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“Estado de Exceção”, por Agamben, leitura urgente para os dias de calor

O clima político no Brasil está quente. Dos juristas mais refinados a Seu Zé, porteiro
do prédio, todos comentam sobre o que se passa em Brasília e fora dela, em Curitiba,
especialmente. A crise política-econômica-moral-social (para não gastar mais hifens e
adjetivos) parece ter despertado um maior interesse da população em geral para as questões
relativas ao Estado de Direito tupiniquim. Acontece que calor demais pode nos deixar
abafados e afobados, o fuzuê de vozes incaláveis e dissonantes nos deixa atordoados. É dever
dos juristas, neste contexto, como pessoas supostamente mais cientes e próximas dos assuntos
em efervescência, manter a cabeça fria e pensar prudentemente sobre o futuro do nosso
Estado de Direito.
Pensar direito o Estado de Direito exige pensar seu avesso, o Estado de Exceção, que
nestes tempos de tumulto e gritaria espreita a todo instante para emergir e instaurar-se
abertamente (porque, veladamente, a exceção já vem se tornando regra, mas sobre isso juro
dissertar mais abaixo). Alguns cartazes levantados nas ruas por rostos incógnitos pedem
intervenção militar, a necessidade de limpar o país de uma sujeira que respinga em todos por
ser cultural - a corrupção, forja o ânimo de uma faxina que precisa ser bem pensada, colocada
nos conformes do que o direito permite. Enfim, o clima de tumulto e a suposta sensação de
que as leis postas protegem pessoas improtegíveis e indefensáveis gera em muitos o desejo de
suspendê-las, excepciona-las por necessidades e causas certas. Calma! Lembrem do calor, do
clima abafado, da afobação. Lembrem da prudência.
Adquirir tal prudência exige pensar direito o Estado de Exceção. Para tanto, a obra de
um italiano sabido, chamado Giorgio Agamben, que recebe exatamente o nome de Stato di
Eccezione (publicado em português pela Boitempo em 2004, com tradução de Iraci D. Poleti),
é um primeiro passo acertado. Neste livro, Agamben demonstra inicialmente uma inquietação:
por que não há ainda uma teoria no direito público que delimite precisamente o status do
Estado de Exceção? Por que é tão difícil situá-lo? Tantas teorias, explicações e páginas
escritas sobre o Estado de Direito, tão poucas sobre o seu avesso: por que calam quanto ao
que lhes diz respeito, juristas? Assim, esta questão permanece em uma zona cinzenta,
indeterminada, numa terra de ninguém (como disse Agamben).
Nesse sentido, na tentativa de entender melhor a natureza deste fenômeno obscuro, nos
porões e subsolos do direito, o autor recorrerá a uma genealogia dos Estados de Exceção – em
Roma (o Iustitium, solstício das leis romanas invocado pelo Senado diante do tumultus,
traduzido regionalmente como muvuca); mas também da Modernidade, onde nasce o Estado
de Direito tal qual conhecemos, até os tempos atuais. Este passeio inclui a Revolução
Francesa, Robespierre, o entreguerras, Hitler, Mussolini, etc. Deve-se alertar, contudo, que o
Estado de Exceção não precisa se instaurar por rupturas ditatoriais e contrárias aos anseios
sociais. Ele ganha força exatamente diante do tumulto e da necessidade (qualquer semelhança
com o caso brasileiro NÃO É mera coincidência).
Contudo, a necessidade não pode ter status jurídico porque ela é justamente aquilo que
permite excepcionar a regra. Diante de uma urgência da vida, suspende-se a ordem porque ela
não parece mais viável ou porque há o imperativo de algo maior em jogo. Mas este é um juízo
extremamente subjetivo e ideológico, que abre margem para polarizações imensas em que
qualquer coisa pode ser justificada. Quem diz o que é certo e errado na necessidade? Sendo
ela extrajurídica, os melhores exemplos de sua materialização extrema, as revoluções, a
resistência e as guerras civis, são acontecimentos nos quais a conduta do homem é
abandonada pelo direito. Diz Agamben que nessas situações não se pode agir contra nem
conforme o direito, só se pode não aplicá-lo, inaplicá-lo.
Comentando sobre a “luta de gigantes acerca de um vazio”, isto é, as disputas entre
Schmitt (famoso jurista e teórico da política nazista) e Benjamin (aquele da escola de
Frankfurt), relativas à natureza do Estado de Exceção – o vazio, Agamben vai dando
seguimento a seu livro. Schmitt advoga que este “vazio” ainda se relaciona com o direito por
resultar da decisão do Soberano. Soberano seria quem pode instaurar a exceção e desaplicar a
lei ou aplicar o que antes não era. Benjamin, por outro lado, diz que a violência deste tipo de
Estado foge completamente ao controle do direito, porque não é possível inscrever o caos na
ordem e pretender controla-lo no momento seguinte. O Estado de Exceção, diz Agamben, é
uma anomia – ausência de norma, porque nele as normas com forma-de-lei (criadas conforme
o Estado de Direito constitucional) não necessariamente terão força-de-lei e serão aplicadas.
Do mesmo modo, podem ser aplicadas leis que tenham força, mas não forma de lei. O caos é
a ordem da vez e nem o temido Leviatã de Hobbes, absolutista, assusta perto disso. O autor
adverte que o Estado de Exceção é mesmo uma terra nebulosa, entre a democracia e o
absolutismo.
Deste modo, peço especialmente aos juristas que considerem a gravidade do assunto
aqui discutido. A despeito de calores e furdunços nos debates sobre a política nacional, a
despeito da polarização cega, consideremos todos a gravidade do assunto: invocar o Estado de
Exceção é conjurar um demônio imprevisível e incontrolável. Parece a alguns que é muito
mais fácil resolver nossos problemas urgentes e necessidades através dele, mas a que custo?
Vamos pela via mais difícil: pelo debate democrático (deve-se ouvir e ser ouvido livremente),
pelo Estado de Direito, ainda que mesmo nele haja inúmeras brechas para exceções – vejam a
lei antiterrorismo recém-aprovada, por exemplo.
É urgente respeitar as garantias processuais sem esquecer que a luta contra um Estado
de Exceção que permite excepcionar pessoas (como em Auschwitz) também passa pelos
lugares onde ele já se tornou regra – nas periferias e favelas brasileiras, onde se prende sem
flagrante delito ou mandado judicial, onde o lar inviolável é violável, onde o direito à
intimidade é quebrável, onde a pena de morte é permitida. Prender os ladrões sem obedecer
ou suspendendo a aplicação do processo e de suas garantias é instaurar o terror jacobino e
transformar quem supostamente é “herói” em aberração. Portanto, vamos pensar no assunto
profundamente, como exige sua complexidade e gravidade. Vamos ler Giorgio e comentar
sobre ele com Jorginho, primo de Seu Zé, também porteiro, morador da periferia e
excepcionável, também afobado nestes dias difíceis. Vamos diminuir o calor, a afobação e a
muvuca através da leitura, do debate esclarecido, da conversa, da democracia.
Por: Victor Ribeiro da Costa, Acadêmico de Direito da UFS.

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