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Penco, Carlo
Introdução à filosofia da linguagem / Carlo Penco ;
tradução de Ephraim F. Alves. – Petrópolis, RJ :
Vozes, 2006.
ISBN 85.326.3367-6
Título original : Introduzione alla filosofia
del linguaggio
Bibliografia.
1. Linguagem – Filosofia 2. Linguagem –
Filosofia – História I. Título.
06-4573 CDD-401
Introdução à filosofia da
linguagem
Tradução de Ephraim F. Alves
EDITORA
VOZES
Petrópolis
© 2004, Gius. Laterza & Figli S.p.a., Roma-Bari
A edição brasileira foi intermediada pela
Agência Literária EULAMA, Roma.
Prefácio, 9
Prefácio 9
Frege definiu uma série de problemas novos, que constituíram um novo
campo de pesquisa. Estudar as reflexões de Frege sobre a linguagem
ajuda a compreender não só como surgiram certos problemas, mas tam-
bém como se desenvolveram, muitas vezes como crítica às soluções fre-
geanas.
As partes que vão da segunda à quinta estão organizadas em torno de
quatro grandes temas:
(i) a linguagem como representação: a relação da linguagem com a
verdade e com aquilo a que as palavras se referem;
(ii) a linguagem como ação: a importância das convenções lingüísti-
cas e das intenções no uso da linguagem;
(iii) a linguagem como comunicação: o problema da tradução e os
aspectos de dependência contextual das nossas proposições;
(iv) a linguagem como norma e como natureza: a possibilidade ou
não de se reduzir a linguagem a um enfoque meramente naturalista
(por exemplo, psicológico, sociológico ou neurofisiológico).
Trata-se de quatro áreas de problemas abordados por Frege em suas
obras e definidos no trabalho de construção do sistema simbólico (a ló-
gica matemática), que vai abrir o caminho para as linguagens de progra-
mação e para as modernas ciências da informática, da robótica e da ciên-
cia cognitiva. Cada parte do livro será aberta por um capítulo introdutó-
rio que tem como ponto de partida as reflexões de Frege, para em segui-
da passar a discutir as principais teorias contemporâneas sobre o tema.
Alguns parágrafos mais difíceis estão assinalados com um asterisco
(*) logo depois do título do parágrafo e podem ser saltados na primeira
leitura. No fim dos capítulos se oferece uma Bibliografia essencial, com
textos em português (esta bibliografia tem um fim prático: não indico,
portanto, as edições originais ou as primeiras edições. Alguns capítulos
são seguidos, também, por quadros com informações diversas sobre te-
mas não aprofundados no texto ou sobre aspectos mais técnicos.
10 Prefácio
Parte I
SUMÁRIO
Este capítulo serve de introdução geral para os não-filósofos e põe a ênfase so-
bre a centralidade do argumentar para a filosofia (diversamente do que ocorre com
a arte ou com a poesia, onde a argumentação, precisamente, não tem cabimento).
Em 1.1 se explica o conceito de argumentação, que é um dos principais instrumen-
tos de trabalho do filósofo. Em 1.2 se aborda o problema da forma das argumenta-
ções, o tema das falácias e a possível defesa dos equívocos argumentativos. Em
1.3 se lembra a importância da análise lógica no estudo da linguagem e se faz
alusão a algumas contraposições no terreno da filosofia da linguagem.
1. Dar razões 15
Denomina-se “inconcludente” um discurso que não tenha uma con-
clusão, ou cuja conclusão parece totalmente destacada do resto do discur-
so. O que significa “tomando por base razões”? Quer dizer que uma ver-
dadeira conclusão não pode ocorrer por acaso, mas deve seguir razões
apresentadas em uma certa ordem, com uma certa conexão. Como se en-
cadeiam entre si as razões usadas para se chegar a uma conclusão? A res-
posta é: as razões se encadeiam segundo regras geralmente aceitas e de tal
sorte que assegurem a verdade (se as premissas forem verdadeiras). A esta
altura vamos necessitar de uma distinção, fundamental em lógica e expli-
citada a partir do trabalho de Gottlob Frege: a distinção entre axiomas e
regras. Podemos dar as seguintes definições aproximativas:
• os axiomas, ou suposições, são aquilo que constitui o ponto de par-
tida do nosso raciocínio, aquilo que se assume ou supõe como verda-
deiro;
• as regras de inferência são as regras comumente aceitas, que per-
mitem passar das suposições (as premissas do argumento) às con-
clusões;
• a inferência: usa-se o termo “inferência” para falar (i) do ato de
passar das premissas às conseqüências segundo regras, (ii) da estru-
tura desta passagem (ou deste conjunto de passos). Neste segundo
sentido se fala de “esquemas de inferência”.
Uma argumentação é tipicamente constituída por uma inferência ou
por uma série de inferências. Usualmente seguimos regras de inferência
implicitamente, sem nos darmos conta de que regras estamos efetiva-
mente seguindo. Parte do trabalho dos lógicos consiste em explicitar al-
gumas dessas regras, em particular aquelas que, tendo em vista a verda-
de das premissas, garantem a verdade da conclusão. Um exemplo clássi-
co de regra de inferência é a regra do Modus ponens (ou regra de separa-
ção), já explicitada pelos estóicos e colocada por Frege como regra-base
do seu sistema lógico:
se p então q
1. Dar razões 17
Argumentação válida (valid) Argumentação na qual não é possível que a
conclusão seja falsa e as premissas verdadeiras (a
conclusão é “conseqüência lógica” das premissas:
segue necessariamente).
Argumentação correta (sound) Argumentação válida e fundada, ou seja, cujas
premissas são verdadeiras.
Argumentação boa (good) Argumentação correta, mas também
psicologicamente plausível e convincente.
1. Dar razões 19
(1) (2)
todos os A são B todos os A são B
todos os C são A todos os C são B
A
A
B B C
C
EXEMPLO (3)
ou Pippo tem a carteira de motorista ou então não pode dirigir na estrada
Pippo não tem a carteira de motorista
EXEMPLO (4)
ou se corta o estado social ou então a economia vai à falência
não se corta o estado social
1. Dar razões 21
cínio desse tipo, que parece fundado por esconder as alternativas. O típi-
co slogan do vendedor: “Compre o produto SUPER-X ou então se conten-
te com produtos inferiores; você quer contentar-se com produtos infe-
riores? Claro que não! Portanto, compre o produto SUPER-X!”
Nem sempre é fácil compreender se um discurso é consistente ou
não. As coisas ficam difíceis quando um raciocínio sem consistência pa-
rece bem construído. É o caso de (2) e (4), exemplos de argumentação
falaciosa. Muitas definições de “falácia” têm em comum a idéia segun-
do a qual (i) são argumentações inválidas ou incorretas, mas (ii) pare-
cem argumentações válidas ou corretas.
Ao menos a partir de Aristóteles foi desenvolvida uma ampla inves-
tigação para identificar os raciocínios falaciosos e pôr em evidência as
suas formas mais comuns. Os retores e os sofistas eram sumamente há-
beis em usar argumentos que pareciam cogentes, mas se baseavam em
falácias. Uma pessoa pode ser ao mesmo tempo persuasiva e falsa, mas
também persuasiva e incorreta no raciocínio (para uma lista de falácias,
cf. o Quadro 1).
Pode-se resumir assim o que se disse até aqui:
• a falsidade (ou falta de fundamento) daquilo que se diz pode ser
desmascarada com a evidência de provas e dados empíricos ou tam-
bém de hipóteses não contempladas;
• a incorreção da argumentação pode ser desmascarada por contra-
exemplos, ou mostrando qual o elo fraco da cadeia de inferências.
O estudo das falácias, ou ao menos a acribia da argumentação, deve-
ria fazer parte do arsenal de qualquer filósofo. Mas faz sentido, de ma-
neira particular, chamar a atenção para esses temas em uma introdução
à filosofia da linguagem. Com efeito, é certamente mérito deste setor da
filosofia ter afinado a atenção para os equívocos aos quais as ambigüi-
dades da linguagem induzem os falantes pouco cuidadosos.
1. Dar razões 23
ras de Russell, o Wittgenstein do Tractatus, Carnap, Reichenbach,
Montague;
• os filósofos da linguagem ordinária que procuram, através da análise
dos usos correntes, mostrar a riqueza e a variedade da linguagem, mas
também mostrar como alguns problemas típicos da filosofia podem
ter origem em mal-entendidos lingüísticos. Aqui encontramos, por
exemplo, o segundo Wittgenstein, Austin, Ryle, Strawson.
A contraposição era muito viva na primeira metade do século XX, e
aos poucos se foi atenuando. Autores mais recentes como Brandon, Da-
vidson, Dummett, Fodor, Grice, Kripke, Putnam e Quine não são enqua-
dráveis nesses termos. Mas alguma coisa da antiga contraposição conti-
nua viva na batalha que, na década de 1950, Strawson chamava de “ba-
talha homérica”, um confronto entre duas facções opostas:
1. a facção que privilegia o estudo do sentido “objetivo” dos enuncia-
dos, determinado pela sua estrutura lógica: esta atitude constitui o
“paradigma dominante” da filosofia da linguagem que define o sen-
tido de um enunciado como condições de verdade (cf. 4.5 e 6.1);
2. a facção que privilegia o estudo das intenções do falante como o ine-
vitável ponto de partida para definir o sentido das expressões lingüísti-
cas, preferindo a pragmática à semântica (para esta distinção, cf. 3.1).
Para compreender esta contraposição, é necessário antes de tudo
compreender o papel desempenhado pela lógica na determinação dos pro-
blemas da análise da linguagem e o papel que assumiu na cultura con-
temporânea. A relação entre a linguagem e a lógica será o tema do pró-
ximo capítulo.
Bibliografia essencial
BRANQUINHO, João; MURCHO, Desidério & GONÇALVES GOMES,
Nelson (orgs.). Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2006.
DOWNES, Stephen. Guia das falácias. In: Crítica [www.criticanarede.com].
MARCONDES, Danilo. Filosofia analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
WESTON, Anthony. A arte de argumentar. Lisboa: Gradiva, 1996.
1. Dar razões 25
2 Linguagem e lógica
SUMÁRIO
Em 2.1 se apresenta um breve quadro histórico das relações entre a lógica e
o desenvolvimento da ciência moderna, detendo-se na figura de Leibniz, cujas
idéias em lógica foram desenvolvidas por Boole e por Frege. Em 2.2 se intro-
duz o aspecto mais técnico da revolução lógica de Frege, a saber sua analogia
entre conceitos e funções matemáticas e a sua invenção dos quantificadores.
Ao fazê-lo, Frege enfatiza a distinção entre o nível da expressão e o nível do
conteúdo; isto ajuda, em 2.3, a introduzir algumas distinções filosóficas ele-
mentares pressupostas na seqüência do texto. Em 2.4 se mostra como a inven-
ção dos quantificadores permitiu a Frege unificar a lógica das proposições (de
origem estóica) e a lógica dos termos, aristotélica, que há mais de dois mil anos
iam se desenvolvendo paralelamente (Boole incluído; cf. Quadro 3). Em 2.5 se
mostra, finalmente, como a solução fregeana leva à distinção entre forma gra-
matical e forma lógica, distinção central para o desenvolvimento da análise da
linguagem (e retomada no capítulo 6).
2. Linguagem e lógica 27
Mas Leibniz estava bem à frente do seu tempo, e suas idéias iriam ser
desenvolvidas mais de duzentos anos após, por George Boole (1815-1864)
e por Gottlob Frege (1848-1925). Pelo final do século XIX, Frege pro-
pôs de novo, explicitamente, o projeto leibniziano em seu conjunto. Fre-
ge conhecia tanto os trabalhos de Boole e da escola booleana como
aqueles de seu contemporâneo Giuseppe Peano (1858-1932), matemáti-
co italiano, inventor de uma linguagem formal para representar a mate-
mática. Frege criticava os dois. Criticava a álgebra de Boole que forne-
cia as regras de um cálculo formal, sem oferecer uma língua univer-
sal. Um mesmo símbolo, por exemplo o “x”, podia ser interpretado ora
como símbolo da multiplicação de números ora como símbolo da inter-
secção entre classes, ora como símbolo da conjunção entre proposições
(cf. Quadro 3). Mas como encontrar uma linguagem na qual se possa fa-
lar da matemática, se os próprios símbolos são usados com diferentes
sentidos? Era necessário ter uma língua como aquela de Peano. Mas Fre-
ge criticava também Peano por ter fornecido uma língua universal para a
matemática sem dar ao mesmo tempo um cálculo lógico. Frege queria
propor novamente o projeto leibniziano originário, a saber um conjunto
constituído por uma língua e por um cálculo.
Poderíamos sintetizar o projeto de Frege, inspirado por Leibniz, de
acordo com o seguinte esquema. Um sistema formal deve conter tanto
uma linguagem como um cálculo assim constituídos:
2. Linguagem e lógica 29
Frege. Um aspecto central do contraste entre as duas escolas (cf. Quadro
2) é o seguinte:
• Os aristotélicos estavam interessados nas relações entre os termos
das premissas e as conclusões de um raciocínio. O raciocínio era ti-
picamente enquadrado na forma transmitida por Aristóteles como
“silogismo” (do tipo “todos os homens são mortais; todos os gregos
são homens; portanto todos os gregos são mortais”).
• Os estóicos consideravam central para a lógica a relação condicional
“se... então”, que pode valer entre proposições de qualquer tipo. Para
os estóicos, portanto, as premissas silogísticas deveriam ser lidas não
como enunciados simples, mas como enunciados complexos, na for-
ma condicional “se alguma coisa é um homem, então é mortal”.
A grande virada lógica do século XX é a síntese dessas duas tradi-
ções. A chave para esta síntese é a invenção dos quantificadores, ou seja,
uma notação matemática para a generalidade (expressões como “todos”
e “alguns”). Antes de passar a este ponto central do trabalho de Frege
(cf. 2.4), devemos esclarecer qual o pano de fundo teórico que o prece-
de: a generalização do conceito matemático de função e a teoria do con-
ceito que dele se origina.
Uma função matemática
y = f (x)
é tipicamente uma correspondência (f) entre dois conjuntos de números,
os argumentos (x) e os valores (y). Se por exemplo f representa “+1”,
para cada número x teremos como valor o sucessor de x. E, tal como já
havia compreendido Descartes, a uma função pode ser associado um
gráfico ou uma figura geométrica (neste caso uma reta).
Frege, em busca do ideal leibniziano de um cálculo universal dos
símbolos, generaliza o conceito de função. Ele aceita como argumentos
e valores não somente números, mas qualquer tipo de objeto. Podemos
por exemplo escrever
Homem (x)
como modo de representar o conceito Homem, ou como abreviação de
“x é um homem” (onde por “homem” se entende uma pessoa adulta do
30 Parte I – Filosofia, lógica e lingüística
sexo masculino). Toda vez que substituímos x por um nome de homem,
a expressão assume como valor a verdade. Se substituímos o x por um
nome de mulher, teremos como valor a falsidade. Mas o que significa ter
como valor a verdade ou a falsidade? Quer dizer que temos uma propo-
sição verdadeira ou falsa: “Sócrates é um homem”, “César é um ho-
mem” são proposições verdadeiras, ao passo que “Xantipa é um ho-
mem” e “Cleópatra é um homem” são proposições falsas. Um conceito é
portanto análogo a uma função que tem como valor a verdade se por ar-
gumentos tem objetos que caem sob o conceito (os membros da classe
denotada pelo conceito) e como valor a falsidade no caso contrário4.
Assim se explica a definição fregeana de conceito (que corresponde
àquela que Russell vai denominar “função proposicional”):
Essa definição vale para todo tipo de conceito, ou seja, quer para as
propriedades quer para as relações. Neste último caso haverá diversas
variáveis em vez de uma. Teremos assim:
• expressões para propriedades como
Homem (x), Bom (x), Corre (x), Pares (x), Ímpares (x);
• expressões para relações binárias como
Maior do que (x,y), Menor do que (x,y), Ama (x,y), Mata (x,y);
• expressões para relações ternárias como
Ciumento (x,y,z), Soma de (x,y,z), e assim por diante.
De modo análogo ao caso das propriedades, “Ama (x,y)” é a relação
que dá lugar a uma proposição verdadeira se substituímos os x e os y pe-
los nomes, respectivamente, de amante e de amado, e assim por diante.
As expressões para propriedades e para relações recebem hoje habitual-
mente o nome de “predicados a n lugares”. Deve-se observar assim que
2. Linguagem e lógica 31
não existe diferença formal entre propriedades e relações, uma vez que
os conceitos (propriedades e relações) são vistos, todos os dois, em ana-
logia com as funções. A diferença é o número de argumentos que devem
ser saturados.
Frege não apenas generaliza o conceito de função, mas faz uma críti-
ca aos matemáticos de sua época, em particular no que tange à confusão
entre signo e designado, isto é, entre expressão e conteúdo. Limitan-
do-nos ao caso dos conceitos, podemos dizer:
• os conceitos são em geral denotados por predicados, expressões
lingüísticas “não saturadas”, de tal modo que têm sempre um ou mais
lugares de argumento dados com letras variáveis (as funções mate-
máticas serão denotadas por functores);
• os argumentos, que podem ser quaisquer objetos, serão denotados
por termos singulares, isto é, expressões da linguagem que se referem
a um objeto individual isolado. Os termos singulares destinam-se a
encher (ou a “saturar”) lugares de argumento dos predicados.
A metáfora de “entidades saturadas” e “entidades não saturadas”,
desenvolvida em analogia com a linguagem da química, ajudou Frege a
definir com maior clareza a estrutura da sua linguagem formal. Talvez
tenha influenciado a seguir também a invenção do termo “atomismo ló-
gico” para um tipo de filosofia inspirada em suas obras (cf. 5.6).
O resultado dessa virada lingüística é notável para a história da lógi-
ca. Frege abandona a centralidade da análise feita em termos de sujei-
to/predicado, que caracteriza a lógica aristotélica; em seu lugar introduz
a distinção entre argumento e função, ou seja, entre objeto e conceito.
Pode-se resumir deste modo a distinção base da lógica e da ontologia de
Frege, tanto em nível de expressão como em nível de conteúdo.
EXPRESSÃO CONTEÚDO
denota
termo singular (nome próprio) objeto
termo conceitual (predicado) conceito (propriedades e relações)
2. Linguagem e lógica 33
condições. É contingente se fala daquilo que poderia ser de outra
maneira, ou seja, se é verdadeiro somente em alguns casos ou, justa-
mente, por acaso.
Portanto, o reino da lógica é, para Frege e para muitos filósofos, o rei-
no do analítico, do a priori e do necessário. Visto não considerar logica-
mente importante a distinção sujeito/predicado, Frege deve reformular a
definição kantiana de “analítico” (“enunciado no qual o predicado está
contido no sujeito”). Para Frege, “analítico” vem a ser aquilo que depen-
de do significado das palavras e decorre segundo regras das verdades ló-
gicas (cf. também 13,1).
As relações entre esses níveis de discurso são aliás sobremodo com-
plexas. Para Kant, por exemplo, os enunciados da matemática são sinté-
ticos a priori: sintéticos porque pressupõem a intuição do espaço (para a
geometria) e do tempo (para a aritmética); a priori porque a sua verdade
é conhecida antes de qualquer experiência. Contra essa idéia Frege asse-
vera que somente a geometria é sintética a priori, mas toda intuição deve
ser posta fora da aritmética e a aritmética é, além de a priori, também
analítica, enquanto baseada apenas sobre a lógica, portanto somente so-
bre o significado das expressões. Para os neopositivistas, as verdades
analíticas, a priori e necessárias, são tais somente por convenção lin-
güística (cf. 6.3 e 6.6). Seriam possíveis outras combinações, como a
idéia de verdades necessárias a posteriori e verdades contingentes a
priori (cf. 15.2).
2. Linguagem e lógica 35
Frege realiza deste modo uma nova forma de lógica, o cálculo dos
predicados, que contém a silogística aristotélica como uma subparte sua
(limitada aos predicados monádicos e a certas relações inferenciais stan-
dard). Por isso, o final da introdução do seu primeiro livro de lógica, a
Ideografia de 1879, mostra como a sua lógica consegue com facilidade
exprimir o quadrado aristotélico das oposições (cf. Quadro 4).
Pela distinção axiomas/regras, pela construção da lógica matemáti-
ca e pela invenção dos quantificadores, Frege merece um lugar de desta-
que na história da lógica e da matemática. Além de explicitar distinções
e demonstrações matemáticas que não se poderiam exprimir com o silo-
gismo, a notação dos quantificadores permite:
• tornar operacional a formulação que os lógicos estóicos davam das
fórmulas silogísticas, unificando em um único formalismo a lógica
dos termos e a lógica das proposições, que haviam ficado separadas
também em Boole;
• abrir novos caminhos para a abordagem lógica da linguagem mate-
mática e oferecer ao mesmo tempo um poderoso instrumento de
análise da linguagem natural.
Depois de cerca de dois mil anos de história da lógica, a unificação
efetuada por Frege desmente com os fatos a tese sustentada por Kant, na
Crítica da razão pura, segundo a qual nada de novo se poderia realizar
em lógica formal depois de Aristóteles.
* O símbolo (*) indica os parágrafos mais difíceis, que podem ser pulados em uma pri-
meira leitura.
2. Linguagem e lógica 37
guagem e na lingüística. Essa distinção (inclusive o conceito de âmbito
ou raio de ação do quantificador) será muito importante para a teoria das
descrições de Russell, considerada por Ramsey e pelo primeiro Witt-
genstein um paradigma de filosofia (cf. 5.3). Em lingüística, o primeiro
Chomsky irá falar da distinção entre estrutura superficial e estrutura
profunda de uma frase, distinção que tem uma certa analogia com a nos-
sa distinção (cf. 3.3).
Frege tinha em mente desenvolver a lógica como instrumento para
analisar as linguagens científicas e também a linguagem natural. Hoje
nem se pode pensar em estudar línguas naturais e teorias científicas sem
o auxílio de um formalismo lógico-matemático. As linguagens de pro-
gramação se tornaram um instrumento indispensável não só para a aná-
lise, mas também para a reprodução de certas funções das línguas natu-
rais. Passou-se pouco mais de um século desde as primeiras reflexões de
Frege e com a lógica surgiram também outros formalismos e outras ten-
tativas de dar uma representação da linguagem, por parte da lingüística e
da semiótica. Esses setores de pesquisa também tiveram, nos últimos
anos, uma notável influência sobre a filosofia da linguagem, e convém
ter ao menos uma idéia da sua origem e das teses principais. A este tópi-
co se dedica o terceiro capítulo.
Bibliografia essencial
FREGE, Gottlob. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix/Edusp,
1978 [Trad. de Paulo Alcoforado].
KNEALE, W. & KNEALE, M. O desenvolvimento da lógica. Lisboa: Gulben-
kian, 1974.
MURCHO, Desidério. O lugar da lógica na filosofia. Lisboa: Plátano, 2003.
NEWTON-SMITH, W.H. Lógica. Lisboa: Gradiva, 1998.
PRIEST, Graham. Lógica. Lisboa: Temas e Debates, 2002.
TUGENDHAT, Ernst & WOLF, Ursula. Propedêutica lógico-semântica. Pe-
trópolis: Vozes, 1997.
2. Linguagem e lógica 39
3 Semiótica e lingüística
SUMÁRIO
Neste capítulo se apresentam algumas idéias dos “fundadores” da semióti-
ca e da lingüística contemporâneas. Em 3.1 se apresenta a divisão de tipos de
signos feita por Peirce e a classificação standard dos três níveis da semiótica
(sintaxe, semântica, pragmática). Lembram-se então as duas grandes direções
teóricas existentes na lingüística do século XX: o estruturalismo e a gramática
gerativa. Em 3.2 se recordam as linhas de fundo da lingüística estruturalista
criada por Ferdinand de Saussure, e se alude aos problemas relacionados com a
representação do léxico. Em 3.3 se apresenta a primeira versão da gramática
gerativa de Noam Chomsky, mostrando como ela recorda a elaboração tradi-
cional do conceito de sistema formal em lógica. Apresenta-se um confronto
entre as duas diferentes impostações da lingüística estruturalista e da semânti-
ca gerativa. Se Saussure considera a língua como um sistema compartilhado e
convencional, a visão da lingüística de Chomsky tem como idéia central o con-
ceito de competência, capacidade biológica inata do falante. Faz-se alusão às
idéias de fundo de Chomsky, que permanecem estáveis apesar de modifica-
ções nos diversos modelos por ele propostos no decorrer do tempo.
signo coisa
5. Pode-se observar que embora a relação entre a fumaça e o fogo seja uma relação
causal, e não mental, interpretar a fumaça como sinal do fogo é uma operação mental
de interpretação.
3. Semiótica e lingüística 41
Para todo tipo de signo vale uma distinção fundamental, aquela exis-
tente entre type e token:
• type = tipo de signo;
• token = réplica ou ocorrência de um signo.
A distinção, indo inclusive além daquela específica leitura que lhe foi
dada por Peirce, tornou-se de uso comum em semiótica e em lingüística.
Um signo de um mesmo tipo pode ser “replicado” ou ter vários
exemplos em diferentes versões. Qualquer palavra pode ser escrita em
múltiplos textos ou emitida oralmente muitas vezes. A “réplica” é a re-
produção física de signos de um certo tipo.
A distinção é evidente com expressões como “tu” ou “eu”; todo fa-
lante pode usar esse tipo de expressão, mas toda réplica dessa expressão
na boca de falantes diferentes se referirá a uma outra pessoa. Não so-
mente um mesmo enunciado-tipo poderá ser verdadeiro ou falso na boca
de pessoas diferentes (por exemplo “tu mentes, eu não” dito por dois in-
terlocutores, se é verdadeiro de um é falso do outro). A distinção type/to-
ken, ou distinções análogas, assumirá sempre maior realce na análise da
linguagem (cf. 7.1 e nota).
Nos Estados Unidos a tradição peirceana e a fregeana se encontram
nas figuras de Charles Morris e Rudolf Carnap. Ambos reconhecem a
importância da semiótica geral, que se subdivide em três campos:
3. Semiótica e lingüística 43
o signo lingüístico é uma entidade de duas faces, que liga indissolu-
velmente o signifiant e o signifié, expressão lingüística e conteúdo
conceitual. O signo é ao mesmo tempo arbitrário e convencional.
3. Semiótica e lingüística 45
Um dos modos mais difundidos de análise dos campos semânticos e
da estrutura do léxico foi tradicionalmente a análise componencial. Por
“análise componencial” se entende a decomposição dos significados das
palavras em elementos mínimos de significado chamados “traços se-
mânticos” ou “primitivos semânticos”. Os diferentes vocábulos do léxi-
co de um certo campo semântico podem ser traduzidos indicando a pre-
sença-ausência de traços primitivos, como por exemplo:
3. Semiótica e lingüística 47
CRIATIVIDADE LINGÜÍSTICA
A capacidade de construir um número potencialmente infinito de fra-
ses gramaticais com um vocabulário limitado, seguindo regras.
VOCABULÁRIO: AXIOMAS:
Símbolos não terminais: Frases nucleares
F, GN, N, V, Art
Símbolos terminais:
Menina, come, maçã, uma, a
REGRAS DE FORMAÇÃO: REGRAS DE TRANSFORMAÇÃO:
(regras de reescrita)
F ® GN + GV (X – V ativo – Y)
GN ® Art + N ®
GV ® V + GN (Y – V passivo – por X)
N ® menina, maçã
Art ® uma, a ...
V ® come
A tabela acima, em tudo análoga à apresentada em 2.1, deveria facili-
tar a compreensão dos componentes elementares do primeiro sistema de
Chomsky. Ele apresenta um sistema formal em que vocabulário é consti-
tuído pelos vocábulos do léxico e pelos símbolos teóricos (ou símbolos
não terminais): F = Frase, GN = grupo nominal, GV = grupo verbal, V =
verbo, N = nome [substantivo], Art = artigo6. As regras de formação das
frases gramaticais (frases ou fórmulas bem formadas) são chamadas por
Chomsky de regras de reescrita porque indicam como reescrever um sím-
bolo com outro símbolo, ou com uma composição de símbolos, de modo a
GN GV
Art N V GN
Art N
3. Semiótica e lingüística 49
O esquema originário chomskyano sofreu com o tempo numerosas
modificações, mas ficou sempre de pé a idéia segundo a qual a gramática
deve explicar como certos sons estão ligados a certos significados. Um
modo mais recente de apresentar a sua teoria faz explícita referência à di-
ferença entre estrutura superficial e estrutura profunda, do seguinte modo:
estrutura profunda
estrutura superficial
Bibliografia essencial
CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas: Unicamp, 2003.
CHOMSKY, Noam. Estruturas sintácticas. Lisboa. Ed. 70, 1980.
— Aspectos de teoria da sintaxe, Lisboa [s.l.; s.d.].
— Reflexões sobre a linguagem, Lisboa: SET [s.d.].
NÖTH, Winfried. A semiótica no século XX. São Paulo: Annablume, 1996.
PEIRCE, Charles S. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.
— Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix,
1988.
— Saussure/Jakobson/Hjelmslev/Chomsky. São Paulo: Abril, 1978.
3. Semiótica e lingüística 51
3 – Semiótica: Boole
No livro As leis do pensamento (1864), define assim as leis universais dos sím-
bolos que valem para todas as interpretações:
1. xy = yx (propriedade comutativa do produto);
2. x + y = y + x (propriedade comutativa da adição);
3. z (x + y) = zx + xy (propriedade distributiva da multiplicação em relação à adição);
4. z (x - y) = zx – zy (propriedade distributiva da multiplicação em relação à subtração);
5. se x = y então zx = zy, z + x = z + y, x – z = y – z (substitutividade de elementos
iguais relativamente à multiplicação, adição e subtração);
6. x2 = x (lei dos índices).
Dessas leis, a mais problemática é a sexta. Boole a explica lembrando que (i)
ela vale em aritmética binária. Os números 1 e 0 multiplicados por eles mesmos se-
guem a lei; (ii) vale em lógica dos termos onde a intersecção de uma classe consigo
mesma não é outra coisa senão a própria classe; (iii) vale em lógica das proposições
onde a conjunção de uma proposição consigo mesma não muda o valor de verdade
da proposição.