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CURSO
FUNDAMENTAL
DAFE
Introdução ao conceito de cristianismo
EDIÇÕES PAULINAS
Titulo original
Grundkurs des Glaubens
© Herder, Freiburg im Breisgau, 1984
Tradução
Alberto Costa
Revisão
Edson Gracindo
10
INTRODUÇÃO
32
A experiência transcendental
Chamamos de experiência transcendental a consciência sub-
jetiva, atemática, necessária e insuprimível do sujeito que co-
nhece, que se faz presente conjuntamente a todo ato de conhe-
cimento, e o seu caráter ilimitado de abertura para a amplidão
sem fim de toda realidade possível. Ela é uma experiência, por-
que este saber de cunho atemático, mas inevitável é momento
e condição da possibilidade de toda e qualquer experiência con-
creta de qualquer objeto seja. Essa experiência é chamada trans-
cendental porque faz parte das estruturas necessárias e insupri-
míveis do próprio sujeito que conhece, e porque consiste preci-
samente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis
objetos ou de categorias. A experiência transcendental é a expe-
riência da transcendência, experiência na qual a estrutura do su-
jeito e, conseqüentemente, também a estrutura última de todo
objeto concebível de conhecimento está presente conjuntamen-
te e na identidade. Evidentemente essa experiência transcenden-
tal não é somente experiência de puro conhecimento, mas tam-
bém da vontade e liberdade. Compete-lhes o mesmo caráter de
transcendentalidade, de tal sorte que basicamente se pode per-
guntar pela origem e pelo destino do sujeito enquanto sujeito
que conhece e enquanto ser livre a um só tempo.
Se nos damos conta claramente da natureza específica des-
sa experiência transcendental, experiência que nunca pode
representar-se como tal no que possui de genuinamente próprio,
mas que só se pode representar objetivamente em um conceito
abstrato acerca dela; se virmos claro que essa experiência trans-
cendental não é constituída pelo fato de falar dela; se nos ad-
vertirmos que devemos falar dela, pois que está sempre presen-
te, e ademais também pode duradouramente passar despercebida;
se de mais a mais compreendermos que essa experiência por si
nunca pode apresentar o atrativo da novidade de um objeto que
nos vem ao encontro de maneira inesperada, se tudo isso ficar
claro então se compreenderá a dificuldade do que vamos em-
preender: uma vez mais· só poderemos falar de maneira indireta
do termo para o qual aponta essa experiência transcendental.
Saber atemático de Deus
Mais tarde haveremos de mostrar que está presente nessa
experiência transcendental como que um saber anônimo e ate-
33
2- Curso Fundamental da Fé
mático sobre Deus. Portanto o conhecimento originário de Deus
não é do tipo de conhecimento em que a pessoa capta um obje-
to que se anuncia direta ou indiretamente desde fora, mas antes
apresenta o caráter de experiência transcendental. Enquanto es-
sa luminosidade subjetiva, não objetiva, do sujeito está sempre
orientada na sua transcendência para o mistério santo, está sem-
pre presente o conhecimento atemático. e anônimo de Deus, e
não somente quando começamos a falar dele. Todo falar sobre
ele, que necessariamente ocorre, sempre remete para essa expe-
riência transcendental como tal, experiência em cujo seio aque-
le que chamamos de Deus sempre se dirige silenciosamente ao
homem, dirige-se a ele como o ser absoluto e incompreensível,
como o Aonde de sua transcendência que não pode propriamente
vir a integrar-se num sistema de coordenadas, transcendência que,
como transcendência de amor, percebe esse Aonde precisamen-
te também como o mistério santo.
Voltaremos a falar com mais detalhe sobre isso, mas uma
coisa que devemos mencionar aqui no sentido de esclarecer o
que significa transcendência é que se o homem é ser de trans-
cendência remetido e orientado ao mistério santo e absolutamente
real, e se o Aonde e o Donde da transcendência, na qual e atra-
vés da qual o homem como tal existe e que constitui sua essên-
cia originária enquanto sujeito e pessoa, é este mistério absolu-
to e santo, então surpreendentemente podemos e devemos acres-
centar: o mistério com sua incompreensibilidade é o que existe
de mais evidente. Se transcendência não é coisa qualquer que,
como que de passagem, praticamos, por assim dizer, como luxo
metafísico de nossa existência intelectual, mas se essa transcen-
dência é a condição mais simples, mais óbvia e mais necessária
da possibilidade de todo entender e compreender espiritual, en-
tão o mistério santo é propriamente a única realidade evidente
por si mesma, a única realidade que está fundada em si própria,
mesmo do nosso ponto de vista. Pois todo outro compreender,
por mais claro possa parecer à primeira vista, funda-se nessa
transcendência. Toda compreensão clara funda-se na obscuri-
dade de Deus.
Portanto este Aonde da transcendência, a um exame mais
preciso, não é em seu caráter misterioso conceito simplesmente
contrário a evidente. Em nosso conhecimento só é evidente pa-
ra nós o que em si se entende por si mesmo. Tudo o que enten-
demos torna-se inteligível, mas não propriamente evidente, pelo
34
fato de se derivar de algo diferente ou de reduzir-se a algo: num
caso, pelo fato de se derivar de axiomas, e, noutro, pelo fato de
se reduzir a dados elementares da experiência sensível. Assim,
a realidade entendida vem a ser explicada e feita inteligível pela
recondução ou ao mudo embotamento do meramente sensível
ou ao claro-escuro da ontologia, ou seja, ao mistério santo e
absoluto.
O que se torna inteligível funda-se em última instância na
única coisa que é evidente por si, no mistério. Mistério é, pois,
algo que nos é sempre familiar. Nós sempre o amamos, mesmo
quando, assustados com ele e eventualmente até mesmo irrita-
dos com ele, não quiséssemos dar-lhe atenção. Para a pessoa que
tomou consciência de suas profundidades, o que temática ou ate-
maticamente pode ser mais familiar e evidente do que o pergun-
tar silencioso pelo mais além do já conquistado e dominado, do
que a sobrecarga de perguntas a que não foram dadas respos-
tas, aceitas com humildade e amor, que aliás é a única coisa que
torna sábio? Nas profundidades últimas do seu ser de nada sa-
be, o homem com mais exatidão do que o seu saber, ou o que
no dia-a-dia assim se chama, não passa de pequenina ilha no
vasto mar ainda não percorrido, ilha flutuante, que pode ser para
nós mais familiar do que o oceano, mas que em último termo
é carregada e somente assim nos carrega por sua vez. E, em con-
seqüência, a pergunta existencial àquele que conhece é se ele ama
mais a pequena ilha do seu assim chamado saber ou o mar do
mistério infinito; se a pequenina luz, chamada ciência, com que
ele ilumina essa ilha, há de ser para ele uma luz eterna, que para
ele brilhe eternamente (o que seria o inferno).
É claro que a pessoa, em sua decisão concreta de vida, po-
de querer e acolher a questão da infinitude apenas como agui-
lhão para sua ciência em sua tarefa do conhecer objetivamente
e dominar, negando-se a ter que haver o mínimo com a pergun-
ta absoluta como tal, a não ser enquanto essa pergunta estimu-
la sem cessar a perguntas e respostas setoriais. No entanto so-
mente quando a pessoa começa a se perguntar pelo perguntar
mesmo e a pensar sobre o pensar mesmo, somente quando vol-
ta sua atenção para o espaço do conhecer e não só para os obje-
tos do conhecimento, para a transcendência e não só para o que
é entendido categorialmente no espaço e tempo no interior des-
sa transcendência, somente então é que essa pessoa pisa no li-
35
miar do homo religiosus. A partir dessas observações, pode-se
entender com mais facilidade que muitos rião sejam este homo
religiosus, que talvez não sejam mesmo capazes de sê-lo, que 3in-
tam que está sendo exigido demasiado deles. Mas toda pessoa
que se colocou uma vez a pergunta acerca de sua transcendên-
cia e do Aonde a que ela remete, não mais a poderá deixar estar
à deriva sem resposta. Pois, mesmo que dissesse que se trata de
pergunta que não possa ter resposta, de pergunta a que não se
deva responder, de pergunta que, por exigir demais, deva ser des-
cartada, já se teria dado resposta a essa pergunta (se certa ou
errada, no momento ainda não vem ao caso).
PRIMEIRA SEÇÃO
O OUVINTE DA PALAVRA
A pré-apreensão do ser
O homem é o ser de transcendência à medida que todo o
seu conhecimento e ato de conhecer se fundam na pré-apreensão
do "ser" em geral, em um saber atemático mas sempre presente
acerca da infinitude da realidade (assim podemos dizer, já ago-
47
ra com certa ousadia). Pressupõe-se que essa pré-apreensão in-
finita não se funda no fato de o homem poder pré-apreender
o nada como tal. Devemos pressupor isso, pois que o nada não
funda nada. O nada não pode ser a meta dessa pré-apreensão,
não pode ser que atrai, arrasta e movimenta a realidade que
o homem percebe como sua vida real e não como um nada.
É também certo que o homem experimenta o vazio, a fragilida-
de interna e - se assim o quisermos chamar para não bagatelizá-
lo - a absurdidade do que se lhe antolha. Mas experimenta
também a esperança, o movimento para a liberdade que liber-
ta, a responsabilidade que impõe cargas reais, mas também as
abençoa.
Se o homem, porém, faz a experiência de ambas as coisas
e, no entanto, sua experiência é una, experiência em que todos
os movimentos e experiências singulares são sustentados por mo-
vimento último e primordial, se ele não pode ser um gnóstico
que reconhece duas realidades primordiais últimas ou admite um
dualismo no próprio fundamento último e primordial do ser,
se ele não pode admitir esse gnosticismo porque contradiz à uni-
dade de sua experiência, então resta apenas uma possibilidade:
o homem pode entender que o ser absoluto estabelece limites
e fronteiras fora de si, e que ele pode querer algo que seja limi-
tado. Mas lógica e existencialmente não pode pensar que o mo-
vimento de esperança e o desejo em aberto, que sente realmen-
te, não passam de louco engano aliciador. Não pode pensar que
o todo funda-se ultimamente em um nada vazio, se é que não
atribui de fato nenhum sentido absolutamente a essa palavra "na-
da" e não a emprega como mera cifra da ansiedade realmente
existencial que na verdade sente.
Portanto o que move a pré-apreensão do homem em sua
absoluta amplidão de transcendência não pode ser o nada, o vazio
puro e simples. Pois careceria absolutamente de sentido afirmar
isso do nada. Mas uma vez que, por outro lado, essa pré-
apreensão como mera pergunta não se explica a si mesma, pre-
cisa ser entendida como ação daquilo para que o homem está
aberto, a saber, do ser puro e simples. Mas o movimento da trans-
cendência não é o sujeito a criar e constituir o seu próprio espa-
ço ilimitado, como se tivesse poder absoluto sobre o ser, antes
consiste no surgir espontâneo do horizonte infinito do ser. On-
de quer o homem se experimenta em sua transcendência como
interrogante, como inquietado por esse surgir do ser, como ex-
48
posto ao inefável, não pode conceber-se como sujeito no senti-
do de sujeito absoluto, mas somente no sentido de alguém que
recebe o ser e, em última instância, graça. "Graça", na presente
referência, significa a liberdade do fundamento do ser que dá
o ser ao homem, liberdade de que o homem faz experiência em
sua finitude e contingência, e significa também o que denomi-
namos "graça" em sentido teológico mais estrito.
Responsabilidade e liberdade
como realidades da experiência transcendental
Da mesma forma que a subjetividade e a personalidade, tam-
bém a responsabilidade e a liberdade são realidades da experiência
52
transcendental, ou seja, são experiências em que um sujeito se
percebe como tal, e, portanto, não lá onde ele vem a ser objeti-
vado em ulterior reflexão científica. Quando o sujeito se perce-
be como sujeito, a saber, como o ente que, por sua transcendên-
cia, possui originária e indissolúvel unidade e presença a si mes-
mo perante o ser, quando este sujeito experimenta sua ação co-
mo ação subjetiva (embora não a possa submeter à reflexão na
mesma maneira), ele está fazendo a experiência da responsabi-
lidade e liberdade no fundo de sua existência. Correspondendo
à natureza do homem enquanto natureza corpórea inserida no
mundo, essa liberdade sempre se exerce no meio de multiplici-
dade de atos concretos realizados na diversidade de espaço e tem-
po, no seio de multiplicidade de envolvimentos na história e na
sociedade. Tudo isso é evidente. Essa ação livre não ocorre so-
mente nas profundezas ocultas da pessoa, fora do mundo e da
história. Não obstante, a liberdade propriamente dita do homem
continua sendo una, pois constitui peculiaridade transcenden-
tal do sujeito uno como tal. Podemos, pois, dizer sempre em certo
sentido: porque e à medida que me percebo como sujeito e pes-
soa, percebo-me como ser livre, dotado de uma liberdade que
não se refere primariamente a uma ocorrência psíquica isolada,
mas de uma liberdade que se refere a um sujeito inteiro e uno
na unidade de sua realização em toda a sua existência.
A maneira como isso se realiza no espaço e tempo de toda
uma existência histórica e na variada concretude da vida huma-
na, é questão que não podemos decidir exatamente. Essa liber-
dade não é, pois, faculdade neutra que a pessoa possa ter e car-
regar consigo como algo de distinto de si, mas é propriamente
básica do existente pessoal, que na ação temporal, já aconteci-
da ou por acontecer, experimenta-se como autopossessão, co-
mo realidade porque é responsável e deve ser responsabilizado,
até que a resposta pessoal do sujeito àquela infinita incompreen-
sibilidade seja dada por este ser em sua transcendência e como
tal seja ela acolhida ou rejeitada.
Assim como o homem pode evadir-se de sua subjetividade,
assim também pode evadir-se de sua responsabilidade e liberda-
de, passando, assim, a se interpretar como produto do que lhe
é estranho. Mas mesmo essa auto-interpretação que fazemos, e
que não devemos confundir com o seu conteúdo, é ato do sujei-
to como tal que se nega a si mesmo ou interpreta sua liberdade
como condenação à arbitrariedade vazia do que lhe é estranho.
53
Agindo assim, uma vez mais está a se comportar como sujeito
livre e se afirma uma vez mais no "não" a si mesmo. Em outros
termos: na liberdade está sempre em jogo o homem como tal
e como todo. O objeto da liberdade em seu sentido originário
é o próprio sujeito, e todos os objetos com que ele trata na ex-
periência do mundo que o cerca não passam de objetos da li-
berdade, à medida que medeiam este sujeito finito situado no
espaço e tempo a si próprio. Quando se entende realmente a li-
berdade, compreende-se que ela não é a faculdade de fazer isto
ou aquilo, mas a faculdade de decidir sobre si mesmo e construir-
se a si mesmo.
É claro que não se deve entender isso, é preciso que insista-
mos, como se o sujeito estivesse situado fora da história, da so-
ciedade e do mundo, mas se trata da formalidade sob a qual se
deve pensar e expressar a essência da liberdade. A interpretação
do conteúdo do que assim dizemos formalmente é, uma vez mais,
coisa diversa. Se alguém disser que o homem sempre se experi-
menta como determinado e controlado pelo que lhe é estranho,
como funcional e dependente, como analisável e descomponí-
vel em antecedentes e conseqüentes, dever-se-á então dizer: este
sujeito, que sabe disso, é ao mesmo tempo e sempre o sujeito
responsável, que é desafiado a dizer e fazer o que deve fazer com
essa dependência absoluta, com essa estranheza e com essa pos-
sibilidade de ser decomposto - é desafiado a tomar posição pe-
rante este fato, quer amaldiçoando-o quer aceitando-o, quer per-
manecendo cético quer entregando-se ao desespero, ou de qual-
quer forma que seja. Mas inclusive quando a pessoa renuncias-
se a si mesma, abandonando-se ao que a seu respeito dizem as
antropologias empíricas, não deixaria de estar entregue a si mes-
ma. Ela não escapa à sua liberdade, e neste caso a única per-
gunta a fazer seria acerca da maneira como se interpreta a si mes-
ma (o que, se note, uma vez mais ocorre livremente).
54
ato de sua liberdade propriamente dita, ato que é uno em suas
origens e afeta o todo de sua existência humana, podemos dizer
que o homem tem uma salvação e que o problema propriamen-
te dito da existência pessoal é um problema de salvação. Quan-
do não se vê o ponto de partida para compreender a salvação
originariamente no sujeito e na própria natureza da liberdade,
a salvação só pode parecer algo estranho e cheirar mitologia.
Mas no fundo as coisas não são assim, pois o genuíno conceito
teológico de salvação não se refere a uma salvação futura que
se precipita como que inesperadamente sobre a pessoa como se
coisa vinda de fora, felicitando-a ou, no caso de perdição, infe-
licitando-a. Também não significa algo que se atribua à pessoa
somente com base em juízo moral. Pelo contrário, refere-se à
definitividade da verdadeira autocompreensão e da verdadeira
auto-realização da pessoa em liberdade diante de Deus, mediante
o seu próprio ser autêntico, tal como se lhe manifesta e se lhe
oferece na escolha da transcendência interpretada livremente. A
eternidade da pessoa humana somente se pode entender como
a liberdade autêntica e definitiva que maturou para além do tem-
po. Toda outra coisa só pode ser seguida de mais tempo e não
eternidade, que não representa o contrário do tempo, mas antes
a consumação do tempo da liberdade.
Evidentemente, tendo-se isso em vista, uma de nossas tare-
fas mais importantes e difíceis consiste no renovado esforço no
sentido de esclarecer que o que o cristianismo diz sobre o ho-
mem, apesar de suas afirmações sobre a história da salvação,
refere-se ao homem sempre na originariedade primeira do seu
ser, em sua natureza transcendental. Conseqüentemente, em úl-
tima instância só se pode falar acerca disso de uma maneira em
que essa transcendentalidade da questão, que é o homem em seu
transcender para o mistério incompreensível, não se entenda er-
roneamente de maneira categorial.
Salvação na história
O homem, porém, enquanto ser pessoal que goza de trans-
cendência e liberdade, é ao mesmo tempo um ser inserido no
mundo, no tempo e na história. Essa afirmação é fundamental
para descrever os pressupostos que a mensagem cristã faz acer-
ca do homem. Pois, se o âmbito da transcendência e da salva-
ção não se inserisse de início na própria história do homem e
55
no seu existir no mundo e no tempo, a questão da salvação e
a mensagem da salvação não poderiam acontecer historicamente
nem se referir a uma realidade histórica.
Por outro lado não precisamos distinguir aqui com exati-
dão conceitua! os termos mundanidade, temporalidade e histo-
ricidade, sobretudo porque o conceito de historicidade implica
os outros dois como momentos em si. Mas o que se significa
com esses conceitos e é decisivo para interpretar corretamente
o cristianismo é o seguinte: essa mundanidade, temporalidade e
historicidade são dimensões presentes no homem, dimensões que
ele não só também tenha - justapostas e acrescentadas à sua
personalidade livre -, mas, pelo contrário, são dimensões ine-
rentes à própria subjetividade livre da pessoa como tal. O ho-
mem não é só também ser vivo biológico e social, que exerce
essas suas propriedades no tempo, mas sua subjetividade e sua
livre auto-interpretação pessoal acontece precisamente na e me-
diante a sua mundanidade, temporalidade e historicidade, ou me-
lhor: no e mediante o mundo, o tempo e a história. Não se pode
responder à questão da salvação prescindindo-se da historicida-
de e da natureza social do homem. A transcendentalidade e a
liberdade exercem-se no interior da história. Inclusive a Histo-
rie (relato de fatos) não deixa de ser Geschichte (história inter-
pretada), e, sendo assim, é também já auto-compreensão do ho-
mem a se realizar reflexamente. O homem possui sua essência
eterna como antecipada e entregue a ele em sua liberdade e re-
flexão, à medida que experimenta, sofre e atua sua história.
A historicidade designa aquela constituição básica e pró-
pria do homem pela qual está situado no tempo precisamente
como sujeito livre, e pela qual um mundo lhe está à disposição,
mundo que ele deve criar e sofrer na liberdade, assumindo-o em
ambas as alternativas. A mundanidade do homem, seu perma-
nente estar entregue à alteridade de um mundo a ele pré-existente
e imposto como mundo que o abarca e onde convive com ou-
tros, constitui momentos internos deste sujeito mesmo, que de-
ve entender e realizar-se na liberdade, mas que precisamente as-
sim se torna algo de eternamente válido para este sujeito. O ho-
mem como sujeito não veio parar casualmente neste mundo ma-
terial e temporal como mundo que lhe fosse estranho e contra-
ditório a ele como espírito, mas, antes, a própria auto-alienação
do sujeito no mundo constitui precisamente a maneira pela qual
o sujeito se acha a si mesmo e se afirma de forma definitiva.
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O tempo, o mundo e a história medeiam o sujeito para si pró-
prio e para aquela autopossessão imediata e livre, em vista da
qual está constituído o sujeito pessoal e para a qual está já sem-
pre antecipativamente orientado.
Se a historicidade do homem - e, em conseqüência, tam-
bém sua história concreta - é dimensão intrínseca e constituti-
va do sujeito espiritual e livre, o problema da salvação, enquan-
to problema que se refere ao sujeito uno e inteiro em sua liber-
dade, não pode deixar de lado a história. É na história que ele
deve realizar sua salvação, à medida que a encontra ofertada na
história e nela a acolhe. Se a historicidade é um existencial do
próprio sujeito, deve haver história da salvação e da não-salvação,
pois o problema da salvação é uma proposta à liberdade, ou vice-
versa: o que vem a significar o problema da salvação só se pode
entender a partir dessa natureza da liberdade. Por isso a histó-
ria da salvação e a história em geral devem em última instância
ser coexistentes, mas, afirmando isso, não queremos excluir ge-
nuína diferença entre as duas. Se o sujeito da salvação é históri-
co, a própria história é a história dessa salvação - ainda que
ocultamente e sempre a caminho de sua última e definitiva in-
terpretação. Se a intercomunicação entre os sujeitos espirituais
na verdade, no amor e na sociedade faz parte da realização da
própria existência, porque se trata de existência histórica, inte-
grando-a como constitutivo interno e não só como material ex-
terno, então a unidade da história de todos os homens e a uni-
dade de uma história da salvação é, de partida, propriedade trans-
cendental presente na história pessoal de todo indivíduo, e vice-
versa, precisamente porque se trata da história de muitos sujeitos.
O HOMEM PERANTE
o· i\1ISTÉRIO ABSOLUTO
2. O CONHECIMENTO DE DEUS
A condição de criatura
como radical diferença e radical dependência de Deus
Para vir a compreender o que significa a condição de cria-
tura como a relação básica do homem para com Deus, inicie-
mos uma vez mais pela experiência transcendental. O homem
como pessoa espiritual implicitamente afirma, em todo o seu
conhecer e agir, como fundamento real o ser absoluto, e o afir-
ma como mistério. Essa realidade absoluta e inabarcável, que
98
é sempre um horizonte, ontologicamente se ocultando, de toc;los
os encontros espirituais com realidades, sempre é, em conseqüên-
cia, infinitamente diversa do sujeito que compreende. É também
diversa de toda realidade finita compreendida. Como tal, ela está
dada em toda afirmação, em todo conhecer e agir.
Em correspondência a isso, podemos - a partir dessa afir-
mação fundamental - determinar sob suas duas facetas a rela-
ção entre o homem que pensa e a coisa pensada como seres fi-
nitos, e o absolutamente infinito: como o ser simplesmente ab-
soluto e infinito, Deus deve ser absolutamente diverso. Do con-
trário ele seria objeto de conhecer conceitua!, e não o funda-
mento deste conhecer. Ele é e continua sendo este fundamento
até quando vem a ser denominado e objetivado na reflexão me-
tafísica e conceitua!. E, portanto, não pode precisar da realida-
de finita chamada "mundo", porque de outra forma não seria
real e radicalmente distinto dela, mas sim peça de um todo mais
elevado, tal como se pensa no panteísmo. E, por sua parte, o
mundo deve depender radicalmente de Deus, sem tornar Deus
dependente do mundo da forma como o senhor é dependente
do servo. O mundo não pode pura e simplesmente trazer em si
nada do que seja independente de Deus, tampouco como a to-
talidade das coisas do mundo em sua multiplicidade e unidade
pode-se conhecer sem a pré-apreensão da transcendência do es-
pírito para Deus. Essa dependência deve ser livremente estabe-
lecida por Deus, porque, como finita e em processo de devir, não
pode existir necessariamente e a necessidade do que foi estabe-
lecido, se acaso houvesse esta necessidade, só poderia proceder
de necessidade situada em Deus mesmo e em seu próprio ato
de estabelecer o mundo, necessidade que faria do mundo uma
necessidade de Deus e que, portanto, não permitiria a Deus ser
independente do mundo. Essa radical dependência deve ser per-
manente, não se referindo, portanto, apenas a um momento no
início, pois o que é finito está sempre referido, no presente e no
passado, ao absoluto como seu fundamento.
A doutrina cristã chama esta singular relação entre Deus
e o mundo de condição criada do mundo, sua criaturidade, o
permanente estar-dado-a-si-mesmo do mundo mediante o livre
estabelecimento da parte do Deus pessoal. Este estabelecer da
parte de Deus não pressupõe, pois, um material pré-dado e, neste
sentido, é "do nada". Criação "do nada" no fundo quer dizer:
criação totalmente a partir de Deus, mas de tal sorte que nessa
99
criação o mundo seja radicalmente dependente de Deus, e Deus
não se torne dependente do mundo, mas pelo contrário, perma-
neça livre com referência ao mundo e fundado em si mesmo.
Onde quer venhamos a encontrar relação causal de natureza ca-
tegorial e intramundana, o efeito é por definição dependente de
sua causa, mas esta causa é por sua vez de maneira singular de-
pendente do seu efeito, pois não pode ser tal causa sem causar
tal efeito. Ora, isso não ocorre no caso da relação entre Deus
e a criatura, pois de outra forma Deus seria um elemento no âm-
bito de nossa experiência categorial e não o Aonde infinitamen-
te distante da transcendência, em cujo interior compreendemos
a realidade finita singular.
113
TERCEIRA SEÇÃO
Liberdade transcendental
e suas objetivações categoriais
Essa liberdade enquanto liberdade do acontecer da defini-
tividade do sujeito é libercla,de.transcen.deótal e experiência trans-
cendental da liberdade. Trata-se, pois, c!t!_dimensão ng próprig
sujeito, que este não pode situar objetivamente dj~pJ~__ <:i_e si CO_".'
mo uma coisa, que ele não pode objetivar. Essa liberdade não
é, pc>rtanto, dado empírico singular que as antropologias a pos-
teriori pudessem indicar lado a lado com outros objetos. Quan-
do começamos a refletir sobre a liberdade, este ato é por sua
vez liberdade no pólo subjetivo, e neste ato de buscar e refletir
sobre liberdade anterior, de certa forma, podemos encontrar ape-
nas as objetivizações dessa liberdade. Essas objetivizações co-
mo tais podem ser de novo reduzidas a antecedentes e conse-
qüentes, a princípios e resultados na multiplicidade do mundo
da experiência objetiva, de tal sorte que a liberdade não mais
possa ser encontrada. Porém ao mesmo tempo a própria liber-
dade foi exercida uma vez mais no pólo subjetivo deste ato de
121
busca da liberdade objetivada. Por sua própria natureza, enquan-
to ato do sujeito, f>ortanto, a liberdade não acontece no campo
empírico das ciências particulares experimentais, que trabalham
com o método que procede mediante individualizar e isolar pa-
ra que se possa observar. Pois no fundo nada é livre aí a não
ser o sujeito que está fazendo a ciência, sujeito ao qual, neste
tipo de ciência, sempre interessa outra coisa que o sujeito mes-
mo. Já fizemos a experiência de que somos livres e do que signi-
fica liberdade quando começamos a nos interrogar reflexamen-
te sobre isso.
Com tudo isso evidentemente não negamos, mas, pelo con-
trário, queremos dizer também que o homem é de_ múl_t_iplas Í9J".."'._
mas o ser que está sujeito à necessidade. E a afirmação que ele
é também e sempre ser condicionado, ser procedente e ser ma,,
nipulado por seu meio não se refere apenas a uma região parti-
cular e determinável de sua existência a cujo lado também hou-
vesse o espaço da liberdade, mas estes dois aspectos não se po-
dem nunca separar em concreto adequadamente no homem. Pois
quando ajo como sujeito livre, ajo sempre sobre um mundo ob-
jetivo, como que saindo de minha liberdade para o campo das
necessidades do mundo. E quando conheço, analiso, correlaciQno
e
necessidades, faço-o como sujeito da liberdad~- pelo menos_
o ato de conhecer a necessidade é ato subjetivo, que o própriQ
sujeito põe ativa e livremente, pelo qual se responsabiliza e que _
livremente assume. Tudo isso se diz da maneira mais radical quan-
do se frisa que a liberdade não é dado singular da experiência
humana, dado categorial e observável no espaço e no tempo de
maneira imediatamente empírica.
Com respeit~ às ações singulares da_ liberclJtde em ª_llª vi4~...1
o sujeito jamais possui certeza absoluta acerca de seu caráter___
subjetivo e, em conseqüência, também moral, porque essas aç_õ~s.
enquanto reais e enquanto objetivadas no conhecimento, já sãC>__
sempre a síntese não mais adequadamente dissolúvel reflexamente
da liberdade origin!iria _e da necessidade _imposta e aceita. Em
conseqüência, o sujeito, em sua experiência originária transcen-
dental subjetiva, com certeza sabe quem ele é, mas jamais pode
objetivar esse seu saber originário em saber determinado tema-
ticamente expresso em urna afirmação, que seja absolutamente
certa, para dizer-se a si mesmo e para julgar quem e o que se
tornou através da mediação concreta de seus atos categoriais.
122
O sujeito livre já está sempre junto de si e presente a si mesmo
na sua liberdade e, ao mesmo tempo, subtraí.do a si mesmo na
sua liberdade por força dos fatores objetivos pelos quais neces~
sariamente ele precisa ser mediado para si mesmo.
Afirmação ou negação
atemática de Deus em todo ato livre
Liberdade ou subjetividade, que é o "objeto" da própria li-
berdade, liberdade para algo de validade definitiva e liberdade,
por ou contra Deus são estreitamente conexas entre si. Pois a
transcendência para a presença distante do mistério absoluto que
se oferta a nós é a condição que possibilita a subjetividade e a
liberdade. Porque este horizonte de absoluta transcendentalida-
de, que chamamos "Deus", é o Donde e o Aonde de nosso mo-
vimento espiritual, é que somos afinal sujeitos e, assim sendo,
livres. Pois em toda parte onde tal horizonte infinito não existe,
o ente respectivo é já por isso intrinsecamente limitado e prisio-
neiro de si mesmo, sem que o saiba expressamente, e, por esta
razão, também não é livre.
· Ora, é decisivo para nós que essa liberdade, enq11_anto "sim"
ou "não", implica liberdade em confronto com seu próprio ho-
rizonte. É claro que a liberdade, que é mediada de maneira hu-
mana, histórica e objetiva e na personalidade concreta, sempre
é também liberdade com referência a um obktQ c_atego_rial. À
liberdade se exerce através da mediação do mundo do outro e
sobretudo através da pessoa do outro, mesmo quando ela pre-
tende ser liberdade direta e tematicamente exercida com referência
a Deus. Mesmo no ato deste "sim" ou "não" temático__ ~Deus,
123
este "sim" não se refere imediatamente ao Deus da experiência
originária e transcendental, mas ao Deus da reflexão temática
e categorial, a um Deus em conceitos, ou até talvez somente a
um Deus em falsos deuses, mas não imediata e exclusivamente
ao Deus da presença transcendental.
Uma vez, porém, que em todo ato da liberdade que se ocu-
pa categorialmente com determinado objeto, com determinada
pessoa, está sempre dada, como condição da possibilidade des-
se ato, a transcendência para o absoluto Aonde e Donde de to-
dos os nossos atos espirituais - e, portanto, para o próprio Deus
-, em todo ato deste tipo pode e deve existir um "sim" ou um _
"não" atemático dito a este Deus da experiência transcendental
originária. A subjetividade e liberdade implica que tal liberda-
de não existe só com referência ao objeto da experiência catego-
rial dentro do horizonte absoluto de Deus, mas que ela é tam-
bém - ainda que sempre de forma mediada - liberdade que
na realidade se decide perante Deus e com referência a ele. Nes-
te sentido, encontramo-nos radicalmente em toda parte com Deus __ _
como questão dirigida à nossa liberdade, encontramo-nos com
ele de maneira implícita, atemática, não-objetivada e não-expressa
em todas as coisas do mundo, e, em conseqüência, sobretudo
i:J.o próximo. Isto não exclui a necessidade de tematização. Mas
esta não nos oferece a relação para com Deus em nossa liberda-
de originariamente, mas antes torna temática e objetiva a refe-
rência de nossa liberdade a Deus, que está dada conjuntamente
com a essência originária do sujeito como tal.
A possibilidade do pecado
como existencial permanente
Quando a pessoa começa a refletir sobre si, ela se depara
como alguém que já exerceu a liberdade e a exerceu até quando
de forma sumamente reflexa delibera consigo mesma sobre uma
decisão ainda a tomar. Essa decisão da liberdade já tomada -
ainda quando vem a ser objetivada e refletida - é a síntese, não
mais adequadamente dissociável mediante a reflexão, da liber-
dade originária e da necessidade imposta pelo material da liber-
dade. E também a decisão seguinte, apesar de todo o seu cará-
ter reflexivo, vem a ser co-determinada pela precedente que é im-
pérvia a uma reflexão subseqüente. Em conseqüência, a real si-
tuação da liberdade não é acessível à reflexão inteiramente, a um
130
exame de consciência que fosse entendido como afirmação de-
finitiva de absoluta certeza. A pessoa jamais sabe com certeza
absoluta se o que é objetivamente culposo de sua ação, que even-
tualmente está em condições de constatar com clareza, é a obje-
tivação da decisão propriamente dita e originária da liberdade
em um "não" contra Deus, ou se não passa do material - que
lhe foi imposto e que ela sofre passivamente e, assim sendo,
apresenta-se com o caráter de necessidade - que manipula sua
liberdade, cujo caráter último foge à observação de superfície
e empírica, mas que pode muito bem ser um "sim" dito a Deus.
Jamais sabemos com certeza última se realmente somos peca-
dores. Mas sabemos com certeza última, ainda que esta possa
vir a ser abafada, que realmente o podemos ser, até quando a
nossa vida cotidiana civil e a refletida manipulação de nossas
motivações parecem dar-nos boa nota.
Uma vez que a liberdade em sua essência originária tem que
ver com a realização originária da existência em sua unidade e
totalidade, e em conseqüência não está definitivamente realiza-
da enquanto não se tiver entregado através do ato da vida à ab-
soluta impotência da morte, a possibilidade do pecado é um exis-
tencial que acompanha insuperavelmente a totalidade da vida
terrena do homem.
A ameaça permanente que o sujeito livre representa para
si mesmo não é característica de determinada fase da vida que
se possa deixar atrás enquanto perdura a vida terrena, mas ela
constitui realmente existencial permanente e jamais superável nes-
sa única história temporal. É um existencial que acQmpanha sem-
pre e em toda a realização una, total e não obstante histórica
da nossa liberdade individual subjetiva.
4. O "PECADO ORIGINAI;'
A originária e permanente
co-determinação pela culpa alheia
138
"Pecado original" e culpa pessoal
O "pecado original"
à luz da autocomunicação de Deus
144
QUARTA SEÇÃO
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
146
2. QUE SIGNIFICA
''AUTOCOMUNICAÇÃO" DE DEUS
A autocomunicação de Deus
e a permanência do mistério
Que significa mais exatamente esta autocomunicação de
Deus? Para explicá-la é mister que voltemos a considerar a es-
sência do homem que originariamente está presente na experiên-
cia transcendental. Nesta, o homem faz a experiência de si co-
mo ente finito e categorial, como ente estabelecido pelo Ser ab-
soluto e em distância e distinção com referência a Deus, como
ente que provém do Ser absoluto e se funda no mistério absolu-
to. '.Permanente procedência de Deus e radical distinção com res-
148
peito a ele constituem, conjuntamente e em relação de mútuo
condicionamento, existenciais fundamentais do homem.
Ao dizermos agora que "o homem é evento da absoluta e
indulgente autocomunicação de Deus", queremos dizer a um só
tempo que, por um lado, Deus está presente para o homem em
sua absoluta transcendentalidade não só como o absoluto, sem-
pre distante e radicalmente remoto Aonde e Donde de sua trans-
cendência que o homem capta· apenas assintoticamente, mas tam-
bém que ele se doa a si mesmo em sua própria realidade. O Aonde
transcendental da transcendência e o seu objeto, o se-u "em si",
coincidem entre si de sorte a subsumir a ambos - o Aonde e
o objeto - bem como sua distinção em unidade mais originá-
ria e última em que não mais se podem distinguir adequada-
mente mediante conceitos. E ao dizermos que Deus está presen-
te para nós em absoluta autocomunicação, queremos por outro
lado, dizer que esta autocomunicação de Deus está presente na
forma da proximidade e não só na forma do estar presente-
ausente enquanto Aonde de transcendência, proximidade em que
Deus não se torna coisa singular e categorial, mas está, sem em-
bargo, presente como quem se comunica a si próprio, e não so-
mente como o longínquo, inabrangível e assintótico Aonde da
nossa transcendência.
A autocomunicação divina significa, portanto, que Deus po-
de comunicar sua própria realidade a uma realidade não-divina,
sem que deixe de ser a realidade infinita e o mistério abs9luto
e sem que o homem deixe de ser o ente finito e distinto de Deus
que é'. Mediante esta autocomunicação não se suprime nem se
nega o que antes dissemos quanto à presença de Deus como o
mistério absoluto que, por natureza, não se pode abranger por
meio de conceitos. Até na graça e na visão imediata de Deus,
Deus permenece Deus, ou seja, o primeiro e último critério que
por nada pode ser medido. Permanece o mistério, o único que
é evidente em si mesmo. Permanece o Aonde da ação mais ex-
celsa do homem, o Aonde que possibilita e move esta ação. Deus
permanece sendo o santo somente acessível na adoração. Per-
manece como quem é pura e simplesmente o Deus inominado
e indizível, que jamais pode ser compreendido, nem sequer por
sua autocomunicação na graça e na visão beatífica imediata, que
jamais se torna sujeito ao homem, que jamais pode entrar em
uma classificação dentro de sistema humano quer de conheci-
mento, quer de liberdade.
149
Pelo contrário, neste próprio evento da absoluta autocomu-
nicação de Deus, a divindade de Deus como mistério santo se
torna a realidade radical- e insuperável para o homem. A ime-
diatez para com Deus em sua autocomunicação é precisamente
o manifestar-se de Deus como o mistério absoluto e permanen-
te. Mas que isto possa acontecer, que o horizonte originário possa
vir a ser objeto, que o fim inatingível pelo próprio homem seja
contudo o real ponto de partida da auto-realização plena e aca-
bada do homem: eis o que diz a doutrina cristã, segundo a qual
é vontade de Deus doar-se ao homem em imediata visão de si
mesmo, como realização plena e acabada da existência espiri-
tual dele. É o que se afirma na doutrina cristã quando assevera
Que na graça, ou seja, na comunicação do Espírito Santo de Deus,
o evento da imediatez para com Deus, como a realização plena
do homem, é preparada de tal sorte que já agora podemos dizer
que o homem participa da natureza divina, que lhe foi outorga-
do o pneuma divino que sonda as profundezes de Deus, que ele
é já agora filho de Deus e só resta ainda manifestar-se o que
já é aqui na terra.
Autocomunicação de Deus
em vista do conhecimento imediato e do amor
Entendida desta maneira, a natureza e o sentido dessa au-
tocomunicação de Deus ao sujeito espiritual consiste em Deu_s
tornar-se imediato para o sujeito enquanto espiritual, ou seja,
na unidade fundamental do conhecimento e do amor. De início
há de se entender a autocomunicaçãÓ ontológica como condi-
ção para conhecer e amar a Deus de maneira imediata. Mas até
esta proximidade a Deus no conhecimento e amor imediatos, a
Deus que permanece mistério absoluto, não se deverá pensar co-
mo fenômeno estranho e adventício a uma realidade pensada
como coisa. Pelo contrário, é ela a essência propriamente dita
do que constitui a relação ontológica entre Deus e a criatura.
Em conexão com a cristologia a ser exposta mais tarde, ha-
veremos de estabelecer ulteriormente que a criação como cau-
salidade eficiente, ou seja, como livre estabelecimento por Deus
da realidade diversa dele precisamente como diversa, há de se
pensar como o pressuposto que possibilita a livre autocomuni-
cação e como o seu modo deficiente de realização, embora se
possa conceber por si só. Na cristologia poderá ficar ainda mais
claro que essa autocomunicação de Deus à realidade não-divina
implica a produção, por causa eficiente, de realidade diversa de
Deus como sua condição. Mais tarde teremos de mostrar que
no fundo essa causalidade eficiente e criadora de Deus deve ser
entendida apenas como modalidade ou modo deficiente de rea-
lização daquela absoluta e enorme possibilidade de Deus que
consiste no fato de que ele, que é ágape em pessoa, que em si
152
mesmo é sujeito absolutamente feliz e realizado, pode, e preci-
samente por esta razão, comunicar-se a si mesmo a outrem.
Se ser é estar presente a si mesmo, se a essência de um ente
à medida que ele possui ser é a interna luminosidade e autopos-
sessão pessoal, se todo grau mais remisso de existência só se po-
de entender como forma deficiente, reduzida e despotenciada
da existência do ser, então a autocomunicação ont()lógica à cria-
tura é por definição comunicação em vista do conhecimento e
amor imediatos, e, vice-versa, é claro que ucorre também o que .
corresponde a isto, ou seja, que o verdadeiro e imediat9 c9nhe'-
cimento e amor de Deus em si mesmo necessariamente implica
esta realíssima àutocomunicação de Deus.
A absoluta gratuidade
da autocomunicação de Deus
3. A OFERTA DA AUTOCOMUNICAÇÃO
COMO "EXISTENCIAL SOBRENATURAI..:'
Até o momento temos partido do ensino explícito da fé cris-
tã. Mas ainda que estejamos de acordo sobre o fato-tema que
discutiremos na próxima seção - de a pessoa receber a verdade
última e claramente formulada acerca de sua existência do ensi-
namento explícito da revelação formulado pelo magistério da
Igreja que a pessoa ouve como que proveniente "desde fora" em
palavras humanas, e que ela não cria por si mesma esta inter-
pretação de sua existência e nem por explicação particular de
sua experiência privada, alguém poderia, contudo, ter a impres-
são de que a proposição segundo a qual o homem é evento da
absoluta autocomunicação de Deus lhe seja endereçada desde
fora apenas ao nível conceituai, e que realmente não transmite
para ele na explicidade de palavras reflexas o que o próprio ho-
mem é realmente e o que ele próprio experimenta nas profunde-
zas de sua existência. Mas as coisas na verdade não são assim.
A autocomunicação
como condição da possibilidade de seu acolhimento
A autocomunicação de Deus apresenta-se dada não somente
como dom, mas também como necessária condição dipossibÍ--
lidade da acolhida deste dom que permita que o próprio Deus
seja realmente o dom, sem que este, ~m sua acolhida, de certa
forma converta Deus em dom meramente finito e criado, que
apenas represente Deus, mas que não seria realmente o próprio
Deus. Para que se possa acolher a Deus, sem que nesta acolhida
ele venha a ser rebaixado ao nível de nossa finitude, é mister que
esta acolhida seja animada pelo próprio Deus. A a:t!_toçol)111_ni:.
cação de Deus é, portanto, como 9ferta, também a condição _ne-
cessária da possibilidade de seu acolhimento.
Se é que o homem deve ter a ver com o próprio Deus tal
como é em si mesmo; se é que deve abrir-se ou fechar-se a essa
159
autocomunicação de Deus, sem que sua reação reduza Deus ao
nível dos homens, então a autocomunicação de Deus deve sem-
pre estar presente ao homem como a condição prévia da possi-
bilidade de sua acolhida. Isto é verdade à medida que o homem
deve ser entendido como sujeito capaz de tal acolhida e, em con-
seqüência, a ela obrigado. E vice-versa: sem prejuízo de sua gra-
tuidade, a autocomunicação de Deus deve estar dada em cada
pessoa humana como condição que possibilita que ela a aco-
lha. Isto pressupõe apenas que em princípio se reconheça para
o homem a possibilidade dessa aceitação pessoal de Deus, por-
que este em sua vontade salvífica universal ofertou e destinou
essa realização consumada não somente para alguns, mas para
todos os homens, realização que consiste no pleno acolhimento
da autocomunicação de Deus.
A transcendentalidade
do homem sobrenaturalmente elevada
Do que viemos dizendo deduz-se que essa auto-oferta de
Deus ocorre para todos os homens e constitui característica da
transcendência e transcendentalidade do homem. Portanto, a au-
tocomunicação de Deus como oferta e como algo dado antece-
dentemente à liberdade do homem como tarefa e condição da
mais alta possibilidade da liberdade, apresenta também as ca-
racterísticas que possuem todos os elementos presentes na cons-
tituição transcendental do homem.
Este elemento presente na constituição transcendental do
homem não é objeto de experiência a posteriori e categorial par-
ticular do homem ao lado dos outros. objetos que povoam o cam-
po de sua experiência. Originariamente o homem não encontra
esta constituição sobrenatural como objeto. Esta constituição
sobrenatural da transcendentalidade do homem devida à oferta
que Deus faz de sua autocomunicação constitui modalidade de
sua subjetividade originária e não-tematizada. E por essa razão,
esta modalidade pode - se é que pode - no máximo vir a ser
tematizada posteriormente em uma reflexão ou objetivada em
um conceito. Essa transcendentalidade sobrenatural pode cha-
mar tão pouco a atenção, passar tão despercebida e ser tão con-
testada e mal interpretada como em geral ocorre com toda rea-
lidade espiritual transcendental do homem. Essa autocomuni-
cação de Deus que está dada previamente à liberdade do homem
160
nada mais significa que o movimento transcendental do espíri-
to voltado, pelo conhecimento e liberdade para o mistério abso-
luto é movido e animado pelo próprio Deus em sua autocomu-
nicação, de tal sorte que este movimento tem por termo e fonte
não o mistério santo enquanto eternamente longínquo e somente
atingível assintoticamente, mas o Deus da absoluta proximida-
de e imediateZ.
A experiência
da graça e seu caráter misterioso
A autocomunicação graciosa de Deus, enquanto modifica-
ção da transcendência na qual o mistério santo, aquele mistério
pelo qual a transcendência é intrinsecamente aberta e movida,
está presente em sua própria realidade e absoluta proximidade
e imediatez, não pode por simples reflexão particularizada ou
por introspeção psicológica ser distinguida daquelas estruturas
fundamentais da transcendência humana que tentamos repre-
sentar na segunda seção de nossas reflexões. A transcendência
absolutamente ilimitada do espírito natural no conhecimento e
liberdade, juntamente com o seu Aonde, o mistério santo, signi-
fica já por si tal ilimitação do sujeito que a posse de Deus em
sua absoluta autocomunicação não cai propriamente fora dessa
infinita possibilidade da transcendência, ainda que ela perma-
neça gratuita e indevida. Por isso a experiência transcendental
dessa possibilidade abstrata, por um lado, e a experiência de sua
radical realização pela autocomunicação de Deus, por outrÓ la-
do, não se podem distinguir com clareza e sem ambigüidades
somente mediante introspeção direta de um indivíduo, enquan-
to a história da liberdade na aceitação ou recusa ainda está em
devir e, conseqüentemente, a realização do homem pela autoco-
municação de Deus ainda não atingiu sua consumação no esta-
do final e definitivo que costumamos chamar de visão de Deus.
A experiência transcendental, inclusive sua modalidade co-
mo graça, e a reflexão sobre a experiência transcendental não
são mais a mesma coisa conceitualmente, da mesma maneira que ·
a consciência que a pessoa tem de si e o conhecimento objetiva-
do e tematizado desta consciência não são mais a mesma coisa.
Em nosso caso existem duas razões especiais pelas quais a auto-
comunicação de Deus na graça, enquanto modificação de nos-
sa transcendentalidade, não é reflexiva nem pode tornar-se re-
161
6 - Curso Fundamental da Fé
flexiva: em primeiro lugar, desde a perspectiva do destinatário
dessa autocomunicação, por causa da natureza ilimitada do es-
pírito subjetivo em seu estado natural; e, em segundo lugar, desde
a perspectiva da autocomunicação de Deus, por causa do esta-
do ainda não vindo a seu termo dessa autocomunicação, ou se-
ja, porque ela ainda não se tornou visão de Deus.
Podemos descrever a experiência transcendental da autoco-
municação de Deus na graça, ou, em outros termos, a dinâmica
e a finalização do espírito enquanto conhecimento e amor para
a imediatez para com Deus, dinâmica que é de tal natureza que,
em virtude da autocomunicação de Deus, o próprio fim é a ver-
dadeira força do movimento (que comumente chamamos de gra-
ça), podemos descrever, repetimos, essa experiência e a essência
dessa dinâmica espiritual dizendo apenas: o espírito na graça
movimenta-se no interior do seu fim (mediante a autocomuni-
cação de Deus), caminhando para seu fim (a visão beatífica),
e por isso, em conseqüência, não se pode concluir da impossibi-
lidade de identificá-lo diretamente e com certeza em uma refle-
xão particularizada que essa autocomunicação de Deus esteja
absolutamente além do sujeito e sua consciência e que seja pos-
tulado somente por teoria dogmática imposta ao homem desde
fora. Trata-se na verdade de experiência transcendental que se
faz observável na existência do homem e aí se exerce e é operativa.
Aqui somente podemos aludir às experiências que a pessoa
tem e pode ter da autocomunicação de Deus, experiências que
não se podem identificar com certeza e sem ambigüidades na
esfera da experiência do indivíduo (prescindindo de possíveis ex-
ceções), mas que não são simples e absolutamente não-existentes
para uma reflexão.
Ainda que uma pessoa, mediante simples introspeção e te-
matização de sua experiência originária transcendental, não pu-
desse descobrir essa experiência transcendental da graciosa au-
tocomunicação de Deus ou não conseguisse expressá-la pessoal-
mente com certeza e sem ambigüidades, pode, não obstante, re-
conhecer sua propria experiência na interpretação teológica e dog-
mática dessa experiência transcendental tal como é apresentada
pela história da revelação ou pelo cristianismo. Ela pode encon-
trar ·nessa interpretação coragem e confiança para interpretar em
conformidade com ela o indizível de sua própria experiência, para
aceitar a ilimitação de sua própria experiência obscura sem re-
servas e limites. Pode sentir a legitimidade de sua decisão exis-
162
tendal de entregar-se tranqüila e corajosamente a essa síntese
não mais dissolúvel de maneira adequadamente reflexa, mas sem-
pre já exercida, de sua experiência originária transcendental e
sua respectiva interpretação a posteriori feita pelo cristianismo.
Neste sentido, podemos dizer tranqüilamente: a pessoa que
se abre à sua experiência transcendental do mistério santo faz
a experiência de que este mistério não somente é o horizonte in-
finitamente longínquo, o julgamento indisponível que julga a
distância sobre o seu mundo de coisas e de pessoas e sobre sua
consciência, não é somente algo de misterioso que o espanta e
afugenta para os estreitos confins de sua vida cotidiana, mas tam-
bém faz a experiência de que esse mistério santo é proximidade
acolhedora, a intimidade que perdoa, o seu próprio lar, que ele
é o amor que se comunica, algo de familiar em que se pode bus-
car abrigo na fuga à estranheza vazia e ameaçadora de sua pró-
pria vida. É a pessoa que, na perdição da culpa, se volta, toda-
via, confiante para o mistério de sua existência, que está silen-
ciosamente presente, e se entrega como alguém que até em sua
culpa não mais quer entender-se de maneira auto-suficiente e
centrada em si mesmo, é essa pessoa que se experimenta corno
alguém que não perdoa a si mesmo, mas que é perdoado, e ex-
perimenta esse perdão que recebe corno amor indulgente, redentor
e libertador do próprio Deus que perdoa à medida que se doa
a si próprio, porque somente assim pode haver realmente per-
dão definitivo ·
As outras questões: quanto essa experiência da absoluta pro-
ximidade de Deus em sua autocornunicação radical possa ser forte
e localizada em determinados pontos do espaço e do tempo da
história individual de urna pessoa, ou incolor e difusa em urna
disposição de ânimo mais geral e básica; em que medida possa
vir a ser a experiência de cada indivíduo independentemente de
outrem, ou se o indivíduo somente a atribui a si porque vê e par-
ticipa da experiência religiosa de pessoas mais fortes e mais santas,
todas estas questões são de importância secundária.
O ponto que está a nos interessar aqui é o seguinte: a expe-
riência particular da pessoa e a experiência religiosa coletiva da
humanidade, ambas conjuntamente e numa espécie de mútua
unidade e mútua compenetração, dão-nos o direito de interpre-
tar o homem, quando faz a experiência de si nas mais variadas
formas corno sujeito de ilimitada transcendência, corno evento
da absoluta e radical autocornunicação de Deus.
163
A experiência a que aludimos aqui não é primária e ulti-
mamente a experiência que a pessoa faz quando decide explíci-
ta e deliberadamente fazer uma atividade religiosa, como, por
exemplo, orar, prestar um ato de culto, ou ocupar-se reflexiva
e teoricamente sobre temas religiosos. Mas se trata da experiên-
cia que está dada a toda pessoa previamente a essas atividades
e decisões religiosas reflexas, que talvez possa ocorrer até mes-
mo em formas e conceituação que aparentemente nada têm de
religioso. Se a autocomunicação de Deus é modificação última
e radicalização de nossa transcendentalidade como tal, pela qual
somos sujeitos, e se nós, como sujeitos de infinitude transcen-
dental, nos apresentamos como tais nas mais ordinárias ocupa-
ções de nossa existência do dia-a-dia, no trato secular com quais-
quer realidades de caráter individual, então isso implica que a
experiência original de Deus até em sua autocomunicação pode
ser tão universal, tão atemática e tão "arreligiosa", que ocorra,
sem nome, mas realmente, onde quer venhamos a exercer nossa
existência.
Quando a pessoa, conhecendo teórica ou praticamente ou
agindo como sujeito, se vê confrontada com o abismo de sua
existência, abismo que é a única realidade a dar base a tudo,
e quando essa pessoa tem a coragem de olhar para dentro de
si e achar nas próprias profundezas a sua verdade última, aí ela
poderá fazer também a experiência de que esse abismo a acolhe
como sua verdadeira e indulgente segurança, e dá-lhe legitima-
ção e ânimo para a fé, para perceber que a interpretação dessa
experiência daqa na história da salvação e revelação da huma-
nidade (a saber, a interpretação dessa experiência como expe-
riência do evento da radical autocomunicação de Deus) expres-
sa a profundidade última e a verdade última dessa experiência
aparentemente tão banal. É claro que tal experiência tem tam-
bém seus momentos especiais, como, por exemplo, na experiên-
cia da morte, da radical validade do amor etc. Aí mais clara-
mente do que alhures o homem percebe que ele transcende o sin-
gular banal e vem à sua própria presença e à presença de misté-
rio santo de Deus. E, ao interpretar e explicar esse aspecto, a
verdade última do cristianismo sobre a autocomunicação de Deus
diz apenas que esse movimento não vos leva somente à presença
de uma distância longínqua, friamente infinita e incompreensí-
vel, mas, pelo contrário, que este mistério se nos comunica a si
mesmo.
164
À medida que a pessoa está vivendo na situação da liber-
dade ainda em devir; à medida que a situação de sua liberdade
é sempre situação co-determinada pela culpa, pelo que chama-
mos de "pecado original"; à medida que a pessoa, ao começar
a refletir, jamais se coloca em sua reflexão diante da pura possi-
bilidade de liberdade prévia completamente neutra, mas sempre
se situa perante uma liberdade que jâ foi livremente exercida;
à medida que a pessoa finalmente jamais pode julgar reflexiva.:
mente sobre essa liberdade que já foi exercida, segue-se que a
experiência transcendental é sempre ambivalente e nunca pode
ser abarcada adequadamente pela reflexão humana. b homem
faz a experiência de si como sujeito que jamais sabe exatamente
como em sua liberdade entendeu e manipulou as objetivações
no âmbito de sua liberdade que foram co-condicionadas pela
culpa: como sujeito que nunca sabe exatamente se fez delas a
manifestação de sua própria decisão culposa original ou o so-
frimento crucificante implicado na superação da culpa.
O homem faz a experiência de si simultaneamente como su-
jeito do evento da absoluta autocomunicação de Deus, como su-
jeito que já respondeu na liberdade com um "sim" ou um "não"
a esse evento, e que jamais pode refletir adequadamente sobre
a maneira concreta e real dessa sua tomada de posição. Assim,
nessa fundamental questão de sua existência, à qual já deu res-
posta subjetivamente, ele sempre permanece ambíguo para si mes-
mo em sua reflexão, sempre permanece o sujeito que realiza a
subjetividade de sua tra11scendência, gratuitame11te elevada pe-
la graça, em seu encontro a posteriori e histórico com o mundo
de suas relações com as coisas e as pessoas, encontro que nunca
lhe está inteiramente à disposição, e no encontro com um tu hu-
mano no qual a história e a transcendência encontram sua rea-
lização una em conjunto e unidade, e no qual ele se encontra
com Deus como Tu absoluto.
4. ACERCA DA COMPREENSÃO
DA DOUTRINA DA TRINDADE
A 1rindade ''econômica"
ou histórico-salvífica é a Trindade imanente
Mas se, em sentido inverso, pressupomos e retemos radical-
mente que a Trindade na história da salvação e revelação é a 'Irin-
dade "imanente", visto que, na autocomunicação de Deus ~ sua
criatura pela graça e encarnação, Deus realmente se doa a si mes-
_mo e surge realmente como é em si mesmo, então, tendo em vis-
ta o aspecto histórico e econômico-salvífico presente na histó-:
ria da auto-revelação de Deus no Antigo e no Novo Testamen-
to, podemos dizer: na história da salvação, quer coletiva quer
individual, vêm ao nosso encontro imediato não quaisquer for-
ças numinosas que representem a Deus, mas nos vem ao encon-
tro e nos é dado na verdade o próprio Deus único, que em sua
absoluta singularidade - que nada pode substituir ou representar
- advém ele próprio onde nos achamos e onde o recebemos a
ele próprio e como ele próprio em sentido estrito.
À medida que ele adveio como salvação divinizante no cer-
ne mais íntimo da existência de uma pessoa individual, nós o
chamamos realmente e na verdade de "Santo Pneuma'' ou "Santo
Espírito". À medida que este mesmo Deus uno está presente pa-
ra nós em Jesus Cristo na história concreta de nossa existência
como ele próprio em sentido estrito - ele próprio e não uma
representação dele -, nós o chamamos de "logos" ou "Filho"
simplesmente. À medida que este Deus, que como Espírito e Lo-
gos vem a nós, é e sempre se mantém como o inefável, o misté-
rio santo, o fundamento e origem inabarcáveis de sua vinda no
Filho e no. Espírito, nós o chamamos de o Deus uno,. o Pai. À
medida qiJ.e no Espírito, no Logos-Filho e no Pai se trata de que
Deus mesmo se doa a si próprio e não outra realidade distinta
dele, devemos dizer em sentido estrito do Espírito, do Logos-
Filho e do Pai da mesma maneira que eles são o único e mesmo
168
Deus na ilimitada plenitude da única divindade, na posse de uma
só e mesma essência divina. À medida que a maneira de estar
presente para nós de Deus como Espírito, Filho e Pai não signi-
ficam a mesma maneira de estar presente, ou seja, à medida que
realmente na maneira de estar presente para nós estão dadas ver-
dadeiras e reais distinções, essas três maneiras de Deus estar pre-
sente para nós devem ser distinguidas em sentido estrito. "Para
nós", o Pai, o Filho-Logos e o Espírito não são de imediato os
mesmos. E à medida, porém, que essas maneiras de estar pre-
sente de um só e mesmo Deus para nós não devem suprimir a
real autocomunicação de Deus como o único e mesmo Deus,
as três maneiras de estar presente do único e mesmo Deus de-
vem caber a ele próprio como o único e mesmo Deus, devem
caber-lhe a ele em si e por si mesmo.
Portanto a afirmação que o único e mesmo Deus nos é da-
do a nós como Pai, Filho-Logos e Espírito Santo, ou: o Pai se
nos dá a si próprio em absoluta autocomunicação mediante o
Filho no Espírito Santo, é enunciado que se deve entender e fa-
zer em sentido estrito como referentes a Deus como ele é em si
mesmo. Pois do contrário no fundo não seria nenhuma afirma-
ção acerca da autêntica autocomunicaçãb de Deus. Não deve-
mos duplicar essas três maneiras de Deus estar presente para nós,
postulando pressuposto diferente para elas em Deus ao desen-
volver uma teoria psicológica explicativa da Trindade que seja
diferente dessas maneiras de ele estar presente. Na Trindade da
história da salvação e revelação já fizemos a experiência da Trin-
dade imanente como ela é em si mesma. Pelo fato de Deus se
revelar a si mesmo a nós nas maneiras que indicamos como sen-
do trinitárias, já fizemos a experiência da Trindade imanente do
mistério santo como ele é em si mesmo, porque sua comunica-
ção livre e sobrenatural a nós na graça no-lo comunica em seu
ser mais íntimo, e porque sua absoluta identidade consigo mes-
mo não significa homogeneidade sem vida e vazia, mas, pelo
contrário, essa identidade enquanto divina vitalidade implica em
si mesma aquilo com que nos encontramos na trindade de seu
voltar-se para nós.
Aqui nos devemos contentar com uma aproximação inicial
da compreensão da doutrina cristã da Trindade. Apesar de seus
problemas, essa aproximação talvez nos ajude a evitar muitas
equivocações acerca dessa doutrina e a mostrar positivamente
que a doutrina àa Trindade não é um jogo teológico sutil e es-
169
peculativo, mas, pelo contrário, um enunciado que não se pode
evitar. É somente com a ajuda dessa doutrina que estamos em
condições de tomar a sério e reter sem restrição a singela afir-
mação - que é a uma vez tão incompreensível e tão evidente
por si mesma - segundo a qual o próprio Deus enquanto mis-
tério santo e permanente, enquanto o fundamento inabarcável
da existência transcendente do homem, é não somente o Deus
da infinita distância, mas também quer ser o Deus da absoluta
proximidade em verdadeira autocomunicação, e dessa maneira
está presente nas profundezas espirituais de nossa existência, bem
como na concretude de nossa história no espaço e tempo. Aqui
já está o real sentido da doutrina da Trindade.
170
QUINTA SEÇÃO
HISTÓRIA DA SALVAÇÃO
E DA REVELAÇÃO
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
A RESPEITO DO PROBLEMA
2. MEDIAÇÃO HISTÓRICA
ENTRE TRANSCENDENTALIDADE E TRANSCENDÊNCIA
180
Fundamentação da tese com dados da dogmática católica
O postulado de semelhante história da revelação pode vir
a ser fundamentado, antes de tudo, em alguns dados tidos co-
mo assegurados pela dogmática católica. Aduziremos estes da-
dos no sentido de demonstrar - agindo contra uma auto-
interpretação superficial - que o cristianismo, quando visto em
sua exata e autêntica auto-interpretação, entende-se como o lu-
gar e processo em que a história da revelação atinge bem deter-
minada e lograda reflexão histórica, e em que se chega à cons-
ciência dessa história de maneira reflexa, dessa história que é
coextensiva com a história universal.
De acordo com a concepção cristã, até o homem co-
determinado em sua situação salvífica ou não-salvífica pelo pe-
cado originá! tem sempre e em toda pàrte a possibiiidade genuí-
na de encontrar-sé com Deus e obter a salvação rriediarite·a·acó~
lhida da autocomunicação sobrenatural de Deus pela graça, pQ_~-
sibilidade que somente vem a se frustrar por sua própria cÜlpél_.
Existe séria, operante euniversal vontade salvífica de Deus no
sentido da salvação que o cristão entende quando fala de sua
própria salvação cristã. A vontade salvífica de Deus, que na dog-
mática católica, contrastando com o pessimismo de Agostinho
e Calvino, é caracterizada como universal - a saber, prometida
e ofertada a todo homem, indiferentemente do tempo e espaço
que ocupe -, não significa que a pessoa seja protegida de perder-
se de qualquer forma, mas significa a salvação no sentido pro-
priamente cristão, que implica a absoluta autocomunicação de
Deus em absoluta proximidade, implica conseqüentemente tam-
bém o que denominamos de visão beatífica. É essa salvação que
é possibilitada a todo homem mesmo na situação posterior à
queda no pecado original, salvação que só pode vir a falhar por
culpa própria pessoal.
Essa salvação acontece, porém, como salvação de pessoas
livres, como realização plena de pessoas livres como tais, e, em
conseqüência, ocorre precisamente enquanto as pessoas de fato
se realizam na liberdade, ou seja, orieritarido-se p°a.iiºsuá silvà-
ção. jamais acontece sem o envolvimento das pessoas e sem o
envolvimento de suas liberdades. Uma pessoa que se realizasse
na liberdade e uma salvação que fosse realidade objetivamente
operada só por Deus na pessoa como se fora uma coisa que se
lhe apõe, são conceitos contraditórios. A salvação não realiza-
181
da na liberdade não pode ser salvação. Se, pois, em virtude da
séria vontade salvífica de Deus semelhante salvação ocorre até
fora da história explícita do Antigo e Novo Testamento, se ocorre
em toda parte da história do mundo e da salvação, então essa
história da salvação ocorre sendo acolhida na liberdade, o que,
porém, é impossível sem que seja acolhida enquanto conheci-
da. Para entender esta afirmação não se deveria supor que a única
maneira em que algo possa vir a ser real e verdadeiramente co-
nhecido o seja pelo conhecimento categorial objetivado em pa-
lavras, conceitos e proposições, que comumente pressupomos ao
falar de "conhecer". A pessoa sabe infinitamente mais sobre si,
e sabe sobre si de forma muito mais radical do que somente atra-
vés de seu conhecimento objetivado e verbalizado, que se pode,
por assim dizer, escrever num livro. A identificação do conheci-
mento como autoconsciência com conhecimento conceitua! e ver-
balizado constitui equívoco.
Nosso postulado sobre a universalidade da salvação e re;ve-
lação pode-se esclarecer também a partir de outras referências
do ensino dogmático do cristianismo católico. Em virtude da
vontade salvífica universal de Deus, o cristão não tem nenhum
direito de lhnitar o evento real da salvação à explícita história
da salvação narrada no Antigo e no Novo Test:imento, apesar
do -axioma teológico-= que- se ouve desde os santos Padres-até
os nossos dias -, segundo o qual fora da Igreja não há salva-
ção. Já o Antigo Testamento como escritura que dá testemunho
do agir salvífico de Deus conhece semelhante agir de Deus fora
da história da aliança veterotestamentária, conhece uma autên-
tica aliança de Deus com todo o gênero humano, da qual a alian-
ça do Antigo Testamento não passa de exemplo especial enquanto
ela atingiu especial nível de consciência de si na história de Is-
rael. O Antigo Testamento conhece pagãos piedosos, agradáveis
a Deus. E também o Novo Testamento· dá testemunho de um
agir de Deus-pefa graça ein Cristo e pelo Espírito Santo, que não
coincide com as iniciativas das testemunhas visíveis de Cristo~
que por ele foram explícita e historicamente autorizadas, de
cuja atividade a Igreja oficial de Cristo procede e cujo agir ela
leva avante. Mas, por outro lado, é axioma evidente para o No-
vo Testamento e para a doutrina posterior da Igreja que a salva-
se
ção sucede somente quando há fé na palavra de Deus que· -i-e-
.vela rio sentido próprio do termo. A doutrina da Igreja chega
até a rejeitar expressamente a idéia, ainda que não de maneira
182
definida, de que um conhecimento meramente filosófico, e, por-
tanto, uma revelação meramente "natural" possa servir de base
suficiente para essa fé e para a justificação do homem.
Se, pois, pode haver em toda parte da história a salvação
e, assim sendo, também a fé, er.tão uma revelação sobrenatural
de Deus para todo o gênero humano deve estar ativa em toda
a parte em que se realiza a história da humanidade, e de tal sor-
te que ela atinja toda pessoa humana e nela opere pela fé a sal-
vação, em toda pessoa que não se fechar à semelhante revelação
por própria culpa recusando a fé.
Fundamentação complementar
de natureza teol6gico-especulativa
Esta reflexão, que procede diretamente de enunciados da
fé cristã, pode-se confirmar e aprofundar mediante uma refle-
xão de caráter mais teológico-especulativo. E semelhante refle-
xão pode ao mesmo tempo tornar mais clara a maneira como
essa revelação e história da revelação universal, que não deixa
de ser sobrenatural, podem-se conceber de tal forma que sua exis-
tência não contradiga aos simples fatos da história do espírito
e da religião, bem como da secularidade do homem, mas antes
apareçam em harmonia com a história da revelação e salvação
do Antigo e Novo Testamento, em que somente costumamos pen-
sar ao falar de história da revelação e salvação sem ulteriores
qualificações.
Já falamos do fato de que a transcendência do homem, se-
gundo os ensinamentos dogmáticos do cristianismo, foi "eleva-
da" pela autocomunicação de Deus como oferta à lfüerdade do
homem, dé fa.l s-oiie qÚe o movimento espiritual do homem em
seu conhecimento e na sua liberdade transcendentais está orieri-
tado para a absoluta e imediata proximidade para com Deus,
para aquela imediata posse de Deus como tal que encontra sua
realização consumada na visão beatífica de Deus face a face. Dis-
semos, ademais, que essa realidade é dado da experiência trans-
cendental do homem, que esse enunciado da autocomunicação
de Deus não é enuI1cfadQôntico, que afirma apenas um estado
objetivo de coisas, que esteja para além da personalidade, da
consciência, da subjetividade, da transcendentalidade do homem.
O enunciado da realidade ontológica, que a autocomunicação
de Deus ao homem sempre e em toda parte significa, não quer,
183
é claro, dizer que essa realidade enquanto dada ontologicamen-
te - prescindindo de casos excepcionais ~ esteja presente ao
homem de uma forma que esse dado pudesse ser alçado ao ní-
vel de uma presença na reflexão com indiscutível certeza mediante
introspeção individual. Algo de que estamos transcendentalmente
conscientes e algo que possa ser alçado ao nível da reflexão trans-
cendental e que se possa distinguir reflexivamente e com certeza
de outros momentos na transcendentalidade do homem não são
a mesma coisa nem conceitualmente nem na realidade. Pode-
mos muito bem comprovar com bastante clareza também em ou-
tros casos que semelhante distinção não é simplesmente subter-
fúgio, mas que realmente é parte dos dados primários da subje-
tividade transcendental do homem.
A experiência transcendental, sobrenaturalmente elevada,
irreflexa, mas realmente presente, do movimento e orientação
do homem para a proximidade imediata a Deus, ou seja, a ex-
periência como tal antes de se tornar temática na reflexão e na
história, deve ser caracterizada como revelação real através de
toda a história do espírito e da religião, que de modo algum se
pode identificar com a chamada revelação natural. ;Esse c;o11he-:-__
cimento transcendental, que está presente sempre e em toda parte
no exercício do espírito humano pelo conhecimento e pela li-
berdade, mas que é conhecimento atemático, é momento que se
deve distinguir da revelação verbal que se apresenta em enun-
ciados, mas merece, não obstante, também como tal ser carac-
terizada como auto-revelação de Deus. Esse momento transcen-
dental da revelação é a modificação de nossa consciência trans-
cendental produzida permanentemente por Deus na graça, mas
taTmodificação é realmente momento originário e constante em
nossa consciência enquanto básica e originária luminosidade de
nossa existência, e enquanto momento de nossa transcendenta-
lidade, constituído pela autocomunicação de Deus, é já revela-
ção de Deus no sentido mais próprio da palavra.
A teologia escolástica de cunho tomista expressa esse esta-
do de coisas ao dizer: sempre que nossos atos de natureza inten-
cional são elevados ontologicamente pela graça sobrenatural, pelo
Espírito de Deus, estes atos possuem sempre e necessariamente
também um objeto sobrenatural de natureza apriorística que não
se pode alcançar como objeto formal por um ato meramente na-
tural (ainda que eventualmente possa vir a ser alcançado como
conteúdo).
184
A causação por parte de Deus do horizonte apriorístico de
nosso conhecimento e liberdade há de se caracterizar como for-
ma específica e originária de revelação, que na verdade é forma
de revelação sobre a qual toda outra revelação se baseia. Isso
é verdade por menos que esse horizonte possa ser representado
temática e conceitualmente, esse horizonte em cujo interior e em
cuja direção exercemos nossa existência com sua objetividade
categorial.
Segundo ensinamento cristão comum sobre a revelação que
correntemente se designa simplesmente como a revelação, a sa-
ber, a revelação do Antigo e do Novo Testamento, tal revelação
é reaimente ouvida, quer quanto ao seu conteúdo quer quanto
à sua fórma, somente se-for escutada na fé, ou seja, mediante
a graça de Deus, e, por conseqüência, soménte se for escutada
no âmbito da virtude da autocomunicação de Deus sob a "luz
da fé animada pela graça", de tal forma que à sobrenaturalida-
de objetiva de uma proposição revelada corresponda um princí-
pio divino e subjetivo, que capacita para a audiência dessa pro-
posição, no sujeito que assim se torna capaz de ouvi-la. Somen-
te quando Deus é o princípio subjetivo do seu falar e do ouvir
do homem na fé, é que ele pode expressar-se a si mesmo, por-
que de outra forma toda expressão de Deus romperia a frontei-
ra radical da distinção que vigora entre a criatura e Deus, o qual
se tornaria sujeito à finitude, à humanidade e à subjetividade
meramente humana. Nenhuma proposição surge só como pro-
posição singular e por si só na fábula rasa da consciência, mas
depende sempre da transcendentalidade, do horizonte apriorís-
tico de compreensão e do campo universal da linguagem do ho-
mem. Se a afirmação objetiva, ainda que proceda de Deus, pe-
netrar em uma subjetividade meramente humana, sem que esta
seja movida pela autocomunicação de Deus, então a pretensa
palavra de Deus não passará de palavra humana, antes que a
notemos. A proposição aposteriorística da revelação verbal que
vem na história só se pode ouvir no interior do horizonte de uma
subjetividade apriorística divinizante e divinizada. Só se pode
ouvir da forma como deve ser ouvida, se o que é ouvido deve
ser seriamente chamado de "palavra de Deus".
A luminosidade apriorístíca do sujeito em sua transcenden-
talidade pode e deve chamar-se já de conhecimento, ainda que
esse conhecimento apriorístico venha a se atualizar somente atra-
vés do material da realidade singular que nos vem ao encontro.
185
Igualmente, essa transcendentalidade apriorística, sobrenatural
e divinizada, pode e deve chamar-se revelação antes que venha
a iluminar os objetos singulares e aposteriorísticos da experiên-
cia na revelação histórica.
A respeito da mediação
da transcendentalidade sobrenaturalmente elevada
Devemos perguntar-nos ainda se a experiência concreta deste
horizonte sobrenatural possa vir a ser feita unicamente através
de material especificamente religioso, apresentado por aquela re-
velação histórica e limitada que comumente costumamos cha-
mar de revelação por excelência. Comumente estaríamos incli-
nados a responder a esta questão de maneira afirmativa, e, em
conseqüência, pressupor explícita ou implicitamente que essa
transcendentalidade sobrenatural chega a si mesma somente se
e à medida que ocorre uma síntese entre a nossa aprioridade so-
brenatural e um material especificamente religioso, ou seja, quan-
do dizemos "Deus", quando falamos de lei de Deus, quando ex-
plicitamente queremos fazer a vontade de Deus, quando, por-
tanto, nos movemos em campo explicitamente sagrado e religioso.
Mas, por mais que pareça assim ser, essa resposta é funda-
mentalmente errada. Pois, se a transcendentalidade do homem
é realmente mediada a si mesma por todo o material categorial
de sua experiência aposteriorística, então a única compreensão
correta é a seguinte: também a transcendentalidade sobrenatu-
ralmente elevada - pressupm:icto=se que um sujeito livre aja na
sua transcendentalidade - é mediada a si mesma por qualquer
realidade categorial na qµal e media11te a qual o sujeito se torna
presente a si mesmo~ Não temos que nos haver com Deus so-
mente quando o tematizamos de alguma maneira conceitua!, mas
a experiência de Deus originária, embora sem nome e atemáti-
ca, é feita sempre que e à medida que subjetividade e transcen-
dentalidade se exercem. E, em correspondência a isso, também
a transcendentalidade sobrenatural do homem é mediada a si
mesma - ainda que de forma não-objetivada e atemática -
sempre que o homem na transcendentalidade assume-se a si mes-
mo como sujeito livre no conhecimento e na liberdade.
· Pressupomos, portanto, que essa mediação necessariamente
categorial e histórica de nossa experiência transcendental sobre-
natural, por força do material categorial de nossa história, não
186
se realiza somente através do material específica e tematicamente
religioso da nossa motivação, do nosso pensamento e da nossa
experiência, mas em toda parte. Neste sentido, o mundo é nossa
mediação p_ªra. Deus_ etn ~.!!ª.-ªJ:l:!Q~ql}mn.i_c_aç~o·ºª
g_r.ªç-ª'· .~-!!~§.~--
sentido o cristianismo não conhece nenhum seJo~ sªgrngo.~ g_~:-
limitãdo, no qual sómente se pudesse enco:ptra,r :;i P~\!$. Ainda
que uma objetividade categorial seja de imediato e explicitamente
profana, pode ser adequada para mediar I}.ossa experiência so-
brenaturalmente elevada, que corretamente chamamos de reve-
lação. Se assim não fosse, seria impossível ver porque até um
ato moral, cujo objeto formal imediato e temático é um objeto
da moralidade natural, possa ser ato sobrenaturalmente eleva-
do na pessoa batizada. Mas é impossível negar isso, pois a com-
preensão cristã da existência opinà que na prática se deve dar
por assegurado que - pressupondo-se a elevação sobrenatural
do homem pela graça - a vida moral inteira de uma pessoa en-
tra no campo da atividade salvífica sobrenatural, e que a obser-
vância da lei moral natural é em si mesma - sobrenaturalmen-
te elevada - salvífica, e não é só pré-condição e conseqüência
extrínseca.
Podemos dizer, além disso, que sem ess~ p_ress.p._QÇ>S!<? _nªo
se poderia mais conceber a salvação para todos os homens. Ora,
essa possibilidade de salvação é ensinada de forma explicita e
muito clara pelo Concílo Vaticano II em várias passagens (cf.,
por exemplo, Lumen Gentium 16; Gaudium et spes 22; Ad gen-
tes 7; Nostra aetate lss). Tendo em vista a extensão espacial e
sobretudo a duração temporal da história do gênero humano co-
mo a conhecemos hoje, não podemos mais presumir seriamen-
te, sem fazer postulados arbitrários, que todos os homens tenham
entrado e devam entrar em contato com a revelação histórica ver-
bal em sentido mais estrito, e, portanto, com a tradição explíci-
ta de uma revelação primitiva no paraíso ou com a revelação bí-
blica do Antigo e do Novo Testamento, para poder crer e assim
obter sua salvação. Mas uma atividade salvífica sem fé é impos-
sível, e fé sem encontro com Deus que se revela pessoalmente
a si mesmo é contradição nos termos.
Assim sendo, concretamente não resta outra possibilidade
a pensar senão uma fé que seja simplesmente a aceitação obe-
diente da autotranscendência so brenaturalmente elevada do ho-
mem, a obediente aceitação de sua referência transcendental para
com o Deus da vida eterna, que enquanto modalidade apriorís-
187
tica da consciência tem o caráter de comunicação divina. Essa
experiência transcendental sobrenatural, qu~ já em si mesma e
em sua forma reàliza i noção de revelação divina e por isso em
sua história constitui história da revelação, necessita, com efei-
to, de mediação histórica categorial. Mas esta não precisa ne~ -
cessariamente e em toda parte tornar essa experiência transcen-
deiifal explícita e temática, apresentando-a como efeito da ati-
vidade sobrenatural reveladora de Deus.
A "revelação primitiva"
O homem vem a ser constituído pela criação e autocomu-
nicação de Deus, por radical distinção e distância com referên-
cia a Deus enquanto o mistério absoluto, e ao mesmo tempo em
absoluta proximidade na graça com referência a esse mistério
absoluto. À medida que a constituição transcendental do homem,
suas origens, implica que esteja sempre situado em uma histó-
ria concreta como início e horizonte antecedentes a ele em sua
liberdade, e à medida que essa constituição precede lógica e real-
mente - ainda que talvez não de maneira temporalmente tan-
gível - à sua livre e até culposa auto-interpretação, podemos
falar de início paradisíaco da revelação transcendental e catego-
rial de Deus, de revelação transcendental e categorial originá-
ria. Quanto a isso, é claro que continua inteiramente aberta, pa-
ra o momento, a questão de saber em que medida e de que ma-
neira essa "revelação originária" foi transmitida nas gerações su-
cessivas desde os seus primeiros portadores no mundo, ou seja,
desde "Adão e Eva". A revelação originária significa simplesm~_nt<:
isto: onde o homem existe realmente como homem, ou seja, co-
mo sujeito, como liberdade e responsabilidade, ele já está desde
todo sempre orientado ontologicamente, pela autocomunicação
de Deus, à proximidade imediata e absoluta com referência a
Deus, e é no interior dessa finalidade que já começou seu pró-
198
prio movimento histórico individual e coletivo. Estabelecer em
que medida tal transcendentalidade sobrenatural existiu de for-
ma reflexa e foi já tematicamente religiosa é outra questão que
podemos deixar aberta, sem que por isso devamos pôr em dúvi-
da o núcleo verdadeiro e próprio, bem como o sentido dessa no-
ção de revelação originária.
Ora, à medida que a vontade salvífica de Deus se mantém
sempre operosa enquanto autocomunicação divina em oferta,
não obstante a falha pecaminosa dos homens nos inícios, e à
medida que toda pessoa recebe sua natureza humana, chamada
por Deus à autocomunicação com ele, da única raça humana
na unidade de sua história, podemos falar tranqüilamente da
transmissão da revelação transcendental primitiva. Mas só o po-
demos fazer à medida que a pessoa sempre existe enquanto tem
sua origem em outros e numa.história global, e à medida que
recebe também sua transcendentalidade sobrenatural na sua his-
tória e dessa história. Neste sentido podemos, pois, falar da trans-
missão dessa revelação transcendental primitiva como tal, em-
bora ela seja transmitida através da história e não porque foi
recebida por ''Adão", mas porque sua culpa está já desde sem-
pre envolvida e superada pela vontade de Deus absoluta de se
comunicar em vista de Jesus Cristo e por causa de Jesus Cristo.
Se e até que ponto teria ocorrido uma tradição histórica da re-
velação categorial primitiva, e em palavras humanas explícitas,
é outra questão. Pois tal tradição sem dúvida não se manifesta
primariamente em narrativas acerca dos inícios históricos do ho-
mem em sua concretude, mas, pelo contrário, na manutenção
viva da experiência transcendental de Deus, bem como na expe-
riência de que a situação histórica está condicionada pela cul-
pa. O processo de manter essa experiência viva pode vir a ocor-
rer de diferentes formas, inclusive formas depravadas e politeís-
tas, e igualmente sem nenhuma referência à tradição como tal.
Contudo isso satisfaz à noção de revelação e de comunicação
da revelação enquanto se trata da continuada transmissão da ob-
jetivação histórica da revelação transcendental e de uma trans-
missão da objetivação da culpa que só é possível ocorrer em con-
fronto com a revelação transcendental de Deus.
As narrativas dos primeiros capítulos do Gênesis sobre os
inícios da história da humanidade não se devem entender como
se fossem "reportagens" sobre os eventos da história primitiva
que tivessem sido transmitidas desde o começo através das ge-
199
rações, nem como algo semelhante que tivesse sido fornecido
por Deus como se fosse alguém que estivesse como que envolvi-
do nessa história. Essas narrativas devem-se entender como etio-
logia que, a partir da experiência transcendental sobrenatural do
presente, infere retrospectivamente o que deve ter havido nos iní-
cios como fundamento histórico da experiência do presente. E,
em conseqüência, qualquer seja a verdade e a historicidade ori-
ginal do que se infere, a representação desses inícios, que se in-
ferem a partir do presente, opera com imagens buscadas no ma-
terial que é tomado do presente da vida dos povos e pessoas que
contribuíram direta ou indiretamente para formar e conformar
essas narrativas do Gênesis.
Em virtude de que tal etiologia sempre e em toda parte ocor-
re até certo ponto e de certa maneira no homem histórico atra-
vés de anamnese, e visto que, portanto, a etiologia de uma pes-
soa depende sempre e inevitavelmente, concordando ou discor-
dando, da etiologia do mundo que o cerca e do mundo anterior
a ela, a afirmação de que o homem atinge suas origens etiologi-
camente não deixa de harmonizar com a afirmação de que ele
conhece suas origens mediante revelação e tradição primitivas.
Mas isso se pode entender de tal sorte que essa tradição possa
e deva aparecer nas mais variadas formas, sem que por esse fato
seja pura fantasia ou mitologia em sentido negativo, e sem que
deixe de ser, até nas mais estranhas formas da representação mi-
tológica, objetivação mais ou menos exitosa da experiência trans-
cendental da revelação. Se uma pessoa tem a impressão de que
tais tentativas de autocompreensão feitas pelo homem a partir
de suas origens e olhando em retrospectiva para elas são mito-
lógicas, teríamos de chamar sua atenção para o fato óbvio de
que em princípio não existe nenhum conceito sem imaginação,
e que inclusive a mais abstrata das linguagens metafísicas opera
com imagens, analogias e representações, operam com a con-
versio ad phantasma, como diria santo Tomás.
212
SEXTA SEÇÃO
JESUS CRISTO
1. A CRISTOLOGIA
NO QUADRO DE VISÃO EVOLUTIVA DO MUNDO
A unf(jade de !OQQ__Q._çr}gg(}
O cristão professa na sua fé a convicção de que t1.,1do_o_que
existe, o céu e a terra, toda a realidade material e espiritual, cons-
titui criaçao--de um só e único -Deus. Se, pois, tudo o que existe
só existe enquanto promana de Deus, resulta não só que tudo
procede como diferente e diverso de uma única causa, que, por
ser infinita e onipotente, pode criar õ qiie-existe de mais diver-
so, mas também que essa diversidade evidenciará intrínseca se-
melhança, harmonia e referência mútua em seus elementos, e
que essa realidade plurifacética e diferenciada constituirá uni-
dade em sua fonte original, no processo de sua auto-atuação e
no exercício da busca do seu destino, o que quer dizer: consti-
tuirá um mundo unitário em sua existência. Em conseqüência,
c~~~_ceri11_cl€:!~sabor cristao conceber "mat~rii:t_e _~SP~!}!e>___c_~!_l'l_~-~~-
219
realidades apenas eventualmente justapostas, sendo no fundo rea-
lidades simplesmente díspares. Para_µ111ª_t~QJqgia e UI1}l:l_ filoso-:-_
fia cristãs é C()~~~ pacíficaque _matéria_ e espírito mcús têm d~
comu,m fÍ_O@e de_ diferente.
E na unidade intrínseca do homem que se manifesta em sua
maior clareza essa harmonia de elementos. Segundo a doutrina
cristã; tódÕ bomem é não Üma-composiç~o C()n!rªditóri.1 ()U pu-
ra~~º~~-!!:ª__!l~tQTJa4e _n1atéria e espírito, mas uma unidade, que
lógica e objetivamente precede à distinção e à possibilidade de
distinguir seus elementos, de tal forma que estes só se compreen-
dem no que possuem de próprio quando se entendem como cons-
titutivos do humano. Donde se compreende que em última ins-
tância somente a partir do homem uno e de sua conseqüente auto-
realização una é que se sabe o que seja espírito e matéria, e por
isso os dois pólos devem-se considerar de partida como sendo
correlativos entre si. Este aspecto harmoniza-se também com o
dado da doutrina cristã segundo o qual a consumação do espí-
rito finito, que é o homem, só se pode pensar como consuma-
ção (ainda que agora pouco se possa "imaginar" dela) de toda
a sua realidade e do cosmos. No estado de consumação, não se
pode simplesmente excluir a suà materialidade como se coisa me-
ramente transitória e adjetiva, ainda que não possamos nos re-
presentar imaginativa e positivamente como seria o estado con-
sumado de materialidade.
As ciências da natureza, enquanto momento particular do
saber uno e total do homem, sabem muita coisa "sobre" a ma-
téria, ou seja, conseguem determinar cada vez mais vinculações
de tipo "funcional" entre os fenômenos naturais. Mas porque
elas abstraem do homem, no que procedem corretamente do pon-
to de vista do seu método, conseguem saber muitas coisas "so-
bre'' a matéria, mas não logram saber "a" matéria como tal, ainda
que o seu saber as conduza de novo aprioristicamente ao pró-
prio homem. Isso é também compreensível: o campo, o todo não
pode ser determinado com os meios que servem para determi-
nar as partes. Que coisa seja a matéria, só se pode dizer a partir
do homem, e não vale o contrário, ou seja, não se pode dizer
que coisa seja o espírito partindo-se da matéria. Dizemos pro-
positadamente: partindo-se do "homem" e não do "espírito".
De outra forma cairíamos uma vez mais naquele tipo de plato-
nismo que se oculta também no materialismo, enquanto tam-
bém este, como o espiritualismo platônico, julga possuir, pela
220
compreensão do todo e de suas partes, um ponto de partida que
seja independente do homem na sua unidade e totalidade. Ora,
somente no homem podemos experimentar aquelas dimensões,
o espírito e a matéria, em sua natureza autêntica e na sua uni-
dade.
Com base na experiência originária que o homem uno possui
de si mesmo, podemos dizer: espírito é o homem_uno enquanto
chega a si mesmo em um absoluto estar dado a si mesmo, e isto
pelo fato de que está referido sempre à realidade absoluta em
geral e ao seu único fundamento, que se chama Deus. Este re-
torno a si mesmo e a referência à totalidade absoluta da realida-
de possível e ao seu único fundamento condicionam-se mutua-
mente. Mas essa referência não possui caráter de penetração in-
tuitiva que esgote o conhecido, mas antes caráter de ser assumi-
do e introduzido no seio do mistério infinito. Somente no aco-
lhimento amoroso deste mistério, deixando-nos por ele impre-
visivelmente dispor, é que se pode levar a bom termo esse pro-
cesso naquela liberdade que é necessariamente dada com a trans-
cendência perante toda realidade singular e perante si mesmo.
À medida que o homem uno assim se experimenta, pode e deve
dizer: eu sou espírito.
O homem uno e unitário entende-se a si mesmo como ma-
téria, bem como também o mundo a seu redor, que necessaria-
mente lhe pertence e diz respeito, à medida que o ato de retorno
a si, na experiência da orientação ao mistério que há de se aco-
lher com amor, produz-se sempre e primariamente apenas no
encontro com o singular, com o que se mostra desde si niesm6,
com ff-ê:oncretamente indisponível, com o inevitavelmente dado
de antemão. O homem se percebe como matéria a si mesmo e
o mundo que se lhe antolha, enquanto é o que existe de fato,
o que, preexistente a si mesmo, se impõe e deve ser aceito e com
isso ainda não é o que foi penetrado pelo conhecer, enquanto
no meio do conhecimento como autopossessão de si se anuncia
o estranho, permanecendo cada qual como algo que é estranho
e indisponível a si mesmo. Matéria é a condição de possibilida-
de para o diferente objetivado, que o mundo e o homem são eles
mesmos, condição do que percebemos diretamente como espa-
ço e tempo (precisamente quando não podemos objetivá-lo con-
ceitualmente). Matéria é a condição daquela alteridade, que aliena
o homem de si mesmo e precisamente com isso o faz regressar
a si mesmo, como também é a condição da possibilidade de ime-
221
diata comunicação com outros seres espirituais situados no es-
paço e.no tempo, na história. Matéria é o fundamento da exis-: __
tência previamente dada do outro, que é o material da liberdade
e da real comunicação de espíritos finitos em mútuo conheci-
mento e mútuo amor.
3. CRISTOLOGIA TRANSCENDENTAL
A "Palavra" de Deus
A fé cristã, já no prólogo do evangelho de João, nos diz
que a Palavra de Deus se fez carne, ou seja, homem (Jo 1,14).
Neste contexto poderíamos, em um primeiro momento, renun-
ciar a dizer algo acerca do sujeito da proposição, a "Palavra"
de Deus. Esta renúncia seria, porém, arriscada, pois poderia ocor-
rer que não compreendêssemos a encarnação da Palavra de Deus,
caso sob a expressão "Palavra de Deus" representássemos ape-
nas algo de muito confuso. Desde Agostinho, a teologia esco-
lástica se habituara a pensar como coisa óbvia que qualquer da-
queles infinitos Três, que chamamos as pessoas da única divin-
dade, poderia ter-se feito homem, bastando que a respectiva pes-
soa divina o quisesse. Sob tal pressuposto, o termo "Palavra"
de Deus, em nossa proposição, em ordem à sua compreensão,
256
não significaria mais do que qualquer Sujeito divino, uma hi-
póstase divina. Caso assim fosse, esta proposição propriamente
só significaria, para dizê-lo numa formulação clássica, o seguinte:
"um da Trindade se fez homem". Sob esse pressuposto, não se
requer saber algo de preciso, que diga respeito propriamente só
à Palavra de Deus, para entender a proposição de que nos ocu-
pamos.
Se, porém, atendo-nos a uma tradição mais antiga, ante-
rior a Agostinho, que se encontra principalmente na patrística
grega, duvidamos deste pressuposto, não resta mais tão fácil re-
nunciar a entender o predicado a partir de compreensão mais
exata do sujeito da sentença. Pois, se no sentido e na essência
da Palavra de Deus está implicado que ela - e somente ela -
é que inicia e pode iniciar história humana, caso Deus fizer seu
próprio o mundo, de tal sorte que este mundo se torne não só
a obra posta por ele, mas também realidade que seja a própria
realidade de Deus, então poderia ocorrer que só entenderá o que
seja encarnação quem souber o que seja propriamente a "Pala-
vra" de Deus, assim como também só entenderá suficientemen-
te o que seja "Palavra" de Deus quem souber o que seja encar-
nação.
Com isso também está dado que nós, precisamente para en-
tender o sujeito da sentença, sobre o qual refletimos, devemos
voltar-nos para o predicado desta sentença, ou seja, devemos con-
siderar a proposição: Deus se fez Homem. Pois somente aí é que
entendemos o que significa propriamente Palavra de Deus. Não
porque qualquer das pessoas divinas possa se tornar homem,
mas antes porque - desde a sentença de que Deus se auto-
expressou para nós imediatamente precisamente em urna histó-
ria corno homem - torna-se-nos inteligível que Deus, o princí-
pio originário indevassável - que chamamos de Pai - possui
realmente um Logos, isto é, a possibilidade de expressar-se his-
toricamente a si mesmo e em si mesmo para nós, que este Deus
é a fidelidade histórica e, neste sentido, é o Verdadeiro, o Logos.
Fez-se "homem"
A Palavra de Deus se fez homem. Que significa isto: fez-se
homem? De início ainda não nos perguntamos o que significa
que esta Palavra se tornou algo. Consideramos de imediato ape-
nas o que se tornou, ou seja homem.
257
9 - Curso Fundamental da Fé
Ora, poder-se-ia pensar que, neste dogma fundamental do
cristianismo, o predicado "homem" seria sem mais o elemento
mais compreensível do enunciado. Pois homem é o que somos
e vivemos diariamente, o que milhões de vezes na história, de
que fazemos parte, foi pré-experimentado e muito vivido, o que
de certa forma conhecemos desde dentro (em nós mesmos) e des-
de o exterior (em nosso ambiente de relações humanas). E po-
deríamos até acrescentar ainda o que se segue: nesta realidade
que conhecemos tanto, podemos distinguir o conteúdo consti-
tutivo fundamental das modificações casuais, de um lado, e, de
outro, um último ser-para-si, chamando depois esse constituti-
vo fundamental de "natureza". Então nossa proposição signifi-
ca: a Palavra de Deus assumiu uma "natureza" humana singu-
lar e assim se fez homem. Sabemos com certeza muitas coisas
sobre o homem. Todos os dias ciências antropológicas da mais
diversa natureza fazem asserções acerca do homem, cada uma
delas falando à sua maneira sobre esse tema inesgotável. Mas
será que dessa forma se define realmente o homem? Há muitas
ciências que retêm que o homem possa ser definido - se bem
apenas de forma assintótica, caracterizada por tentativas de apro-
ximação sempre novas, de forma ainda inconclusa e imperfeita.
Todo pragmatismo, toda recusa da metafísica entenderá o ho-
mem, pelo menos em linha de princípio, como definível.
A esse respeito, podemos dizer: definir, circunscrever me-
diante fórmula que enumere adequadamente a soma dos elemen-
tos de determinada essência, é claro que só se pode fazê-lo quando
se tem presente um objeto ou coisa que seja composto de parce-
las origim:is constitutivas últimas, e propriamente de tais parce-
las que se apresentem como entidades últimas e entendidas em
si, e portanto de novo sejam grandezas limitadas e circunscritas
- e desta vez por si mesmas. Deixamos de lado a questão se,
neste sentido, possa de fato haver definição propriamente dita,
em sentido estrito. No que respeita ao homem, todavia, é im-
possível definição deste tipo. Ele é, assim se poderia cabalmente
"defini-lo", a indefinibilidade chegada a si mesma.
É claro que há muita coisa de definível nele, pelo menos
até certa medida, e destas se ocupam com razão as chamadas
ciências exatas da natureza, na parte em que tratam de antropo-
logia. Poderíamos chamar o homem também de zôon logikón,
animal rationale. Mas antes que se possa fruir da clareza e sim-
plicidade de tal "definição", seria preciso refletir sobre o que pro-
258
priamente se entende por "logikón'~ Mas, ao tentarmos fazê-lo,
cairíamos - literalmente - num campo sem limites. Pois que
poderíamos dizer o que o homem é somente se disséssemos o
que vai para ele e para o que ele vai. Mas isso é no caso do ho-
mem, como sujeito transcendental que é, o ilimitado, o inomi-
nável, e, em última instância, o Mistério propriamente absolu-
to. O homem é, pois, em sua essência, em sua própria natureza,
o mistério, não porque seja em si a plenitude infinita, que é ine-
xaurível, do Mistério para o qual tende, mas antes porque ele,
em sua essência autêntica, em seu fundo originário, em sua na-
tureza é a referência - pobre, mas chegada a si mesma a essa
plenitude.
Quando terminarmos de dizer tudo o que se pode dizer de
observável e definível sobre nós, não teremos ainda dito nada
de nós, se no que afirmamos não dissemos implicitamente que
somos os referidos ao Deus incompreensível. Mas esta referen-
ciabilidade - e, portanto, nossa natureza - só se compreende
e se apreende quando nos deixamos livremente apreender pelo
Incompreensível no acordo com aquele Ato, que é indizivelmente
a condição da possibilidade do dizer que tudo apreende. A acei-
tação ou a rejeição do mistério que somos enquanto pobre refe-
renciabilidade ao Mistério da plenitude, constitui a nossa exis-
tência. A necessidade, a nós preexistente, de nossa decisão de
aceitar ou rejeitar como ato da existência é o mistério que so-
mos, e este mistério é nossa natureza, porque a transcendência,
que somos e exercemos, apresenta a nossa existência e a de Deus
e ambas como mistério.
A este respeito que se repita uma vez mais e se compreenda
que mistério não é algo de ainda não desvelado que exista como
segunda realidade ao lado de outra realidade compreendida e
devassada. Assim entendido, o mistério se confundiria com a
realidade não sabida e ainda não descoberta. O mistério é antes
a realidade que precisamente existe como indevassável - existe,
está dada, não precisa ser produzida, não é segunda realidade,
realidade só provisoriamente não alcançada, mas é antes o ho-
rizonte que sem ser dominado domina todo o compreensível,
que possibilita compreender as outras coisas à medida que ele
próprio se cala como o Incompreensível existente. O mistério não
é portanto o provisório, que se elimina e que em si poderia tam-
bém existir diversamente, mas aquela propriedade que caracte-
riza sempre e necessariamente a Deus (e, desde ele, a nós). Isto
259
é tão verdade que a visão imediata de Deus, que nos está pro-
metida corno nossa realização plena e consumada, é a proximi-
dade direta da incompreensibilidade e, daí, propriamente a su-
pressão da aparência de que só provisoriamente ainda não te-
nhamos totalmente descoberto. Pois nessa visão se vê nele pró-
prio - e não mais na pobreza infinita de. nossa transcendência
- que Deus é incompreensível. Mas a visão do Mistério em si
mesmo acolhido no amor é a beatitude da criatura e só essa trans-
forma o que se conhece como mistério na sarça ardente, que nun-
ca se consome, da eterna chama do amor.
Mas aonde viemos com estas reflexões sobre o predicado
"homem"? Aproximamo-nos muito mais do nosso tema. Pois,
se tal é a natureza humana - a referenciabilidade (pobre, cheia
de perguntas, e por si mesma como que vazia) ao Mistério per-
manente chamado Deus -, então já entendemos com maior cla-
reza o que significa dizer que Deus assume natureza humana
como própria sua. Essa natureza indefinível, cujo limite - a "de-
finição" - é a referenciabilidade ilimitada ao Mistério infinito
da plenitude, quando é assumida por Deus como sua própria
realidade, chega lá para onde, por força de sua própria essên-
cia, está já sempre a caminho. O seu sentido - e não uma ocu-
pação casual, exercida colateralmente, e que pudesse também dei-
xar de se exercer - é ser a que se desfaz de si e se entrega, o
seu sentido é ser o que se realiza e chega a si desaparecendo sem
cessar por si mesma na incompreensibilidade.
Precisamente o que acontece de maneira necessária e inci-
piente no homem, que o lança perante a questão se quer ou não
ter algo que ver com isso, onde se joga tudo ou nada, ocorre
em medida insuperável e da forma mais radical, quando essa na-
tureza do homem assim entendida entrega-se ao Mistério da ple-
nitude e se desapropria de si de tal sorte que se torna proprieda-
de do próprio Deus. E isto é o que acontece quando dizemos:
o próprio Logos eterno de Deus assumiu natureza humana. A
encarnação de Deus é, nesta perspectiva, o caso singular e su-
premo da realização essencial da realidade humana, realização
que consiste no fato de que o homem é à medida que se desfaz
de si abandonando e entregando-se ao Mistério absoluto, que
chamamos Deus. Quem possui reta compreensão do que signi-
fica a potentia oboedientialis para a união hipostática, o que
propriamente significa a receptividade da natureza humana por
parte da pessoa da Palavra de Deus e em que consiste tal recep-
260
tividade, quem entende que só uma realidade pessoal-espiritual
é assumível por Deus, sabe que essa potentia oboedientialis não
pode ser nenhuma capacidade ao lado de outras possibilidades
no ser humano, mas que objetivamente se identifica com a es-
sência do homem.
Tentando buscar assim, a partir da essência do homem, certa
compreensão do que propriamente se quer dizer com encarna-
ção, devemos notar que tal cristologia não constitui nenhuma
espécie de "cristologia da consciência" em contraposição a uma
cristologia ontológica da unidade substancial do Logos com a
sua natureza humana, mas se constrói com base na intuição me-
tafísica de autêntica onto-logia, segundo a qual o verdadeiro ser
do espírito como tal é ele mesmo espírito. Pressupondo-se isto,
pode-se muito bem formular, além da cristologia tradicional, tam-
bém uma onto-lógica, que necessariamente estará ordenada àque-
la cristologia ôntica. Poder-se-á então retirar das afirmações tra-
dicionais da dogmática aquela impressão mitológica de que Deus
se teria revestido da roupagem de natureza humana, a ele ade-
rente apenas de forma exterior, a fim de vir cuidar da boa or-
dem na terra, visto que dos céus não mais conseguia fazê-lo.
Toda idéia de que essa divindade-humanidade deveria veri-
ficar-se tantas vezes quantos são os homens, uma vez que adi-
vindade-humanidade é a mais radical culminação da essência
humana, esquece-se que a historicidade e a personalidade não
podem ser rebaixadas ao nível da natureza do sempre e em toda
parte. A verdade da divindade-humanidade passaria por uma
mitologização precisamente se sem mais fosse sempre e em toda
parte o que é dado a todo homem. Tal idéia também ignoraria
que a humanidade de Deus, na qual ele existe como indivíduo
para cada homem individual, não pode em si mesma ser agra-
ciada nem é agraciada por proximidade e encontro com Deus
essencialmente diversos do encontro e autocomunicação de Deus
que de fato está destinado a todo homem na graça e que alcan-
ça sua realização mais elevada no homem que goza da visão bea-
tífica.
a) Observações preliminares
A inevitável incongruência
entre certeza histórica relativa e compromisso absoluto
Para entender que essa pretensão de acontecimentos histó-
ricos frui de legitimidade não obstante seu baixo grau de certe-
za, é da máxima importância ver que em princípio e em geral
o homem não pode realizar sua existência sem serenamente acei-
tar como ineviiavel e it.iportar em seu éxistif essa ihcortgruência
. eiitieãcei{êza relativa-do seu conheciiiieiifü Iiistórícõ; póf- um
lado;- eo caráter absoluto do seu coínpromisi,;o,-por oufro. Â me-
dida que aceita corajosa, serena e confiadamente estes fatos his-
tóricos, e inclusive estando consciente de que teria realizado mo-
ralmente sua existência mesmo que se tivesse equivocado no seu
conhecimento histórico, chega a reconhecer que não se pode es-
capar de tal possibilidade mediante abstinência existencial pe-
rante fatos históricos, simplesmente porque não se possa alcan-
çar certeza histórica absoluta acerca deles. Sempre e em t9da part~
o homem, nas decisões absolutas e irrevqfil\veis de sua vida,
cê:irifia-seãJatoifiístóricos, sobre cuja existênciã~_11ªItireia~não.
posstif neriliurriâ. certeza teórica absoiúta; em todo campo da vi--
da inevitavelmente se cffa incongruêncfa entre o compromisso
absoluto, que de cada qual se exige inevitavelmente, e a certeza
teórica sobre os fatos a que o homem se confia em tal compro-
ª
misso. Tal é COJ}giç_㺠_iµ~yitéivel para a. ~~ê11:çJ-ª--__Çl-ª-Jib_t!_rgade, _
Com efeito, por sua própria essência, a liberdade_ sempre
o
se decide de forma absoluta, visto que também à.to de abster-
se da decisão constitui dec:i.são absoluta por sua vez. Também
esta última é tomada com base em conhecimento não absoluto.
279
E o mesmo vale quando tal decisão se produz com base em in-
tuições transcendentais metafísicas. Pois também aí a decisão
reflexa está condicionada por interpretação da experiência trans-
cendental, da intuição metafísica original, por interpretação que
não pode suprimir seu condicionamento histórico. Até qu~ndo
essa interpretação, por precisa e metafisicamente aguda se quei-
ra, não pretenda enunciar mais do que as estruturas últimas ne-
cessárias da realidade, começa sem embargo a trabalhar com um
material lingüístico, que é contingente e condicionado.
Se, pois, em nosso caso, o conhecimento histórico de J e-
sus, de sua auto-interpretação e da legitimação da mesma dada
por ele, está carregado de muitos problemas, incertezas e dúvi..
das, esse fato - que se há de conceder sem rebuços - não cons-
titui nenhuma base para termos de nos abster de compromisso
absoluto com respeito a Jesus e ao significado salvífico de sua
realidade para nós. Pois também semelhante reserva cauta não
deixaria de ser decisão, um não de fato pronunciado perante ele,
decisão para a qual os fundamentos objetiváveis no conhecimento
histórico seriam piores do que as razões para se confiar positi-
vamente a ele e sua exigência. É claro que aqui se deve frisar
que ainda temos de aduzir as provas deste último juízo. Há de
se conceder, evidentemente, que em nosso caso, por fundado seja
o conhecimento histórico de Jesus e sua exigência, a distância
entre a fundamentação histórica e a proposta do compromisso
é a máxima que se possa imaginar. Pois este conhecimento his-
tórico como tal não pode, com efeito, ser essencialmente mais
contundente do que qualquer outro conhecimento histórico que
nos atinge muito menos no plano existencial. Mas o compro-
misso de que aqui se trata, à diferença de outras conseqüências
dos acontecimentos históricos, é totalmente absoluto, pois se re-
fere à salvação do homem inteiro.
286
A fé das primeiras testemunhas e a nossa fé
O conhecimento salvífico
só é possível no compromisso da fé
A fundamentação para esta tese - à medida que visa pre-
cisamente a fé em Jesus Cristo-, só poderemos trazer quando
mais tarde nos interrogarmos com que direito podemos justifi-
car a auto-interpretação de Jesus como o portador absoluto da
salvação, legitimado por sua ressurreição. Pela própria nature-
za da coisa, tal nexo de fundamentação em geral só é pensável
no interior do círculo da fé una. Pois o conhecimento salvífico
refere-se per definitionem a um objeto que diz respeito e requer
o homem inteiro. Se em princípio deve haver correspondência,
que precede a eventual ato concreto de conhecimento, entre o
modo de conhecimento, por um lado, e o objeto do conhecimen-
to, por outro, então fica de antemão esclarecido que o cQnheci-
mento salvífico do objeto salvífico - que chamamos de fé, -
só se pode realizar pelo homem inteiro no empenho de sua exis-
tência, e que, em conseqüência, de início neste caso não pode
haver nenhum ponto de sua existência que se ache fora desse
processo de conhecimento. Mas, se este conhecimento salvífico
é também conhecimento histórico, então o objeto histórico é ne-
cessariamente objeto que só pode surgir neste conhecimento
histórico-salvífico, que enquanto fé compromete o homem in-
teiro; e assim ele é o que capacita para essa fé, porque essa fé
deve necessariamente - apesar de sua transcendentalidade co-
mo graça - ser capacitada pela história, se é que a salvação não
pode acontecer para além da dimensão em que o homem possui
sua vida e também sua transcendentalidade espiritual. Essa re-
lação de condicionamento mútuo não causará admiração àque-
le que entendeu uma vez de maneira clara e realmente reflexa
e existencial que também a realidade histórica mais profana na
verdade não está dada a não ser como conhecida e como sub-
metida com isto à lei de apriorismo espiritual, sem o qual nada
se pode conhecer, ainda que esse apriorismo nem sempre se iden-
tifique com a transcendentalidade na graça, única dimensão em
que e desde que uma pessoa pode apreender algo que goze de
significado salvífico.
288
Já enfatizamos antes como a tese, que afirma que o objeto
histórico-salvífico - sem desprezar sua função fundante - só
se dá no ato mesmo da fé, não elimina a possibilidade de afir-
mação fundante da fé para alguém que não crê. Isso se com-
preenderá ainda melhor, se levarmos em conta que a afirmação
fundante da fé para "alguém que não crê" é feita por um crente
que sabe disso reflexamente. Ele - intencionalmente ou não -
faz valer, nas afirmações fundantes da fé, a sua própria fé em
sua unidade feliz de credibilidade transcendental dada na graça
e experiência histórica mediadora da mesma, e, assim, de ma-
neira que implica muito mais do que qualquer doutrinação eru-
dita e histórica, evoca aquela experiência que já está dada no
outro irreflexamente (ou como já acolhida livremente, ainda que
não tematizadamente, ou ofertada à liberdade como sua genuí-
na possibilidade).
291
Pressupostos históricos mínimos de cunho teológico-
fundamental a serem obtidos para uma cristologia ortodoxa
O milagre considerado
a partir da relação entre Deus e o mundo
Se aqui introduzimos conceito de milagre, que com razão
supera a questão da interrupção das leis naturais, não por ceti-
cismo, mas em virtude da própria natureza do milagre, não es-
tamos fazendo nada mais que pôr em jogo o que dissemos so-
bre a relação de Deus com o mundo por ele criado. Deus não
é somente aquele que cria um mundo distinto dele com suas pró-
prias estruturas, leis e dinâmica e que o põe continuamente fora
de si, o seu fundamento criador. Mas Deus tomou-se ele pró-
prio, por autocomunicação sobrenatural livre, ·a dinâmica últi-
ma e mais alta deste mundo e da sua história, de tal sorte que
. a criação do diverso dele mesmo se concebe de antemão como
momento dessa autocomunicação divina ao outro e diverso de-
le, momento pressuposto por essa autocomunicação divina co-
mo condição de sua própria possibilidade, enquanto a autoco-
municação de Deus se constitui para si o seu destinatário exata-
mente no mundo criado ex nihilo sui et subjecti. Ora, desde es-
sa perspectiva,' as leis da natureza e as leis universais da história
devem-se considerar de início como estruturas dessa pré-condição
que a livre autocomunicação pessoal de Deus cria como base
de sua própria possibilidade. Desde este enfoque, a lei natural
e a lei da história apresentam-se como momentos da graça, ou
seja; da autocomunicação divina e também, em conseqüência,
como momento da história da revelação e salvação. Desde este
309
ponto de vista, e, portanto, desde perspectiva precisamente teo-
lógica, e não simplesmente desde generalizado ceticismo racio-
nal da modernidade, não se vê por que essa pressuposição e pré-
condição se deveria eliminar e ab-rogar quando a autocomuni-
cação divina vem a se manifestar na própria pressuposição que
se cria e se dá, a saber, quando há de se manifestar um milagre
como sinal da ação salvífica de Deus correspondente ao nível
histórico dessa autocomunicação de Deus.
Baseando-nos nessas considerações preliminares, podemos,
portanto, dizer: !!}i@~~-m se.n.tig-9 teológico e não no sen.tidu-----
.do. propriamente prCJdJg_LQ.~Q1 . <Jc:9rre onde, Pl:!rn_QJ19:rnem. ~spi:
ritual c1berto parª_<>_lllj~Jéri9 __<;ie Deus, a realidade concreta dos
acontecimentos apresenta-se, em sua configuração, ele tal for-
mã que a·êsia-conf1gurâção-p~ar}fé:fo~_imeg(atâriiente ªgµ~la "mi-
foco"rnüriica-ção divina gÜe o homem "in~ti_1?:!l.Y~~-11te'~-~emp~--
. já experig1.enta na e~.P~!~ª11c:ia_t!ª.11~cende11tªl· da ~E~xé:l__ e.. q~f! s~--
manifesta precisamente
motaL no "miraculoso" e assim
-------------------------·-·········-· · ·-·- se·------···-------·········
evidencia co-
a) Nota prévia
Neste capítulo não pretendemos apresentar a teologia da
morte e ressurreição de Jesus tal como se encontra explicitamente
desenvolvida em Paulo, João e na carta aos Hebreus, ou tal co-
mo a apresenta o magistério da Igreja. No capítulo sétimo tra-
taremos expressamente desses dois aspectos. Poderemos então
313
tratar de ambos ao mesmo tempo, porque, não obstante a dife-
rença entre as cristologias e soteriologias neotestamentárias en-
tre si, e não obstante as cristologias do magistério da Igreja se-
rem novas e de outra índole pelo prisma conceituai, a cristolo-
gia e soteriologia "tardia" do Novo Testamento (ou seja, a cris-
tologia e soteriologia dos autores do Novo Testamento), por um
lado - com sua teologia explícita do Logos, com sua doutrina
da preexistência, com as afirmações do Jesus joanino em "eu",
com o emprego explícito de outros títulos de soberania, com as
soteriologias explícitas etc. - e a cristologia e soteriologia do
magistério da Igreja, por outro lado, em comparação com adi-
ferença entre o Jesus terreno, com a compreensão de sua morte
e ressurreição pelas primeiras testemunhas e as cristologias e so-
teriologias posteriores do Novo Testamento não apresentam di-
ficuldade de tipo diverso ou maior do que as apresentadas pela
primeira diferença, sendo sobretudo a segunda diferença men-
cionada a mais importante. A tradução mútua entre as cristolo-
gias e soteriologias neotestamentárias e a cristologia do magis-
tério da Igreja não representa, em conjunto, nenhum problema
especialmente difícil para nós hoje, por longa e complexa tenha
sido a história da tradução da cristologia e soteriologia "tardia"
do Novo Testamento para a posterior do Magistério. A legiti-
mação da cristologia e soteriologia "tardia" do Novo Testamento
perante o Jesus da história e a experiência original de sua pes-
soa e destino apresenta o mesmo grau de urgência e dificuldade
que o caso da cristologia do magistério da Igreja. Por isso aqui
nos ocupamos de imediato, antes de nos voltarmos para as cris-
tologias e soteriologias neotestarnentárias posteriores, somente
com a questão da cristologia que foi dada na primeira experiên-
cia dos discípulos com referência ao Jesus crucificado e ressus-
citado.
Inicialmente tentaremos estabelecer os pressupostos para en-
tender o núcleo da experiência originária de Jesus como o Cris-
to, e, urna vez estabelecidos estes pressupostos, voltar-nos-emos
para este núcleo da experiência originária, que constitui a reve-
lação original, indedutível e primeira da cristologia, que depois,
no Novo Testamento "tardio" e na doutrina do magistério da
Igreja, veio a ser interpretada de forma mais reflexa e articula-
da. Ao buscar, assim, com nossa pergunta, remontar para além
da cristologia neotestarnentária explícita, não quer dizer que, ao
fazê-lo não devamos nos deixar dirigir por essa cristologia de-
314
senvolvida. Desde a flor pode-se conhecer a raiz e vice-versa. o
fato de esse retorno à revelação mais originária (enquanto even-
to e experiência de fé) carregar sempre e inevitavelmente em si
também urna interpretação teológica que lhe é própria, não cons-
titui objeção contra o que pretendemos. Pois o círculo entre a
experiência originária e a interpretação não deve ser supresso,
mas haverá de se realizar de forma nova, da maneira mais com-
preensível que se possa.
O sentido da "ressurreição"
Não atinamos de início com o sentido da "ressurreição" em
geral e da de Jesus, ~e nos deixarmos orie11tar cl_~ iIIÍ<:qiat<> pelã _ _
idéia da revivificação de um cadáver físico-material. A ressur-
reiçao de que se trata ria vitória. de Jesus sobre a morte (à dife-
rença das ressurreições de mortos de que se fala no Antigo e no
Novo Testamento) aj_gJJ,ifica .a salvação definitiya perante Deus.... _
315
da existência humana concreta, salvação que é operada por Deus.
Sign.iffcia permanente validade real da história humana que nem
se prolonga no vazio riem perece. --x-esteiespeitcÇa füotle, -sem
a qüalriãO acoriféce essadefiriitividade, é exatamente a renún-
cia essencial e a recusa radical do modelo de representação do
"como" dessa situação definitiva, quer esta se refira ao "corpo"
quer à "alma espiritual" dessa única existência humana. Y!!l: se-
pulcro, que se constatou estar vazio, jamais poderá testemunhar,
enquanto tal e por sf sô; a existência e o sentido de resstirreiçãó.--
Podemõs--presdiidfr aqui da questão; que rião sé deve descartar
por princípio, acerca do estrato da tradição da ressurreição de
Jesus a que pertence a tradição do sepulcro vazio e que impor-
tância obtém aí. _f\._g:!_ssurre~ção não sigº-ifü:~ ~e início, perdu:-
ração salvificamente neutra da existência humana, mas o seu ser
assumida e salva- p-or-t)eus. 6 qÜe venha-àser à-iiitüãção daqiiê-=--
les cuja condição definitiva significa perdição, é outro proble-
ma que não se deveria resolver de maneira barata mediante a
construção de conceito de ressurreição. A partir daí, fica tam-
bém claro que não se pode separar "pessoa" e "causa" (da vida
terrena da pessoa), quando se trata de ressurreiçã() _e _cl_a i11J~:_
pretação desta Pl:!J-ª-vra__.'._ A palavra "ressurreição" há de ser in-
terpretada - e também no Novo Testamento é interpretada -
já pelo simples fato de que se faz necessário evitar idéia inade-
quada e falsa dela no sentido de retorno a uma vida biológica
no espaço e no tempo tal qual a vivemos aqui no mundo. Se
fosse assim erroneamente entendida, a ressurreição não poderia
ser a salvação que se acha sob a disposição incompreensível e
apenas esperada de Deus. A "causa" real, se não for idealistica-
mente ideologizada, é a "causa" exercida na existência concreta
da pessoa e, portanto, a validade da própria pessoa enquanto
permanentemente válida.
Portanto, se quiséssemos dizer que a ressurreição de Jesus
significa que com sua morte não termina sua "causa", devería-
mos então nos referir positiva e criticamente também ao que aca-
bamos de dizer, no sentido de evitar falsa compreensão idealis-
ta dessa "causa de Jesus", segundo a qual essa permanência da
causa seria apenas a validade e a força operante de idéia que
sempre se volta a reproduzir. Além disso, deveríamos nos per-
guntar como se evidencia nesse modo de falar que a causa de
Jesus, pelo menos no decorrer de sua vida e na sua auto-
interpretação, tenha estado indissoluvelmente vinculada à sua
316
pessoa, se, como parece insinuar esse modo de falar, ele próprio
tivesse sucumbido e só ainda sobrevivesse sua causa, que, na ver-
dade, então não seria sua. De mais a mais, é preciso afirmar e
frisar o seguinte: se a ressurreição de Jesus é a permanência de
sua pessoa e a validadede sui.causa_ e se (:~~ª P(:S_~_Qa:-causa não
significa a permanência de um homem e sua história, mas o ca-
ráter vitorioso de sua pretensão de ser o mediador absoluto da
salvação,-afé ria ressurreição" constitui então momento jºterp_o
dessa prõpria ressurreição e não a tõma9-a de <:<>nllecimento de
fato que por süa natureza poderia muito bem existir sem essa
tomada de conhecimento. Se -a iessurieição de-Jesus deve--ser -a
vitória escatológica da graça de Deus no mundo, não pode vir
a ser pensada sem de fato se ter alcançado (ainda que livremen-
te) a fé nessa ressurreição, na qual somente a natureza peculiar
da ressurreição chega à sua realização plena e consumada.
Neste sentido preciso, serenamente podemos e devemos di-
zer que Jesus ressuscita na fé dos seus discípulos. Mas essa fé,
para o interior da qÜal Jesus ressuscita, não é própria e direta-
mente a fé nessa ressurreição, mas aquela fé que se entende co-
mo libertação divinamente operada de todas as forças da fini-
tude, da culpa e da morte e que se entende capacitada para isso
em virtude de que essa liberdade em Jesus mesmo aconteceu e
e nele se nos manifestou. Se, segundo o que ainda exporemos,
a fé vale como nossa esperança em nossa "ressurreição", então
essa fé crê nesta ressurreição primeiramente acerca do próprio
Jesus e não substitui a ressurreição de Jesus por uma fé à qual
já não se possa atribuir nenhum "conteúdo" (pois que, em últi-
ma análise, a /ides qua e a /ides quae, o ato de fé e o conteúdo
da fé, podem estar dados juntos de forma inseparável; toda /i-
des qua, enquanto liberdade absoluta do sujeito procedente de
Deus e em orientação para ele, é já/ides quae na própria ressur-
reição, pelo menos implicitamente - cf. sobre isso o próximo
ponto).
Teses em síntese
Toda pessoa exerce, por necessidade transce?,dental, quer
na forma da livre aceitação, quer na forma da livre recusa, o
317
ato de esperança na sua própria ressurreição. Poís toda pessoa
quer afirmar-se de forma definitiva e faz a experiência dessa pre-
tensão no ato dê sua liberdade responsável, quer seja, quer não
capaz de temat:fz.ar--essaimpÜcação do exercício de sua liberda-
de, quer a acolha na fé, quer a rejeite no desespero. Ora, ares-
_surreição não constitui afirmação adventícia e adjetiva acêiêa
do destino de apenas parte secundária do homem, afirmação
que não se poderia conhecer - na esperança - desde a com-
preensão originária do homem, mas é__antes é:l pª1avra q~e a partir
da concretude do homem promete a validade permanente da úni-
ca e inteira exisfencia do homem. A .re_ssJureição da "carne'',_ que
é o· homem~ não significa ressurreição do corpo que o homem
·,em-com.õ_jim-de setj's coiiip-oriérites. Quando~-pófa, o homem
afirma sua existência como permanentemente válida e a ser re-
dimida, dessa forma não caindo no equívoco de um dualismo
antropológico platonizante, está afirmando na esperança sua res-
surreição. Não se pode dizer que com isso está sendo proposta
uma antropologia bem determinada, que seria condividida por
bem poucas autocompreensões efetivas dos homens, para assim
simplesmente poder já valer como pressuposto para a proposi-
ção acerca da esperança transcendental na ressurreição. Pois não
entendemos o homem em sentido particular (lado a lado com
outros sentidos não impossíveis de pensar em princípio), mas
consideramos o homem pelo prisma bastante "não-filosófico",
tal como ele é e se nos impõe como uno. Pois a _f~ na ressurrei-
ção não pré-julga absolutamente a questão mais precisa sobre
a inaneirà como as "partes". e "di1Il.ensões" do honiem-(que iia
verdade não se distinguem explicitamente) realizar-se-ão no seu
estado de definitividade. Essa fé veda apenas negativamente que
se excluam, por princípio, determinadas dimensões do homem
como se fossem irrelevantes para o seu estado de definitividade,
sem por isso apresentar positivamente determinações mais pre-
cisas acerca da maneira deste estado de definitividade de cada
uma das dimensões singulares em si mesmas.
A experiência da imortalidade
é "natural" ou "devida à graça"?
Aqui não é preciso distinguir em nossa reflexão o que nes-
sa experiência integra essência espiritual do homem e o que cons-
titui a graça, ou, com outras palavras, o tornar-se presente do
Deus eterno que, segundo a interpretação cristã, alcança seu pon-
to alto em Jesus Cristo, que na cruz foi pregado e nela venceu.
Podemos admitir (ainda que apenas no intuito de evitar, na re-
flexão proposta, a falsa aparência da prova racionalista da "imor-
talidade da alma") que a experiência, que estamos a evocar, busca
sua força e vigor na autocomunicação sobrenatural de Deus, que
confere radicalidade e profundidade últimas ao ato da liberda-
de moral, que estabelece a eternidade. Com isso, porém, na re-
lação recíproca, ainda que variável, de condicionamento entre
experiência transcendental da graça e experiência histórico-
salvífica, está dado de antemão que temos o direito e o dever
de investigar e nos perguntar pelo menos se não se tornou fato
concretamente apreensível, no plano histórico-salvífico, essa ex-
periência transcendental na graça de nossa eterna validade no
que se refere à pessoa moral. Deveremos nos perguntar se, des-
de a experiência categorial da história da salvação, não se con-
323
firma o que evidentemente, pois que somos os que ainda tere-
mos de morrer, só pode estar dado na experiência da realização
consumada de outro homem. A partir de genuína antropologia
do homem concreto, nessa questão não temos direito nem dever
de, em princípio, desmembrar o homem em dois "componen-
tes", reivindicando o estado de definitividade só para um deles.
Nossa pergunta pelo estado definitivo do homem identifica-se
inteiramente com a pergunta por sua ressurreição, veja-o ou não
claramente a tradição greco-platônica da doutrina eclesiástica.
Pressupõe-se, é claro, que não pensemos essa ressurreição como
retorno ao nosso espaço e tempo, no qual per definitionem não
se verifica nem se pode verificar a realização plena e acabada
do homem, porque este mundo de espaço e de tempo como tal
é o âmbito do devir da liberdade e responsabilidade pessoais,
e não o espaço do estado definitivo dessa responsabilidade pes-
soal.
Se assim consideramos a coisa, temos de dizer: a experiên-
cia transcendental da espera da própria ressurreição, que se po-
de alcançar a partir da essência do homem, constitui o horizon-
te de compreensão, em cujo interior somente se pode esperar e
experimentar algo assim como ressurreição de Jesus. É claro que
estes dois momentos da nossa existência - a experiência trans-
cendental da espera da própria ressurreição e a experiência
histórico-salvífica de fé na ressurreição de Jesus - condicionam-
se mutuamente. Talvez sem o olhar voltado para a ressurreição
de Jesus nunca conseguiríamos de fato interpretar-nos correta-
mente nessa nossa espera, mas também é certo, vice-versa, que
propriam1~nte só pode fazer a experiência da ressurreição de J e-
sus a pessoa que já fez por si mesma essa experiência.
e) A experiência da ressurreição
por parte dos primeiros discípulos
No sentido de comprovar a credibilidade do testemunho
apostólico da "ressurreição" de Jesus, devemos examinar ago-
ra, pressupondo o que até o momento dissemos, este testemu-
nho em si mesmo. Podemos, ao fazê-lo, conceder tranqüilamente
que as narrativas, que a um primeiro olhar se nos apresentam
como se narrassem pormenores históricos do próprio evento da
ressurreição ou das aparições, não se podem harmonizar total-
mente entre si, devendo, em conseqüência, interpretar-se como
revestimento plástico e dramatizante (de natureza secundária)
da experiência original de que "Jesus vive" e não como descri-
ções dessa experiência original. Essa - à medida que nos é aces-
sível - há de se interpretar, antes, segundo a nossa experiência
da potência do Espírito do Senhor vivo e não de maneira que
assemelhe demasiado essa experiência às visões místicas (de ti-
po imaginário) de épocas posteriores, nem entendendo-a como
experiência grosseiramente sensível - que na verdade não se dá
no caso de pessoa chegada a seu termo consumado ou glorifi-
cado - pressupondo-se que, se é que deve "mostrar-se" livre-
mente, então tudo nessa experiência deveria ser parte do âmbito
da normal experiência sensível profana.
A análise dos textos sobre a ressurreição, a começar pelas
fórmulas simples de confissão de fé (como, à guisa de exemplo:
"Ele foi ressuscitado") até aos textos que dramatizam a expe-
riência pascal sob as mais diversas perspectivas teológicas, evi-
dencia que os discípulos estavam conscientes da peculiaridade
específica da experiência pascal: dada desde "fora" e não pro-
duzida por eles mesmos (diversamente das experiências visioná-
rias muito conhecidas), referindo-se estritamente ao Crucifica-
do em sua individualidade bem determinada e seu destino, de
tal sorte que este é percebido como válido e redimido (e não só
327
uma pessoa existente à qual aconteceu outrora isto ou aquilo),
unicamente dada na fé e, não obstante, oferecendo a essa fé fun-
damento e razão; não como algo que se possa esperar e produ-
zir sempre de novo, mas reservado a determinada fase da histó-
ria da salvação e, em conseqüência, a ser necessariamente trans-
mitido à maneira de testemunho a outros, atribuindo assim a
essas testemunhas uma tarefa que é unicamente deles e de nin-
guém mais. Dá-se, pois, testemunho de experiência sui generis,
diferente da experiência de entusiasmo religioso ou de mística
que se podem suscitar e repetir. Pode-se negar fé a essas teste-
munhas. Mas não podemos fazê-lo aduzindo que entendemos
melhor sua experiência, alegando que essas testemunhas teriam
interpretado falsamente um fenômeno religioso a nós conheci-
do de outra fonte.
Pode-se dizer que não alcançamos "historicamente" a pró-
pria ressurreição de Jesus, mas apenas a convicção dos discípu-
los de que ele vive. Se por fato historicamente constatável en-
tendemos um fato que, por seu próprio estatuto, integra o âm-
bito de nossa empiria espácio-temporal e normal, ou seja, em-
piria que freqüentemente se vê diante de fenômenos de igual ti-
po, é óbvio que a ressurreição de Jesus não pode nem pretende
ser acontecimento "histórico", pois, se o fosse, não poderia cons-
tituir a superação da nossa história que marcha na direção e pa-
ra o interior da validade definitiva do seu resultado. Ao dizer-
mos que historicamente constatável é apenas a experiência pas-
cal subjetiva dos discípulos, não devemos pensar em "vivência"
qualquer, mas devemos dar atenção ao que precisamente os dis-
cípulos descrevem distinguindo-o daquilo a que estamos incli-
nados a pensar a respeito, e depois é que poderemos nos per-
guntar se temos razão de negar a nossa fé aos discípulos, inclu-
sive quando essa recusa, em nossa situação concreta, fosse con-
cretamente um não pronunciado contra a nossa própria espe-
rança transcendental na ressurreição.
Ao nível da teoria abstrata e dos conceitos, é muito bem
possível pensar como coexistentes um sim dado à nossa espe-
rança da ressurreição e um não dado à experiência apostólica
dessa ressurreição em Jesus. E essa é a razão pela qual existe
incredulidade não culposa com referência à ressurreição de Je-
sus. Mas a pergunta se entre nós hoje, tendo em vista uma his-
tória de fé de dois mil anos e dado o testemunho dos apóstolos,
isso é possível em cada indivíduo em particular, é problema de
328
decisão de cada um que hoje ouve a mensagem da ressurreição
de Jesus. Se essa mensagem é rejeitada de forma que com isso
se negue - quer se admita quer não - em desespero inconfes-
sado também a esperança transcendental na ressurreição, neste
caso essa atitude vem a se tornar um não dito a acontecimento
contingente, que a priori não se pode deduzir e do qual, portan-
to, se pode facilmente duvidar, não deixando contudo de ser um
não - quer se queira ou não, quer se saiba reflexamente ou não
- que se converte em ato contra a própria existência.
Afirmando-se esse entrelaçamento de nossa própria espe-
rança, transcendentalmente inevitável, na ressurreição e da fé na
ressurreição de Jesus, não se deve evidentemente eliminar a dis-
tinção que vigora entre a ressurreição de Jesus e a ressurreição
que esperamos para nós. De acordo com a compreensão da res-
surreição de Jesus no Novo Testamento, a sua ressurreição se
distingue da nossa pelo fato de que Jesus por ela foi constituído
"Senhor" e "Messias" (sem com isso negar que ele, desde a in-
tenção de Deus desde sempre já feita, o era desde o início de
sua existência, ainda que, em direção contrária, isso se tenha con-
sumado historicamente, de maneira real e para nós, em sua res-
surreição). Independentemente da questão da possibilidade de
harmonizar as afirmações do Novo Testamento sobre as apari-
ções do Ressuscitado, é comum ao Novo Testamento a convic-
ção de que a ressurreição é a exaltação de Jesus e o seu estabele-
cimento como juiz universal ou senhor, distinguindo-se assim
e nessa medida da ressurreição que esperamos para nós (aqui,
notemos apenas de passagem, está de permeio distinção seme-
lhante àquela que já mencionamos brevemente, a saber, a dis-
tinção entre o fato de sermos agraciados pela autocomunicaçâo
de Deus, que se deve afirmar também de Jesus, e a especial rela-
ção entre Deus e Jesus, que denominamos de união hipostática).
Notemos, por fim, que, segundo os sinóticos, Jesus afirma
como coisa óbvia, contra os saduceus liberais, e não como algo
de novo que ele haja de trazer, a fé em uma ressurreição de to-
dos, a qual um século e meio antes de Cristo se tinha imposto
vitoriosamente em Israel no meio das turbulências dos tempos
dos Macabeus, sendo na época de Jesus persuasão geral dopo-
vo. Não precisamos entrar aqui na questão sobre até que ponto
essa fé (sobretudo com referência a possível ressurreição de al-
gum profeta) teria oferecido horizonte bem coerente de compreen-
são para os discípulos de Jesus e sua experiência do Ressuscita-
329
do. Em todo caso, parece-nos que a fé genérica em futura e es-
perada ressurreição de todos os homens, que se acha no Novo
Testamento, nos autoriza, também a partir desta, a que insista-
mos num entrelaçamento interno entre a esperança transcendental
na ressurreição para nós e a fé na ressurreição de Jesus.
O ponto de partida
para a cristologia "tardia" do Novo Testamento
Assim sendo, Jesus é aquele que a teologia tardia do·Novo
Testamento e a cristologia da Igreja pretendem expressar. Ele é
o Filho e a Palavra de Deus (de imediato em sentido que é ante-
rior à idéia de um Filho-Logos preexistente, e que pode e deve
ser predicado de sua realidade humana como tal - naturalmente
em virtude de ter sido assumida por Deus como expressão de
si - sem com isso ceder a uma espécie de adocianismo ou a
dupla filiação tal como foi rejeitada pela cristologia clássica).
Pois ele não é "servo" na série interminável dos profetas com
missão sempre passageira, que jamais se pode identificar com
Deus mesmo, por mais que provenha de Deus. Ele é, portanto,
Filho. Não traz uma palavra da parte de Deus, que possa e deva
ser superada porque aí Deus ainda não se entregou inteira e de-
finitivamente. Ele é, portanto, a Palavra de Deus simplesmente,
que nos foi dita em tudo o que ele foi, disse e que depois na
ressurreição foi acolhido e confirmado definitivamente.
Pode-se expressar essa unicidade da relação entre Deus e
Jesus como se queira. A cristologia da Igreja, em sua formula-
ção clássica, constitui uma dessas maneiras, talvez a mais clara
e mais manuseável na vida comum eclesial e, no que quer dizer
e diz, também verdadeira. Mas (e mais tarde voltaremos a isso)
não se deve considerá-la a priori como a única possível, pois,
por um lado, ela não esgota o mistério e, portanto, se lhe po-
dem acrescentar outras informações que não constituam neces-
sariamente meras explicitações de suas fórmulas, e, por outro
lado, a dialética entre as afirmações particularizadas nela con-
tidas pode prolongá-las historicamente a partir do seu interior.
A isso acresce que já no Novo Testamento existem várias cristo-
logias (ainda que talvez rudimentares), que não são apenas va-
riações verbais do mesmo modelo fundamental em que se dá
a conhecer a convicção de fé de que o Ressuscitado concreto jun-
tamente com sua pretensão é a própria presença singular e insu-
perável do próprio Deus entre nós. Podem, pois, existir diversos
332
modelos de compreensão, terminologias diversas e diversos pon-
tos de partida para expressar a experiência de fé no Ressuscita-
do com sua singular prete-nsão. O pressuposto para toda e qual-
quer cristologia é que essa unicidade venha a ser salvaguardada
e fique clara, que essa relação única seja considerada como re-
lação entre Deus e Jesus na sua realidade e história reais (e não
só na "palavra" meramente pronunciada), uma vez que ele foi
assumido e permanece válido nessa concreta realidade.
Temos com isso um ponto de partida (e aqui não pretende-
mos mais do que isso) para uma cristologia relativa à unidade
entre a pretensão (historicamente constatável) de Jesus e a expe-
riência da sua ressurreição. Um ponto de partida para uma "cris-
tologia ascendente" (tal como ainda se pode perceber em mui-
tas passagens do Novo Testamento) que parte do Jesus históri-
co não porque ouve de seus lábios uma "teologia descedente do
Logos-Filho" e a vê confirmada na sua ressurreição, mas por-
que faz a experiência deste homem salvado juntamente com sua
pretensão dirigida a nós e aí ex