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Análise estratigráfica das sequências neoproterozóicas da Bacia do São


Francisco

Article  in  Revista Brasileira de Geociencias · December 2007


DOI: 10.25249/0375-7536.200737S4156167

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2 authors, including:

Valesca Brasil Lemos


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Revista Brasileira de Geociências Mariela Martins & Valesca Brasil Lemos 37(4 - suplemento): 156-167, dezembro de 2007

Análise estratigráfica das seqüências neoproterozóicas da Bacia do


São Francisco
Mariela Martins1 & Valesca Brasil Lemos2

Resumo  Os princípios da estratigrafia de seqüência foram utilizados para realizar uma análise estratigráfica
nas seqüências sedimentares neoproterózoicas da Bacia do São Francisco (Brasil Central). Foram reconhecidos
três períodos de deposição separados por discordâncias na Megasseqüência São Francisco: (1) Seqüências 1
e 2, seqüência glaciogênica de Idade Criogeniana seguida de uma rampa carbonática distalmente escarpada
desenvolvida sobre condições tectônicas estáveis, (2) Seqüência 3, rampas homoclinais estaqueadas com se-
dimentação mista carbonática-siliciclástica de idade Criogeniana Superior, depositada sobre uma progressiva
influência dos esforços compressivos do Ciclo Brasiliano, (3) Seqüência 4, plataforma rasa de idade Ediacara-
na Inferior dominada por sedimentação siliciclástica de natureza molássica, produto da erosão dos cinturões de
empurrão em elevação nas áreas adjacentes. Cada uma das seqüências carbonáticas apresenta uma assinatura
isotópica δ13C distinta. A superposição com a curva de variação isotópica global do carbono permite o reconhe-
cimento de um hiato deposicional entre as megasseqüências Paranoá e São Francisco, e sugere que a deposição
dos diamictitos (Formação Jequitaí) teve lugar mais provavelmente ao redor de 800 Ma. Isto limita a deposição
da Megasseqüência São Francisco ao intervalo entre 800 e 600 Ma (idade reconhecida do limite superior da
Orogenia Brasiliana). Um hiato deposicional de expressão menor (700-680 Ma) foi também identificado sepa-
rando as seqüências 2 e 3. As análises isotópicas sugerem que a partir desse momento, condições ambientais
mais restritas estabeleceram-se na bacia, provavelmente associadas com um evento global de primeira ordem,
que prevaleceu durante toda a deposição da Seqüência 3.

Palavras-chave: estratigrafia, seqüências, Neoproterozóico, isótopos.

Abstract  Stratigraphical Analysis of the Neoproterozoic Sedimentary Sequences of the São Fran-
cisco Basin.  A stratigraphical analysis was performed under the principles of Sequence Stratigraphy on the
neoproterozoic sedimentary sequences of the São Francisco Basin (Central Brazil). Three periods of deposition
separated by unconformities were recognized in the São Francisco Megasequence: (1) Sequences 1 and 2, a
cryogenian glaciogenic sequence, followed by a distal scarp carbonate ramp, developed during stable condi-
tions, (2) Sequence 3, a Upper Cryogenian stack homoclinal ramps with mixed carbonate-siliciclastic sedimen-
tation, deposited under a progressive influence of compressional stresses of the Brasiliano Cycle, (3) Sequence
4, a Lower Ediacaran shallow platform dominated by siliciclastic sedimentation of molassic nature, the erosion
product of the nearby uplifted thrust sheets. Each of the carbonate-bearing sequences presents a distinct δ13C
isotopic signature. The superposition to the global curve for carbon isotopic variation allowed the recognition
of a major depositional hiatus between the Paranoá and São Francisco Megasequences, and suggested that the
glacial diamictite deposition (Jequitaí Formation) took place most probably around 800 Ma. This constrains
the São Francisco Megasequence deposition to the interval between 800 and 600 Ma (the known ages of the
Brasiliano Orogeny defines the upper limit). A minor depositional hiatus (700−680 Ma) was also identified
separating sequences 2 and 3. Isotopic analyses suggest that from then on, more restricted environmental
conditions were established in the basin, probably associated with a first order global event, which prevailed
throughout deposition of the Sequence 3.

Keywords: stratigraphy, sequence, Neoproterozoic, isotopes.

INTRODUÇÃO  O presente trabalho enfoca os pro- mente plataformas mistas, carbonático-siliciclásticas,


cessos deposicionais, sistemas e unidades estratigrá- acha-se aí representado e presta-se aos objetivos pro-
ficas do Neoproterozóico da Bacia do São Francisco. postos a seguir.
Nessa bacia, particularmente na área conhecida como Na Faixa de Dobramentos Brasília, a tectônica
Faixa de Dobramentos Brasília, ocorrem excelentes compressional do Ciclo Brasiliano trouxe à superfície
afloramentos de quase todo o seu registro sedimentar, o registro sedimentar da bacia referente ao intervalo
do Mesoproterozóico ao Neoproterozóico. Um espec- Mesoproterozóico/Neoproterozóico. A tectônica, nesse
tro muito amplo de ambientes sedimentares, principal- aspecto, foi um agente facilitador para o geólogo, mas

1 – PETROBRAS, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: marielam@petrobras.com.br


2 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS), Brasil. E-mail: valesca.lemos@ufrgs.br

156 Arquivo digital disponível on-line no site www.sbgeo.org.br


Mariela Martins & Valesca Brasil Lemos

os dobramentos dificultaram a interpretação estratigrá- CONTEXTO GEOLÓGICO  O intervalo Meso/Ne-


fica, gerando um grande número de colunas estratigrá- oproterozóico representa, de forma genérica, uma sedi-
ficas, onde muitas das unidades foram delimitadas com mentação mista carbonática/siliciclástica, em ambiente
base em critérios geotectônicos e/ou geocronológicos, inicialmente plataformal dominado por ondas de tem-
associados a uma visão estratigráfica clássica de bolo pestades e marés, e que, a partir do Neoproterozóico,
de camadas. Assim, além das dificuldades impostas passa a se caracterizar como uma rampa muito suave.
pela grande extensão da bacia, ao se tentar compreen- Os depósitos neoproterozóicos foram divididos em se-
der a história das coberturas sedimentares dela como qüências deposicionais com base no reconhecimento de
um todo, o intérprete se depara com um emaranhado de discordâncias, em variações bruscas no empilhamento
nomes, que não se ajustam e que pouco acrescentam à vertical das fácies e em contrastes fortes nos perfis iso-
história deposicional da mesma. tópicos do δ13C (Martins 1999).
Nenhuma das análises estratigráficas já propos-
tas para o intervalo Neoproterozóico nessa área utili- ANÁLISE SISMOESTRATIGRÁFICA  A partir
zou a estratigrafia de seqüências como ferramenta para da análise sismoestratigráfica, foram reconhecidas duas
individualização de unidades estratigráficas e compre- megasseqüências, separadas por uma discordância de
ensão dos seus respectivos processos deposicionais. A expressão regional, que coincide com o limite já esta-
revisão estratigráfica realizada por Dominguez (1993) belecido entre o Supergrupo São Francisco e o Grupo
para as coberturas sedimentares proterozóicas do Crá- Paranoá. Representam dois momentos distintos de pre-
ton do São Francisco foi a primeira abordagem mais enchimento da bacia, com estilos próprios e provavel-
regional suportada por esse enfoque, centralizada, po- mente sobre condições tectônicas diferentes. Informal-
rém, principalmente nos dados relativos à Chapada mente serão denominadas de megasseqüências Paranoá
Diamantina. (inferior) e São Francisco (superior) (Fig. 1).
Aqui se apresenta, portanto, o estudo detalhado A Megasseqüência Paranoá, que não faz parte
desse intervalo, utilizando a Estratigrafia de Seqüên- do escopo deste trabalho, se caracteriza por apresentar
cias, com dados sistematicamente obtidos em inúme- uma sismofácies com raras reflexões internas, típica de
ras viagens ao campo, cobrindo as áreas sedimentares seqüências mais arenosas. Em direção à borda oeste da
neoproterozóicas da Faixa de Dobramentos Brasília e bacia, um conjunto de reflexões plano paralelas aparece
parte das coberturas neoproterozóicas adjacentes ao no topo dessa seqüência, provavelmente relacionadas
Cráton do São Francisco. Foram utilizadas informações à presença de depósitos carbonáticos, dentro do con-
de subsuperfície (secções sísmicas e poços profundos texto de plataforma mista. Entretanto, face ao processo
perfurados pela PETROBRAS e CPRM e localizados de deformação compressional de idade Brasiliana, que
na porção central da bacia) das áreas cratônicas não de- afetou epidermicamente toda a borda oeste, é difícil
formadas e afloramentos em Goiás e Minas Gerais. correlacionar os eventos deposicionais observados em

Figura 1 - Desenho esquemático sobre linha sísmica da Bacia do São Francisco, mostrando duas sismofácies
distintas: (A) Megasseqüência Paranoá com raras reflexões internas, e que em direção a borda oeste apresenta
um conjunto de reflexões paralelas no topo e (B) Megasseqüência São Francisco com três conjuntos de reflexões
internas de alta freqüência, intercalados às áreas de caráter caótico, correspondentes aos ciclos deposicionais
carbonáticos separadas por (C) uma superfície de forte amplitude (discordância).

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superfície com seu correspondente sísmico. ralógico, localização e preservação da fábrica original
Por outro lado, a Megasseqüência São Francisco da amostra. Isto sugere que esses registros representam
exibe três conjuntos de reflexões internas, de alta freqü- um sinal isotópico primário, com condições de correla-
ência, intercalados às áreas de caráter caótico ou com ção em escala regional.
variações laterais de amplitude, que correspondem aos A figura 2 exibe a comparação dos perfis de δ13C
ciclos deposicionais carbonáticos desse intervalo (Fig. obtidos por vários autores, em diferentes localizações
1) e que foram amplamente amostrados pelos poços. no cráton, correlacionando anomalias similares. Da base
A discordância, que separa essas seqüências, para o topo, os valores δ13C foram assim agrupados: (a)
aparece sismicamente como uma superfície de forte carbonatos da Megasseqüência Paranoá com valores em
amplitude, contra a qual são observados recobrimen- torno de 0‰, (b) carbonatos menos enriquecidos em
tos em onlap dos carbonatos basais da Megasseqüência δ13C (valores inferiores a 5‰, área cinza hachurada) da
São Francisco (Fig. 1). Megasseqüência São Francisco (Fm. Sete Lagoas) e (c)
carbonatos mais enriquecidos em δ13C (valores superio-
ANÁLISE ISOTÓPICA DO δ13C  Os trabalhos mais res a 5‰) do topo da Megasseqüência São Francisco.
sistemáticos envolvendo a estratigrafia isotópica, ao Observa-se que, valores acentuadamente mais
longo de seções completas no Cráton do São Francis- negativos (em torno de -5,0‰) ocorrem na base dos
co, concentram-se principalmente nos carbonatos dos grupos Bambuí/Una ou Megasseqüência São Francis-
grupos Bambuí e Una (Martins 1999). A maior parte co (base da área hachurada da Fig. 2), associados às
dos valores de δ13C obtidos nos perfis isotópicos segue fácies dolomíticas avermelhadas e imediatamente após
uma tendência geral, independente do conteúdo mine- sedimentos glaciogênicos. Essas correlações permitem

Figura 2 - Seção comparativa dos perfis δ13C modificado de Martins (1999) com datum posicionado na quebra
isotópica que marca a passagem dos carbonatos menos enriquecidos em δ13C (valores inferiores a 5‰, área
hachurada) para os mais enriquecidos (valores superiores a 5‰) no Grupo Bambuí. Os carbonatos do Grupo
Paranoá amostrados apenas na Serra de São Domingos (em cinza claro). Para a bacia de Irecê foram plotados
os valores médios (número de amostras indicados no perfil). Escala vertical em metros.

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caracterizar essa anomalia negativa como um evento picos de carbono, os resultados de δ18O apresentam um
isotópico negativo de δ13C de expressão regional. Ano- enriquecimento progressivo em 18O em direção ao topo
malias negativas de δ13C são características de carbona- da seqüência. Esse enriquecimento pode ser interpre-
tos depositados logo após períodos glaciais, refletindo tado como resultado de uma taxa de evaporação mais
mudanças na composição da água do mar decorrentes alta que a precipitação, provavelmente em condições
da deglaciação no Proterozóico Superior (Kaufman et ambientais de águas mais rasas e restritas. Essas condi-
al. 1998, entre outros). ções concordam com o quadro paleogeográfico propos-
A partir dessa anomalia, os carbonatos da área to para a seqüência carbonática inferior da Megasseqü-
hachurada apresentam uma assinatura de δ13C normal- ência São Francisco (Formação Sete Lagoas), de rampa
mente positiva (entre 0,0 e 5,0‰), sucedida por um distalmente escarpada e estaqueada, com as áreas rasas
salto isotópico para valores em torno de 10‰. Nota-se prolíferas em microbialitos.
ainda, que o comportamento isotópico do intervalo com Outro mecanismo possível para explicar o en-
valores de δ13C entre 0,0 e 5,0‰ varia na direção nor- riquecimento em δ13C nos carbonatos do topo da Me-
deste, isto é, nessa direção o enriquecimento em δ13C é gasseqüência São Francisco seria pelo processo de me-
gradual até atingir valores máximos próximos de 5,0‰ tanogênese (matéria orgânica® 12CH4 + 13CO2). Se na
(vide perfis 1-RF-1-MG, 9-PSB-13-MG e 1-MA-1-MG diagênese esse 13CO2 for incorporado aos carbonatos,
na Fig. 2). Para oeste existe uma constância de razões esses serão enriquecidos em δ13C, com valores superio-
isotópicas em torno de 0,0‰ (perfis 1-RC-1-GO, Serra res a 5‰. Esse mecanismo é controlado pela atividade
de São Domingos e região de Sete Lagoas na Fig. 2). microbial, sendo mais efetivo nos processos de fermen-
Qual o significado desse salto isotópico durante tação (Irwin 1980).
a sedimentação dos carbonatos da Megasseqüência São O efeito conjunto desses dois mecanismos (au-
Francisco? Levando em conta que não existe nenhuma mento da evaporação e produtividade orgânica) resulta
grande lacuna no registro sedimentar desses perfis, o numa elevação tanto das razões isotópicas δ13C, quanto
salto positivo de 5,0‰ em δ13C representaria um even- das razões δ18O (Li & Ku 1997).
to isotópico de escala regional, característico da por- O registro de δ13C mais completo na bacia é o
ção superior dos carbonatos da seqüência inferior da da Serra de São Domingos, por incluir também os car-
Megasseqüência São Francisco (leia-se Formação Sete bonatos mais antigos pertencentes à Megasseqüência
Lagoas). A sua ocorrência de forma abrupta em todos ou Grupo Paranoá (Fig. 2). Os valores de δ13C desses
os perfis, após um conjunto de valores entre 0,0 e 5,0‰, carbonatos aparecem depletados em torno de 1,5‰
é mais um indicativo de tratar-se de um marco cronoes- com relação aos carbonatos da base da Megasseqüência
tratigráfico, uma discordância, possivelmente associada São Francisco, sugerindo um aumento nas condições de
a um evento global de 1a ou 2a ordem. O mapa de loca- restrição da bacia na passagem Paranoá-São Francisco.
lização dos perfis (Fig. 2) ilustra sua ampla ocorrência Em resumo, a partir da deposição dos carbona-
na bacia. tos da Megasseqüência Paranoá observa-se uma cres-
A descrição das fácies carbonáticas associadas cente restrição nas condições deposicionais da bacia,
a essa discordância isotópica inclui feições de disso- acentuada durante a sedimentação São Francisco. Uma
lução, teepees, gretas de contração, dolomitos, brusca anomalia negativa em δ13C, associada a um evento
mudança faciológica, além de discretas variações nos glacial, marca o início da deposição dos carbonatos
mergulhos regionais (poços 1-RF-1-MG, 1-RC-1-GO, da Megasseqüência São Francisco, formando um ho-
9-PSB-13-MG). rizonte isotópico contínuo, que separa os dois grupos.
Valores extremamente altos de δ13C podem A distribuição regional dos perfis isotópicos da Fig. 2
ser explicados com base no mecanismo de enriqueci- mostra, durante a deposição da primeira seqüência car-
mento isotópico por evaporação de salmouras ou por bonática da Megasseqüência São Francisco (Formação
processos secundários. Uma coluna de água altamente Sete Lagoas), uma área progressivamente mais confina-
estratificada resulta na acumulação de carbono isoto- da na direção nordeste (valores crescentes de δ13C), ao
picamente depletado como matéria orgânica no fundo contrário da situação de aparente equilíbrio nos valo-
dos oceanos, enquanto as águas rasas tornam-se pro- res de δ13C a oeste na bacia (oceano mais ventilado). A
gressivamente enriquecidas em 13C. A evaporação de figura 3 apresenta uma recomposição paleogeográfica
uma massa de água rasa já enriquecida em 13C, pode- hipotética, para esse momento deposicional da Megas-
ria resultar em valores muito positivos de δ13C (Iyer et seqüência São Francisco, baseada nesse comportamen-
al.1995 e Li & Ku 1997). to isotópico. Esse padrão é subitamente modificado, em
Portanto, essa variação positiva no perfil de δ13C algum momento, ao final da deposição desses carbona-
reflete uma mudança no padrão de circulação oceânica, tos, quando novas condições paleogeográficas se esta-
típico de oceanos ventilados para uma situação de ma- beleceram na bacia, provavelmente associadas a algum
res estratificados, com grande potencial de preservação evento global de 1a ordem. Essa nova condição paleo-
de matéria orgânica. ambiental deverá permanecer até o final da deposição
Essa hipótese encontra apoio no comportamen- dos carbonatos da Megasseqüência São Francisco.
to das curvas de δ18O da bacia para esse mesmo inter- As variações isotópicas, que aparecem em esca-
valo conforme discutido por Martins (1999). Embora la mais localizada, foram interpretadas como possíveis
mais afetados por fatores externos que os perfis isotó- efeitos de processos diagenéticos, como por exemplo, a

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Análise estratigráfica das seqüências neoproterozóicas da Bacia do São Francisco

Figura 3 - Recomposição paleogeográfica hipotética


para o início da deposição carbonática da Megas-
seqüência São Francisco baseada na interpretação
dados isotópicos de δ13C da seqüência carbonática
inferior, litologicamente Formação Sete Lagoas (área Figura 4 - Curva isotópica
hachurada da figura 1). O enriquecimento nos valo- generalizada para o carbo-
res de δ13C para nordeste indica aumento nas con- no do Meso ao Neoprotero-
dições de restrição paleogeográfica, numa situação zóico (modificado de Kah et
tipo golfo, no mesmo tempo deposicional. al. 1998).

dolomitização.
como variações seculares do reservatório marinho de
Implicações globais  A construção da curva isotópica carbono e, tentativamente, comparados à curva isotópi-
global para o δ13C no Proterozóico constitui, ainda, um ca global da figura 4.
trabalho em andamento, requerendo um refinamento Os carbonatos da Megasseqüência Paranoá
cronológico e uma interpretação mais consistente de (Serra de São Domingos) apresentam valores compa-
seu registro, tanto do ponto de vista das causas, como tíveis com o intervalo basal do Mesoproterozóico de
das suas conseqüências na biosfera. Recentemente, a 1600 a 1300 Ma, enquanto os carbonatos da base da
compilação dos dados isotópicos e das idades já pu- Megasseqüência São Francisco (na seção apresentada)
blicadas revelou que, do Meso ao Neoproterozóico, o apresentam boa correlação a partir das primeiras excur-
registro isotópico para o carbono pode ser dividido em sões negativas do Neoproterozóico, isto é, a partir de
três intervalos distintos (Kah et al. 1998; Fig. 4): 1000 Ma. Uma vez que valores fortemente positivos de
(1) De 1600 a 1300 Ma, um intervalo de aquies- δ13C só começam a prevalecer ao final do Neoprotero-
cência isotópica (δ13C = 0,0±1,0‰), sugerindo uma es- zóico (a partir de 700 Ma), fica novamente assinalada
tabilidade nos reservatórios de oxidação e redução da a discordância entre os carbonatos da base e topo da
Terra. Megasseqüência São Francisco.
(2) A partir de 1300 Ma, uma nova linha base As excursões negativas de alta amplitude, ob-
se estabelece, com razões isotópicas moderadamente servadas na figura 4 e nos carbonatos basais da Megas-
mais elevadas (δ13C = 3,5±1,0‰), pontuada por muitas seqüência São Francisco, coincidem com unidades car-
excursões negativas breves. bonáticas transgressivas que capeiam depósitos glaciais
(3) Finalmente, entre 800 e 700 Ma, o registro e, comumente, são excelentes ferramentas de correla-
isotópico de carbono torna-se extremamente positivo ção regional. Entre os períodos glaciais, os carbonatos
(valores excedem 5,0‰) com excursões muito negati- são fortemente enriquecidos em δ13C. Essas variações
vas. isotópicas bruscas são reflexos de mudanças: (1) na
Conforme discutido, os registros isotópicos para produtividade biológica na superfície dos oceanos, (2)
o δ13C, até agora existentes na Bacia do São Francisco, na composição isotópica dos reservatórios de carbono,
mostram ampla correlação regional com padrões iso- (3) no padrão de circulação vertical dos oceanos, (4) no
tópicos dissociados de mudanças litológicas e de am- fracionamento isotópico relacionado com a concentra-
bientes deposicionais. Por isso podem ser interpretados ção do íon carbonático e (5) no fracionamento orgânico

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Mariela Martins & Valesca Brasil Lemos

sobre a taxa de soterramento do carbono total. Todos entre os dois tratos.


esses fatores estão vinculados a variações climáticas Quando a queda do nível do mar ultrapassa o
globais (Hoffman et al. 1998). nível base de ondas normais (3a ordem), os sedimentos
Essa dicotomia paleoclimática (associação de de rampa interna do trato de mar baixo irão ficar com-
diamictitos glaciais com carbonatos típicos de águas pletamente dissociados do trato de mar alto anterior.
quentes) é considerada ainda um enigma na história Uma queda do nível do mar dessa ordem pode expor e
do Neoproterozóico. Entre as várias hipóteses aponta- carstificar a rampa interna, e sedimentos fluviais podem
das por Hoffman et al. (1998), pode-se citar a redução cortar a área exposta e se acumular mais distalmente
da luminosidade solar, a alta obliqüidade orbital, o re- (Burchette & Wright 1992). Baseado nesse modelo, os
baixamento do nível de CO2, a migração dos pólos, o depósitos da Megasseqüência São Francisco foram di-
aumento rápido do efeito albedo, a reinterpretação dos vididos em no mínimo quatro seqüências deposicionais
diamictitos como derivados de megaimpactos e os oce- distintas, a saber, (Fig. 6):
anos estagnados.
Seqüência 1  A Seqüência 1 corresponde aos depósi-
MEGASSEQÜÊNCIA SÃO FRANCISCO  Se- tos glaciogênicos da Formação Jequitaí, que foram aqui
gundo o modelo paleogeográfico proposto por Martins separados pela natureza dos processos a eles relacio-
(1999), a Megasseqüência São Francisco teria se depo- nados, muito distintos das seqüências posteriores. Sis-
sitado a princípio sobre uma topografia irregular, que micamente não se observa nenhuma discordância entre
evoluiu para uma rampa carbonática distalmente escar- essa unidade e as sobrejacentes, e sim uma concordân-
pada e posteriormente para uma sucessão de rampas cia relativa, mas o recobrimento sísmico ficou limitado
homoclinais empilhadas (Fig. 5). às porções baciais da bacia, principalmente para esse
Os comportamentos das superfícies de correla- tempo (Fig. 1).
ção abaixo e acima do datum na figura 5 são bem dis- Na borda noroeste, onde foram descritas as
tintos, individualizando dois momentos deposicionais seções de superfície, o limite entre essa seqüência e a
diferentes. A princípio, a bacia carbonática teve sua Megasseqüência Paranoá é erosivo e expõe diferentes
morfologia controlada pelo substrato, podendo ter um níveis da seqüência subjacente. Tal fato sugere que essa
padrão homoclinal, onde as fácies carbonáticas de água região era topograficamente mais elevada, do que a área
rasa passam gradualmente para água profunda e depois onde existe recobrimento sísmico, provavelmente uma
para sedimentos baciais ou distalmente escarpados. região plataformal.
Posteriormente, esse sistema evoluiu para uma suces- Na serra da Água Fria, os pavimentos estriados
são de rampas empilhadas verticalmente (ramp stack). imediatamente abaixo desses depósitos e a distribuição
Como em todas as plataformas carbonáticas, a de diamictitos maciços entre diamictitos estratificados
unidade básica de construção de uma rampa são os ci- e amalgamados na base dessa seqüência indicam a exis-
clos deposicionais de rasamento ou paraseqüências de tência de outro alto topográfico a leste. Esses depósitos
pequena escala. Com exceção das rampas distalmente provavelmente pertencem a um trato de sistema diverso
escarpadas, a sua espessura final raramente irá ultrapas- dos observados em subsuperfície (Figs. 5 e 6).
sar 200 metros, refletindo o pouco espaço de acomoda- Não é simples a interpretação, do ponto de vista
ção disponível (Wright & Burchette 1996). Como um climático, dos diamictitos das seqüências glaciais anti-
mecanismo de defesa, as taxas de produção sedimentar gas em termos de avanço e retração dos ciclos de gelo,
também não serão muito altas. Em geral, as sucessões porque são muitos os fatores que controlam a acumu-
carbonáticas em uma rampa mostram uma acreção ver- lação e preservação dessas litofácies nas bacias mari-
tical e lateral cumulativa, por meio de um processo re- nhas (Eyles et al. 1985). Durante o nível de mar baixo,
petitivo de afogamento, recuperação e progradação em ocorre erosão, seguida de deposição subglacial. Gelo
resposta a uma subida relativa do nível do mar de 2a ou proximal, seguido de gelo distal e sedimento marinho
3a ordem. Esse é o processo que irá gerar as sucessões ocorre durante a subida glácio-eustática do nível do
empilhadas verticalmente ou ramp stack. mar. O rebote gerado pela compensação isostática pós-
As superfícies de afogamento são facilmente glacial tenderá também a ser erodido. Assim, unidades
identificáveis pela variação brusca de fácies de carbona- diamictíticas resultantes de retrabalhamento podem ser
tos proximais para fácies de rampa externa (mudstones geradas durante vários momentos da história de sedi-
terrígenos, lamas carbonáticas argilosas ou ritmitos), mentação de uma bacia (Miller 1996).
que se tornam mais rasa em direção ao topo, até a unida- Neste trabalho não foi realizado um estudo de-
de seguinte, mais proximal (Wright & Burchette 1996). talhado das associações glaciogênicas e seus limites de
O mais crítico nos modelos de rampas carboná- seqüência, de forma a determinar as variações do nível
ticas é a identificação em rampas homoclinais dos tra- do mar, à medida que a capa de gelo declina e aumen-
tos de mar baixo. Devido ao ângulo de mergulho muito ta. Entretanto, a presença dessas associações de fácies
baixo das rampas, se a queda relativa do nível do mar preferencialmente junto à paleodepressões, associadas
for pequena (4a ou 5a ordem), serão muito poucas as aos eventos de ressedimentação por fluxos gravitacio-
variações sedimentares entre o trato de sistema de mar nais pode ser interpretada como um trato de sistema
alto e o trato de mar baixo subseqüente. Apenas a pre- de mar alto durante um período de deglaciação. Mas
sença de feições de exposição poderá assinalar o limite pode também corresponder à parte de uma cunha do

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Análise estratigráfica das seqüências neoproterozóicas da Bacia do São Francisco

Figura 5 - Seção paleogeográfica esquemática com as principais subdivisões ambientais. O datum de referência
são os folhelhos mais radioativos da seqüência transgressiva (Formação Serra de Santa Helena), acima das uni-
dades carbonáticas basais da cobertura cratônica.

Figura 6 - Seção esquemática da Megasseqüência São Francisco, baseada em dados de subsuperfície mostran-
do as seqüências e os tratos de sistemas reconhecidos.

trato de sistema de mar baixo, resultado da erosão do progradacional bem marcada, muito clara em perfil e
rebote isostático pós-glacial. Em ambas as alternativas, no empilhamento faciológico, podendo ser dividida em
os diamictitos amostrados não estariam registrando um dois ciclos deposicionais de maior ordem (S2a e S2b),
evento glacial, mas a erosão e retrabalhamento de seus separados por um limite de seqüência (LS2a) inferido
sedimentos (Fig. 7.1). a partir da brusca variação no padrão faciológico e de
perfis. O trato de sistema de mar baixo só pode ser ob-
Seqüência 2  A seqüência 2 abrange litoestratigrafi- servado nas porções baciais e nas áreas deprimidas dos
camente os carbonatos da base da Formação Sete La- paleoaltos, como corpos de carbonatos maciços interca-
goas até seu terço superior. Apresenta uma tendência lados a folhelhos resultantes de fluxos gravitacionais ou

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Figura 7 - Modelo deposicional para a Megasseqüência São Francisco.

fluxo de detritos (Figs. 6 e 7.2). suas fácies, que reflete um gradual aumento da lâmina
Os dolomitos, que recobrem abruptamente os d’água. Na ausência de outras feições diagnósticas, as
diamictitos glaciogênicos, estariam associados ao iní- superfícies de inundação máxima (SI2a e SI2b) foram
cio do trato de sistema transgressivo. Essa justaposi- assinaladas considerando o intervalo com leituras ra-
ção carbonato dolomítico-diamictito é encontrada em dioativas mais altas nos perfis de raios gama (Fig. 6).
muitas sucessões glaciomarinhas neoproterozóicas, Os tratos de sistema de mar alto constituem
como no Grupo Otavi, Cráton do Congo, na Namíbia quase 80% de o registro sedimentar das rampas interna,
(Hoffman et al. 1998), na Formação Egan, na região intermediária e externa nessa seqüência (Figs. 5 e 6). A
de Kimberley, Austrália (Corkeron 1998) e na platafor- deposição da seqüência S2b (superior) parece ter sido
ma carbonática neoproterozóica Krol, Índia (Kaufman o clímax da deposição carbonática, com uma sucessão
et al. 1998). Se essa capa carbonática fosse típica de progradante de fácies, quase sem aporte de terrígenos
águas quentes, implicaria numa troca climática abrupta. (Figs. 5 e 6). Nas áreas de rampa interna, os depósitos
Entretanto, os dados isotópicos de δ13C indicam águas possuem uma assinatura gama uniforme, com valores
mais doces, que podem estar associadas a uma degla- cada vez mais baixos em direção ao topo, devido à pre-
ciação e, portanto, a águas mais frias. A deposição des- sença de construções microbiálicas (estromatólitos).
ses dolomitos teria ocorrido durante o período de de- O reconhecimento de uma superfície de expo-
glaciação e subida do nível do mar, quando o aporte de sição subaérea junto à rampa interna, associada a uma
terrígenos é reduzido, ou estaria associada à existência extensa dolomitização, brusca variação faciológica e
de fluxos carbonáticos detríticos dentro dos depósitos forte quebra isotópica de amplitude regional nos valo-
glaciais (Miller 1996), o que não parece ser o caso. res de δ13C, ajudou a estabelecer o limite (LS2) entre as
Os tratos de sistema transgressivos são carac- seqüências 2 e 3. Com exceção da porção bacial da ba-
terizados, em perfil, pelo caráter retrogradacional de cia (onde só ocorre a quebra isotópica), a justaposição

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Análise estratigráfica das seqüências neoproterozóicas da Bacia do São Francisco

desses critérios pode ser considerada regional. geometrias progradacionais e retrogradacionais sutil-
A dolomitização é interpretada como tendo mente comprimidas (Burchette & Wright 1992).
ocorrido tanto durante a deposição, quanto na exposição Na figura 6, a seqüência 3 foi subdivida a partir
subaérea dessa seqüência, no período de rebaixamento do trato de sistema de mar alto em três seqüências de
do nível do mar. O topo de sua ocorrência coincide com mais alta freqüência, predominantemente agradacio-
o salto isotópico positivo nos valores de δ13C em qua- nais, de forma a ilustrar o empilhamento vertical des-
se 5,0‰, fato interpretado como um evento isotópico sas sucessões. Em todas as três, os limites de seqüência
regional de 1a ou 2a ordem. Os dolomitos mesocrista- coincidem com uma superfície transgressiva. Na área
linos da rampa interna são mais enriquecidos em δ13C, do poço 1-FLU-1 (rampa interna), por exemplo, o li-
se comparados aos dolomitos das rampas externa e in- mite da seqüência inferior (LS3a) é marcado por uma
termediária. Isto sugere uma água do mar com tempe- súbita variação faciológica, de fácies proximal de pla-
ratura de evaporação e salinidade altas (Mutti & Simo nície de maré para fácies de afogamento. O substancial
1994) e coincide com o aumento de restrição apontado desenvolvimento de depósitos de rampa externo-inter-
pelos dados isotópicos para essas áreas. mediária por toda a bacia (Fig. 7.5) e a presença de um
Seqüência 3  Litoestratigraficamente abrange todo o sistema deposicional de rampa interna apenas a nordes-
registro sedimentar do topo da Formação Sete Lagoas até te (na região do 1-FLU-1) sugerem a existência de uma
o topo da Formação Lagoa do Jacaré. Começa com um rampa/plataforma mais permanente nessa área.
trato de sistema de mar baixo preservado como um com- Um evento transgressivo de ordem maior re-
plexo progradante siliciclástico-carbonático, associado cobre abruptamente o limite de seqüência seguinte
aos depósitos gravitacionais carbonáticos de fundo de (LS3b), uma superfície transgressiva, e atinge com me-
bacia e restrito às suas porções baciais. A presença dessa nor expressão grande parte da bacia. O último trato de
feição é mais condizente com uma fisiografia de rampa sistema de mar alto mostra um caráter progradacional,
distalmente escarpada, pois o mergulho muito baixo das bem exemplificado nos poços 1-RC-1 e 1-RF-1.
rampas homoclinais não é propício ao desenvolvimento Durante a formação dessa última seqüência
de depósitos desse tipo de associação (Figs. 5, 6 e 7.3). completa, no trato de sistema de mar alto, o influxo
Os complexos progradantes de mar baixo pos- de material siliciclástico na rampa não foi suficiente
suem uma natureza mais autóctone que os leques de para cessar a produção carbonática. À medida que o
assoalho de bacia e outros depósitos gravitacionais. A influxo de terrígenos foi aumentando e que o espaço
progradação geralmente ocorre na margem da platafor- de acomodação foi diminuindo, os sistemas de rampa
ma ou rampa, à medida que os sedimentos marinhos externa e intermediária foram sendo forçados a migrar
avançam em direção as áreas mais rasas por sobre a lateralmente em direção à bacia, até o domínio total da
topografia preexistente (Jacquin et al. 1991). sedimentação siliciclástica da próxima seqüência. O
O trato de sistema transgressivo mostra um depocentro da rampa, embora geralmente confinado à
padrão de empilhamento retrogradante, que reflete o parte central da bacia, deve ter variado lateralmente de
gradual afogamento do sistema. Nas rampas externas seqüência para seqüência.
e intermediárias, esse trato é representado por uma sé- Os termos litoestratigráficos associados a esse
rie de sedimentos de alta energia, tipo bancos e barras trato de sistema de mar alto englobam os folhelhos da
oolíticas/oncolíticas, praias e depósitos de tempestades, Formação Serra de Santa Helena a partir da SIM até os
que recobrem as fácies de água mais rasa da seqüên- carbonatos do topo da Formação Lagoa do Jacaré.
cia anterior. A linha de praia avançou fortemente em O limite de seqüência LS3 foi estabelecido a
direção ao continente, de forma a permitir que a quase partir da súbita mudança no padrão deposicional, que
totalidade da bacia fosse capeada por um espesso pa- passa de associações de fácies carbonáticas de rampa
cote de folhelhos (Fig. 7.4). É nesse intervalo que foi intermediária para associações de fácies siliciclástica
posicionada a superfície de inundação máxima (SIM) baciais. Apenas o poço 1-RF-1 amostrou essa passa-
da Megasseqüência São Francisco (Figs. 5 e 6), que gem, e como seu posicionamento é praticamente ba-
coincide com o pico deposicional da Formação Serra cial, não foram observadas evidências de exposição e
de Santa Helena. Nos perfis de raios gama, o trato de truncamentos erosivos (Fig. 5). Também foram poucos
sistema transgressivo exibe padrão bem serrilhado de e pobres os afloramentos que amostraram esse limite, o
alta freqüência, indicando tratar-se de seção muito con- que dificulta o seu traçado.
densada, com baixa taxa de sedimentação.
A partir desse momento criou-se um grande Seqüência 4  Essa seqüência não dispõe de boa amos-
espaço de acomodação, com um mergulho muito mais tragem em subsuperfície. Suas associações de fácies si-
suave que na seqüência anterior. O trato de sistema de liciclástica de muito baixa energia, com raras estruturas
mar alto seguinte exibe um padrão agradacional, empi- associadas a ondas ou correntes, são típicas dos ambien-
lhado, com uma sucessão em maior freqüência de fácies tes plataformais distais e baciais (Fig. 5, poço 1-RF-1).
de mar alto e transgressivas empilhadas verticalmente. Numa análise preliminar será considerada como a parte
Nas rampas empilhadas, a acreção vertical cumulativa distal de uma seqüência progradante de terrígenos ma-
é uma resposta a uma lenta e longa subida relativa do rinhos de plataforma dominada por tempestades (Fig.
nível do mar pontuada por pequenos rebaixamentos, 7.6), que culmina com a chegada do sistema flúvio-del-
que geram depósitos acamadados, com uma série de táico da Formação Três Marias (Chiavegatto 1992).

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DISCUSSÃO: A EVOLUÇÃO DEPOSICIONAL níveis deposicionais da Megasseqüência Paranoá, de-


Um diagrama tempo versus espaço foi tentativamente senvolvendo uma discordância regional significativa.
construído a partir dos resultados apresentados ante- Durante a subida relativa do nível do mar, resultante da
riormente, e integrados aos trabalhos já realizados na “deglaciação Jequitaí”, os depósitos glaciogênicos da
bacia para ajudar a ilustrar a evolução deposicional da plataforma externa foram retrabalhados, gerando depó-
bacia durante o Meso/Neoproterozóico (Fig. 8). Três sitos por fluxos gravitacionais e escorregamentos, que
períodos distintos de sedimentação separados por dis- são conduzidos às áreas deprimidas ou baciais (seqüên-
cordâncias foram reconhecidos: cia 1 da Megasseqüência São Francisco).
(1) Seqüência glaciogênica seguida de uma ram- A paleogeografia da bacia já apresenta uma fi-
pa carbonática distalmente escarpada, de idade Crioge- siografia de rampa distalmente escarpada e as mudanças
niana, bem desenvolvida nas áreas norte/nordeste e sul, climáticas e no aporte de terrígenos criaram condições
em bacia tectonicamente estável (seqüências 1 e 2 da para a instalação de uma fábrica carbonática prolífera
Megasseqüência São Francisco respectivamente); em atividade microbial nas rampas internas e interme-
(2) Rampas homoclinais empilhadas vertical- diárias (seqüência 2 da Megasseqüência São Francisco).
mente com sedimentação carbonática/siliciclástica, de Os valores isotópicos de δ13C sugerem um progressivo
idade Criogeniana, em bacia progressivamente afetada aumento nas condições de restrição e temperatura na
por eventos compressivos vindos da borda oeste (seqü- bacia, à medida que esse sistema carbonático prograda,
ência 3 da Megasseqüência São Francisco), e principalmente na direção nordeste (Fig. 3). Para oeste
(3) Plataforma rasa com sedimentação domi- a situação de aparente equilíbrio isotópico indica con-
nantemente siliciclástica, em bacia do tipo foreland, dições de maior ventilação (mares mais abertos).
com menor expressão regional de idade Ediacarana in- Uma queda relativa do nível do mar culmi-
ferior (seqüência 4 da Megasseqüência São Francisco). na com a exposição subaérea, dolomitização e erosão
A Megasseqüência Paranoá reflete uma deposi- das rampas interna e intermediária, principalmente
ção em uma bacia com uma taxa de subsidência baixa, nas áreas nordeste, sul e noroeste, e a formação de um
que tem idade estimada entre 1350-950 Ma (Faria 1995). complexo progradante de mar baixo no depocentro da
O limite entre as megasseqüências Paranoá e São Fran- bacia, marcando o início da seqüência 3. Essa discor-
cisco representa uma grande queda relativa do nível do dância coincide com um salto isotópico positivo, em
mar, com exposição subaérea e erosão dos sedimentos quase 5,0‰ nos valores de δ13C, de expressão regional,
plataformais. Quando se deu essa passagem? Embora possivelmente associado a um evento global de 1a ou
seja essa uma questão polêmica, a análise dos dados iso- 2a ordem. Nas curvas isotópicas globais de Kah et al.
tópicos de δ13C pode ajudar a situar quando esse evento (1998) e Kaufman (1998), figuras 4 e 9 respectivamen-
ocorreu a situar melhor esse evento no tempo, a saber: te, valores dessa ordem ocorrem entre 600 e 680 Ma,
(i) a correlação dos valores de δ13C dos carbo- deixando um hiato deposicional entre as seqüências 2 e
natos do topo da Megasseqüência Paranoá e a curva 3 de aproximadamente 20Ma.
de variação isotópica global permite estimar um limite O evento transgressivo subseqüente cobriu qua-
máximo de deposição para esses carbonatos em torno se toda a área cratônica, com uma extensa sedimentação
de 1250 Ma (Fig. 4); de rampa distal. Apenas na área nordeste, esse afoga-
(ii) o comportamento muito negativo dos valo- mento possui menos expressão. A partir desse momen-
res de δ13C dos carbonatos da base da Megasseqüência to, o espaço de acomodação da bacia já é bem maior,
São Francisco (em torno de -5,0‰) indicam uma depo- e seu preenchimento pode ser caracterizado como de
sição sob condições marinhas pós-glaciais; uma rampa homoclinal empilhada (ramp stack), aonde
(iii) na curva de variação isotópica global de pulsativamente chegam terrígenos muito finos.
δ13C, as primeiras incursões negativas breves só come- Na seqüência 3, a bacia é completamente dife-
çam a ocorrer a partir de 1000 Ma e ocorrem pontua- rente: a fisiografia é outra, o mar está isotopicamente
damente até 800 Ma (Figs. 4 e 9). A partir de 800 Ma, enriquecido em 13C, os terrígenos competem direta-
as incursões negativas começam a atingir valores em mente com os carbonatos. Que evento teria condicio-
torno de -5,0‰, semelhantes aos encontrados nos car- nado essas mudanças? Para Guimarães & Dardenne
bonatos basais da Megasseqüência São Francisco; (1998), os termos terrígenos da Megasseqüência São
(iv) essas incursões negativas coincidem com Francisco, principalmente a partir da sua transgressão
no mínimo quatro idades glaciais no Neoproterozóico, máxima, indicam que os sedimentos se acumularam
indicadas por triângulos na figura 9 (Kaufman 1998), e em uma bacia já sob influência de processos colisio-
(v) os depósitos carbonáticos, sobrejacentes aos nais. Isto explicaria as aparentes variações laterais no
carbonatos basais isotopicamente negativos, apresen- posicionamento do depocentro deposicional da bacia,
tam valores δ13C muito fracamente positivos, só cor- durante o empilhamento dessa seqüência e o aspecto
relacionáveis aos valores da base da curva global de cíclico da seqüência 3.
Kaufman (1998). Os processos colisionais fazem parte do evento
Sendo assim, um grande hiato deposicional pa- tectônico Brasiliano, que parece apresentar pelo menos
rece separar as duas megasseqüências, sendo possível dois picos deformacionais/metamórficos. O mais velho
que a glaciação Jequitaí tenha ocorrido em torno de (750-790 Ma) é tradicionalmente correlacionado à co-
800 Ma. Um intenso processo erosivo expõe diferentes lisão dos crátons Amazônico e São Francisco, e coinci-

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Análise estratigráfica das seqüências neoproterozóicas da Bacia do São Francisco

Figura. 8 - Diagrama tempo versus espaço para a Megasseqüência São Francisco.

escamas de empurrão a oeste e o aumento do aporte de


terrígenos interromperam definitivamente a sedimen-
tação carbonática. A bacia passa a se comportar como
uma bacia do tipo foreland em relação às faixas de do-
bramentos Brasília e Araçuaí (Alkimim et al. 1996).
Apesar de não existir indicação alguma, o limite entre
as seqüências 3 e 4 deve ter sido erosivo nas porções
proximais da bacia que ficavam a oeste, mas estariam
atualmente erodidos.

CONCLUSÃO  Sistemas deposicionais carbonáticos


e siliciclásticos coexistem lado a lado, mas sempre em
escala regional e controlados pela variação eustática do
nível do mar. Localmente a deposição é mutuamente
excludente.
O refinamento da coluna estratigráfica do pon-
to de vista da Estratigrafia de Seqüências foi parcial,
tendo sido reconhecidos três períodos distintos de sedi-
Figura 9 - Curva de variação global das composições mentação, separados por discordâncias. A Megasseqü-
isotópicas do carbono (δ13C) e estrôncio 87Sr/86Sr dos ência São Francisco foi dividida em quatro seqüências
carbonatos marinhos nos últimos 800 Ma. Observar deposicionais, a saber: seqüência 1, glácio-marinha; se-
que as variações fortemente negativas de C coincidem qüência 2, carbonática progradacional em rampa distal-
com pelo menos quatro idades glaciais neoproterozói- mente escarpada; seqüência 3, carbonática-siliciclástica
cas, assinaladas com triângulos (modificado de Kauf- em rampa homoclinal e seqüência 4, plataforma rasa
man 1998). progradacional dominantemente siliciclástica.
Essas seqüências estão separadas por discordân-
cias marcadas por descontinuidades faciológicas e fortes
de com o início da deposição da Megasseqüência São quebras isotópicas. Entre as seqüências 2 e 3, a quebra
Francisco. O mais novo (630-600Ma), pode estar rela- isotópica coincide com fácies típicas de exposição suba-
cionado à acreção de um bloco menor na margem oeste érea e níveis de dolomitização. O hiato entre essas se-
da faixa de dobramentos Brasília (Pimentel et al. 1998) qüências foi estimado em 20Ma, por correlação com a
e ser cronocorrelato à deposição da seqüência 4. curva de variação estratigrafia isotópica global do δ13C.
Do ponto de vista estratigráfico, o avanço das A estratigrafia isotópica mostra uma crescente

166 Revista Brasileira de Geociências, volume 37 (4 - suplemento), 2007


Mariela Martins & Valesca Brasil Lemos

restrição nas condições deposicionais da bacia, acentu- estiverem ausentes.


ada durante a deposição da Megasseqüência São Fran- A recomposição paleogeográfica da bacia, ao
cisco. tempo da seqüência 2, mostra uma área progressivamen-
Uma anomalia negativa de δ13C, associada ao te mais confinada a nordeste e mais ventilada a oeste.
“evento glacial Jequitaí”, marca o início da deposição Esse contexto é subitamente modificado ao final da de-
dos carbonatos da seqüência 2, formando um horizonte posição desses carbonatos, quando novas condições pa-
isotópico contínuo, que pode ser usado para assinalar a leogeográficas se estabeleceram na bacia, provavelmen-
discordância que separa as megasseqüências São Fran- te associadas a um evento global de 1a ou 2a ordem.
cisco e Paranoá em áreas onde as fácies glaciogênicas

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