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2002
MEDIDAS
2001) Chefe de Gabinete da Primeira-Se-
cretaria da Câmara dos Deputados
"Quando vi deixarmos de votar nesta (1997-2001). Hoje, é Chefe de Gabi-
Casa [Senado Federal] contra a nete da Liderança do PSDB.
admissibilidade de uma medida pro-
visória que supostamente deveria tratar Este livro originou-se da mono-
PROVISÓRIAS
conferia a possibilidade de o Vice- pecialização. O tema abordado é o
Presidente da República ter um abuso no processo de edição de me-
automóvel, passei a não acreditar nos didas provisórias que vigorou até a
promulgação da Emenda Constitu-
critérios de anterioridade, ou seja, na
cional no 32, de 2001, uma tentativa
obediência aos pressupostos que
do Congresso de restringir o uso das
definem a admissibilidade de uma
medida provisória." (Mário Covas,
1991)
O PODER QUASE ABSOLUTO MP, devolvendo ao Parlamento a sua
mais importante prerrogativa: fazer
leis.
"Esse instrumento [medida pro- O autor faz um estudo compara-
visória] hoje é utilizado de forma tivo dos decretos-leis em diversos
autoritária e absolutista, transfor- países, inclusive na Itália, cuja cons-
mando o Presidente da República em tituição inspirou os constituintes
imperador do País, com funções par- brasileiros; relata a história do de-
lamentares. (...) O Executivo usa e abusa creto-lei no Brasil e os debates sobre
das medidas provisórias, o Legislativo medidas provisórias na Constituinte
não reage e o Judiciário dá uma de 1988; discute as diferenças entre o
decreto-lei e a medida provisória,
interpretação elástica ao conceito de
que, com a promulgação da Carta de
urgência e relevância." (Rubens
1988, passa a ser o instrumento legal
Brasília – 2002
praticados, 1997) tra que a responsabilidade pelo abu-
SECRETARIA so no processo de edição de MP não
ESPECIAL
DE EDITORAÇÃO
E PUBLICAÇÕES
9 788573 652314
se restringe ao Poder Executivo.
*
Francisco da Silva Cardozo
Hundalto Guida
Marco Aurélio Santullo
Brasília – 2002
CÂMARA DOS DEPUTADOS
MEDIDAS PROVISÓRIAS
o PODER QUASE ABSOLUTO
CEDI - BIBLIOTECA
ClCompra R$
~Doaçêo
DIRETORIA LEGISLATIVA
Diretor: Afrísio Vieira Lima Filho
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO
Diretora: Suelena Pinto Bandeira
COORDENAÇÃO DE PUBLICAÇÕES
Diretora: Nelda Mendonça Raulino
SÉRIE
Temas de interesse do Legislativo
n.1
ISBN 85-7365-231-4
CDU 340.135(81)
ISBN 85-7365-231-4
sUMÁRIo
APRESENTAÇÃO
Pelo Aperfeiçoamento da Democracia (Aécio Neves) 5
3. USO E ABUSO
4. CONCLUSÕES 63
5. POSFÁCIO 67
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 71
APRESENTAÇÃO
6
instrumento e alargar o campo das decisões democráticas, abrindo
amplo espaço para o entendimento, a independência e a harmonia
entre os poderes da República.
Neste estudo. Medidas Provisórias - O Poder Quase
Absoluto, o autor faz um resumo de tudo o que existe sobre o assunto,
traçando o percurso do nascimento dos conceitos, seus antecedentes e
sua utilização na prática jurídica e política de vários países do mundo.
Ele percorre ainda o caminho da medida provisória na Constituinte de
1988, acompanhando não apenas sua trajetória na discussão política
entre as diversas forças partidárias em ação no Congresso, mas
também as distorções e desvirtuamentos de que as medidas
provisórias vinham padecendo nesses últimos anos.
Aécio Neves
Presidente da Câmara dos Deputados
7
1. INTRODUÇÃO: MEDIDA PROVISÓRIA
E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES
1 Prazo
que constava no texto da Constituição Federal anterior à promulgação da
Emenda Constitucional n" 32, de 2001.
10
com o consentimento do Congresso Nacional, cuja supremacia em
matéria legislativa é plenamente preservada pela disciplina do art. 62 da
Constituição Federal. Ressalva, ainda, que se deve resistir à tentação
de "imputar todas as vicissitudes relacionadas ao tema à tradição de
comportamento autocrático do Poder Executivo no Brasil.
11
Rubens Approbato Machado, presidente do Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil- OAB, assim se posiciona:
12
Bicudo (1995) denuncia que, na questão do uso das medidas
provisórias, o Poder Executivo invadiu a competência do Poder
Legislativo. A invasão de um poder nas áreas que não lhe são próprias
configura uma balbúrdia intolerável, que pode redundar numa crise
capaz de destruir o Estado Democrático de Direito.
A medida provisória é importante instrumento que permite
ao Presidente da República agir em situações emergenciais, para
preservar o bem-estar social e para que o cidadão não seja submetido a
perigo. Apesar de se adequar mais ao sistema parlamentarista, como
se verá neste trabalho, também pode funcionar no presidencialismo.
Contudo, para o seu emprego adequado, indispensável é o efetivo
funcionamento de mecanismos de controle institucionais.
A importância deste trabalho reside na relevância da
identificação e análise dos abusos cometidos, bem como das suas
causas circunstanciais, com vistas a melhor compreender o fenômeno,
na busca de formas de impedir a sua ocorrência. Pretende-se
demonstrar que, no periodo da promulgação da Carta de 1988 até a
edição da Emenda Constitucional n° 32, de 2001, que regulamentou
a utilização de MPs, o Poder Executivo, em diversas ocasiões,
usurpou a função constitucional do Legislativo de fazedor de leis,
interferiu no Judiciário e desrespeitou direitos e garantias da
Constituição, atentando contra a democracia.
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2. MEDIDA PROVISÓRIA: O INSTRUMENTO E SEU USO
2.1.1 O decreto-lei
15
2.1.1.2 França: moderado uso das ordenanças
16
necessária a autorização legislativa, uma vez que aquela decorre de
uma autorização direta da Constituição.
Por fim, há as ordenanças do art. 16, que concede ao
Presidente da República poderes extraordinários, inclusive
legislativos, em caso de estado de emergência. Apesar dos amplos
poderes conferidos ao Presidente, as ordenanças só são permitidas
após consultados o primeiro-ministro e os presidentes do Senado, da
Assembléia Nacional e do Conselho Constitucional. Não há limitação
com relação às matérias.
Estas ordenanças só foram utilizadas uma vez, no ano de 1961,
para pôr fim a uma rebelião de oficiais na Argélia, que tentavam
estabelecer um governo paralelo.
Além das ordenanças, há ainda os regulamentos autônomos
e de complementação. Aqueles são normas primárias; estes visam
complementar as diretrizes legais, que possuem apenas princípios
gerais.
17
A Assembléia da República, além de possuir a competência de
dispor sobre as matérias reservadas pela Constituição, pode também,
quanto às outras, reservar para si a fixação de princípios gerais,
reduzindo ainda mais o campo de atuação do Poder Executivo, no
âmbito da competência legislativa concorrente.
Outro aspecto que limita a atuação do governo é que o
decreto-lei só pode ser editado pelo Conselho de Ministros, o que
propicia a responsabilidade solidária. Além disso, as leis de delegação
cessam seus efeitos: a) quando revogadas; b) com a sua utilização pelo
governo; c) com a demissão do governo ao qual tenha sido feita
a delegação; d) com o término da legislatura; e) no caso de a
Assembléia editar lei regulamentando matéria objeto de delegação,
quando há revogação implícita desta.
Portanto, a Constituição portuguesa impõe limitações materiais
à edição de decretos-leis e não faz referência a requisitos de urgência,
relevância ou de necessidade premente. Santos (1991, p. 893) alerta
para o perigo que isso representa:
18
e pede o voto de confiança, que deve ser aprovado por maioria
absoluta, em primeira votação, ou por maioria simples, em segunda
votação. Caso rejeitado, sucessivas propostas devem ser submetidas
ao Congresso até que alguém consiga a aprovação.
19
prevê a utilização do decreto-lei apenas em caso de extraordinária e
urgente necessidade. Esses pressupostos devem ser avaliados pelo
Parlamento, que se utiliza de critérios políticos. Entretanto, essa decisão
está sujeita ao controle do Tribunal Constitucional.
Um terceiro aspecto a ser considerado é quanto às limitações
temáticas para a edição de decreto-lei: é vedado o seu emprego em
matérias referentes aos direitos, deveres e às liberdades do cidadão; ao
ordenamento das instituições básicas do Estado; ao regime das
Comunidades Autônomas e o Direito Eleitoral Geral.
Editado, o decreto-lei deve ser submetido imediatamente ao
Congresso dos Deputados, que é convocado se não estiver reunido.
No prazo de trinta dias, o Congresso deve ratificar ou derrogar o
decreto-lei. Este, ratificado, pode tramitar como projeto de lei pelo
procedimento de urgência, desde que requerido por parlamentares,
podendo ser emendado, exceto em sua totalidade, caso que resultaria
em sua devolução. Não havendo solução sobre o decreto-lei no
período de trinta dias, este perde eficácia ex nunc, não afetando os atos
praticados durante a sua vigência. Se, por outro lado, a decisão for
contrária, o decreto-lei é derrogado, também com efeito ex nunc.
A ratificação do decreto-lei não produz uma lei, visto que até
então só se tem o pronunciamento de uma das Câmaras, mas a
habilitação do instrumento legislativo no que diz respeito aos
pressupostos de extraordinária e urgente necessidade. A lei só surge
com a sua publicação no Boletim Oficial do Estado.
Se o Congresso não adotar decisão alguma no prazo de trinta
dias, o decreto-lei perderá toda a eficácia, pois só a ratificação poderia
tirar dele a provisoriedade que o caracteriza quando editado.
Devido ao fato de a Espanha ser uma monarquia parlamentarista,
em que o rei possui a competência de dissolver o Parlamento e o
governo, conforme o caso, e de as limitações à edição de decretos-leis
estarem expressas na Lei Maior, não há grandes problemas no seu uso.
Em caso de crise, o regime parlamentarista permite um pronto retorno
à estabilidade política, visto que, após a dissolução do governo, o
partido majoritário sempre indica o novo presidente.
20
2.1.1.5 Itália: a agilidade necessária
21
para atender situações imprevistas e excepcionais. Mariotti (1999,
p. 40) destaca as seguintes características básicas do decreto-legge:
a) a existência de uma situação de necessidade; b) a ser enfrentada
com urgência; c) por medidas do Executivo com força de lei; d) que
deverão ser submetidas posteriormente ao parlamento.
A Constituição italiana de 1947 trata dos decreti-leggi nos
seguintes termos:
22
aos princípios constitucionais, tanto mais graves em razão de
os efeitos surgidos com fundamento no decreto reiterado
terem sido ressalvados, não obstante a decadência ter-se
verijicado por obra dos decretos sucessivamente produzidos.
Diante dessa exigência a Corte faz votos de que se produzam
rapidamente as reformas necessárias para evitar o
esvaziamento do significado dos preceitos contidos no
art. 77 da Constituição. Ao mesmo tempo, todavia, não pode
escusar-se, como no presente julgamento, de destacar as
violações à Constituição devidas à reiteração dos decretos.
(Mariotti, 1999, p. 45-46)
Em resposta à sugestão judicial, o parlamento aprovou a
Lei n" 400, de 23 de agosto de 1988, cujo art. 15 veda a edição
de decreti-leggi para: a) conceder delegações legislativas; b) dispor
sobre matéria constitucional e eleitoral, autorizar a ratificação de
tratados internacionais, aprovar orçamentos e prestação de contas
orçamentárias; c) renovar as disposições de atos cuja conversão em lei
tenha sido negada, ainda que por uma só das Câmaras do Parlamento;
d) repristinar disposições que a Corte Constitucional tenha declarado
ilegítimas por vícios substanciais ou de competência; e) regular as
relações jurídicas decorrentes dos atos não convertidos em lei.
23
A solução só vina a partir de 1995, quando a Corte
Constitucional da Itália, revogando entendimento anterior, decidiu ser
inconstitucional a reedição de qualquer medida provisória. A seguir,
em 1997, o Parlamento modificou a redação original da Constituição
italiana, limitando a edição de medidas provisórias aos casos de segurança
nacional, calamidadepública e normas financeiras (Castro, 2000).
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o Presidente da República, em casos de urgência ou de
interesse público relevante, e desde que não haja aumento
de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes
matérias: I - Segurança Nacional; 11 - Finanças Públicas,
inclusive normas tributárias; e 1lI - criação de cargos
públicos e fixação de vencimentos.
Posteriormente, o Executivo sairia ainda mais fortalecido em
detrimento do Congresso Nacional. Em 1977, o Presidente Ernesto
Geisel impõe o denominado Pacote de Abril. Tratava-se de um
conjunto de emendas à Constituição e decretos-leis que alteraram as
legislações eleitoral e partidária.
Pessanha (1995, p. 291) chama a atenção para o fato de que
todas as alterações ocorridas no período do regime militar sempre
beneficiaram o Poder Executivo, no que diz respeito à iniciativa da
produção legal no país:
A ampliação do poder de legislar do Executivo não foi
acompanhada por uma correspondente capacidade de
controle e fiscalização do Congresso. Paralelamente ocorreu
a neutralização do Judiciário, ora com a suspensão das
garantias inerentes ao poder de julgar pelos atos
institucionais, ora dificultando o acesso à justiça pelo
monopólio das ações de inconstitucionalidadepelo Ministério
Público, até 1988 diretamente subordinado ao Executivo. O
controle do eleitorado sobre o Poder Executivo tomou-se
inexistente, com a suspensão das eleições diretas em 1965, e
extremamente débil sobre o Legislativo, devido às constantes
mudanças nas regras do jogo mediante a introdução de
casuísmos na legislação eleitoral e partidária.
Como resultado, o referido autor revela que, de 1965, quando
foi criado o decreto-lei, até outubro de 1988, em que foi extinto, a
proporção entre a legislação ordinária e o número de decretos-leis só foi
maior que 2:1 em dois anos: 1965 (330:1) e em 1986 (3:1). Em três
anos a produção entre as duas foi idêntica, e em cinco anos a legislação
extraordinária suplantou a ordinária. Esses números revelam a grande
quantidade de decretos-leis editados no período da ditadura.
26
Por outro lado, o perfil da iniciativa legal, que ou era
equilibrado ou revelava vantagem do Legislativo sobre o Executivo,
alterou-se significativamente após 1964. Até o ano de 1988, nunca a
iniciativa do Legislativo foi superior a 30% de toda a produção legal.
Os decretos-leis só foram extintos com a promulgação da
Constituição de 1988. Pensou-se que, com a extinção desse instrumento
e a criação da medida provisória, estar-se-ia inaugurando novo tempo.
Contudo, a realidade mostra que não foi bem isso o que aconteceu.
27
Governo foi abolido o decreto-lei e criado um instrumento inspirado
pela Carta italiana de 1948, que, além de democrático, pretendiam os
constituintes, fosse fator de modernização e rapidez na ação
administrativa nos casos de importância e urgência.
o aspecto democrático referia-se ao fato de que, com a medida
provisória, esperava-se não mais haver o freqüente abuso na utilização
de um instrumento excepcional, como ocorreu com o decreto-lei.
O que explica o abuso é o fato de que quanto maior o número
de edições de decretos-leis pelo Poder Executivo, menor seria a
chance de o Legislativo deliberar sobre eles no prazo de 60 dias, e,
conseqüentemente, maior a probabilidade de serem aprovados por
decurso de prazo (Figueiredo, op. cit.). Com a medida provisória,
ao contrário, o silêncio do Congresso durante o prazo de 30 dias
significaria a perda da eficácia ex tunc.
A medida provisória esteve presente em todos os relatórios
constituintes até ser apreciada no plenário. O sistema que então
constava no projeto constitucional era o parlamentarismo. O texto que
foi ao plenário para votação era o seguinte:
Art. 76. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da
República, por solicitação do primeiro-ministro, poderá
adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo
submetê-las de imediato, para conversão, ao Congresso
Nacional, que, estando em recesso, será convocado
extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.
Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia,
desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de
trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso
Nacional disciplinar as relaçõesjuridicas delas decorrentes.
[grifo nosso]
No dia 19 de março de 1988, na votação em primeiro turno,
inscreveram-se para falar contra a proposta, os constituintes Adylson
Motta (PDS-RS) e Michel Temer (PMDB-SP); e a favor, os
constituintes Egídio Ferreira Lima (PMDB-PE) e Nelson Jobim
(pMDB-RS). Motta e Temer argumentaram que a medida provisória
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reproduzia o decreto-lei e traria como conseqüências: a diminuição da
capacidade de legislar do Poder Legislativo e o ressurgimento de uma
medida de conteúdo extremamente autoritário, nascida nos regimes
fascistas (Covas, 1991).
O Deputado Egídio Ferreira Lima contra-argumentou:
(. ..) Isto não é um decreto-lei que imperou durante toda a
ditadura. Isto é um mecanismo indispensável ao funcionamento
de um regime democrático. (..) A medida provisória com
força de lei tem 30 dias para ser votada e, se não o for, estará
rejeitada. (Covas,op. cit.)
Em seguida, o Deputado Nelson Jobim assim se posicionou:
30
a) quanto aos pressupostos para a edição, a norma que regia o
decreto-lei utilizava-se da altemativa ou: urgência ou
interesse público; a medida provisória possui maior rigidez
normativa, pois somente pode ser editada em casos de
urgência e relevância (cumulativos);
b) quanto à matéria de que tratam, a norma do decreto-lei
restringia textualmente a sua edição aos seguintes assuntos:
segurança nacional; finanças públicas, inclusive normas
tributárias; criação de cargos públicos e fixação de
vencimentos; para as medidas provisórias, a norma não o
explicitava, estando as limitações dispersas por todo o texto
constitucional, que, segundo o autor, configuraria maior
rigidez para a sua edição;
c) os atos praticados na vigência de um decreto-lei rejeitado
pelo Parlamento são considerados válidos; já aqueles
praticados enquanto em vigor uma medida provisória
posteriormente rejeitada perdem a eficácia desde a edição;
d) o decreto-lei podia ser aprovado por decurso de prazo, se o
Congresso não o apreciasse em 60 dias; no caso das medidas
provisórias, o silêncio do Parlamento nos 30 dias de prazo
implicaria a perda da eficácia de suas normas ex tunc.
Em que pese a correta constatação de que as medidas
provisórias possuíam limitações dispersas por todo o texto
constitucional, não parece verossímil a opinião de Arruda Câmara de
que haveria maior rigidez para a edição de medidas provisórias, se
comparadas aos decretos-leis, visto que estes só poderiam tratar de
três matérias. Fosse aquela posição fato, o Congresso Nacional
não teria se ocupado de limitar materialmente a edição de medidas
provisórias com a Emenda Constitucional n° 32/2001. Na verdade, as
limitações materiais implícitas que vigoravam na Constituição foram
insuficientes para evitar o grande uso que o Poder Executivo fez das
MPs, como se irá demonstrar.
31
ou rejeitá-los em bloco; já as medidas provisórias podem ser
emendadas.
Ferreira Filho (1992, p. 100-101) ressalta outras duas
diferenças: a) o decreto-lei não podia acarretar aumento de despesa;
a medida provisória pode; b) o decreto-lei resguarda melhor que a
medida provisória o valor, que é a segurança jurídica. O autor
explica que, embora as normas editadas pelo decreto-lei fossem
rejeitadas pelo Congresso, produziam efeitos válidos. A medida
provisória, caso rejeitada, tornaria sem efeito todos os atos praticados
em sua vigência. A dúvida sobre se as normas que uma MP impõe
serão convertidas em lei causa insegurança jurídica.
Podemos esquematizar essa comparação entre o decreto-lei e a
medida provisória, conforme o quadro que se segue.
Quadro 1
Diferenças entre decreto-lei e medida provisória
Critérios comparativos Decreto-lei Medida nrovisória*
Pressupostos Urgência ou interesse Urgência e relevância
público
Matéria Segurança nacional, Não há proibição
finanças públicas, criação expressa na
de cargos públicos e Constituição,
fíxacão de vencimentos mas implícita
Aumento de despesa Proibido Permitido
Emendamento Proibido Permitido
Prazo para o Congresso 60 dias 30 dias
votar
Decurso de prazo Aprova Causa a perda da
eficácia ex tune
Segurançajuridica Atos praticados são válidos Atos só são válidos se
a MP for convertida em
lei ou se o Congresso
convalidá-los
Renovação Permitida, inclusive se Permitida, se efetuada
rejeitado no prazo de 30 dias,
exceto se reieitada
Nota: *A comparação é feita com base na redação original do art. 62 da
Constituição, anterior à Emenda n° 32/2001.
32
2.2.2 A prática das medidas provisórias no Brasil
2.2.2.1 A regulamentação da tramitaSão das medidas provisórias
33
CÂMARA DOS DEPUTADOS· CEDI· BIBUOTECA
Regimento Comum, permitindo emendas supressivas. O problema foi
parcialmente resolvido.
34
respeitados os pressupostos e, em seguida, aprovar ou rejeitar a MP
em 30 dias. Se não o fizesse, a MP perderia a eficácia ex tune e o
Congresso Nacional regularia as relações jurídicas referentes aos atos
praticados em sua vigência.
35
No quarto caso, Temer (op. cit.) interpreta o texto constitucional
então em vigor, asseverando que a única possibilidade de sacar recursos
do patrimônio individual (propriedade) se daria por via de lei formal.'
37
Se o parecer concluir pela inconstitucionalidade total ou
parcial da MP, o plenário decidirá a questão, em apreciação
preliminar.
Esgotado o prazo da comissão sem a apresentação de qualquer
dos pareceres (admissibilidade ou constitucionalidade emérito), o
Presidente do Congresso Nacional designará relator para oferecer
parecer em plenário, no prazo de 24 horas.
Aprovado o projeto de lei de conversão, seu texto será enviado
à sanção do Presidente da República. Sendo aprovada a MP sem
alteração, o seu texto será enviado em autógrafos ao Presidente da
República para publicação como lei.
Segundo o art. 17 da Resolução 1I89-CN, esgotado o prazo de
trinta dias, sem deliberação final do Congresso Nacional, a comissão
mista elaborará projeto de decreto legislativo, disciplinando as
relações jurídicas decorrentes, com sua tramitação iniciada na Câmara
dos Deputados.
Com essa regulamentação, o Congresso Nacional perdeu a
oportunidade de limitar a reedição de medidas provisórias e permitiu a
possibilidade de admissão de MP quanto aos pressupostos
constitucionais de relevância e urgência por decurso de prazo. Ambos
fatos contribuíram para o grande e questionável uso das medidas
provisórias, que daria ensejo mais tarde aos embates ocorridos entre
os três poderes.
b) A reedição
A questão da reedição de medidas provisonas ficou em
evidência, pela primeira vez, 'quando o Presidente Sarney, em
fevereiro de 1989, reeditou a MP n° 29, que tratava da organização da
Presidência da República. Como já exposto, o Congresso Nacional
analisou a possibilidade de reedição e o relator, Deputado Nelson
Jobim, no Parecer n° 1189, da Comissão Mista, em resposta a uma
consulta da Mesa do Congresso, opinou ser constitucional e jurídica a
reedição de MPs que tivessem perdido a eficácia. Posteriormente, o
próprio Congresso suprime, em votação, artigo do texto do projeto que
38
originou a Resolução n° 1/89, que proibia a reedição. Contudo, a
hipótese de reedição não estava ainda decidida. A dúvida era se a MP
rejeitada ou não apreciada pelo Congresso em trinta dias poderia ser
reeditada.
Em 22 de junho de 1989, o Presidente Sarney aprovou o
Parecer n° SR-92 (21/06/89), da lavra do então Consultor-Geral da
República, J. Saulo Ramos, para quem uma MP rejeitada ou não
apreciada pelo Congresso Nacional poderia ser reeditada. Tércio
Ferraz (1990, p. 94) criticou: A reedição de uma medida provisória
rejeitada faz tâbula rasa do princípio geral de que o Poder
Legislativo é exercido pelo Congresso, cuja decisão, neste ponto, tem
o caráter de última instância.
A questão da reedição de medida provisória já rejeitada foi
resolvida definitivamente pelo Supremo Tribunal Federal, ao aprovar
o parecer do Ministro Celso de Mello no julgamento de liminar, na
ADIN 293-7/DF 4, ajuizada para impugnar dispositivos da MP n" 190,
de 31/05/90 (Collor), substancialmente idêntica à MP n° 185, de
04/05/90, que havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional. Essa
decisão também se estende ao caso de reedição de MP convertida em
40
Tabela n° 2
Medidas provisórias editadas pelos governos do Brasil- 1985-2001 *
Presidente MPs Média Média
N° de Meses Total
da Período originárias Mensal Reedições mensal
(A) (C)
Renública (B) (B/A) (CtA)
15/03/1985 a
José Sarney 17,3 125 7,22 22 147 8,49
14/03/1990**
Fernando Collor de 15/03/1990 a
30,5 89 2,92 70 159 5,21
Mello 01/10/1992
02/10/1992 a
Itamar Franco 27,0 142 5,26 363 505 18,7
31/12/1994
Fernando Henrique 01/01/1995 a
48,0 160 3,33 2.449 2.609 54,35
Cardoso (1° Gov.) 31/12/1998
Fernando Henrique 01/01/1999 a
33,3 103 3,09 2.586 2.689 80,75
Cardoso (20 Gov.) 11/09/2001***
TOTAL 156,1 619 3,96 5.490 6.109 39,13
Fome: www.planalto.gov.br
Notas: * Há pequenas diferenças entre a estatística de MPs que consta no si/e do Palácio do Planalto e a proveniente do
Levantamento de Medidas Provisórias (2000), editado pelo Senado Federal, contudo não são relevantes a ponto de
inverter a ordem dos governos na utilização de MPs, não comprometendo a análise feita.
** As medidas provisórias só foram editadas a partir de 05/10/1988.
*** A data não se refere ao término do mandato de Fernando Henrique, mas ao fim do período pesquisado.
Caso se leve em conta apenas o número de medidas
provisórias originárias editadas pelos Presidentes, excluídas as
reedições, constata-se que Sarney é o que possui a maior média
mensal (7,22), seguido por Itamar Franco (5,26), Fernando Henlique-
primeiro governo (3,33), Fernando Henrique -' segundo governo
(3,09) e Collor (2,92), totalizando 619 MPs. A explicação para a baixa
média de Collor é que, em 1990, o então Deputado Nelson Jobim
(pMDB-RS), com o apoio da OAB, apresentou um projeto de lei
complementar visando regular o uso das MPs. O projeto foi aprovado
na Câmara e, por falta de acordo, nunca foi votado no Senado. Porém,
apenas o debate em tomo do assunto foi suficiente para fazer com que
Collor não editasse um grande número de MPs.
42
vigência da Constituição de 1988 (48 meses, no primeiro, e 33,3 no
segundo - correspondente ao período em análise), seguido por Collor
(30,5), Itamar (27) e Sarney (17,3). Isso explica o baixo número, na
média mensal, dos governos de Fernando Henrique, apesar do grande
uso que fez das medidas provisórias.
Se, por um lado, o Congresso Nacional foi crescentemente
deixando de votar as medidas provisórias a partir de 1993 (Figueiredo,
1999, p. 151), por outro lado, é forçoso reconhecer que a simples
reedição mantinha em vigor, indefinidamente, uma norma criada para
ter vigência por trinta dias, provocando insegurança jurídica e
constituindo fator de decréscimo da importância do Poder Legislativo
no processo da produção legal.
Outro aspecto a ser analisado são as áreas temáticas abrangida
pelas MPs editadas. Figueiredo (op. cit.) dividiu as medidas
provisórias editadas até 1995 em cinco áreas temáticas, como mostra a
tabela abaixo.
Tabela n° 3
Distribuição temática das
MPs por áreas e governos até 1995 - %
Presidente
da Econômica Admin. Social Política Homenagens Total
República
José
Sarney 52,0 30,4 16,0 0,8 0,8 100,0 (125)
Fernando
Collor 55,7 26,1 18,2 - - 100,0 (88)
Itamar
Franco 50,7 25,3 23,9 0,7 - 100,0 (142)
Fernando
Henrique 59,4 28,1 12,5 - - 100,0 (32)
43
Como se pode verificar, a área econômica foi o maior alvo da
utilização de medidas provisórias. Devido às crises econômicas e à
inflação por que passou o país, essa preponderância é até justificáveL
Contudo, nas áreas administrativa e social, as MPs foram utilizadas de
forma bem mais ampla do que pretenderam os constituintes. Assim,
no plano administrativo, por exemplo, diversas iniciativas para
reestruturar o aparelho do Estado deixaram de ser formalizadas por lei
ordinária, como deveriam, pois regulavam matérias que não careciam
de urgência. O mesmo também aconteceu na área temática
Homenagens, que se refere somente à MP n° 105/89, editada por
Sarney, que inscreveu os nomes de Tiradentes e Deodoro da Fonseca
no Livro dos Heróis da Pátria.
Para Figueiredo (ibidem, p. 147), é incontestável que o
Poder Executivo exorbitou em suas atribuições legislativas
constitucionalmente definidas.
44
medida provisona permaneceu como instrumento legislativo. O
constituinte pretendia com ela dar agilidade ao Poder Executivo em
situações especiais, em que a espera pela tramitação de um projeto de
lei resultaria em prejuízo para a sociedade.
Todavia, o que parece ter acontecido, na prática, é que o Poder
Executivo utilizou a medida provisória em larga escala, mesmo em
casos que não eram atendidos os requisitos de urgência e relevância,
previstos no art. 62 da Constituição FederaL E, por meio das MPs,
tratou dos mais diversos assuntos, sem atentar para a limitação
material que já existia, mesmo não sendo explícita no texto
constitucional que vigorou até a promulgação da Emenda
Constitucional n° 32, de 11 de setembro de 2001.
Pretende-se demonstrar que a sistemática do processo de
edição de medidas provisórias vigente até a promulgação da EC n" 32
constituiu um abuso e um atentado à democracia.
Para atingir esse objetivo, foram realizados os seguintes
procedimentos:
1. Levantamento de informações quantitativas (edição,
reedição, conversão) e de conteúdo sobre as medidas
provisórias;
2. Identificação dos fatores que caracterizam o abuso na
edição de MPs e das causas circunstanciais;
3. Análise dos fatores que propiciam o abuso do poder e das
causas circunstanciais.
Como se estuda um caso específico e localizado no tempo,
toda a análise, inclusive da legislação, feita neste trabalho, quando não
expressamente dito o contrário, refere-se àquela em vigor até a
Emenda Constitucional n" 32, de 2001, que alterou dispositivos
constitucionais referentes às medidas provisórias.
45
3. USO E ABUSO
a) Na edição
A Constituição determina que, para a edição de medidas
provisórias, há de ser observado o cumprimento de dois pressupostos:
urgência e relevância. O cumprimento de apenas um deles resulta em
inconstitucionalidade. Além disso, e por serem as MPs uma exceção
ao procedimento normal de elaboração legislativa, faz-se necessário
que esses pressupostos sejam interpretados em seu sentido estrito,
caso contrário, há uma descaracterização do instituto e um risco
profundo de atentado à manutenção do Estado Democrático de
Direito (Dantas, 1997, p. 59).
Para Clêve (1999, p. 66), apesar de serem conceitos
indeterminados, a ação fundada neles não é assimilável à ação
discricionária, pois em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito, o
Judiciário pode ser provocado. O autor considera que a urgência
indica perigo de dano, probabilidade de manifestar-se evento danoso,
situação de periculosidade exigente de ordinanza extra ordinem.
48
Segundo Dantas (1997, p. 63), para ser urgente, a MP tem que
trazer em si a marca da pressa, da carência, do aperto ou da-pressão.
Para Ferreira (1992, p. 289), só atende ao pressuposto de urgência a
MP que não puder aguardar o prazo previsto para a tramitação de
projetos de lei com urgência constitucional - máximo de 45 dias,
sucessivamente, em cada Casa do Congresso Nacional (art. 64, § 2°).
b) Na reedição
A possibilidade de reedição de medidas provisórias, já decidida
pelo STF, é o segundo tipo caracterizador do abuso procedimental. Foi
a reedição de MP que permitiu a grande utilização por parte do Poder
Executivo, como já demonstrado. Desde a promulgação da Constituição
até o dia 11 de setembro de 2001, foram editadas 6.109 medidas
provisórias, o que equivale a 39,13 MPs por mês.
A medida provisória foi o meio preferido pelo Poder
Executivo para sua iniciativa legal. Considerando que a MP é uma
exceção à normal tramitação de um projeto de lei no Congresso
Nacional, possuindo eficácia imediata, constata-se que esse número de
MPs editadas constitui-se um abuso, devido ao fato de o Presidente da
República utilizar-se de um instrumento extraordinário de forma
ordinária, desvirtuando o disposto na Constituição Federal. E de forma
inadequada, pois caso não se configure a situação necessária para a
edição de uma medida provisória, mas se a matéria a regular reclame
urgência, o Presidente tem a prerrogativa de enviar projeto de lei ao
Congresso Nacional com pedido de urgência, fazendo com que a sua
tramitação seja de, no máximo, 100 dias, conforme dispõe o art. 64,
§ 2° e § 3°, da Constituição.
Com a utilização da reedição, passou-se a legislar por MP.
Como exemplo do abuso, está a MP n" 1.110, de 31 de agosto de 1995
(Dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados
de órgãos e entidades federais, e dá outras providências), que, ainda
tramitando em setembro de 2001, foi reeditada 79 vezes, tendo como
número final: MP nO 2.176-79, de 23 de agosto de 2001. Inúmeros
50
outros exemplos poderiam ser dados, mas é suficiente que seja
lembrado apenas mais um: a recordista MP n" 470, de 11 de
abril de 1994, que Dispõe sobre os títulos da dívida pública de
responsabilidade do Tesouro Nacional, consolidando a legislação em
vigor sobre a matéria, reeditada 89 vezes antes de transformar-se em
lei, tendo por número final: MP n" 2.096-89, de 25 de janeiro de 200l.
Este número de reedições cobre um período de sete anos e cinco meses.
51
Portanto, a reedição de medidas provisórias permitiu ao
Poder Executivo investir-se, indevidamente, na função primeira
do Poder Legislativo, subvertendo o princípio da separação dos
poderes.
c) Na convalidação
O terceiro tipo de abuso procedimental é a convalidação. O
Poder Executivo, com a intenção de evitar a insegurança jurídica
proveniente das reedições de medidas provisórias, passou a cometer
outro abuso: convalidava os atos praticados na vigência da
MP anterior. Manoel Adam Lacayo Valente (apud Dantas, 1997,
p. 102-103) enfrenta diretamente esse artificio:
Assim, se há perda de eficácia ab initio das medidas
provisórias não convertidas em lei nos trintidios respectivos,
além da reaplicação da anterior legislação com elas
incompatível, bem como a observância indeclinável da
irretroatividade prejudicial aos direitos adquiridos e aos atos
iuridicos perfeitos, é de se indagar da constitucionalidade das
denominadas cláusulas de convalidação quefiguram, em regra,
nos textos das medidas provisórias reeditadas. Como
convalidar o inexistente, o nulo, o que deixou de existir no
mundo jurídico por expressa determinação constitucional? A
impropriedade absoluta da convalidação, nesses casos, resulta
da inexistência de seu objeto. Não há como convalidar o
inexistente. Na verdade, o legislador do provimento provisório,
com a cláusula de convalidação, pretende manter operantes os
efeitos, agora ineficazes, de anterior medida provisória, o que,
sem embargo, representa manifesta contrariedade ao texto
constitucional.
A Constituição Federal dispunha:
Art. 62 (. ..)
Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia,
desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo
de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o
52
Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas
decorrentes. [Grifo nosso]
53
156/90 (define crimes contra a Fazenda Pública). Contudo, antevendo
que seriam consideradas inconstitucionais, preferiu revogá-las.
A medida provisória foi o veículo preferido pelos governantes
para a legislação sobre finanças. Assim, todos os planos econômicos,
desde a promulgação da Constituição de 1988, foram implantados
com a utilização de MPs. Foi o que aconteceu com os Planos Verão
(01/89), Collor (03/90), Collor II (02/91) e Real (06/94). Todos esses
planos foram questionados nos tribunais. Normalmente os impetrantes
das ações judiciais reclamavam de abusos, entre eles o desrespeito ao
direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
O Ministro Marco Aurélio Mello, reconhecendo como nefasta
a edição de MPs sem se atentar para a organicidade do Direito, afirma
que ainda hoje, em que pese a passagem de anos sob a disciplina
do real, continuamos no rescaldo dos incêndios provocados pelos
diversos planos econômicos (Mello, 2000).
As derrotas sofridas na Justiça, em decorrência dos planos
econômicos, oneraram os governos posteriores àquele da implantação
do plano. No dia 30 de agosto de 2000, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu o direito adquirido dos trabalhadores à correção monetária
no saldo das contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS) referente ao Plano Verão, de janeiro de 1989, e ao primeiro
mês do Plano Collor I, de abril de 1990. Esse abuso custará aos cofres
públicos, segundo previsão do próprio governo federal, cerca de R$ 40
bilhões de reais, necessários para pagar cerca de 60 milhões de
correntistas do FGTS. O Ministro Sepúlveda Pertence qualificou o
expurgo da inflação como apropriação indébita por parte do governo
do patrimônio dos trabalhadores (STF, 2000).
Frischeisen (2000) cita os assuntos já tratados ilegalmente por
meio de MPs: prazos para embargos da Fazenda Pública; liminares
proferidas por juízes de primeiro grau, com o objetivo de impedi-las;
sobrestamento da tramitação de ações coletivas; proibição do acesso à
Justiça de forma coletiva por associações, sindicatos e Ministério
Público, quando as ações tratarem de FGTS, contribuições
previdenciárias e outros tributos.
54
Entre as limitações materiais implícitas para a edição de MP
estava a proibição para tratar de direito processual. Nobre Júnior
(2000) explica que processo constitui um complexo de atos ordenados
para a obtenção de um :fim, calcado na composição da lide. Um dos
princípios que regem o processo é o da preclusão, a :fim de não
permitir que as faculdades processuais fiquem permanentemente
abertas às partes. Por isso, essa matéria não pode estar sujeita à edição
e reedição de MPs.
O Executivo desrespeitou essa limitação com a edição da MP
n" 1.153, de 11/10/96, renovada 13 vezes antes de ser transformada na
Lei n° 9.528, de 10/12/97, que ampliou, de 10 para 30 dias, o prazo do
Instituto Nacional do Seguro Social para embargar as execuções de
título judicial, requeridas por seus segurados, ocasionando sérios
inconvenientes na verificação da oportuna interposição de embargos
em milhares de demandas.
Em 1997, houve mais uma medida provisória tratando de
matéria processual. A MP n" 1.570, de 26/03, preceitua sobre
concessão de medida liminar, efeito de recurso voluntário ou
ex-officio, pagamento de vencimentos e vantagens determinado por
sentença e suspensão da execução de liminar nas ações movidas
contra o Poder Público. Marinho (1997, p. 21) considera que a MP
tem a característica de ato abusivo, afrontando a Constituição:
55
De outro lado, note-se que a medida provisória, por sua
extensão, inclusive por deferir força de coisa julgada erga
omnes a sentença civil, atinge a organização do Poder
Judiciário, subvertendo-lhe o sistema de competência. A
Constituição estabelece, contudo, no art. 68, que nem a lei
delegada pode dispor sobre a organização do Poder
Judiciário. Como poderá fazê-lo a medida provisória?
57
3.3.2 Causas jurídicas
58
Sempre que se discute se é constitucional, ou não, o ato do
Poder Executivo, ou do Poder Judiciário, ou do Poder
Legislativo, a questão judicial está formulada, o elemento
político foi excedido, e caiu-se no terreno da questão [urldica:
59
ministros sabem que, se ocorrer a edição sem a necessária urgência ou
necessidade, pode haver quebra de confiança e a queda do gabinete. A
co-responsabilidade do gabinete parece ser compatível com o uso
mais criterioso das medidas provisórias.
60
MPs polêmicas, como a que instituiu o Plano Real e a que anualmente
reajustava o salário mínimo. Com as reedições, o governo tornava
definitiva a norma provisória, dificultando ou mesmo impossibilitando
alterações na MP, no momento da votação, devido aos direitos e
obrigações já constituídos. Além disso, tinha mais tempo para
conseguir reverter possíveis defecções na base de apoio, atendendo as
reivindicações dos parlamentares.
Nas matérias em que os congressistas sentiam-se constrangidos
em votar, por estarem em um dilema (equilíbrio fiscal x interesse do
cidadão), a procrastinação também lhes convinha, fazendo com que o
governo editasse e reeditasse MPs. Foi o que ocorreu nos governos de
Fernando Henrique, quando dos reajustes do salário mínimo, em que
os parlamentares não queriam o desgaste, perante o cidadão, de votar
reajuste inferior à inflação do período.
Outro fator que favoreceu o abuso na edição de MPs foi
a estrutura organizacional do Poder Legislativo, que centraliza o
processo decisório no Colégio de Líderes e no Presidente da
República (Figueiredo, op. cit.). Na Câmara e no Senado, as grandes
decisões são tomadas em reuniões do Colégio de Líderes, em que
também tem assento o líder do governo. Os demais parlamentares
têm pouca influência nos destinos de votações importantes. Quando
o governo possui a maioria, as decisões do Colégio de Líderes
lhe são normalmente favoráveis. Dessa forma, o governo pauta e
viabiliza a aprovação das matérias de seu interesse, inclusive medidas
provisórias.
Ressalte-se que essa hipertrofia do Poder Executivo foi
tolerada pelo Congresso Nacional. No caso das medidas provisórias,
o Poder Legislativo reagiu, após 12 anos, com a promulgação da
EC n° 32/2001, para o que muito contribuiu o empenho de Aécio
Neves, Presidente da Câmara dos Deputados. Releve-se também a
concordância do Presidente Fernando Henrique, que ainda contava
com o apoio da maioria dos congressistas e, se quisesse, poderia
dificultar a votação da PECo Na questão do orçamento, contudo,
permanece a distorção.
61
As causas circunstanciais políticas permitem entender por que,
apesar de todos os abusos cometidos através de medidas provisórias
até o dia 11 de setembro de 2001, o Congresso Nacional só havia
rejeitado 22 MPs, sendo 11 delas apenas no governo Collor.
62
4. CONCLUSÕES
64
Quando na mesma pessoa (...) o Poder Legislativo está
reunido ao Poder Executivo, não há liberdade; porque se pode
temer que o mesmo monarca (...) faça leis tirânicas para
executá-las tiranicamente.
65
5. POSFÁCIO
68
As MPs nOs 146 e 157 obstruíram a pauta da Câmara dos
Deputados nos dias 24 e 25 de março, respectivamente. E, devido ao
longo processo de negociação para a construção de um texto pelas
lideranças partidárias, a MP n" 14 só foi votada no dia 10 de abril,
quando outras 19 MPs também sobrestavam a pauta.
No início de abril, comentava-se a possibilidade de edição de
uma medida provisória revogatória de todas as outras em tramitação,
como solução para a desobstrução da pauta. A idéia não foi bem
recebida pelo Congresso Nacional, nem pelo Executivo.
Posteriormente, em um esforço concentrado realizado nos dias
16 e 17 de abril, a Câmara votou 21 MPs, liberando a pauta e
permitindo que a proposta da CPMF fosse votada, em segundo turno,
no dia 23 de abril. No Senado Federal, na votação da PEC, em junho,
foi excluída a exigência de noventena para que a CPMF continuasse a
ser cobrada, sem interrupção, a partir do dia 18, com a oposição
alegando haver nisso inconstitucionalidade.
Esse breve relato comprova que, embora a EC n° 32 tenha
trazido importantes mudanças com vistas à redução dos abusos
cometidos, não foi suficiente para deter, pelo menos em um primeiro
momento, o ímpeto legiferante do Poder Executivo, através do uso de
medidas provisórias.
72
23. MACHADO, Rubens Approbato. O Presidente é um imperador.
ISTOÉ, São Paulo, n. 1638, p. 7-11, 21 fev. 2001. Entrevista
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74
SENADO FEDERAL
SECRETARIA ESPECIAL DE EDITORAÇÃO E PUBLICAÇÕES
Praça dos Três Poderes s/nº - CEP 70165-900
Brasília - DF
"A primeira missão do Parlamento é
legislar. A Constituição de 1988 que
tinha um perfil parlamentarista criou o
instituto das medidas provisórias,
sucedâneo dos decretos-leis do período
autoritário. Em conseqüência, o Poder
Executivo vem-se valendo disso para
(não cabe aqui discutir intenções nem
resultados) retirar do Parlamento a sua
razão primeira de ser." (Aécio Neves,
2001)