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LOGOS

Augusto Comte: um enfoque crítico


Carlos Henrique de Escobar*

RESUMO
Este artigo traz questões relacionadas
ao positivismo de Augusto Comte, ao al-
F alar de Augusto Comte é falar
complexamente, é dividir-se
em considerações filosóficas
(especulativas e epistemológicas) e
histórico-filosóficas (Comte e a his-
Revolução de 1789, do Iluminismo e
de um utopismo burguês da “pros-
peridade” que oscila entre o revo-
lucionarismo e o reformismo.
É verdade que neste período emer-
cance filosófico e científico de suas teo- tória da filosofia, Comte e o uso que giram, ou estavam prestes a emer-
rias, às influências assumidas e ao con- ele fez das filosofias que o antece- gir, grandes filosofias como a de
texto mais geral da primeira metade do deram). E, enfim, é falar de Comte Schopenhauer, por exemplo, mas este
século XIX. Analisa a inserção das teses
na história, isto é, Comte e a história último, pouco lido, precisou de uma
positivistas no conhecimento científico
numa filosofia de dimensão utópica, na
política e a história das idéias na situação singular para ser valorizado.
qual uma sociologia ideal consente uma França e o comtismo na história das Isto é, necessitou da biografia do jo-
dimensão religiosa. idéias e na história das instituições vem Nietzsche e do entusiasmo dos
Palavras-chave: Comte; positivismo; brasileiras nos séculos XIX e XX. Ao wagnerianos por ele. De resto, pen-
positivismo brasileiro. nível de um artigo, isso nos obriga sadores como Kierkgaard (na Dina-
ao tom de digressão (en passant), marca) ou Marx e Nietzsche (na Ale-
SUMMARY porém sem deixar de indicar que manha) estavam por se instaurar e
This article brings out issues related to pensamos e avaliamos em outro ter- dificilmente Comte teria o que fazer
Augusto Comte’s positivism, to the reno de idéias que em nada, mas com eles, visto que pensavam e ava-
scientific and philosophical reach of his nada absolutamente, lembra os mo- liavam em outro registro que o seu.
theories, the assumed influences and the
tivos e os objetivos mais gerais do Comte foi um professor de mate-
general philosophic context of the first
half of the 19th century. It analyses the
positivismo de Augusto Comte. mática a um nível, se assim se pode
positivist thesis insertion in knowledge dizer, dos “liceus”, e a matemática
***
(or scientific knowledge), in a philosophy (senão as ciências) manteve-se para
of utopian dimensions in which an ideal No período que cobre a primeira ele como um paradigma pedagógico
sociology admits a religion dimension. fase do século XIX é difícil pensar um transformador. Não vai nisso nenhu-
Keywords: Comte; positivism; Brazilian filósofo que tenha plenamente esca- ma crítica, mas a lembrança da vo-
positivism. pado à influência do idealismo alemão. cação pedagógica burguesa de ori-
Augusto Comte nasce em 1798 gem que apregoava um reformismo
RESUMEN e morre em 1857, num período que militante com a Escola, a família, os
Este artículo plantea cuestiones relativas
filosoficamente é tão importante presídios, os manicômios etc. Ora,
al positivismo de Augusto Comte, al al-
quanto inquietante. Se não se é um Bachelard foi um professor de Liceu
cance filosófico y científico de sus
teorías, a las influencias asumidas y al hegeliano (de esquerda ou de direita, quase a vida toda, Deleuze o foi no
contexto más amplio de la primera mitad como mais tarde se veio a caracteri- começo de seu trabalho em Filoso-
del siglo XIX. Analiza la inserción de las zar), está-se obrigatoriamente em fia e, sobretudo, há uma tradição de
tesis positivistas en el conocimiento ci- meio da perplexidade instalada pelo ensino e “capacitação” (pela “ra-
entífico en una filosofía de dimensión utó- afrontamento ao kantismo por parte zão”) no Iluminismo. No pensamen-
pica en la cual una sociología ideal do idealismo alemão. Este hege- to francês, em particular, isto tem um
consiente una dimensión religiosa. lianismo fez-se valer, por exemplo (e tom “emancipatório”, e nele a “ma-
Palabras-clave: Comte; positivismo; na França), num Renouvier e, um turidade”, que Kant tanto apregoava,
positivismo brasileño. constitui o ideário da invenção das
pouco mais tarde, em Hamelin e
Lachelier, mas há também, o que é novas instituições que configuram o
mais determinante para o pensamen- Estado republicano. A ciência, para
to francês da época, a tradição da Comte (e sobretudo a matemática),

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tem uma acepção cultural e política, A ciência consiste no conhecimento sujeito, não pode estar ausente -,
e mais que um papel propriamente das leis dos fenômenos, para que os Comte foi o primeiro a exigir aten-
“positivista” nas ciências, trata-se fatos, no rigor, por precisos e nume- ção para as questões científicas mo-
de uma utopia burguesa que esmera rosos que sejam, não façam senão dernas. É nesta tradição gnosiológica
um reformismo social. administrar o material irrecusável. clássica, depois num epistemo-
Esta mistura de razões “científi- Portanto, quando se pensa na deter- logismo (século XIX) na forma então
cas” e sociais, de aparente objetivi- minação destas leis, pode-se afirmar, de um formalismo lógico (psicolo-
dade e concretude de propósitos, sem exagero, que a verdadeira ciên- gismo, matematicismo, biologismo
caracteriza não apenas Comte, mas cia, bem longe de consistir em ava- e historicismo), que chegam contem-
também Saint-Simon, de quem ele liações isoladas, tende, pelo contrá- poraneamente às escolas epis-
foi secretário. Senão, todo um con- rio, a colocar-nos além e na medida temológicas, tais como a francesa,
junto de pensadores franceses envol- do possível, da investigação imedia- os nomes de Bachelard, Koyré,
vidos na necessidade de pensarem ta dos atos concretos, substituindo-a Cavailes, Canguilhem, Althusser e
as idéias no volume da força da his- pela previsão racional”. Foucault. Contudo, estes epis-
tória em que estão envolvidos. Seja É uma demanda da filosofia como temólogos - nada comtianos - deixa-
como for, e como começamos a di- o meio pelo qual a ciência se pensa, ram-se penetrar por pensadores, de
zer mais acima, neste amplo contex- ou pelo qual ela é o “espírito huma- certa forma contemporâneos a
to da segunda metade do século XIX, no” já nos termos de uma filosofia e Comte, como Nietzsche, Marx e
é inegável a força do pensamento de de uma religião positiva. A filosofia Freud, e farão valer em suas refle-
Hegel: ele ajudou os filósofos desse chega até à ciência como um impe- xões uma vigilância antiespeculativa
período a organizarem seus pensa- rativo de universalidade e por isso ela bastante saudável.
mentos, mesmo quando eles não não se distingue da premissa espiri- A verdade é que o “univer-
possam propriamente ser chamados tual e espiritualizante do pensamen- salismo” de um Kant e Hegel perde
de hegelianos (como, por exemplo, to comtiano. É este, então, o sua força, ou o brilhantismo de sua
Taine e Renan). Comte tradicional e continuador do armação, no ecletismo de um
Se é verdade que o saber para espírito “clássico racionalista” que, Spencer ou de um Comte. Eles são
Comte se distingue daquilo que ele como Descartes, quer concluir, sob aqueles filósofos cuja “grandeza” de
foi para John Stuart Mill (do concreto uma forma humana, sua reflexão seus sistemas resultam de uma
ao concreto), é porque este saber em conjunto. soma ou ecletismo, o que não signi-
emerge num parâmetro lógico e hie- Vale a pena voltar a citar Comte fica, no entanto, uma filosofia sem
rárquico que o organizava como um para melhor fazer valer este aspecto força de argumentação e sem êxito
processo. Isto é, ele está muito mais totalizante e utópico do seu “sistema”: intelectual. Em Comte tudo se reme-
próximo do espírito da Lógica hege- “Não se deve então conceber, no fun- te ao estatuto espiritual prometido,
liana que da lógica indutiva, como do, senão uma só ciência, a ciência isto é, o positivo como saber cientí-
bem lembrou Ernst Cassirer. Se humana, ou mais precisamente, so- fico se envelopa eticamente numa
Comte insiste que o saber é sobretu- cial (...)”. O centro e o propósito de sacrossanta “sociologia”, como em
do observação, nem por isso ele dei- Comte é o homem burguês, livre para seguida mostraremos.
xa de sublinhar que o pensamento é todos os jogos da tecnociência, mas Trata-se, pois, de saber - como quis
um processo nele mesmo. Comte não livre tão só na medida que esta um positivismo comtiano ingênuo em
fica como Mill (e seu “positivismo”) tecnociência for ainda encarada nas ilu- Portugal e no Brasil - se Comte, com
nos fatos tais quais, pois ele recla- sões emancipatórias de um iluminismo todo o seu sistema, de fato apregoou
ma uma relação entre o geral e o muito seu, que não mascara ou preci- e preservou as ciências ou se, como
particular, cujo propósito é obter leis. sa mascarar seu propósito conserva- parece, as violentou e as hierarquizou
Esta dimensão construtivista com- dor. Não se trata de qualquer “posi- num pensamento que se aspirava utó-
tiana (esta “lógica”) é expressa tivismo”, ou de um cientificismo pico e totalizador. Totalização que
como o “espírito humano” num pro- indutivo, por exemplo, mas de uma homogeniza e “organiza” abstrata-
cesso progressivo e em aberto. O demanda de sistematização pelo hu- mente, em que pese a luta de Comte
positivismo de Comte, ao contrário mano (e humanidade), um ideal que se contra a abstração no conhecimento
dos outros, não se opõe ao espírito sobreleva além das ciências e suas (propriamente científico), e em que
sistemático e à absorção dos fatos questões mais estritas. pese também sua crítica à “identi-
no processo racional. Estranho, contudo, e bastante sin- dade”, que Comte aliás viu nas for-
Comte não quer uma totalização gular, é o fato de - senão de fato, mas mas teológicas e metafísicas dos
abstrata, mas também não quer a pelo menos tematicamente - encon- “discursos” do passado. Em última
multiplicidade concreta. No Discours trarmos em Comte a continuidade instância, o positivismo comtiano é
sur “l’esprit positif” (1a parte), ele das questões do “sujeito do conhe- um pensamento na armadilha (toda
escreve: “O verdadeiro espírito posi- cimento” junto à sistematização no estéril) da oposição sujeito/objeto que
tivo difere, no fundo, tanto do espírito (especulativo) do “universal”. termina por impor o sujeito sobre os
empirismo quanto do misticismo. Em que pese isso - tanto quanto um objetos sob a forma de um “siste-
Esforça-se por abrir caminho entre “hegelianismo” francês, onde um ma humano”. Característica, aliás,
estes dois equívocos funestos (...). Descartes em Kant, ou a questão do mais entranhada desta dificuldade a

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que agora nos referimos, de um sa- signa de a “verdade humana”. Vai- Daí porque as conclusões forte-
ber sempre tido, mesmo se suposta- se então da física a uma verdade da mente conservadoras, ou francamen-
mente, como fatos e não conceitos, física como “física humana” ou “fí- te reacionárias, de Augusto Comte
e que se deixa ver na concepção sica social”. É isto que também ex- (como no Catecismo Positivista) têm
comtiana da matemática. Aí, um sa- plica (e revela) que o propósito intei- tudo para nos assustar. Aqueles que
ber obrigado aos fatos e também à ro de Comte é realizar o que ele cha- o leram, e até uns poucos que ainda
comprovação dos fatos se vê instau- mou de uma “nova ciência”, isto é, o lêem, não escapam de um certo
rado numa aporia, pois como ajuizar de criar condições através da filoso- espanto com a mistura desagradá-
tais postulados (ou fatos pelos fatos) fia positivista para a emergência de vel, seja das influências tais como
com a primazia dada à matemática uma sociologia repleta de promes- de um Condorcet, ou das utopias bur-
propriamente dita? Comte, então, faz sas. Sociologia comtiana quase no guesas (aparentemente revolucioná-
uma separação entre o que ele deno- estatuto de uma “física social”, e é rias e francamente autoritárias) como
minou “fatos concretos” e o que ele por isso que ele também escreve (em o Saint-Simonismo, e também, por
chamou “fatos gerais”. Segundo ele, 1824): “Revelarei o testemunho de- exemplo, de um economicismo bur-
a matemática existirá em torno dos finitivo de que o desenvolvimento do guês emergente.
segundos - no entanto, “fatos gerais” gênero humano se rege por leis tão Condorcet, matemático como
não é mais fatos, ou “fatos concre- concretas como a queda de uma pe- Comte, realiza uma espécie de mis-
tos”, e de alguma forma já se estaria dra”. E Lévy-Bruhl (in La Philosophie tura pouco convincente entre o pro-
com eles nos conceitos e nas ques- de Augusto Comte), tal como Cassi- gresso científico e o progresso mo-
tões que o dedutivismo levanta. rer (Das Erkanntnisproblem in der ral. E ambos, também, se situam
Mas não se trata aqui de porme- Philosophie und Wissenschaft der num entusiasmo específico do capi-
norizar as ambigüidades e dificulda- neueren Zeit: Von Hegels Tode bis zur tal pelo crescimento técnico ou su-
des deste pensamento, mas tão só gegenwart) exemplificam esta lei so- jeição da natureza. Industrialização
de lembrar que a questão do conhe- ciológica paralela à lei da gravidade e prosperidade burguesa como for-
cimento, do ângulo positivista e neo- na “lei dos três estágios”, confor- ma de nos levar a uma humanidade
positivista, passará por um desdo- me pretensão do próprio Augusto idealizada que eles formulam como
bramento que raramente lembrará o Comte que se autonomeou de causa final.
positivismo de Comte. É, então, por- “Galileu da sociologia”. Comte reivindica antecedentes na
que achamos que o que caracteriza Se é verdade que Comte não está grande filosofia, por exemplo, em
o positivismo comtiano é menos a unificando as ciências numa só Descartes e sob o desígnio equivo-
querela gnosiológica (e episte- metodologia ou as achatando numa cado da presença de um “pensa-
mológica) que um sistema filosófico semelhança improvável, é verdade mento positivista” neste filósofo, tido
“histórico” totalizador, ele mesmo contudo que na hierarquia das ciên- como seu antecessor por ele mes-
menos problematizador do conheci- cias a sociologia comtiana tem um mo. E tudo isso porque Descartes,
mento científico que, em última ins- papel de fundamento último e de mais por estilo do que por convic-
tância, uma metafísica menor sob a totalização ideal do conhecimento. ção, refere-se como base de seu pen-
forma de um ideal e de uma prega- Totalização sob uma forma progres- samento àquilo que ele denominou
ção política. E assim dizemos não siva - hierárquica - das ciências, cujo de a “certeza”. A ascendência posi-
esquecendo (como no Cours de limite (e plenitude) está num certo tivista, suas origens filosóficas -
Philosophie Positive) que Comte par- ideal da “humanidade”. Logo, o pre- como Comte pretendeu de si mesmo
te das matemáticas e das ciências tendido pluralismo metodológico que na forma ingênua de um ideal cien-
naturais, isto é, não esquecendo que o fatual sobre os conceitos sempre tificista -, leva-o a sentir-se herdeiro
junto às matemáticas estão as ciên- lhe exigiu não escapa, na hierar- de filósofos que se sabiam enreda-
cias, a física, a astronomia, a quími- quização das ciências, e no coman- dos em questões e eram suficien-
ca, e tudo isso sob uma forma de do antropomórfico dos seus pressu- temente lúcidos para não terem pre-
“hierarquia das ciências”. Mas isso postos últimos, a um universalismo tendido resolvê-las. Vê-se tudo isso
é, como dissemos, uma outra coisa ideal. Este universalismo move a no- neste texto onde Comte se refere
que a problematização destas ciên- ção de “evolução”, com a qual aos seus predecessores, aliás “pre-
cias propriamente ditas. Comte pretende assegurar um certo decessores” no espírito dos posi-
Comte estipula um horizonte ide- pluralismo metodológico das ciênci- tivismos que em Comte eram as for-
al (burguês, ainda que utópico e utó- as e também um monismo, isto é, mas utilitaristas, materialistas, bio-
pico ainda que conservador) que ele um “método histórico” onde o que logistas e pragmatistas. Diz ele:
diz ser a “sociologia” e que ele pres- se universaliza se universaliza como “Hume constitui meu principal pre-
supõe como objetivo último do co- “espírito” e não como natureza. É um cursor filosófico, Kant se acha a ele
nhecimento. Comte quer, pois, des- “espírito” que não se corporaliza, e acessoriamente ligado; a concepção
te sistema - deste remetimento dos que é “histórico” sob um certo fundamental deste não foi verdadei-
conhecimentos científicos a uma paradigma naturalista - sob um “es- ramente sistematizada e desenvol-
“sociologia” ideal - o estatuto de uma pírito” que se supôs positivista ape- vida senão pelo positivismo. Do
filosofia que não busca nem aufere nas pelo tom científico naturalista. mesmo modo, sob o aspecto políti-
seu “fundamento fora” e que ele de- co, foi necessário que eu completas-
***

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se Condorcet por De Maistre, de mente comtiano e está no propósito to revolucionário e também à forma
quem logo assimilei (...) todos os filosófico singular de Comte, e ele vai - intensa e múltipla - do Iluminismo,
princípios essenciais, que não são desde uma espécie de filosofia da como crítica e destruição dos valo-
mais agora apreciados senão na es- ciência a uma doutrina a respeito do res de passado, fazem de Comte um
cola positiva. Tais são como Bichat social sob a forma, ou no propósito, cúmplice da Restauração, isto é, de
e Gall, como precursores científicos, de reformar a vida humana impondo uma convicção reformista autoritá-
os seis predecessores imediatos que um estágio positivo. A verdade, po- ria, conservadora. Se é verdade que
hão-de me religar aos três pais sis- rém, é que a noção de “positivo” e seu pensamento (seu entusiasmo
temáticos da verdadeira filosofia “positividade”, nos termos mais ge- com a matemática e as ciências e
moderna, Bacon, Descartes e Leibniz”. rais que Comte utilizava, já estava seu desejo de uma ampla reforma)
E isso não é tudo, pois, concluindo, presente como regras e técnicas de se tornou suspeito durante este pe-
diz ainda Comte: “Em virtude desta um racionalismo moderno desde o ríodo, é verdade também que as ins-
nobre filiação, a Idade Média, inte- século XVI, numa acepção ou histó- pirações burgueso-modernistas de
lectualmente resumida por São Tomás rica filosófica muito geral em torno Comte coincidiam com este mo-
de Aquino, Rogério Bacon e Dante, da razão, ou popular e ingênua sob a mento no propósito mais geral de
subordina-me diretamente ao príncipe forma de um “novo mundo”. deter aquilo que ele e a época cha-
dos verdadeiros pensamentos, o in- Daí porque o próprio Comte já a mavam de anarquia social. E mais,
comparável Aristóteles”. (1978, p.67) veja presente - como “tradição ou tanto quanto isso, Comte foi um
Não é hoje surpreendente apenas positivista” - em Bacon, Locke e pensador nostálgico da Idade Média,
o tom retórico e “grandioso” de Hume, Copérnico, Galileu, Kepler e respeitador de certos valores do ca-
Comte, mas a sua pretensão de her- Newton, mas sobretudo no estreita- tolicismo, conservador nos propósi-
dar e resolver numa “nova religião” mento deste pensamento sob um tos, mesmo se sob a forma es-
todo o saber, todo o conjunto de certo ideal metafísico cientificista. O drúxula, como já dissemos, da
questões que ele levanta. É por aí contexto que pressiona e convence cientificidade, da reforma institu-
que ele nos promete “tudo” e, de Comte da verdade desta postura cional e de uma risível “nova reli-
certa forma, a salvação: “A fim de desborda as influências de intelec- gião da humanidade”. Mas como
instituir, porém, esta concorrência tuais e de cientistas (da modernidade pensar esta intensa e veemente
decisiva cumpria primeiro condensar emergente), e é já a transformação personalização de seu pensamento
assaz o positivismo para que ele se das ciências naturais e das técnicas, a partir de sua história particular e,
pudesse tornar verdadeiramente tanto quanto das revoluções indus- mais tarde, sob a figura, como ele
popular. Tal é o destino especial des- triais com a nova burguesia como quis, de um grande sacerdócio?
te opúsculo excepcional, por cuja classe agente, impondo-se agora Se lembrarmos que os fundado-
causa interrompo durante algumas num humor onipotente. Comte enxer- res da religião se fazem “emble-
semanas minha grande construção ga e faz valer o que já está presente, mados” por uma peregrinação exem-
religiosa...”. (Ibidem) Comte fala do e é o seu ecletismo que a isso se plar (as paixões) na abertura mesma
seu Catecismo Positivista, e nele do junta numa espécie de apropriação de suas teses, Comte não foi muito
seu empenho por uma pregação so- numerosa de teorias e concepções diferente. Não foi diferente, digo, ain-
bretudo no “proletariado e nas mu- que visavam fazer do social, e da his- da que absolutamente diverso, pois
lheres”. No fim deste texto, e sob a tória, um saber científico preciso: as em meio do humor positivista da
forma de um diálogo entre a “mulher” ciências sociais emergentes (a so- modernidade burguesa o relato de si
e o sacerdote, ele escreve: “Eis aí, ciologia), o evolucionismo, a quanti- mesmo como sofrimento e provação
minha caríssima filha, a última expli- ficação da vida. Isto é, uma “posi- não conseguem auferir a “trans-
cação que eu vos devia sobre o ad- tivação” equívoca da vida, em que o cendência” de um Abraão, Moisés,
vento decisivo da religião universal, a saber científico e a pretensão de Jesus, ou Sidarta. Seja como for, o
que aspiram, há tantos séculos, o Oci- absolutizar já não se separam. positivismo comtiano está repleto de
dente e o Oriente”. (Ibidem) Em meio de tudo cabe, no entan- uma história sofrida, de informações
O impressionante é que neste to, reconhecer uma vida singular de e relatos da vida de Augusto Comte,
“imbróglio” retórico e megalômano Augusto Comte, marcada pelo sofri- que vai desde 1798 como filho de um
estão aninhados no otimismo bur- mento e a provação - uma vida e uma fiscal de imposto, em Montpellier,
guês pelo progresso, pela ciência, inserção numa história bastante sin- França, onde ele experimenta dura
pela técnica e sob uma fundamen- gular. Se é verdade que às vezes toda pobreza. Em seguida, e é ele quem
tação genérica, economistas como uma cultura - ou uma história - se nos conta, uma vida repleta de con-
Adam Smith, Say, ideólogos como pode presentificar negativa ou positi- flitos familiares que ele designou
Destut de Tracy e Cabanis e, enfim, vamente numa filosofia, cabe reco- como infernal, pois foi obrigado a
os filósofos já por nós lembrados, e nhecer todos os fatores específicos conflitar com a avareza familiar e
tudo isso na forma estreita de uma de uma França que vem da Revolu- exigências que ameaçavam retirá-lo
leitura, se assim podemos dizer (e ção Francesa até a Restauração, e do trabalho intelectual.
como ele mesmo disse), “positi- que está literalmente presente no No lugar de uma “revelação” (o
vista” mas “non troppo”. Este ter- pensamento e nos valores do posi- Deus da aliança para os patriarcas e
mo (este “positivismo”) é estrita- tivismo comtiano. Críticas ao espíri- profetas), Comte se entusiasma na

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juventude pela matemática e faz da imaginação e na arbitrariedade e particularmente Marx, ou uma filo-
Escola Politécnica (e dela como um especulativa de Comte, como mo- sofia suficientemente radical que
templo da filosofia cientificista) sua tor e inspiração da sua nova religião, Nietzsche começava também a for-
referência fundamental. Ora, se seu e isso é bastante singular, senão pa- mular sem pretensão de sistemati-
messianismo não tem a pertinência radoxal, num pensamento e numa zar e até mesmo de politizar. Já para
originária (que ele reprovará na sua utopia que se queria positivista. É as pretensões reformistas, o enga-
teoria dos “três estágios” como “teo- também depois de Clotilde de Vaux no tomava a forma de uma convic-
lógico”), ele tem no entanto um vigor que Comte publica os textos decisi- ção na razão, nas técnicas e até
bastante situado e bastante contem- vos de seu pensamento e de sua mesmo no capital, e a burguesia
porâneo com a modernidade. Nesse pregação messiânica. 1 Relata-se “melhorada” era todo o horizonte.
sentido, fica ainda mais claro a força também uma crise depressiva em É pois certamente lá onde este
da motivação histórica e burguesa Comte, que somada aos seus sofri- pensamento burguês “utópico”
(Condorcet) antes que sobretudo mentos familiares, suas provações (Saint-Simon, Fourier, Comte etc.) se
especulativa (Hegel) na formulação do e sua paixão por Clotilde de Vaux, propôs crítico e criador que ele foi
seu pensamento, isto é, um pensa- junto ao seu apelo político a um pro- apenas uma dobra da história burgue-
mento muito mais resultante de te- letariado mais ideal que real, iria sa, que então se passava sem
mas e disposições do momento que configurá-lo num estranho pregador desbordá-la e sem de fato conhecê-
de uma reflexão segura e rigorosa. e num não menos confuso, e até la. Em que pese o fato de Comte ter
Se estes são os temas (a “reve- desigual, messias (positivista). morrido em 1857, e pouco antes de
lação” leiga e dessacralizada) da sua Nietzsche ter escrito e publicado o
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“religião da humanidade” - de sua seu primeiro livro (Nascimento da
grotesca configuração religiosa, sua De Comte pode-se recusar inte- Tragédia), ou de Comte ser contem-
e de Clotilde de Vaux -, falta lembrar lectualmente quase tudo, mas isso porâneo, por exemplo, de Marx e
que a “paixão” que o singulariza pas- não significa que não se possam Feuerbach sem referir-se a eles, é
sa pela condição de secretário de encontrar todos os motivos que ar- necessário dizer o quanto parece fal-
Saint-Simon, pelo desemprego que mam o seu pensamento na realida- tar a este pensador não só a lucidez,
mais tarde lhe impôs este outro de histórica mais geral do seu tem- o espírito crítico e as teses destes
“messias” dos valores burgueses po. E também nas razões mais pró- filósofos, mas até mesmo uma pos-
emergentes. E não pára aí. Comte ximas, e até pessoais (por mais es- se mais sentida, mais válida, dos fi-
foi um professor frustrado, isto é, um tranhas que sejam) de um certo pro- lósofos que o próprio Comte supõe
intelectual que se preparou e aspirou jeto de si mesmo. Não é nosso pro- essenciais no seu pensamento
a cátedra, mas que não a consegue, pósito aqui rastrear de pressuposto (como Hume e Kant, por exemplo).
e isso aliás injustamente. Claro que a pressuposto o pensamento com- Sobretudo, careceu Comte de uma
isso não concerne a eventuais difi- tiano - seu “positivismo” -, mas isso sensibilidade maior por respeito à
culdades intelectuais da sua parte, não nos impede de contrapor muitas história, sensibilidade que não teve,
mas às próprias qualidades deste das suas teses, e não apenas com como já dissemos, também com o
pensador que certamente se fazia o que pensamos hoje, mas também pensamento especulativo, e no en-
temido por isso. Obrigado a ensinar com aquilo que o pensamento de sua tanto é um pensador especulativo e
em casa para sobreviver, como um época já supunha ser fundamental. “totalizador” como Hegel, que deu
professor particular de matemática, A modernidade, certamente, se prova notória de sua competência
não pode impedir o desfecho negati- justificou em seu espírito crítico e em com a história e com o pensamento.
vo do seu casamento com Caroline sua criatividade frente a todo um atra- A totalização da história, e seu recor-
Massin. É, enfim, sozinho na sua so, senão mesmo barbárie, herdado te simplista em três estágios, e as
casa que Comte começa sua prega- da Igreja e da soberania. Contudo, análises esquemáticas como idades
ção filosófica e religiosa, e é lá tam- ela mesma se revelou cega a res- espirituais teológica, metafísica e po-
bém onde escreve o Curso de Filo- peito de si mesma, e sem rigor filo- sitiva, na aliás forma progressiva e
sofia Positiva, em seis volumes. sófico e político suficiente por res- ideal, assim como a inserção nela de
Sustentado por amigos e num peito aos seus próprios ideais. O pro- uma causa final, mais idealizada que
crescente envolvimento com seus jeto burguês, e nele a modernidade - pensada da cientificidade e da tecno-
sonhos reformistas, Comte começou e em meio de um e de outros as uto- logia, faz de Comte um pensador su-
a reunir em torno de si raros e pou- pias menos ou mais revolucionárias bordinado às metas e ilusões da bur-
cos discípulos. É então quando co- (Babeuf, Cabet, Moises Mos, Flora guesia capitalista.
nhece Clotilde de Vaux, por quem se Tristan, Blanc e Marx), ou francamen- Longe está Comte de uma proble-
apaixona sem jamais auferir da par- te conservadoras no reformismo apa- matização genealógica (própria de
te dela outra coisa que uma entusiás- rentemente radical a que se dispu- um Nietzsche, seu contemporâneo)
tica amizade. Clotilde morre logo em nham (como Comte, por exemplo) - ou de uma problematização trágica
seguida e Comte une ao seu pensa- se viram, enfim, de frente com a im- como fez Kierkgaard, ou então de
mento e à sua pregação esta ima- potência e a pobreza dos seus ideais Marx (de certa forma também seu
gem muito sua, e toda divinizada, da e de suas práticas. Faltavam as for- contemporâneo) que fez da história
“mulher”. É ela que se abre, na mulações revolucionárias, sobretudo uma outra coisa que blocos totaliza-

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dos e esquematizados. Muito menos formulou a sua Ética. A justiça é a Freud e, particularmente, Foucault,
totalizados e esquematizados numa alternativa histórico-política das que- destroem este mito e redefinem o
abordagem extremamente genérica relas entre os Iluministas, e existiu objeto histórico.
e exterior, como fez Comte, sem até mesmo nos equívocos políticos Comte não soube, nem mesmo
desvendar suas célebres “dimen- de um Heidegger com o seu Rei- poderia, enfocar o pensamento e a
sões espirituais” nos mecanismos torado em 1933. vida de um ângulo trágico e então
das classes e do quiproquó do capi- Em Comte, por sua vez, a pro- encontrar os temas da liberdade, da
tal e do Estado. posta (e a obra) se quer explicitamen- responsabilidade trágica, do acaso e
Comte é vencido pelas facilida- te como resolução social dos sofri- da vida sempre reinventada. Ele na-
des, pelas imprecisões e certezas mentos humanos. Se quer, enfim, turaliza a vida social e está longe de
superficiais de sua época e opta en- como uma solução espiritual (e con- inserir na história a luta dos valores,
tão por um discurso amplo demais e creta) e para isso convoca, como ele a criação dos corpos e dos povos
totalizador demais, opta enfim pelo faz, o proletariado e as “mulheres”. num limiar ético (antes que na for-
seu narcisismo quase ingênuo como Ela está no mesmo parâmetro de um mulação de leis morais). O ideário
Messias do grande reformismo do chamamento revolucionário (ainda que positivista - e não importa que
capital. Comte está longe de sur- Comte deplore a “revolução” e só pre- positivismo - é estreito demais para
preender crítica ou politicamente o ca- gue no propósito da “reforma” da hu- pensar as metafísicas, e até mes-
pital e seus valores, ou as formas manidade); e é por isso que ele tam- mo para “imaginar” a sua supera-
do Estado e seus aparelhos. Esteve bém impõe à sua obra as formas ção. A questão da metafísica na re-
longe de afrontar as crendices e convocatórias e pedagógicas de Cur- flexão da “morte de Deus” em
mesquinharias que instituem e asse- sos, de Manifesto, de Catecismo, e Nietzsche ou da “história do Ser” em
guram todas as religiões e todos os se faz então numa prática que deman- Heidegger serve para atestar, para dar
messias, mesmo aqueles que se da discípulos, cultos e até religião. um testemunho sem pretensão de
impõem pela ilusão de um saber cien- Se tudo isso está atravessado de responder, o tamanho e a complexi-
tífico e de uma tecnologia plena. uma certa concepção equívoca (ain- dade desta questão.
Humilhado demais (por sua família, da que sempre sujeita a diferentes A utilização das noções de trans-
pelas instituições de ensino e pelos avaliações) da técnica, se tudo isso cendência (em Comte criticamente
intelectuais de sua época), ele não se misturou com suas convicções e sob a forma de filosofias dos “dois
foi além da revanche reformista, conservadoras (a Idade Média, o mundos”) e imanência, para pensar
professoral e sacerdotal, isto é, do catolicismo, o autoritarismo, a idéia os “três estágios”, é insuficiente e
ressentimento não contundente e burguesa do progresso etc.), nem por também pouco convincente. O
ilustrado do seu “positivismo”. isso deixou de ser uma das formas remetimento para “fora” - para uma
A verdade é que o século XIX nos modernas de afrontamento de valo- “autoridade” qualquer - não está
ofereceu - no que diz respeito à aná- res do passado. excluído na filosofia positiva da “hu-
lise da história, dos discursos e da manidade” (idealizada) em Comte.
***
urgência de uma alternativa à vida Seja ela o Deus oculto - ou a “hu-
humana - os pensamentos de Nietzsche, Objetivamente, os “três está- manidade” - que Comte impõe
Kierkgaard, Marx e Freud. Claro que gios” - fundamentais para o pensa- como um “fora”, ainda que o de-
houve um Hegel antes - o historiador mento comtiano - já estavam teori- signando como “aquilo de que se
por excelência, mesmo se de um camente presentes no pensamento trata” imanentemente.
ângulo especulativo -, mas o idealis- francês. Seriam até mesmo uma ca- Comte está longe de ter proble-
mo alemão (Fichte, Schelling e Hegel) racterística dele e do espírito burguês matizado as religiões, as metafísicas
dificilmente encontraria ou poderia hegemônico na França iluminista. e até mesmo as ciências, em que
encontrar por ele mesmo uma práxis Turgot (Histoire des progrès de l’esprit pese um resíduo crítico (e até políti-
ou uma política. A filosofia em gran- humain - 1750) fala em três estágios co) inseparável de sua pregação
de parte, ainda que sempre com da humanidade, que é em tudo si- “positivista”. Mas não bastam as
méritos, tem sido uma questão in- métrico à teoria dos “três estágios” acepções desta pregação positivista
terna aos filósofos e raramente rei- de Comte. Da mesma forma Con- (o real, o útil, o certo etc.) para con-
vindica nas massas uma alternativa dorcet, como já lembramos, tratou verter esta grande síntese espe-
ao sofrimento e às privações. Isso estas questões no seu Esquisse d’un culativa e prática do comtismo numa
não quer dizer que os filósofos, até tableau historique des progrès de filosofia do concreto e do ima-
os mais sistemáticos, não afrontam l’esprit humain (1794). Não vamos nentismo pleno. Nem a certeza car-
e discutem, por exemplo, a questão nos deter criticamente nesta ilusão tesiana herdada, nem o empirismo
da “justiça”. Até pelo contrário, pois de um progresso evolutivo (de um humano, nem a “crítica” kantiana tor-
ela é o centro da “sentença de progresso em si e irreversível), mas nada nele “crítica histórica” o ajudam
Anaximandro” e esteve no coração podemos lembrar as reflexões sobre nesta pretensão de uma filosofia sin-
das aventuras políticas de um Platão, o descontinuísmo histórico sob a for- tética e positiva. Aliás, como já fize-
dos estóicos (de um Sêneca, de um ma de uma crítica a um processo mos sentir, de nada vale apregoar um
Marco Aurélio etc.) e nos riscos que histórico contínuo e verdadeiro. Vico, pensamento apologético das ciênci-
um Espinoza correu e por onde ele Nietzsche, mas também Marx e as quando se nega a elas - neste

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LOGOS

pensamento - um saber efetivo de a sua sociologia (a sua filosofia da beneficiou evidentemente de uma
si mesmas. O que significa dizer “humanidade”) a um “progresso irre- certa crise política e de idéias quan-
que a exigência em Comte de um versível” que ele divide em progres- do da fase da Ditadura Militar. Algo
discurso apenas de fatos ou dos fa- so intelectual e progresso real e his- parecido se passou em Portugal no
tos para a ciência, e não uma filo- tórico. Este paradigma “metafísico”, contexto da Ditadura salazarista e
sofia das causas, não é suficiente se assim posso dizer, é no plano in- suas seqüelas.
para instaurar o universo (neo- telectual, diz Comte, a lei dos três Não foi outra coisa que se viu em
positivista e mais tarde episte- estágios, e no plano das ações a in- épocas anteriores, como quando da
mológico contemporâneo) da refle- dústria. Mas falta impor a estes dois entrada da fenomenologia, do exis-
xão sobre o pensamento científico. progressos o progresso mesmo da tencialismo e, recentemente, de um
Desse conjunto de abordagens, e tecno-ciência que hoje, muito mais certo humanismo franco-alemão por
até de certezas, Comte instaura uma do que um progresso, é também um onde se pretende afrontar um pós-
filosofia que aspirou ser, como disse enigma e uma ameaça. Uma amea- modernismo francês-americanizado.
alguém, uma espécie de Enciclopé- ça à vida e um motor quase inesgo- E isso tanto no Brasil quanto em
dia do século XIX. É nesta filosofia tável para o capital. Portugal. Em parte tudo isso é ver-
“enciclopédica” onde as ciências dade, mas é muito pouco para cons-
***
hierarquizadas se deixam classificar, tituir e explicar a nossa realidade
ao mesmo tempo como sistema e A filosofia de Comte não se com- como de pouca tradição filosófica e
como história, e é nesta ordem (lógi- pleta sem a proposta em si de um de fácil incorporação de modismos
co-histórica) que elas se vêem como progresso moral que ele acredita es- filosóficos franceses. Antes que um
que essencializadas por uma “socio- tar no “altruísmo”. Mas isso ainda uso provincial, é verdade, da última
logia”. Se a “sociologia” não é pro- não é tudo. Comte quer nos impor moda intelectual para escapar magi-
priamente uma “síntese objetiva” no uma “religião” que ele acredita não camente da pobreza de pensamento
espírito matemático, ela é uma “sín- ser aquela do estágio tecnológico, e da ausência de tradição filosófica,
tese subjetiva” nos termos então de porque ela é uma religião da huma- trata-se de um conflito situado, numa
uma humanidade totalizadora. Comte nidade e não de um Deus. Comte, cultura pobre e singular, com forças
“naturaliza” o social e faz da socio- contudo, não negou Deus, apenas diz institucionais e tradições enraizadas
logia um discurso que se quer quase que não há como conhecê-lo. No como a Igreja, os regimes de força e
uma física do “homem” como ho- entanto, a sua “religião” tem tudo o o império recente dos mídias.
mem social. E este social em Comte, que se espera de uma religião de fato. É certo que vivemos (Portugal e
que nada tem a ver com aquilo que Ela tem nele, tal como foi seu dese- Brasil) uma certa dependência cultu-
Marx analisa como massas do tra- jo, o “grande sacerdote”, que suce- ral, mas é certo também que os fa-
balho explorado e luta de classes, deu então, e são ainda suas pala- tores que estabelecem esta disposi-
tem como “célula” a família. Comte vras, a Aristóteles e a São Paulo. Ela ção decorrem, nos nossos casos, de
tem, pois, um enfoque conservador configura também uma espécie de uma história bastante particular. A
deste social - como “natureza” da sacramento sob a forma, arcaica e reflexão, a militância intelectual no
vida humana - e chega ao limite de bárbara, de uma cerimônia onde um mundo europeu desenvolvido, resul-
coisificá-lo no propósito de o confi- recém-nascido é oferecido para “o tou de políticas culturais que, por sua
gurar como um objeto fora e então serviço da humanidade”. De resto, vez, instituíram ou criaram uma tra-
controlável por um discurso com pre- Comte estipula outros rituais que dição no plano das idéias e das ar-
tensão de ciência natural. O tempo acompanham de perto um seu se- tes. Isso não quer dizer que o pensa-
mostrou que a vida humana des- guidor, e que o acompanham inclu- mento seja, em sua essência nacio-
bordava o social, ou que o social ja- sive depois de sua morte. nal, e decorra absolutamente destas
mais se constituiu em natureza, seja Portugal e Brasil viveram assu- singularidades culturais e políticas
lá do que for, e, de resto, que a no- mindo as idéias novas do pensamen- “desenvolvidas”.
ção mesmo de natureza jamais dis- to francês (positivismo, existen- O pensamento não tem pátria -
pôs de outro estatuto que o da ideo- cialismo, marxismo francês, estru- mesmo se sempre responsável da
logia. A sociologia, em Comte, se turalismo e pensamento pós-moder- vida e dos possíveis da vida - já que
configura em um mural de imagens no), e tanto um quanto o outro se ele é um bem comum e a força de
conservadoras que a esquematiza perguntam hoje pela urgência de se sua originalidade quase irreferen-
tanto quanto a esclerosa. Por exem- pensarem e de pensarem o mundo ciável. No entanto, ele não existe ou
plo, Comte fala de uma “estática” e com idéias próprias. Há exemplos existirá como possibilidade abstrata
de uma “dinâmica” na sociologia, recentes, tais como o do estrutura- e genérica, mas a partir de fatos his-
que ele designa por “instituições”, a lismo francês que em Portugal se tóricos e intelectuais e que configu-
primeira, e por “funções”, a segun- impõe sobretudo a partir de uma rem uma cultura e uma política que
da. Na verdade, trata-se com as “ins- Antologia portuguesa do estruturalis- o reclame e que predisponha histori-
tituições” da família, da linguagem mo organizada por Eduardo Prado camente. Brasil e Portugal, a partir
e da propriedade, assim como com Coelho. No Brasil, onde se utilizou de condições históricas novas - a
as “funções” se trata da autoridade amplamente esta Antologia, o estru- democracia portuguesa a partir de 25
e da religião. Comte, enfim, remete turalismo francês como moda se de abril de 1974 e a brasileira nas

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LOGOS

duas últimas décadas - começam a outra popular. É sobretudo nesta últi- de da herança da Revolução france-
exigir um universo de questões e de ma - e na forma superficial da “opi- sa, 1789, que relia o Iluminismo de
idéias não mais como um provincial nião” e nunca de pensamento ou forma burguesa conservadora, e exi-
conflito de doutrinas “francesas”, questionamento - que o positivismo gia um Estado capaz de uma indús-
mas como originalidade e como e o marxismo existiram entre nós. tria francamente antiliberal), já no
manifestação própria de uma presen- Pouco importa que tenha havido um Brasil este positivismo “empresta-
ça intelectual singular por si mesma. positivismo institucional e um marxis- do” configurava todo um processo
É preciso, pois, que o pensamen- mo universitário no Brasil, já que um político e institucional onde Estado
to se pense sem deixar de pensar e outro foram e permaneceram um e as suas metas pareciam, eram e
esta realidade cultural singular e, por horizonte esquemático e opinativo. Foi permanecem, como que à deriva do
isso mesmo, instrua suas noções e uma maneira mais geral de nos im- seu povo e do seu potencial.
imagens na carga própria e singular por uma modernidade e nela as práti- O Brasil não tinha (e permanece
das vivências portuguesas-brasilei- cas acadêmicas por onde respondía- não tendo) um pensamento próprio,
ras. Retornar por uma genealogia às mos a um mal-estar de terceiro mun- um questionamento próprio e verda-
forças culturais (na literatura, nas do sem que, com um e outro, reali- deiro - e de certa forma, e até mes-
artes e até na história política) que zássemos um conhecimento da nos- mo em razão disso, uma história pró-
possam desde já constituir um solo sa realidade e uma efetiva convoca- pria. O positivismo era o artifício por
e atuar nas formulações das idéias ção política. Ora, somos governados onde as classes dominantes - e a rea-
é fundamental. De tudo isso se hoje exatamente por estes “marxis- lização do Estado entre nós - pode-
depreende que não cabe afrontar os tas” universitários e nos termos, ali- riam assegurar ideologicamente esta
modismos teóricos franceses com ás, cruéis e insensíveis do neo-libe- trágica distância, assim como ele tam-
um certo nacionalismo de razões ralismo (ainda que todos eles “mar- bém manteria fora da “criação do Bra-
(culturais), como se esse fosse o xistas” hoje arrependidos), como fo- sil” o povo e o pensamento, opondo-
eixo da questão. Mas de fazer o pen- mos republicanamente instuticio- se a qualquer prenúncio de um pro-
samento fazendo valer nele o lugar nalizados pelos positivistas. cesso novo e propriamente participan-
único e singular de uma experiência O marxismo “brasileiro” não foi te. De certa forma, o Estado brasilei-
histórica que se quer conhecer. capaz da grandeza teórica do mar- ro é literalmente repressor e “intelec-
Nestes parâmetros não estão xismo - não foi capaz de si mesmo tualmente” um perpetuador do vazio.
apenas as reflexões históricas e po- como discurso crítico da nossa rea- No positivismo comtiano, como se
líticas mas a filosofia mesma (o pen- lidade -, assim como o positivismo sabe, existiu sempre um propósito pe-
samento especulativo), pois ela tam- (com sua utopia social e industrial dagógico, por isso mesmo reformis-
bém se faz na pregnância destes fa- burguesas) não venceu no Brasil as ta e jamais revolucionário. Pedagogia
tores. Platão é singularmente “gre- práticas anárquico-clientelistas her- aparentemente moderna (científica e
go”, como Sêneca (o estóico) é par- dadas do colonialismo. O positi- “humanitária”), mas inconseqüente,
ticularmente o drama romano. Da vismo trazido de fora não teve entre retórica e assumidamente autoritária.
mesma forma Espinoza é português nós uma vida teórica, mas sim uma Tratava-se da forma mais eficaz e abs-
e judeu, e também um cidadão per- vida farsante onde se equilibrariam trata da “razão” - como riqueza e or-
seguido dos Países Baixos. Tal como críticas eventuais à demora de uma dem - que a palavra-chave comtiana
o idealismo alemão - na intensidade sociedade capitalista brasileira e os da “doutrina da educação universal”
da questão do Ser - não pode ser termos conservadores (e autoritá- subscrevia explicitamente. Este
esquecido para entendermos ques- rios) por onde este capitalismo foi positivismo parecia feito à medida
tões tão complexas e próximas como instituído e se impôs. para uma burguesia sempre “gauche”
um certo ideário do nacional-socia- Ambigüidade e convivência da junto ao capitalismo internacional,
lismo alemão. No Brasil as idéias - especulação e do populismo no cujos propósitos se limitavam a um
sempre importadas - foram, por um positivismo comtiano, que no Brasil comando sem teses ou idéias.
lado, formas de afrontar uma reali- foi entendido como um programa fe-
dade imediata e até mesmo insupor- chado (e abstrato) aliado a um uso, Notas
tável. Não é outra a “urgência” do sem o povo e até sem o país, em 1
Os quatro volumes da Política Positiva ou
positivismo comtiano nos intelectu- benefício de pessoas e instituições. Tratado de Sociologia Instituindo a Religião
ais e nas instituições republicanas. O Estado brasileiro arremataria seu da Humanidade (de 1851 a 1854) e também
Talvez possamos dizer o mesmo do entranhado colonialismo com os pres- o Catecismo Positivista, em 1852.
que foi o marxismo entre nós. É cla- supostos autoritários do positivismo.
ro que não nos ocuparemos aqui com Na instituição militar brasileira, o
o que ocorreu com o pensamento de positivismo marca o aspecto de um Bibliografia
Marx no mundo e no Brasil, nem pre- poder sempre hostil ao povo, sempre COMTE, Augusto. Catecismo Positivista. Co-
tenderemos ter feito isso com o conservador e quase perverso. leção “Os Pensadores”, Abril, 1978.
positivismo de Comte. Se o positivismo francês tem ar-
Assim como o positivismo, tam- ticulações claras com a história fran-
bém o marxismo dispunha, lado a cesa, ou dela em parte resulta (por * Carlos Henrique de Escobar é
lado, de uma dimensão teórica e uma exemplo, uma França que se defen- Filósofo.

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