
Negro Dimas trocou a alforria pela servidão. Português falado no Brasil-Colônia.
Não tenho certeza quanto à origem do movimento de
(03-2008) combate ao  mode. Tenho para mim que, influenciado pelo

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

convívio com a variação linguística da capital e pela recente por outro, era uma versão agressiva do fenômeno de atualiza-
entrada no mundo educacional da grande urbe, Celito levou ção da língua, que, no caso, deveria ir sendo estabelecido, não
esse batismo civilizador para o Pé da Serra Azul. Era um escár- a troco de pressão e zombaria, mas paulatinamente, com a re-
nio atrás do outro. Na Rua Grande, diariamente se via Merica novação dos falantes, pela convivência com outras variantes do
gritar para Celito do outro lado, na esquina de Diniz:- Acabei falar brasileiro e por intensas interferências culturais de ordens
de pegar um modão aqui! Aí a molecada corria em direção a diversas. É isso, a língua muda com o tempo, e ainda bem que a
Merica para comentar e dar risadas do modão que Gilo, Ze- gente também muda. Hoje, por exemplo, creio que, como eu, os
zim, Luis Binha, Maria de Alite ou qualquer outro que fosse colegas perseguidores do modão sentem certo prazer em ouvir
soltara, numa infeliz distração. Infeliz, porque falar um mode uma sequência de mode brotar daquela forma gostosa, simples e
tornara-se crime punido com pesada gozação de modo que as natural que nosso povo tem de falar.
pessoas afetadas pelos pegadores de modão vigiavam a pró- Enquanto ponho fim a esta curta ponta de memória, fico
pria fala o tempo todo. pensando no que a juventude anda aprontando nos tempos de
Eu fazia parte da cruzada do modão e regularmente esta- agora em Uibaí. Será que são tão inocentes quanto nós fomos?
va junto com a turma infernizando a vida dos conterrâneos.
Uma vez, Pichiro (irmão de Celito) chegou esbaforido lá na (03-10-06)
casa de Mariinha de Leandro, onde a turma se reunia para
jogar aquele jogo com apenas uma trave, no qual Konan e Ti-
nho eram campeões, só para dizer que presenciara Domingão
soltar logo foi uma arrouba de modão. Todo mundo queria
pegar um modão de tal forma que a brincadeira passou a ficar
grosseira e desrespeitosa. Até os velhos estavam sendo perse-
guidos pela turma do modão. Com eles, a coisa era demasiado
indelicada. Mas menino não leva muito em conta esses “deta-
lhes”. Na mesma época dessa inquisição linguística, Tinho de
Mariinha, que externava certo desagrado com a perseguição
dos modes, inventou uma moda de colocar a sílaba “pi” antes
de tudo quanto é nome próprio. Era um tal de PiMérica pra
cá, PiÁlan pra lá, PiCélito pra acolá... Ele só recuou de empre-
gar o tal “pi” em Konan, nosso musculoso amigo. Também,
ficava desajeitado chamar o cara de PiKonan.
Olhando à distância, com a maturidade trazida pelo tempo,
diria que toda aquela implicância com o mode tinha dois lados:
por um, não passava mesmo de algazarra típica de adolescentes;

32 33
BAR CULTURAL

E sta é uma daquelas ideias que a gente se sentiria feliz se


alguém copiasse e saísse à frente para realizá-la. Imaginem
comigo a existência de um singelo imóvel na Praça Velha ou
Nova de Uibaí com o nome Bar Cultural, acompanhado das
subscrições: Aqui você pode encher a cara de conhecimento!
Aqui você pode indagar o quanto quiser sobre a existência, sobre
o mundo, a vida, o amor, a arte... E não precisa pagar a conta!
O bar seria tradicional, quer dizer, com um vão cheio de
mesas, tendo ao fundo o balcão. Por trás do balcão, o atendente
pronto a servir os frequentadores. Nas paredes, no lugar de
cartazes de loiras oferecendo cervejas, teríamos cartazes de
escritores e escritoras das mais distintas lavras. Nas prateleiras,
em vez de bebidas variadas, livros e mais livros. Livros, livros,
livros... De todos os calibres! Literatura: poesia, romances, teorias
literárias; Filosofia em variadas correntes; Política; Antropologia,
Psicologia; Psicanálise; Linguística; Semiótica e demais ciências
humanas; curiosidades, cultura mundial, e mais e mais e mais...
Então, me acompanhem, caros leitores, nessa viagem
imaginária: entra um velho freguês no bar e o atendente corre
ao encontro dele:
– Vai de que hoje, seu Gleissom?
– Hoje não estou bem, quero encher a cara de Fernando
Pessoa. Traga aí uma dose bem grande do Livro do desassossego e
uma porçãozinha de Cioran para tirar o gosto!

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

Aí o atendente, como todo bom barman, dá aquela sugestão maluco! Sai pra lá com sua ambiguidade machadiana! Liliputiano
eivada de experiência: duma figa! Não suporto esse seu bovarismo! Trator cartesiano!
– Pelo seu estado eu recomendaria uma talagada sarada Niilista! Balzaquiana indigesta! Desapareça com esse caráter
de O guardador de rebanhos! E Cioran já foi servido na mesa macunaímico! Isso é um delírio foucaultiano, uma fraqueza pós-
de dona Daiane, ao lado. Temos como alternativa  As dores estruturalista! Uma frigidez positivista! Filhote de Maquiavel,
do mundo, de Schopenhauer, que está desocupado ali na terrorista bakuniniano! Macaquinho pós-moderno, pereba
mesa em que está a menina Popoca. Se não for do agrado, o edipiana! Isso é delírio interpretativo... Seria divertido, sim,
senhor poderá escolher aqui no nosso cardápio algum escritor porque as pessoas certamente não seriam mais as mesmas
ultrarromântico como acompanhamento. e toda a hostilidade não passaria obviamente de um jogo: o
No Bar Cultural seria assim: no dia em que o Clube gozoso jogo do saber, do saber-se. O ensaio sobre a cegueira.
Canabrava anunciasse uma Noite de Seresta, o bar anunciaria O ir do verme ao ver-me, o transver, o desver... Seria um sonho
uma Noite de Machado de Assis. Na semana em que o “Voz do muito bom.
Povo” anunciasse o Baile da Saudade, o bar anunciaria o Corpo Pois bem, amigos leitores, antes de escrever este texto havia
de baile, de Guimarães Rosa. Na medida em que nos outros bares tomado uma boa dose de Eça de Queiroz. Tinha consumido
se toma uma ordinária Seleta, no Bar Cultural se consumiria a avidamente o conto José Matias. Sei que não tem muito a ver
melhor Seleta de Drummond, a Seleta de Bandeira, a de Rubem (ou teria?), mas experimentem. Se for convincente a gente
Braga, a de Mário, a de Oswald, a de Manoel de Barros, a de coloca no cardápio do Bar Cultural.
Leminski, entre muitas opções. Lá estaria sempre acessível a
melhor safra de Cecília, Clarice, Raquel, Lígia, Ana Cristina (2006)
César... Isso sem contar com as Raízes locais: Pita, Enoch,
Valmir, Bebeto, Pedro Lopes e aqueles miseráveis do Boca do
Inferno, entre tantos.
Esse bar seria a salvação? Claro que não, mas muita gente
sairia  Em busca do tempo perdido,  ao descobrir que Proust
cura qualquer dor da alma, que Cecília faz flutuar, que Manoel
de Barros nos recriancifica. Que Dostoiévski limpa mais o
espírito do que uma garrafa de Chave de Ouro. Aliás, chaves de
ouro só estariam mesmo à disposição nos sonetos parnasianos
oferecidos de brinde aos frequentadores da casa.
Aí, todo dia teríamos o bar cheio. O enleio, o eu leio. As
mesas propagando doces e barulhentas indagas; e recitais e
happenings e delírios e risadas e suspiros... Nos arranca-rabos,
muitos palavrões e quão divertidos de se ouvir: Seu sartreano

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BRIGA DE COMÉRCIO

C ontam que lá pras bandas do Sobreira só existe um boteco. O


incutimento dos pés-de-cana e até dos mais sérios homens
do povoado é o bar do Quinca. Quinca, sempre atencioso,
recebe diariamente seus fregueses: uns a caminho da roça,
lascam uma pinguinha nos peitos pra espantar o sono e ganhar
disposição; outros, em retorno, quebram um venenozinho pra
abrir o apetite e espantar o cansaço.
Falam as más línguas que Priquitim anda tocando uma
roça nas imediações. Dizem ainda os que não têm mais o que
fazer que Priquitim bate perna diariamente pro bar do Quinca.
E, desocupados de tudo, esses infelizes, que vivem dando conta
da vida alheia, espalharam que Priquitim nem não acha ruim
atravessar o asfalto pra saciar suas inquietações etílicas. O pro-
blema é quebrar carreiro de volta com o sol sapecando o couro
e o álcool fermentando nas veias.
É também narração de fofoqueiros que Priquitim, cansado
de secar canela, indo pro Quinca, deu na cabeça que o Sobreira
precisava de um boteco concorrente. Aí, no gozo da conveniên-
cia, montou estabelecimento na própria roça, beirando o asfalto
e abriu letreiro: Bar do Priquitim. O empreendimento dividiu a
freguesia do Quinca e gerou acirrada disputa publicitária entre os
dois comerciantes. Priquitim, sujeito pacífico, tratou de baixar os
ânimos, de selar a paz definitiva. Mandou Nino Lima pintar uma
grande placa na porta do bar, com os seguintes dizeres:

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Alan Oliveira Machado

SE NÃO QUISER TOMAR NO PRIQUITIM, VAI TOMAR


NO QUINCA!

(10-04-06)
A VIDA NA AREIA

Q uando cheguei a Canabrava, em 1980, fui morar na Rua


São Geraldo, uma rua arenosa e desassistida, onde vi
as primeiras personagens nordestinas com as quais cruzaria
cotidianamente.  Entre essas personagens havia quatro bem
marcantes: o mais próximo era um senhor de nome Joaquim
Branco cujo modo de falar manso, alongando as vogais, des-
pertava   atenção. Seu Joaquim era um senhor humilde, um
camponês que conseguiria um pouco depois colocar pelo
menos dois filhos na Universidade Federal: um rapaz e uma
moça. Naquela ponta de rua isso significava mais que uma
grande vitória.  Outras duas personagens moravam um pou-
co abaixo. A esquina à direita de nossa casa era habitada por
um casal que vivia em uma taperinha de taipa e telhado de
palha. O homem atendia pela alcunha de Maroto e a esposa
chamava-se Zefinha. Ambos formavam um harmonioso casal
idoso. Todas as manhãs, a parelha solitária de velhos negros
saía tocando um jegue rumo à serra. O homem à frente pu-
xando o animal e a esposa atrás com uma vara de malva na
mão, tirando a manha do bicho aqui e acolá.
A esquina esquerda da rua dava no barreirão, ao lado do
cemitério velho. O barreiro era nada mais que um imenso e fun-
do buraco aberto pela extração de barro para fazer tijolos. Passe-
ando ali pela beirada, ao longe eu avistava saindo de casa o quarto
personagem, o mais intrigante: uma senhora velha que também

40 41
Alan Oliveira Machado

morava em um casebre de enchimento com cobertura de palha.


Era uma mulher franzina que vestia calças masculinas e enrolava
um pano encardido na cabeça parecendo às vezes um turbante.
No início das tardes de segunda-feira, invariavelmente eu a en-
contrava na praça catando grãos crus de feijão perdidos pela PELA JANELA
areia do vão onde se estabeleciam os vendedores desse alimento
tão apreciado pelos sertanejos. Era o retrato da pobreza aquela
sertaneja esquálida, acocorada ao relento com as mãos reviran-
do a areia suja da feira, perscrutando cada revirada em busca

A
de minguados feijões que caíram das sacas no fervilhar da ma-
bro a janela para contemplar o mundo. Um movimen-
nhã de feira e que se perderam no areal da praça. Mas parece
to mesquinho engana o desejo da gente da praça. Duas
que essa era a forma como essa nordestina vencia a fome. Coisa
moças conversam sob uma algaroba. Alguns meninos sobem
triste de se ver. 
a ladeira do Alto da Estrela, arrastando um cachorro magro.
Dura como aroeira, nunca a vi pedindo esmolas, embo-
De repente, uma revoada de poeira levanta-se do jardim árido
ra fosse uma possibilidade. Por muito tempo, presenciei essa
no vão central. As moças cobrem os rostos e tentam conter os
senhora, da qual nem me lembro o nome, ciscando pela praça
cabelos desgrenhados. Os meninos cessam a subida para alí-
a realizar seu ritual das segundas-feiras. Quando ela morreu,
vio do vira-lata insolente. Contemplam o pé-de-vento fazendo
eu há muito já havia me despedido da Rua São Geraldo, mas
uma espiral de folhas secas. Um bêbado desavisado se perde na
corri ao encontro de notícias. Então, uma senhora gorda que
poeira ao faltar-lhe o equilíbrio necessário na saída do boteco
costumava subir a rua equilibrando uma trouxa, com destino
em frente. Tudo muito, muito estranho no meu coração. Um
à Fonte Grande, me disse que a encontraram morta dentro
aperto... Uma desolação imensa.
do rancho. Disse ainda que causou surpresa nos primeiros
O frescor de juventude que avisto da janela é tíbio e gris.
curiosos a chegar não a serenidade estampada no rosto magro
Nada desbota a melancolia que engole a cena indiferentemen-
da falecida, mas o tanto de latas velhas enferrujadas de todo
te, como o pequeno redemoinho que se abriu no vão da praça
tamanho e qualidade, acumuladas no interior do casebre. As
naquele momento. O bêbado desiste de lutar. Para e abando-
latas formavam uma pilha que tomava todos os cômodos da
na-se ao vento poluído das coisas do chão. O coração em pe-
casa, em alguns pontos chegando a atingir as palhas do teto.
daços descansa protegido no fundo da garrafa que leva nas
(19-06-2010) mãos. O rastro de esperanças aos poucos se apaga atrás do
vulto bambo. Da janela avisto as coisas se recomporem aos
poucos. As moças acenam com um sorriso fresco. Ainda há
pouco, assemelhavam-se a sombras mortas perdidas no  que
parecia decomposição do ambiente. Os meninos determina-
dos arrastam o cachorro magro. Não há finalidade alguma na

42 43
Alan Oliveira Machado

perseverança deles. Apenas têm de ser meninos arrastando um


vira-latas magro ladeira acima. O bêbado encolhe-se pensa-
tivo. Quase fetal, molda-se ao próprio sofrimento depurado
pelo álcool. E fica ali abandonado como qualquer um, per-
dido em suas ilusões, sem saber prestar contas à vida, como O PRIMEIRO SÃO JOÃO,
se fosse necessário.
A GENTE NUNCA ESQUECE
(05-06-2010)

P isei os pés pela primeira vez nas areias da Canabrava em


meados de maio de 1980. Tinha meus onze anos de idade e
fui tocado por duas coisas que me marcaram profundamente.
Chegamos, à noite, à cidade, numa escuridão além da conta.
Na manhã do dia seguinte, foi um espanto olhar para aquela
imensidão de serra, tão alta, bem ali pertinho. Algo emocio-
nante e indescritível para um menino de capital, acostumado
a ver florestas mais nos filmes de Tarzan, nas séries america-
nas Daktari e Mundo Animal e nas caçadas de Pedrinho do Sí-
tio do Pica-pau amarelo. Tinha naquele momento um sonho
começando a se  realizar! Finalmente, empreenderia minhas
aventuras pelas selvas. Meus sonhos de Tarzan e Pedrinho se
realizariam. 
Abandonei todos os apegos citadinos e me enfiei na serra
armando arapuca, indo buscar lenha com Reis de Tereza, fazen-
do piseiro para o Banheirão, Fonte Grande, Fontinha... Era tudo
muito mágico: os cheiros, os sons, as cores, a água limpa e fria
do riacho... As primeiras impressões são as que ficam, não é o
que sempre dizem? 
Não apenas a serra com sua diversidade mexeu com mi-
nha história para sempre, mas o que veio no mês seguinte:
o  São João  uibaiense. De repente, a pracinha estava tomada

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

por barracas de palha de coqueiro e por todos os rituais que coloridas muito bonito. No correr da semana de festa, houvera
ocorrem naqueles dias festivos. “A emenda... Eu vou fazer um ainda casamento de matutos, quadrilhas e brincadeiras, como
engenho... A emenda... De corda de caroá”... Foi a primeira mú- corrida de ovo e quebra-pote. Detalhe: ninguém conseguira pe-
sica que ouvi ao chegar à Praça Velha repleta de alegria. Binga gar o desesperado gato com o dinheiro amarrado no rabo.
na esquina do colégio de Tonico vendendo quebra-queixo, ao Essas duas coisas que fortemente experienciei na primeira
lado da barraca da FBU.  Mais à frente, embaixo de uma gi- fase da minha chegada a Uibaí, a serra e o São João, são as que
gante algaroba (havia duas na praça), um pipoqueiro rodava mais me emocionam quando revolvo a memória. Há uma por-
a manivela enquanto a meninada saboreava o cheiro à espera ção de coisas boas nas fases seguintes: a ida para a escola José
das pipocas quentinhas. de Alencar, como aluno do professor Antônio Maria, a chegada
A coisa mais tocante do São João eram aquelas rodas que ao Colégio Velho no ano seguinte. As aventuras pelo pomar do
as crianças faziam dentro das barracas para dançar forró. Aí um colégio, desafiando a vigilância de Jove. As brincadeiras nos pa-
menino ou menina ia para o centro da roda e chamava alguém redões do colégio. A formação da turma de desenhistas de gibis,
para dançar. Os pares iam-se alternando no centro. E assim se- na qual se destacaram Celito com o gibi do  Homem Relógio,
guia a noite de  São João  para a meninada. Ainda havia certa Dod com o do Águia, Pita com o do Cabeça de Pedra e eu com
inocência. Ali começavam os namoricos, bem bobinhos para o do  Furacão. Cada herói mais estabanado que o outro. Para
os padrões de hoje. Aliás, naquela época, adultos não assedia- terem uma ideia, o Homem Relógio de Celito ganhou superpo-
vam crianças com a intensidade com que fazem na atualidade. deres depois que um relógio grande caiu na cabeça dele. E por
A infância ainda tinha um lugar de infância na sociedade. A aí vai... Mas nada bate a emoção do primeiro contato, das pri-
infância não era tão curta. meiras idas à serra e do primeiro São João!
A primeira vez que entrei em uma roda dessas foi na barra-
ca da CEU. Da música, jamais me esqueço: “São João chegou/ e (01-06-2010)
com ele o meu amor chegou também/Chegou tão sofrido/de amor
perdido/maltratado por alguém”... Foi também a primeira vez
que uma menina me chamou para dançar! Uma garotinha de
língua presa chamada Aline, confirmei depois. Com o andar da
noite ainda vi o negro Tapioca (apelido bem irônico), diante das
desistências de Sirinão e Haroldo, escalando um pau-de-sebo
plantado em frente ao que mais tarde viria ser a atual pada-
ria de Antonhão. Um pouco depois houve um evento chama-
do Pau-de-fitas, organizado por Silvio Velho. Nesse participava
um pessoal mais maduro. Eles iam dançando em torno de um
mastro, segurando fitas coloridas a ele amarradas. Ao final da
dança, o mastro estava todo coberto por um trançado de fitas

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MENINA OFERECIDA

N a Canabrava, existe uma menina bandoleira que vive na


boca do povo. Já até botaram apelido nela: uns a chamam
de Fubuia, outros de Birita e Pinga, mas a brejeira detesta es-
ses apelidos e prefere ser chamada formalmente de Cachaça,
seu nome de batismo. – Mais respeito, seu bando de pé-inchado!
Assim provoca os sujeitos que vivem de boteco em boteco es-
palhando que estão comendo Cachaça. – Por que vocês não vão
trabalhar? – arremata, com um suspeito moralismo indignado.
Cachaça se irrita com a permissividade dos frequentadores de
bar que se metem a difamá-la, mas na verdade ela é muito fu-
leira, vive escanchada em balcão, não sai da praça, não perde
velório nem festa e quando já tá bem concentrada, dana a falar
bestagem: – Ontem, o dono do bar enfiou uma raiz todinha em
mim e eu achei foi bom, chega fiquei macia! – diz ela, mais meti-
da do que rainha do milho em festa de São João.
O povo anda de saco cheio de Cachaça, mas a danada, sem
um pingo de vergonha na cara, insiste em se oferecer para ho-
mens casados, rapazes, mulheres e até crianças. Cachaça pen-
sa que Uibaí é Sodoma e Gomorra pra ela bancar toda essa
esculhambação. Na verdade, Cachaça merece é ser chamada
mesmo de Fofa Olho, de Venenosa, pois é uma diaba malva-
da, que não vale uma rapadura, uma cana roxa. A dita cuja é
amante da vadiagem e se compraz em ver todo mundo ir ter
com ela na alcova, na taberna, no brega ou em qualquer lugar.

49
Alan Oliveira Machado

Prova disso é que pegaram Tarcísio Potão, em plena manhã


de segunda-feira, comendo a ordinária na calçada de Fulo-
sina. Neto Velho, o povo fala que nutria paixão violenta pela
ingrata e acabou abandonado, curtindo uma doença passada
por ela. As mulheres, enciumadas, botaram até apelido nos ho- SÓ SE FOR ROUBADO!
mens que andam atrás dessa desnaturada. Quando passam em
frente a algum bar, vão logo desabafando: – Lá estão os cacha-
ceiros procurando a perdição!
– Essa bicha é perigosa... Tem o coração de pedra! – esse
foi o recado de amante inveterado deixado por Quinca Ga-
lha. Que o diga Lobeira, um dos que volta e meia a agarram
à força e passam um mês comendo. Diria o mesmo Ari, que G uardo comigo a impressão de que os anos oitenta foram o
auge daquela juventude universitária, inclinada ao copo,
que atravessava as férias enxugando umas pelos botecos da
escapou das garras da bicha depois de algumas desilusões, ou
Carlinhos, se não tivesse sido assassinado pelos golpes do su- Canabrava. Volta e meia essa estudantada se reunia em um
focante amor dessa roceira. Mas, entra geração, sai geração, barzinho específico, proseando sobre política, cultura, entre
essa Lílith desvairada, embora já não tenha tanta moral, acaba outras variedades. Os estudantes, uns vindos de Salvador, ou-
fazendo algumas vítimas. O problema é que a danada tem fã- tros de Brasília, formavam uma verdadeira irmandade, com
-clube em toda parte, inclusive em Brasília, o qual não a deixa muita alegria, discussão e praticamente nenhuma desavença.
cair no ostracismo. Com frequência, desce a Uibaí o comboio Houve um final de ano, especialmente, em que estava na
de apreciadores da malvada, doido para comê-la. A barafunda moda roubar galinha pra fazer farra. Fato é que esses jovens
é da pesada: tem neguim que come a maldita em fundo de adotaram tal prática e quase toda noite, lá pelas tantas, a coisa
boteco, em beira de baixão, em cima da serra e outros, ainda, se concretizava. Era assim: a turma se encontrava numa dessas
fazem até grupo para traçar a treiteira. Fiquei sabendo inclusi- biroscas pra tocar violão e comer água, prosear e contar causos,
ve que essa gente tem uma tara muito estranha: eles a andam molhando a palavra e estalando os beiços, segundo alguns. A
comendo com farinha! certa altura, um pouco depois das 23 horas, 32 pingas e algu-
mas dezenas de cervejas, escolhiam a casa da vítima. Em se-
guida, determinavam quem iria sequestrar irreversivelmente
os galináceos e os que preparariam o banquete, a farofada de
feijão verde ou andu. É de se imaginar o cheirinho de coentro
e cebolinha roxa que exalava misturado ao aroma da penosa
devidamente preparada. Isso tudo bem mexido numa bacia de
tamanho razoável, com o grupo em volta comendo, feito tapuia,
bolinhos amassados à mão e resenhando os incidentes e percal-
ços do empreendimento bem-sucedido.

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

Vale dizer que esses exímios ladrões de galinhas assalta- tentando achar o cerebelo... Pato escandalizando... Moça de per-
vam geralmente suas próprias casas. Havia, porém, os que com- nas pro ar... Neguim espojando... Outros catando nica... Pena pra
pravam as aves na feira, preparavam e levavam na noite seguin- tudo quanto é lado... Aí pronto! Serviço terminado. O bando já
te já com o enredo do roubo inventado na cabeça. Sem contar ia saindo com dois patos bem apanhados quando deu de cara
que determinadas mães, escoladas nas habilidades dos filhos, com Dona Maroca escorada na porta dos fundos. Ela, pelo vis-
sutilmente deixavam as galinhas amarradas pra facilitar o furto. to, assistia há algum tempo à peleja dos meninos. E bota peleja
Vai que um dia eu, menino curioso, sempre na cola da nisso. A cambada nem percebeu que havia amanhecido. Fora eu,
novidade que eram os estudantes, testemunhei uma empreita que permanecia como espectador, acompanhando o desenro-
desastrada. Lá pelas três da madruga, no calor da algazarra, lar da cena, o conjunto de bebuns lembrava a tela Retirantes, de
neguim já cantando serenô eu caio, eu caiô, mais em espanhol Portinari: todos sujos e molambentos. Meu irmão na frente, já
que em português, como se diz, com bolas de gude debaixo meio descachimbado, soltou o pato que trazia debaixo do braço.
da língua, um parente meu, cheio até a tampa, intimou o ban- Aí minha mãe interveio, com um esboço de sorriso compreensi-
do a roubar uns patos lá em casa. A intenção era comê-los no vo: – Leva o pato, meu filho! No que meu irmão, mal disfarçando
Banheirão. Ali num canto, apertando os olhos pra espantar o as involuntárias contrações diafragmáticas, respondeu com uma
sono, eu ouvia o planejamento da turma numa linguagem meio ponta de indignação etílica: – Agora não serve mais, só prestava
babelesca, ao que parece, bem entendida por quem encontrou se fosse roubado!
a molhação. Moleque. Ignorado. Um cisco... Ainda assim, por
trás da leve cortina de sono, eu não ignorava o belo sorriso ma-
roto de uma certa Lucinha.
Não durou muito, a cambada desceu a Cascalho, chutando
pedras, equilibrando-se entre soluços, risos bacantes e muita
indaga. Lá atrás, um sujeito da CEU, estreitando a rua, gritava
com voz mole: – Bebo porque é líquido! Mais adiante, outro da
Ceubras, trocando as pernas, respondia com dionisíaca entona-
ção: – Se fosse sólido eu comeria! O barulho, se brincar, dava pra
ouvir na Lagoinha. É assim mesmo, bêbado só se dá pela neces-
sidade do silêncio quando já acordou meio mundo. Nisso foi
que, chegando à porta lá de casa, veio uma chuva de – Psiu, fala
baixo! seguido de risinhos cujo baixo volume só existia mesmo
na cabeça daquelas almas recendendo a álcool.
Na ilusão do silêncio, entraram peitando tudo. E foi um fu-
zuê danado pra pegar esses patos. Bêbado enganchado em arame
de cerca. Um tal de pega-solta... Cai-aqui-tropeça-acolá... Uns

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A SOLIDÃO
CARREGAVA UM LOUCO

H oje, em minha biblioteca, enquanto organizava alguns


papéis velhos, encontrei uma fotografia amarelada, com
data do final dos anos setenta. Nela, rompendo o pedregulho
rústico da rua nova de Uibaí, uma figura enigmática, Chico
de Elói: franzino, careca, cabisbaixo, descalço e maltrapilho,
braços ao longo do corpo e, como de costume, dedos, indica-
dor e médio, tensos e entrecruzados, como quem segurava um
cigarro imaginário.
Fitando a foto, não evitei o transe romântico que nos faz
invadir as memórias da infância, tendo por desfrute uma suave
sensação de prazer. Mas, desembarcando do devaneio românti-
co rumo à objetividade realista, a fotografia fez-me refletir so-
bre a diferença, porque aquela personagem cuja imagem ficou
registrada no amarelado do papel era uma diferença e como di-
ferença certamente muito deve ter perturbado a nossa lineari-
dade lógica: rica em estupidez e pobre na percepção do mundo.
Aquele “doido”, como muitos que caminham solitários – ainda
hoje – pelas ruas das cidades de nosso país, um dia, pela luz de
seus gestos, deixou em crise os nossos valores, pôs-nos a con-
cluir que o trilho que seguimos, o vagão no qual embarcamos
a nossa existência, não passa por todos os lugares, traça apenas
uma reta insossa, uma monótona trajetória. Provou-nos que
ser gente ultrapassa as cercas da razão. Aquele “louco”, como

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Alan Oliveira Machado

muitos, agrediu a nossa frágil ilusão de ordem. Suas atitudes


descascaram o verniz da nossa razão, fazendo-nos sofrer a vio-
lência de existir.
Travestimos, então, a dor de saber que a vida é absurda
em ódio contra o “louco”, contra a diferença: ou o colocaríamos ADENDO
no trilho ou o mataríamos. Ou o isolaríamos ou simplesmente
o encaixaríamos na locomotiva da nossa existência como uma
peça inútil, ridícula e bufa. Como inúmeros outros, nisso se
transformou talvez aquela imagem triste e solitária da fotogra-
fia: no objeto do nosso medo, do nosso ódio transformado em
sarcasmo, em deboche. Por essa via, domesticamos a diferença
de modo a não mais nos sentirmos ofendidos por ela. Daí em
C hico de Elói era meu primo. Foi espreitando a solidão de
Chico que me descobri tão só quanto ele; que descobri não
existirem pessoas menos sós do que nós dois; que percebi a ne-
diante, todo ato do “louco” que nos enchia de cólera passou a cessidade de amar os “indivíduos” no que eles têm de singular,
nos fazer sorrir. Toda pedrada que ele dava em nosso espelho independente do atropelo que o outro provoca em mim coti-
racional gerava o tolerante deixa pra lá, fulano é louco! dianamente. O infortúnio de Chico foi fazer pouco da ilusão
Porém, por mais que tentemos ignorar, “louco” é tudo aqui- coletiva em que vivemos (não de propósito, creio) ou talvez o
lo que somos e negamos ser. É tudo aquilo de proibido que se infortúnio nosso seja supervalorizar o que ele desprezou.
passa diariamente no recôndito de nossas ações e pensamentos. Uma vez, encontrei Chico no Beco de Braulino e ele me
Todos sabemos disso e quanto mais sabemos, mais repelimos o olhou com os olhos grandes e inquisitivos, típicos da nossa
“louco”, mais o afastamos, mais alargamos o fosso da diferença família, e disse, talvez me reconhecendo como um dos seus:
dentro de nós. Aqui, vale dizer: esquizofrênico é o indivíduo “Ontem eu vi um homem todo verde... O cabelo era verde, a
fendido, dividido. Aquele que vive em um mundo “real” e se pele era verde; quando ele sorriu, o sorriso era verde, então
comporta como se estivesse em outro, ou seja, todos nós somos ele falou e a fala era verde e ele caminhou e o caminhado era
“loucos”, “loucos” segregando “loucos” e quem não for “louco” verde...” Passei muito tempo tentando imaginar esse homem
que atire a primeira pedra! que Chico teria encontrado.
Outra vez, ele disse que viu uma cobra se engolindo
pelo próprio rabo até desaparecer completamente. Achei
intrigante a imagem. Muitos anos depois, encontrei em um
livro de Carl G. Jung a figura simbólica do uróboros, uma
serpente mordendo a própria cauda, se não me engano,
símbolo ao mesmo tempo da completude, da perfeição e do
infinito... Então, liguei as duas histórias e passei a imaginar
que Chico tinha um desejo muito grande de harmonia e de

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Alan Oliveira Machado

regularidade, coisas que o nosso mundo não lhe oferecia...


No homem tudo era verde... Na cobra, a autossuficiência
entrópica...

(2005) TUMASA É OSSO!

N a entrada da Rua do Cascalho, algumas casas adiante,


abre-se um vão onde podemos contemplar o mais antigo
prédio escolar da Canabrava. Essa construção esteve aban-
donada por muitos anos na década de oitenta e foi ocupada
algumas vezes por necessitados. Uma ou outra família carente
de moradia alojou-se nos cômodos decrépitos do velho estabe-
lecimento escolar e garantiu teto aos filhos até situar-se melhor
na vida. Outras vezes, a escola abandonada serviu a indigentes
e loucos de rua.
O mais folclórico doido de rua que habitou as dependên-
cias da escola desativada foi Tumasa. Uma senhorinha já idosa,
de cabelos grisalhos e tronco meio arqueado que a meninada
atormentava diariamente chamando de Tumasa é osso. Não sei
o motivo exato do apelido, mas a velhinha destemperada subia
nas tamancas quando algum moleque gritava próximo ao pré-
dio tal apelido. E não queiram saber o porte dos palavrões cabe-
ludos, das maldições atiçadas por Tumasa nos que se atreviam
a importuná-la. Quem de longe via a expressão frágil, amargu-
rada e corroída pela loucura daquela idosa indigente poderia
imaginar um monte de coisas, mas seus xingamentos ultrapas-
savam nossa pobre imaginação.
Bagaceira mesmo ocorria quando alguém se dirigia a
Tumasa, nas raras vezes em que ela deixava o cômodo deca-
dente do prédio para angariar alguma coisa na rua, e dizia-

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

-lhe que estavam roubando o ouro dela lá no prédio. A velha fossem nossos brinquedos dos quais abusávamos sem perder a
virava o satanás, soltava a língua para cima do insolente e se noção dos limites que nos separavam deles e sem saber também
o gozador vacilasse era capaz de tomar uma feroz cabada de que fim levavam. Para mim, Tumasa e Bira Doido sumiram mis-
vassoura na cabeça. teriosamente do mesmo jeito que apareceram.
– Filho da puta! Desgraçado! Vai entrar dentro do cu de tua Nita Doida, de quem me lembro agora, também sumiu das
mãe satanás excomungado! Eu te mato e te mando para o fogo do ruas. Mas antes, desenhou, riscando a areia com uma vareta de
inferno se tu roubar meu ouro 24, peste das profundas! malva, sua casa imaginária na frente do prédio velho da Casca-
Era mais ou menos assim que a velhinha saltava nos mo- lho. Nessa casa que não passava de riscos no chão obrigava Ma-
leques atrevidos. E xingava e provocava e praguejava até não noel Guimário, seu filho de dois ou três anos, a não ultrapassar
mais poder. Às vezes, passava o dia todo xingando por causa de os limites. Impedia a desafortunada criança de pisar nas linhas
alguma insolência de que fora vitima pela manhã. riscadas no chão como se ela estivesse subindo nas paredes da
Tumasa era alvo de brincadeira de adolescentes, adultos casa. E Nita ficou por ali à mercê da intolerância e do abandono
e da molecada em geral. Não apenas ela, mas quase todos os com uma criança inocente... Coisa difícil de entender. Como a
desajustados sociais com algum distúrbio mental que peram- sociedade não se deu conta de tal situação absurda? E, ao que
bulavam pelas ruas da Canabrava. Era degradante a situação parece, todos sentiam o de sempre: simpatia, pena e desprezo
humana dessas pessoas. No fundo, foram abandonadas por fa- por aquela mulher sentada na areia ao lado de uma trouxa suja
miliares, amigos e conhecidos. Foram forçadas a encarar a as- e trapenta, com os cabelos desgrenhados e o semblante trans-
pereza das noites dormidas na rua e das mais básicas privações. tornado, conversando coisas inaudíveis, ensimesmada, dando-
Tive a oportunidade de testemunhar a existência de alguns -se conta do mundo real nos raros momentos em que tinha
desses excluídos. Alguns da família mesmo, como Chico de de ralhar com o negrinho Manoel Guimário. E não poucos se
Elói, Firmício, João Tolo e outros que nunca soube exatamente furtavam ao prazer sádico de amolar a paciência de Nita, ar-
de onde vieram, como Tumasa, Cirço e Bira Doido, que dormia rancando-a de seu mundo imaginário, vendo-a se desfazer em
dentro de um carro velho dos anos 50. Se não me engano um ataques agressivos, gritos e palavrões.
Opel Olympia Rekord verde, abandonado na porta de Dona Pe- Tumasa, Nita, Bira, Cirço, Tó, Firmício, João Tolo e Chico
tronila, no Largo do Cruzeiro. de Elói, entre tantos que se foram, mostraram-nos do que so-
Todas essas almas gauches, cada uma com sua característi- mos capazes. Temos tudo do bom e do pior e não conseguimos
ca marcante, acabavam adotadas pelo povo e não deixavam de sempre dominar bem as nossas escolhas, se é que de fato con-
ser vistas com certa compaixão ou simpatia pela maioria da po- seguimos escolher.
pulação. Porém, poucos paravam para pensar particularmente
na condição de abandono, no deus-dará em que se resumiam (01- 2011)
suas vidas. No fundo, sempre reinou uma estranha relação de
amor e repulsa por esses entes humanos, uma relação pautada
pela mistura de sadismo, afeto, simpatia e medo. É como se eles

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ALGUMA LUZ PARA O ANO NOVO

–A i dela, morta e viva na caçapa! Esse foi o grito de emoção


quando viu a bola sete encalacrada na caçapa da mesa
de sinuca. Estava pela bola sete! Na vida e no jogo! Nem sabia
se ia voltar para casa. Então gritou para o negro suarento atrás
do balcão: – Traz mais uma aí que eu quero ver essa infeliz furar
a estopa! Ou ela morre ou eu morro! Ouvindo essa, o negro dono
do boteco não perdeu a chance: – Não morre não infeliz, teu
pendura tá comprido aqui!  (E deu uma gaitada). Meu estoque
de quebrafacão e jatobá já   foi pro saco! Trata de matar essa
xibunga dessa bola! E toma a vitória como se fosse um recomeço
na vida! Nisso entrou um meninote no bar:  – Seu Manilim, mãe
mandou buscar um litro de querosene! Depois pai paga! 
O cabra que mirava a bola sete com o taco ameaçando a
bola branca levantou a cabeça: – Tua mãe acha que eu sou rico
é, Damião? Para de malinar nesses sacos de pipoca aí e puxa pra
casa. – Mas, pai, hoje é virada do ano, a gente vai ficar no escuro
de novo? Eu queria pelo menos ler uma história do livro da escola
para mainha e as meninas! Uma estória bonita de final de ano
feliz, como fazer isso no escuro? Os candeeiros já comeram a ma-
tula quase toda, sem uma gota de querosene! – Dá um um jeito
de ler essa bobajada enquanto tiver claro! – o pai interveio, sem
pena. – Mas, pai, mainha e as meninas só vão pra casa à noite,
depois que acabar o eito combinado da arranca de feijão de seu
Modesto. Agora, ela só passou lá em casa para cozinhar um feijão

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

para nós. – Vixemaria, era hoje, é? Nem lembrei dessa coisa! – pipoca para meu menino aqui. Seu Manilim, que viu no olhar
disse o pai, coçando a cabeça e apoiando o taco de sinuca sobre do homem uma mudança, algo diferente do de sempre, nem se
a ponta da sandália velha de couro. – Tô empembado mesmo! É importou com mais um pendura. Providenciou o querosene e
coisa do cão isso!  as pipocas. Então, o homem pegou as provisões e já ia saindo
Seu Manilim já ia dar uma sugesta quando entrou o negro abraçado ao menino quando ouviu a voz do dono do boteco lá
Soizinha no estabelecimento: – Ôi ôôoi, merimãozim! Cela lar- detrás do balcão:  –Não vai derrubar a bola sete, não? Foi nes-
gou Soizinha! – lamentava o negro com voz dengosa o fim do se momento que Soizinha atalhou a conversa de Manilim. Não
amasiamento com dona Cela. – Mas num tem nada não, meri- perdeu tempo e interferiu antes de qualquer resposta do ho-
mãozim, Soiza dá um jeito! O que importa é que Soiza tá vivo, mem: – Ô merimão, o homi já venceu a partida, sossega! 
merimão. Enquanto dizia isso, Soizinha quebrava o corpo para   
um lado e para outro, ia para frente e para trás quase imitan- (12-2010)
do um gingado de capoeira. – E esse bitelim aqui, é teu meri-
mão? Perguntou o negro Soizinha para o homem que apoiava
o braço no taco de sinuca. Soizinha alisava a cabeça do menino
enquanto abria um sorriso simpático. – Ô merimãozim, Soizi-
nha queria um bichim desse aqui, mas Soiza num pode, meri-
mão! É muita labuta mode criar o bichim! Tem que dar o dicumê,
os estudo, umas mudinha de pano pra mode agasalhar o bichim
e Soizinha num tem de onde tirar, merimãozim! Por isso Soiza
ficou aqui só! Ôi ôi ôi, merimão!
O homem finalmente conseguiu enxergar o menino ali
diante dele, ao lado do negro Soizinha. Jamais tinha olhado
para o filho de tal maneira. Olhou nos olhos do moleque e viu
que havia certa altivez e um frescor de esperança que ele mes-
mo nunca teve. Sentiu-se orgulhoso por um instante. Aquele
moleque ali tinha bons sentimentos, tinha alma de desbravador
e ele mesquinhando um litro de querosene, enquanto enchia a
cara de pinga e jogava sinuca! Um derrotado querendo derrotar
o próprio filho.
Olhou para a bola sete encalacrada na caçapa do canto da
mesa de sinuca. Largou o taco e foi abraçar o moleque como
nunca havia feito. Tomado de emoção foi ao balcão: –Seu Ma-
nilim, me bota um litro de gás aí e ajeita uns quatro pacotes de

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LINDOVALDO

L indovaldo era o homem mais vaidoso do povoado. Como


naquelas paragens todos viviam do trabalho no campo, com
ele não haveria de ser diferente. Na luta diária com a terra, para
torná-la produtiva, o camponês entrega-se a tal ponto que no
final da tarde está simbioticamente entranhado. Torna-se difícil
diferenciar homem e terra. Todos naquela região já estão acos-
tumados a essa metamorfose homem/terra. No retorno para
casa, entre as bruacas do jumento, em vez de gente, vê-se uma
coisa híbrida. 
Com Lindovaldo isso não acontecia. Montava no jegue de
manhã cedinho, vestido como quem ia à festa de Santana no
Riacho de Areia. Na estica, descia a rua com a imponência de
um noivo seguindo para o altar. Não faltavam janelas curiosas a
espiá-lo passar. A tirar uma linha da camisa abotoada até o pes-
coço, alva como nuvem em época de estiagem. Engomado ia,
engomado voltava com o baixar do sol. Sua vaidade não permi-
tia que o grude da labuta se agregasse ao talhe de lordeza. Desse
modo, desenvolveu seus hábitos e assumiu o risco da estranhe-
za. Era isso, trabalhava nu o dia inteiro. Chegava à roça, apeava
do jegue cuidadosamente para não amassar as vestes. Dentro
do rancho tirava-as pacientemente para em seguida guardá-las
dobradas dentro de um saco plástico.
O isolamento das três tarefas de terra encravadas na caa-
tinga permitia-lhe labutar sossegado. Embaixo de um chapelão

67
Alan Oliveira Machado

de palha, com o sol rachando, arrastava enxada até o derradeiro


canto de nambu.
Depois de ter adiantado bem o eito, rompia pro rancho.
Lá, equilibrando-se em uma pedra batida, despejava a água das
cabaças num bacião de alumínio e dava início ao ritual de as- O OURO DE MURIBECA
seio. Passados alguns minutos, montava no jumento e seguia
para casa, vestido como um fidalgo, com a pose de sempre. O
animal, condicionado pela rotina, sabia de cor o caminho de
casa, de maneira que Lindovaldo às vezes cochilava no lombo.

A
Num desses dias quentes como forno de olaria, Lindoval-
algazarra de pardais na copa do coqueiro ao lado da casa
do levou o eito até o umbuzeiro do meio da roça e, vendo que o
contrastava com o leque solar que se abria lentamente
mormaço prometia chuva, bateu em retirada. Pegou o carreiro
no horizonte. A manhã anunciava-se mais uma vez no sertão.
mais cedo, porém, com o cansaço e a vaidade de sempre. No
Segunda-feira. Ali é dia de feira, dia de repor a despensa da
meio do caminho, a chuva que ameaçava veio de vez. O rapaz
semana. Ele sarrabuiou água fria no rosto, depois foi cutucar
incomodou-se, avexado pulou do lombo do jumento, tirou a
o braseiro sob a trempe do fogão a lenha com o tino de passar
roupa e guardou-a dentro de uma das bruacas. Nuzinho em
um café fresco. Feito isso, rodou a tramela da porta dos fundos
pelo, montou no jegue e seguiu viagem. Havia muito caminho
e dali mesmo do batente atiçou umas quatro mãos de milho
até a cidade, decerto a chuva passaria a tempo de ele se vestir
às galinhas que já tumultuavam o terreiro. Mais nada. Ele era
novamente e chegar em paz.
ele! Só ele! Ele só. Sem nome nem nada. Apenas um homem
O andar compassado da besta sob a chuva leve puxou um
solitário, rústico e desinteressado de lordezas. O olhar morto,
sono pesado em Lindovaldo. A chuva cessou. O povo alegre
antigo como a casa de taipa que o abrigava, não carregava mais
saía à rua para prosear sobre a providencial mudança de cli-
do que amarguras, esforços inúteis e rompantes tímidos pela
ma. O jumento àquele momento entrava na cidade exibindo o
sobrevivência. Passou a vida inteira correndo trecho pela serra
cavaleiro da triste figura fisgado pelo sono, expondo o homem
em busca de uns tais entaipados, de um tal ouro de Muribeca.
desprovido de qualquer vaidade.
Perdeu tudo: família, esposa, amigos. Tudo e todos em função
de seus delírios.
(04-2004)
A história de Muribeca correu solta por muito tempo
naquele pedaço do sertão. O homem sabia que se tratava da
história de um senhor português, dono de minas de ouro nas
lavras de um povoado da chapada, que sobreviveu a uma re-
belião selvagem dos escravos da mina próxima à Casa-grande.
Consta que esse senhor, conhecido pela alcunha de Coronel
Moreira, chamado pelos escravos de Muribeca, embrenhou-se

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

com a família no bravio da caatinga, a fim de escapar da fúria braba e o pedregulho iam sendo vencidos com sofreguidão por
de uma centena de negros revoltados. Arrastou consigo o que aquela mente determinada, por aquela alma incutida.
pôde: a mulher, duas filhas e seis mulas com bruacas abarro- Já não podia mais! Os pés latejavam dentro das botinas
tadas de ouro.  Perdido na brenha das matas espinhosas, viu gastas, costuradas com pedaços de arame. O homem parecia
tombar os membros da família um a um com o sangue ferven- um trapo na escuridão acidentada e espinhosa da serra.  Cam-
do de malária. Antes de morrer abatido pela doença, tratou de baleou por um carreiro estreito, encontrado depois de quebrar
esconder seu ouro em lugar longe da vista dos cobiçadores. muito mato nos peitos e foi sair debaixo de uma gigante game-
Essa história tanto rondou a cabeça do homem que aca- leira, com o imenso tronco corroído por fogo. Foi-lhe possível
bou enredando sua vida. Tivera aos 25 anos um sonho revela- ver isso depois que acendeu uma fogueira no acerado existente
dor... Seu destino, sua desgraça? No sonho, aparecia um velho debaixo da árvore. Sem dúvidas, ali era ponto de caçadores. Lu-
barbudo com um pote debaixo do braço cheio de moedas de gar de descanso. Estirou um desgastado couro de bode ao lado
ouro. O velho dizia que aquilo seria dele, se ele não desistisse do fogo e deitou-se meio que abraçado à espingarda. Enquanto
de buscar, e, antes de se apagar como névoa, indicou a direção roía um taco de carne seca ali no abandono do chão, via uma ou
da serra. Aquela imensidão de serra. Desde que tivera o maldi- outra estrela piscando através das falhas movediças da copa da
to sonho não descansara. Viveu a rodar por grotas, boqueirões gameleira. Um vento frio uivava desde lá de cima. O cachorro
e encostas. Garimpou cristais, desavenças, doenças silvestres e exausto enrodilhado num sono inocente. E o homem? O ho-
até mesmo veneno de cobra, mas nada de entaipado, nada de mem sonhava com a glória. Com o seu pote de ouro; e sorria
pote, nada de ouro. A esposa desistiu de sofrer com a ausência mais por dentro do que por fora do corpo maltratado, carcomi-
do marido e com sua presença delirante, encasquetada, ensi- do aqui, acolá, pelos afagos rudes da caatinga. E o dourado dou-
mesmada, sem outro assunto que não o sonho, o ouro, os entai- rava tudo: moedas se transformavam em belas flores amarelas,
pados. O velho disse... O velho... Ele veio e disse e eu vou achar... ora em apetitosas gemas de ovos, ora em abundantes girassóis,
É meu, ele disse. Um potão cheio. Guenta, isso é pouco leite perto ora em abismos coloridos nos quais despencava feliz.
do que vem. O velho disse, o velho barbudo. Muribeca!  Assim E dentro desse transe que não distinguia sono de vigília, o
atravessava as madrugadas num entra e sai danado do casebre, áureo das imagens se dissipou com um turro tenebroso. E tudo
picando fumo, tomando café, pitando e matutando onde mais escureceu novamente, e o crepitar da fogueira já não dava conta
poderia estar essa dádiva que o velho lhe revelou num sonho. da vastidão das sombras, e o corpo transido passou a perceber
Não desistiria nunca, jamais. Não era homem de dar pra trás, o frio que o sonho escondia. Mais um turro! O cachorro magro
de correr do destino. eriçou o pelo cinza do pescoço e exalou cego no mato... Mais
Foi então que numa tarde cismou que a coisa tava enterrada outro e outro quase debaixo da árvore, no que o homem deu
no Boqueirão do Urso. Juntou a capanga com uma socadeira, as- por si saltando de lado, agarrado à socadeira e tateando o tron-
soviou para o cachorro magro e mais uma vez bateu perna para co da imensa árvore à procura de socorro. O coração saltava à
a serra. A noite já ia alta. O breu engoliu tudo. Só silvos, ruídos, boca e as pernas bambeavam. A cabeça já o acudia com lem-
zumbidos e gorjeios estranhos lhe faziam companhia. A caatinga branças de livusias e demônios. 

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

Coisas ruins azedavam o seu estômago. Mesmo trêmulo, Desse amarelo, de súbito, saltou o velho barbudo com o
conseguiu, com inexplicável rapidez, arrastar o corpo para cima pote de ouro debaixo do braço, repetindo um mote: – Olha o
de um galho que pendia da parte inferior da copa da árvore. dourado da onça! O dourado da onça é o que ela come! Olha o
Encolheu-se ali com a espingarda de prontidão e ficou espe- que ela come! E o velho repetia compassadamente esse mote e
rando o encontro com o pior. A vida valia um último esforço. o homem atordoado com tanta amarelidão sentia que alguém
Ninguém iria arrancá-lo da vida antes de ele ter seu sonho de- comia e lambia algo com sofreguidão. Foi assim que despertou
baixo do braço, como o velho Muribeca havia prometido. O que com o vulto cinzento do cachorro magro tremendo, grunhindo
tivesse que ser, seria! Pensava nisso... Pensava também no pote e lambendo seu rosto.
de ouro enquanto ia-se inundando de medo, assombrado pelo A onça jazia ao lado do resto de fogueira. Aí aquele nada
desconhecido. Pegou a tremer violentamente, a se espremer e a de gente sentiu que poderia mover o corpo, se levantou com
se contrair evitando o maligno que emergia dos rasgos abertos as mãos nos quadris doloridos e ficou olhando o bichão estira-
no breu da noite por aqueles grunhidos estranhos. do ao lado da poça de sangue coalhado pelo calor da fogueira.
Valei-me, meu Pai! Nessas horas, a quem mais se apegar? E Confuso, lembrou-se do mote que o velho repetia. Era um si-
rezava e beijava o cano da espingarda. Até que a moribunda luz nal? O velho queria o quê? Que bestajada era aquela de que o
da fogueira fez aparecer o vulto de uma onça pintada, das gran- dourado da onça é o que ela come? O que ela come é dourado?
des. O bicho farejava desconfiado e não escondia a magreza fa- Por quê? Mas que tolice: onça come gente, come carne! Não tem
minta.  Sob a pálida iluminação avultava-se um animal medo- nada de dourado nisso! O velho tava debochando?
nho, com cara de poucos amigos. Assombrado, o homem tre- Num estalo, o homem caiu numa cisma...  Catou a capanga
mia diante da fera postada a pouco mais de dois metros. Quan- largada no pé do tronco da gameleira e tirou de dentro uma faca
do conseguiu mover o dedo paralisado de medo, um estrondo afiada com a qual decidiu abrir a barriga da onça. Onça não come
e um clarão foram seguidos de um grito horrendo. O homem nada dourado, mas se o velho tá dizendo vou tirar essa história
deu por si estabanado no chão  e em sua frente o imenso gato a limpo agora! Baixou a peixeira nas entranhas do bicho arras-
selvagem agonizava com um jorro de sangue a esguichar do pé tando o que tinha dentro para fora. Atiçou o fogo com um fecho
do pescoço.  de gravetos que havia deixado ao lado e jogou umas toras sobre
Paralisado, lívido, gelado, o homem permaneceu no lugar as chamas que nasciam. Quando o fogo cresceu e clareou o vão
em que caíra. Os olhos arregalados e fixos fitavam a cara malva- debaixo da árvore, viu que estava todo ensanguentado, ajoelha-
da do felino que arquejava na agonia da morte. E ambos ficaram do sobre as vísceras do animal. Com um talho, abriu uma bolsa
assim, olho no olho, o homem e a fera. Foi então que se pôs a ovalada grudada nas tripas do bicho deduzindo ser o estômago e
mirar o amarelo da pelagem da onça. Ele ali com o rosto colado em meio à massa gosmenta que emergia do interior da bolsa viu
no chão e o olhar grudado no dourado da onça e tudo foi fican- brilhar o que parecia uma moeda dourada.
do intensamente amarelo, como se houvesse um fogo frio que Esqueceu-se de tudo. De joelhos permaneceu com aquela
se espalhava, tornando tudo da mesma cor até não existir mais coisa dourada nas mãos. Olhava, mordia, cheirava, esfregava e
nada além do amarelo. fechava na mão apertando contra o peito. O velho estava do

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

seu lado. O velho tinha razão. O velho só queria o seu bem. Ele picava fumo para enrolar um cigarro. Era ouro mesmo! Olhou
jamais iria desistir. Agora mais que nunca. Era só seguir a trilha e investigou a rodela dourada, sem efígie ou inscrição alguma,
da onça, encontrar sua toca e pronto. Era isso, o velho guardou apenas uma fina bolachinha redonda e carrascuda. Esfregou
tudo na toca da onça, bastava achá-la. Seus dias de  labuta che- o objeto na perna puída da calça em busca de algum brilho e
gariam ao fim. O velho entregou o caminho do ouro. nada. Mas havia brilho suficiente, paciência.
Respirou fundo, chegou a ouvir o cri-cri de grilos distan- Pensou muito à medida que pitava o cigarro. O velho
tes... Veio então ao seu encontro a imagem da mulher sofrida. não falhou com ele...  Bem que ele disse: não desiste! Valeu a
Dos filhos espalhados pelas roças alheias fazendo de um tudo pena! Prendeu a baga do cigarro numa greta do tronco corroído
para sobreviver. Mas isso ia acabar. Agora era só felicidade. do arvoredo que lhe deu guarida, olhou para o cachorro magro
Muito ouro, muita comida, muita alegria, muitos amigos. Res- e partiram, ele e o fiel companheiro, farejando o rastro da onça.
pirou fundo e finalmente sentiu um relaxamento como jamais Seu tino era ir bater na toca da fera abatida.
seu corpo havia experimentado nos últimos 50 anos. Deixou-se O dia já ia descambando para o início da tarde quando
cair para trás e adormeceu ao lado da onça.  aquela  sombra de vida deu em uns paredões de pedra que for-
Os primeiros raios da manhã invadiam a folhagem e a gar- mavam um corredor estreito e longo. No meio, um fio fino de
rancheira da mata quando o homem despertou. Ao ver o tama- riacho escorria sob a sombra de ingazeiros, emboabas e jatobás.
nho da onça, sentiu algo diferente.  Convencido mesmo de que Pensou em descansar, mas percebeu que havia rastros de onça
tinha empreendido uma grande façanha na noite anterior, ficou na direção das pedras. Então nem titubeou... Ganhou o rumo
satisfeito consigo mesmo. Derrubar um bicho daquele porte pedregoso da encosta do paredão e foi rompendo com dificul-
não é para qualquer um.  Disposto, pôs-se a esfolar cuidadosa- dade, com os dedos dos pés já vazando pelos buracos cada vez
mente o felino de modo a extrair o couro inteiro. Se não levasse maiores das botinas. Alguns deles esfolados e sangrando. Esco-
o couro, quem iria acreditar na história da onça que ele matou rou em uma pedra grande, com a respiração ofegante e o suor
com um tiro certeiro? escorrendo por todas as partes, quando viu por trás de uma
Enrolou o couro fresco do animal junto com o couro velho moita de murici algo como a entrada de uma toca. Avexou-se!
de bode que o acompanhava nas viagens e apertou tudo na ca- Era o final feliz da história. 
panga. O cachorro magro levantou-se, farejou o corpo da onça Tantos anos de sofrimento, tanta procura, tanta misé-
e aventurou-se, ainda tomado de desconfiança, a abocanhar um ria... Não... Isso acabou! Arrastou-se como pôde na direção
bom naco de carne da coxa do animal. da toca, uma fenda meio triangular na rocha dura do pe-
Enquanto isso, o homem, agora sentado sobre a saliente nhasco. Já agarrado a um galho do muricizeiro, vislumbrou
raiz da gameleira, perdia-se em pensamentos. Matutava e co- a imensidão da parede rochosa repleta de pinturas rupestres
çava a cabeça e cutucava, com a ponta afiada da faca, a unha gravadas com tinta ora avermelhada, ora alaranjada. Havia
do dedão do pé que saltava para fora do buraco da botina. mãos registradas nas rochas, cenas de caça, animais varia-
Enfiou a mão no bolso da camisa trapenta e pegou o que lhe dos e figuras geométricas. Ficou ali prostrado contemplando
pareceu uma moeda dourada. Botou sobre a coxa enquanto aquilo tudo sem saber exatamente o que significava e quem

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se aventurara a registrar tais coisas em lugar tão íngreme e toca. Foi quando expulsou um grito: – Cachorro, satanás, tu
inacessível. Foi o tempo de recuperar as forças e alcançar a tá comendo meu ouro? Tá amarelo por que, peste ruim? O cão
boca da toca. assustado abanava a cauda fiel e quedava a mandíbula resig-
A toca estava muito escura. Colheu uns galhos secos na nada sobre as patas dianteiras, sem entender nada. O homem
moita de murici e preparou uma fogueira na entrada. Dali a já com aspecto sombrio gesticulava e excomungava o amigo
pouco apanhou um tição em chamas e mergulhou na fenda do fiel. Então, num impulso violento, pegou da faca e saltou no
paredão. Não sem surpresa se deparou com o chão repleto do bicho indefeso: – Se tu comeu o meu ouro, mundiça medrosa, tu
que pareciam moedas douradas, espalhadas por toda parte. vai devolver agorinha mesmo! E fez no infeliz canino o que havia
Arrastou madeira seca para dentro da toca e clareou o feito na onça, na noite anterior.
ambiente com uma vigorosa fogueira. O cachorro magro en- – Tá vendo o que tu me fez fazer, mundiça ruim? Veja aqui,
colheu-se em um canto enquanto o homem juntava com avi- satanás, o que eu tirei de dentro de tua barriga? O homem gesti-
dez e sem conter as lágrimas um monte daquelas coisas que ele culava com a faca em uma das mãos e o que parecia uma moeda
jamais duvidaria que fossem moedas de ouro. Fez uma pilha de ouro na outra mão lavada de sangue.  – Ninguém me tira o
e sentou-se sobre ela como um soberano sobre os espólios de ouro que o velho me deu... Nem mesmo tu, safado!  Dito isso, o
uma conquista. E sorriu... E gargalhou... E chorou expelindo homem inventou de costurar grosseiramente, com tiras de pele
frustrações antigas e anunciando uma intensa felicidade. E foi arrancadas do cachorro magro, o couro da onça e o couro velho
por um momento aquele atleta quase derrotado na vida que se de bode que lhe servia de cama. No final de tudo, suado e lambu-
viu no topo do pódio. zado de sangue, tinha em mãos um saco de couro grande no qual
Mergulhado no turbilhão de sensações, sentiu o estô- começou a atirar todas as peças do tesouro que tinha amontoado.
mago reclamar... Foi quando tirou da capanga o couro da Encheu o saco e jogou nas costas, suportando um peso imenso.
onça, o couro de bode desgastado, a faca e afundou a mão Era uma tarefa bruta carregar aquele fardo pesado serra abaixo,
em busca de um naco de carne seca e de um resto de rapadu- mas ínfima perto das agruras por que já havia passado. Mesmo
ra. Ficou sentado naquela pilha de coisas roendo a carne, be- porque seu vale de lágrimas estava perto do fim e nesse momento
liscando a rapadura e rindo à toa aqui e acolá. Atirou um tre- então qualquer esforço era indispensável.
cho de carne ao cachorro magro enfunado num canto. Então E foi numa toada triste que o homem começou a trilhar o
estranhou que o bicho apenas cheirasse a carne deixando-a caminho de volta para casa. Depois que se livrara do cachorro
de lado. Olhou para o cão, esfregou os olhos e fixou o olhar magro, não achou mais motivos para rir. Ficou em silêncio, ma-
mais detidamente na criatura. O cachorro que tinha pelo cambúzio, sisudo e assim se manteve durante a descida, mesmo
cinza estava amarelado. Não! Fechou e abriu novamente os nos tombos terríveis que levara abraçado ao embrulho do seu
olhos. Lá estava o bicho amarelinho. Coçou a cabeça, olhou tesouro. E tombo a tombo foi angariando rasgos nos braços,
para o pedaço de rapadura na mão. Ficou em silêncio, e sem cortes na cabeça, esfolações nas costas, nos joelhos e nas per-
qualquer vibração de voz, foi transfigurando o semblante. nas que o iam cobrindo de sangue fresco, mosquitos e mutucas.
Olhou duro para o pobre animal acoitado em um canto da Arrastava o saco do tesouro sofregamente entre pedregulhos,

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macambiras e unhas de gato, como se fosse uma cruz terrível, mem abriu pesadamente os olhos e se deparou com a meninada
numa via sacra violenta. Mas ia silencioso, ensimesmado, incu- ao redor. Arregalou os olhos e começou a emitir gritos frouxos
tido, alheio às dilacerações e à crueza da caatinga. Nessa pele- e desesperados, reunindo as últimas forças: – Meu ouro! O ouro
ja, ia-se transfigurando em trapo humano, num verme grande, é meu! Ninguém vai me roubar, mangote de peste! E gritava! E
grudento e fedido a se arrastar com dificuldades no acidentado gritava! Até que conseguiu levantar-se e, com um esforço terrí-
da serra. vel, jogar o saco do tesouro nas costas. Os meninos se afastavam
Andou, andou, andou horas a fio... Driblou pedregulho, aos poucos com medo daquela coisa. O homem deu um passo,
pulou moitas de quipá e macambira até que tombou por cima esboçou um segundo, mas se espatifou no chão com a cara en-
do fardo do tesouro mais uma vez. Ficou ali imóvel, exaurido, fiada na areia. O saco feito de couro de onça e de bode se abriu
tisnado de moscas e mutucas.  Quando conseguiu erguer um espalhando o tesouro pela rua. O homem, uma coisa andrajosa
pouco a cabeça, avistou, na ponta de uma encosta, as luzes páli- e deplorável, se esgotou de vez e não conteve o desmaio.
das da cidade já próxima. Assim, ganhou forças para se levantar Nesse momento, algumas crianças voltaram a se aproxi-
e retomar a trilha. O velho tava com ele... Só o velho... Ele tinha mar, dessa vez, acompanhadas de adultos que ouviram os gritos
a pura razão... Não mentiu e nem o enganou. Os outros o aban- desesperados do homem. Uma roda de curiosos se fez em tor-
donaram, o traíram, o desprezaram. Deu fé por fim que a sua no daquela coisa feridenta e podre. Mulheres não escondiam o
vida teria um recomeço feliz e tocou a caminhada tropegamen- asco. Umas tapavam o nariz... Um senhor respirou fundo e se
te na direção das luzes. aproximou. Virou o homem de barriga para cima e constatou
Um bando de meninos brincava de bola no areão de uma que ainda estava vivo. Arranjou um lençol velho e, com a ajuda
rua larga que ia dar no sopé da serra. Por um momento, a mo- de outros, pôs a pobre alma em cima. Levaram-no embrulhado
lecada suspendeu a diversão para reparar dois cachorros vira- no pano até a porta do hospital e o abandonaram lá diante de
-latas latindo no meio do areal um pouco mais acima. Os cães enfermeiros. No areão da rua, os meninos voltaram a jogar a
investiam contra um vulto que jazia na areia. Todos correram partida de bola interrompida, alheios ao fétido saco de couro
para ver do que se tratava. Foram se aproximando timidamente cheio de pedras, apenas pedras, muitas pedras, abandonado no
daquela coisa esquisita caída sobre um fardo. O monte de tra- meio da rua.
pos e grude sobre o embrulho de couro recendia a carne podre,
mas parecia algo vivo, lembrava um homem.  A barba grande e (11-2010) 
pastosa, cheia de tufos de grude, o cabelo, um tanto crescido e
embuchado, no mesmo estado de degradação. O resto não dava
para identificar claramente sob a iluminação amarelada e fraca
da rua. Porém, o cheiro de carniça impregnava o ar. Os meni-
nos se aproximaram. Uns jogaram areia naquela coisa para cer-
tificar-se de que estava viva, outros jogaram pedra e houve um
que o cutucou com uma vara de são-joeiro. Foi quando o ho-

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UM GOSTO MUITO ESPECIAL
Para Edmundo Agnelo e Dermival Agnelo

O emendar de cantos de galos se estendia como uma corrente


sonora que tomava conta do povoado. Era madrugada na vila
de Boqueirão da Serra. Meu avô se livrava da cama já reclamando
de alguma coisa. Minha avó, mais ágil, não passava de um vulto
areando um imenso tacho de cobre. Entoava baixo, para si mesma,
alguma ladainha. Meu avô amargo, ela doce. Minha avó doceira e
dócil, o marido lavrador, mal-humorado. Apesar do nome, meu
avô em nada lembrava um cordeirinho. Fato é que essa antítese
primal gerou uma família. Entre os dois temperamentos germina-
ram outros e as alegrias e desgostos foram se alternando.
O velho levou o chapéu de massa à cabeça e atravessou a
Rua Nova rumo à praça da feira. Passo apressado para se livrar
da concorrência. Sempre o primeiro a chegar às bancas de carne,
levava o melhor jornal. É que àquela altura dos anos cinquenta a
existência de rádio ou jornal no lugarejo de pé de serra era precá-
ria e meu avô, ao que parece, herdou a curiosidade e a ansiedade
por leitura, como a maioria dos descendentes de Isabel, filha do
patriarca daquele pedaço de chão. Desde os anos quarenta, culti-
vava o hábito de comprar a carne que vinha fartamente enrolada
em folhas velhas de jornal. Ficava assistindo e orientando o açou-
gueiro a enrolar o jornal na carne de modo que não estragasse as
folhas. Chegando em casa, desfazia o embrulho com zelo até ter
livre nas mãos duas ou três folhas inteiras, que botava para secar.
Mais tarde leria uma a uma, se deliciando com notícias publicadas

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há mais de cinco meses, ou ano. Cumpria um ritual todas as tar- A mulher, que mexia um tacho de doce de buriti na trem-
des: escorava o tamborete na parede da frente da casa e abria sua pe improvisada no alpendre, levantou a cabeça e ficou tirando
preciosa folha de jornal, no que ia lendo lentamente e com alguma uma linha do marido, mas não disse nada. Então, um cheiro
dificuldade até as vistas arriarem, atrapalhando a vontade.  forte de perfume Casa Blanca impregnou o ambiente e chegou
A leitura amenizava o mau humor do velho, todos já sa- às narinas do velho.
biam disso e preferiam não incomodá-lo, e torciam também – Hum, hum, hum, que carniça é essa? – disse sem espe-
para que as folhas manchadas de salmoura alimentassem o âni- rar resposta, saindo em direção ao quarto. Ao entrar, encontrou
mo dele até a próxima feira. Quando a leitura não dava até o fim um dos netos, todo lorde, penteando o cabelo. Mais uma vez
da semana, meu avô ralhava, implicava com os meninos, recla- desabafou:
mava até do cheiro “enjoado” do doce de gergelim fervendo no – Não posso nem ver esses rapazes que passam o dia na
tacho. Minha avó murmurava enquanto mexia o doce, pedia a frente do espelho com o pente enfiado no cabelo!
Deus uma explicação para o destempero do marido. – Ôxi, vô, hoje tem baile na Voz do Povo. É mode eu ir pa-
O velho descobriu a mina de jornais vencidos quando pas- recendo o quê?
sou a matar porcos para vender na feira da pracinha da vila. Na – Tá, mas precisa engomar a cara com brilhantina?
convivência com os açougueiros da Lagoa e da Roça de Dentro, – Não, vô, mas todo mundo usa!
negociava as sobras de jornal das bancas por tiras de toucinho. – E onde arranjou essa goma e esse cheiro?
Às vezes, voltava para casa com uma pequena pilha de folhas – No armazém de seu Marcionilio!
soltas dos diários que circulavam pela capital. Quando não ha- O velho torceu a cara, meio que desaprovando e disse antes
via jeito de faturar algumas para ler em casa, acabava compran- de se retirar do quarto:  – Seu Marcionilio tá botando a moci-
do a carne dos comparsas de banca, exigindo que a enrolassem dade a perder!
em fartas folhas de jornal. O anoitecer morno não amenizou a inquietação do ve-
Certo final de feira, sem conseguir trocar uma tira sequer de lho. Ele então foi ao gabinete do primo boticário, na Rua
toucinho pelo jornal de sempre, o velho desesperou-se. Não po- Grande, recentemente autorizado para a profissão de dentis-
dia cometer a loucura de comprar carne apenas para ter o jornal. ta, que já exercia, a fim de prosear e saber a quantas andava a
A feira tinha sido fraca e boa parte da carne de porco que levara política de Cazuzão e João Soares em Xique-xique. Na feira,
voltaria para casa, tornando difícil justificar à mulher o gasto com havia encontrado aquele parente montado num cavalo, com
carne. Voltou então com um terrível mau humor. Passou porta a voz trovejando, vindo da beira do rio e prometera passar
adentro, sem sequer olhar para um grupo de rapazes sentados na no gabinete dele para se inteirar das novidades políticas.
calçada vizinha, conversando e dando risadas. Já na cozinha, an- Chegou ao gabinete do parente e o encontrou concentra-
tes de a mulher dizer qualquer coisa, foi logo disparando: do na leitura de um manual de Medicina Homeopática.
–  Não aguento esses moços de hoje com essa rincheta e – Entra, primo! – estrondou a voz lá de dentro.
essa chincharra! Em vez de irem ajudar os pais na roça ficam – Moço, assunta o atropelo...  - disse meu avô com voz
alimpando calçadas dos outros, vigiando a vida alheia! mansa, ao passo que seguia em direção ao dentista: –Tem uns

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Alan Oliveira Machado

dois dias que não me aparece uma folha mode eu ler. Vai dando
um nervoso do diacho!
– Pois isso não é problema! – disse o boticário, levantando
as vistas. Olha aqui esses Almanaques Capivarol que me arran-
jaram lá na beira do rio! Pode levar, se quiser, todos os volumes! O BICHO
O velho arregalou os olhos, esboçou um leve sorriso, reco-
lheu o pacote com uns seis Almaques Sadol e Capivarol, agra-
decendo ao primo e sentou-se no tamborete, ao lado de uma
espécie de motor a pedal, puxando prosa:

E
– É verdade que João Soares num tá querendo arredar o pé
ra noite naquela pequena cidade do interior da Bahia. A pri-
de indicar o delegado?
meira chuva do mês de outubro veio com grande fúria. A
–É, mas isso já é empreita perdida! Cazuzão já acertou com
ventania era tão violenta que em menos de sete minutos as redes
o governador e o delegado é nosso! Vamo ajeitar João Barreto!
elétricas foram abatidas e a cidade mergulhou numa silenciosa
Mas os homi aqui, cê sabe, acertaram Dió pra representar na
escuridão. Meia hora depois já não havia mais chuva, somente
vila. Vamo ver quem tem mais braço!
água escorrendo pelo desgastado calçamento de paralelepípedos.
–Tomara que Buqueirão da Serra saia ganhando nessa
Na praça velha da cidade, apenas um fiapo de luz desafiava a
história! .
escura noite. Uma luz de lampião, trêmula e avermelhada, que ar-
Depois de uma longa prosa, meu avô bateu perna pra casa,
dia no interior da única farmácia daquele lugar. A farmácia de seu
leve como um tufo de algodão. Só de olhar para aquele esti-
Bilu tinha o respeitado prestígio de ser o ponto de encontro da ve-
mulante pacote de almanaques. Agora, sim, tinha munição pra
lha guarda. Ali, todas as noites, reuniam-se inúmeros senhores da
bem um mês, isso contando as relidas.
cidade: charadistas e contadores de causos, piadas e adivinhações;
Chegou em casa assoviando, deixou os almanaques em
enfim, todos os amantes dos portentos da cultura popular intera-
cima de uma velha cristaleira no quarto da entrada do corredor.
giam no interior da antiga farmácia, entre prosas e largas risadas.
Pegou no colo uma neta pequena que àquela hora ainda brin-
Belarmino Rocha, seu Bilu, homem de leitura, jamais fora
cava com uns bois de buso e uma boneca de pano nos ladrilhos
derrubado em suas charadas bem pesquisadas em grossos vo-
do corredor da casa. Fez umas brincadeiras, foi lá dentro do
lumes de literatura, dicionários e almanaques, cuidadosamente
quarto de despensa, trouxe um taco de rapadura e deu para a
guardados entre as caixas de medicamentos.
pequena se distrair. Voltou para o quarto, catou um Capivarol,
Naquela noite, pouco antes de fechar a farmácia Corpo
posicionou o candeeiro, recostou no colchão recheado de palha
Sano, já que o breu tomou conta da cidade e impediu a reali-
de uma cama velha de solteiro e começou a folhear com prazer
zação do ritual de todas as noites, ocorreu o fato que agitou a
e curiosidade a singela publicação.
pacata cidade por vários dias e a marcou para sempre.
Seu Belarmino organizava o livro-caixa quando o que pare-
(2006)
cia um estranho inseto transpôs a porta da farmácia voando em

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direção à lamparina. Assustado, ele recuou a cadeira, levantou-se Dirigiu-se ao botijão tombado no chão, vedou o registro
e esgueirou-se na prateleira de remédios ao lado da mesa. Fazia estancando o vazamento de gás e, curioso, deitou cautelosa-
algum esforço para identificar, em meio à fosca claridade, que mente a luz do candeeiro na direção da cobra.
tipo de bicho resolveu abrir caminho no breu das ruas para im- – Meu Deus, parece coisa do capeta! Como uma víbora
portuná-lo. pode ter criado asas?
O bicho voava em círculos, debatendo-se contra as prate- O bicho agonizava no chão. Movimentava-se de forma
leiras. Seu Bilu avançou nos óculos que repousavam sobre suas moribunda. Não tinha mais forças, seu destino parecia tomar
anotações (sempre se esquecia deles!), levou-os aos olhos. Ago- um novo rumo.
ra conseguia vê-lo melhor. Era um inseto incomum, se é que era Seu Bilu correu à prateleira mais próxima. Vasculhou-a,
inseto. Talvez fosse um morcego grande. Mas como, se aquelas encontrou um vidro grande e dois litros de álcool. Encheu o
asas soavam como plástico quando colidiam com as grades de recipiente. Foi à mesa, pegou uma pinça médica e retornou ao
madeira das prateleiras? local em que a cobra se encontrava. Pendurou-a por uma das
O bicho deu uma rasante, subiu velozmente e chocou-se asas com a pinça, para depois depositá-la dentro do vidro.
com a lamparina sustentada por um arame pendente do teto. Belarmino recolheu-se novamente à mesa. Precisava fazer
A rústica luminária não resistiu à colisão e despencou-se. Seu um balanço do dia. Acomodou o vidro sobre ela e virou-se para
Belarmino, cego, tateava as gavetas da mesa em busca de um o livro-caixa. Tentou concentrar-se nas contas e na soma dos
fósforo para devolver o mirrado mas confortante foco de luz ao fiados, todavia, foi inútil, pois estava apreensivo e excitadamen-
interior do seu comércio. te curioso. O inusitado fazia-o desviar, insistentemente, o olhar
–Ai, droga! – gritou o velho ao espetar o dedo em uma agu- para o vidro transparente.
lha. Dali a pouco apalpou uma caixa de fósforos. Aliviou-se. Ris- Abandonou de vez a contabilidade, aproximou-se do vaso
cou um palito e seguiu prudentemente em direção à lamparina. e entregou-se à contemplação daquela extraordinária criatura.
O cheiro de gás impregnava o ambiente. Avistou o pequeno Observou a pequena cabeça triangular de onde brotavam dois
botijão rodeado de cacos de vidro. Acendeu um terceiro palito grandes olhos amarelos, cada um dividido ao meio por um fino
e lá estava, diante de seus olhos, o animal mais exótico que ele talho branco. A pele cintilante coberta de escamas semelhan-
já houvera visto: dava a impressão de ser uma cobra negra de tes a minúsculos favos de mel. A extremidade, de onde brotava
uns trinta centímetros, com fartas asas compostas por um tipo uma calcificação afiada análoga a um ferrão. Mas o que intriga-
de membrana parda, translúcida, através da qual se viam finas va mesmo eram as asas. Estava estupefato.
vértebras. Lembravam exatamente asas de morcego. – De onde será que esse bicho tirou essas asas? Cruz credo!
Acendeu outro fósforo e avistou um velho candeeiro no – exclamou seu Bilu como que embriagado de mistério.
último lance de uma das prateleiras. Arrastou a cadeira para Belarmino ergueu-se, pegou o livro-caixa, as chaves, seu
perto de si, subiu e alcançou o objeto. Soprou a poeira, sacudiu- discreto chapéu de massa e um bastão de ferro que usou para
-o constatando ainda haver querosene e, em seguida, ateou fogo baixar a ampla e barulhenta porta. Desceu-a, prendeu-a com
no pavio com o palito que já quase lhe queimava os dedos. um dos pés, rodou duas vezes a chave; venceu três degraus de

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calçada e penetrou deslumbrado na noite, em direção à Rua da Dona Petronila conversava com Madalena sobre a conduta
Matriz. Rompia meticuloso e ainda aturdido pelo que vivencia- do filho Juca. Não sabia o que fazer com o menino que faltava
ra na farmácia. Tropeçava aqui e acolá, por força da dificuldade às aulas para ir badogar com os filhos de seu Filon.
em enxergar o íngreme calçamento por onde passava. – Precisa ver, comadre! O danado não tira uma nota que
O homem chegou em casa após os lentos treze minutos preste! Já apanhou quatro vezes e não se ajeita.
de caminhada. Abriu o portão, a porta, e varou silenciosa- – Ah, comadre Petronila, isso é pouco perto da história
mente o corredor rumo ao quarto. Livrou-se dos objetos que com que Belarmino me apareceu hoje! Disse que ontem, depois
trazia, da roupa, entrou num pijama de bolinhas pretas e dei- daquela tempestade, um bicho entrou na farmácia, atraído pelo
tou-se. Acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e, alheio clarão da lamparina. Uma cobra de asas!
à mulher que dormia ao lado, mergulhou em mudas divaga- Dona Petronila, atônita, pousou uma mão na boca e outra
ções para logo mais, com o chegar da madrugada, render-se sobre o coração. Disfarçando o susto, comentou maravilhada:
ao sono. – Se isso não é mais uma das estórias do compadre, então
Eram sete horas da manhã. Seu Bilu tomava café sentado à o fim do mundo chegou!
mesa da cozinha, enquanto contava a história da cobra de asas Mais tarde, Petronila, que voltava da farmácia, para onde
para a mulher que o ouvia. fora em companhia de Dona Madalena conferir aquela história
– Mas isso é coisa de sua cabeça, homem de Deus! Onde já absurda, chamou o filho Juca no quarto e, num clima de ter-
se viu cobra de asa? ror, contou-lhe que o padrinho dele havia encontrado um bicho
– Apois, eu num tô dizendo! A bicha tá lá na farmácia den- diabólico dentro da farmácia. E mais: que o tal animal, uma
tro de um vasilhame cheio de álcool! cobra de asas, falou-lhe que se o seu afilhado não deixasse de
– Só acredito vendo com esses olhos que a terra há de comer! matar passarinhos para dedicar-se mais aos estudos, ele o viria
– Mas eu num tô dizendo que é verdade, mulher teimosa! buscar durante a próxima tempestade.
– Tá bom, home! Deixastá que eu vou lá à tarde só pra ver! Juca ficou muito impressionado com toda aquela história,
Belarmino levantou-se da mesa, limpando a boca, pegou a ponto de ter pesadelos por quase toda a noite. Mas, como todo
o livro-caixa, o chapéu de massa e partiu para mais um dia de menino de onze anos do interior, no outro dia estava brincando
trabalho. No portão, cruzou com dona Petronila que vinha alegremente em meio aos outros garotos.
chegando: Enquanto enrolava a corda do pião, contava para os ami-
– Bom dia, compadre! gos o que ocorrera com o padrinho. A garotada fingia-se de in-
– Bom dia! Entra, comadre! Madalena tá lá pra dentro! crédula, mas com grande excitação uniu-se e partiu a caminho
Saiu para a calçada, respirou profundamente o cheiro per- da velha praça da cidade, para ver o satânico animal.
fumado de terra molhada que exalava no ar. Deleitou-se com Seu Belarmino abençoou o afilhado, porém, não sabia o que
o cantarolar alegre de alguns pássaros na frondosa figueira em aquele tanto de meninos estava fazendo ali dentro da Corpo Sano.
frente à casa e, num rápido instante, cruzou a rua sob o sol de – Juquinha, você pode vir aqui todos os dias se quiser, mas
uma bela manhã. não com essa menineira! – resmungou seu Bilu.

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– Nós viemos pra ver a cobra de asa que mora aqui dentro! ausência do vigário, Merinha entregava a alma dos mortos e fazia
– respondeu o grupo de meninos em uníssono. algum ou outro serviço religioso ou administrativo. Sua missão
–Quem contou essa besteira pra vocês? - ralhou Belarmi- era admirada por todos. Jamais se casara. Não namorara nenhu-
no, em tom mais agressivo. ma viva alma durante a juventude e sua virgindade era certamen-
–Foi a mãe do Juquinha que contou pra ele! E não é verda- te inquestionável. Entregara-se a Cristo.
de? - retrucou um dos meninos. A velha erigiu o frágil corpo arqueado pelo tempo. Fran-
–É... Quer dizer... Não sei, e não me amolem! Vamos, garo- ziu a enrugada testa, fechou o semblante e, como que tomada
tada, vamos indo embora que eu tenho muito que fazer. Ama- por um espírito divino, bramiu frases proféticas:
nhã é segunda, dia de feira, e preciso repor o estoque... Vamos! – É um sinal do fim dos tempos! O Apocalipse chegou e
E tangeu a meninada para fora do estabelecimento. os pecadores arderão nas chamas... A besta-fera veio como ser-
No despertar da segunda-feira, os vendedores começa- pente alada... Crendeuspaitodopoderoso!
vam a montar suas bancas e barracas na praça do comércio. Afastou-se da banca com dificuldade. A respiração raleava
Os moradores dos povoados vizinhos chegavam pouco a pouco diante do esforço, sequela da asma crônica que a consumia por
para comprar as provisões da semana e alguns produtos que se muitas décadas.
faziam necessários na despensa da casa. Uns vinham a cavalo, A farmácia Corpo Sano estava lotada de pessoas, como
outros em carroças e antigas caminhonetes. nunca estivera antes. Seu Bilu, perplexo, mas contente. Havia
O fato ocorrido na farmácia Corpo Sano, que se espalhara vendido todo o estoque de analgésicos. Todo mundo pedia a
como praga pela cidade, gerando os mais diversos comentários, mesma coisa. Era o pessoal da feira.
chegou à feira, aos ouvidos e às bocas de toda a vizinhança que – Que foi, gente? Parece que todo mundo tá sentindo dor
se aglomerava na pequena praça. Não havia uma barraca sequer hoje! – interrogou Seu Belarmino, com aquela satisfação de
que não desse notícia do tal fato. Na agitação da feira, cada qual quem sabe que está ganhando o dia. O que ele não sabia era que a
contava a história à sua maneira. Alguns exageravam: chega- humilde gente dos povoados, na verdade, estava indo à farmácia
vam a falar de uma cobra de seis metros, com as asas do tama- apenas para tentar ver a cobra de asas. Uns até penduravam-se
nho de dois guarda-chuvas abertos. no balcão e esticavam o pescoço investigando as prateleiras, en-
Dona Merenciana Piris, uma velhinha octogenária conhe- quanto Seu Bilu baixava a cabeça para contar o dinheiro do troco.
cida por todos no município por ter sido a primeira professo- No final do dia, o dono da farmácia olhou simpático para o
ra daquelas redondezas, apreciava alguns quiabos na banca do animal mergulhado no álcool. Tomou o vidro nas mãos e mur-
Merandolino quando seus cansados ouvidos registraram aquele murou:
boato de aberração. Tomou um choque tremendo. – Eu acho que você tá me dando sorte, bichinho esquisito!
Tia Merinha, como carinhosamente chamavam Dona Me- Antes do anoitecer, Tia Merinha apareceu na porta da
renciana, obtinha o respeito unânime da população devido a sua farmácia. Com os olhos saltando de pavor, discursou em tom
fervorosa devoção. A Igreja da Matriz, construída há mais de cem apocalíptico, condenando a besta-fera que se escondia ali para
anos, só recebia padre no findar de cada mês e, no período de destruir o mundo. Um terço de pérolas no pescoço e um antigo

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

e volumoso crucifixo na mão adornavam sua pregação. Seu Be- Rocha, nas primeiras chuvas de outubro de todo ano ímpar, me-
larmino, incomodado, perguntou a Dona Merenciana se ela não tamorfoseia-se em uma grande serpente alada e sai noite aden-
iria querer os medicamentos para asma. Ela o praguejou e, em tro invadindo quintais e matando porcos, galinhas e cachorros. É
seguida, disse-lhe que não tomaria remédios da casa de belzebu verdade! Ontem mesmo dois porcos de Seu Liobino amanhece-
enquanto Deus a permitisse respirar. ram mortos. Tinha uma multidão de gente lá pra ver.
Belarmino sentiu-se desrespeitado. Irritado, voltou para
o interior do seu comércio. Tentando acalmar-se, sentou-se à (10- 1995)
mesa e pôs-se a contar um amontoado de notas de dinheiro.
Pouco tempo depois, a velha retirou-se entre provocações e
prenúncios do Juízo Final.
Alguns meses se seguiram e a velha, que passou a resistir
ao uso do remédio do qual dependia sua saúde, morreu vitima-
da por insuficiência respiratória, durante uma crise de asma.
A morte de Tia Merinha movimentou a cidade. O prefeito
decretou luto municipal por três dias. A comunidade pedia que
ela fosse enterrada dentro da Igreja da Matriz, a qual estimava
tanto. Ninguém contestou a ideia.
Durante o velório, a multidão se revezava no interior da
igreja para ver a velha Merenciana Piris pela última vez. As caro-
las que a acompanhavam na conservação da casa religiosa cria-
vam um clima de disputa, cada qual se querendo mais herdeira
do legado religioso da velha professora. A briga ficou tão acirrada
que em menos de dois anos algumas delas, para não se sentirem
derrotadas, construíram uma nova igreja na mesma rua.
Hoje, passados vários anos, o mundo – embora bastante
precário – não acabou, como preconizara Tia Merinha. Suces-
sivas noites de tempestade desceram sobre a miúda cidade e
a cobra do diabo não veio buscar Juquinha, conforme havia
prometido ao padrinho. Ele abandonou o badogue e o peão.
Os brinquedos que o fascinam e atrapalham o seu rendimento
escolar agora são outros: os do amor.
Mas a cobra de asas continua a habitar o imaginário e as fan-
tasias da gente daquela distante região. Contam que Belarmino

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POSFÁCIO

Por Laércio Nora Bacelar*

Meu caro Alan:


A cabo de ler, com prazer maior desdobrado o seu precioso


PRA DIZER QUE FOI ASSIM - Memórias, histórias e ou-
tras invenções. Precioso! Explico: se eu já estava tendo prazer
inicial ao deliciar-me com as primeiras linhas, esse prazer foi
crescendo à medida que eu avançava a cada “causo” (ou con-
to? Ou crônica?) de suas memórias. De repente, você foi me
transportando para sua cidade, para aquelas vilas, enfim, para
sua infância. E eu me senti lá, como se eu tivesse conhecido as
pessoas-personagens – tão ricas de humanismo, de brasilidade
e baianidade – que povoam seu universo memorial.
Lá estava eu, caminhando por ruas “pedregulhosas” ou po-
eirentas, e a cada passo encontrando uma a uma as criaturas
humanas singulares, gente humilde, habitantes de casinhas de
taipas ou de taperas, todas riquíssimas de humildade. Imedia-
tamente, lembrei-me de alguns belos versos da letra de Simpli-
cidade (da banda Mineira Pato Fu): “Quanto menor a casinha /
Mais sincero o bom dia / (...) Tem dente a mais no sorriso / (...)
Quanto mais simplicidade / Melhor o nascer do dia...
Essa gente muito gente, de uma simpatia cativante, confesso,
conquistou-me não só por ser como era e como é em seus textos,
mas também pelo modo de falar, suas baianidades linguísticas

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Alan Oliveira Machado PRA DIZER QUE FOI ASSIM (Histórias, memórias e outras invenções)

tão bem colocadas e estilizadas pelo seu talento nas falas que en- sintática e na literária – espelhasse a cidade, as vilas, o povo.
tremeiam a maioria dos textos. Todas me soaram tão bem, tanto Ou seja, sinto uma relação íntima entre a construção textual e
do ponto de vista fonético quanto do semântico-estilístico. Isso a (re)construção de seu rico universo memorial. Some-se a isso
passa inclusive pela nomeação delas, típica das vilas e cidadezi- a concisão, a escolha vocabular ajustada e incisiva, o tom bem-
nhas quaisquer interioranas, nos sertões do País. Num desfile de -humorado da prosa que desfia. Tudo na medida exata, sem ti-
nomes e apelidos curiosos, cada qual tem lá seu charme, sua ele- rar, nem pôr. Não o uso fazer a “minimíssima” sugestão. Para
gância. Elegância de ser simples e ajustar-se ao ser que nomeia – mim, tudo está perfeitamente ajustado. Publique, tão logo seja
de Marinezão, Jaimim e Seu Genéis a Dona Petronila, seu Filon possível, pois, para mim, é Literatura de primeira. Obrigado
e Tia Merinha e Seu Liobino. Entre o início e o desfecho de sua mesmo pelas horas de puro prazer!
obra, meu caro Alan, todos me soaram como se eu tivesse algu-
ma intimidade com eles, como se eu soubesse quem foram ou Abração, Lao
quem são. O mesmo vale para as locações citadas!
Eu não poderia deixar de ressaltar suas reflexões humanís- Belo Horizonte, 16/06/2015.1
tico-filosóficas e sociológicas – autênticas, pessoais e lapidar-
mente sucintas, mas profundas e muito pertinentes, que entre-
meiam os “causos”, as narrativas. Você conhece bem o riscado
e vai além do narrar por narrar. Coloca-se, para, pensa, reflete
e, com isso, mostra o Cidadão e o Homem em que se tornou.
Meu Caro, quanto mais te conheço, quanto mais mergu-
lho no seu universo poético-memorial e ficcional, mais sinto o
quão grande é o Alan, meu amigo. Orgulho-me, em muito, de
um dia ter sido formalmente “seu professor” (em termos aca-
dêmicos). Hoje aprendo muito mais com você, creia-me. Or-
gulho-me por ter apostado em você, pois me sinto plenamente
retribuído e gratificado com a obra que me apresenta. E não vai
aí, com toda sinceridade, nenhuma bajulação ou massagem no
ego, não. Você não precisa disso, nunca precisou. O talento é
seu, autêntico, pessoal, próprio. Homem de Palavra que nasceu
com o dom de expressar-se tão bem com elas: Poeta e Literato,
para usar um termo abrangente.
A par disso, você – já lapidado em Estilística – narra cada
um dos episódios memoriais com a mesma elegância e, ao mes- * Laércio Nora Bacelar, pela ordem, é Mineiro, Atleticano, Escritor premiado
mo tempo, simplicidade, como se seu texto – na construção em prosa e verso, Doutor em Linguística pela Katholieke Universiteit Nijme-
gen (Holanda)

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