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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA A igualdade política ficou comprometida, pois


os direitos de votar e ser votado ficaram, de fato,
restritos à elite econômica.
CONTEXTO HISTÓRICO Com o Iluminismo temos uma transformação
que promoveu uma progressiva substituição das
O pensamento filosófico contemporâneo se crenças pela indagação racional como explicação para
desenvolve sob o pano de fundo intelectual do os fenômenos naturais.
otimismo da razão e a crença no progresso da Como vimos, os iluministas acreditavam que o
humanidade, reforçados pelos dois maiores uso sistemático da razão levaria o ser humano à
acontecimentos que moldaram o mundo ocidental. compreensão de todas as áreas do conhecimento e, por
A Revolução Industrial, não se restringiu à esse motivo, pregavam o uso da razão pura.
introdução de máquinas e aperfeiçoamento dos modos A razão seria a salvadora da humanidade,
de produção. Também representou o triunfo da tirando o homem das trevas que estava mergulhado
indústria, comandada pelo empresário capitalista que, para uma nova era de progresso tecnológico que
pouco a pouco, concentrou a propriedade das garantiria melhores condições de vida tanto material
máquinas, das ferramentas e das terras, transformando quanto espiritual.
populações inteiras em trabalhadores despossuídos e
recrudescendo o aumento da desigualdade social. 1. JEREMY BENTHAM E O ULTILITARISMO

Houve, a partir do século


XVIII (continuando pelo século
seguinte), uma busca para
controlar, medir e prever os
eventos, e principalmente, as
ações das pessoas, e essa procura
passava pela utilização de
métodos empregados pelas
ciências, ou seja, que eram
considerados científicos e corretos na época.
Mas, existiria uma “fórmula” para se saber o
que é certo ou errado? Haveria um modo de quantificar
A Revolução Francesa também merece as ações humanas? Seria possível uma “ciência” da
destaque porque trouxe reformas sociais. A França moral? Com o intuito de tentar responder tais
forneceu as ideias, o vocabulário do nacionalismo e os questionamentos, Jeremy Bentham (1748-1832),
temas da política liberal para a maior parte do mundo. filósofo inglês, escreveu uma vasta obra.
As exigências da burguesia foram delineadas na Bentham é tido como fundador da corrente
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de Utilitarista – que diz que toda ação deve ser medida
1789. O desejo primordial foi a formação de uma por sua utilidade – e é mais conhecido por estudiosos
sociedade democrática e igualitária. no campo do Direito e da Sociologia, devido aos seus
escritos sobre um sistema penitenciário.
O autor considerava a legislação de sua época
incompleta e apresentou uma proposta diferente para a
legislação inglesa.
Isso ocorreu num período em que grandes
acontecimentos tomaram o mundo, não só no campo
filosófico, mas também no econômico. Eventos como
a publicação da Declaração de Independência
Americana, a publicação do livro A Riqueza das Nações
de Adam Smith (1723-1790) em 1776, e a Revolução
Francesa (1789).
Além das propostas de mudanças nos campos
morais e legislativos, Bentham buscou trazer soluções e
Entretanto, ao final da Revolução Francesa, novas perspectivas para assuntos como educação e o
os anseios de igualdade social viram-se frustrados, pois sistema de presídios existentes.
a burguesia conservava a hegemonia política e, por esse Seus escritos sobre o projeto chamado
motivo, impunha os interesses de sua classe social. Panóptico, que era um modelo de prisão que poderia
servir também como escolas e hospitais, foi muito
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estudado, difundido e absorvido pela arquitetura das Os fenômenos sociais eram considerados
instituições modernas. passíveis de serem expressos por meio de leis. Durante
De acordo com Bentham, esse modelo deveria o período compreendido entre o final do século XVII
ser construído em uma área grande e ter o formato e o início do século XIX, houve uma maior valoração
circular, com várias células dispostas ao redor de uma dos métodos experimentais nos estudos relacionados às
grande torre de controle, onde os presos seriam ações humanas. Jeremy Bentham buscou à sua maneira,
observados e vigiados por guardas que não poderiam construir uma ciência da moral.
ser vistos. É importante salientar a relevância dada pelo
autor aos sentimentos de prazer e dor. Tais sentimentos
estão diretamente ligados às suas explicações de como
conhecemos as coisas no mundo real, pois Bentham
valoriza sobremaneira os sentidos.
Para o autor, só podemos considerar algo como
real se pudermos percebê-lo através dos nossos cinco
sentidos; caso não possamos perceber ou sentir essa
coisa, ela deve ser considerada como uma entidade
fictícia, ou seja, como não existente no mundo real, mas
sim, no mundo do discurso.
Então, para Bentham, prazer e dor deveriam ser
A ideia era construir uma sociedade de tratados como entidades reais, pois os conhecemos
indivíduos adestrados/controlados pela vigilância através dos nossos sentidos, e então somente o prazer
constante das instituições e dos próprios indivíduos. e a dor deveriam ditar o que devemos ou não fazer.
Todos devem “andar na linha” por causa do temor de No intuito de fornecer um guia de como os as
ter o seu comportamento reprovado/censurado pelo pessoas/legisladores deveriam agir e baseando-se no
olhar do outro. Princípio da Utilidade (onde toda ação deve ser tomada
No campo legislativo, Bentham publicou em visando a maior felicidade (prazer) para o maior
1789, justamente o ano da Revolução Francesa, sua número de pessoas), bem como em suas ideias de como
obra Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. o ser humano conhece algo no mundo real, Bentham
Nessa obra, Bentham dá ênfase às suas ideias a respeito construiu então, sua proposta de mensurar as ações
de política e governo, buscando apresentar um guia de humanas, o que foi chamado de “Cálculo da
como as ações morais e éticas deveriam ser tratadas e Felicidade”.
seguidas. Ele afirma que o prazer e a dor deveriam ser
Ele acreditava que as ações humanas poderiam “instrumentos” com os quais as pessoas/legisladores
ser abordadas da mesma maneira que os fenômenos deveriam agir/trabalhar, e saber a força de cada um, ou
que eram objetos da química ou da física. seja, saber o seu peso e valor seria de inegável
Para alcançar tal objetivo estabeleceu critérios importância.
para medir as forças que governavam as ações humanas, Ele defendia que, ao atribuir valores para os
que segundo ele era o prazer e a dor e assim, prazeres e dores, as pessoas/legisladores seriam capazes
desenvolveu um modo de mensurá-los incorporando- de agir de maneira mais justa e aplicar punições mais
os numa “ciência da moral”. justas, incorrendo no menor erro possível.
Com esse cálculo, seria possível que as opções
O surgimento do utilitarismo das pessoas (principalmente dos governantes) entre
uma ação e outra estivessem baseadas, não em simpatia
Durante esse período, as questões políticas e ou antipatia por determinado fim, mas sim em sua
morais deveriam seguir as leis e métodos da ciência. utilidade (causar a maior felicidade (prazer) para maior
Vimos que nessa época, a “Ordem Natural” descoberta número de pessoas).
por Isaac Newton (1643-1727) serviria como base não Sua proposta se mostra mais como um guia que
só para o mundo físico, mas também para o mundo nos orienta em uma dada situação, onde, se ao final
político e social. houver um número positivo – a ação é boa e deve ser
Muitos pensadores, durante esse período, executada, se houver um número negativo, não
fizeram propostas para tratar os assuntos relacionados devemos ir adiante.
com a política, a moral e a ética de maneira mais Apesar das possíveis dificuldades no método de
quantitativa. medir os prazeres e dores, a relevância da tentativa de
A utilização de métodos, de princípios e os Bentham está em sua busca por uma ferramenta que
conceitos advindos da física davam certa legitimidade proporcionasse as pessoas uma linha mestre para
aos estudos feitos em outras áreas atualmente pensar nas ações e como estas afetariam, tanto a vida
conhecidas como ciências humanas ou sociais. do indivíduo, quanto a vida de toda uma comunidade.
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2. O ROMANTISMO CONTRA A RAZÃO Não existe conhecimento sem o sujeito que


conhece. O objeto não consegue se manifestar, a não
A palavra “romântico” aparece pela primeira ser que a manifestação seja desenvolvida pelo sujeito.
vez na Inglaterra pela metade do século XVII para Esse ato de predominância do sujeito em
designar o fabuloso, o fantástico, o irreal. relação ao objeto é caracterizado como filosofia
Posteriormente, o termo “romantismo” passou a idealista. A ideia fundamental do idealismo que o objeto
indicar o renascer do instinto e da emoção, sufocados é uma simples acomodação do objeto.
pelo racionalismo prevalente do século XVIII. O objeto não tem consciência, sua manifestação
O romantismo designa o movimento espiritual é a apenas a revelação da sensibilidade da percepção
que, envolvendo não só a poesia e a filosofia, mas humana.
também as artes figurativas e a música, desenvolveu-se O que fez Fichte, apenas usou o eu kantiano e
na Europa entre o fim do século XVIII e a primeira transformou o mesmo, numa relação substancial com a
metade do século XIX. consciência, num princípio criador da realidade. O
A partir da Inglaterra, o movimento se expandiu espírito, com efeito, cria o que é real.
em toda a Europa, na França, na Itália, na Espanha, mas Nesse aspecto o mundo passa ser criação do
a manifestação paradigmática do romantismo foi em espírito e não da matéria. A partir desse princípio
todo caso a que surgiu na passagem entre o século elaborado, ele entende que a realidade é concebida pelo
XVIII e o XIX na Alemanha. espírito, e, não por ela mesma. O que significa na
Para os românticos, a natureza, subtraída prática, não existe realidade sem espírito.
inteiramente da concepção mecanicista-iluminista, Com efeito, o mundo evolui pelo espírito e não
entende-se como vida que cria eternamente, como pela materialidade da realidade, com essa lógica ele
grande organismo do todo afim ao organismo humano. funda a filosofia idealista, que significa para ele, a
A natureza é jogo móvel de forças que gera todos os realidade objetiva é um mero produto do espírito
fenômenos, compreendendo o homem e, portanto, esta humano.
força é a própria força do divino. Fichte sempre referiu as coisas do mundo
O romantismo foi caracterizado pela prático, mas que é exterior ao próprio homem, como
importância que em alguns sistemas filosóficos foi dada tudo aquilo que é determinado pelo não eu, mas criado
à intuição e à fantasia, em contraste com os sistemas pelo eu. Toda forma de criação só é possível pelo eu.
baseados unicamente sobre a fira razão, entendida Outro pensador
como único órgão da verdade. Nesse sentido, todo importante Friedrich
idealismo é uma filosofia romântica. Schelling (1775-1854), ele
procurou formular como se
3. IDEALISMO ALEMÃO dá no mundo prático a
relação entre a existência do
A gênese do idealismo alemão tem Johann mundo real, ao que se
Gottlieb Fichte (1762-1814) e Friedrich Schelling referem suas formas
(1775-1854) como seus principais fundadores e materiais, a partir exatamente
representantes. Mas é com Georg Wilhelm Friedrich do eu, pois o mesmo dizia
Hegel (1770-1831) que alcança a sua maior expressão, claramente sem o sujeito a matéria não existe.
sendo este, o grande filósofo de sua época e o de maior Ele discorda de Fichte em um ponto muito
influência no pensamento posterior. importante, ao que se refere à lógica abstrata, do mundo
O idealismo alemão foi um movimento como puro não-eu, essa acepção não existe para
filosófico muito específico e fundamental pelo menos Schelling, ou seja, a ideia de Fichte que a realidade
em parte para o desenvolvimento crítico do exterior é produto da imaginação do eu.
desenvolvimento da epistemologia, sobretudo, em Ele afirma a existência de um princípio único, a
referência ao movimento formulado por Kant. possibilidade da existência de Deus. Para ele todas as
A corrente idealista foi fundada pelo filosofo coisas que pertencem ao
Johann Gottlieb Fichte (1726-1814), a partir da mundo da natureza, e, que
filosofia de Kant. manifestam por meio dela,
Como já vimos, Kant afirma que para existir existe indiferente do sujeito,
conhecimento, é necessário a existência do sujeito, não se pode negar a
apenas ele pode conhecer todas as formas de objeto. materialidade da natureza.
O eu é princípio da consciência, ou seja, para É na razão humana
Kant apenas o sujeito pode ser o centro do que se encontra a
desenvolvimento do conhecimento. Em última consciência capaz de
instancia o conhecimento só poderá ser organizado entender essa realidade que é
pelo sujeito. exterior a mesma, ou seja, o espírito. Mas para Schelling
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existe uma consciência que rege todas as coisas, essa substância fixa e imutável, mas como sujeito, como
ideia corresponde com o conceito da existência de espírito, isto é, como atividade, processo,
Deus. automovimento.
Uma inteligência ou espírito, que manifesta e Para Hegel o espirito se autogera, gerando ao
concretiza o mundo real das coisas, ou seja, a realidade mesmo tempo a própria determinação e superando-a
dos objetos. Com efeito, o espírito operacionaliza no completamente. O espírito é infinito porque se atua e
mundo sensível na empiricidade do mundo e na sua se realiza sempre como infinito que põe e ao mesmo
manifestação. tempo supera o finito.
Esse é o ponto de vista é herdado por Hegel, o O espirito infinito hegeliano é como um círculo
maior idealista de todos os tempos. Ele chegou à em que princípio e fim coincidem de modo dinâmico,
seguinte conclusão, o movimento é produto das ideias, como um movimento em espiral em que o particular é
suas contradições se desenvolvem pelo mecanismo sempre posto e sempre dinamicamente resolvido no
abstrato da realidade, sendo que o mesmo é sempre universal.
solucionado pela lógica dos contrários. A história O espirito infinito hegeliano é algo que se
realiza-se pelo espírito, nos seus devidos saltos plasma a si mesmo de novo, mas em figuras sempre
antagônicos. diversas.
A importância dessa análise é que o O absoluto é uma igualdade que continuamente
conhecimento se desenvolve pela subjetividade do se diferencia para se reconstituir. Cada momento do real
espírito, a realidade não é entendida pelas contradições é momento necessário do absoluto, o qual se faz e se
da própria realidade como formaliza a teoria do realiza justamente em cada um e em todos estes
conhecimento derivada do materialismo histórico. momentos. O real é, portanto, um processo que se
autocria enquanto percorre seus momentos sucessivos,
4. HEGEL E O SABER ABSOLUTO
e em que o positivo é justamente o próprio movimento
como progressivo auto-enriquecimento.
O alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel O movimento próprio do espirito é o refletir-se
(1770 – 183) foi um dos filósofos de maior envergadura em si mesmo, uma reflexão circular em que Hegel
da modernidade. distingue três momentos:
As suas principais obras 1) o ser-em-si;
foram: 2) o ser-outro ou ser-fora-de-si;
1 - Fenomenologia do 3) o retorno a si ou ser-em-si-e-por-si.
espirito, (1806) O movimento autoprodutivo do absoluto tem,
2 - A Ciência da Lógica portanto, um ritmo triádico, que se repete
(1816); estruturalmente em todos os níveis do real e que no
3 - Enciclopédia das ciências próprio absoluto dá lugar a três momentos originários
filosóficas em compêndio (1818); e paradigmáticos:
4 - Princípios da filosofia do 1) a ideia em si, que é logos como racionalidade
direito (1821). pura (objeto da lógica);
A Fenomenologia do espirito, marcando no 2) a natureza, que é a ideia fora de si, isto é,
plano pessoal, além de no filosófico, a ruptura definitiva alienada (objeto da filosofia da natureza);
com Schelling, inaugura a fase madura do pensamento 3) o espírito em geral, que é a ideia que, a partir
hegeliano. da alienação, retorna a si e se torna em si e por si (objeto
da filosofia do espirito).
4.1 Os fundamentos do sistema Tudo é, portanto, desenvolvimento da ideia,
que suporta e supera sua negação, e a famosa frase de
Os núcleos conceituais a que todo o sistema Hegel “tudo aquilo que é real é racional e tudo aquilo que é
hegeliano pode ser referido, seguindo em concreto seu racional é real” indica justamente que a realidade é o
desenvolvimento até sua plena realização, são três: próprio desenvolver-se da ideia, e vice-versa.
1) a realidade enquanto tal é espírito infinito; Segundo Hegel, o único método em grau de
2) a estrutura é a própria vida do espírito e, garantir o conhecimento científico do absoluto, e de
portanto, também o procedimento com o qual se elevar assim a filosofia à ciência, é o método dialético,
desenvolve o saber filosófico, é a dialética; em virtude do qual a verdade pode finalmente receber
3) a peculiaridade desta dialética, bem diferente a forma rigorosa do sistema da cientificidade; ele se
de todas as formas precedentes de dialética, é o remete aqui à dialética clássica, conferindo porém
elemento "especulativo". movimento e dinamicidade às essências e aos conceitos
Um ponto de vista fundamental do pensamento universais que, já descobertos pelos antigos, haviam,
hegeliano é o de entender a verdade não como contudo, permanecido com eles em uma espécie de
repouso rígido, quase solidificados. O coração da
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dialética torna-se assim o movimento, e precisamente o E, “para construir o absoluto na consciência”, é


movimento circular ou em espiral, com ritmo triádico. preciso negar e superar as finitudes da consciência,
Os três momentos do movimento dialético são: elevando desse modo o eu empírico a Eu
1) A tese, que constitui o momento abstrato ou transcendental, a razão e espirito.
intelectivo; o intelecto e a faculdade que abstrai Mas nada disso pode ocorrer abruptamente. Na
conceitos determinados e se detém nessa determinação verdade, Hegel condenou drasticamente o "problema
própria do finito, considerando erroneamente que as do método" como fora posto desde Descartes até o
separações e definições assim obtidas sejam definitivas. próprio Kant, chegando até a expedir impiedosamente
2) A antítese, que constitui o momento o atestado de óbito desse problema, declarando-o como
dialético (em sentido estrito) ou negativamente racional; pertencente “a uma cultura ultrapassada”; não pode
o primeiro passo além dos limites do intelecto é haver “introdução” ao filosofar (como pretendia o
realizado negativamente pela razão, removendo a velho problema do método) que já não seja filosofar,
rigidez dos produtos intelectivos e levando luz a série nem introdução à ciência que já não seja ciência.
de contradições e de oposições que caracterizam o Hegel argumenta que pretender elaborar uma
finito. introdução à filosofia que preceda a filosofia seria como
3) A síntese, que constitui o momento pretender querer aprender a nadar antes de entrar na
especulativo ou positivamente racional; aqui a razão água. Entretanto, Hegel está convencido de que a
capta a unidade das determinações contrapostas, ou passagem da consciência comum para a consciência
seja, capta dentro de si o positivo emergente da síntese filosófica deve ocorrer de modo mediato e não de
dos opostos e se mostra ela própria como totalidade modo romanticamente imediato e, portanto, Hegel
concreta. também admite que exista uma espécie de “introdução
O momento “especulativo” é, portanto, a à filosofia”.
reafirmação do positivo que se realiza mediante a Ela, naturalmente, seria uma “introdução” ao
negação do negativo próprio das antíteses dialéticas e, filosofar, que é já ela própria um filosofar.
portanto, é uma elevação do positivo das teses a um
nível mais alto. 4.2.1.2 A passagem da consciência finita ao
Para Hegel, com efeito, a negação especulativa absoluto
não é uma aniquilação total, nem uma reserva definitiva,
mas é propriamente uma conservação daquilo que é Podemos até dizer que na Fenomenologia,
negado, e sua elevação a um nível superior é um seu entendida como caminho que leva ao absoluto, o
“enverdadeiramento” e uma sua “positivização”. homem está envolvido tanto quanto o próprio
O especulativo é, portanto, o vértice ao qual absoluto. Com efeito, no horizonte hegeliano, não
chega a razão, a dimensão do absoluto. Por existe o finito “separado” do infinito, o particular
conseguinte, as proposições filosóficas devem ser "afastado" do universal e, portanto, o homem não está
proposições especulativas, que exprimem o movimento afastado e separado do absoluto, mas é parte estrutural
dialético com o qual sujeito e predicado trocam entre si e determinante dele, porque o infinito hegeliano é o
as partes de modo a constituir uma identidade dinâmica. infinito-quase-faz-por meio-do-finito, e o absoluto é “o
Enquanto a proposição da velha lógica ser que reentrou eternamente em si pelo ser outro”.
permanece fechada nos limites rígidos do intelecto, a Trata-se, portanto, de urna "introdução" ou de
proposição especulativa é estruturalmente dinâmica uma propedêutica que constitui um momento, não só
como a realidade que ela exprime e como o pensamento da vida humana, mas também da vida do absoluto: a
que a formula. “fenomenologia do espirito” é o caminho que leva a
consciência finita ao absoluto infinito, que coincide
4.2 A fenomenologia do espírito com o caminho que o absoluto percorreu e percorre
para alcançar a si mesmo (o reentrar em si pelo ser-
4.2.1 Significado e finalidade outro).
Portanto, a Fenomenologia marca a passagem
4.2.1.1 O problema da passagem da consciência necessária e científica, como dissemos, e sua
comum para a razão metodologia não pode deixar de ser a mais rigorosa
metodologia cientifica, ou seja, a dialética.
Tudo o que destacamos, obviamente, implica
que o homem, no momento em que filosofa, eleva-se 4.2.1.3 A “fenomenologia” como história da
bem acima da consciência comum, ou seja, mais consciência do indivíduo e história do espírito
precisamente, que sua consciência se eleva à altura da
pura razão e que se coloca em perspectiva absoluta (ou Com base nessa premissa, torna-se fácil
seja, que adquire o ponto-de-vista-do absoluto). compreender o termo "fenomenologia" na acepção
hegeliana. O termo deriva do grego phaincimenon, que
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significa manifestar-se ou aparecer e, portanto, quer dizer Resumidamente, o itinerário fenomenológico


ciência do aparecer e do manifestar-se. Esse aparecer (e, percorre as seguintes etapas:
no sistema hegeliano, não poderia ser diferente) é o 1) Consciência (em sentido estrito);
aparecer do próprio espirito em diferentes etapas, que, 2) Autoconsciência;
a partir da consciência empírica, pouco a pouco se eleva 3) Razão;
a níveis sempre mais altos. 4) Espírito;
A fenomenologia, portanto, é a ciência do espirito, 5) Religião;
que aparece na forma do ser determinado e do ser 6) Saber absoluto.
múltiplo e que, em uma série sucessiva de “figuras”, ou A tese de Hegel é que toda consciência é
seja, de momentos dialeticamente relacionados entre si, autoconsciência; por sua vez, a autoconsciência se
alcança o saber absoluto. descobre como razão; por fim, a razão realiza-se
Na “fenomenologia do espirito”, como se plenamente como espírito, que, através da religião,
evidencia do que foi dito, existem dois planos que se alcança seu ponto culminante no saber absoluto.
interseccionam e se justapõem: Cada uma dessas etapas é constituída por
1) há o plano constituído pelo caminho diferentes momentos ou “figuras”. Hegel apresenta
percorrido pelo espirito para chegar a si mesmo ao cada um desses momentos ou cada uma dessas figuras
longo de todos os acontecimentos da história do de modo a mostrar que a sua determinação é
mundo que, para Hegel, é o caminho ao longo do qual inadequada e que, portanto, obriga a passar a seu
o espirito se realizou e se conheceu; oposto; este supera o negativo do anterior, mas, por sua
2) mas há também o plano próprio do simples vez, embora em nível mais elevado, também se mostra
indivíduo empírico, que deve percorrer novamente determinado e, portanto, inadequado, obrigando a
aquele mesmo caminho e apropriar-se dele. passar além e assim por diante, segundo o ritmo da
A história da consciência do indivíduo, dialética, que bem conhecemos.
portanto, outra coisa não pode ser senão o percorrer de Hegel diz que a mola dessa dialética
novo a história do espírito. A introdução fenomenológica está na desigualdade ou no desnível
fenomenológica à filosofia é o percorrer novamente entre a consciência ou o “eu” e seu objeto (que é o
esse caminho. “negativo”), e na superação progressiva dessa
Vejamos agora qual é o esquema desse itinerário desigualdade.
do espírito-que-aparece e da consciência que o percorre O momento culminante desse processo
de novo, e quais são algumas das “figuras essenciais do coincide com o momento no qual o espírito torna-se
espirito já depostas”. objeto para si mesmo.
Vejamos brevemente essas etapas da
4.2.2 A trama e as figuras da fenomenologia Fenomenologia.

4.2.2.1 As etapas do itinerário fenomenológico 4.2.2.2 A primeira etapa: a consciência (certeza


sensível, percepção e intelecto)
O espírito que se determina e aparece é a
consciência no sentido lato do termo, que significa A etapa inicial é constituída pela "consciência",
consciência de alguma coisa diversa (tanto interna como entendida acepção mais estrita, aquela que olha e
externa, e de qualquer gênero que seja). Consciência conhece o mundo como algo diferente e independente
indica sempre relação determinada entre um "eu" e um de si. Ela se desdobra em três momentos sucessivos: a)
"objeto", relação sujeito-objeto. A oposição sujeito- da certeza sensível, b) da percepção, c) do intelecto.
objeto, portanto, é característica distintiva da Cada um destes leva dialeticamente ao outro.
consciência. a) No momento da sensação, o particular
Ora, o itinerário da Fenomenologia consiste na aparece como verdade, mas aparece muito mais como
mediação progressiva dessa oposição, até sua total contraditório, a tal ponto que, para compreender o
superação. particular, é necessário passar para o geral.
Podemos, portanto, dizer também que o b) No momento da percepção, o objeto parece
objetivo que Hegel persegue na Fenomenologia é a ser a verdade; mas logo também ele é contraditório,
anulação da cisão entre consciência e objeto, com a porque se revela uno e muitos, ou seja, um objeto com
demonstração de que o objeto nada mais é do que o "si" muitas propriedades ao mesmo tempo.
da consciência, isto é, autoconsciência: a c) No momento do intelecto, o objeto aparece
autoconsciência que, de Kant em diante, se tornara o como um "fenômeno", produzido por forças e leis.
centro da filosofia, e que Hegel procura fundamentar Aqui, o sensível se resolve na força e na lei, que são
cientificamente, dela extraindo ao mesmo tempo as precisamente obras do intelecto; dessa forma, a
últimas consequências. consciência consegue compreender que o objeto depende
de alguma outra coisa, ou seja, do intelecto, e, portanto
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(de certo modo), de si mesma (o objeto se resolve no consciência, porque a consciência do senhor é a que
sujeito). Desse modo, a consciência torna-se comanda, enquanto o servo faz o que o senhor ordena.
autoconsciência (saber de si). Dessa forma, Hegel identifica perfeitamente o
poder dialético que deriva do trabalho.
4.2.2.3 A segunda etapa: a autoconsciência Diz ele: “Precisamente no trabalho, onde
(dialética do senhor-escravo, estoicismo-ceticismo parecia ser ela um significado estranho”, a consciência
e consciência infeliz) servil encontra-se a si mesma e encaminha-se para
encontrar seu significado próprio.
A segunda etapa do itinerário fenomenológico Mas a autoconsciência só alcança a plena
é constituída pela "autoconsciência", que, através dos consciência através das etapas sucessivas: b) do
diversos momentos, aprende a saber o que ela é estoicismo, c) do ceticismo, d) da consciência infeliz.
propriamente. b) O “estoicismo” representa a liberdade da
Inicialmente, a autoconsciência se manifesta consciência que, reconhecendo-se como pensamento,
como caracterizada pelo apetite e pelo desejo, ou seja, instala-se acima da senhoria e da escravidão, que, como
como tendência a se apropriar das coisas e fazer tudo sabemos, constituem para os estoicos meros
depender de si, a "tolher a alteridade que se apresenta "indiferentes". Mas, querendo libertar o homem de
como vida independente". Primeiro a autoconsciência todos os impulsos e de todas as paixões, o estoicismo o
exclui abstratamente de si toda alteridade, considerando isola da vida e, consequentemente, segundo Hegel, sua
o "outro" como não-essencial e negativo. Mas logo liberdade permanece abstrata, retrai-se para dentro de si
deve sair dessa posição porque se defronta com outras e não supera a alteridade.
autoconsciências e, consequentemente, nasce de modo c) O estoicismo translada-se dialeticamente para
necessário "a luta pela vida ou pela morte", por meio da o "ceticismo", que transforma o afastamento do
qual e somente por meio da qual a autoconsciência se mundo em atitude de negação do mundo. Mas, negando
realiza. tudo o que a consciência tinha como certo, o ceticismo,
Com efeito, segundo Hegel, toda por assim dizer, esvazia a autoconsciência, levando-a a
autoconsciência tem necessidade estrutural da outra e a autocontradição e cisão de si consigo mesma. Com
luta não deve ter como resultado a morte de uma das efeito, a autoconsciência cética nega as próprias coisas
duas, mas a submissão de uma a outra. que é obrigada a fazer e vice-versa: nega a validade da
a) Nasce assim a distinção entre “senhor” e percepção e percebe; nega a validade do pensamento e
“servo”, com a consequente “dialética”, que Hegel pensa; nega os valores do agir moral e, no entanto, age
descreve em páginas que se tornaram famosas, para as segundo tais valores.
quais principalmente os marxistas chamaram a atenção, d) A característica da cisão, implícita na
e que estão efetivamente entre as mais profundas e belas autocontradição do ceticismo, torna-se explícita na
da Fenomenologia. “consciência infeliz”, que é a consciência de si como
O “senhor” arriscou seu ser físico na luta e, na “duplicada” ou “desdobrada” e “no aspecto imutável e
vitória, tornou-se consequentemente senhor. O “servo” no aspecto mutável; o primeiro é considerado como
teve medo da morte e, na derrota, para salvar a vida coincidente com um Deus transcendente, e o segundo
física, aceitou a condição de escravidão e tornou-se com o homem”.
como que uma “coisa” dependente do senhor. A consciência infeliz, segundo Hegel, é o traço
O senhor usa o servo e o faz trabalhar para si, que caracteriza principalmente o cristianismo medieval.
limitando-se a “desfrutar” das coisas que o servo faz Essa consciência tem apenas consciência fragmentada
para ele. Mas, nesse tipo de relação, desenvolve-se um de si, porque procura seu objeto naquilo que é apenas
movimento dialético que acaba por levar a inversão dos um além inatingível: ela está instalada neste mundo, mas
papéis. Com efeito, o senhor acaba por se tornar está toda voltada para o outro (inatingível) mundo.
“dependente das coisas”, ao invés de independente, Para a consciência infeliz, toda aproximação à
como era, porque desaprende de fazer tudo o que o divindade transcendente significa uma própria
servo faz, ao passo que o servo acaba por se tornar mortificação e um sentir a própria nulidade.
independente das coisas, fazendo-as. A superação do negativo próprio dessa cisão
Além disso, o senhor não pode se realizar (isto é, segundo Hegel, o reconhecimento de que a
plenamente como autoconsciência, porque o escravo, transcendência na qual a consciência infeliz via a única
reduzido a coisa, não pode representar o polo dialético e verdadeira realidade não está fora, mas sim dentro
com o qual o senhor possa se confrontar dela) leva a uma síntese superior, que se realiza no plano
adequadamente (já se notou com razão que ser somente da “razão”.
senhor é muito menos do que ser pessoa
autoconsciente); ao contrário, o escravo tem no senhor
um polo dialético tal que lhe permite reconhecer nele a

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4.2.2.4 A terceira etapa: a razão mais é senão aquilo em que ela já está imersa: é o ethos
da sociedade e do povo em que vive.
A "razão" nasce no momento em que a
consciência adquire "a certeza de ser toda realidade". 4.2.2.5 A quarta etapa: o espírito
Essa a posição própria do idealismo.
As etapas fenomenológicas da razão (ou do A razão que se realiza em um povo livre e em
espírito que se manifesta como razão) são as etapas suas instituições é a consciência que se reúne
dialéticas progressivas da aquisição dessa certeza de ser intimamente a sua própria "substância ética", e isso é
toda coisa, ou seja, da aquisição da unidade de pensar e de ser. doravante o espirito.
Essas etapas repetem, em nível mais elevado, O espirito é o indivíduo que constitui um
como espiral que se eleva, em movimento que retorna mundo tal como ele se realiza na vida de um povo livre.
sempre sobre si, segundo círculos cada vez mais O espírito, portanto, é a unidade da autoconsciência "na
amplos, os três momentos examinados anteriormente. perfeita liberdade e independência" e, ao mesmo
O nível mais elevado consiste justamente no tempo, em sua oposição “mediata”.
fato de que agora, como razão, a consciência sabe ser O espírito é “eu que é nós, nós que é eu".
unidade de pensamento e de ser e, nesse nível, as novas Quem não tiver continuamente presente essa
etapas consistem precisamente em verificar essa dimensão intersubjetiva e social do espirito não poderá
certeza. E assim temos as três etapas: A) da "razão que compreender sequer uma palavra do que diz Hegel.
observa a natureza"; B) da "razão que age" e C) da Consequentemente, é claro que, durante todo o
"razão que adquire a consciência de ser espirito". curso do resto do itinerário fenomenológico, as
A) A "razão-que-observa-a-natureza" é "figuras" tornam-se "figuras de um mundo", etapas da
constituída pela ciência da natureza, que se move desde história, que nos mostram o espírito "alienado no
o princípio no plano da consciência de que o mundo é tempo", mas que, através dessa alienação, se realiza, se
penetrável pela razão, ou seja, é racional. reencontra e, por fim, se autoconhece.
Portanto, para poder-encontrar-a-si-mesma-no- As etapas fenomenológicas do "espírito" são:
seu-outro, a razão deve superar o momento "de A) o espirito em si como eticidade (como se
observação" e passar para o momento "ativo" ou exprime de modo paradigmático no mundo greco-
"prático", ou seja, para a esfera moral. romano);
B) A "razão-que-age" repete em nível mais B) o espirito que se alheia de si (que se cinde nas
elevado (isto é, no nível da certeza de ser toda coisa) o contradições, como acontece, por exemplo, no
momento da autoconsciência. O itinerário da razão Iluminismo e na Revolução Francesa que termina no
ativa consiste em começar a realizar-se, inicialmente, terror);
como individuo para, por fim, elevar-se ao universal, C) o espirito que readquire certeza de si.
superando os limites da individualidade e alcançando a
união espiritual superior dos indivíduos. 4.2.2.6 A quinta etapa: a religião
As etapas desse processo são indicadas por
Hegel nas “figuras”: A Fenomenologia apresenta ainda uma etapa, ou
a) do homem que busca a felicidade no prazer e seja, a "religião", através da qual chega-se ao saber
no gozo: absoluto. Já que deveremos falar sobre a concepção da
b) do homem que segue a lei do coração religião mais adiante, na filosofia do espirito, limitamo-
individual (como no sistema de Rousseau); nos aqui a alguns poucos acenos.
c) da virtude e do homem virtuoso. Mas de Na religião e em suas diferentes manifestações
modo ainda abstrato (como ocorre, por exemplo, nos o espírito toma consciência de si mesmo, “mas somente
personagens que gostariam de reformar o mundo, mas do ponto de vista da consciência, que tem consciência
que por sua qualidade abstrata entram em falência, da essência absoluta” e não ainda como autoconsciência
como Dom Quixote e Robespierre). absoluta do próprio absoluto, que será o ponto de vista
C) Síntese dos dois momentos anteriores, a do saber absoluto.
razão é dada pela autoconsciência que supera sua Pode-se também dizer que a religião é a
posição em relação aos outros e ao curso do mundo, autoconsciência do absoluto, mas ainda não perfeita, ou
encontrando neles seu próprio conteúdo. Esta fase seja, na forma da representação e não do conceito.
também se realiza em três momentos sucessivos: A forma mais elevada de religião para Hegel é o
a) o representado pelo homem inteiramente cristianismo, e nos dogmas fundamentais do
voltado para as obras que realiza; cristianismo ele vê os conceitos cardeais de sua filosofia:
b) o da razão legisladora; a encarnação, o reino do espírito e a trindade expressam
c) o da razão que examina ou critica leis. o conceito de espírito que se aliena para se auto possuir
Como momento conclusivo, nessa fase, a e que, no seu ser-outro, mantém a igualdade de si
autoconsciência descobre que a substância ética nada consigo, operando a síntese suprema dos opostos.
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4.2.2.7 A etapa conclusiva: o saber absoluto 2) Na lógica da essência temos o


desenvolvimento em profundidade dos vários termos
A superação da forma de conhecimento em seu “refletir-se” recíproco dirigido às raízes do ser.
“representativo” próprio da religião leva, por fim, ao Aqui se dão as discussões sobre princípios de
puro conceito e ao saber absoluto, ou seja, ao sistema identidade e de não-contradição, que por Hegel são
da ciência, que Hegel exporia na “Lógica”, na “Filosofia considerados como pontos de vista do intelecto
da natureza” e na “Filosofia do espírito”, como abstrato e unilateral A verdadeira identidade, com
veremos. efeito, inclui as diferenças, e a contradição é a raiz de
todo movimento e vitalidade.
4.3 A lógica 3) Na lógica do conceito o pensamento se atua
A Lógica começa e se desenvolve inteiramente na dimensão da circularidade. Cada termo prossegue no
no plano definitivamente ganho da Fenomenologia, isto outro até identificar-se dialeticamente com ele, e tudo é
é, no plano do saber absoluto, em que desapareceu toda um autodesdobramento do sujeito, o qual é toda a
diferença entre "certeza" (subjetividade) e "verdade" realidade.
(objetividade). Ela não é, portanto, um puro “organon”, O conceito, em sentido próprio, é o Eu penso
no sentido em que o era a Lógica formal, mas é o que se autocria e, autocriando-se, cria todas as
estudo da estrutura do Todo, no sentido que a determinações lógicas.
própria Lógica é o auto-estruturar-se do Todo. Mudam, por conseguinte, os significados de
A tese de fundo da Lógica hegeliana, que “juízo” e de “silogismo”, estreitamente ligados ao
retoma em sentido especulativo a posição de “conceito”.
Parmênides, é que “pensar” e “ser” coincidem. O O juízo coincide com a proposição especulativa
pensamento, em seu processo, realiza a si mesmo e o que exprime a identidade dinâmica de sujeito e
próprio conteúdo, e esta realização dialética é ao predicado, e indica o tornar-se-universal do singular; o
mesmo tempo, de modo sempre mais elevado, um silogismo representa depois a unidade dialética dos
“pensar o ser” e o “ser do pensamento”. A lógica três momentos da universalidade, particularidade e
coincide, portanto, com a ontologia (ou seja, com a singularidade, tríade que constitui a estrutura
metafísica). fundamental de toda coisa e de toda a realidade.
Em seu complexo, portanto, a Lógica é o reino A ideia lógica resulta, finalmente, como o
do pensamento puro, da verdade como ela é em si e por conceito que se auto-realiza plenamente e também a
si sem véu, é a exposição de Deus como Ele é em sua totalidade dos momentos desta realização.
eterna essência antes da criação do mundo e de todo
espírito finito. O Deus exposto pela Lógica é, portanto, 4.4 A filosofia da natureza
o elemento puro do pensamento (o logos) que, para se A passagem da ideia para a natureza é o ponto
tornar espírito, deve primeiro alienar-se na natureza e teórico mais problemático da filosofia de Hegel, sujeito
depois superar essa alienação. a diversas interpretações que surgem das próprias
O logos da Lógica deve também ser concebido afirmações ambíguas do filósofo a esse respeito. Isso
como desenvolvimento e processo dialético, e as depende principalmente do fato de que Hegel tem
diversas categorias por meio das quais pouco a pouco dificuldade de dominar as diversas sugestões que
se desenvolve podem ser consideradas como definições confluem sobre esse ponto:
sucessivas, sempre mais determinadas e mais ricas, do a) a processão dialética do neoplatonismo, que
absoluto. A “ideia lógica” e a totalidade de suas concebia o desenvolvimento da realidade em sentido
determinações conceituais em seu desdobramento triádico como manência, saída e retorno. Para ele, a
dialético. Ora, as três etapas fundamentais da Lógica natureza corresponde à “saída”;
são: b) o dogma da teologia cristã da criação;
1) Na lógica do ser a dialética procede em c) os dogmas da encarnação, paixão, morte e
sentido horizontal, mediante passagens que levam de ressureição de Cristo;
um termo a outro que absorve em si o precedente; seu d) a concepção tipicamente romântica do
início (que é o início absoluto da Lógica) é constituído tornar-se-estranho do espírito a si mesmo com o
pela tríade da primeira categoria (a qualidade): objetivo de tomar consciência de si e se realizar
a) ser; completamente.
b) não-ser;
c) tornar-se. 4.5 A filosofia do espírito
Em certo sentido, nesse início já está presente
todo o sistema especulativo hegeliano, justamente 4.5.1 O espírito e seus três momentos
porque todas as tríades sucessivas apenas exprimem o
absoluto de modo pouco a pouco sempre mais rico e O espirito é a “ideia que volta a si de sua
articulado. alteridade”. No espírito, sobretudo, torna-se manifesta
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aquela “circularidade” dialética sobre a qual Hegel como consciência de ser todas as coisas, é espírito,
chama seguidamente a atenção. Como momento ainda que não desdobrado inteiramente);
dialeticamente conclusivo, ou seja, como resultado do 3) a psicologia, que estuda o espírito teórico
processo (do autoprocesso), o espírito é a mais elevada (que conhece os objetos como alteridades), o espírito
manifestação do absoluto. prático (como atividade que modifica os objetos) e o
O “espírito” hegeliano é, portanto, o correlativo espírito livre, como síntese dos primeiros dois
filosófico daquilo que na religião é “Deus”. É o auto- momentos.
realizar-se e o autoconhecer-se de Deus.
Voltando à tríade ideia-natureza-espírito, 4.5.3 O espírito objetivo
diremos que a ideia é o mero conceito de saber e,
portanto, a “possibilidade lógica” do espírito; o espírito O espirito objetivo é o momento mais
é a atualização ou a realização dessa possibilidade. significativo e mais específico do hegelianismo, ou, pelo
O espírito é a atualização e autoconhecimento menos um dos mais característicos e interessantes.
vivos da ideia. Nesse sentido, o espírito não é último O espirito objetivo é o que se realiza nas
senão pelo nosso modo de nos exprimirmos, mas instituições da família, nos costumes e preceitos da
efetivamente é o primeiro, e, nessa ótica, ideia lógica e sociedade e nas leis do Estado, é o ethos que alimenta a
natureza devem ser vistas como momentos ideais do vida ético-politica, é a história-que-se-faz.
espírito não separados e não cindidos, mas como polos O espírito objetivo é o momento da realização
dialéticos dos quais o espirito é a síntese viva. da liberdade na ordem intersubjetiva, que pouco a
Também a filosofia do espírito (como toda pouco se amplia em graus e em momentos dialéticos
parte e momento do sistema hegeliano) é estruturada de sucessivos, que Hegel indica:
maneira triádica, sendo, portanto, dividida em três a) no "direito";
momentos: b) na "moralidade" e
1) um primeiro, em que o espírito está no c) na "eticidade".
caminho de sua própria auto-realização e A compreensão destes momentos nos fará
autoconhecimento (espírito subjetivo); compreender melhor o sentido do espirito objetivo
2) um segundo, em que o espírito se hegeliano.
autoconcretiza plenamente como liberdade (espírito
objetivo); 4.5.3.1 Os três momentos do espírito objetivo
3) um terceiro, em que o espírito se
autoconhece plenamente e se sabe como princípio e a) Diz Hegel que, para não permanecer
como verdade de tudo, e é como Deus em sua plenitude puramente abstrata, a vontade livre "deve dar-se uma
de vida e de conhecimento (espírito absoluto). existência", ou seja, concretizar-se.
E a matéria mais imediata em que isso ocorre é
4.5.2 O espírito subjetivo constituída pelas coisas e objetos externos. Desse
modo, nascem o “direito” e aquilo que a ele está ligado.
A ideia que retorna a si, portanto, é a emersão b) Mas essa forma de existência imediata é
do espírito, que inicialmente ainda se manifesta ligado a inadequada para a liberdade, precisamente por ser
finitude. Hegel explica, do modo que agora já imediata e exterior. Essa imediaticidade e exterioridade,
conhecemos bem, como a ideia infinita, que se faz portanto, devem ser negadas e superadas, ou seja,
espírito, ainda se encontra ligada ao finito no seu mediatizadas e interiorizadas, e disso nasce a
emergir da natureza. Não é o espírito que se manifesta moralidade, o segundo momento do espírito objetivo.
no finito, mas, ao contrário, é a finitude que aparece Nessa esfera, as coisas exteriores são inseridas
dentro do espírito. como indiferentes e o que conta é meu juízo moral,
E por que isso acontece? Trata-se, diz Hegel, de minha vontade, a forma de universalidade em que se
uma “aparência que o espírito põe diante de si como inspirou a regra do agir. Essa é a esfera da vontade
barreira, para poder, através da superação dessa subjetiva, da qual é exemplo paradigmático a ética
barreira, possuir e saber por si a liberdade como sua kantiana, que Hegel censura por ser unilateral, porque
essência”. encerra o homem em seu "interior". Essa
As etapas do espirito subjetivo são: unilateralidade, portanto, deve ser retirada e superada
1) a antropologia, que é o estudo da alma, mediante a realização externa e concreta da vontade.
considerada em sua fase inicial como o sono do espírito c) Entramos assim no momento da eticidade,
ou como o aristotélico “intelecto potencial”; que é a síntese dos dois momentos anteriores, ou seja,
2) a fenomenologia, que retoma algumas o momento em que o querer do sujeito se realiza
temáticas da grande obra homônima e que, por meio da querendo fins concretos, operando desse modo a
autoconsciência, leva da consciência à razão (a qual, mediação entre o subjetivo e o objetivo. Mas, por sua
vez, a eticidade se realiza dialeticamente nos três
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momentos: a) da "família"; b) da "sociedade" e c) do A história do mundo se desenvolve segundo um


"Estado". “plano racional” (que a religião reconhece com o nome
Os fins que a vontade livre quer na fase da de Providência), e a filosofia da história é a
eticidade, portanto, são os fins concretos postos pela consequência cientifica desse plano. Por conseguinte, a
realidade viva da família, indicados pela sociedade com filosofia da história torna-se "teodiceia", ou seja,
suas múltiplas exigências, queridos pelo Estado com conhecimento da justiça divina e justificação daquilo
suas leis. que aparece como mal diante do poder absoluto da
Entre as muitas páginas interessantes de Hegel razão.
relativas aos três momentos da eticidade, recordamos Segundo Hegel, aquilo que se apresenta como
particularmente as passagens sobre a família (que ele mal nada mais é que o momento negativo, que é a mola
mostra ser algo bem mais elevado do que um da dialética, de que falamos acima. Como crepúsculo
“contrato”, enquanto “síntese” ética, na qual o dado das coisas particulares, a morte nada mais é do que o
contratual é aquilo que a ele está ligado, como o sexo e contínuo fazer-se do universal. A própria guerra é o
o amor, encontram sua verificação em um ethos momento da “antítese” que move a história, a qual, sem
superior), e as passagens sobre a sociedade (nas quais guerras, registraria somente páginas em branco.
Hegel identifica o organismo social como intermediário Como se vê, o filósofo não se detém diante de
entre família e Estado de modo tão claro que a sua nada. De resto, uma vez afirmado que “a história é o
intuição, como alguns já notaram, pode ser considerada desdobrar-se da natureza de Deus em determinado
como o ponto cardeal da ciência social moderna). elemento particular", tudo segue como consequência. E
Quanto ao Estado, porém, devemos ampliar o é certamente na Filosofia do direito que se lê a célebre
discurso, já que é através do Estado e da dialética afirmação "tudo o que é real, é racional; tudo o que é racional,
instituída entre os Estados que se realiza a história, que, é real".
para Hegel, é verdadeira e própria teofania, ou seja, a Assim como na natureza, para quem afirma a
manifestação-realização do espirito objetivo. identidade entre Deus e natureza, toda coisa é
necessária e tem sentido absoluto, da mesma forma,
4.5.3.2 A natureza do Estado para Hegel, para quem pensa Deus e história, tudo é
necessário e todo acontecimento tem sentido absoluto.
Como síntese de direito e moralidade e como
possibilidade de ser da família e da sociedade, o Estado 4.5.3.4 A realização do espírito objetivo na história
é a própria ideia que se manifesta no mundo. Hegel diz
até que ele é “o ingresso de Deus no mundo”, um Mas vejamos corno, concretamente, o espirito
"Deus real". E isso é verdade até para o Estado mais objetivo se desdobra na história. Ele se particulariza
defeituoso, porque, por maior que seja, o defeito nunca como “espirito do povo”, como ele pouco a pouco se
chega a ponto de eliminar o positivo de fundo e, manifesta nos vários povos. Mas o espírito do povo é
portanto, nunca é capaz de invalidar o que foi dito. uma manifestação do “Espírito do mundo”.
Nessa concepção, o Estado não existe para o Também são momentos particulares do espírito
cidadão, mas o cidadão é que existe para o Estado. Em do mundo os “indivíduos cósmico-históricos”, os
suma, o cidadão só existe enquanto membro do Estado. grandes heróis, capazes de captar aquilo cuja hora é
Esta era uma concepção grega, que é retomada por chegada e levá-lo a termo. O que eles fazem não lhes
Hegel e levada às consequências extremas no contexto vêm do interior, mas do espírito que, por meio deles,
do seu idealismo. tece seus desígnios.
Com efeito, depois que o espírito serviu-se
4.5.3.3 A natureza da história e a filosofia da desses homens para seus objetivos, ele os abandona e
história então se tornam nada, como Napoleão, que, depois da
derrota, sobreviveu somente para definhar na pequena
Se o Estado é a razão que faz o seu ingresso no ilha de Elba e para morrer na distante ilha Santa Helena.
mundo, a história, que nasce da dialética dos Estados, E como se explicam as paixões mesquinhas que
nada mais é que o desdobramento dessa mesma razão: movem os homens e seus fins particulares? E como se
“a história é o desdobramento do espirito no tempo, do justificam as acidentalidades de vários gêneros? Hegel
mesmo modo que a natureza é o desdobramento da responde que o particular se “esgota” e se exaure já na
ideia no espaço”. sua luta contra o outro particular, dado que o particular
A história é o “juízo” do mundo e a filosofia da é sempre conflitivo. E assim ele se arruína, ruína da qual
história é o conhecimento e a revelação conceitual dessa emerge imperturbavelmente o universal.
racionalidade e desse juízo. A filosofia da história é a A razão universal faz as paixões irracionais e o
visão da história do ponto de vista da razão, particular agirem em seu benefício. Essa é a “astúcia da
contrariamente a visão tradicional, que era a visão razio”.
própria do intelecto.
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A história do mundo passa através de etapas 3) A terceira forma do espírito absoluto é,


dialéticas que assinalam um incremento progressivo de enfim, a filosofia. Com efeito, a religião na qual Deus é
racionalidade e de liberdade do mundo oriental ao inicialmente objeto externo para a consciência se revela
mundo greco-romano, e deste ao mundo cristão- depois no elemento interior, impelindo e preenchendo
germânico. a comunidade.
Nesta última fase, o espírito parece ter-se Hegel, portanto, conclui: “Desse modo,
realizado plenamente, conservando em suas unificam-se na filosofia os dois lados da arte e da
profundezas o passado como memoria, e concretizando religião: a objetividade da arte, que aqui certamente
no presente o conceito de si mesmo. Mas, se é assim, a perdeu a sensibilidade externa, mas encontrou
história está destinada a se deter na fase cristã- compreensão na forma suprema do objetivo, na forma
germânica? A dialética histórica se detém em do pensamento, e a subjetividade da religião, que é
determinado momento? purificada como subjetividade do pensamento".
É isso o que parece se dever concluir de tudo o É justamente este o esquema que Hegel seguiu
que Hegel diz, contrariamente ao que os princípios da ao traçar a síntese das três manifestações grandiosas do
própria dialética teriam necessariamente exigido. Trata- espírito, arte-religião-filosofia.
se de grande aporia, que repercutiria inclusive na
concepção de história de Marx. 4.5.4.3 As articulações dialéticas da arte, da
religião e da filosofia
4.5.4 O espírito absoluto Por fim, devemos recordar que:
1) A arte também é entendida e reconstruída
4.5.4.1 O “retorno a si mesma” da ideia segundo etapas dialéticas:
a) arte oriental;
Depois de se realizar-se na história como b) arte clássica;
liberdade, a ideia conclui seu "retorno a si” no c) arte romântica.
autoconhecer-se absoluto. O espírito absoluto, 2) Também na religião distinguem-se três
portanto, é a ideia que se autoconhece de maneira momentos:
absoluta. E esse autoconhecimento é o a) religião oriental;
autoconhecimento de Deus, no qual, porém, o homem b) religião grega;
desempenha papel essencial. Ao mesmo tempo, Hegel c) religião cristã.
abaixou Deus ao homem e elevou o homem a Deus. 3) A própria filosofia (que vem a coincidir com
a história da filosofia) também é vista desdobrando-se
4.5.4.2 As formas de auto saber-se do espírito: arte, nos três momentos:
religião e filosofia a) da antiguidade grega;
b) da cristandade medieval;
Esse auto-saber-se do espírito não é uma c) da modernidade germânica.
intuição mística, e sim um processo dialético; por isso, Em todos esses desdobramentos histórico-
é processo triádico, que se realiza: 1) na arte; 2) na dialéticos, sobretudo duas coisas chamam a atenção: em
religião; 3) na filosofia. Essas são, portanto, três formas primeiro lugar, a evolução pareceria cessar com a
por meio das quais conhecemos Deus e Deus se terceira fase, na qual tudo pareceria chegar a seu termo;
conhece. em segundo lugar, a história da filosofia, de Tales a
Elas se realizam, respectivamente: Hegel, apresenta-se como grandioso teorema, que se
1) através da intuição sensível (estética); desdobra no tempo e no qual cada sistema constitui
2) através da representação da fé; uma “passagem” necessária. E esse teorema parece
3) através do conceito puro. encontrar sua própria conclusão precisamente na
Eis como Hegel caracteriza, de modo claro e filosofia de Hegel.
preciso, estes três momentos dialéticos da filosofia do Na filosofia de Hegel – em certo sentido - é o
espírito. próprio Deus que se autoconhece, e, conhecendo-se,
1) "A forma da intuição pertence à arte, de atua todas as coisas. Em suma, sob muitos aspectos a
modo que a arte é que apresenta a consciência à verdade filosofia pareceria ter alcançado seu ápice no sistema de
sob forma sensível, que tem nessa sua aparência um Hegel.
sentido e um significado mais elevados, mais
profundos".
2) O âmbito seguinte, que ultrapassa o reino da
arte, é o da religião. A religião tem como forma de sua
consciência a representação, enquanto o absoluto é
transferido da objetividade da arte para a interioridade
do sujeito.
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5. ARTUR SCHOPENHAUER 5.1.2 Os componentes da representação: sujeito e


objeto
Entre os adversários de Hegel, Schopenhauer
foi provavelmente - se excetuarmos Kierkegaard - o O mundo é representação. E a representação
mais apaixonadamente envolvido, a ponto de chegar a tem duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis,
qualificar o próprio Hegel como um "acadêmico que são o objeto e o sujeito.
mercenário", e seu pensamento como uma "palhaçada O sujeito da representação é “o que tudo
filosófica”. conhece, sem ser conhecido por ninguém [...]. O
sujeito, portanto, é o sustentáculo do mundo, a
condição universal, sempre subentendida, de todo
fenômeno e de todo objeto: com efeito, tudo o que
existe só existe em função do sujeito”.
O objeto da representação, aquilo que é
conhecido, é condicionado pelas formas a priori do
espaço e do tempo, por meio das quais se tem a
pluralidade, pois toda coisa existe no espaço e no tempo.
O sujeito, ao contrário, está fora do espaço e do
tempo, é inteiro e individual em cada ser capaz de
representação, razão pela qual “até um só desses seres,
juntamente com o objeto, basta para constituir o
mundo como representação, tão completo como
É a filosofia submissa dos charlatães, para os
milhões de seres existentes; ao contrário, o
quais o estipêndio e o ganho são as coisas mais
desvanecimento desse único sujeito levaria ao
importantes, Schopenhauer opôs a própria "verdade
desvanecimento do mundo como representação”.
não remunerada", verdade que apresentou em sua obra
O sujeito e o objeto, portanto, são inseparáveis,
maior, O mundo como vontade e representação, publicada em
também para o pensamento; cada uma das duas
1819 com 33 anos.
metades “não tem sentido nem existência senão por
meio da outra e em função da outra, ou seja, cada uma
5.1 O mundo como representação
existe com a outra e com ela se dissipa”.
5.1.1 Uma verdade antiga
5.1.3 Superação do materialismo e do realismo e
revisão do idealismo
Escreve Schopenhauer no início de sua obra
Segue-se daí que o materialismo está errado por
maior:
negar o sujeito, reduzindo-o a matéria, e o idealismo - o
“O mundo é uma representação minha, eis uma verdade
de Fichte, por exemplo - está errado também porque
válida para todo ser vivo e pensante, ainda que só o homem possa
nega o objeto, reduzindo-o ao sujeito. No entanto, o
alcançá-la por consciência abstrata e reflexa. Quando o homem
idealismo, depurado dos absurdos elaborados pelos
adquire essa consciência, o espirito filosófico entrou nele. Então,
“filósofos da Universidade” é irrefutável: o mundo é
sabe com clara certeza que não conhece o sol nem a terra, mas
representação minha e “é preciso ser abandonado por
somente que tem um olho que vê o sol e uma mão que sente o
todos os deuses para imaginar que o mundo intuitivo,
contato de terra; sabe que o mundo circunstante só existe como
posto fora de nós, tal como preenche o espaço em suas
representação, isto é, sempre e somente em relação com outro ser,
três dimensões, movendo-se no inexorável curso do
com o ser que o percebe, com ele mesmo”.
tempo, regido a cada passo pela indeclinável lei da
Para Schopenhauer, nenhuma verdade é mais
causalidade, existe fora de nós com absoluta realidade
certa, mais absoluta e mais flagrante do que essa. Que o
objetiva, sem qualquer concurso de nossa parte; e que,
mundo seja uma representação nossa, segundo a qual
depois, por meio das sensações, entra em nosso
nenhum de nós pode sair de si mesmo para ver as coisas
cérebro, onde começaria a existir uma segunda vez,
como elas são, de que tudo aquilo de que temos
assim como existe fora de nós”.
conhecimento certo se encontra dentro da nossa
Em suma, Schopenhauer é contrário tanto ao
consciência, é a “verdade” da filosofia moderna, de
materialismo (que nega o sujeito, reduzindo-o à
Descartes a Berkeley.
matéria), como ao realismo (segundo o qual a realidade
E é uma verdade antiga, como se pode constatar
externa se refletiria naquilo que está em nossa mente).
pela filosofia vedanta, segundo a qual a matéria não tem
O mundo como nos aparece em sua imediaticidade, e
existência independente da percepção mental, e a
que é considerado como a realidade em si, na verdade é
existência e a perceptibilidade são termos conversíveis
um conjunto de representações condicionadas pelas
entre si.
formas a priori da consciência, que, para Schopenhauer,
são o tempo, o espaço e a causalidade.
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5.1.4 Espaço, tempo e causalidade intuições espaciotemporais, captando assim os nexos


Como já mostrava Kant, espaço e tempo são entre os objetos e as leis do seu comportamento.
formas a priori da representação: toda a nossa sensação Mas, ainda que sendo esse o modo como as
e percepção de objetos é espacializada e temporalizada. coisas se passam, o intelecto não nos leva além do
E é sobre essas sensações e percepções especializadas e mundo sensível. Como representação, portanto, o
temporalizadas que, depois, o intelecto entra em ação, mundo é fenômeno e, por isso, não é possível uma
ordenando-as em cosmo cognoscitivo mediante a distinção real e clara entre o sonho e a vigília: o sonho
categoria da causalidade. tem somente menos continuidade e coerência do que a
Schopenhauer reduz as doze categorias vigília.
kantianas unicamente à categoria da causalidade. É por Há estreito parentesco entre a vida e o sonho e,
meio da categoria da causalidade que os objetos diz Schopenhauer, “nós não nos envergonhamos de
determinados espacial e temporalmente, que acontecem proclamá-lo, tantos foram os grandes espíritos que o
aqui ou alhures, neste ou naquele momento, são postos reconheceram e proclamaram”.
um como determinante (ou causa) e outro como Os Vedas (textos sagrados mais antigos em
determinado (ou efeito), de modo que "toda a existência sânscrito) e os Puranas (uma antologia de textos
de todos os objetos, enquanto objetos, representações sagrados indianos de caráter religioso e ético) chamam
e nada mais, em tudo e por tudo encabeça aquela sua a consciência do mundo de "o véu de Maya"; Platão
necessária e intercambiável relação". afirma que os homens vivem no sonho; Píndaro diz que
O mundo, portanto, é uma representação "o homem é o sonho de uma sombra"; Sófocles
minha, e a ação causal do objeto sobre os outros objetos compara os homens a simulacros e sombras leves;
é toda a realidade do objeto. Shakespeare sentencia que "nós somos da mesma
É compreensível, portanto, a importância que matéria de que são feitos os sonhos e nossa vida breve
Schopenhauer atribui ao princípio da causalidade, cujas é circundada por sono"; e, para Calderón, “a vida é
diversas formas determinam as categorias dos objetos sonho”.
cognoscíveis: Seguindo as pegadas desses pensadores e pela
1) o princípio de razão suficiente do devir precisa razão de que “o mundo é uma representação
representa a causalidade entre os objetos naturais; minha”, Schopenhauer escreve que “a vida e os sonhos
2) o princípio de razão suficiente do conhecer são páginas do mesmo livro”.
regula as relações entre os juízos, pelos quais a O mundo como representação não é a coisa em
veracidade das premissas determina a das conclusões; si, é fenômeno, “é um objeto para o sujeito”. Mas
3) o princípio de razão suficiente do ser regula Schopenhauer não fala, como Kant, do fenômeno
as relações entre as partes do tempo e do espaço e como de representação que não diz respeito e não pode
determina a concatenação dos entes aritméticos e captar o númeno, isto é, a coisa em si. Para
geométricos; Schopenhauer, o fenômeno, aquilo de que fala a
4) o princípio de razão suficiente do agir regula representação é ilusão e aparência, é aquilo que, na
as relações entre as ações e seus motivos. filosofia hindu, chama-se o “véu de Maya”, que cobre a
Para Schopenhauer, são essas as quatro formas face das coisas.
do princípio de causalidade, quatro formas de Para Kant, em suma, o fenômeno é a única
necessidade que estruturam rigidamente todo o mundo realidade cognoscível, mas, para Schopenhauer, o
da representação: necessidade física, necessidade lógica, fenômeno é a ilusão que envolve a realidade das coisas
necessidade matemática, necessidade moral. em sua essência primigênia e autêntica.
Esta última necessidade, pela qual o homem,
como o animal, age necessariamente com base em 5.2.2 O corpo como vontade tornada visível
motivos, exclui a liberdade da vontade: como
fenômeno, o homem submete-se à lei dos outros Pois bem, na opinião de Schopenhauer pode-se
fenômenos, ainda que, como veremos, não se reduza ao alcançar essa essência da realidade, o númeno que, para
fenômeno, tendo a possibilidade, ligada a sua essência Kant, permanece incognoscível.
numênica, de reconhecer-se livre. Ele compara o caminho que leva à essência da
realidade a uma espécie de passagem subterrânea que,
5.2 O mundo como vontade traiçoeiramente, leva precisamente ao interior daquela
fortaleza considerada inexpugnável por fora.
5.2.1 O mundo como fenômeno é ilusão Com efeito, o homem é representação e
fenômeno, mas não é apenas isso, uma vez que também
O mundo, portanto, é urna representação é sujeito que conhece. Além do mais, o homem também
minha ordenada pelas categorias do espaço, do tempo é “corpo”.
e da causalidade. O intelecto ordena e sistematiza, Entretanto, o corpo é dado ao sujeito que
através da categoria da causalidade, os dados das conhece de dois modos inteiramente diversos: de um
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lado, como representação, e como objeto entre objetos, seres que, premidos por impulso cego e irresistível,
submetido as suas leis; por outro lado, "é dado como lutam um contra o outro para se imporem e dominarem
algo de imediatamente conhecido de cada um e que é o real.
designado pelo nome de vontade. Todo ato real de sua Essa dilaceração, essa luta sem trégua e sem fim,
vontade, infalivelmente, é sempre e também aguça-se na ação consciente do homem, subjugando e
movimento de seu corpo; o sujeito não pode querer explorando a natureza, por um lado, e no cruel conflito
efetivamente um ato sem constatar ao mesmo tempo entre os diversos egoísmos indomáveis, por outro.
que este aparece como movimento de seu corpo. O ato Em poucas palavras, “a vontade é a substância
volitivo e a ação do corpo são uma só e mesma coisa, íntima, o núcleo de toda coisa particular e do todo; é
que nos é dada de dois modos essencialmente diversos: aquela que aparece na força natural cega e aquela que se
por um lado, imediatamente; por outro lado, como manifesta na conduta racional do homem. A enorme
intuição pelo intelecto". diferença que separa os dois casos não diz respeito
O corpo é, portanto, vontade tornada visível. senão ao grau da manifestação; a essência do que se
Sem dúvida podemos olhar nosso corpo e falar dele manifesta permanece absolutamente intacta".
como de qualquer outro objeto - e, nesse caso, ele é
fenômeno. Mas é por meio de nosso corpo que 5.3 Dor, libertação e redenção
sentimos que vivemos, experimentamos prazer e dor e
percebemos o anseio de viver e o impulso de 5.3.1 A vida como dor e tédio
conservação. E é por meio do próprio corpo que cada A essência do mundo é vontade insaciável. A
um de nós sente que "a essência intima do próprio vontade é conflito e dilaceração e, portanto, dor. E “a
fenômeno não é mais que sua vontade, que constitui o medida que o conhecimento torna-se mais distinto, e
objeto imediato de sua própria consciência". que a consciência se eleva, cresce também o tormento,
E essa vontade não se enquadra no modo de que alcança no homem o grau mais alto, tanto mais
conhecimento em que sujeito e objeto se contrapõem elevado quanto mais inteligente é o homem; o homem
um ao outro, "mas se nos apresenta por via imediata, na de gênio é o que sofre mais".
qual não se pode mais distinguir claramente entre A essência da natureza inconsciente é aspiração
sujeito e objeto". constante, sem objetivo e sem repouso. E, ao mesmo
tempo, a essência do animal e do homem é querer e
5.2.3 A vontade como essência de nosso ser aspirar: sede inextinguível. E “o homem, sendo a
A essência do nosso ser é, portanto, vontade; a objetivação mais perfeita da vontade de viver, é também
imersão no profundo de nós mesmos faz com que o mais necessitado dos seres; nada mais é que vontade
descubramos que somos vontade. Mas, ao mesmo e necessidade, de modo que se poderia defini-lo até
tempo, essa imersão rompe o "véu de Maya" e faz com como concretude de necessidades”.
que nos vejamos como partes daquela vontade única, A vida é necessidade e dor. Se a necessidade é
daquele "cego e irresistível ímpeto" que permeia, se satisfeita, então mergulhamos na saciedade e no tédio.
agita e se esquadrinha por todo o universo. Segue-se daí que a vida humana oscila, como pêndulo,
Em outras palavras, a consciência e o entre a dor e o tédio. Dos sete dias da semana, seis são
sentimento de nosso corpo como vontade levam-nos a dor e necessidade, e o sétimo é tédio.
reconhecer que toda a universalidade dos fenômenos, Schopenhauer sustenta que, no fundo, o
embora tão diversos em suas manifestações, tem uma homem é um animal selvagem e feroz. Conhecemos o
só e idêntica essência: aquela que conhecemos mais homem somente naquele estado de mansidão e
diretamente, mais intimamente e melhor do que domesticidade chamado civilização, mas basta um
qualquer outra, aquela que, em fulgida manifestação, pouco de anarquia para que nele se manifeste a
toma o nome de vontade. verdadeira natureza humana: "O homem é o único
É essa, portanto, a reflexão que torna possível animal que faz os outros sofrerem pelo único objetivo
ultrapassar o fenômeno e chegar a coisa em si. O de fazer sofrer".
fenômeno é representação e nada mais; “coisa em si é Substancialmente, o que é positivo, ou seja, real,
somente a vontade, que, a esse título, não é de modo é a dor; ao passo que o que é negativo, ou seja, ilusório,
nenhum representação; ao contrário, dela difere é a felicidade. E a dor e a tragédia não são somente a
totalmente”. essência da vida dos indivíduos, mas também a essência
Os fenômenos, ligados ao princípio de da história de toda a humanidade.
identificação que é o espaço-tempo, são múltiplos, ao A vida é dor e a história é acaso cego. O
passo que a vontade é única. progresso é uma ilusão. A história não é, como pretende
E é cega, livre, sem objetivo e irracional. É a Hegel, racionalidade e progresso; todo finalismo e
insaciabilidade e a eterna insatisfação que darão lugar a qualquer otimismo sio injustificáveis.
uma cadeia ascensional de seres nas forças da natureza,
no reino vegetal, no reino animal e no reino humano,
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5.3.2 A libertação por meio da arte instantes breves e raros. Consequentemente, a


O mundo como fenômeno é representação. libertação da dor da vida e a redenção total do homem
Mas, em sua essência, é vontade cega e irrefreável, devem ocorrer por outro caminho. E este é o caminho
perenemente insatisfeita, dilacerando-se entre forças da ascese.
contrastantes. Todavia, quando o homem,
aprofundando-se em seu próprio íntimo, consegue 5.3.3 Ascese e redenção
compreender isso, ou seja, que a realidade é vontade e A ascese significa que a libertação do homem
que ele próprio é vontade, então está pronto para sua em relação ao alternar-se fatal da dor e do tédio só pode
redenção, e esta só pode se dar "com o deixar de se realizar suprimindo em nós mesmos a raiz do mal,
querer". isto é, a vontade de viver. E o primeiro passo para tal
Em suma, na opinião de Schopenhauer, só supressão se verifica pela realização da justiça, ou seja,
podemos nos libertar da dor e do tédio e nos subtrair à mediante o reconhecimento dos outros como iguais a
cadeia infinita das necessidades mediante a arte e a nós mesmos.
ascese. Entretanto, a justiça golpeia o egoísmo, mas
Com efeito, na experiência estética, o indivíduo leva-me a considerar os outros como distintos de mim,
separa-se das cadeias da vontade, afasta-se de seus como diferentes de mim.
desejos, anula suas necessidades, deixando de olhar os E, por isso, não acaba com o princípio do
objetos em função de eles lhe poderem ser úteis ou individualismo que fundamenta meu egoísmo e me
nocivos. Na experiência estética, o homem se aniquila contrapõe aos outros. É preciso, portanto, ultrapassar a
como vontade e se transforma em puro olho do justiça e ter a coragem de eliminar toda distinção entre
mundo, mergulha no objeto e esquece-se de si mesmo nossa individualidade e a dos outros, abrindo os olhos
e de sua dor. para o fato de que todos nós estamos envolvidos na
E esse puro olho do mundo já não vê objetos mesma desventura.
que têm relações com outras coisas, não vê objetos úteis Esse passo ulterior é a bondade, o amor
ou nocivos, mas percebe ideias, essências, modelos das desinteressado para com seres que carregam a mesma
coisas, fora do espaço, do tempo e da causalidade. A cruz e vivem nosso mesmo destino trágico. Bondade,
arte expressa e objetiva a essência das coisas. E, portanto, que é compaixão, sentir a dor do outro por
precisamente por isso, ajuda-nos a nos afastarmos da meio da compreensão de nossa própria dor: "Todo
vontade. O gênio capta as ideias eternas e a amor é compaixão".
contemplação estética mergulha nelas, anulando aquela E é precisamente a compaixão que
vontade que, tendo optado pela vida e pelo tempo, é Schopenhauer insere como fundamento da ética. Em
somente pecado e dor. todo caso, porém, também a piedade, isto é, o
Em suma, na experiência estética não estamos compadecer, ainda é padecer.
mais conscientes de nós mesmos, mas somente dos E o caminho para erradicar de modo decisivo a
objetos intuídos. A experiência estética é a anulação vontade de viver e, portanto, a dor, é o caminho da
temporária da vontade e, portanto, da dor. Na intuição ascese, aquela ascese que faz Schopenhauer sentir-se
estética, o intelecto rompe sua servidão à vontade, próximo dos sábios hindus e dos santos ascetas do
deixando de ser o instrumento que procura os meios cristianismo.
para satisfazê-la; torna-se puro olho que contempla. A ascese é o horror que experimentamos pela
A arte - que, da arquitetura (que expressa a ideia essência de um mundo cheio de dor. E “o primeiro
das forças naturais) a escultura, da pintura a poesia, passo na ascese, ou na negação da vontade, é a castidade
chega à tragédia, a mais elevada forma de arte – objetiva livre e perfeita”. A castidade perfeita liberta da
a vontade. realização fundamental da vontade no seu impulso de
E quem a contempla está, de certo modo, fora geração. A pobreza voluntária e intencional, o
dela. Assim, “a tragédia expressa e objetiva a dor sem conformismo e o sacrifício, também tendem para o
nome, o afã da humanidade, o triunfo da perfídia, o mesmo objetivo, isto é, a anulação da vontade.
escarnecedor senhorio do acaso e o fatal precipício dos Enquanto fenômeno, o homem é um elo da
justos e inocentes”; e é desse modo que ela nos permite cadeia causal do mundo fenomênico. Mas,
contemplar a natureza do mundo. reconhecendo a vontade como coisa em si, esse
Entre as artes, a música não é aquela que conhecimento age sobre ele como aquietante do seu
expressa as ideias, isto é, os graus de objetivação da desejo. E é assim que o homem se torna livre, se redime
vontade, mas expressa a própria vontade. Por isso, ela e entra naquilo que os cristãos chamam de estado de
é a arte mais universal e profunda: a música é capaz de graça. A ascese arranca o homem da vontade de vida,
narrar “a história mais secreta da vontade”. do vínculo com os objetos, e é assim que lhe permite
A arte, portanto, é libertadora. Entretanto, esses aquietar-se. Quando a vontade se torna não-vontade, o
momentos felizes da contemplação estética, nos quais homem está redimido.
nos sentimos libertos da tirania furiosa da vontade, são
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6. FRIEDRICH NIETZSCHE e ficou fascinado, a ponto de mais tarde o julgar como


Friedrich Nietzsche “um espelho, no qual vi o mundo, a vida e meu próprio
nasceu em 15 de outubro de espírito”.
1844. Estudou filologia A vida, pensa Nietzsche nas pegadas de
clássica e leu O mundo como Schopenhauer, é cruel e cega irracionalidade, dor e
vontade e representação, de destruição. Só a arte pode oferecer ao indivíduo a força
Schopenhauer, leitura e a capacidade de enfrentar a dor da vida, dizendo sim
destinada a deixar marca à vida.
decisiva no pensamento de E em O nascimento da tragédia, que é de 1872,
Nietzsche. Nietzsche procura mostrar como a civilização grega
Com vinte e cinco pré-socrática explodiu em vigoroso sentido trágico, que
anos apenas, Nietzsche foi chamado, em 1869, a ocupar é aceitação extasiada da vida, coragem diante do destino
a cátedra de filologia clássica na Universidade de e exaltação dos valores vitais. A arte trágica é corajoso
Basiléia. É desse período seu encontro com Richard e sublime sim à vida.
Wagner. Com isso Nietzsche subverte a imagem
Em 1872, saiu O nascimento da tragédia. Entre romântica da civilização grega. Entretanto, a Grécia de
1873 e 1876 Nietzsche escreveu as quatro Considerações que fala Nietzsche não é a Grécia da escultura clássica
inatuais. Nesse meio tempo, por motivos pessoais e por e da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, e sim a
razões teóricas rompeu sua amizade com Wagner. O Grécia dos pré-socráticos (séc. VI a.C.), a Grécia da
testemunho desse rompimento pode ser encontrado em tragédia antiga, na qual o coro era a parte essencial,
Humano, muito humano (1878), onde o autor também senão talvez tudo.
toma distância da filosofia de Schopenhauer. De fato, Nietzsche identifica o segredo desse
No ano seguinte, em 1879, por razões de saúde, mundo grego no espírito de Dionísio. Dionísio é a
mas também por motivos mais profundos (a filologia imagem da força instintiva e da saúde, é embriaguez
não era seu “destino”), Nietzsche demitiu-se do ensino criativa e paixão sensual, é o símbolo de uma
e iniciou sua irrequieta peregrinação de pensão a pensão humanidade em plena harmonia com a natureza.
pela Suíça, a Itália e o sul da França. Ao lado do dionisíaco, diz Nietzsche, o
Em 1881 publicou a Aurora, onde já tomam desenvolvimento da arte grega também está ligado ao
corpo as teses fundamentais de seu pensamento. A Gaia apolíneo, que é visão de sonho e tentativa de expressar
ciência é de 1882, nessa obra o filósofo prometeu novo o sentido das coisas na medida e na moderação,
destino para a humanidade. explicitando-se em figuras equilibradas e límpidas.
Ainda em 1882, Nietzsche conhece Lou
Salomé, jovem russa de vinte e quatro anos.
Acreditando nela, queria desposá-la. Mas Lou Salomé o
rejeitou e se uniu a Paul Rée, seu amigo e discípulo.
Em 1883, ele concebe Assim falou Zaratustra, sua
obra prima. Em 1886, publicou Além do bem e do mal. A
Genealogia da moral é de 1887. No ano seguinte,
Nietzsche escreve: O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos,
O Anticristo, Ecce homo. Do mesmo período é também o
escrito Nietzsche contra Wagner.
Em Turim ele trabalha em sua última obra, a
Vontade de poder, que, no entanto, não conseguiu
concluir. Com efeito, em 3 de janeiro de 1889 cai vítima
da loucura, lançando-se ao pescoço de um cavalo que o
dono estava espancando diante de sua casa em Turim.
Morreu em Weimar, imerso nas trevas da O desenvolvimento da arte está ligado à
loucura, em 25 de agosto de 1900, sem poder se dar dicotomia do apolíneo e do dionisíaco, do mesmo
conta do sucesso que estavam tendo os livros que modo como a geração provém da dualidade dos
mandara publicar à própria custa. sentidos, em continuo conflito entre si e em
reconciliação meramente periódica.
1. O “dionisíaco” e o “apolíneo”, e o problema Nas duas divindades artísticas gregas, Apolo e
Sócrates Dioniso, baseiam-se a ideia de Nietzsche de que no
mundo grego existia enorme contraste, enorme pela
Em Leipzig, conforme salientamos, Nietzsche origem e pelo fim, entre a arte figurativa, a de Apolo, e
leu O mundo como vontade e representação, de Shopenhauer, a arte não figurativa da música, que é especificamente a
de Dioniso. Os dois instintos, tão diferentes entre si,
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caminham um ao lado do outro, no mais das vezes em Antes de qualquer coisa, na opinião de
aberta discórdia [...], até que, em virtude de um milagre Nietzsche, os fatos são sempre estúpidos, eles
metafísico da 'vontade' helênica, apresentam-se por fim necessitam de intérprete. Por isso, só as teorias são
acoplados um ao outro. E “nesse acoplamento final inteligentes. Em segundo lugar, quem crê “no poder da
gera-se a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínea, história” torna-se “hesitante e inseguro, não podendo
que é a tragédia ática”. crer em si mesmo”. E, em terceiro lugar, não crendo em
Entretanto, quando, com Eurípedes, tenta-se si mesmo, ele será dominado pelo existente, “seja ele
eliminar da tragédia o elemento dionisíaco em favor dos um governo, uma opinião pública, ou ainda uma
elementos morais e intelectualistas, então a maioria numérica”.
luminosidade clara em relação a vida se transforma em Na realidade, “se todo sucesso contém em si
superficialidade silogística. Surge então Sócrates, com uma necessidade racional, se todo acontecimento é a
sua louca presunção de compreender e dominar a vida vitória do 'lógico' ou da 'ideia', que nos ajoelhemos logo,
com a razão e, com isso, temos a verdadeira decadência. então, e percorramos ajoelhados a escada dos
Sócrates e Platão são “sintomas de decadência, sucessos”.
os instrumentos da dissolução grega, os pseudogregos, São três as atitudes que Nietzsche distingue
os antigregos”. diante da história.
Sócrates - escreve Nietzsche – “foi um a) Existe a história monumental, que é a história de
equívoco: toda a moral do aperfeiçoamento, inclusive a quem procura no passado modelos e mestres em
cristã, foi um equívoco [...]. A mais crua luz diurna, a condições de satisfazer suas aspirações.
racionalidade a qualquer custo, a vida clara, prudente, b) Existe a história antiquaria, que é a história de
consciente e sem instintos, em contraste com os quem compreende o passado de sua própria cidade (as
instintos, isso era apenas doença diferente - e de modo muralhas, as festas, os decretos municipais etc.) como
nenhum retorno a ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade". fundamento da vida presente; a história antiquaria
"Sócrates apenas esteve longamente doente". Disse não procura e conserva os valores constitutivos estáveis nos
à vida; abriu uma época de decadência que esmaga quais se radica a vida presente.
também a nós. Ele combateu e destruiu o fascínio c) E, por fim, existe a história crítica, que é a
dionisíaco que liga homem a homem e homem a história de quem olha para o passado com as intenções
natureza, e desvela o mistério do uno primigênio. do juiz que condena e abate todos os elementos que
constituem obstáculos para a realização de seus
2. Os “fatos” são estúpidos e a “saturação da próprios valores. Esta última foi a atitude de Nietzsche
história” é um perigo diante da história.
E essa é a razão pela qual ele combate o excesso
O Nascimento da tragédia foi escrito sob a ou “saturação de história”, “Os instintos do povo são
influência das ideias de Schopenhauer, mas também sob perturbados por esse excesso e o indivíduo, não menos
a das ideias de Wagner. Com efeito, Nietzsche que a totalidade, é impedido de amadurecer”.
vislumbrava em Wagner o protótipo do "artista trágico"
destinado a renovar a cultura contemporânea. E 3. O afastamento em relação a Schopenhauer e
dedicou a Wagner o Nascimento da tragédia, assim Wagner
escrevendo no fim da dedicatória: "Considero a arte
como a tarefa suprema e como a atividade metafísica Nesse meio tempo, porém, Nietzsche vinha
própria de nossa vida, segundo o pensamento do amadurecendo seu afastamento de Schopenhauer e
homem ao qual pretendo dedicar esta obra como a meu mais ainda de Wagner. Esse distanciamento é
insigne precursor no campo de batalha". testemunhado por obras como Humano, muito humano, a
Logo que saiu, embora defendida pelo próprio Aurora e Gaia ciência. São dois os tipos de pessimismo:
Wagner, a obra de Nietzsche foi violentamente atacada, a) o primeiro é o romântico, ou seja, "o
em nome da seriedade da ciência filológica, pelo grande pessimismo dos renunciantes, dos falidos e dos
filólogo Ulrich von Wilamowitz-Mollendorff, o qual vencidos";
escreveu que "com o Nietzsche apóstolo e metafisico b) o outro é o de quem aceita a vida, embora
não pretendo ter nada a ver", e o acusou de "ignorância reconhecendo sua dolorosa tragicidade.
e escasso amor pela verdade". Pois bem, em nome deste último pessimismo
Mas, entre 1873 e 1876, contra a exaltação da Nietzsche rejeita o primeiro, o de Schopenhauer, que
ciência e da história, Nietzsche escreve as Considerações por toda parte cheira a resignação e renúncia, e que é
inatuais. Aqui Nietzsche combate o que ele chama de mais fuga da vida do que "vontade de tragicidade".
saturação de história. Não que negue a importância da Schopenhauer "nada mais é do que o herdeiro da
história, ele combate mais a idolatria do fato, por um interpretação cristã".
lado, e as ilusões historicistas, por outro, com as Por outro lado, o afastamento em relação a
implicações políticas que elas comportam. Wagner foi um acontecimento ainda mais significativo
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e doloroso para Nietzsche. Ele vira na arte de Wagner Na Gaia ciência, o homem louco anuncia aos
o instrumento da regeneração, mas logo teve de admitir homens que Deus está morto: "O que houve com
que estava iludido. Em O caso Wagner, podemos ler: Deus? Eu vos direi. Nós o matamos - eu e vós. Nós somos
Wagner “lisonjeia todo instinto niilista (-budista) e o os assassinos dele!" Pouco a pouco, por diversas razões,
camufla com a música, brandindo toda cristandade, a civilização ocidental foi se afastando de Deus, foi
toda forma de expressão religiosa da décadence”. Wagner assim que o matou. Mas, "matando" Deus, eliminam-se
é uma doença; "ele adoece tudo o que toca - ele adoeceu a todos os valores que serviram de fundamento para
música". Wagner é “um gênio histriônico”, ele "est une nossa vida e, consequentemente, perde-se qualquer
nevrose". ponto de referência.
O afastamento de Nietzsche em relação a seus Por conseguinte, com Deus desapareceu
dois grandes mestres significou o afastamento e também o homem velho, mas o homem novo ainda não
distanciamento crítico em relação ao romantismo, com apareceu. Diz o louco em Gaia ciência: "Venho cedo
seu falso pessimismo, resignação e a ascese quase cristã demais, ainda não é meu tempo. Esse acontecimento
de Schopenhauer, com a retórica daquele "romantismo monstruoso ainda está em curso e não chegou aos
desesperado que murchou", que era Wagner. Significou ouvidos dos homens".
distanciamento e crítica daquelas pseudojustificações e A morte de Deus é fato que não tem paralelos.
camuflagens metafísicas do homem e de sua história É acontecimento que divide a história da humanidade.
que são: Não é o nascimento de Cristo, e sim a morte de
1) o idealismo (que cria um “antimundo”); Deus, que divide a história da humanidade.
2) o positivismo (cuja pretensão de enjaular E esse acontecimento, a morte de Deus,
solidamente a vasta realidade em suas pobres malhas anuncia antes de qualquer coisa Zaratustra, que, depois,
teóricas é ridícula e absurda); sobre as cinzas de Deus, erguerá a ideia do super-
3) os redentorismos socialistas das massas ou homem, do homem novo, impregnado do ideal
através das massas; dionisíaco que "ama a vida" e que, voltando as costas
4) e também o evolucionismo (aliás, "mais para as quimeras do “céu”, voltará à “sanidade da terra”.
afirmado do que provado").
Desse modo. Nietzsche parece basear suas 5. O Anticristo, ou o cristianismo como “vício”
reflexões em raízes iluministas. E, com efeito, é o que
acontece. A desconfiança em relação às metafísicas, a A morte de Deus é um evento cósmico, pelo
abertura a respeito das possíveis interpretações qual os homens são responsáveis, e que os liberta das
"infinitas" do mundo e da história e, portanto, a cadeias do sobrenatural que eles próprios haviam
eliminação da atitude dogmática, o reconhecimento do criado. Falando sobre os padres, Zaratustra afirma:
limite e da finitude humana, e a crítica à religião são “Tenho pena desses padres [...], para mim eles são
elementos que fazem Nietzsche dizer em Humano, muito prisioneiros e marcados. Aquele que eles chamam de
humano: “Podemos levar novamente adiante a bandeira redentor os carregou de grilhões de falsos valores e de
do Iluminismo”. palavras loucas! Ah, se alguém pudesse redimi-los de
seu redentor!”.
4. O anúncio da “morte de Deus”. Esse, precisamente, é o objetivo que Nietzsche
quer alcançar com o Anticristo, que é uma "maldição do
A crítica ao idealismo, ao evolucionismo, ao cristianismo". Para ele, um animal, uma espécie ou um
positivismo e ao romantismo não cessa. Essas teorias indivíduo é pervertido "quando perde seus instintos,
são coisas “humanas, muito humanas”, que se quando escolhe e quando prefere o que lhe é nocivo".
apresentam como verdades eternas e absolutas que é Todavia, pergunta-se Nietzsche, o que fez o
preciso desmascarar. cristianismo senão defender tudo o que é nocivo ao
Mas as coisas não ficam nisso, uma vez que homem? O cristianismo considerou pecado tudo o que
Nietzsche, precisamente em nome do instinto é valor e prazer na terra. Ele "tomou partido de tudo o que é
dionisíaco, em nome daquele homem grego sadio do fraco, abjeto e arruinado; fez um ideal da contradição contra os
século VI a.C., que “ama a vida” e que é totalmente instintos de conservação da vida forte".
terreno, por um lado anuncia a “morte de Deus” e por O cristianismo é a religião da compaixão. "Mas a
outro realiza profundo ataque contra o cristianismo, pessoa perde força quando tem compaixão [...]; a
cuja vitória sobre o mundo antigo e sobre a concepção compaixão bloqueia maciçamente a lei do
grega do homem envenenou a humanidade. E, por desenvolvimento, que é a lei da seleção". Nietzsche
outro lado ainda, vai às raízes da moral tradicional, vislumbra no Deus cristão "a divindade dos doentes
examina sua genealogia, e descobre que ela é a moral [...]; um Deus degenerado a ponto de contradizer a vida,
dos escravos, dos fracos e dos vencidos ressentidos ao invés de ser a transfiguração e o eterno sim dela [...].
contra tudo o que é nobre, belo e aristocrático. Em Deus, está divinizado o nada, está consagrada a
vontade do nada!".
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Apesar de tudo isso, Nietzsche é cativado pela se no bem estivesse inserido também um sistema de
figura de Cristo (“Cristo é o homem mais nobre”; “o retrocesso ou então um perigo, uma sedução, um
símbolo da cruz é o símbolo mais sublime que jamais veneno?"
existiu”) e faz distinção entre Jesus e o cristianismo. Essa é a questão proposta pela Genealogia da
Cristo morreu para mostrar como se deve viver. moral. E é aí que Nietzsche começa a indagar os
Cristo foi um “espírito livre”, mas com Cristo morreu mecanismos psicológicos que iluminam a gênese dos
o Evangelho: também o Evangelho ficou "suspenso na valores: a compreensão da gênese psicológica dos
cruz", ou melhor, transformou-se em Igreja, em valores, em si mesma, será suficiente para pôr em
cristianismo, isto é, em ódio e ressentimento contra dúvida sua pretensa absolutez e indubitabilidade.
tudo o que é nobre e aristocrático. Antes de tudo, a moral é máquina construída
No Novo Testamento Nietzsche encontra apenas para dominar os outros e, em segundo lugar, devemos
um personagem digno de ser elogiado, Pôncio Pilatos, logo distinguir entre a moral aristocrática dos fortes
em virtude de seu sarcasmo em relação a "verdade". e a moral dos escravos. Estes são os fracos, os
Mais tarde, na história de nossa civilização, a malsucedidos. E, como diz o provérbio, os que não
Renascença tentou a transvalorização dos valores cristãos, podem dar maus exemplos dão bons conselhos. É
procurou levar à vitória os valores aristocráticos, os assim que os constitutivamente fracos agem para
nobres instintos terrenos. Feito papa, César Borgia teria subjugar os fortes.
sido grande esperança para a humanidade. Mas o que E Nietzsche prossegue: "Enquanto toda moral
aconteceu? Ocorreu que “um monge alemão, Lutero, aristocrática nasce da afirmação triunfal de si, a moral
veio a Roma. Trazendo dentro do peito todos os dos escravos opõe desde o começo um não aquilo que
instintos de vingança de padre frustrado, esse monge, não pertence a ela mesma, aquilo que é diferente dela e
em Roma, indignou-se contra a Renascença [...]. Lutero constitui o seu não-eu - este é seu ato criador. Essa
viu a corrupção do papado, quando se podia tocar com subversão [...], pertence propriamente ao
a mão justamente o contrário, na cadeira papal não ressentimento".
estava mais a antiga corrupção, o pecado original, o E o ressentimento contra a força, saúde e o
cristianismo! Que boa é a vida! Que bom o triunfo da amor à vida que torna dever e virtude e eleva à categoria
vida! Que bom o grande sim a tudo o que é elevado, de bons comportamentos o desinteresse, o sacrifício de
belo e temerário! [...] E Lutero restaurou novamente a si mesmo, a submissão. E essa moral dos escravos é
lgreja [...] Ah, esses alemães, quanto nos custaram!”. legitimada por metafísicas que a sustentam com bases
São dessa natureza, portanto, as razões que presumidamente "objetivas", sem que se perceba que
levam Nietzsche a condenar o cristianismo: “A Igreja tais metafísicas nada mais são do que "mundos
cristã não deixou nada intacto em sua perversão; ela fez superiores" inventados para poder "caluniar e sujar este
de cada valor um desvalor, de cada verdade uma mundo", que elas querem reduzir a mera aparência.
mentira, de toda honestidade uma abjeção da alma”. O
além é a negação de toda realidade e a cruz é uma 7. Niilismo, eterno retorno e “amor fati”
conjuração “contra a saúde, a beleza, a constituição
bem-sucedida, a valentia de espírito, a bondade da alma, O niilismo, diz Nietzsche, é “a consequência
contra a própria vida”. necessária do cristianismo, da moral e do conceito de
Assim, o que devemos esperar senão que este verdade da filosofia”. Quando as ilusões perdem a
seja o último dia do cristianismo? E a partir de hoje? A máscara, então o que resta é nada: o abismo do nada.
partir de hoje, “transvalorização de todos os valores", “Como estado psicológico, o niilismo torna-se
responde Nietzsche. necessário, em primeiro lugar, quando procuramos em
todo acontecimento um 'sentido' que ele não tem, até
6. A genealogia da moral que, por fim, começa a faltar coragem a quem procura".
Aquele "sentido" podia ser a realização ou o
Juntamente com o cristianismo, aliás, fortalecimento de um valor moral (amor, harmonia de
condenando o cristianismo, Nietzsche também relações, felicidade etc.). Mas o que devemos constatar
submete a moral à cerrada crítica. Essa é a "grande é que a desilusão quanto a esse pretenso fim é "uma
guerra" que Nietzsche trava em nome da causa do niilismo”. Em segundo lugar, “postulou-se
"transformação dos valores que dominaram até hoje". uma totalidade, uma sistematização e até uma
E essa revolta contra "o sentimento habitual organização em todo o acontecer e em sua base".
dos valores" ele a explicita especialmente em dois livros: Entretanto, o que se viu é que esse universal,
Além do bem e do mal e Genealogia da moral. que o homem construíra para poder crer no seu próprio
Escreve Nietzsche: "Até hoje, não se teve valor, não existe! No fundo, o que aconteceu?
sequer a mínima dúvida ou a menor hesitação em “Alcançou-se o sentimento da falta de valor quando se
estabelecer o 'bom' como superior, em valor, ao 'mau' compreendeu que não é lícito interpretar o caráter geral
[...]. Como? E se a verdade fosse o contrário? Como? E da existência nem com o conceito de 'fim', nem com o
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conceito de 'unidade', nem com o conceito de mantê-la livremente: uma cabeça terrena, que cria ela
'verdade'." própria o sentido da terra".
Caem assim "as mentiras de vários milênios" e O super-homem substitui os velhos deveres
o homem permanece sem os enganos das ilusões, mas pela vontade própria. "O homem é uma corda
permanece só. Não há valores absolutos; aliás, os estendida, estendida entre o bruto e o super-homem,
valores são desvalores; não existe nenhuma estrutura uma corda estendida sobre um abismo". Ele deve
racional e universal que possa sustentar o esforço do procurar novos valores: "O mundo gira em torno dos
homem; não há nenhuma providência, nenhuma ordem inventores de novos valores".
cósmica. Assim como para Protágoras, também para
Não há uma ordem, não há um sentido. Mas há Nietzsche o homem deve ser a medida de todas as
uma necessidade: o mundo tem em si a necessidade da coisas, deve criar novos valores e pô-los em prática. O
vontade. Desde a eternidade, o mundo é dominado pela homem embrutecido tem a espinha curvada diante das
vontade de aceitar a si próprio e de repetir-se. ilusões cruéis do sobrenatural.
É essa é a doutrina do eterno retorno que O super-homem "ama a vida" e "cria o sentido
Nietzsche retoma da Grécia e do Oriente. O mundo da terra", e é fiel a isso.
não procede de modo retilíneo em direção a um fim Aí está sua vontade de poder.
(como acredita o cristianismo), nem seu devir é
progresso (como pretende o historicismo hegeliano e
pós-hegeliano), mas “todas as coisas retornam
eternamente e nós com elas; nós já existimos eternas
vezes e todas as coisas conosco”.
Toda dor e todo prazer, todo pensamento e
todo suspiro, toda coisa indizivelmente pequena e
grande retornarão: "Voltarão até essa teia de aranha e
este raio de lua entre as árvores, até este idêntico
momento e eu mesmo". O mundo que aceita a si
próprio e que se repete, é esta a doutrina cosmológica
de Nietzsche. E a ela Nietzsche vincula sua outra
doutrina, a do amor fati: amar o necessário, aceitar este
mundo e amá-lo.

8. O super-homem é o sentido da terra

O amor fati é aceitação do eterno retorno, é


aceitação da vida. Mas não se deve ver nele a aceitação
do homem. A mensagem
fundamental de
Zaratustra, com efeito,
está em pregar o super-
homem.
E o homem, o
homem novo, que deve
criar um novo sentido da
terra, abandonar as velhas
cadeias e cortar os antigos
troncos. O homem deve
inventar o homem novo,
isto é, o super-homem, o
homem que vai além do
homem e que é o homem
que ama a terra e cujos valores são a saúde, a vontade
forte, o amor, a embriaguez dionisíaca e um novo
orgulho.
Diz Zaratustra: "Um novo orgulho ensinou-me
o meu Eu, e eu o ensino aos homens: não deveis mais
esconder a cabeça na areia das coisas celestes, mas

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SURGIMENTO DA SOCIOLOGIA possibilidade de um mercado muito mais amplo e com


características mundiais.
A Sociologia, no contexto do conhecimento A exploração de metais preciosos,
científico, surgiu como um corpo de ideias a respeito do principalmente na América, e o tráfico de escravos para
processo de constituição, consolidação e suprir a mão de obra nas colônias deram grande
desenvolvimento da sociedade moderna. Ela é fruto da impulso ao comércio, que não mais ficou restrito aos
Revolução Industrial e é denominada “ciência da mercadores das cidades-repúblicas (Veneza, Florença
crise”, porque procurou dar respostas às questões ou Flandres), passando também para as mãos de
sociais impostas por essa revolução que, num primeiro grandes comerciantes e de soberanos dos importantes
momento, alterou a sociedade europeia e, depois, o Estados nacionais em formação na Europa.
mundo todo. Toda essa expansão territorial e comercial
acelerou o desenvolvimento da economia monetária,
com a acumulação de capitais pela burguesia comercial,
que, mais tarde, teve uma importância decisiva na
gestação do processo de industrialização da Europa.
As mudanças que se operavam nas formas de
produzir a riqueza só poderiam funcionar se
ocorressem modificações na organização política.
Assim, pouco a pouco, desenvolveu-se uma estrutura
estatal que tinha por base a centralização da justiça, com
um novo sistema jurídico baseado no Direito romano.
Houve também a centralização das forças armadas,
com a formação de um exército permanente, e a
centralização administrativa, com um aparato burocrático
ordenado hierarquicamente e com um sistema de
A Sociologia como “ciência da sociedade” não cobrança de impostos que permitiu a arrecadação
surgiu de repente, ou da reflexão de algum autor constante para manter todo esse aparato jurídico-
iluminado; ela é fruto de todo um conhecimento sobre burocrático-militar sob um único comando. Nasceu,
a natureza e a sociedade que se desenvolveu a partir do dessa forma, o Estado moderno, que favoreceu a
século XV, quando ocorreram transformações expansão das atividades vinculadas ao desenvolvimento
significativas que tiveram como resultado a da produção têxtil, à mineração e à siderurgia, bem
desagregação da sociedade feudal e a constituição da como ao comércio interno e externo.
sociedade capitalista. Essas transformações — a No século XVI, desenvolveu-se outro
expansão marítima, o comércio ultramarino, a movimento, o da Reforma Protestante. Esse
formação dos Estados nacionais, a Reforma Protestante movimento, que entrou em conflito com a autoridade
e o desenvolvimento científico e tecnológico — estão papal e a estrutura da Igreja, valorizava o indivíduo e
vinculadas umas às outras e não podem ser entendidas permitia a livre leitura das Escrituras Sagradas;
de forma isolada. provocava, dessa forma, o confronto com o monopólio
Elas são o pano de fundo que permite entender do clero na interpretação baseada na fé e nos dogmas.
melhor um movimento intelectual de grande Muitos passaram, então, em vários lugares do mundo
envergadura que alterou profundamente as formas de ocidental, não só a interpretar as Escrituras Sagradas,
explicar a natureza e a sociedade desde então. como também a professar sua fé em Deus diretamente,
A expansão marítima europeia teve um papel sem a intermediação dos ministros da Igreja.
importante nesse processo, pois, com a circunavegação Se nascia uma nova maneira de se relacionar
da África e o descobrimento da rota para as índias e com as coisas sagradas, concebia-se também outra
para a América, a concepção de mundo dos povos forma de analisar o universo. A razão passava a ser
europeus foi consideravelmente ampliada. A definição soberana e era entendida como elemento essencial para
de um mundo territorialmente muito mais amplo, com se conhecer o mundo; isto é, os homens deviam ser
diferentes povos e culturas, exigiu a reformulação do livres para julgar, avaliar, pensar e emitir opiniões, sem
modo de ver e de pensar dos europeus. se submeter a nenhuma autoridade transcendente ou
Ao mesmo tempo em que se conheciam novos divina, que tinha na Igreja a sua maior defensora e
povos e novas culturas, instalavam-se colônias na guardiã.
África, na Ásia e na América, ocorrendo com isso a Do século XV ao XVII, o conhecimento racional do
expansão do comércio de mercadorias (sedas, universo e da vida em sociedade tornou-se uma regra
especiarias e produtos tropicais, como açúcar, milho, seguida por alguns pensadores; foi uma mudança lenta,
tabaco e café) entre as metrópoles e as colônias, bem sempre enfrentando embates contra o dogmatismo e a
como entre os países europeus. Nascia então a autoridade da Igreja, a exemplo do Concilio de Trento
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e dos processos da Inquisição, que procuraram impedir máquinas, elevando muito o volume da produção de
toda e qualquer manifestação que pudesse pôr em mercadorias.
dúvida a autoridade eclesiástica, seja no campo da fé, A presença da máquina a vapor, que podia
seja no das explicações que se propunham para a mover outras tantas máquinas, incentivou o surgimento
sociedade e a natureza. da indústria construtora de máquinas, que, por sua vez,
Essa nova forma de conhecer a natureza e a incentivou toda a indústria voltada para a produção de
sociedade, em que a experimentação e a observação ferro e, posteriormente, de aço. É interessante lembrar
eram fundamentais, era representada pelo pensamento que já no final do século XVIII produziam-se ferro e
e pelas obras de diversos autores; entre eles, Nicolau aço com a utilização do carvão mineral.
Maquiavel (1469-1527), Nicolau Copérnico (1473- Nesse contexto de profundas alterações no
1543), Galileu Galilei (1564-1642), Thomas Hobbes processo produtivo, cada vez mais o trabalho mecânico
(1588-1679), Francis Bacon (1561-1626) e René convivia com o trabalho artesanal. A maquinofatura se
Descartes (1596-1650). Além desses pensadores, dois completava com o trabalho assalariado, incluindo a
outros fizeram a intermediação entre esses utilização, numa escala crescente, da mão de obra
conhecimentos e os que se desenvolveram no século feminina e da infantil.
seguinte: John Locke (1632-1704) e Isaac Newton Ao mesmo tempo, longe da Europa,
(1642-1727). Ao passo que o primeiro propunha novos intensificava-se a exploração do ouro no Brasil, da prata
princípios para a compreensão da razão humana, o no México e do algodão na América do Norte e na
segundo estabelecia um novo fundamento para o índia. Todas essas atividades eram desenvolvidas com a
estudo da natureza. utilização do trabalho escravo ou servil. Esses
elementos, conjugados, asseguravam as bases do
A hegemonia burguesa processo de acumulação necessário para a expansão da
indústria na Europa.
Na maioria dos países europeus no final do Todas essas mudanças, somadas à herança
século XVIII, a burguesia comercial, formada cultural e intelectual do século XVII, definiram o século
basicamente por comerciantes e banqueiros, tornou-se XVIII como um período explosivo. Se no século
uma classe com muito poder, na maior parte das vezes, anterior a Revolução Inglesa determinou novas
por causa das ligações econômicas que mantinha com formas de organização política, foi no XVIII que a
os monarcas. Essa classe, além de sustentar o comércio Revolução Americana e a Revolução Francesa
entre os países europeus, estendia seus tentáculos a alteraram o quadro político e social do Ocidente,
todos os pontos do globo, comprando e vendendo servindo de exemplo e parâmetro para as revoluções
mercadorias, tornando o mundo cada dia mais posteriores.
europeizado.
O capital mercantil se estendia também a outro
ramo de atividade: gradativamente se organizava a
produção manufatureira. A compra de matérias-
primas e a organização da produção por meio do
trabalho domiciliar ou do trabalho em oficinas
levavam ao desenvolvimento de um novo processo
produtivo em contraposição ao processo artesanal e
das corporações de ofício.
Ao se desenvolver a manufatura, os
organizadores da produção passaram a se interessar
cada vez mais pelo aperfeiçoamento das técnicas de
produção, visando produzir mais com menos gente,
aumentando significativamente os lucros. Para tanto,
procuraram investir nos “inventos”, isto é, financiar a
criação de máquinas que pudessem ter aplicação no
processo produtivo.
Foram criadas, nesse contexto, as máquinas de As transformações na esfera da produção, a
descaroçar e de tecer algodão, e se iniciou a aplicação emergência de novas formas de organização política e a
industrial da máquina a vapor e de outros tantos exigência da representação popular deram
inventos destinados a aumentar a produtividade do características muito específicas a esse século.
trabalho. Desenvolveu-se então o fenômeno que veio a Pensadores como Montesquieu (1689-1755), David
ser chamado de maquinofatura. O trabalho que os Hume (1711-1776), Jean-Jacques Rousseau (1712-
homens realizavam com as mãos ou com ferramentas 1778), Adam Smith (1723-1790) e Immanuel Kant
passou, a partir de então, a ser feito por meio de
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(1724-1804), entre outros, refletiram sobre a realidade, na indústria, bem como no livre intercâmbio e na
na tentativa de explicá-la. educação.
No século XIX, outras transformações Além disso, no que se refere à ciência, deve-se
ocorreram, como a emergência de novas fontes dizer que, no período que vai de 1830 a 1890,
energéticas (eletricidade e petróleo) e de novos ramos frequentemente se entrelaçando com o
industriais (indústria pesada, ferrovias), além da desenvolvimento da indústria (num entrelaçamento que
alteração profunda nos processos produtivos, com a não foi unilateral), a ciência registrou muitos passos
introdução de novas máquinas e equipamentos. No adiante em seus setores mais importantes: na
início desse século, depois de 300 anos de exploração matemática, entre outros, temos as contribuiq6es de
colonialista por parte das nações europeias, iniciou-se, Cauchy, Weierstrass, Dedekind e Cantor; na geometria,
principalmente na América Latina, um processo intenso as de Riemann, Bolyai, Lobacewskij e Klein; a física
de luta pela independência. Foi um reflexo do que apresenta os resultados das pesquisas de Faraday sobre
ocorreu na França e nos Estados Unidos. a eletricidade, e de Maxwell e Hertz sobre o
É no século XIX, já com a consolidação do eletromagnetismo; ainda na física, temos os trabalhos
sistema capitalista na Europa, que se encontra a herança fundamentais de Mayer, Helmholtz, Joule, Clausius e
intelectual mais próxima da Sociologia como ciência Thomson sobre a termodinâmica; o saber químico é
particular. O pensamento de Adam Smith, Saint-Simon desenvolvido por Berzelius, Mendelejev e von Liebig,
(1760-1825), Georg Wilheim Friedrich Hegel (1770- entre outros; Koch, Pasteur e seus discípulos
1830), David Ricardo (1772-1823) e Charles Darwin desenvolvem a microbiologia, obtendo feitos
(1809-1882), entre outros, foi a fonte para Aléxis de estrondosos; Bernard constrói a fisiologia e a medicina
Tocqueville (1805-1859), Auguste Comte (1798-1857), experimental.
Karl Marx (1818-1883) e Herbert Spencer (1820-1903) Além disso, é a época da teoria evolucionista de
desenvolverem suas reflexões sobre a sociedade de seu Darwin. E os projetos tecnológicos encontram seu
tempo. símbolo na Torre Eiffel de Paris e na abertura do canal
de Suez.
1. POSITIVISMO Substancial estabilidade política, o processo de
industrialização e o desenvolvimento da ciência e da
O positivismo representa um movimento tecnologia constituem os pilares do meio sociocultural
composto de pensamento que dominou grande parte da que o positivismo interpreta, exalta e favorece.
cultura européia, em suas manifestações filosóficas, É bem verdade que os grandes males da
políticas, pedagógicas, historiográficas e literárias, de sociedade industrial não tardaram a se fazer sentir
cerca de 1840 até quase 1914. (desequilíbrios sociais, lutas pela conquista de
Passado o furacão de 1848, excetuando-se o mercados, condição de miséria do proletariado,
conflito da Crimeia em 1854 e a guerra franco-prussiana exploração do trabalho do menor etc.).
de 1870, a era do positivismo foi época de paz
substancial na Europa e, ao mesmo tempo, época da
expansão colonial européia na África e na Ásia.
Dentro desse quadro político, a Europa
consumou sua transformação industrial, e os efeitos
dessa revolução sobre a vida social foram maciços:
1 - o emprego das descobertas científicas
transformou todo o modo de produção;
2 - as grandes cidades se multiplicaram;
3 - cresceu de forma impressionante a rede de
intercâmbios;
4 - rompeu-se o antigo equilíbrio entre a cidade
e o campo;
5 - aumentaram a produção e a riqueza; a
medicina debelou as doenças infecciosas, antigo e Esses males serão diagnosticados pelo
angustiante flagelo da humanidade. marxismo em direção diferente da interpretação do
Em poucas palavras, a Revolução Industrial positivismo que, embora não ignorando de modo
mudou radicalmente o modo de vida. E os entusiasmos nenhum tais males, pensava que eles logo
se cristalizaram em torno da ideia de progresso humano e desapareceriam, como fenômenos transitórios
social irrefreável, já que, de agora em diante, possuíam- elimináveis pelo crescimento do saber, da educação
se os instrumentos para a solução de todos os problemas. popular e da riqueza.
Para o pensamento da época, esses
instrumentos eram sobretudo a ciência e suas aplicações
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Pontos centrais do positivismo tomados da tradição iluminista, como a tendência de


considerar os fatos empíricos como a única base do
Os representantes mais significativos do verdadeiro conhecimento, a fé na racionalidade
positivismo são Auguste Comte (1798-1857), na científica como solução dos problemas da humanidade,
França; John Stuart Mill (1806-1873) e Herbert Spencer ou ainda a concepção leiga da cultura, entendida como
(1820-1903), na Inglaterra. construção puramente humana, sem dependências em
O positivismo, portanto, situa-se em tradições relação a pressupostos e teorias teológicas.
culturais diferentes: na França, inseriu-se no 8) Sempre em linha geral, o positivismo (neste
racionalismo, que vai de Descartes ao Iluminismo; na caso, John Stuart Mill é exceção) caracteriza-se pela
Inglaterra, ele se desenvolveu inserindo-se na tradição confiança acrítica e, amiúde, leviana e superficial, na
empirista e utilitarista, entrelaçando-se, em seguida, estabilidade e no crescimento sem obstáculos da
com a teoria darwiniana da evolução. ciência. Essa confiança acrítica na ciência chegou a se
Apesar de tais diversificações, o positivismo tornar fenômeno de costume.
apresenta traços comuns que nos permitem sua 9) A “positividade” da ciência leva a
identificação como movimento de pensamento. mentalidade positivista a combater as concepções
1) Diversamente do idealismo, o positivismo idealistas e espiritualistas da realidade, concepções que
reivindica o primado da ciência: nós conhecemos os positivistas rotulavam como metafisicas, embora
somente aquilo que as ciências nos dão a conhecer, pois mais tarde tenham caído em metafisicas igualmente
o único método de conhecimento é o das ciências dogmáticas.
naturais. 10) A confiança na ciência e na racionalidade
2) O método das ciências naturais (identificação humana, em suma, os traços iluministas do positivismo
das leis causais e seu domínio sobre os fatos não vale induziram alguns marxistas a considerarem insuficiente
somente para o estudo da natureza, mas também para e até reducionista a usual interpretação marxista, que só
o estudo da sociedade. vê no positivismo a ideologia da burguesia da segunda
3) Por isso, entendida como ciência dos “fatos metade do século XIX.
naturais’ que são as relações humanas e sociais, a
sociologia é fruto qualificado do programa filosófico 2. SAINT-SIMON
positivista. Claude Henri de
4) O positivismo não apenas afirma a unidade Saint-Simon (1760-1825)
do método cientifico e o primado desse método como é um pensador que
instrumento cognoscitivo, mas também exalta a ciência conseguiu focalizar sobre
como o único meio em condições de resolver, ao longo si a atenção de muitos
do tempo, todos os problemas humanos e sociais que até estudiosos
então haviam atormentado a humanidade. contemporâneos e
5) Consequentemente, a era do positivismo é também dos pósteros
uma época perpassada por otimismo geral, que brota da pelo fato de, antes de
certeza de progresso irrefreável (por vezes concebido qualquer outro, ter sido o
como fruto da engenhosidade e do trabalho humano e, primeiro a perceber a transformação da sociedade em
por vezes, ao contrário, visto como necessário e sociedade industrial, identificando alguns daqueles
automático) rumo a condições de bem-estar grandes problemas sobre os quais debruçar-se-iam não
generalizado em uma sociedade pacifica e penetrada somente os positivistas, mas principalmente Marx e
pela solidariedade humana. seus seguidores.
6) O fato de que a ciência seja proposta pelos O primeiro escrito de Saint-Simon, de 1802, são
positivistas como o único fundamento sólido da vida as Cartas de um habitante de Genebra a seus contemporâneos;
dos indivíduos e da vida associada, deveria ser em 1814, em colaboração com Augustin Thierry,
considerada como a garantia absoluta do destino publicou a Reorganização da sociedade européia; sua obra
progressista da humanidade, e de o positivismo se mais importante, A indústria, é de 1817; 0 novo cristianismo
pronunciar pela “divindade” do fato, induziu alguns é de 1825. Auguste Comte foi seu secretário e
estudiosos a interpretarem o positivismo como parte colaborador de 1818 a 1824, ano em que houve o
integrante da mentalidade romântica. Somente que, no rompimento entre os dois.
caso do positivismo, seria exatamente a ciência a ser A ideia de fundo de Saint-Simon (ideia
infinitizada. Assim, por exemplo, o positivismo de destinada a maiores e diversos desdobramentos) é a de
Comte, contém uma construção oniabrangente de que a história é regida por lei de progresso. Mas tal
filosofia da história, que se consuma em visão progresso não é linear, enquanto a história humana é
messiânica. alternância de períodos orgânicos e períodos críticos.
7) Essa interpretação, porém, não impediu que As épocas orgânicas baseiam-se em um
intérpretes vissem no positivismo temas fundamentais conjunto de princípios bem sólidos, crescendo e
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operando em seu interior. Mas ocorre que, em dado Assim, o princípio ordenador da nova
momento, o desenvolvimento da sociedade (nas ideias, sociedade é o pensamento positivo: esse princípio
nos valores, na técnica etc.) invalida os princípios sobre eliminara os três principais inconvenientes do sistema
os quais ela antes se baseava. Temos então o que Saint- político vigente, isto é, o arbítrio, a incapacidade e a
Simon chama de “épocas críticas”. Assim como o intriga.
monoteísmo punha em crise a época orgânica do O progresso em direção à nova época orgânica,
politeísmo, a Reforma e depois a Revolução Francesa, dominada pela filosofia positiva, é progresso inevitável.
e especialmente o desenvolvimento da ciência, puseram Em seu último escrito, o Novo cristianismo, Saint-Simon
em crise a época orgânica da Idade Média. delineia o advento da futura sociedade como retorno ao
cristianismo primitivo. Será sociedade na qual a ciência
A era da filosofia positiva constituirá o meio para alcançar aquela fraternidade
universal que Deus deu aos homens como regra de sua
Não se trata, no entanto, de andar para trás. O conduta.
que é necessário é ir adiante, em direção a uma nova
época orgânica, ordenada pelo princípio da ciência A difusão do pensamento de Saint-Simon
positiva.
Segundo Saint-Simon, o progresso cientifico Na França, a doutrina de Saint-Simon teve
teria assim destruído aquelas doutrinas teológicas e razoável difusão. Ela deu dignidade filosófica ao
aquelas ideias metafisicas que serviam de fundamento problema social; contribuiu para tornar mais viva a
para a época orgânica da Idade Média. consciência da importância social da ciência e da
Agora, o mundo dos homens só poderia ser técnica; exaltou a atividade industrial e bancária; a ideia
reorganizado e ordenado com base na ciência positiva. dos canais de Suez e do Panamá é dos seguidores de
Nessa nova época orgânica, o poder espiritual será dos seus ideais.
homens de ciência, “que podem predizer o maior Saint-Simon e seus discípulos desenvolveram
número de coisas”, ao passo que o poder temporal firme campanha contra o parasitismo e a injustiça; e,
pertencerá aos industriais, vale dizer, “aos para favorecer a justiça, insistiram na ideia de eliminar a
empreendedores de trabalhos pacíficos, que ocuparão o propriedade privada, revogar o direito de herança (de
maior número de indivíduos”. modo a abolir “o acaso do nascimento”), planejar a
Tudo isso para dizer que a afirmação do economia, tanto agrária como industrial.
industrialismo torna impossível o poder teocrático Para Saint-Simon, o critério supremo que
feudal da Idade Média, onde a hierarquia eclesiástica deveria informar a ação do Estado devia ser o seguinte:
detinha o poder espiritual, e o poder temporal estava de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual
nas mãos dos guerreiros. segundo suas obras. A primeira norma deveria ser a da
Na era nova, os eclesiásticos são substituídos produção, a segunda a regra da distribuição.
pelos cientistas, e os guerreiros pelos industriais. Com
efeito, a ciência e a tecnologia estão hoje em condições 3. AUGUSTO COMTE
de resolver os problemas humanos e sociais.
Escreve Saint-Simon que os homens só podem Augusto Comte
ser felizes “satisfazendo suas necessidades físicas e suas (1798-1857) foi o
necessidades morais”. fundador do
E esse é exatamente o fim ao qual tendem “as positivismo francês.
ciências, as belas-artes e os ofícios”. Fora disso só Nasceu em Montpellier
existem “Os parasitas e os dominadores”. de família modesta,
Para ilustrar a necessidade de que o poder católica e monárquica,
político passasse para as mãos dos técnicos, cientistas e foi discípulo e secretário
produtores, Saint-Simon apresentou uma conhecida (e, depois, decidido
parábola: se a França perdesse os três mil indivíduos antagonista) de Saint-Simon, aluno da famosa Ecole
que exercem os cargos políticos, religiosos e Polytechnique. Teve suficiente familiaridade com a
administrativos mais importantes, o Estado não sofreria matemática. Foi leitor dos empiristas ingleses, de
nenhum prejuízo, e tais pessoas seriam facilmente Diderot, d'Alembert, Turgot e Condorcet.
substituídas; mas, observa Saint-Simon, se a França Foi o pai oficial da sociologia e, em certos
perdesse os seus três mil mais capazes cientistas, artistas aspectos, o expoente mais representativo da orientação
e artesãos, ela cairia logo em estado de inferioridade do pensamento positivista em seu conjunto.
diante das nações de que agora é rival, e continuaria Em seu itinerário intelectual e moral Comte
permanecendo subalterna em relação a elas enquanto escreve: “Ainda aos 14 anos eu já sentia a necessidade
não reparasse a perda e não reerguesse a cabeça. fundamental de uma reestruturação universal, política e

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filosófica ao mesmo tempo, sob o impulso de salutar descobrir as leis (exprimíveis em linguagem
crise revolucionária, cuja fase principal precedera meu matemática) segundo as quais os fenômenos se
nascimento. A influência luminosa de uma iniciação encadeiam uns nos outros.
matemática recebida na família, desenvolvida Tal concepção do saber desemboca diretamente
felizmente na Ecole Polytechnique, fez-me na técnica: o conhecimento das leis positivas da
instintivamente pressentir a única via intelectual que natureza nos permite, com efeito, quando um
podia realmente conduzir a essa grande renovação”. E fenômeno é dado, prever o fenômeno que se seguirá e,
acrescenta que em 1822 ele via claro seu projeto eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o
filosófico “sob a inspiração constante de minha grande segundo. O lema era “conhecer para prever, prever para
lei relativa ao conjunto da evolução humana, individual prover”.
e coletiva”: a lei dos três estágios. É essa, portanto, a lei dos três estágios, o
Trata-se da lei segundo a qual a humanidade, conceito-chave da filosofia de Comte. Lei que
conforme a psique de cada homem, passa por três encontraria confirmação tanto no desenvolvimento da
estágios: vida dos indivíduos (todo homem é teólogo na sua
a) o teológico; infância, é metafísico em sua juventude e é físico em sua
b) o metafísico; maturidade), como na história humana.
c) o positivo. Até sem conhecer Vico nem Hegel, Comte
Escreveu Comte no Curso de filosofia constrói com sua lei dos três estágios uma grandiosa
positivista (1830-1842): “Estudando o filosofia da história, que se apresenta como o esquema
desenvolvimento da inteligência humana [...] desde sua de toda a evolução da humanidade.
primeira manifestação até hoje, creio ter descoberto
uma grande lei fundamental A doutrina da ciência
[...]. Esta lei consiste no seguinte: cada uma de nossas
concepções principais e cada ramo de nossos Agora, portanto, estamos no estágio positivo.
conhecimentos passam necessariamente por três Os métodos teológicos e metafísicos não são mais
estágios teóricos diferentes: o estágio teológico ou empregados por ninguém, exceto no campo dos
fictício, o estágio metafísico ou abstrato e o estágio fenômenos sociais, observa amargamente Comte no
científico ou positivo [...]. Daí três tipos de filosofia ou Curso de filosofia positiva, “embora sua insuficiência a esse
de sistemas conceituais gerais sobre o conjunto dos respeito já seja plenamente sentida por todos os
fenômenos, que se excluem reciprocamente. O espíritos um pouco evoluídos”.
primeiro é um ponto de partida necessário da Eis, portanto, salienta Comte, “a grande e única
inteligência humana; o terceiro é seu estado fixo e lacuna que se trata de preencher para construir a
definitivo; o segundo destina-se unicamente a servir filosofia positiva”. A filosofia positiva, portanto, deve
como etapa de transição”. submeter a sociedade a rigorosa pesquisa cientifica, já
a) No estágio teológico, os fenômenos são que somente uma sociologia cientifica pode “ser
vistos como “produtos da ação direta e continua de considerada como a única base solida para a
agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos”; reorganização social, que deve encerrar o estado de
b) no estágio metafísico, são explicados em crise em que se encontram há longo tempo as nações
função de essências, ideias ou forças abstratas (os mais civilizadas”.
corpos se uniriam graças à “simpatia”; as plantas Não se podem resolver crises sociais e políticas
cresceriam em virtude da presença da “alma senão devido ao conhecimento dos fatos sociais e
vegetativa”; o ópio, adormece porque possui a “virtude políticos. E é por essa razão que Comte vê como tarefa
soporífera”); extremamente urgente a do desenvolvimento da física
c) mas é somente no “estágio positivo que o social, vale dizer, da sociologia científica.
espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de Desse modo, a nova ciência espelhava-se na
obter conhecimentos absolutos, renuncia a perguntar metodologia de investigação das ciências da natureza,
qual é sua origem, qual o destino do universo e quais as até mesmo porque, segundo Comte, as leis do
causas intimas dos fenômenos para procurar somente desenvolvimento da humanidade são como as leis
descobrir, com o uso bem combinado do raciocínio e naturais e o cientista social deve investigar o homem em
da observação, suas leis efetivas, isto é, suas relações sociedade da mesma forma que o cientista natural
invariáveis de sucessão e de semelhança”. investiga a natureza, com distanciamento e
Esse estágio é aquele em que o espírito renuncia neutralidade.
a procurar os fins últimos e a responder aos últimos Segundo Comte, as ciências, no decurso da
“por quês”. A noção de causa (transposição abusiva de história, não se tornaram “positivas” na mesma data,
nossa experiência interior do querer para a natureza) é mas numa certa ordem de sucessão que corresponde à
por ele substituída pela noção de lei. Temos que nos célebre classificação: matemáticas, astronomia, física,
contentar em descrever como os fatos se passam, em química, biologia, sociologia. Das matemáticas à
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sociologia a ordem é a do mais simples ao mais O desenvolvimento posterior das ciências


complexo, do mais abstrato ao mais concreto e de uma desmentiu essas ideias de Comte. Além disso, um
proximidade crescente em relação ao homem. Assim, conhecimento que hoje parece infértil pode se tornar
no topo da pirâmide das ciências estaria a sociologia, a necessário amanhã. Entretanto, no sistema de Comte,
qual foi denominada por Auguste Comte como a “física um saber estável e bloqueado está em função de uma
social”. Todo ser humano deveria ter conhecimento ordem social estável.
dessa disciplina tão importante para o desenvolvimento
da sociedade. A sociologia como física social
Mas, antes de mais nada, em que consiste a
ciência para Comte? Na opinião dele, o objetivo da Para passar de uma sociedade em crise para a
ciência está na pesquisa das leis, já que só o conhecimento “ordem social”, há necessidade de saber.
das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é o de
fazer com que possamos prevê-los, evidentemente,
pode nos levar, na vida ativa, a modificá-los em nosso
benefício.
A lei é necessária para prever, e a previsão é
necessária para a ação do homem sobre a natureza.
Afirma Comte: “Em suma, ciência, logo previsão;
previsão, logo ação: essa é a fórmula simples que
expressa de modo exato a relação geral entre a ciência e
a arte, tomando esses dois termos em sua acepção
total”. O conhecimento é feito de leis provadas com
Na trilha de Bacon e Descartes, Comte pensa base nos fatos. Desse modo, é preciso encontrar as leis
que a ciência é que deve fornecer ao homem o domínio da sociedade se quisermos resolver suas crises e prever
sobre a natureza. E, no entanto, ele não é em absoluto o desenvolvimento futuro da convivência social.
de opinião que a ciência, essencialmente e por sua Portanto, para a sociologia, através do raciocínio e da
natureza, esteja voltada para os problemas práticos. observação, é possível estabelecer as leis dos
Comte é claro sobre a natureza teórica dos fenômenos sociais, como a física pode estabelecer as
conhecimentos científicos, que ele se apressa a leis que guiam os fenômenos físicos.
distinguir claramente dos conhecimentos técnico- Comte entendia a Física Social como “a ciência
práticos. Mas Comte também não é empirista de tipo que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos
antigo, que cuida somente dos dados de fato e exclui as sociais, considerados com o mesmo espírito que os
teorias. fenômenos astronômicos, físicos, químicos e
No Curso de filosofia positiva, podemos ler: fisiológicos, isto é, como submetidos a leis naturais
“Nós reconhecemos que a verdadeira ciência [...] invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas
consiste essencialmente de leis e não mais de fatos, pesquisas”.
embora estes sejam indispensáveis para o seu Comte divide a sociologia, ou física social, em:
estabelecimento e sua sanção”. a) estática social;
A pura erudição consiste em fatos sem lei; a b) dinâmica social.
verdadeira ciência consiste em leis controladas com a) A estética social estuda as condições de
base nos fatos. E esse controle com base nos fatos existência comuns a todas as sociedades em todos os
exclui da ciência toda busca de essências e causas tempos. Tais condições são a sociabilidade fundamental
últimas metafisicas. do homem, o núcleo familiar e a divisão do trabalho,
Essas ideias de Comte sobre a doutrina da que se concilia com “a cooperação dos esforços”.
ciência influenciaram o pensamento posterior em A lei fundamental da estática social é a conexão
virtude de sua clareza e validade. entre os diversos aspectos da vida social, de modo que,
De qualquer modo, porém, já em alguns trechos por exemplo, uma constituição política não é
do Curso de filosofia positiva e depois, sobretudo, no independente de fatores como o econômico e o
Sistema de política positiva (1851-1854), Comte cultural.
enrijece sua imagem de ciência, quase a ponto de b) Por seu turno, a dinâmica social consiste no
absolutizá-la: condena pesquisas especializadas, estudo das leis de desenvolvimento da sociedade. Sua
inclusive experimentais, o uso excessivo do cálculo e lei fundamental é a dos três estágios. Também o
qualquer pesquisa cientifica cuja utilidade não seja progresso social segue essa lei. Ao estágio teológico
evidente. Por isso, em sua opinião, deve-se confiar a corresponde a supremacia do poder militar (é o caso do
ciência não aos cientistas, mas aos “verdadeiros feudalismo); ao estágio metafísico, corresponde a
filósofos”, ou seja, a todos os que estio “dignamente revolução (que começa com a Reforma protestante e
dedicados ao sacerdócio da humanidade”.
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termina com a Revolução Francesa); ao estágio ordenamento das ciências. A partir de sua plataforma
positivo, corresponde a sociedade industrial. matemática, as ciências positivas são hierarquizadas
Mas através de que caminhos podemos segundo um grau decrescente de generalidade e
conhecer as leis da sociedade? Na opinião de Comte, os crescente de complicação: astronomia, física, química,
caminhos para alcançar o conhecimento sociológico biologia e sociologia.
são a observação, o experimento e o método Nesse esquema não estão abrangidas a teologia,
comparativo. a metafisica e a moral, pois as duas primeiras não são
A observação dos fatos sociais é observação ciências positivas, ao passo que a terceira é abrangida
direta e enquadrada na teoria, isto é, na teoria dos três pela sociologia.
estágios. Em sociologia o experimento não é tão A psicologia, também excluída da relação, é
simples como em física ou em química, já que não se reduzida por Comte em parte à biologia e em parte à
pode mudar as sociedades à vontade; entretanto, da sociologia. Também a matemática não figura na relação,
mesma forma que em biologia, também na sociologia mas o primeiro volume do Curso de filosofia positiva é todo
os casos patológicos, alterando o nexo normal dos dedicado à matemática, que, de Descartes e Newton
acontecimentos, substituem de certo modo o para cá, é a verdadeira base fundamental de toda a
experimento. O método comparativo estuda as filosofia natural, isto é, de todas as ciências, no sentido
analogias e as diferenças entre as diversas sociedades, de que ela é a imensa e admirável extensão da lógica
nos seus respectivos estágios de desenvolvimento. natural a certa ordem de deduções.
Segundo Comte, é o método histórico que Comte pretende que a ordem das ciências por
constitui “a única base fundamental sobre a qual pode ele proposta seja simultaneamente ordem lógica,
realmente se basear o sistema da lógica política". histórica e pedagógica.
A ordem lógica é dada pelo critério da
Objeto de estudo da Sociologia simplicidade do objeto: primeiro vêm as ciências, que,
em sua opinião, tem objeto mais simples; depois,
O objeto de Estudo da sociologia são os caminha-se pouco a pouco até a sociologia, que teria o
problemas sociais. Ela surgiu da busca por soluções objeto mais complexo.
racionais, científicas, de acordo com a pretensão de A ordem histórica pode ser identificada na
Augusto Comte, para os problemas sociais provocados passagem de cada uma das ciências ao estado positivo:
pela Revolução Industrial e pela decomposição da a astronomia saiu da metafisica com Copérnico, Kepler
ordem social aristocrática na França do início do século e Galileu; a física alcançou o estado positivo graças às
XIX. obras de Huygens, Pascal, Papin e Newton; a química
O problema da falta de moradia urbana, por saiu de seu limbo metafisico com Lavoisier; a biologia,
exemplo, pode ser considerado um problema social por com Bichat e Blainville.
ter consequências sociais. Resta a sociologia, que, como ciência positiva,
ainda se encontra no estado programático. E Comte,
precisamente, esforçou-se por realizar esse programa. A
ordem pedagógica é dada pelo fato de que se deveria
ensinar as ciências na mesma ordem de sua gênese
histórica.
Na hierarquia de Comte, as ciências mais
complexas pressupõem as menos complexas: a
sociologia pressupõe a biologia, que pressupõe a física.
Entretanto, isso não significa que as ciências superiores
sejam redutíveis às inferiores. Cada qual tem sua
autonomia, suas leis autônomas. E a sociologia,
No entanto, a realidade que nos circunda é portanto, não pode se reduzir à biologia nem a
complexa. Nesse caso, para estudar os fenômenos psicologia. A sociedade tem realidade natural e
sociais é necessário classificá-los, como assinalou René originária. Os homens vivem em sociedade porque isso
Descartes em sua obra Discurso do Método: “para integra sua natureza social. Os homens são sociáveis
compreender e resolver um problema é necessário, desde o início, não havendo necessidade de nenhum
antes de mais nada, dividi-lo em tantas parcelas quantas “contrato social” para associa-los, como queria
pudessem ser e fossem exigidas”. Rousseau.
Ainda um ponto muito importante. A filosofia
A classificação das ciências não é nomeada na classificação das ciências de Comte.
Qual é, então, o lugar da filosofia no pensamento de
A sociologia, cuja construção é tarefa urgente Comte?
da filosofia política, coloca-se no vértice do

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Para Comte, a filosofia não é o conjunto de Comte tem uma visão organicista e
todas as ciências. Ele vê a função da filosofia em funcionalista da sociedade, ou seja, ela é um grande
“determinar exatamente o espírito de cada uma delas, organismo que para funcionar bem cada parte tem que
em descobrir suas relações e conexões e em resumir, se cumprir bem o seu papel. Indivíduos, classes e
possível, todos os seus princípios próprios em número instituições cumprem funções essenciais para que o
mínimo de princípios comuns, em conformidade com todo funcione com ordem e gere o progresso.
o método positivo”. De seu ponto de vista, o progresso deveria ser
A filosofia, portanto, se reduz a metodologia o alvo a se atingir, mas sempre com ordem, para que
das ciências; ela, escreve Comte, “é o único e verdadeiro não ocorresse o caos novamente. Daí o seu lema “o
meio racional para evidenciar as leis lógicas do espirito amor por princípio, a ordem por base, o progresso por
humano”. fim”. Mas Comte não chegou a viabilizar a sua
aplicação. Seu trabalho apenas iniciou uma discussão
Sociedade e capitalismo que deveria ser continuada, a fim de que a Sociologia
viesse a alcançar um estágio de maturidade e
Como positivista ele acreditava que a ciência aplicabilidade.
deveria ser utilizada para organizar a ordem social. Na No Brasil o positivismo teve uma influência tão
visão dele, naquela época, a sociedade estava em grande entre os militares que proclamaram a república
desordem, orientada pelo caos. que eles estamparam um de seus lemas na nossa
A obra de Comte está permeada pelos bandeira.
acontecimentos que marcaram a França pós-
revolucionária. Para ele, essa desordem e anarquia
imperavam por causa da confusão de princípios
(teológicos e metafísicos) que não davam conta mais de
explicar a nova sociedade industrial em expansão.
Devemos considerar que Comte vislumbrava o
mundo moderno que surgia, isto é, um mundo cada vez
mais influenciado pela ciência e pela consolidação da
indústria, e a crise gerada por uma certa anarquia moral
e política quando da transição do sistema feudal
(baseado nas atividades agrárias, na hierarquia, no
patriarcalismo) para o sistema capitalista (baseado na
indústria, no comércio, na urbanização, na exploração
do trabalhador). Era essa positividade (instaurar a
disciplina e a ordem) que ele queria para a Sociologia.
Assim sendo, quando Comte pensava a A religião da humanidade
Sociologia, era como se fosse uma “criança” sendo
gestada, na qual colocava toda sua crença de que Na última grande obra de Comte, o Sistema de
poderia estudar e entender os problemas sociais que política positiva (1851-1854), a intenção comtiana de
surgiam e reestabelecer a ordem social e o progresso da regenerar a sociedade com base no conhecimento das
civilização moderna. leis sociais assume as formas de uma religião, na qual o
Ele queria que a Sociologia estudasse de forma amor a Deus é substituído pelo amor a humanidade. A
aprofundada os movimentos das sociedades no passado humanidade é o ser que transcende os indivíduos. Ela é
para se entender o presente e, inclusive, para imaginar composta por todos os indivíduos vivos, pelos mortos
o futuro da sociedade. e pelos ainda não nascidos. Em seu interior, os
Comte via a consolidação do sistema capitalista indivíduos se substituem como as células de um
como sendo algo necessário ao desenvolvimento das organismo. Os indivíduos são o produto da
sociedades. Esse novo sistema, bem como o abandono humanidade, que deve ser venerada como o eram
da teologia para explicação do mundo seriam parte do outrora os deuses pagãos.
progresso das civilizações. Fascinado pelo catolicismo, em virtude do seu
Já os problemas sociais ou desordens que universalismo e de sua capacidade de envolver em si
surgiam eram considerados obstáculos que deveriam toda a vida humana, Comte sustenta que a religião da
ser resolvidos para que o curso do progresso pudesse humanidade deve ser a cópia exata do sistema
continuar. Portanto, a Sociologia se colocaria, na visão eclesiástico.
deste autor, como uma ciência para solucionar a crise Os dogmas da nova fé já estão prontos: são a
das sociedades daquela época, sem, no entanto, mudar filosofia positiva e as leis cientificas.
sua estrutura básica.

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de Saint-Simon e seus seguidores, mais tarde leitor e


correspondente de Comte (cujas ideias autoritárias e
despóticas refutaria), desde jovem, quando leu Bentham
pela primeira vez, em
1821, acreditava possuir o
que pode ser chamado de
“objetivo de vida”: “ser
um reformador do
mundo”.
E pelo resto de
sua vida, Stuart Mill
trabalhou com muita
Igreja positivista do Brasil intensidade, dentro da
Os ritos, os sacramentos, o calendário e o tradição empirista,
sacerdócio são necessários para a difusão de novos associacionista e
dogmas. Haverá um batismo secular, uma crisma utilitarista, construindo
secular e uma unção dos enfermos secular. O anjo da com muita intensidade um conjunto de teorias lógicas e
guarda positivo será a mulher (não devemos nos ético-políticas que marcaram a segunda metade do
esquecer da idealização que Comte fez da mulher século XIX inglês e que até hoje constituem pontos de
amada, Clotilde de Vaux). Os meses tomarão nomes referência e etapas obrigatórias, tanto para o estudo da
significativos da religião positiva (por exemplo, lógica da ciência como para a reflexão no campo ético
Prometeu), e os dias da semana serão consagrados cada e político.
um a uma das sete ciências. Serão construídos templos De fato, se o ensaio Sobre a liberdade (1859) -
leigos (institutos científicos). Um papa positivo exercerá escrito em colaboração com sua mulher - é um clássico
sua autoridade sobre as autoridades positivas que se da defesa dos direitos da pessoa, seu Sistema de lógica
ocuparão do desenvolvimento das industrias e da raciocinativa e indutiva (1843) continua um clássico da
utilização prática das descobertas. Na sociedade logica indutiva.
positiva, os jovens serão submetidos aos anciãos e o
divórcio será proibido. A mulher torna-se a protetora e O silogismo não aumenta o nosso conhecimento
a fonte da vida sentimental da humanidade.
A lógica, diz Mill, é a ciência da prova, isto é,
do modo correto de inferir proposições de outras
proposições. Por isso, ele trata em primeiro lugar dos
nomes e das proposições, em que reside toda verdade
e todo erro.
Mas as argumentações são cadeias de
proposições, que deveriam levar a conclusões
verdadeiras se as premissas forem verdadeiras. E o
silogismo foi considerado como tipo de argumentação
válida.
Qual é, porém, o valor do silogismo?
Examinemos o seguinte silogismo: “Todos os homens
A humanidade é o “grande ser”; o espaço, o são mortais; o duque de Wellington é homem; logo, o
“grande ambiente”; e a terra, o “grande fetiche” - essa duque de Wellington é mortal”. Concluímos então que
é a trindade da religião positiva. “o duque de Wellington é mortal”, a partir da
proposição de que “todos os homens são mortais”.
Todavia, como sabemos que todos os homens são
4. O POSITIVISMO UTILITARISTA INGLÊS mortais? Sabemo-lo porque vimos a morte de Paulo,
4.1 JOHN STUART MILL Francisco, Maria e tantos outros, e porque outros nos
contaram terem visto morrer outras pessoas. Portanto,
John Stuart Mill (1806-1873) foi educado de é da experiência que extraímos a verdade da proposição
modo metódico e severo pelo pai (é impressionante “todos os homens são mortais”.
todo o trabalho que James fazia o filho realizar). E a experiência nos faz observar apenas casos
Crescido na atmosfera cultural inglesa do individuais.
liberalismo, amigo do economista francês Jean-Baptiste Por isso, a tese fundamental de Mill é a de que
Say (que visitou na França), influenciado pelos escritos “toda inferência é de particular para particular”, ao
passo que a única justificação do “isso será” é o “isso
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foi”. E a proposição “geral” é o expediente para do conhecido para o desconhecido, de fatos observados
conservar na memória muitos fatos particulares. Para para fatos não observados, do que percebemos ou do
Mill, todos os nossos conhecimentos e todas as que ficamos diretamente conscientes para o que não
verdades são de natureza empírica, até as proposições entrou em nossa experiência. Nessa afirmação está toda
das ciências dedutivas, como a geometria. a área do futuro, mas também a parte, de longe maior,
Na opinião de Mill, o silogismo é estéril, pois do presente e do passado”.
não aumenta nosso conhecimento: o fato de o duque O princípio de indução (uniformidade da
de Wellington ser mortal é uma verdade que já está natureza ou princípio de causalidade), portanto, é o
incluída na premissa segundo a qual todos os homens axioma geral das inferências indutivas, que é a premissa
são mortais. maior última de toda indução. Mas qual é o valor desse
Mas aqui as coisas se complicam, pois, se é princípio? Será ele evidente a priori? Não, responde Mill:
verdade que todo o nosso conhecimento é obtido por “A verdade é que essa grande generalização também
observação e experiência, e se é verdade que a está baseada em generalizações precedentes. As mais
experiência e a observação sobre as quais devemos nos obscuras leis da natureza foram descobertas por seu
basear nos oferecem sempre um número limitado de meio, mas as mais óbvias provavelmente foram
casos, como teremos então legitimidade para formular entendidas e aceitas como verdades gerais antes que
proposições gerais como “todos os homens são delas sequer se ouvisse falar”. Em outras palavras, as
mortais”, ou as leis universais da ciência? Como, a partir mais óbvias generalizações descobertas no início (o
do fato de que Pedro, José e Tomas morreram, dizemos fogo queima, a agua molha etc.) sugerem o princípio da
que todos os homens são mortais? uniformidade da natureza. Uma vez formulado, esse
Esse, na realidade, é o difícil problema da princípio foi proposto como fundamento das
indução. Diz Mill: “A indução é o processo com o qual generalizações indutivas; estas, depois de descobertas,
concluímos que aquilo que é verdadeiro de certos atestam o princípio da uniformidade, pel0 qual “é uma
indivíduos de uma classe é verdadeiro para toda a classe, lei que todo acontecimento dependa de alguma lei”, e
ou que aquilo que é verdadeiro em certos momentos “para cada acontecimento existe alguma combinação de
será verdadeiro em circunstâncias semelhantes em todo objetos ou acontecimentos [...] cuja ocorrência é sempre
momento”. seguida daquele fenômeno”.
Segundo Mill, a indução é generalização a partir Estes são, portanto, de modo geral, alguns dos
da experiência. Ela consiste em inferir, a partir de alguns traços de fundo da lógica indutiva de Mill.
casos isolados em que se observa que o fenômeno se
verifica, que ele se verifica também em todos os casos As ciências morais
de certa classe, ou seja, em todos os que se assemelham
aos anteriores naquelas que consideramos como O livro VI do Sistema de lógica diz respeito à lógica
circunstâncias essenciais. das ciências morais. Nele Mill reafirma a liberdade do
querer humano.
O princípio de indução Se conhecêssemos uma pessoa profundamente
e, portanto, conhecêssemos todos os moventes que
Para distinguir as circunstâncias essenciais das nela agem, diz Mill, poderíamos predizer seus
não essenciais, ou seja, tendo em vista escolher, entre as comportamentos com a mesma certeza com que
circunstâncias que precedem ou se seguem a um prevemos qualquer comportamento físico.
fenômeno, aquelas às quais realmente está ligado por lei Todavia, tal necessidade filosófica não é fatalidade. A
invariável, Mill propõe aqueles que ele chama de “Os fatalidade é constrição misteriosa e impossível de
quatro métodos da indução”: o método da mudar. A necessidade filosófica, ao contrário, não
concordância, o método da diferença, o método das impede que, urna vez conhecida, possamos agir sobre a
variações concomitantes e o método dos resíduos. causa da própria ação, como agimos sobre as causas dos
Nesse caso, porém, a questão mais candente é a processos naturais.
do fundamento das inferências indutivas ou indução: Portanto, não há divergência entre liberdade do
em suma, qual é a garantia para todas as nossas indivíduo e ciências da natureza humana. E, entre as
inferências a partir da experiência? ciências da natureza humana, Mill propõe em primeiro
Na opinião de Mill, essa garantia encontra-se no lugar a psicologia, que “tem por objeto a uniformidade
princípio segundo o qual “o curso da natureza é de sucessão [...], segundo a qual um estado mental
uniforme”: esse é o princípio fundamental ou axioma sucede a outro”.
geral da indução. E esse princípio foi formulado de É a uma ciência particular “ainda por criar”, isto
diversos modos: o universo é governado por leis, o é, a etologia (de ethos = caráter), que Mill atribui a função
futuro se assemelhara ao passado. de estudar a formação do caráter, com base nas leis
Mas a realidade é que “nós não inferimos do gerais
passado para o futuro enquanto passado e futuro, e sim
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da mente e da influência das circunstâncias sobre o sentimento predominantes, contra a tendência da


caráter. E se a etologia é complexa, mais complexa sociedade a impor, com outros meios além das
ainda é a ciência social que estuda “o homem em penalidades civis, suas próprias ideias e seus costumes
sociedade, as ações das massas coletivas de homens e como regras de conduta para os que dela se dissociam".
dos vários fenômenos que constituem a vida social”. O que Mill defende é o direito do indivíduo a
De 1861 é o Utilitarismo. A ideia central do viver como lhe aprouver: “Cada qual é o guardião único
trabalho de Mill é a de Bentham: “Segundo o princípio de sua própria saúde, seja corporal, seja mental e seja
da máxima felicidade, o fim último em razão do qual ainda espiritual”. E isso pelo motivo fundamental de
todas as outras coisas são desejáveis é uma existência o que o desenvolvimento social é consequência do
tanto quanto possível isenta de dores e o mais rica desenvolvimento das mais variadas iniciativas
possível de prazeres”. individuais.
Até aí Mill está de acordo com Bentham. Mas, Naturalmente, a liberdade de cada um encontra
diferentemente de Bentham, afirma que se deve levar seu limite na liberdade do outro. Cabe ao indivíduo
em conta não somente a quantidade de prazer, mas “não lesar os interesses alheios ou aquele determinado
também grupo de interesses que, por expressa disposição da lei
a qualidade: "É preferível ser um Sócrates doente do que ou por tácito consenso, devam ser considerados como
um porco satisfeito”. Para saber “qual de duas dores é direitos”. Cabe-lhe também assumir sua parte nas
a mais aguda ou qual de dois prazeres o mais intenso, é responsabilidades e sacrifícios necessários à defesa da
preciso confiar no juízo geral de todos os que têm sociedade e de seus membros contra todo prejuízo ou
prática de umas e de outros”. E, para Mill, também não dano.
se delineia o contraste entre a maior felicidade do
indivíduo e a felicidade do conjunto: é a própria vida
social que nos educa, e radica em nós sentimentos
desinteressados.
Também são notáveis os ensaios publicados
postumamente Sobre a religião (1874). A ordem do mundo
comprova uma inteligência ordenadora. Mas isso não
nos autoriza a dizer que Deus tenha criado a matéria,
que ele seja onipotente ou onisciente.
Como mais tarde em William James, em suma,
Deus não é o Todo Absoluto; o homem é colaborador
de Deus ao pôr ordem no mundo e ao produzir
harmonia e justiça.
A liberdade civil implica:
Para Mill, a fé é esperança que ultrapassa os
a) liberdade de pensamento, de religião e de
limites da experiência. Mas, pergunta-se ele, “por que
expressão;
não nos deixarmos guiar pela imaginação a uma
b) liberdade de gostos e liberdade de projetar
esperança, ainda que jamais se possa produzir uma
nossa vida segundo nosso caráter;
razão provável de sua realização”?
c) liberdade de associação. A ideia de Mill,
portanto, é a da maior liberdade possível de cada um
A defesa da liberdade do indivíduo
para o bem-estar de todos.
No espírito do livro Sobre a liberdade, de 1859,
À liberdade individual é dedicado o ensaio Sobre
Mill escreveu o ensaio Sobre a servidão das mulheres. Trata-
a liberdade (1859), fruto da colaboração do filósofo com
se de páginas de elevada sensibilidade moral e de grande
sua mulher. Talvez ainda hoje esse livro seja a defesa
agudeza na análise social. Ha séculos que a mulher é
mais lúcida e rica de argumentação da autonomia do
considerada inferior “por natureza”. Mas, recorda Mill,
indivíduo. Mill estava profundamente convencido do
a “natureza feminina” é fato artificial, fato histórico. As
valor desse livro, pois escrevia em sua Autobiografia
mulheres são relegadas à marginalidade em benefício
que ele sobreviveria mais do que qualquer outro livro
exclusivo dos homens, tanto na família como, segundo
seu (com a possível exceção da Lógica).
o que ocorria então na Inglaterra, nas fabricas,
O núcleo teórico do trabalho está em reafirmar
afirmando-se, além disso, que elas não tem dotes que
“a importância, para o homem e a sociedade, de ampla
possam fazê-las se destacar na ciência ou na arte.
variedade de características e de completa liberdade da
Mill sustenta que o problema deve ser resolvido
natureza humana a expandir-se em direções
com meios políticos: criar as condições sociais de
inumeráveis e contrastantes”.
paridade entre homem e mulher.
Na opinião de Mill, não basta que a liberdade
As ideias de Mill sobre a emancipação feminina
seja protetora do despotismo do governo, mas também
encontraram grande ressonância na Inglaterra na virada
precisa ser protegida contra “a tirania da opinião e do
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do século, no seio do movimento feminista pelo Por tudo isso, religião e ciência são conciliáveis:
sufrágio universal. ambas reconhecem o absoluto e o incondicionado.
Na Inglaterra o direito de voto para as mulheres Mas, se a função das religiões é manter vivo o sentido
foi aprovado em 1919. do místico, a função da ciência é a de estender sempre
para além o conhecimento do relativo, sem nunca
4.2 HERBERT SPENCER captar o absoluto.
E se a religião erra ao se apresentar como
Religião e ciências são correlatas conhecimento positivo do incognoscível, a ciência erra
Charles Darwin ao pretender incluir o incognoscível no interior do
publicou A origem das espécies conhecimento positivo. Entretanto, diz Spencer, tais
em 1859. Antes, porém, em contrastes estão destinados a se atenuar sempre mais
1852, Herbert Spencer com o tempo. E “quando a ciência estiver convencida
(1820-1903) publicara a de que suas explicações são próximas e relativas e a
Hipótese do desenvolvimento, que religião estiver convencida de que o mistério que ela
apresenta uma concepção contempla é absoluto, reinará entre ambas uma paz
evolucionista. permanente”.
Em 1855 apareciam Para Spencer religião e ciência sio correlatas.
os Princípios de psicologia, em Elas são “como que o polo positivo e o polo negativo
que a teoria evolucionista era do pensamento: um não pode crescer em intensidade
desenvolvida amplamente. E sem aumentar a intensidade do outro”. E, observa
em 1860 Spencer anunciou agudamente Spencer, se a religião teve “o mérito
um projeto de Sistema de filosofia, que deveria abranger elevado de ter entrevisto desde o início a verdade última
todo o cognoscível. Fixou Os primeiros princípios desse e nunca ter deixado de nela insistir”, também é verdade
sistema em um volume que apareceu em 1862, no qual que foi a ciência que ajudou ou forçou a religião a se
a teoria evolutiva se apresenta como grandiosa purificar de seus elementos não-religiosos, como os
metafísica do universo, dando lugar a uma concepção elementos animistas e mágicos.
otimista do devir, visto como progresso irreprimível.
Já no primeiro capítulo, Os primeiros princípios O papel da filosofia no pensamento de Spencer
tratam da complexa e delicada questão das relações
entre religião e ciência. Spencer sustenta que a realidade Mas qual o lugar e qual a função da filosofia no
última é incognoscível e que o universo é um mistério. pensamento spenceriano? Em Os primeiros princípios, a
Isso é atestado pela religião e pela ciência. Toda filosofia é definida como “o conhecimento do mais alto
teoria religiosa “é uma teoria a priori do universo”, e grau de generalidade”.
todas as religiões, prescindindo de seus dogmas Para Spencer, as verdades cientificas
específicos, reconhecem que “o mundo, com tudo desenvolvem, ampliam e aperfeiçoam os
aquilo que contém e que o circunda, é mistério que pede conhecimentos do senso comum. Entretanto, elas
explicação, e que a potência de que o universo é existem separadas, até quando, em um processo
manifestação é completamente impenetrável”. Por continuo de unificação, são agrupadas e logicamente
outro lado, na pesquisa cientifica, “por maior que seja o organizadas a partir de algum princípio fundamental de
progresso feito na vinculação dos fatos e na formação mecânica, de física molecular, e assim por diante.
de generalizações sempre mais amplas, a verdade Pois bem, segundo ele, “as verdades da filosofia
fundamental continua mais inacessível do que nunca. têm com as mais altas verdades da ciência a mesma
Mais do que qualquer outro, o cientista vê com relação que cada uma delas tem como as mais humildes
certeza que nada pode ser conhecido em sua última verdades científicas. Como toda ampla generalização da
essência. Os fatos são explicados; as explicações, por ciência abrange e consolida as mais estritas
seu turno, também são explicadas; mas haverá sempre generalizações de suas próprias partes, da mesma forma
uma explicação a explicar; por isso, a realidade última é as generalizações da filosofia abrangem e consolidam as
e permanecerá sempre incognoscível. amplas generalizações da ciência”.
Assim, as religiões atestam o mistério que A filosofia, portanto, é a ciência dos primeiros
sempre exige ser interpretado e as ciências remetem a princípios, onde se leva ao limite extremo o processo de
um absoluto que elas, como conhecimentos relativos, unificação do conhecimento: “o conhecimento de
jamais captarão. Mas o absoluto existe, caso contrário ínfimo grau é não unificado; a ciência é um conhecimento
não poderíamos falar de conhecimentos relativos. E, parcialmente unificado; a filosofia é conhecimento
por outro lado, nós podemos estar seguros de que as completamente unificado”.
religiões, ainda que nenhuma seja verdadeira, são todas, Para alcançar esse objetivo, a filosofia não pode
porém, pálidas imagens de uma verdade. deixar de partir dos que são os princípios mais vastos e

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gerais a que a ciência chegou. Para Spencer, tais homogeneidade indefinida e incoerente para uma
princípios são: heterogeneidade definida e coerente, ao passo que o
a) a indestrutibilidade da matéria; movimento contido sofre uma transformação paralela”.
b) a continuidade do movimento;
c) a persistência da força. O evolucionismo em biologia
Princípios desse tipo não são próprios de uma
só ciência, pois interessam a todas as ciências. E, por A evolução do universo é um processo
outro lado, são unificados em um princípio mais geral, necessário. O ponto de partida da evolução é a
que, na opinião de Spencer, é o “da distribuição homogeneidade, que é um estado instável.
continua da matéria e do movimento”. Na realidade, E em todos os casos encontramos progresso
escreve ele, “o repouso absoluto e a permanência em direção ao equilíbrio. No que se refere ao homem,
absoluta não existem; todo objeto, bem como a reunião “a evolução só pode terminar [...] com o
de todos os objetos, sofre a cada instante alguma estabelecimento da maior perfeição e da mais completa
mudança de estado". felicidade”.
A lei dessa incessante e geral mudança é a lei da Naturalmente, as condições de equilíbrio
evolução. podem não durar, podem desaparecer e se destruir, mas
também a condição de caos e dissolução não pode ser
A evolução do universo definitiva, já que dela se inicia novo processo de
evolução.
Portanto, o universo progride, e progride para
melhor. Aí reside o otimismo do positivismo
evolucionista de Spencer.
Spencer apresenta urna visão metafísica do
evolucionismo. Mas ele também tentou especificar sua
teoria em vários e precisos terrenos. No que se refere
à biologia, Spencer sustenta que a vida consiste na
adaptação dos organismos ao ambiente, que, mudando
Foi em 1857, em um artigo sobre o progresso, continuamente, os desafia. Os organismos respondem
que Spencer introduziu pela primeira vez no a esse desafio diferenciando seus órgãos.
vocabulário filosófico-cientifico o termo “evolução”. É assim que Spencer reconhece o princípio de
Dois anos depois, Darwin tornou o termo célebre com Lamarck, segundo o qual a função, isto é, o exercício
seu livro sobre a evolução das espécies por obra da prolongado de uma reação específica do ser vivo,
seleção natural. precede e, lentamente, produz a determinação dos
Mas, enquanto Darwin se limita a evolução dos órgãos. Depois, uma vez que o ambiente agiu sobre o
seres vivos, Spencer fala de evolução do universo. ser vivo, produzindo estruturas e órgãos diferenciados,
Conforme Spencer, as características essenciais então a seleção natural - sobre a qual Spencer pensa
da evolução são três: como Darwin - favorece “a sobrevivência do mais
1) A primeira característica da evolução é que adaptado”.
ela é passagem de uma forma menos coerente a uma Sobre a questão da derivação da vida orgânica a
mais coerente (por exemplo, o sistema solar, que saiu partir da vida inorgânica, Spencer inclina-se a
de uma nebulosa). considerar que a vida orgânica tenha origem em uma
2) A segunda característica fundamental é a de massa que, embora indiferenciada, possui, no entanto,
que ela é passagem do homogêneo ao heterogêneo. a capacidade de se organizar.
Este fato, sugerido a Spencer pelos fenômenos
biológicos (as plantas e os animais se desenvolvem O evolucionismo em psicologia
diferenciando orgãos e tecidos diversos), vale também
para o desenvolvimento de qualquer âmbito da Diversamente de Comte, Spencer pensa que a
realidade. psicologia seja possível como ciência autônoma. Sua
3) A terceira característica da evolução é que ela função é examinar as manifestações psíquicas dos graus
é passagem do indefinido ao definido, como no caso da mais baixos (por exemplo, os movimentos reflexos)
passagem de uma tribo selvagem a um povo civilizado, para chegar s formas mais evoluídas, como se
onde tarefas e funções estão claramente especificadas. manifestam na criação das obras de arte ou no trabalho
Determinadas as características da evolução, de pesquisa dos grandes cientistas.
Spencer lhe dá a seguinte definição: “A evolução é uma Além disso, Spencer reconhece na consciência
integração de matéria acompanhada por dispersão de humana elementos a priori, no sentido de que são
movimento, em que a matéria passa de uma independentes da experiência singular e temporal do
indivíduo.
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Nesse sentido, portanto, Leibniz e Kant teriam ele propõe aquela que ele próprio define como redução
razão. Todavia, recorda Spencer (e essa questão é de da teologia e da religião a antropologia.
grande interesse), aquilo que é a priori para o indivíduo
é a posteriori para a espécie, no sentido de que Não é Deus que cria o homem
determinados comportamentos intelectuais uniformes
e constantes são produto da experiência acumulada da Em 1837, Feuerbach era ainda fervoroso
espécie em seu desenvolvimento, que é transmitida por hegeliano. Mas, em 1839, as coisas já haviam mudado,
hereditariedade na estrutura orgânica do sistema porque no escrito Pela crítica da filosofia hegeliana há, sim,
nervoso. elogios a Hegel, mas também críticas: “Hegel começa
Ao contrário de Kant, neste caso a priori não com o ser, isto é, com o conceito de ser ou com o ser
equivale a válido: não está excluído que experiências e abstrato; por que eu não devo poder começar com o
esquemas fixos e herdados possam estar errados e que próprio ser, isto é, com o ser real?”
possam mudar. Para Feuerbach, Hegel “pôs de lado os
fundamentos e as causas naturais, as bases da filosofia
O evolucionismo em sociologia e em ética genético-crítica”. Mas uma filosofia que deixa de lado a
natureza é vã especulação.
Ainda diferentemente de Comte, Spencer
concebe uma sociologia orientada para a defesa do
indivíduo. Tanto em O homem contra o Estado (1884)
como em Estática social (1850, reeleborado em 1892),
e nos Princípios de sociologia (1876-1896), Spencer
sustenta que a sociedade existe para os indivíduos e não
vice-versa, e que o desenvolvimento da sociedade é
determinado pela realização dos indivíduos.
A ética de Spencer é uma ética naturalista-
biológica, que nem sempre concorda com a ética
utilitarista de Bentham e dos dois Mill.
Princípios éticos, normas e obrigações morais Em 1841 sai a obra mais importante de
são instrumentos de sempre melhor adaptação do Feuerbach, A essência do cristianismo, na qual o autor
homem às condições de vida. efetua o que ele próprio define como a redução da
E a evolução, acumulando e transmitindo por teologia e da religião a antropologia. O interesse pela
hereditariedade experiências e esquemas de religião estava claro para Feuerbach desde o início, e
comportamento, fornece ao indivíduo a priori morais permaneceu constante em todas as fases de seu
que, precisamente, são a priori para o indivíduo, mas a pensamento, que ele assim esquematiza: “Meu primeiro
posteriori para a espécie. pensamento foi Deus, meu segundo foi a razão, meu
E como alguns comportamentos essenciais para terceiro e último foi o homem”.
a sobrevivência da espécie (proteger a própria mulher, Hegel suprimira o Deus transcendente da
educar os filhos etc.) já não tem o peso da obrigação, tradição, substituindo-o pelo espírito, isto é, digamos, a
também ocorrerá com o progresso da evolução para os realidade humana em sua abstração. Mas aquilo que
outros deveres morais. Segundo Spencer, “As ações interessa a Feuerbach não é uma ideia de humanidade,
mais elevadas, requeridas para o desenvolvimento mas muito mais o homem real, que é, antes de mais
harmônico da vida, serão fatos tão comuns como hoje nada, natureza, corporeidade, sensibilidade,
o são as ações inferiores às quais nos impele o simples necessidade. Portanto, é preciso negar o idealismo, que
desejo”. é somente o extravio do homem concreto. E, com
maior razão, é preciso negar o teísmo, já que não é Deus
5. FEUERBACH que cria o homem, e sim o homem que cria Deus.
Ludwig Feuerbach
(1804-1872) é, depois de A teologia é antropologia
Marx, o maior representante
da esquerda hegeliana. Suas Feuerbach admite com Hegel a unidade entre o
Lições sobre a essência da finito e o infinito. Mas, em sua opinião, essa unidade
religião – apresentadas em não se realiza em Deus ou na ideia absoluta, e sim no
Heidelberg em 1848 - foram homem, em um homem que a filosofia não pode
publicadas em 1851. Em 1841 reduzir a puro pensamento, mas sim deve considerar
Feuerbach havia publicado em sua inteireza, em sua naturalidade e em sua
sua obra mais importante: A
essência do cristianismo. É aí que
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sociabilidade. E a religião sempre desempenhou um Eis, portanto, desvelado o mistério da religião:


papel fundamental na história do homem concreto. Feuerbach substitui o Deus do céu por outra divindade,
A filosofia não tem a função de negar ou o homem “de carne e de sangue”. E, assim, pretende
ridicularizar esse grande fato humano que é a religião. substituir a moral que recomenda o amor a Deus pela
Deve compreendê-lo. E o compreende, afirma moral que recomenda o amor ao homem em nome do
Feuerbach, quando se dá conta de que a consciência que homem. Essa é a intenção do humanismo de
o homem tem de Deus é a consciência que o homem Feuerbach: a de transformar os homens de amigos de
tem de si. Em outros termos, o homem põe suas Deus em amigos dos homens, “de homens que crêem
qualidades, suas aspirações e seus desejos fora de si, em homens que pensam, de homens que oram em
afasta-se, aliena-se e constrói sua divindade. homens que trabalham, de candidatos ao além em
A religião, portanto, está no relacionar-se do estudiosos do aquém, de cristãos - que, por seu próprio
homem com sua própria essência (nisso consiste sua reconhecimento, são metade animais e metade anjos –
verdade), mas sua essência não como sua e sim como em homens em sua inteireza".
outra essência, separada e dividida dele, até oposta Inicialmente, a esquerda hegeliana usou Hegel
(nisso consiste sua falsidade). A religião, pois, é a contra a teologia e a filosofia tradicional. E,
projeção da essência do homem. Deus é o espelho do posteriormente, dirigiu suas críticas contra as
homem, afirma Feuerbach. “abstrações” hegelianas, em nome do homem concreto,
Na oração, o homem adora seu próprio do indivíduo em particular ou da política revolucionaria.
coração; o milagre é o desejo sobrenatural realizado; Substancialmente, a esquerda hegeliana
“Os dogmas fundamentais do cristianismo são desejos combateu a fé cristã em nome de uma metafísica
realizados do coração”. imanentista, e as abstrações da filosofia hegeliana em
Para Feuerbach, a religião é fato humano, nome da “concretude”.
totalmente humano. E isso ainda que o homem religioso
não tenha consciência do caráter humano do seu 6. SOCIALISMO UTÓPICO - PIERRE-JOSEPH
conteúdo, não admita que o seu conteúdo seja humano. PROUDHON
Mas, comenta Feuerbach, assim como o homem pensa
quais sejam os seus princípios, tal é o seu Deus: quanto Lênin escreveu que "o marxismo t o sucessor
o homem vale, tanto e não mais vale o seu Deus. Tu legitimo de tudo o que a humanidade criou de melhor
conheces o homem pelo seu Deus e, reciprocamente, durante o século XIX: a filosofia alemã, a economia
Deus pelo homem; um e outro se identificam. Deus é o política inglesa e o socialismo francês”.
íntimo revelado, a essência do homem expressa; a Esse “socialismo francês” t aquele que, com ou
religião é a revelação solene dos tesouros ocultos do sem razão, foi depois chamado de socialismo utópico, e que
homem, a profissão pública de seus segredos de amor. relaciona entre seus pensadores mais significativos
É esse o sentido da tese de Feuerbach, segundo Saint-Simon, Fourier e Proudhon.
o qual o núcleo secreto da teologia é a antropologia. Diz
ele que o homem desloca seu ser para fora de si antes A propriedade é um “furto”
de encontrá-lo em si. E esse encontro, essa aberta
confissão ou admissão de que a consciência de Deus
nada mais é do que a consciência da espécie, Feuerbach
o vê como reviravolta da história. Finalmente, na
história o homem é Deus.
Assim, todas as qualificações do ser divino são
qualificações do ser humano. O ser divino é unicamente
o ser do homem libertado dos limites do indivíduo, isto
é, dos limites da corporeidade e da realidade, mas
objetivado, ou seja, contemplado e adorado como outro
ser, distinto dele.

O “humanismo” de Feuerbach

Todavia - e essa pergunta não pode ser evitada


-, por que o homem se alheia, por que constr6i a Em 1840, Proudhon (1809-1865) publicou o
divindade sem nela se reconhecer? Feuerbach famoso escrito O que é' a propriedade?; em 1843, aparece
responde: porque o homem encontra uma natureza A criação da ordem na humanidade; em l846, O sistema das
insensível a seus sofrimentos, porque tem segredos que contradições econômicas ou filosofia da miséria; de 1858 são os
o sufocam; e, na religião, alivia seu próprio coração três volumes de A justiça na revolução e na Igreja. Promotor
oprimido.
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de movimentos sindicais, mutualistas e pacifistas, esteja envolvida, qualquer que seja o risco a que se
Proudhon era simultaneamente adversário da exponha sua defesa”.
propriedade privada tanto quanto do comunismo. Segundo Proudhon, a justiça é a lei do
Proudhon vê que a economia burguesa tem progresso. Ela não pode ser só ideia, mas deve ser força
como fundamento a propriedade privada. ativa do indivíduo e da vida associada. Deve valer
Mas o que é a propriedade? Responde “como a primeira e última palavra do destino humano
Proudhon: “A propriedade é furto”. Já se disse que tal e coletivo, a sanção inicial e final de nossa bem-
resposta foi como que um tiro de pistola disparado de aventurança”.
surpresa para chamar a atenção até do burguês tranquilo Proudhon rejeita a concepção da justiça que a
para a questão social. vê imposta ao homem a partir de fora, por Deus. Esta
A propriedade é furto, segundo Proudhon é a justiça da revelação, à qual Proudhon contrapõe a
porque o capitalista não remunera o operário com todo justiça da revolução, ou seja, aquela justiça imanente à
o valor do seu trabalho. A “força coletiva”, resultante consciência e à história humana.
da força de muitos trabalhadores organizados, fornece Para Proudhon, a justiça é imanente e
produtividade muito mais alta do que aquela que se progressiva.
obteria da soma de simples trabalhos individuais. E esse
o sentido da frase “a propriedade é furto”: o capitalista Crítica ao coletivismo e ao comunismo
se apropria do valor do trabalho coletivo.
E a partir daí se cria a contradição fundamental E precisamente através da ideia de justiça
entre capital e trabalho, contradição que leva o Proudhon desfere crítica decisiva contra qualquer
capitalista não só a se apropriar do trabalho do operário, solução coletivista do problema econômico. Se todos
mas também de sua própria existência. Para dizer a os meios de produção são colocados nas mãos do
verdade, Proudhon não é contrário à propriedade Estado, então a liberdade dos indivíduos é limitada até
enquanto tal, mas somente à propriedade que assegura o ponto da sufocação, aumentando a desigualdade
“renda sem trabalho”. social ao invés de diminui-la.
A propriedade se justifica unicamente como A ideia de Proudhon é de que o comunismo
condição de liberdade. Mas, quando está organizada de nunca poderá respeitar a dignidade da pessoa e os
modo a tornar livres uns poucos (os capitalistas) em valores da família. O comunismo não elimina os males
troca da escravidão de muitos (os trabalhadores), então da propriedade privada, mas muito mais os leva à
ela é furto. Somente o trabalho é produtivo. E o exasperação. No comunismo, o Estado torna-se
operário pode certamente se apropriar do fruto do seu proprietário não só dos bens materiais, mas também
trabalho. Mas isso é a posse e não a propriedade privada dos cidadãos. O comunismo pretende nacionalizar não
capitalista, que dá renda sem trabalho e escraviza só as indústrias, mas também a vida dos homens. Ele é
muitos em favor de poucos. o anúncio do Estado de caserna e do despotismo
policialesco.
Justiça como lei do progresso social Ao contrário, para Proudhon, trata-se de
reorganizar a economia, fazendo com que os
A ordem socioeconômica burguesa, portanto, trabalhadores se tornem proprietários dos meios de
está errada e deve ser mudada. Mas em que rumo? produção e, portanto, tenham a possibilidade de
Proudhon descarta logo a hipótese comunista, que autogerir o processo produtivo.
sujeita a pessoa à sociedade. Para Proudhon, o Desse modo, o tecido econômico da sociedade
comunismo é religião intolerante, orientada para a passa a se constituir como pluralidade de centros
ditadura. produtores, que se equilibram mutuamente.
Diferentemente dos comunistas, ele prefere
“fazer a propriedade queimar em fogo lento, ao invés 7. KARL MARX
de dar-lhe novas forças ao fazer uma noite de são
Bartolomeu dos proprietários”. Karl Marx nasceu em Trier, em 15 de maio de
Mas, se a hipótese comunista não funciona, a 1818, filho de Heinrich, advogado, e de Henriette
proposta individualista também não é adequada. Não é Pressburg, dona de casa. O pai e a mãe de Marx eram
adequada porque é ilusório o desenvolvimento sem de origem judaica.
limites da liberdade dos indivíduos. Em 15 de abril de 1841 laureou-se em filosofia,
Sendo assim, Proudhon propõe nova ordem social em Berlim, com a tese intitulada Diferença entre a filosofia
baseada na justiça. E, em A justiça na revolução e na Igreja, da natureza de Demócrito e a de Epicuro.
define a justiça como “o respeito, experimentado Após o caminho universitário, Marx passou ao
espontaneamente e reciprocamente garantido, pela jornalismo, tornando-se redator da “Gazeta Renana”,
dignidade humana, em qualquer circunstância em que órgão dos burgueses radicais da Renânia.

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Em pouco saíra sua outra obra fundamental, a Crítica da economia


tempo, Marx tornou-se política.
redator-chefe do jornal. Empenhado na atividade de organização do
Entretanto, em 21 de movimento operação, Marx conseguiu fundar em 1864,
janeiro de 1843, o jornal em Londres, a “associação internacional dos
foi oficialmente trabalhadores” (a primeira Internacional), que, depois
interditado. Nesse de vários contrastes e peripécias, dissolveu-se em 1872
período, Marx estudou (ainda que, oficialmente, sua dissolução só tenha sido
Feuerbach, e ficou decretada em 1876). A última década da vida de Marx
entusiasmado. No verão também foi período de intenso trabalho. Em 1875
de 1843, escreveu a publicou a Crítica ao programa de Gotha, tomando como
Crítica do direito público de alvo as doutrinas de Lassalle. Mas, mais do que qualquer
Hegel, cuja introdução foi outra coisa, trabalhou em O Capital. Ele morreu em 14
publicada em Paris, em de março de 1883, sendo sepultado três dias depois no
1844, nos “Anais franco-alemães”, fundados por Ruge, cemitério londrino de Highgate.
que convidou Marx para ser co-diretor.
Em Paris, Marx entrou em contato com 7.1 Crítica à Hegel
Proudhon e Blanc, encontrou Heine e Bakunin e,
sobretudo, conheceu Friedrich Engels, que seria seu O pensamento de Marx formou-se em contato
amigo e colaborador por toda a vida. e contra a filosofia de Hegel, as ideias da esquerda
De 1844 são seus Manuscritos econômico- filosóficos hegeliana, as obras dos economistas clássicos e as obras
(publicados em 1932). dos socialistas que ele próprio chamaria de “utópicos”.
Nesse meio tempo, colaborou com o “Avante”, Marx reconhece prontamente a profundidade
jornal dos artesãos comunistas, difundido na Alemanha. em Hegel “neste seu começar por toda parte com a
E precisamente por essa colaboração pagaria o preço de oposição das determinações”.
ser expulso da Franga (11 de janeiro de 1845). Nesse Entretanto, o afastamento de Marx em relação
tempo, amadurecia seu afastamento da esquerda a Hegel torna-se claro desde seus primeiros escritos, a
hegeliana. Em 1845 escreveu A sagrada família, trabalho começar pela Crítica da filosofia do direito de Hegel (1844),
em colaboração com Engels e dirigido contra os que critica a filosofia do direito de Hegel com base na
hegelianos de esquerda. situação histórica e política da Alemanha e na convicção
Ainda contra eles, Marx e Engels escreveram de que “as instituições jurídicas e políticas e as diversas
em Bruxelas (onde Marx se havia refugiado depois de formas de Estado não podem se explicar por si mesmas
sua expulsão da França) A ideologia alemã. As teses sobre e em virtude de um chamado desenvolvimento do
Feuerbach remontam a 1845 (mas Engels só as tornou espírito humano, mas são resultado das condições
públicas em 1888), ao passo que A miséria da filosofia, materiais de vida”.
resposta a Filosofia da miséria de Proudhon é de 1847, escrito Substancialmente, para Marx, a filosofia de
no qual Marx ataca o “socialismo utópico” em nome do Hegel interpreta o mundo de cabeça para baixo: é
“socialismo cientifico”. Marx permaneceu na Bélgica ideologia. Hegel raciocina como se as instituições
até 1848. E foi em janeiro de 1848 que ele ditou, existentes, como, por exemplo, a herança, derivassem
juntamente com Engels, o famoso Manifesto do partido de puras necessidades racionais, legitimando assim a
comunista, a pedido da “Liga dos comunistas”. ordem existente.
Desencadeado o movimento de 1848, Marx A realidade é que, segundo Marx, Hegel
voltou por breve período a Colônia, onde fundou a transforma em verdades filosóficas dados que são puros
“Nova Gazeta Renana”, que, porém, foi obrigada quase fatos históricos e empíricos.
que imediatamente a suspender suas publicações. E, assim, “por toda parte Hegel cai do seu
De Colônia voltou para Paris, mas, tendo-lhe espiritualismo político para o mais crasso
sido proibida a permanência na capital francesa, Marx materialismo”.
partiu para a Inglaterra, lá chegando em 24 de agosto de Marx, portanto, desfere contra Hegel duas
1849. acusações principais:
Na Inglaterra, Marx se estabeleceu em Londres, a) antes de mais nada, a de subordinar a
onde, entre dificuldades de toda sorte, conseguiu, com sociedade civil ao Estado;
a ajuda financeira do seu amigo Engels, levar a bom b) a de inverter o sujeito e o predicado: os
termo todas aquelas pesquisas de economia, história, indivíduos humanos, isto é, os sujeitos reais, tornam-se
sociologia e política que constituem a base de 0 Capital, em Hegel predicados da “substância mística” universal.
cujo primeiro volume saiu em 1867, ao passo que os Mas, reafirma Marx, “como não é a religião que cria o
outros dois foram publicados postumamente por homem, mas o homem que cria a religião, da mesma
Engels, respectivamente em 1885 e em 1894. Em 1859,
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forma não é a constituição que cria o povo, mas o povo a raiz é o próprio homem”. E a “libertação” do homem
que cria a constituição”. não avança reduzindo “a filosofia, a teologia, a
Assim, Hegel crê estar descrevendo a essência substância e toda a imundície à ‘autoconsciência’”, ou
do Estado, ao passo que, de fato, está descrevendo e libertando o homem do domínio dessas frases.
legitimando a realidade existente que é o Estado “A libertação é ato histórico e não ato ideal,
prussiano. Escreve Marx: “Hegel não deve ser concretizando-se por condições históricas, pelo estado
censurado por descrever o ser do Estado moderno tal da indústria, do comércio, da agricultura”. Os jovens
como é, mas sim por considerar aquilo que é como a hegelianos mantêm a teoria separada da práxis; Marx as
essência do Estado”. une.
O problema, portanto, é que em Hegel, depois
de ter concebido a essência ou substância da pera ou da 7.3 Crítica aos economistas clássicos
maçã, até as peras reais tornam-se encarnações do fruto
absoluto, ou seja, piras e maçãs aparentes.

7.2 Crítica à esquerda hegueliana

É preciso admitir que a esquerda hegeliana, pelo


menos até 1843, foi um dos grupos intelectuais mais
vivos e combativos da Europa. Não era um grupo Na opinião de Marx, a anatomia da sociedade
homogêneo. Mas, enquanto a direita hegeliana, em civil é fornecida pela economia política. E acerta suas
nome do pensamento de Hegel, procurava justificar o contas com os economistas clássicos (Smith, Ricardo,
cristianismo e o Estado existente, a esquerda, sempre Pecqueur, Say) com os Manuscritos econômico-
em nome da dialética hegeliana, transformava o filosóficos, de 1844 (antes de fazê-lo em O Capital).
idealismo em materialismo, fazia da religião cristã fato Marx deve muito ao trabalho desses
puramente humano e combatia a política existente com economistas, sobretudo às análises de Ricardo.
base em posições “democrático-radicais”. Escreve Lênin: “Adam Smith e David Ricardo
Entretanto, para Marx, isso era inteiramente lançaram as bases da teoria segundo a qual o valor
insuficiente. Por isso, Marx e Engels, com A sagrada deriva do trabalho. Marx continuou a obra deles, deu
família, atacam sobretudo Bruno Bauer e, depois, com rigorosa base cientifica e desenvolveu de modo
A ideologia alemã, estendem a polemica a Feuerbach. coerente essa teoria. Ele demonstrou que o valor de
A convicção que está na base da esquerda toda mercadoria é determinado pela quantidade de
hegeliana é a de que as “verdadeiras cadeias” dos trabalho socialmente necessário ou do tempo de
homens estão em suas ideias, razão por que os jovens trabalho socialmente necessário para sua produção”. E
hegelianos pedem coerentemente aos homens, “como prossegue: “Mas onde os economistas burgueses viam
postulado moral, que substituam sua consciência atual relações entre objetos (troca de uma mercadoria por
pela consciência humana, crítica ou egoísta, outra), Marx descobriu relações entre homens”.
desembaraçando-se assim de seus impedimentos. Essa Em outros termos, a economia política vê nas
exigência de modificar a consciência leva a outra leis que ela evidencia leis eternas, leis imutáveis da
exigência, a de interpretar diversamente o que existe, ou natureza. E não percebe que, desse modo, absolutiza e
seja, reconhece-lo através de uma interpretação justifica um sistema de relações existentes em
diferente”. Pois bem, “apesar de suas frases, que, determinado estágio da história humana. Ou seja,
segundo eles, ‘abalam o mundo’, os jovens ideólogos transforma um fato em lei - em lei eterna. É ideologia.
hegelianos são os maiores conservadores”. Eles Marx conclui, a partir do estudo dos
combatem contra as “frases” e não contra o mundo real economistas clássicos, que à máxima produção de
do qual tais “frases” são o reflexo. Com efeito, “não é a riqueza corresponde o empobrecimento máximo do
consciência que determina a vida, mas a vida que operário. Pois bem, a economia política nos diz que as
determina a consciência”. coisas são assim, mas não nos diz por que são assim - e,
Por tudo isso, também a esquerda hegeliana vê portanto, nem se propõe a questão da sua mudança.
o mundo de cabeça para baixo; o pensamento dos Escreve Marx: “A economia política parte do
jovens hegelianos, portanto, é um pensamento fato da propriedade privada. Não à explica. Expressa o
ideológico, como o de Hegel. Escreve Marx: “Não veio processo material da propriedade privada, o processo
à mente de nenhum desses filósofos procurar o nexo que se dá na realidade, em formulas gerais e abstratas,
existente entre a filosofia alemã e a realidade alemã, o que depois faz valer como leis. Ela não compreende
nexo entre sua crítica e seu próprio ambiente material”. essas leis, isto é, não mostra como elas derivam da
Consequentemente, os jovens hegelianos nada essência da propriedade privada”.
tinham de radical. Como já escrevera Marx: “Ser radical
significa colher as coisas pela raiz. Mas, para o homem,
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Para a economia política “vale como razão 7.5 Crítica à Proudhon


última o interesse do capitalista: isto é, ela supõe aquilo
que deve explicar.” Proudhon figura no Manifesto do partido comunista
Marx, ao contrário, procura explicar o como exemplo típico de socialista conservador ou
surgimento da propriedade privada e tenta mostrar que burguês. E a Miséria da filosofia é a sarcástica inversão do
ela é fato e não lei, muito menos lei eterna. A realidade, título da obra de Proudhon Sistema das contradições
diz Marx, é que o capital é “a propriedade privada dos econômicas, ou a filosofia da miséria.
produtos do trabalho alheio”. A propriedade privada Entretanto, na “Gazeta Renana”, Marx julgara
não é dado absoluto que se deva pressupor em toda positivamente o escrito de Proudhon O que é a
argumentação. Ela é muito mais “o produto, o propriedade?
resultado e a consequência necessária do trabalho Como é que, no decorrer de poucos anos, Marx
expropriado. A propriedade privada é fato que deriva muda de opinião sobre Proudhon? O que aconteceu?
da alienação do trabalho" humano. Aconteceu que, nesse período de tempo, Marx
Como na religião, afirma Marx, “quanto mais o estabelecera os traços de fundo de sua concepção
homem põe em Deus, menos conserva em si mesmo. materialista-dialética da história. E, a partir dessa
O operário põe sua vida no objeto: e ela deixa de perspectiva, devia considerar Proudhon como moralista
pertencer a ele, passando a pertencer ao objeto”. E esse utópico, incapaz de compreender o movimento da
objeto, o seu produto, “existe fora dele, independente, história e mais incapaz ainda de influir sobre ele.
estranho a ele, como que uma potência econômica Antes de mais nada, na opinião de Marx,
diante dele; e a vida, por ele dada ao objeto, agora o Proudhon não percebe que a concorrência capitalista
confronta, estranha e inimiga”. tem consequências inevitáveis e, em sua tentativa de
eliminar seus “lados maus”, substitui a analise
7.4 Crítica ao socialismo utópico econômica pela atitude moralista: mas não se pode
trocar a realidade por desejos e lamentações.
No Manifesto do partido comunista, Marx e Engels E o fato é ainda mais grave se considerarmos
distinguem seu socialismo cientifico dos outros tipos de que as contradições das diversas épocas históricas não
socialismo, isto é, do socialismo revolucionário, do são simples defeitos, elimináveis por obras de bom
socialismo burguês e, particularmente, do socialismo e senso ou pelo senso de justiça. São condições
comunismo crítico-utópico, cujos expoentes são necessárias Dara o desenvolvimento social e para a
Babeuf, Saint-Simon, Fourier e Owen. passagem de uma forma de sociedade para outra forma
Para Marx e Engels, estes últimos têm méritos de sociedade mais madura.
indubitáveis: viram “o antagonismo das classes e Em conclusão, Marx faz valer contra Proudhon
também a eficácia dos elementos dissolventes no seio a ideia de que o processo histórico tem dinâmica
da própria sociedade dominante”. Além disso, eles própria, determinada pelo progresso tecnológico: “O
forneceram material muito precioso para a iluminação moinho braçal vos dará a sociedade com o senhor
dos operários. feudal, e o moinho a vapor a sociedade com o capitalista
Todavia, e aí está seu mais grave defeito, não industrial”.
viram nenhuma atividade histórica autônoma por parte E a dinâmica do desenvolvimento histórico se
do proletariado. realiza por meio da luta de classes.
Consequentemente, não descobriram nem Por isso, o moralismo não adianta. Não se
mesmo as condições materiais para a emancipação do resolvem as contradições sociais eliminando uma das
proletariado. Desse modo, resvalam para o utopismo: partes em luta, mas somente estimulando a luta até o
criticam a sociedade capitalista, condenam-na e fim.
maldizem-na, mas não sabem encontrar caminho de A questão, portanto, não está, como queria
saída. De fato, acabam por se identificar com a Proudhon, em dividir a propriedade entre os
conservação. trabalhadores, mas em suprimi-la completamente
A esses tipos de socialismo, Marx e Engels através da revolução vitoriosa da classe operaria.
contrapõem seu próprio socialismo “cientifico” que,
teria descoberto a lei de desenvolvimento do 7.6 Crítica à religião
capitalismo e, portanto, poderia realmente resolver os
seus males. Feuerbach sustentara que a teologia e
A propósito, Engels escrevera: “Devemos a antropologia. Sobre esse ponto, sobre esse humanismo
Karl Marx a concepção materialista da história e a materialista, Marx está de acordo com Feuerbach.
revelação do mistério da produção capitalista, através Entretanto, na opinião de Marx, Feuerbach
da mais-valia. Ambas fizeram do socialismo uma deteve-se diante do problema principal e não o
ciência”. resolveu. E o problema é o de entender por que o
homem cria a religião.
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A resposta a esse problema, segundo Marx, é a 7.7 A alienação do trabalho


seguinte: os homens alienam seu ser projetando-o em
um Deus imaginário somente quando a existência real Mediante Feuerbach, Marx passa da crítica do
na sociedade de classes impede o desenvolvimento e a céu à crítica da terra. Aqui, porém, “em terra firme e
realização de sua humanidade. Disso deriva que, para redonda”, ele não encontra um homem que se faz ou se
superar a alienação religiosa, não basta denunciá-la, mas realiza transformando ou humanizando a natureza no
é preciso mudar as condições de vida que permitem a sentido das necessidades, dos conceitos ou dos projetos
“quimera celeste” surgir e prosperar. Feuerbach, e planos do próprio homem, juntamente com outros
portanto, não viu que “até o 'sentimento religioso' é homens. O que encontra são homens alienados, ou seja,
produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa expropriados de seu valor de homens por obra da
pertence a determinada forma social”. expropriação ou alienação de seu trabalho.
É o homem que cria a religião. Mas, diz Marx, Na realidade, “a aranha realiza operações que se
“o homem é o mundo do homem, o Estado, a assemelham às do tecelão, e a abelha envergonha
sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a muitos arquitetos com a construção de suas casinhas de
religião, que é consciência invertida do mundo, porque cera. Mas o que desde o princípio distingue o pior
também são um mundo invertido. A religião é a teoria arquiteto da melhor abelha é o fato de que ele construiu
invertida deste mundo. Assim, torna-se evidente que a a casinha em sua cabeça antes de construi-la de cera. No
luta contra a religião é a luta contra aquele mundo do fim do processo de trabalho, emerge um resultado que
qual a religião é o aroma espiritual. no início já estava presente na ideia do trabalhador e
Existe o mundo fantástico dos deuses porque que, portanto, já estava idealmente presente.
existe o mundo irracional e injusto dos homens. “A Não que ele efetue somente a mudança de
miséria religiosa é a expressão da miséria real em um forma do elemento natural, pois aqui realiza o próprio
sentido e, em outro, é o protesto contra a miséria real. objetivo, que ele conhece, e determina como lei o modo
A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento do seu operar, escreve Marx em 0 Capital.
de um mundo sem coração, o espirito de situações em Para ele, tudo isso significa que o homem pode
que o espirito está ausente. Ela é o ópio do povo”. viver humanamente, isto é, fazer-se enquanto homem,
precisamente humanizando a natureza segundo suas
necessidades e suas ideias, juntamente com os outros
homens. O trabalho social é antropógeno. E distingue
o homem dos outros animais: com efeito, o homem
pode transformar a natureza, objetivar-se nela e
humanizá-la, pode fazer dela seu corpo inorgânico.

Marx não ironiza o fenômeno religioso, a


religião não é para ele a invenção de padres
enganadores, mas muito mais obra da humanidade
sofredora e oprimida, obrigada a buscar consolação no
universo imaginário da fé. Mas as ilusões não se
desvanecem se não eliminarmos as situações que as
criam e exigem.
Escreve Marx nas Teses sobre Feuerbach: “Os Entretanto, se olharmos para a história e a
filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos sociedade, veremos que o trabalho não é mais feito,
diversos; agora, trata-se de transformá-lo”. juntamente com os outros homens, pela necessidade de
Substancialmente, a primeira função de uma apropriação da natureza externa, veremos que não é
filosofia a serviço da história, segundo Marx, é a de mais realizado pela necessidade de objetivar a própria
desmascarar a auto-alienação religiosa, “mostrando humanidade, as próprias ideias e projetos, na matéria-
suas formas que nada tem de sagradas”. Essa é a razão prima.
por que “a crítica do céu se transforma [...] em crítica da O que vemos é que o homem trabalha pela sua
terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica pura subsistência. Baseada na divisão do trabalho, a
da teologia em crítica da política”. propriedade privada torna o trabalho constritivo. Ao

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operário aliena-se a matéria-prima; alienam-se os seus 7.8 Materialismo histórico


instrumentos de trabalho; o produto do trabalho lhe é
arrancado; com a divisão do trabalho, é mutilado em A teoria da alienação do trabalho introduz à
sua criatividade e humanidade. O operário é mercadoria outra teoria fundamental de Marx, que é o materialismo
nas mãos do capital. Isso é a alienação do trabalho, da qual, histórico. Como Marx escreveu no Prefacio a Para a
segundo Marx, derivam todas as outras formas de crítica da economia política, o materialismo histórico
alienação, como a alienação política (na qual o Estado consiste na tese segundo a qual “não é a consciência dos
se ergue acima e contra os homens concretos) ou a homens que determina o ser deles, mas, ao contrário, é
religiosa. o ser social deles que determina a consciência deles”.
Para ele, a superação dessa situação, na qual o Isso leva a especificar a relação existente entre
homem é transformado em ser bruto, realiza-se através estrutura econômica e superestrutura ideológica. Na
da luta de classes, que eliminará a propriedade privada ideologia alemã lemos: “A produção das ideias, das
e o trabalho alienado. representações da consciência, em primeiro lugar, está
Mas em que consiste, mais exatamente, a diretamente entrelaçada a atividade material e as
alienação do trabalho? “Consiste antes de mais nada no relações materiais dos homens, linguagem da vida real.
fato de que o trabalho é externo ao operário, isto é, não As representações e os pensamentos, bem como o
pertence ao ser dele e, portanto, ele não se afirma em intercâmbio espiritual dos homens, ainda aparecem
seu trabalho, mas se nega, não se sente satisfeito, mas aqui como emanação direta do seu comportamento
infeliz, não desenvolve energia física e espiritual livre, material. E, do mesmo modo, isso vale para a produção
mas definha seu corpo e destrói seu espírito. Por isso, espiritual, como ela se manifesta na linguagem da
somente fora do trabalho é que o operário sente-se política, das leis, da moral, da religião etc. de um povo”.
senhor de si; no trabalho, ele se sente fora de si. Sente- Os homens são os produtores de suas
se em sua própria casa se não está trabalhando; e, se está representações, ideias etc., mas, precisa Marx, são “Os
trabalhando, não se sente em sua própria casa. Seu homens reais, operantes, assim como são
trabalho, portanto, não é voluntário, mas constrito: é condicionados por determinado desenvolvimento de
trabalho forçado. Não constitui, assim, a satisfação de suas forças produtivas”.
uma necessidade, mas somente meio para satisfazer Em poucas palavras: “O modo de produção
necessidades estranhas”. da vida material condiciona, em geral, o processo
Por tudo isso, o homem sente-se livre apenas social, político e espiritual da vida”.
em suas funções animais (comer, beber, procriar, ou A descoberta dessa teoria, isto é, do
ainda morar em casa ou se vestir), sentindo-se como condicionamento da superestrutura pela estrutura
nada além de animal em suas funções humanas, isto é, econômica, serviu a Marx como “fio condutor” de seus
no trabalho. estudos, que lhe mostraram que, “com a mudança da
A alienação do trabalho faz com que “o base econômica, transforma-se mais ou menos
operário se torne tanto mais pobre quanto maior é a rapidamente toda a gigantesca superestrutura”.
riqueza que produz, quanto mais sua produção cresce Portanto, como escreve Marx, os homens
em potência e extensão. podem distinguir-se dos animais pela religião, pela
O operário torna-se mercadoria tanto mais vil consciência ou pelo que se quiser, “mas eles começaram
quanto maior é a quantidade de mercadorias que a se distinguir dos animais quando começaram a
produz". Mas as coisas não param por aí, já que “a produzir seus meios de subsistência”. E aquilo que “os
alienação do operário em seu produto significa não indivíduos são depende das condições materiais de sua
apenas que seu trabalho se torna objeto, algo que existe produção”.
exteriormente, mas também que ele existe fora dele, A essência do homem, portanto, está em sua
independente dele, estranho a ele, tornando-se diante atividade produtiva. A primeira ação histórica do
dele como que um poder em si mesmo, o que significa homem deve ser vista na criação dos meios adequados
que a vida que ele deu ao objeto agora se lhe contrapõe para satisfazer suas necessidades vitais. E a satisfação de
como hostil e estranha”. uma necessidade gera outras. Por isso, quando as
Para concluir, a alienação do operário no seu necessidades aumentam, a família não basta mais:
objeto se expressa no fato de que “quanto mais o criam-se outras relações sociais; então, tanto o aumento
operário produz, menos tem para consumir; quanto da produtividade como as necessidades acrescidas e o
maior valor produz, tanto menor valor e menor aumento da população criam a divisão do trabalho. E a
dignidade possui; quanto mais belo é o seu produto, divisão do trabalho em trabalho manual e intelectual,
tanto mais disforme torna-se o operário; quanto mais por um lado, faz nascer a ilusão de que a consciência ou
refinado é o seu objeto, tanto mais bárbaro ele se torna; o espirito seja algo separado da matéria e da história, e,
quanto mais forte é o trabalho, mais fraco ele fica; por outro lado, gera uma classe que vive do trabalho
quanto mais espiritual é seu trabalho, mais ele se torna alheio.
material e escravo da natureza”.
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Tudo isso para dizer que a história verdadeira e primeiro a expor ampla e conscientemente as formas
fundamental é a dos indivíduos reais, de sua ação para gerais da própria dialética. Somente que, nele ela se
transformar a natureza e de suas condições materiais de encontra de cabeça para baixo. É preciso invertê-la para
vida, “tanto das que eles já encontraram existindo como descobrir o núcleo racional dentro da casca mística”.
das produzidas por sua própria ação”. Assim, a dialética permite a Marx compreender
A consciência e as ideias derivam dessa história o movimento real da história e, portanto, também o
e se entrelaçam com ela: “a moral, a religião, a metafisica estado existente de coisas. Mas, simultaneamente,
e qualquer outra forma ideológica” não são autônomas também permite a compreensão do “crepúsculo
e propriamente não têm história, pois, quando muda a necessário” desse estado de coisas, “porque concebe
base econômica, mudam com ela. Como escrevem toda forma ocorrida no fluir do movimento e, portanto,
Marx e Engels: “As ideias dominantes de urna época também no seu lado transitório, porque nada pode
foram sempre as ideias da classe dominante”. E essas intimidá-la: ela é crítica e revolucionaria por essência”.
ideias, precisamente, são ideologia, visão da realidade O confronto entre o estado de coisas existente
histórica de cabeça para baixo, justificação - através das e sua negação é inevitável - e esse confronto se resolverá
leis, da moral, da filosofia etc. - da ordem social com a superação do estado existente de coisas.
existente. Marx inverte a dialética hegeliana, “pondo-a de
pé”; ele a transporta das ideias para a história, da mente
7.9 Materialismo dialético para os fatos, da “consciência infeliz” para a “realidade
social em contradição”.
Escrevem Marx e Engels em A ideologia alemã: Substancialmente, em sua opinião, todo
“Nós conhecemos apenas uma única ciência: a ciência momento histórico gera contradições em seu seio, e
da história.” estas constituem a mola do desenvolvimento histórico.
O materialismo de Marx é materialismo Reivindicando para O Capital o mérito de ser “a
histórico. E, como fio condutor para o estudo da primeira tentativa de aplicação do método dialético à
história, ele apresenta a teoria pela qual as ideias economia política”, Marx sustenta que a dialética é a lei
jurídicas, morais, filosóficas, religiosas etc, dependem, do desenvolvimento da realidade histórica, e que essa
são condicionadas ou são o reflexo e a justificação da lei expressa a inevitabilidade da passagem da sociedade
estrutura econômica, de modo que, se a estrutura capitalista para a sociedade comunista, com o
econômica muda, haverá transformação consequente fim da exploração e da alienação.
correspondente na superestrutura ideológica.
Existe, portanto, uma relação de determinação 7.10 A luta de classe
ou, de qualquer modo, de condicionamento por parte
da estrutura econômica sobre a superestrutura 7.10.1 Burguesia e proletariado
constituída pelas produções mentais dos homens, isto
é, sobre sua consciência ou, melhor ainda, sobre sua No Manifesto do partido comunista, Marx e Engels
consciência social. escrevem: “A história de toda sociedade que existiu até
Mas o materialismo de Marx é também e o momento é a história da luta de classes. Livres e
sobretudo materialismo dialético, que tem suas raízes escravos, patrícios e plebeus, barões e servos da gleba,
no sistema hegeliano. Na realidade, Marx reconhece membros das corporações e aprendizes, em suma,
como mérito de Hegel o de “começar por toda parte opressores e oprimidos, estiveram continuamente em
com a oposição das determinações e enfatizá-la”. Mas, mútuo contraste e travaram luta ininterrupta, ora
como a alienação não é para Marx figura especulativa, e latente, ora aberta, luta que sempre acabou com
sim a condição histórica em que o homem se encontra transformação revolucionaria de toda a sociedade ou
em relação à propriedade privada dos meios de com a ruína comum das classes em luta”.
produção, da mesma forma também a dialética - Opressores e oprimidos: eis, portanto, o que
entendida hegelianamente como síntese dos contrários Marx vê no desenrolar da história humana em sua
- é assumida por Marx, só que ele a inverte. totalidade. E nossa época, a época da burguesia
Escreve ele no Prefacio à segunda edição de O moderna, não eliminou em absoluto o antagonismo das
Capital: “Para Hegel, o processo do pensamento, que classes; pelo contrário, simplificou-o, visto que “toda a
ele transforma até em sujeito independente, com o sociedade vai se dividindo cada vez mais em dois
nome de ideia, é o demiurgo do real, que, por seu turno, grandes campos inimigos, em duas grandes classes
constitui somente o fenômeno exterior da ideia ou diretamente contrapostas uma à outra: burguesia e
processo do pensamento. Para mim, ao contrário, o proletariado”.
elemento ideal nada mais é do que o elemento material Em nota a edição inglesa do Manifesto, de 1888,
transferido e traduzido no cérebro dos homens. A Engels explica que, por burguesia, entende-se a classe
mistificação à qual subjaz a dialética nas mãos de Hegel dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de
não lhe tira, de modo algum, o mérito de ter sido o produção e empregadores de assalariados. Por
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proletariado se entende, ao invés, a classe dos proporção que se desenvolve a burguesia, isto é, o
assalariados modernos que, não tendo meios de capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe
produção próprios, são obrigados a vender sua força de dos operários modernos, que só vivem enquanto
trabalho para viver. encontram trabalho, e que só encontram trabalho à
medida que o seu trabalho aumenta o capital”.
7.10.2 Da sociedade feudal à burguesa Desse modo, “as armas que serviram à
burguesia para enterrar o feudalismo voltam-se contra
Pois bem, a classe burguesa surge no interior da a própria burguesia”. Assim como, para o senhor
sociedade feudal, representa a sua negação e a supera. feudal, foi inútil defender os direitos feudais diante
Os primeiros elementos da burguesia desenvolveram- daquela sua criatura que era a burguesia, agora também
se a partir dos servos da gleba na Idade Média. é inútil para a burguesia trabalhar em prol da
Depois, a descoberta da América, a conservação de seus direitos sobre o proletariado. A
circunavegação da África e o intercâmbio com as realidade é que “a burguesia não apenas fabricou as
colônias deram à empreendedora classe burguesa e a armas que a levarão a morte, mas também gerou os
indústria impulso sem precedentes e, “com isso, homens que empunharão aquelas armas: os operários
imprimiram rápido desenvolvimento ao elemento modernos, os proletários”.
revolucionário dentro da sociedade feudal em Em lugar de operários isolados e em
desagregação”. concorrência, o progresso da grande indústria cria
O exercício da indústria, feudal ou corporativa, uniões de operários organizados e conscientes de sua
até então em uso, não foi mais suficiente. Em seu lugar, própria força e missão. E “quando a teoria ganha as
apareceu a manufatura: “O segmento industrial médio massas, ela se torna violência revolucionária”.
suplantou os mestres artesãos; a divisão do trabalho A burguesia, portanto, produz seus coveiros. A
entre as diversas corporações desapareceu diante da sua decadência e a vitória do proletariado são
divisão do trabalho dentro da própria fábrica”. conjuntamente inevitáveis.
Nesse meio tempo, cresciam os mercados. A E a demonstração da inevitabilidade da vitória
manufatura também deixou de ser suficiente. Foi do proletariado e da decadência da burguesia é
“então que o vapor e as maquinas revolucionaram a apresentada por Marx em O Capital, cujo fim último é o
produção industrial. A indústria manufatureira foi de “revelar a lei econômica do movimento da sociedade
substituída pela grande indústria moderna; em lugar do moderna”.
segmento industrial médio, entraram os milionários da
indústria, os chefes de inteiros exércitos industriais, os 7.11 O capital
burgueses modernos”. Assim, a burguesia moderna
“empurrou para fora do palco todas as classes herdadas 7.11.1 O valor das mercadorias é determinado pelo
da Idade Média”. trabalho
Essa é a razão por que a burguesia “teve na
história papel sumamente revolucionário”. A análise de O Capital inicia-se com a análise da
Com efeito, quando as relações feudais da mercadoria. Pois bem, a mercadoria tem duplo valor:
propriedade não corresponderam mais às forças valor de uso e valor de troca. O valor de uso de uma
produtivas que se haviam desenvolvido, elas se mercadoria (como, por exemplo, vinte quilos de café,
transformaram em cadeias, que deviam ser e foram urna roupa, um par de óculos, uma arroba de trigo)
quebradas”. Em seu lugar, apareceu a livre baseia-se na qualidade da mercadoria, que,
concorrência, com sua correspondente constituição precisamente em função de sua qualidade, satisfaz mais
social e política, “sob o domínio econômico e político a uma necessidade que a outra. Entretanto, vemos que,
da classe dos burgueses”. no mercado, as mercadorias mais diferentes são
trocadas entre si. Vinte quilos de café, por exemplo, são
3.10.3 Da sociedade burguesa à hegemonia do trocados por vinte metros de tecido. Mas o que têm em
proletariado comum duas mercadorias tão diferentes para que
possam ser trocadas? Elas apresentam em comum
Entretanto, precisamente pela lei da dialética, precisamente o que se chama valor de troca.
como a burguesia é a contradição interna do O valor de troca é algo de idêntico existente em
feudalismo, assim também o proletariado é a mercadorias diferentes, que as tornam passiveis de troca
contradição interna da burguesia. em dadas proporções mais do que em outras. Mas em
Com efeito, “a propriedade privada, como que consiste então o valor de troca de uma mercadoria?
riqueza, é obrigada a manter-se viva e, com isso, a Como diz Marx, esse valor é dado pela
manter vivo seu termo antitético, o proletariado”. Em “quantidade de trabalho socialmente necessária” para
suma, a burguesia se desenvolve e cresce como tal produzi-la. Em essência, “como valores, todas as
alimentando em si mesma o proletariado: “na mesma
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mercadorias são apenas medidas determinadas de Com efeito, tendo comprado a força de
tempo de trabalho nelas empregado”. trabalho, o possuidor dos meios de produção tem o
Para maior facilidade das trocas, a troca direta direito de consumi-la, isto é, de obrigá-la a trabalhar,
foi substituída pela moeda. Mas, faça-se a troca por exemplo, por doze horas; mas em seis horas (tempo
diretamente ou através da moeda, uma mercadoria não de trabalho “necessário”), o operário cria produtos que
pode ser trocada por outra se o trabalho necessário para são suficientes para cobrir as despesas com sua própria
produzir a primeira não é igual ao trabalho necessário manutenção, ao passo que, nas seis horas restantes
para produzir a segunda. (tempo de trabalho “suplementar”), cria um produto
Tudo isso mostra que falar da mercadoria em si que o capitalista não paga. E esse produto suplementar
sem atentar para o fato de que ela é fruto do trabalho não pago pelo capitalista ao operário é aquilo que Marx
humano acaba transformando-a em fetiche. A chama de mais-valia.
realidade é que o intercâmbio de mercadorias não é
tanto urna relação entre coisas, mas muito mais uma 7.11.3 O processo de acumulação capitalista
relação entre produtores, entre homens. E é isso o que
a economia clássica parece esquecer. Desse modo (depois de ter distinguido o capital
O valor de troca de uma mercadoria, portanto, constante - investido para a aquisição dos meios de
é dado pelo trabalho social necessário para produzi-la. produção, como a maquinaria e as matérias-primas – do
Mas o trabalho (a força de trabalho) também é capital variável, investido na aquisição da força de
mercadoria que o proprietário da força de trabalho (o trabalho), a formula geral com que Marx representa o
proletário) vende no mercado, em troca do salário, ao processo de produção capitalista é a seguinte:
proprietário do capital, isto é, o capitalista. E o
capitalista paga justamente, por meio do salário, a D-M-D'
mercadoria (força de trabalho) que adquire: ele a paga
segundo o valor que tal mercadoria tem, valor que é onde D é o dinheiro despendido para a
dado (como qualquer outra mercadoria) pela aquisição das mercadorias M (meios de produção e
quantidade de trabalho necessário para produzi-la, ou força de trabalho) e D' é o dinheiro ganho, que, graças
seja, pelo valor das coisas necessárias para manter em à mais-valia que não foi paga pelo capitalista, será maior
vida o trabalhador e sua família. do que D.
No processo de produção capitalista, portanto,
7.11.2 Mais-valia o dinheiro produz dinheiro em maior quantidade do
que o dinheiro despendido.
A mais-valia não é consumida pelo capitalista
para suas necessidades ou para seus caprichos: é
reinvestida, para que ele não sucumba na concorrência.
Desse modo, a acumulação do capital, se, por um lado,
concentra a riqueza nas mãos de número sempre menor
de capitalistas, por outro lado - através da eliminação de
operários por meio de novas maquinas, gera sempre
mais miséria no “exército de trabalho de reserva”.
Marx caracteriza essa tendência histórica de
acumulação capitalista com as seguintes expressões, que
se tornaram célebres: “Cada capitalista destrói muitos
outros. Com a diminuição constante do número de
magnatas do capital que usurpam e monopolizam todas
as vantagens desse processo de transformação, cresce a
massa da miséria, da pressão, da subjugação, da
degeneração e da exploração, mas também cresce a
revolta da classe operária, que aumenta cada vez mais e
é disciplinada, unida e organizada pelo próprio
Entretanto, a força de trabalho é mercadoria mecanismo do processo de produção capitalista. O
inteiramente especial, já que é mercadoria cujo valor monopólio do capital torna-se vínculo do modo de
próprio de uso tem a propriedade peculiar de ser fonte produção. A centralização dos meios de produção e a
de valor. socialização do trabalho alcançam um ponto em que se
Em outros termos, aquela mercadoria que é a tornam incompatíveis com seu envoltório capitalista. E
força de trabalho não somente tem seu valor, mas ele se rompe. Soa então a última hora da propriedade
também tem a propriedade de produzir valor. privada capitalista. Os expropriadores são
expropriados”.
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7.12 O advento do comunismo proletários e negaria “a personalidade do homem” em


toda parte.
7.12.1 A passagem necessária de uma sociedade Na realidade, Marx pensava que, abolida a
classista para uma sem classe propriedade privada, o poder político se reduziria
gradualmente, até se extinguir, porque o poder político
O feudalismo produziu a burguesia. E a nada mais seria que a violência organizada de uma classe
burguesia, para existir e desenvolver-se, deve produzir para a opressão da outra.
em seu seio quem a levará a morte, isto é, o
proletariado. Com efeito, o proletariado é a antítese da 7.12.2 A ditadura do proletariado
burguesia. Ao longo da via-crúcis da dialética, o
proletariado leva em seus ombros a cruz da humanidade Isso, no entanto, não se realizara de imediato.
inteira. A aurora da revolução é um dia inevitável. E O que logo teremos será a ditadura do
esse dia, que marcara o triunfo do proletariado, será o proletariado, que usará seu domínio “para concentrar
dia da ressurreição de toda a humanidade. todos os instrumentos de produção nas mãos do
Estado, isto é, do proletariado organizado como classe
dominante”.

Com a mesma fatalidade que preside os Isso, obviamente, poderá ocorrer através de
fenômenos da natureza, diz Marx, a produção intervenções despóticas que, nas diversas situações,
capitalista gera sua própria negação. levarão a procedimentos como os seguintes:
E é assim que se passa da sociedade capitalista “1) expropriação da propriedade fundiária e
para o comunismo. Mas essa não é passagem que se faz emprego da renda fundiária para as despesas do Estado;
através de “pregações moralizadoras”, que para nada 2) impostos fortemente progressivos;
servem: “A classe operaria não tem nenhum ideal a 3) abolição do direito de sucessão;
realizar”. Trata-se de passagem necessária para uma 4) confisco da propriedade de todos os
sociedade sem propriedade privada e, portanto, sem emigrados e rebeldes;
classes, sem divisão do trabalho, sem alienação e, 5) concentração do crédito nas mãos do Estado,
sobretudo, sem Estado. Para Marx, o comunismo é “o mediante um banco nacional com capital do Estado e
retorno completo e consciente do homem a si mesmo, monopólio exclusivo;
como homem social, isto é, como homem humano”. 6) concentração de todos os meios de
Para dizer a verdade, Marx não adianta muito transporte nas mãos do Estado;
como será a nova sociedade, que, depois da derrubada 7) multiplicação das fábricas nacionais e dos
da sociedade capitalista, só poderá se realizar por etapas. instrumentos de produção, desbravamento e melhoria
No início, ainda haverá certa desigualdade entre os das terras segundo um plano coletivo;
homens. Mas depois, mais tarde, quando desaparecer a 8) obrigação de trabalho igual para todos;
divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, e constituição de exércitos industriais, especialmente para
quando o trabalho se houver tornado necessidade e não a agricultura;
meio de vida, então, escreve Marx na Crítica ao programa 9) unificação do exercício da agricultura e da
de Gotha (1875), a nova sociedade “poderá escrever em indústria, medidas adequadas para eliminar
sua bandeira: de cada qual segundo sua capacidade, a gradualmente o antagonismo entre cidade e campo;
cada qual segundo suas necessidades”. 10) instrução pública e gratuita de todas as
Para Marx, esse seria o comunismo autêntico, crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas
que, nos Manuscritos de 1844, distinguia do fabricas em sua forma atual.
comunismo grosseiro, que não consiste na abolição da Combinação da instrução com a produção
propriedade privada e sim na atribuição da propriedade material e assim por diante”.
privada ao Estado, o que reduziria todos os homens a

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A realização dessas medidas deveria ser a fase Durkheim presenciou algumas das mais
intermediaria da transição da sociedade burguesa para a importantes criações da sociedade moderna, como a
sociedade comunista. invenção da eletricidade, do cinema, dos carros de
Posteriormente, ter-se-ia o “salto para a passeio, entre outros. No seu tempo, havia um certo
liberdade”; então, “a velha sociedade burguesa, com otimismo causado por essas invenções, mas Durkheim
suas classes e antagonismos entre as classes, sucede uma também percebia entraves nessa sociedade moderna:
associação em que o livre desenvolvimento de cada um eram os problemas de ordem social.
é condição para o livre desenvolvimento de todos”. E uma das primeiras coisas que ele fez foi
propor regras de observação e de procedimentos de
8. ÉMILE DURKHEIM investigação que fizessem com que a Sociologia fosse
capaz de estudar os acontecimentos sociais de maneira
A sociologia do semelhante ao que faz a Biologia quando olha para uma
século XIX é a “sociologia dos célula, por exemplo.
filósofos sistemáticos”. Ela é Falando em Biologia nota-se que o seu objeto
filha das esperanças ou dos de estudo é a vida em toda a sua diversidade de
temores suscitados pelo manifestações. As pesquisas dos fenômenos da
desenvolvimento da sociedade natureza feitas pela Biologia são resultantes de várias
industrial, cujas características observações e experimentações, manipuláveis ou não.
essenciais Saint-Simon intuíra: Já para a Sociologia, manipular os
organização racional, acontecimentos sociais, ou repeti-los, é muito difícil.
despersonalização funcional, Por exemplo, como poderíamos reproduzir uma festa
interdependência das funções, ou um movimento de greve “em laboratório” e sempre
planificação e divisão do de igual modo? Seria impossível. Mas Durkheim
trabalho, programação acreditava que os acontecimentos sociais – como os
centralizada da produção. crimes, os suicídios, a família, a escola, as leis –
Diante desse fato, poderiam ser observados como coisas (objetos), pois
Comte teoriza um sistema autoritário, Spencer um assim, seria mais fácil de estudá-los. Então o que ele fez?
sistema sociológico em evolução, mas sob o signo de Propôs algumas das regras que identificam que
um individualismo radical; Proudhon vê na justiça a tipo de fenômeno poderia ser estudado pela Sociologia.
mola do progresso, e Marx, por seu turno, "prevê" uma A esses fenômenos que poderiam ser estudados por
justiça que se realizara por força de leis inexoráveis que, uma ciência da sociedade ele denominou de fatos
mudando a estrutura material, destruirão as atuais sociais.
relações sociais injustas.
Com Durkheim (1855-1917), a sociologia Fato social
“sistemática” entra em crise. Na opinião de Durkheim,
a sociologia não é e não deve ser filosofia da história, Assim, a teoria dos fatos sociais é o ponto de
que pretenda descobrir as leis gerais que guiam a partida dos estudos de Durkheim. Eles são irredutíveis
marcha do “progresso” de toda a humanidade. à vida biológica e tem como base a sociedade.
Ela também não é e não deve ser metafísica, que Como tal, o “fato social” não se reduz ao fato
se julgue em condições de determinar a natureza da psíquico do simples indivíduo, e isso torna-se evidente
sociedade. E a sociologia não é nem psicologia nem pela “coerção” que ele - o fato social - exerce sobre o
filosofia. indivíduo a partir do exterior, seja mediante sanções,
Para Durkheim, a sociologia é uma ciência: uma seja mediante a resistência que ele opõe às tentativas
ciência autônoma e diferente das outras ciências. individuais de modificação de uma instituição, crença
Entretanto, para que a sociologia possa se qualificar ou uso.
como ciência autônoma, deve-se especificar tanto o Assim, existem os “fatos sociais”, objeto
“objeto” como as “regras do método”. E é isso que faz especifico de pesquisa daquela ciência autônoma que é
Durkheim em As regras do método sociológico (1895). a sociologia, que, além disso, poderá se ocupar de duas
A objetividade e a identidade na análise da vida grandes categorias de fatos: os fatos “normais” e os
social foram questões fundamentais na sua proposição fatos “patológicos”.
do método sociológico. Ainda em As regras do método sociológico, podemos
É a partir desse pensador que a Sociologia ler: “Nós chamamos normais os fatos que apresentam
ganha um formato mais “técnico”, sabendo o que e as formas mais gerais, e daremos aos outros o nome de
como ela iria buscar na sociedade. Com métodos morbosos ou patológicos”. Naturalmente, “as formas
próprios, a Sociologia deixou de ser apenas uma ideia e mais gerais” só se dão em relação a determinada
ganhou “status” de ciência. sociedade e em fase especifica de seu desenvolvimento.

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Desse modo, uma função preliminar da A organização de algumas aldeias indígenas


sociologia é a da classificação dos tipos de sociedade, o poderia servir de exemplo de como se dá a solidariedade
que é feito distinguindo as sociedades, com base em seu mecânica: grupos de pessoas vivendo e trabalhando
grau de complexidade, desde as hordas at6 as modernas semelhantemente, ligados por suas crenças e valores.
sociedades complexas. Existem, portanto, os fatos
sociais; estes podem ser distinguidos, sem que se os
avalie, em fatos normais e fatos patológicos; a
sociologia é a ciência que, considerando os fatos sociais
“como coisas”, procura a causa determinante de um
fato social entre os fatos sociais anteriores e não entre
os fatos da consciência individual.
Desse modo, entendendo-os como “maneiras de
agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotados de um
poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem”, podemos
traçar três características que distinguem os fatos
sociais:
A coerção social que é a força que os fatos
sociais exercem sobre os indivíduos e que os levam a Nesses grupos, se alguém começasse a agir por
conformar-se às regras da sociedade em que vivem, conta própria, seria fácil perceber quem estaria
independentemente de sua escolha ou vontade. “tumultuando” o modo de vida local. Outro exemplo
A exterioridade dos fatos sociais que existem que pode caracterizar a solidariedade mecânica são os
e atuam sobre os indivíduos independentemente de sua mutirões para colheita em regiões agrárias ou para
vontade ou de sua adesão. As regras sociais, os reconstruir casas devastadas por vendavais e, ainda, são
costumes e as leis já existem antes dos indivíduos e exemplos também as campanhas para coletar alimentos.
independentemente deles. Diferentemente das sociedades organizadas em
A generalidade quer dizer que todo fato social solidariedade mecânica, nas sociedades de
é geral, pois se aplica a todos os indivíduos ou à maioria solidariedade orgânica – típicas do mundo moderno
deles. Na generalidade encontra-se a natureza coletiva - existem muitos papéis sociais. Pense na quantidade de
dos fatos sociais, seu estado comum ao grupo. tarefas que pode haver nas áreas urbanas, nas cidades:
são muitas as funções e atividades.
Entendendo a Sociedade (coesão social)

Durkheim queria compreender como ocorreu a


transição das sociedades tradicionais para as modernas
e analisou-as a partir de sua coesão, ou seja, o que
mantinha unida as sociedades tradicionais que se
perdeu, possibilitando a formação das sociedades
modernas, e como essa coesão se manteve nessas
sociedades?
A humanidade, para esse pensador, está em
constante evolução, o que seria caracterizado pelo
aumento dos papéis sociais ou funções. Por exemplo,
para Durkheim, existem sociedades que organizam-se Durkheim acreditava que mesmo com uma
sob a forma de um tipo de solidariedade denominada grande divisão e variedade de atividades, todas elas
mecânica e outras sociedades organizam-se sob a forma deveriam cooperar entre si. Por isso, deu o nome de
de solidariedade orgânica. orgânica (como se fosse um organismo).
As sociedades organizadas sob a forma de Mas, nessas sociedades, diante da existência de
solidariedade mecânica seriam aquelas nas quais inúmeros papéis sociais, diminui o grau de controle da
existiriam poucos papéis sociais. Segundo Durkheim, sociedade sobre cada pessoa. A individualidade, sob
nessas sociedades, os membros viveriam de maneira menor controle, passa a ser uma porta para que a pessoa
semelhante e, geralmente, ligados por crenças e pretenda aumentar, ainda mais, o seu raio de ação ou de
sentimentos comuns, o que ele chama de consciência posições dentro da sociedade.
coletiva. Uma das maiores expressões da anomia no
Neste tipo de sociedade existiria pouco espaço mundo moderno, segundo Durkheim, seria esta: o
para individualidades, pois qualquer tentativa de atitude egoísmo das pessoas. E a causa desta atitude seria a
“individualista” seria percebida e corrigida pelos demais fragilidade das normas e controles sobre a
membros. individualidade, normas e controles que nas sociedades

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de solidariedade mecânica funcionam com maior Se alguém se desvinculasse das instituições


eficácia. sociais (família, igreja, escola, partido político, etc.) por
Qual seria, então, a solução para o mundo conta própria, para viver de maneira livre, sem regras,
moderno, segundo Durkheim? qual seria o limite para essa pessoa, uma vez que
Já que ele compara a sociedade com um corpo, ninguém a controlaria?
deve haver algo nela que não está cumprindo sua Pois é, segundo Durkheim, a falta de redes de
função e gerando a patologia (a anomia, a doença). O convívio ou limites para a ação poderia levar a pessoa a
corpo precisa de diagnóstico e remédio. desejar ilimitadas coisas. Mas caso tal pessoa não
Segundo ele, a Sociologia teria esse papel, ou consiga realizar os seus desejos, a frustração poderia
seja, o de encontrar as “partes” da sociedade que estão levá-la a um suicídio.
produzindo fatos sociais patológicos e apontar para a Suicídio altruísta: ocorre quando um
solução do problema. indivíduo valoriza a sociedade mais do que a ele mesmo,
ou seja, os laços que o unem à sociedade são muito
O suicídio fortes.
Deixe-me lembrar você do ocorrido em 11 de
Durkheim utilizou sua teoria para explicar, por Setembro de 2001. Homens, em atos aparentemente
exemplo, o suicídio. O que aparentemente seria um ato “loucos”, pilotavam aviões que se chocaram contra o
individual, para ele, estava ligado com aquilo que World Trade Center em Nova York, lembra? Para
ocorria na sociedade. Ele compreende a sociedade Durkheim, os agentes dessa aparente “loucura”
como um corpo organizado. Assim como a Biologia poderiam ser classificados como suicidas altruístas, pois
que compreende o corpo humano e todas suas partes se identificavam de tal forma como o grupo Al Qaeda,
em pleno funcionamento. ao qual pertenciam, que se dispuseram a morrer por ele.
Durkheim entende a sociedade com suas partes Da mesma maneira aconteceu com os
em operação e cumprindo suas funções. E, caso a kamikases japoneses durante a 2º Guerra Mundial
família, a igreja, o Estado, a escola, o trabalho, os (1939-1945) e que, de certa forma, continua
partidos políticos, etc., que são elementos da sociedade acontecendo com os “homens-bomba” de hoje.
com funções específicas, venham a falhar no
cumprimento delas, surge no corpo da sociedade aquilo
que Durkheim chamou de anomia (a = sem, nomia =
normas / sem normas), ou seja, uma patologia. Assim,
como no corpo humano, se algo não funcionar bem,
em “ordem”, significa que está doente.
Para Durkheim, a sociedade age sobre o
indivíduo. Cada grupo social tem uma inclinação para o
suicídio, e desta derivam as inclinações individuais.
Trata-se das correntes de “egoísmo”, de Se você assistir ao filme “O Patriota”, com Mel
“altruísmo” e de “anomia” que afligem a sociedade. Gibson, poderá ver um exemplo de alguém que se
Suicídio Egoísta: é causado pela decepção, dispôs a morrer por uma causa que acreditava em
pela melancolia e pela sensação de desamparo moral, relação ao seu país, no caso, os Estados Unidos da
provocadas pela desintegração social. Atualmente, isso América.
pode ser compreendido no mundo capitalista, cada vez
mais individualista, em que as pessoas valorizam mais o
“ter” do que o “ser”.

Suicídio anômico: é aquele que se deve a um


estado de desregramento social no qual as normas
estão ausentes ou perderam respeito.
Este tipo pode acontecer quando as partes do
corpo social deixam de funcionar e as normas ou laços
que poderiam “abraçar” (solidarizar) os indivíduos
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perdem sua eficácia, deixando-os viver de forma fenômenos históricos e sociais e, ao mesmo tempo, da
desregrada ou em crise. reflexão sobre o método das ciências histórico-sociais.
Como exemplo, podemos citar como fatos que Os trabalhos de Weber podem ser classificados em
provocam a anomia: corrupção praticada por políticos quatro grupos:
e funcionários públicos, a frieza da sociedade moderna, 1) Estudos históricos:
bem como sua falta de diálogo coletivo, o divórcio, uma a) Sobre as sociedades mercantis da Idade
família abandona o filho, ou o idoso, ou o doente, etc. Média (1889);
b) História agrária romana em seu significado
Educação para o direito público e privado (1891);
c) As condições dos camponeses na Alemanha
Toda sociedade tem que educar os indivíduos oriental do Elba (1892):
com disciplina para que aprendam as regras necessárias 2) Estudos de sociologia da religião:
à organização da vida social e sua hierarquia. As regras a) A ética protestante e o espirito do capitalismo
devem ser aprendidas, internalizadas e transformadas (1904-1905);
em hábitos de conduta. b) Escritos de sociologia da religião (3 vols.,
Na visão dele, o currículo teológico, metafísico 1920-1921).
e literário ainda predominante nas escolas europeias de 3) Tratado de sociologia geral: Economia e
seu tempo deveria ser substituído por uma educação sociedade (1922).
positivista para se alinhar ao espírito científico de seu 4) Escritos de metodologia das ciências
tempo. histórico-sociais:
Dessa forma, cabe à educação, seja ela formal a) A “objetividade” cognoscitiva da ciência
ou não, a importante tarefa da conformação dos social e da política social (1904);
indivíduos à sociedade em que vivem, devendo eles b) Estudos críticos acerca da lógica das ciências
sempre observarem a obediência e a hierarquia. sociais (1906);
c) O trabalho intelectual como profissão (1919).
9. MAX WEBER
Max Weber (1864- Historiador, sociólogo, economista e político,
1920) nasceu em Erfurt. Por Weber trata dos problemas metodológicos com a
meio do pai, que foi deputado consciência das dificuldades que emergem do trabalho
do Partido Nacional Liberal, efetivo do historiador e do sociólogo, mas
Weber teve oportunidade de principalmente com a competência do historiador, do
entrar bem cedo em contato sociólogo e do economista.
com ilustres historiadores, Ao contrário de Durkheim e Comte, Weber
filósofos e juristas da época. acreditou na possibilidade da interpretação da
Estudou história, sociedade partindo não dos fatos sociais já
economia e direito nas consolidados e suas características externas (leis,
universidades de Heidelberg e instituições, normas, regras, etc).
Berlim. Propôs começar pelo indivíduo que nela vive,
Em 1894 tornou-se ou melhor, pela verificação das “intenções”,
professor de economia política “motivações”, “valores” e “expectativas” que orientam
na Universidade de Friburgo. Em 1896 passou a ensinar as ações do indivíduo na sociedade.
em Heildelberg. De 1897 a 1903 sua atividade cientifica
e didática ficou bloqueada por causa de grave doença Ação Social
nervosa. Em 1904 realizou uma viagem aos Estados
Unidos. Sua proposta é a de que os indivíduos podem
Durante a Primeira Guerra Mundial, defendeu conviver, relacionar-se e até mesmo constituir juntos
as “razões ideais” da “guerra alemã” e prestou serviço algumas instituições (como a família, a igreja, a justiça),
como diretor de um hospital militar. Acompanhou com exatamente porque quando agem eles o fazem
preocupação angustiada a ruina moral e cultural da partilhando, comungando uma pauta bem parecida de
Alemanha, jogada pelo imperador e por seus ministros valores, motivações e expectativas quanto aos objetivos
no beco sem saída da pura política de poder. Depois da e resultados de suas ações. E mais, seriam as ações
guerra participou da redação da Constituição da recíprocas (repetidas e “combinadas”) dos indivíduos
República de Weimar. Morreu em Munique, para onde que permitiriam a constituição daquelas formas
fora chamado, a fim de ensinar economia política, em duráveis (Estado, Igreja, casamento, etc.) de
14 de junho de 1920. organização social.
A obra de Max Weber, complexa e profunda, Weber desenvolve a teoria da Sociologia
constitui um monumento da compreensão dos Compreensiva, ou seja, uma teoria que vai entender a
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sociedade a partir da compreensão dos ‘motivos’ “subjetividade”, ou seja, levantando qual é, naquela
visados subjetivamente pelas ações dos indivíduos. ocasião dada, o conjunto de valores, motivações,
Uma crítica de Weber aos positivistas, entre os intenções e expectativas compartilhadas pelo grupo de
quais se encontrariam Comte e Durkheim, deve-se ao eleitores em foco, e que servirão para orientar sua
fato de que eles pretendiam fazer da Sociologia uma escolha eleitoral.
ciência positiva, isto é, baseada nos mesmos métodos Esses pressupostos estão por detrás das
de investigação das ciências naturais. conhecidas “pesquisas de intenção de voto”, bastante
Para Weber, a pesquisa histórica é essencial frequentes em vésperas de eleições.
para a compreensão das sociedades. É a pesquisa Na investigação da ação social um instrumento
baseada em fontes documentais e no esforço de muito eficaz e útil para o cientista social é o tipo ideal,
interpretá-las que permite a compreensão das que, segundo Weber, seria uma construção teórica a
diferenças sociais. O conhecimento histórico é um partir dos casos particulares analisados. Ou seja, reúne-
poderoso instrumento para a sociologia. Por isso os se as características mais comuns do fenômeno ou ação
seguidores de Weber são chamados de weberianos ou social para formar um modelo/conceito que se
historicistas. aproxime ao máximo de todos os casos que venham a
Segundo Weber, as ciências naturais (biologia, ser estudados no futuro.
física, por exemplo) conseguiriam explicar aquilo que
estudam (a natureza) em termos de descobrir e revelar A teoria do tipo ideal
relações causais diretas e exclusivas, que permitiriam a
formulação de leis de funcionamento de seus eventos, Na opinião de Weber, com frequência a
como as leis químicas e físicas que explicam o linguagem do historiador ou do sociólogo,
fenômeno da chuva. Mas a ciência social não poderia diferentemente da linguagem das ciências naturais,
fazer exatamente o mesmo. funciona mais por sugestão do que por exatidão. E
Para esse pensador, não haveria como garantir precisamente com o objetivo de dar rigor suficiente a
que uma ação ou fenômeno social ocorrerá sempre de toda uma gama de conceitos utilizados nas
determinada forma, como resposta direta a esta ou investigações histórico-sociais, Weber propôs a teoria
aquela causa exclusiva. No caso das Ciências Humanas, do “tipo ideal”.
isso ocorre porque o ser humano possui Escreve ele: “O tipo ideal obtém-se pela
“subjetividade”, que aparece na sua ação na forma de acentuação unilateral de um ou de alguns pontos de
valores, motivações, intenções, interesses e vista pela conexão de certa quantidade de fenômenos
expectativas. difusos e discretos, existentes aqui em maior e em
Embora esses elementos que compõem a menor medida, por vezes até ausentes, correspondentes
subjetividade humana sejam produtos culturais, quer àqueles pontos de vista unilateralmente evidenciados,
dizer, produtos comuns acolhidos e assumidos em um quadro conceitual em si unitário. Em sua pureza
coletivamente pelos membros da sociedade, ou do conceitual, esse quadro nunca poderá ser encontrado
grupo, ainda assim se vê que os indivíduos vivenciam empiricamente na realidade; ele é uma utopia, e ao
esses valores, motivações e expectativas de modos trabalho histórico se apresenta a tarefa de verificar, em
particulares. cada caso individual, a maior ou menor distância da
Às vezes com aceitação e reprodução dos realidade daquele quadro ideal, estabelecendo, por
valores e normas propostas pela cultura comum do exemplo, em que medida o caráter econômico das
grupo; outras vezes, com questionamentos e relações de determinada cidade pode ser qualificado
reelaboração dessas indicações e até rejeição das conceitualmente como próprio da economia urbana”.
mesmas. Pode-se ver, portanto, que o “tipo ideal” é
Decorre dessa característica (de certa instrumento metodológico ou, se assim se preferir,
autonomia, criatividade e inventividade do ser humano expediente heurístico ou de pesquisa. Com ele,
diante das obrigações e constrangimentos da sociedade) construímos um quadro ideal (por exemplo, de
a dificuldade de se definir leis de funcionamento da cristianismo, de economia urbana, de capitalismo, de
ação social que sejam definitivas e precisas. Igreja, de seita etc.), para depois com ele medir ou
Por isso, o que a Sociologia poderia fazer, seria comparar a realidade efetiva, controlando a
desenvolver procedimentos de investigação que aproximação ou o desvio em relação ao modelo.
permitissem verificar que conjunto de “motivações”, Brevemente, pode-se dizer que:
valores e expectativas compartilhadas, estaria 1) a tipicidade ideal não se identifica com a
orientando a ação dos indivíduos envolvidos no realidade autêntica, não a reflete nem a expressa;
fenômeno que se quer compreender, como uma eleição, 2) ao contrário, em sua “idealidade”, a
por exemplo. tipicidade ideal afasta-se da realidade efetiva para
Seria possível sim, prever, com algum acerto, afirmar melhor seus vários aspectos;
como as pessoas votarão numa eleição, pesquisando sua
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3) a tipicidade ideal não deve ser confundida igreja. É assim que, as normas, as leis e as instituições
com a avaliação ou com o valor, “este filho da dor de são formas de relações sociais duráveis e consolidadas.
nossa disciplina”; Os tipos de ação, para Weber, sempre serão
4) o tipo ideal, repetindo, pretende ser construções do pensamento, isto é, suposições teóricas
instrumento metodológico ou instrumento heurístico: baseadas no conhecimento acumulado, que o sociólogo
os conceitos ideais-típicos são uniformidades limites. fará para se aproximar ao máximo daquilo que seria a
Seguindo essa ideia, Weber definiu quatro tipos ação real do indivíduo nas circunstâncias ou no grupo
ideais de ação social, pois ele considerava que as pessoas em que vive.
podem atuar, em geral, mesclando quatro tipos Com esse instrumento, o sociólogo pode
básicos de ação social. São eles: avaliar, na análise de um fenômeno, o que se repete,
1) A ação racional com relação a fins: age com que intensidade, e o que é novo ou singular,
para obter um fim objetivo previamente definido. E comparando-o com outros casos parecidos, já
para tanto, seleciona e faz uso dos meios necessários e conhecidos e resumido numa tipologia.
mais adequados do ponto de vista da avaliação. O que Por exemplo, se há alguém apaixonado que
se destaca, aqui, é o esforço em adequar, racionalmente, você conheça, qual seria o tipo ideal de ação desta
os fins e os meios de atingir o objetivo. Na ação de um pessoa? A afetiva! Assim sendo, seria “fácil” prever
político, por exemplo, podemos ver um foco: o de obter quais seriam as possíveis atitudes desta pessoa: mandar
o cargo com o poder que deseja a fim de...Bom. Aí flores e presentes, querer que a hora passe logo para
depende do político. estar com ela(e), sonhar acordado e coisas do tipo. E
2) A ação racional com relação a valores, assim poderíamos entender, em parte, como se forma a
ocorreria porque, muitas vezes, os fins últimos de ação instituição família. Uma coisa liga a outra.
respondem a convicções, ao apego fiel a certos valores Outro exemplo. Pode ser que alguém perto de
(honra, justiça, honestidade...). você nem pense em querer se apaixonar para não
Neste tipo, o sentido da ação está inscrito na atrapalhar os estudos. Sua meta é a universidade e uma
própria conduta, nos valores que a motivaram e não na ótima profissão. Então, o que temos aqui? Uma ação
busca de algum resultado previa e racionalmente racional! Para esta pessoa nem adiantaria mandar flores,
proposto. certo? O que não significa que não possamos tentar,
Por esse tipo de ação podemos pensar as não é mesmo?
religiões. Ninguém vai a uma igreja ou pertence a
determinada religião, de livre vontade, se não acredita A questão da referência aos valores
nos valores que lá são pregados. Certo?
3) Na ação afetiva a pessoa age pelo afeto que Para Weber temos uma “só” ciência porque é
possui por alguém ou algo. Uma serenata pode ser vista “único” o critério de cientificidade das diversas ciências:
como uma ação afetiva para quem ama, não é mesmo? tanto nas ciências naturais como nas ciências histórico-
4) A ação social tradicional é um tipo de ação sociais, temos conhecimento cientifico quando
que nos leva a pensar na existência de um costume. O conseguimos produzir explicações causais.
ato de tomar chimarrão ou pedir a benção dos pais na Entretanto, não é difícil ver que toda explicação
hora de dormir são ações que podem ser pensadas pela causal é somente uma visão fragmentária e parcial da
ação tradicional. realidade investigada (por exemplo, as causas
econômicas da Primeira Guerra Mundial). E como,
Entendendo a Sociedade além disso, a realidade é infinita, tanto extensiva como
intensivamente, é obvio que a regressão causal deveria
Agora podemos assimilar melhor que a ideia de ir até o infinito: para o conhecimento exaustivo do
Weber para se entender a sociedade é a seguinte: se objeto, os efeitos seriam estabelecidos “desde a
quisermos compreender a instituição igreja, por eternidade”.
exemplo, vamos ter que olhar os indivíduos que a Todavia, nós nos contentamos com certos
compõem e suas ações. aspectos do devir, estudamos fenômenos precisos e não
Provavelmente haverá um grupo significativo todos os fenômenos, em suma realizamos uma seleção,
de pessoas que agem do mesmo modo, quer dizer, tanto dos fenômenos a estudar como dos pontos de
partilhando valores, desejos e expectativas quanto à vista a partir dos quais os estudamos e,
religião, o que resultaria no que Weber chama de consequentemente, das causas de tais fenômenos. Não
relação social. pode haver dúvidas sobre tudo isso.
A existência da relação social dos indivíduos, ou Mas como se realiza, ou melhor, como funciona
seja, uma combinação de ações que se orientam para essa seleção? Tendo como referência os valores. E aqui
objetivos parecidos, é que faz compreender o “porquê” é preciso que nos entendamos com muita clareza. Antes
da existência do todo, como neste próprio exemplo da de mais nada, a referência aos valores não tem nada a

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ver com o juízo de valor ou com a apreciação de explicação histórica, Weber considerou especialmente a
natureza ética. sociologia. Em outros termos, para explicar os fatos
Weber é explicito: o juízo que glorifica ou históricos precisa-se de leis, que o historiador vai buscar
condena, que aprova ou desaprova, não tem lugar na principalmente na sociologia, que descobre “conexões
ciência, precisamente pela razão de que ele é subjetivo. e regularidades” nos comportamentos humanos.
Por outro lado, a referência aos valores, em Weber, não Deve-se notar, porém, que, quando o
tem nada a dividir com um sistema objetivo e universal historiador explica um fato, geralmente o faz referindo-
qualquer de valores, um sistema em condições de se a uma constelação de causas.
expressar uma hierarquia de valores unívoca, definitiva Mas, a seus olhos, nem todas as causas tem igual
e válida. Dilthey já constatara a moderna “anarquia de peso. Eis, portanto, a questão: como pode o
valores”; e Weber aceita esse relativismo. historiador determinar o peso de uma causa na
A referência aos valores, portanto, não equivale ocorrência de um acontecimento?
a pronunciar juízos de valor (“isto é bom”, “aquilo é Para bem compreender a questão, Weber se
justo”, “isto é sagrado”), nem implica o remete a algumas opiniões do historiador Eduard
reconhecimento de valores absolutos e incondicionais. Meyer, para quem o desencadeamento da segunda
Então, o que pretende guerra púnica foi consequência de uma decisão
Weber quando questiona a “referência aos valores”? voluntária de Aníbal, assim como a explosão da Guerra
Para sermos breves, devemos dizer que a dos Sete Anos ou da guerra de 1866 foram,
referência aos valores é um princípio de escolha; ele respectivamente, consequências de uma decisão de
serve para estabelecer quais os problemas e os aspectos Frederico, o Grande, e de Bismarck.
dos fenômenos, isto é, o campo de pesquisa no qual Meyer também afirmara que a batalha de
posteriormente a investigação se realizará de modo Maratona foi de grande importância histórica para a
cientificamente objetivo, tendo em vista a explicação sobrevivência da cultura grega e, por outro lado, que os
causal dos fenômenos. fuzilamentos que, na noite de março de 1848, deram
A realidade é ilimitada, aliás, infinita, e o início a revolução em Berlim não foram determinantes,
sociólogo e o historiador só acham interessantes certos pelo fato de que, dada a situação na capital prussiana,
fenômenos e aspectos desses fenômenos. E estes são qualquer incidente teria podido fazer explodir a luta.
interessantes não por uma qualidade intrínseca deles, Opiniões desse tipo atribuem a certas causas
mas apenas em referência aos valores do pesquisador. importância maior que a outras. E essa desigualdade de
Segue-se daí que ao historiador cabe significado entre os vários antecedentes do fenômeno
exclusivamente a explicação de elementos e aspectos do pode ser detectada, diz Weber, já que, com base nos
acontecimento enquadrável em determinado ponto de conhecimentos e nas fontes a disposição, o historiador
vista (ou teoria). E os pontos de vista não são dados de constrói ou imagina um desenvolvimento possível,
uma vez por todas: a variação dos valores condiciona a excluindo uma causa para determinar seu peso e sua
variação dos pontos de vista, suscita novos problemas, importância no devir efetivo da história. Assim, em
propõe considerações inéditas, descobre novos relação aos exemplos anteriores, o historiador se
aspectos. É o feixe do maior número de pontos de vista propõe, pelo menos implicitamente, a pergunta: o que
definidos e comprovados que nos permite ter a ideia teria acontecido se os persas houvessem vencido, se
mais exata possível de um problema. Bismarck não houvesse tomado aquela decisão e se não
Tudo isso, mais uma vez, mostra o absurdo da houvesse ocorrido o fuzilamento em Berlim?
pretensão de que as ciências da cultura poderiam e O historiador isola mentalmente uma causa
deveriam elaborar um sistema fechado de conceitos (por exemplo, a vitória de Maratona ou o fuzilamento
definitivos. nas ruas de Berlim), excluindo-a da constelação de
antecedentes, para depois se perguntar se, sem ela, o
O peso das diferentes causas na realização dos curso dos acontecimentos teria sido igual ou diferente.
eventos Desse modo, constroem-se possibilidades
objetivas, isto é, opiniões (baseadas no saber a
A pesquisa histórica é individualizante, isto é, disposição) sobre como as coisas podiam ocorrer, para
diz respeito as individualidades históricas (a política se compreender melhor como elas ocorreram.
agrária romana, o direito comercial na Idade Média, o Prosseguindo no exemplo, se os persas houvessem
nascimento do capitalismo, as condições dos vencido, então é verossímil (ainda que não necessário,
camponeses na Alemanha oriental do Elba etc.). O pois Weber não é determinista) que eles houvessem
historiador quer descrever e dar conta dessas imposto na Grécia, como fizeram em toda parte onde
individualidades. Mas dar conta delas significa explicá- venceram, uma cultura teocrático-religiosa baseada nos
las. E, para explica-las, necessita-se de conceitos e de mistérios e nos oráculos. Esta é uma possibilidade
regularidades gerais pertencentes às ciências objetiva e não gratuita, para que compreendamos que a
monológicas. Entre elas, vistas como instrumentos de vitória de Maratona é causa muito importante para o
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desenvolvimento posterior da Grécia e da Europa. Já os Em todo caso, a ciência nunca nos dirá o que
fuzilamentos diante do castelo de Berlim, em 1848, devemos fazer, e como devemos viver. Se propusermos
pertencem à ordem das causas acidentais, pelo fato de essas interrogações à ciência, nunca teremos resposta,
que a revolução teria explodido de qualquer forma. porque teremos batido a porta errada. Cada um de nós
deve buscar a resposta em si mesmo, seguindo sua
A polêmica sobre a “não-avaliabilidade” inspiração ou sua fraqueza. O médico pode até nos
curar, mas, enquanto médico, não está em condições de
Weber distingue claramente entre conhecer e estabelecer se vale ou não vale a pena viver.
avaliar, entre juízos de fato e juízos de valor, entre “o
que é” e “o que deve ser”. Sistema capitalista e mundo moderno
Para ele a ciência social é não-valorativa, no
sentido de que procura a verdade, ou seja, procura Uma contribuição relevante de Weber, neste
apurar como ocorreram os fatos e por que ocorreram caso, que se encontra em seu livro A ética protestante
assim e não diferentemente. e o espírito do capitalismo, é demonstrar que a
A ciência explica, não avalia. Dentro do montagem do modo de produção capitalista, no
trabalho de Weber, tal tomada de posição tem dois ocidente europeu, principalmente, contou com a
significados: existência, em alguns países, de uma ‘pauta’ de valores
a) um, epistemológico, consiste na defesa da de fundo religioso que ajudou a criar entre certos
liberdade da ciência em relação a avaliações ético- indivíduos, predisposições morais e motivações para se
político-religiosas (uma teoria cientifica não é católica envolverem na produção e no comércio de tipo
nem protestante, não é liberal nem marxista); capitalista.
b) o outro significado, ético-pedagógico, Weber chamou a atenção para a relação entre
consiste na defesa da ciência em relação às deformações uma ética que valorizava o trabalho árduo e o espírito
demagógicas dos chamados “socialistas de cátedra”, de poupança, a ética calvinista, ou puritana – um ramo
que subordinavam o valor da verdade a valores ético- da religião protestante -, e o espírito racional da
políticos, isto é, subordinam a cátedra a ideais políticos. burguesia dos séculos XVI e XVII.
Com base nisso, é oportuno fixar em alguns Weber está persuadido de que o capitalismo
breves pontos as considerações de Weber sobre a moderno deve sua força propulsora à ética calvinista. A
questão da avaliabilidade: concepção calvinista em questão é a que se pode
1) O professor deve ter claro quando faz ciência encontrar no texto da Confissão de Westminster de 1647,
e, ao contrário, quando faz política. resumida por Weber nos cinco pontos seguintes:
2) Se o professor, durante uma aula, não 1) existe um Deus absoluto e transcendente,
pudesse se abster de produzir avaliações, então deveria que criou o mundo e o governa, mas que o espírito
ter a coragem e a probidade de indicar aos alunos aquilo finito dos homens não pode captar;
que é puro raciocínio lógico ou explicação empírica, e 2) esse Deus, onipotente e misterioso,
aquilo que se refere a apreços pessoais e convicções predestinou cada um de nós a salvação ou à danação,
subjetivas. sem que, com nossas obras, possamos modificar um
3) O professor não deve aproveitar de sua decreto divino já estabelecido;
posição de professor para fazer propaganda de seus 3) Deus criou o mundo para sua glória;
valores; os deveres do professor são dois: 4) esteja destinado à salvação ou à danação o
a) de ser cientista e de ensinar os outros a se homem tem o dever de trabalhar para a glória de Deus
tornarem também; e criar o reino de Deus sobre esta terra;
b) de ter a coragem de pôr em discussão seus 5) as coisas terrenas, a natureza humana, a
valores pessoais e de pô-los em discussão no ponto em carne, pertencem ao mundo do pecado e da morte: a
que se pode efetivamente discuti-los, e não onde se salvação para o homem é tão-somente um dom
pode facilmente contrabandeá-los. totalmente gratuito da graça divina.
4) A ciência é distinta dos valores, mas não está Esses diferentes elementos podem-se encontrar
separada deles: uma vez fixado o objetivo, a ciência dispersos em outras concepções religiosas, mas a
pode nos dar os meios mais apropriados para alcançá- combinação de tais elementos, precisa Weber, é original
lo, pode prever quais serão as consequências prováveis e única, com consequências verdadeiramente de grande
do empreendimento, pode nos dizer qual é ou será o importância. Antes de mais nada, encontra aqui sua
“custo” da realização do fim a que nos propomos, pode conclusão: aquele grande processo histórico-religioso
nos mostrar que, dada uma situação de fato, certos fins de eliminação do elemento mágico do mundo, processo
são irrealizáveis ou momentaneamente irrealizáveis, e que se iniciou com as profecias judaicas e prosseguiu
pode nos dizer também que o fim desejado choca-se com o pensamento grego. Não há comunicação entre o
com outros valores. espírito finito e o espírito infinito de Deus. Em segundo
lugar, a ética calvinista está ligada a uma concepção anti-
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ritualista que leva a consciência ao reconhecimento de O desencantamento do mundo


uma ordem natural, que a ciência pode e deve explorar.
Além disso, há o problema da predestinação. Em relação ao mundo moderno (científico),
Os calvinistas viram no sucesso mundano na própria Weber demonstrava um certo pessimismo e não
profissão o sinal da certeza da salvação. Em substância, encontrava saída para os problemas culturais que nele
as seitas calvinistas acabaram por encontrar no sucesso surgiam, assim como para a “prisão” na qual o homem
temporal, sobretudo no sucesso econômico, a prova da se encontrava por causa do sistema capitalista.
eleição divina. Em outros termos, o indivíduo é Antes da sociedade moderna, a religião era o
impelido a trabalhar para superar a angustia em que é que motivava a vida das pessoas e dava sentido para
mantido pela incerteza de sua salvação. suas ações, inclusive ao trabalho. Mas com o
pensamento científico tomando espaço como
referencial de mundo, certos apegos culturais – crenças,
formas de agir – vindos da religiosidade foram
confrontados. O problema que Weber via era que a
ciência não poderia ocupar por completo o lugar que a
religião tinha ao dar sentido ao mundo.
Se, em contextos históricos anteriores, o
trabalho poderia ser motivado pela religião, como foi
explicado anteriormente, e agora não é mais, devido à
racionalização do mundo, por que, então, o homem se
prende tanto ao trabalho? Porque o sistema capitalista
– da produção industrial em série e da exploração da
mão-de-obra – deixou o homem ocidental sem uma
Há mais, porém: a ética protestante ordena ao “válvula de escape”. Preso, agora ele vive do e para o
crente desconfiar dos bens deste mundo e praticar trabalho.
conduta ascética. A essa altura, está claro que trabalhar
racionalmente em função do lucro e não gastar o lucro,
mas reinvesti-lo continuamente, constitui
comportamento inteiramente necessário ao
desenvolvimento do capitalismo.
Para Weber, ser capitalista é sinônimo de ser
disciplinado no que se faz. Seria da grande dedicação ao
trabalho que resultaria o sucesso e o enriquecimento.
Herança da ética protestante, válida também para os
trabalhadores.
Mas por que os católicos e as outras religiões
orientais não tiveram parte nesta construção capitalista
analisada por Weber? Porque a ética católica
Tanto em seu grande tratado Economia e sociedade
privilegiava o discurso da pobreza, reprovando a pura
como nos Escritos de sociologia da religião, Weber estudou
busca do lucro e da usura e não viam o sucesso no
a importância social das formas religiosas de vida. O
trabalho como indícios de salvação e nem como forma
ponto de partida da história religiosa da humanidade é
de glorificar a Deus, como faziam os calvinistas. Assim
um mundo repleto de sagrado e, em nossa época, o
sendo, sem motivos divinos para dedicarem-se tanto ao
ponto de chegada é aquilo que Weber chama de
trabalho, não fizeram parte da lista weberiana dos
desencanto do mundo: “A ciência nos faz ver na realidade
primeiros capitalistas.
externa unicamente forças cegas, que podemos dispor a
Quanto às religiões do mundo oriental, a
nosso serviço, mas não pode fazer sobreviver nada dos
explicação seria de que essas tinham uma imagem de
mitos e da divindade com que o pensamento dos
Deus como sendo parte do mundo secular, ao contrário
primitivos povoava o universo. Nesse mundo
da ética protestante ocidental que o concebia como
desprovido de encantos, as sociedades humanas
estando fora do mundo e puro. Assim sendo, os
evoluem para uma organização mais racional e sempre
orientais valorizavam o mundo, pois Deus estaria nele.
mais burocrática”.
O Budismo e o Confucionismo são exemplos do que
No escrito A ciência como profissão, depois de
falamos. E daí a ideia e a prática de não se viver apenas
afirmar que ser superados no plano cientifico é não
para o trabalho, mas sim de poder aproveitar tudo o que
somente nosso destino, de todos nós, mas também
se ganha pelo trabalho com as coisas desta vida.
nosso

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escopo, Max Weber se propõe o problema do significado da justificada cientificamente. A afirmação de que “a
ciência. verdade cientifica é um bem” não é uma afirmação
Trata-se do problema do significado de uma cientifica.
atividade que não alcança e jamais poderá alcançar seu Nem pode sê-lo, já que a ciência, embora
fim. Em todo caso, para Weber o progresso cientifico é pressupondo valores, não pode fundamentar os valores,
uma fração, sem dúvida a mais importante, daquele e não pode igualmente rejeitá-los.
processo de intelectualização ao qual estamos sujeitos
há séculos. A fé como sacrifício do intelecto
O significado profundo dessa intelectualização
e racionalização progressivas, segundo Weber, está “na Então, a qual dos valores em luta devemos
consciência ou na fé de que basta querer para poder; em servir? Bem, é preciso dizer, sentencia Weber, que a
princípio, qualquer coisa pode ser dominada pela razão. resposta a essa pergunta “cabe a um profeta ou a um
O que significa o desencantamento do mundo. Não é redentor”. Mas, neste nosso mundo desencantado, não
preciso mais recorrer à magia para dominar ou para existe o invocado profeta ou redentor. E “Os falsos
obter as graças dos espíritos, como faz o selvagem para profetas das cátedras”, com seus sucedâneos, não
quem tais potências existem. Isso é suprido pela razão bastam para cancelar o fato fundamental que o destino
e pelos meios técnicos. E sobretudo esse o significado nos impõe de viver em época sem Deus e sem profetas.
da intelectualização como tal”. Para quem não está em condições de enfrentar
Todavia, admitido esse desencantamento do virilmente esse destino da nossa época, Weber
mundo, Weber então se pergunta qual será o significado aconselha que volte em silêncio, sem a costumeira
da “ciência como vocação”, e escreve que a resposta conversão publicitária, mas sim pura e simplesmente,
mais simples a essa interpretação é oferecida por aos braços das antigas igrejas, ampla e
Tolstoi: a ciência “é absurda, porque não responde a misericordiosamente abertas.
única pergunta importante para nós: o que devemos Elas não dificultam seu caminho. Em todo
fazer, como devemos viver?” caso, é preciso realizar - é inevitável - o “sacrifício do
Além de pressupor a validade das normas da intelecto”, de um modo ou de outro. Se ele for
lógica e do método, a ciência também deve pressupor realmente capaz disso, não o censuraremos.
que “o resultado do trabalho cientifico é importante no Em toda teologia “positiva”, o crente chega a
sentido de ser ‘digno de ser conhecido’”. um ponto em que é válida a máxima famosa: “Acredito
Mas é evidente que, por seu turno, “esse porque é absurdo”.
pressuposto não pode ser demonstrado com os meios Para Weber, aí está o “sacrifício do intelecto”:
da ciência” e “menos ainda se pode demonstrar se o isso leva o discípulo ao profeta e o crente à igreja. E,
mundo por elas (as ciências) descrito é digno de existir: sendo assim, Weber sustenta que “está claro que a
se tenha um ‘significado’, ou se haja sentido existir tensão entre a esfera dos valores da 'ciência' e a esfera
nele”. Com isso as ciências naturais “não se da salvação religiosa é incurável”.
preocupam”.
Apenas para exemplificar, a “ciência médica Monopólio da força legítima
não se propõe a questão se, e quando, a vida vale a pena
ser vivida. Todas as ciências naturais dão resposta a esta
pergunta: o que devemos fazer se quisermos dominar
tecnicamente a vida? Mas se queremos e devemos domina-
la tecnicamente, e se isso, em última instância, tem
verdadeiramente um significado, elas o deixam
inteiramente suspenso ou então o pressupõem para
seus fins”.
Da mesma forma, as ciências históricas “nos
ensinam a entender os fenômenos da civilização -
políticos, artísticos, literários ou sociais - nas condições
de seu surgimento. Elas pressupõem que haja interesse
em participar, através de tal procedimento, na
comunidade dos ‘homens civis’. Mas elas não estão em
condições de demonstrar ‘cientificamente’ que as coisas Para Weber, o Estado é a instituição social que
são assim, e o fato de elas o pressuporem não dispõe do monopólio do emprego da força legítima
demonstra de modo nenhum que isso seja evidente. E, sobre um determinado território.
com efeito, não o é em absoluto”. A expressão “força legítima” pressupõe que o
Essencialmente, a ciência pressupõe a escolha Estado tem o direito de recorrer à força sempre que isso
da razão cientifica. E essa escolha não pode ser
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seja necessário, e que esse direito é reconhecido pela em jogo, de algum modo ou em algum lugar, causas
sociedade sobre a qual esse Estado exerce seu poder. É econômicas. Todavia, precisamente nesses casos eles se
diferente, por exemplo, da violência utilizada por contentam com hipóteses de malhas mais amplas e
malfeitores, considerada ilegítima. formulações mais gerais, enquanto sua necessidade
Nas democracias modernas, a lei confere ao dogmática é satisfeita ao considerar que as forças
Estado o direito de recorrer a várias formas de pressão, instintivas econômicas são as forças próprias, as únicas
inclusive a violência, para que suas decisões sejam verdadeiras e, em última instância, as forças sempre
obedecidas. decisivas”.
Para concluir, podemos dizer que Weber:
O poder do Estado a) aceita a perspectiva marxista nos limites em
que ela, vez por outra, é adotada como conjunto de
Segundo ainda Max Weber, o termo poder, em hipóteses explicativas a serem comprovadas caso por
sentido amplo, designa “a probabilidade de impor a caso;
própria vontade dentro de uma relação social, mesmo b) rejeita a perspectiva marxista quando se
contra toda resistência”. Poder significa, assim, a transforma em dogma metafísico e, simultaneamente,
probabilidade de alguém se fazer obedecer por outra apresenta-se como concepção científica do mundo;
pessoa. c) não é intenção de Weber, como escreve em
Nas democracias representativas, o poder do A ética protestante e o espírito do capitalismo, a de “substituir”
Estado tem por base uma Constituição livremente uma interpretação causal da civilização e da história,
elaborada e aprovada por uma assembleia de pessoas abstratamente materialista, por outra espiritualidade,
eleitas com essa finalidade, a Assembleia Constituinte. igualmente abstrata: “Ambas são possíveis, mas ambas
igualmente são de pouca serventia para a verdade
Weber e Marx histórica, caso se pretendam não uma preparação, mas
uma conclusão da investigação”.
Do materialismo histórico Weber rejeita o
pressuposto marxista de uma direção determinada de
condicionamento que vai da estrutura para a
superestrutura e que tenha o caráter de interpretação
geral da história.
E, contrariamente à posição marxista do
inelutável condicionamento do momento econômico
sobre qualquer outro estado pessoal ou social, material
ou imaterial, Weber propõe, no escrito A "objetividade"
cognoscitiva da ciência social e da política social, uma divisão
dos fenômenos sociais com base em sua relação com a
economia (para esse propósito fala-se de fenômenos
econômicos verdadeiros e próprios, de fenômenos
economicamente importantes, por exemplo, os
processos da vida religiosa, e de fenômenos
condicionados economicamente, como, por exemplo,
os fenômenos artísticos).
Como bem se pode ver, Weber procura ampliar
e desdogmatizar a posição marxista, mostrando sua
unilateralidade intencional e dogmática.
Weber, portanto, aceita de bom grado uma
explicação em termos econômicos da história. O que
ele rejeita é a metafisicização e a dogmatização de tal
perspectiva.
A proposito disso, escreve: “A concepção
materialista da história do velho sentido genialmente
primitivo, que se apresenta, por exemplo, no Manifesto
comunista, hoje só sobrevive na cabeça de pessoas
privadas de competência especifica e de diletantes.
Entre essa gente, ainda se pode encontrar de forma
extensa o fato de que sua necessidade causal de
explicação de um fenômeno histórico não encontra
satisfação enquanto não se mostram (ou não aparecem)
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ESCOLA DE FRANKFURT
A Escola de Frankfurt surgiu do Instituto de
Pesquisa Social, fundado em Frankfurt no início da
década de 1920 e tem como seus principais
representantes Theodor Adorno, Max Horkheimer,
Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e
Jügen Habermas, este último considerado como
pertencente à segunda geração dessa escola.

Imediatamente após esses acontecimentos


temos a consolidação dos Estados Unidos da América
com sua sociedade de consumo como uma potência
econômica e a crise de 1929 que quase acaba com toda
economia globalizada.

Para entendermos o que eles produziram e


porque decidiram escrever sobre o que escreveram, nós
temos que ter em mente o que eles viram e viveram no
seu tempo.
A escola começa na década de 20, mas
obviamente eles nasceram um pouco antes e puderam
presenciar a consolidação de uma nova sociedade e com
isso várias mudanças de comportamentos.

Os caras estavam alí, no início do século XX.


Tínhamos, em decorrência da Revolução Industrial, a
produção de bens de consumo em larga escala, Há a ascensão dos regimes totalitários do
consequência disso, a guerra por mercados e depois a nazismo e do fascismo culminando na Segunda Guerra
guerra de verdade, a Primeira Guerra Mundial que Mundial (1939-1945) que deixou a humanidade
durou de 1914 a 1918. perplexa com o holocausto.

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1. THEODOR ADORNO
A Filosofia de
Theodor Adorno (1903-
1969), considerada uma
das mais complexas do
século XX, fundamenta-
se na perspectiva da
dialética.

Dialética do esclarecimento

Uma das suas importantes obras, a Dialética do


Esclarecimento (1947), escrita em colaboração com Max
Horkheimer durante a segunda guerra mundial, é uma
crítica da razão instrumental, conceito fundamental
Então pessoal, é em meio a tudo isso que a deste último filósofo, ou, o que seria o mesmo, uma
escola emerge com a pretensão de tentar explicar o que crítica, fundada em uma interpretação negativa do
levou uma civilização dita racional a cometer tanta Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica
barbaridade, e com isso, apresentavam um modo novo cultural do sistema capitalista (que Adorno chama de
de pensar sobre a sociedade. “indústria cultural”).
Dessa maneira, eles passaram a analisar que tipo Também uma crítica à sociedade de mercado
de racionalidade é essa que direcionou a humanidade à que não persegue outro fim que não o do progresso
autodestruição e ajudou a criar meios de dominação técnico e o lucro.
social, semelhante à dominação proporcionada sobre a A atual civilização técnica, surgida do espírito
natureza através do método científico. do Iluminismo e do seu conceito de razão, não
Nesse sentido, se opuseram ao pensamento representa mais que um domínio racional sobre a
tradicional produzido pelos filósofos desde Descartes natureza, que implica paralelamente um domínio
até o iluminismo, e se destacaram por sua teoria crítica (irracional) sobre o homem; os diferentes fenômenos
que atacava principalmente essa razão iluminista que de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam
estava no cerne da fundação da sociedade (mundo) outra coisa que não mostras, e talvez as piores
moderna. manifestações, desta atitude autoritária de domínio
Diferentemente do caráter especializado da sobre o outro.
ciência, que disseca a realidade para estudar suas partes Em sua Dialética Negativa, Adorno intenta
de maneira separada, os pensadores dessa escola mostrar o caminho de uma reforma da razão mesma,
discutiram sobre vários temas de caráter tanto filosófico com o fim de libertá-la deste lastro de domínio
quanto sociológico, tais como autoridade, autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela
autoritarismo, totalitarismo, família, cultura de massa, carrega desde a razão iluminista.
liberdade, o papel da ciência e da técnica. Seu pensamento opõe-se à filosofia dialética
Isso porque entendiam que a pesquisa social inspirada em Hegel, que reduz a sistema todas as coisas
não pode se dissolver em várias pesquisas especializadas através do pensamento, superando suas contradições
e setoriais. Para eles, a sociedade deve ser pesquisada (crítica também do Positivismo, que deseja assenhorar-
“como um todo” nas relações que se ligam através dos se da natureza por intermédio do conhecimento
âmbitos econômicos, culturais e psicológicos. científico).
É aqui que se instaura a ligação entre hegelianismo A razão só deixa de ser dominadora se aceita a
(totalidade e dialética), marxismo (crítica social) e dualidade de sujeito e objeto, interrogando e
freudismo (estudo do inconsciente que domina esse ser interrogando-se sempre o sujeito diante do objeto, sem
racional que se diz consciente de si mesmo), que saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por
influenciará a obra dos pensadores da Escola de inteiro.
Frankfurt. Da Crítica da Razão, Adorno chega também à
A teoria crítica desenvolvida por eles pretende crítica da linguagem. Para Adorno, toda linguagem
fazer emergir as contradições fundamentais da conceitual realiza alguma forma de violência cognitiva,
sociedade capitalista e apontar para “um pois nunca é possível conformar totalmente às palavras
desenvolvimento que leve a uma sociedade sem aos objetos e sentimentos tais como eles são
exploração”. (contradição do "não-idêntico").
Como alternativa e complemento à linguagem
conceitual, Adorno valoriza a linguagem artística, a qual
consegue expressar as irracionalidades, contradições e
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estranhamentos dos sujeitos, sem violentá-las por meio Interessada nos homens apenas enquanto
de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz
cada obra de arte cria o seu mundo interno (ser-para- a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um
si), sem necessidade de se espelhar em objetos externos de seus elementos, às condições que representam seus
e incorrer em violência cognitiva. interesses.
Para ele, o conceito de técnica não deve ser A indústria cultural traz em seu bojo todos os
pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem elementos característicos do mundo industrial moderno
histórica e pode desaparecer. e nele exerce um papel específico, qual seja, o de
Ao visarem à produção em série e à portadora da ideologia dominante, a qual outorga
homogeneização, as técnicas de reprodução sacrificam sentido a todo o sistema.
a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do Adorno fala como a ideologia capitalista, e sua
sistema social. cúmplice, a indústria cultural contribuíram eficazmente
Desse modo, se a técnica passa a exercer imenso para falsificar as relações entre os homens, bem como
poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, dos homens com a natureza, de tal forma que o
graças, em grande parte, ao fato de que as resultado final constitui uma espécie de anti-
circunstâncias que favorecem tal poder são iluminismo.
arquitetadas pelo poder dos economicamente mais
fortes sobre a própria sociedade.
Em decorrência, a racionalidade da técnica
identifica-se com a racionalidade do próprio domínio.
Essas considerações evidenciariam que, não só o
cinema, como também o rádio, não devem ser tomados
como arte. “O fato de não serem mais que negócios –
escreve Adorno – basta-lhes como ideologia”.
Enquanto negócios, seus fins comerciais são
realizados por meio de sistemática e programada
exploração de bens considerados culturais. Tal
exploração Adorno chama de “indústria cultural”.

Indústria cultural

O termo foi empregado pela primeira vez em Considerando-se que o iluminismo tem como
1947, quando ele publicou a Dialética do finalidade libertar os homens do medo, tornando-os
Esclarecimento, juntamente com Max Horkheimer. A senhores e liberando o mundo da magia e do mito, e
expressão “indústria cultural” visa a substituir “cultura admitindo-se que essa finalidade pode ser atingida por
de massa”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que
interesses dos detentores dos veículos de comunicação o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a
de massa. ciência e sobre a técnica.
Os defensores da expressão “cultura de massa”
querem dar a entender que se trata de algo como uma
cultura surgindo espontaneamente das próprias massas.
Adorno diverge frontalmente dessa
interpretação e explica que a indústria cultural é um
sistema político e econômico que tem por
finalidade produzir bens de cultura como filmes,
livros, música popular, programas de TV, entre
outros, como mercadoria e como estratégia de
dominação social.
Ao aspirar à integração vertical de seus
consumidores, não apenas adapta seus produtos ao
consumo das massas, mas, em larga medida, determina Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o
o próprio consumo. homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso
Quer dizer, as pessoas pensam estar da dominação técnica. Esse progresso transformou-se
consumindo o que querem quando na verdade em poderoso instrumento utilizado pela indústria
estão consumindo o que o sistema quer que eles cultural para conter o desenvolvimento da consciência
consumam. das massas.

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A indústria cultural nas palavras do próprio lei de talião, ou a pretendida práxis política radical
Adorno “impede a formação de indivíduos autônomos, renova o terror do passado”.
independentes, capazes de julgar e de decidir Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a
conscientemente”.
O próprio ócio do homem é utilizado pela
indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal
modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais
avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um
prolongamento do trabalho.
Para Adorno, a diversão é buscada pelos que
desejam esquivar-se ao processo de trabalho
mecanizado para colocar-se, novamente, em condições
de se submeterem a ele.
Criando “necessidades” ao consumidor (que
deve contentar-se com o que lhe é oferecido), a obra de arte, para Adorno, apresenta-se, socialmente,
indústria cultural organiza-se para que ele compreenda como antítese da sociedade, cujas antinomias e
sua condição de mero consumidor, ou seja, ele é apenas antagonismos nela reaparecem como problemas
e tão-somente um objeto daquela indústria. internos de sua forma.
Desse modo, instaura-se a dominação natural e
ideológica. Tal dominação tem sua mola motora no 2. MAX HORKHEIMER
desejo de posse constantemente renovado pelo Em 1939,
progresso técnico e científico, e sabiamente controlado Horkheimer (1895-1973)
pela indústria cultural. afirma que “o fascismo é a
Nesse sentido, o universo social, além de verdade da sociedade
configurar-se como um universo de “coisas”, moderna”. Mas acrescenta
constituiria um espaço hermeticamente fechado. Nele, logo que quem não quer falar
todas as tentativas de liberação estão condenadas ao do capitalismo deve calar
fracasso. também sobre o fascismo. E
Contudo, Adorno não desemboca numa visão isso porque, em sua opinião,
inteiramente pessimista, e procura mostrar que é o fascismo está dentro das
possível encontrar-se uma via de salvação. Esse tema leis do capitalismo: por trás da “pura lei econômica” -
aparece desenvolvido em sua última obra, intitulada que é a lei do mercado e do lucro -, está a “pura lei do
Teoria Estética. poder”.
E o comunismo, que é capitalismo de Estado,
A arte como saída constitui uma variante do Estado totalitário. As
organizações proletárias de massa também constituíram
No livro Teoria Estética, Adorno oscila entre estruturas burocráticas e, na opinião de Horkheimer,
negar a possibilidade de produzir arte depois de nunca foram além do horizonte do capitalismo de
Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundo que o Estado. Aqui, o princípio do plano substituiu o do
chocava, mas que ele não podia deixar de olhar e lucro, mas os homens continuam como objetos de
denominar. administração, de administração centralizada e
Essa postura foi extremamente criticada pelos burocratizada.
movimentos de contestação radical, que o acusavam de O lucro por um lado e o controle do plano por
buscar refúgio na pura teoria ou na criação artística, outro geraram repressão sempre maior. Portanto, o que
esquivando-se assim da práxis política. estrutura a sociedade industrial é uma lógica pérfida. E
A seus críticos, Adorno responde que, embora a intenção do trabalho de Horkheimer intitulado Eclipse
plausível para muitos, o argumento de que contra a da razão. Crítica da razão instrumental (1947) é a de
totalidade bárbara não surtem efeito senão os meios examinar o conceito de racionalidade que está na base
bárbaros, na verdade não releva que, apesar disso, da cultura industrial moderna, e procurar estabelecer se
atinge-se um valor limite. esse conceito não contém defeitos que o viciam de
A violência que há cinquenta anos podia parecer modo essencial.
legítima àqueles que nutrissem a esperança abstrata e a
ilusão de uma transformação total está, após a A razão instrumental
experiência do nazismo e do horror stalinista,
inextricavelmente imbricada naquilo que deveria ser Digamos logo que, segundo Horkheimer, o
modificado: “ou a humanidade renuncia à violência da conceito de racionalidade que está na base da civilização

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industrial é podre na raiz. A doença da razão está no 1) A natureza é concebida hoje, mais do que
fato de que ela nasceu da necessidade humana de nunca, como simples instrumento do homem; é o
dominar a natureza. objeto de exploração total, a qual a razio não atribui
Essa vontade de dominar a natureza, de nenhum objetivo e que, portanto, não conhece limites.
compreender suas “leis” para submetê-la, exigiu a 2) O pensamento que não serve aos interesses
instauração de uma organização burocrática e de um grupo constituído ou aos objetivos da produção
impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a industrial considera-se inútil e supérfluo.
natureza, chegou a reduzir o homem a simples 3) Essa decadência do pensamento favorece a
instrumento. obediência aos poderes constituídos, sejam eles
representados pelos grupos que controlam o capital, ou
pelos grupos que controlam o trabalho.
4) A cultura de massa procura “vender” aos
homens o modo de vida que já levam e que odeiam
inconscientemente, ainda que o louvem com palavras.
5) Não só a capacidade de produção do operário
é hoje comprada pela fábrica e subordinada às
exigências da técnica, mas também os chefes dos
sindicatos estabelecem sua medida e a administram.
6) A deificação da atividade industrial não
conhece limites. O ócio é considerado uma espécie de
Ao progresso dos recursos técnicos, que vício, quando vai além da medida do que é necessário
poderiam servir para “iluminar” a mente do homem, para restaurar as forças e permitir retomar o trabalho
acompanha um processo de desumanização, de tal com maior eficiência.
modo que o progresso ameaça destruir precisamente o 7) O significado da produtividade é medido
objetivo que deveria realizar: a indica do homem. E a com critérios de utilidade em relação a estrutura de
ideia do homem, isto é, sua humanidade, sua poder, não mais em relação as necessidades de todos.
emancipação, seu poder de crítica e de criatividade Nessa situação desesperada, o maior serviço
acham-se ameaçados porque o desenvolvimento do que a razão poderia prestar a humanidade seria o da
“sistema” da civilização industrial substituiu os fins denúncia do que é comumente chamado de razão.
pelos meios e transformou a razão em instrumento para Escreve ainda Horkheimer: “Os verdadeiros
atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. indivíduos de nosso tempo são os mártires que
Em outros termos, o pensamento pode servir passaram por infernos de sofrimento e degradação em
para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de sua luta contra a conquista e a opressão, não mais as
todas as ações da sociedade, mas não deve procurar personagens da cultura popular, infladas pela
estabelecer as normas da vida social ou individual, que publicidade. Aqueles heróis, que ninguém cantou,
se supõe serem estabelecidas por outras forças. expuseram conscientemente sua existência individual a
A razão, portanto, não nos dá mais verdades destruição sofrida por outros sem ter consciência disso,
objetivas e universais as quais possamos nos agarrar, como vítimas dos processos sociais. Os mártires
mas somente instrumentos para objetivos já anônimos dos campos de concentração são o símbolo
estabelecidos. Não é ela que fundamenta e estabelece o de uma humanidade que luta para vir à luz. A função da
que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos filosofia é a de traduzir o que eles fizeram em palavras
nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o que os homens possam ouvir, ainda que suas vozes
“sistema”, ou seja, o poder. mortais tenham sido reduzidas ao silêncio pela tirania”.
A razão, tendo renunciado à sua autonomia,
tornou-se um instrumento. A nostalgia do “totalmente outro”

A filosofia como denúncia da razão instrumental Marxista e revolucionário quando jovem,


Horkheimer foi se afastando pouco a pouco de suas
Diante desse vazio terrível, procurasse remediá- posiq6es juvenis.
lo voltando a sistemas como a astrologia, a ioga ou o Não podemos absolutizar nada (deve-se
budismo; ou então são propostas adaptações populares recordar que Horkheimer é de origem judaica) e,
de filosofias clássicas objetivistas ou, ainda, portanto, também não podemos absolutizar o
recomendam-se para o uso moderno as ontologias marxismo. Todo ser finito - e a humanidade é finita -
medievais. que se pavoneia como o valor último, supremo e único,
As panaceias, porém, não deixam de ser torna-se ídolo, que tem sede de sacrifícios de sangue.
panaceias. A realidade, no entanto, é que: Marxista por ser contrário ao nacional-
socialismo, Horkheimer desde o início nutriu dúvidas
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sobre o fato de se a solidariedade do proletariado 3. HERBERT MARCUSE


pregada por Marx era verdadeiramente o caminho para É impossível uma civilização não-repressiva?
chegar a urna sociedade justa. Na realidade - observa
Horkheimer em A nostalgia do totalmente Outro (1970) - as Eros e civilização
ilusões de Marx logo vieram à tona: “A situação social (1955) desenvolve um dos
do proletariado melhorou sem a revolução, e o interesse temas mais importantes do
comum não é mais a transformação radical da pensamento de Freud, ou
sociedade, e sim a melhor estruturação material da seja, a teoria freudiana de
vida”. E, na opinião de Horkheimer, existe uma que a civilização se baseia na
solidariedade que vai além da solidariedade de repressão permanente dos
determinada classe: é a solidariedade entre todos os instintos humanos.
homens, a solidariedade que deriva do fato de que todos Como escrevia
os homens devem sofrer, devem morrer e são finitos. Freud, “a felicidade não é
um valor cultural”. E, comenta Marcuse (1898-1979),
Se assim é, então “todos nós temos em comum isso no sentido de que “a felicidade está subordinada a
um interesse originariamente humano, qual seja, o de um trabalho que ocupa toda a jornada, a disciplina da
criar um mundo no qual a vida de todos os homens seja reprodução monogâmica, ao sistema constituído das
mais bela, mais longa, mais livre da dor e, gostaria de leis e da ordem. O sacrifício metódico da libido e seu
acrescentar, mas não posso acreditar nisso, um mundo desvio imposto inexoravelmente, para atividades e
que seja mais favorável ao desenvolvimento do expressões socialmente úteis, são a cultura”.
espirito”.
Diante da dor do mundo e diante da injustiça,
não podemos ficar inertes. Mas nós, homens, somos
finitos. Por isso, embora não devamos nos conformar,
também não podemos pensar que algo histórico – uma
política, uma teoria, um Estado - seja algo absoluto.
Nossa finitude, ou seja, nossa precariedade, não
demonstra a existência de Deus. Entretanto, existe a
necessidade de uma teologia, não entendida como
ciência do divino ou de Deus, e sim como “a
consciência de que o mundo é fenômeno e, portanto,
não a verdade absoluta que só a realidade última pode
Na opinião de Freud, a história do homem é a
ser. A teologia – e aqui devo me expressar com muita
história de sua repressão. A cultura ou civilização impõe
cautela - é a esperança de que, apesar dessa injustiça que
constrições sociais e biológicas ao indivíduo, mas essas
caracteriza o mundo, possa acontecer que essa injustiça
constrições são a condição preliminar do progresso.
não seja a última palavra”.
Deixados livres para seguir seus objetivos
Assim para Horkheimer, portanto, a teologia é
naturais, os instintos fundamentais do homem seriam
expressão de uma nostalgia segundo a qual o assassino
incompatíveis com toda forma duradoura de
não possa triunfar sobre sua vítima inocente. Portanto,
associação: “Os instintos, portanto, devem ser
nostalgia de justiça perfeita e consumada. Esta jamais
desviados de sua meta, e inibidos em seu objetivo. A
poderá ser realizada na história, diz Horkheimer.
civilização começa quando se renuncia eficazmente ao
Com efeito, ainda que a melhor sociedade viesse
objetivo primário: a satisfação integral das
a substituir a atual desordem social, não será reparada a
necessidades”.
injustiça passada e não se anulará a miséria da natureza
Essa renúncia ocorre na forma de
circunstante.
deslocamento:
Entretanto, isso não significa que devamos nos
render aos fatos, como, por exemplo, ao fato de que DE PARA
nossa sociedade se torna sempre mais sufocante.
Satisfação Satisfação
Segundo Horkheimer, nós ainda não vivemos em uma
sociedade automatizada. Ainda podemos fazer muitas Imediata Adiada
coisas, mesmo que mais tarde essa possibilidade venha
a ser-nos tirada. Prazer Limitação do prazer
E o que o filósofo deve fazer é criticar a ordem Alegria (jogo) Fadiga (trabalho)
constituída para impedir que os homens se percam
naquelas ideias e naqueles modos de comportamento Receptividade Produtividade
que a sociedade lhes propicia em sua organização.
Ausência de repressão Segurança

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Marcuse diz que Freud descreveu essa mudança fica abandonado a si mesmo: é controlado e guiado;
como a transformação do princípio do prazer em consciente das possibilidades da derrocada do sistema,
princípio de realidade, e as vicissitudes dos instintos o poder sufoca as potencialidades libertadoras e
são as vicissitudes da estrutura psíquica na civilização. perpetua um estado de necessidade doravante não mais
E com a instituição do princípio de realidade, o ser necessário.
humano - que, sob o princípio do prazer, fora pouco E assim, já tecnicamente possível, a utopia
mais do que mistura de tendências animais, tornou-se permanece inalcançável. Daí a importância da filosofia,
Eu organizado. que, embora sem dizer como será o reino da utopia, no
Para Freud, a modificação repressiva dos entanto o anuncia, ao mesmo tempo em que denuncia
instintos é consequência “da eterna luta primordial pela os obstáculos em seu caminho.
existência que continua até nossos dias. Sem a
modificação, ou melhor, o desvio dos instintos, não se O homem de uma dimensão
vence a luta pela existência e não seria possível
nenhuma sociedade humana duradoura. Entretanto, diz O escrito mais conhecido de Marcuse é O homem
Marcuse, Freud considera eterna a luta primordial pela de uma dimensão, de 1964. O homem de uma dimensão é
existência, acreditando, com isso, num antagonismo o homem que vive em uma sociedade de uma dimensão,
eterno entre o princípio do prazer e o princípio de sociedade justificada e coberta pela filosofia de uma
realidade. A convicção de que é impossível uma dimensão. A sociedade de uma dimensão é sociedade sem
civilização não repressiva representa uma pedra angular oposição, ou seja, sociedade que paralisou a crítica
da construção teórica freudiana. através da criação de um controle total.
Precisamente contra essa eternização e
absolutização do contraste entre o princípio do prazer
e o princípio de realidade é que se voltam os golpes
críticos de Marcuse, no sentido de que, em sua opinião,
esse contraste não é metafísico ou eterno, devido a certa
misteriosa natureza humana considerada em termos
essencialistas. Esse contraste é muito mais produto de
uma organização histórico-social especifica. Freud
mostrou que a falta de liberdade e a constrição foram o
preço pago por aquilo que se fez, pela "civilização" que
se construiu. A filosofia de uma dimensão é a filosofia da
Mas disso não deriva necessariamente que o racionalidade tecnológica e da lógica do domínio; é a
preço a ser pago seja eterno. negação do pensamento crítico, da “lógica do
protesto”; é a filosofia “positivista” que justifica “a
“Eros” libertado racionalidade tecnológica”.
Na sociedade tecnológica avançada, “a máquina
O progresso tecnológico gerou as premissas produtiva tende a se tornar totalitária enquanto
para a libertação da sociedade em relação à obrigação determina não somente as ocupações, as habilidades e
do trabalho, pela ampliação do tempo livre, pela os comportamentos socialmente requeridos, mas
mudança da relação entre tempo livre e tempo também as necessidades e as aspirações individuais”. E,
absorvido pelo trabalho socialmente necessário (de como universo tecnológico, a sociedade industrial avançada
modo que este se torne apenas meio para a libertação “é um universo político, o último estágio da realização de
de potencialidades hoje reprimidas): “Expandindo-se um projeto histórico específico, ou seja, a experiência,
sempre mais, o reino da liberdade torna-se a transformação e a organização da natureza como
verdadeiramente o reino do jogo, do livre jogo das mero objeto de domínio”.
faculdades individuais. Assim libertadas, elas geram Ela alcança a mais alta produtividade e a utiliza
formas novas de realização e de descoberta do mundo, para perpetuar o trabalho e o esforço; nela, a
que, por seu turno, darão nova forma ao reino da industrialização mais eficiente pode servir para limitar e
necessidade e à luta pela existência”. manipular as necessidades. Escreve Marcuse: “Quando
O reino da necessidade (centrado no princípio se alcança esse ponto, a dominação, sob a forma de
do desempenho e da eficiência, que suga toda a energia opulência e liberdade, estende-se a todas as esferas da
humana) será então substituído por uma sociedade não vida privada e pública, integra toda oposição genuína e
repressiva, que reconcilia natureza e civilização, na qual absorve em si toda alternativa”. Em suma, a sociedade
se afirma a felicidade do Eros libertado. tecnológica avançada cria um verdadeiro universo
No progresso tecnológico, portanto, estão as totalitário; em uma sociedade madura, mente e corpo
condições objetivas para a transformação radical da são mantidos em um estado de mobilização permanente
sociedade. No entanto, o progresso tecnológico não para a defesa desse mesmo universo.
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Por tudo isso, a luta pela mudança deve tomar nietzscheana no jovem Benjamin. Enquanto adepto da
outros caminhos, não mais os indicados por Marx: “As Teoria Crítica foi marcado tanto por Georg Lukács,
tendências totalitárias da sociedade unidimensional quanto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, gosto
tornam ineficazes os caminhos e meios tradicionais de que traduz sua natureza por um lado artística, por outro
protesto”. intelectual.
Seja como for, a questão, porém, não se Adorno já chamava a atenção para sua
apresenta como desesperadora, pois, abaixo da base personalidade austera, quase inflexível, mas também
popular conservadora, existe a camada dos muito educada, tendendo mais para a vibração artística
marginalizados e dos estrangeiros, dos explorados e que para a insensibilidade científica, embora ele
perseguidos de outras raças e de outras cores, dos valorizasse muito a esfera da razão. Seu grande amigo,
desempregados e dos deficientes. Eles ficam fora do Gerschom Gerhard Scholem, com quem ele trava
processo democrático. Sua presença, mais do que conhecimento em 1915, logo percebeu no jovem alguns
nunca, prova quanto é imediata e real a necessidade de traços inequívocos de melancolia, tema, aliás, muito
pôr fim a condições e instituições intoleráveis. Daí por presente na teoria benjaminiana. Além disso, para
que sua oposição é revolucionária, ainda que sua completar a caracterização deste grande filósofo, é
consciência não o seja. Sua oposição golpeia o sistema preciso acrescentar também sua veia poética e sua
de fora dele e, por isso, não é desviada pelo sistema; é natureza mística.
urna força elementar que infringe as regras do jogo e, Benjamin foi um intenso admirador da língua e
assim fazendo, mostra tratar-se de um jogo com cartas da cultura francesas, as quais dominava perfeitamente.
marcadas. Quando eles se reúnem e andam pelos Ele traduziu para a língua alemã obras fundamentais de
caminhos, sem armas e sem proteção, para reivindicar Charles Baudelaire e de Marcel Proust. Sua produção
os mais elementares direitos civis, sabem que tem de literária foi também um espelho de suas crenças, à
enfrentar cães, pedras e bombas, prisão, campos de primeira vista paradoxais. As obras mais célebres são A
concentração e até a morte. O fato de que eles começam Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936)
a se recusar a tomar parte no jogo pode ser o fato que e a incompleta Paris, Capital do século XIX. A Tarefa do
marca o início do fim de um período. Tradutor é essencial para quem estuda Literatura.
Isso não quer dizer, em absoluto, que as coisas Em 1934, Benjamin foge para a Itália, onde
serão assim. O que se diz é que “o fantasma está permanece por um ano, tentando fugir da ascensão do
novamente presente, dentro e fora das fronteiras das Nazismo na Alemanha. Neste período já haviam se
sociedades avançadas”. E o que a teoria crítica da estabelecido algumas divergências entre Benjamin e a
sociedade pode fazer é o seguinte: ela “não possui Escola de Frankfurt. Em 1940, na margem espanhola
conceitos que possam preencher a lacuna entre o da fronteira entre França e Espanha, tentando
presente e seu futuro; não tendo promessas a fazer nem atravessar os Pireneus, possivelmente com medo de ser
resultados a mostrar, ela permanece negativa. Desse capturado pelos nazistas, proibido de seguir adiante,
modo, ela quer manter-se fiel aqueles que, sem Benjamin comete suicídio. O filósofo não resiste à
esperança, deram e dão a vida pela grande recusa”. intensidade da pressão emocional e, movido pelo ardor
de seu lado melancólico e apaixonado, opta pela morte.
4. WALTER BENJAMIM Seu aspecto racional não é forte o bastante para contê-
Walter Benjamin, lo. Neste mesmo ano ele cria sua última obra, Teses Sobre
nasceu em Berlim, a 15 de o Conceito de História. Sua produção intelectual marcou a
julho de 1892, no âmago de produção de vários filósofos que o sucederam.
uma família judia de
comerciantes. Posteriormente A tarefa da crítica
ele se tornaria ensaísta, crítico
de literatura, tradutor, filósofo Para a posteridade, a enorme produção de
e sociólogo da cultura, sendo Benjamin significou o estabelecimento de um marco no
um dos membros mais pensamento e na crítica Olhando retrospectivamente
importantes da Escola de para o século 20, podemos dizer que ele de fato realizou
Frankfurt. um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como ele
Ele foi profundamente formulou em uma carta a seu grande amigo Gershom
influenciado por doutrinas Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira
aparentemente díspares, como o materialismo marxista, o objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico
o idealismo de Hegel e a mística judaica de Gershom da literatura alemã”. Este reconhecimento na época era
Scholem. Ainda adolescente, simpatizava com o na verdade muito tímido, restrito a um pequeno círculo
socialismo, integrando o Movimento da Juventude de leitores especializados. Hoje este círculo cresceu a
Livre Alemã e escrevendo para a publicação deste ponto de podermos com razão falar de um
grupo. É possível perceber então uma certa inspiração
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“reconhecimento” de sua posição privilegiada como econômica. A partir de seu encontro com o marxismo
crítico. de Lukács, isto tornou-se cada vez mais patente em seus
Benjamin estava ciente, como ele escreveu na ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se
mesma carta, que para tornar-se este “primeiro crítico” identificou tão rapidamente com o marxismo de
era necessário “recriar a crítica como gênero”. Este Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin,
gênero encontrava-se então na Alemanha desprezado, vinham de uma profunda relação com o romantismo
não era considerado como sério. alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas
No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que de geração, justamente porque ao invés de “superar”
uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda sua vida.
naquela época, era a “ditadura da resenha como forma Se ele tenta nos anos de 1930 demarcar uma
de pesquisa crítica”. Ele mencionou então, como um posição contra este seu romantismo, é justamente
contra-modelo do passado, as “Características” dos porque ele não conseguiu superá-lo totalmente.
irmãos Schlegel. A crítica de Benjamin era, portanto, antes de
Como um dos caminhos para a saída da crise da mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava em
crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía
a abordagem filológica e uma autêntica reflexão crítica. uma auto-reflexão (ele sempre refletia sobre sua própria
Este termo indicava para ele uma reflexão tanto no atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na
sentido de uma teoria das formas, como de uma teoria sociedade).
da história. Em segundo lugar, destaca-se uma leitura
Sem falsa-modéstia ele escreveu então que se a detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada (que era
situação da crítica alemã estava se transformando, isto sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico,
ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, mas sim de seu próprio Ideal a priori, nas palavras de
de fato, Benjamin então, com 38 anos, já fizera bastante Novalis).
para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas Em terceiro lugar, encontramos uma reflexão
publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin,
seu “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” (1919) dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu muitas
e o “Origem do drama barroco alemão” (de 1925, publicado vezes (como no livro Sobre o barroco e no seu ensaio sobre o
em 1928), como compusera uma profunda análise narrador, de 1936) o tema da teoria dos gêneros
das Afinidades eletivas de Goethe (1922), além de mais de literários.
cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo Em quarto lugar, nota-se sempre uma reflexão
sobre literatura alemã e francesa. crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada
Com o fracasso de seu plano de entrar para a em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele,
universidade, ele se entregara de corpo e alma a este sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado
projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida “tal como ele aconteceu”.
atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para Por fim, e articulando todos os níveis anteriores,
a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente devemos destacar a teoria da história de Benjamin com
derivada desta mesma situação precária, significou o a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto
estabelecimento de um marco no pensamento e na liberais como marxistas, que acreditavam em um
crítica. avanço constante e positivo do devir da história.
Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história
literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu como acúmulo de catástrofes.
em primeiro lugar o conceito de crítica no seu sentido Contra o positivismo daqueles que pregavam
kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. (inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin
Neste ponto seu pensamento já se aproxima do dos demonstrou que não existe um campo fora do político.
românticos Schlegel e Novalis que cobravam da A arte e sua crítica são médium-de-reflexão não
filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a
experiência. Com estes autores ele via na crítica um sociedade. Neste sentido, ele extrapolou
médium-de-reflexão. programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da
Trocando em miúdos, assim como os arte.
românticos viam na “romantização” do mundo um Sua atividade crítica não pode ser inteiramente
projeto de superação das barreiras entre o universo compreendida, se não levarmos em conta seus seminais
criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito,
lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, assim como a sua crítica do que ele denominou de
Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto concepção “burguesa”, ou seja, instrumental, da
estético quanto político. linguagem.
O ato da crítica era visto por ele como um meio Além disso, Benjamin refletiu também em
de crítica de todo o sistema cultural e de sua base vários importantes ensaios críticos sobre questões
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como a da coleção e do colecionismo. Seus escritos cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés
voltados para a recordação de sua infância são conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao
profundamente inovadores, na medida em que qual Benjamin opõe sua visada da cultura como
desconstroem criticamente os modelos da autobiografia documento e testemunho da barbárie.
e introduzem uma modalidade da auto-escritura mais Seu projeto de historiografia calcada no
fragmentada e voltada para uma “topografia da colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus
memória”. objetos do falso contexto para inseri-los dentro de uma
O fundamental dentro do universo das críticas nova ordem comandada pelos interesses de cada
de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do
para as obras que eram publicadas na sua época (como catador (que se volta para o esquecido e considerado
as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, Brecht etc.), ou inútil) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que
para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, guarda uma assombrosa força de germinação.
Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma crítica
que era, ao mesmo tempo, teoria da literatura. A obra de arte na modernidade
É este talvez o legado mais importante de sua
produção crítica: ele mostrou a infecundidade da crítica O ensaio “A obra de arte na era de sua
apenas filológica, assim como a limitação da crítica reprodutibilidade técnica” analisa questões como a noção de
meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica. autenticidade e o valor de culto das obras de arte.
Crítica para ele só existia enquanto capacidade Apesar de ter sido escrito a pelo menos meio século,
de se articular (delicadamente, ou às vezes, como todo ainda hoje é um texto de muita importância.
o peso histórico exigido por seu objeto de análise), a O ponto central desse estudo encontra-se na
imanência da obra com a reflexão histórico-crítica. As análise das causas e consequências da destruição da
mostras mais eloquentes desta concepção são a “aura” que envolve as obras de arte, enquanto objetos
introdução “crítico-epistemológica” do seu livro sobre individualizados e únicos. A “aura” corresponde a
o drama barroco alemão, e as reflexões que absoluta singularidade de algo, relacionando-se a sua
acompanham as notas de seu trabalho que ficou condição de exemplar único dentro de um contexto que
inconcluso sobre as passagens de Paris. lhe dá sentido e justificação.
Benjamin escreveu no seu último texto, A obra de arte sempre pôde ser reproduzível,
dedicado à crítica da noção de progresso, que “nunca discípulos “imitavam” seus mestres para difusão da
existiu um documento da cultura que não fosse ao obra ou visando lucro. Porém a reprodução técnica da
mesmo tempo um [documento] da barbárie”. obra de arte é algo novo, que foi possível com a
Com Benjamin aprendemos que cultura é a xilografia (gravura em madeira), muitos anos antes da
partir de meados do século 20 toda ela como que imprensa. Logo, a litografia (tipo de gravura que
transformada em um documento e, mais ainda, ela envolve a criação de marcas ou desenhos sobre
passa a ser lida como testemunho da barbárie. Esta uma matriz de pedra calcária ou placa de metal com um
noção é essencial, porque com este autor vemos não lápis gorduroso) permitiu a arte colocar-se no mercado
apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, suas produções não somente em massa, mas sob a
como também a afirmação radical de um modo de forma de criações sempre novas.
interpretar esses documentos.
Sua teoria da história e da cultura descortina o
passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso
presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando
se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda
inscrição deve-se associar um modo de leitura e de
interpretação, de outro modo teríamos um arquivo
literalmente morto.
O elemento político domina todos os
momentos do trabalho no arquivo, da seleção,
passando pela conservação e pelo acesso, chegando à
leitura dos documentos. A história para Benjamin,
como é conhecida, é aproximada do modelo do
colecionador e do catador de papéis. O historiador deve
acumular os documentos que são como que Com a litografia, as artes gráficas situarem-se no
apresentados diante do tribunal da história. mesmo nível da imprensa, ilustrando a vida cotidiana;
Em Benjamin, a cultura como arquivo e logo, com a fotografia, a arte situou-se no mesmo nível
memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu que a palavra oral. A partir daí a responsabilidade era do
modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se olho e não mais da mão do artista.
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Benjamin diz que a obra de arte tem ou um


valor de culto ou de exposição, quanto menor o valor
de culto maior o valor de exposição. A unicidade da
obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da
tradição, e esta tradição é viva e extraordinariamente
variável.
A chapa fotográfica ou o arquivo de
computador permite-nos ter quantas copias quisermos,
a questão de autenticidade das copias, segundo
Benjamin, não tem nenhum sentido. No momento em
que o critério da autenticidade deixa de ser aplicado à
produção artística, toda função social da arte se
transforma, em vez de fundar-se no ritual, passa a
fundar-se em outra práxis: a política.
Com o progresso das técnicas de reprodução, À medida que as obras de arte se emancipam do
sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam
reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu expostas. A imagem era algo quase sagrado, apenas
status de raridade. algumas pessoas tinham aceso para realização de rituais,
É muito mais fácil você encontrar um “original” o dono de uma imagem continuou tendo status de
do filme Matrix no shopping do que a Monalisa original poder por muito tempo, porém com a fotografia,
em qualquer lugar que seja. Não é mesmo? Essa qualquer um podia apreciá-las ou até produzi-las. Agora
raridade confere toda essa “aura” que envolve a obra de podemos conhecer lugares ou obras que não
arte. poderíamos sem a fotografia e os meios de
Para Benjamin, a partir do momento em que a comunicação.
obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, A Monalisa, por
que fazem dela uma coisa para poucos e um objeto de exemplo, poucos tiveram a
culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais. chance de contemplá-la de
Essas dimensões seriam resultantes da estreita relação perto, mesmo que atrás de
existente entre as transformações técnicas da sociedade um grosso vidro, mas quem
e as modificações da percepção estética. não a conhece?
Benjamin nos apresenta o conceito de aura, Segundo Benjamin
como sendo uma figura singular, composta de a exponibilidade de uma obra
elementos espaciais e temporais, seria como um halo de arte cresce em tal escala,
misterioso e inapreensível das imagens; a aparição única com vários métodos de reprodutibilidade técnica, que a
de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde
Para Benjamin esta aura foi se perdendo com a a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu
fotografia, diante do valor de exposição. na pré-história.
Segundo ele as primeiras fotografias remetem à Como na pré-história a preponderância
captação de mistérios nas intimidades dos rostos absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a
fotografados. Mas com o avanço do processo negativo- ser concebida em primeiro lugar como instrumento
positivo, a popularização da fotografia e o mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo
barateamento do aparelho tivemos a decadência da aura modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu
e as tentativas malsucedidas de sua recriação, o valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente
“mistério” da fotografia se perdeu. novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos
A reprodutibilidade técnica da obra de arte consciência.
altera a relação das massas com a arte. Uma das funções Já o cinema representaria
revolucionárias do cinema será a de tornar um meio de expressão
reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos absolutamente incomparável.
artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, A reprodutibilidade técnica
na maioria dos casos. do filme tem seu fundamento
Segundo Benjamin o valor único da obra de arte imediato na técnica de sua
“autêntica” tem sempre um fundamento teológico, por produção. Não se permite
mais remoto que seja. O objeto de arte como ídolo apenas a difusão em massa da
perde-se na era da reprodutibilidade. As mais antigas obra cinematográfica, como a
obras de arte surgiram com o fim de culto, para torna obrigatória, pois a
exprimir uma cultura e um significado em determinado produção de um filme é cara.
povo e lugar. Em 1927, calculou-se que um filme de longa metragem,
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para ser rentável, precisaria atingir um público de nove FENOMENOLOGIA


milhões de pessoas.
Apesar das dificuldades financeiras, numa
perspectiva externa, o cinema falado estimulou 1. FENOMENOLOGIA: UM MÉTODO PARA
interesses nacionais, visto de dentro se “VOLTAR ÀS PRÓPRIAS COISAS”
internacionalizou a produção cinematográfica numa
escala ainda maior. Escreve Heidegger em Ser e tempo: “A expressão
Para o cinema é menos importante o ator 'fenomenologia' significa, antes de mais nada, um
representar diante do público outro personagem, que conceito de método [...]. O termo expressa um lema que
ele representar a si mesmo diante do aparelho. O poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E
cinema renuncia aos valores eternos, pois tem que ser isso em contraposição às construções desfeitas no ar e
cada vez melhor para o público, cada vez mais perfeito. às descobertas casuais. Em contraposição a aceitação de
O corpo do interprete cinematográfico perde a conceitos só aparentemente justificados e aos
substância sendo privado da realidade diante das problemas aparentes que se impõem de uma geração a
câmeras. outra como verdadeiros problemas”.
A crise da democracia foi como uma crise nas
condições de exposição do político. A metamorfose do
modo de exposição pela técnica de produção é visível
também na política. A crise da democratização pode ser
interpretada como crise nas condições de exposição do
político profissional. O político quer se expor de forma
imediata, em pessoa, diante de certos representantes, ou
seja, seu objetivo é o mesmo que o ator, se tornar
“mostrável” para a sociedade.
O cinegrafista utiliza o procedimento técnico para
fazer a cena parecer real, já o pintor vê em sua obra a
distância entre a realidade dada e ele próprio. O
cinegrafista mergulha na realidade. A pintura desfruta
do que é tradicional sem criticar, critica-se o que é novo
sem desfrutar. O filme de sucesso já é o mais exposto,
é o que mais pessoas assistiram.
A análise de Benjamin mostra que as técnicas de
reprodução das obras de arte, provocando a queda da
aura, promovem a liquidação do elemento tradicional Portanto, a palavra de ordem da fenomenologia
da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo é a do retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade
contém um germe positivo. É que possibilidade de dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas
reprodução em massa democratiza a cultura e faz com como se fará para construir uma filosofia que se
que o contato com a obra de arte não seja um privilégio sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de
apenas da elite. dados indubitáveis para com base neles construir depois
Desse modo, na medida em que possibilita um o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências
outro relacionamento das massas com a arte, esta pode estáveis para colocar como fundamento da filosofia:
ser um instrumento de politização e com isso um meio “sem evidencia não há ciência”.
eficaz de renovação das estruturas sociais. Um filme Dirá Husserl nas Pesquisas lógicas: “Os limites da
que contém uma forte crítica social é um bom exemplo evidência apodítica representam os limites de nosso
disso na medida em que faz a classe oprimida pensar a saber. Assim, é preciso buscar coisas manifestas,
sua realidade social. fenômenos tão evidentes que não possam ser negados”.
Essa, portanto, é a intenção de fundo da
fenomenologia, intenção que os fenomenólogos
procuram realizar através da descrição dos
“fenômenos” que se anunciam e se apresentam à
consciência depois de feita a epoché, isto é, depois de
postos entre parênteses as nossas persuasões
filosóficas, os resultados das ciências e as convicções
engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe
a crença na existência de um mundo de coisas.

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Em outros termos, é preciso suspender o juízo Diferentemente do psicólogo, o fenomenólogo não


sobre tudo o que não é apodítico nem objeto de manipula dados de fato, mas essências; não estuda fatos
controvérsia até se conseguir encontrar aqueles “dados” particulares, senão ideias universais; não se interessa
que resistem aos reiterados assaltos da epoché. E os pelo comportamento moral desta ou daquela pessoa,
fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação mas pretende conhecer a essência da moralidade e
da epoché, o resíduo fenomenológico - como o chamaria talvez ver se a moral é ou não fruto de ressentimento.
Husserl -, na consciência: a existência da consciência é
imediatamente evidente. Direção idealista e direção realista da
fenomenologia
A fenomenologia é descrição das essências
eidéticas O fenomenólogo, em suma, cumpre tarefas
bem diferentes das dos cientistas. A consciência é
A partir dessa evidência, os fenomenólogos “intencional”, é sempre consciência de alguma coisa
pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os que se apresenta de modo típico: a análise desses modos
fatos se apresentam à consciência. E esses modos típicos é precisamente a função do fenomenólogo, que
típicos são precisamente as essências eidéticas. A se pergunta e indaga sobre o que a consciência
fenomenologia não é ciência de fatos, e sim ciência de transcendental entende por amor, percepção,
essências. religiosidade, justiça, comunidade, simpatia, e assim por
Para o fenomenólogo não interessa a análise diante.
desta ou daquela norma moral, porém compreender Nesse ponto, a fenomenologia podia tomar
por que esta ou aquela norma são normas morais e não, duas direções: a idealista ou a realista. Os significados
por exemplo, normas jurídicas ou regras de ou essências dos objetos, das instituições e dos valores
comportamento. Da mesma forma, o fenomenólogo são constituídos e postos pela consciência, ou o olhar
não se interessara (ou, pelo menos, não se interessara do teórico desinteressado os intui enquanto dados
principalmente) em examinar os ritos e os hinos desta objetivos?
ou daquela religião; ao contrário, ele se interessará por Husserl tomará o caminho do idealismo. Assim,
compreender o que á a religiosidade, ou seja, o que o pensador que estabeleceu como programa da
transforma ritos e hinos tão diferentes em ritos e hinos fenomenologia o do retorno às próprias coisas, no fim
“religiosos”. se encontrará com a realidade única que é a consciência:
Naturalmente, o fenomenólogo também a consciência transcendental, que “constitui” os
produzirá analises mais especificas sobre o que significados das coisas, das ações, das instituições e o
caracteriza essencialmente, por exemplo, o pudor, a sentido do mundo (aqui, transcendental quer dizer
santidade, o amor, a justiça, o remorso ou os tipos de kantianamente o que está na nossa consciência
sociedade, mas, em todo caso, sua ciência é enquanto algo independente da sensibilidade e,
precisamente ciência de essências. portanto, a priori, mas funcionalmente ordenado para a
Tais essências se tornam objeto de estudo se o “constituição” da experiência).
pesquisador, estabelecendo-se na atitude de espectador O movimento fenomenológico é uma vasta e
desinteressado, liberta-se das opiniões preconcebidas e, articulada corrente de pensamento, da qual se destacam,
sem se deixar envolver pela banalidade e pelo óbvio, além de Husserl, o pensamento de Heidegger, as
saiba “ver” e consiga intuir (e descrever) aquele análises de Sartre e de Merleau-Ponty.
universal pelo qual um fato é aquilo e não outra coisa. Deve-se dizer ainda que a influência dos
Nós distinguimos um texto mágico de um texto fenomenólogos sobre a psicologia, a antropologia, a
científico, mas como conseguimos faze-lo senão psiquiatria, a filosofia moral e a filosofia da religião foi
porque utilizamos discriminantes essenciais, senão e continua sendo notável. Por isso, é reconhecido que
porque, talvez até sem termos consciência disso, o movimento fenomenológico constitui um
sabemos o que é magia e o que é ciência? Como acontecimento decisivo no âmbito da filosofia
podemos dizer que este é um ato de simpatia, aquele contemporânea.
um gesto de ira, este outro um comportamento
desesperado ou aquele outro ainda um comportamento Às origens da fenomenologia
de santidade, se não houvesse precisamente essências,
ou seja, ideias essenciais, de simpatia, de ira, de A fenomenologia nasce com Husserl como
desespero ou de santidade? polêmica antipsicologista. Uma das ideias fundamentais
Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende de Husserl e da fenomenologia é a da
ser: ciência fundamentada estavelmente, voltada a análise e a intencionalidade da consciência. Foi precisamente
descrição das essências. Com base nisso, podemos em relação a esses dois núcleos problemáticos que
compreender como a fenomenologia se distingue da Husserl se inspirou em dois pensadores de nível
análise psicológica ou da análise científica. notável, isto é, Bernhard Bolzano e Franz Brentano.
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Bolzano (1781-1 848), ano apareceram as Pesquisas lógicas. É de 1911 A filosofia


matemático e filósofo, padre como ciência rigorosa; e Ideias para uma fenomenologia pura e
católico e professor de filosofia uma filosofia fenomenológica é de 1913.
da religião na Universidade de Em 1916 passou a
Praga até 1819, nos deixou duas ensinar em Friburgo, onde
importantes obras: 0s paradoxos permaneceu até 1928, ano
do infinito (1851), e a Doutrina da em que foi posto de licença.
ciência (1837). Como emérito, não pôde
O primeiro trabalho prosseguir sua atividade
exerceu influencia notável sobre a história do didática porque, sendo
pensamento matemático. Já o segundo elabora a judeu, foi obstaculizado
doutrina da “proposição em si” e da “verdade em si”. pelo regime nazista. A lógica
A proposição em si é o puro significado lógico formal e a lógica transcendental é
de um enunciado, não dependendo do fato de ele ser de 1929. Em 1931 foram
expresso ou pensado. Já a verdade em si é dada por publicadas suas
qualquer proposição válida, seja ou não expressa ou conferências parisienses, sob o título de Meditações
pensada. Assim, a validade de um princípio lógico, cartesianas.
como o da não-contradição, permanece tal tanto se o Morreu em 1938 e deixou grande quantidade de
pensarmos ou não, tanto se o expressarmos com inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas
palavras ou por escrito, como se não o expressarmos. estenografadas). Dessa grande massa de manuscritos
As proposições em si podem derivar uma da outra e foram extraídos vários livros, o mais conhecido e
podem entrar em contradição: elas são parte de um importante dos quais é A crise das ciências europeias e a
mundo lógico-objetivo e são independentes das fenomenologia transcendental, publicado em 1950.
condições subjetivas do conhecer.
Brentano (1838- A intuição eidética
1917), também padre
católico que depois As proposições universais e necessárias são
abandonou a Igreja, foi condições que tornam possível uma teoria, sendo
professor na Universidade diferentes das proposições obtidas indutivamente da
de Viena. Escreveu muito experiência. Na base desses dois tipos de proposições,
sobre Aristóteles (A Husserl distingue entre intuição de um dado de fato e
psicologia de Aristóteles, 1867; intuição de uma essência.
O cristianismo de Aristóteles, Husserl está persuadido de que nosso
1882; Aristóteles e sua visão do mundo, 1911; A doutrina de conhecimento começa com a experiência, ou seja, com
Aristóteles sobre a origem do espirito humano, 1911); todavia, a experiência de coisas existentes, de fatos. A experiência
sua obra de maior sucesso foi A psicologia do ponto de vista nos oferece continuamente dados de fato, os dados de
empírico (1874). É nesta última obra que Bretano afirma fato com os quais nos vemos às voltas na vida cotidiana,
o caráter intencional da consciência. e dos quais a ciência também se ocupa. Um fato é o que
Na escolástica, intentio significava o conceito acontece aqui e agora; um fato é contingente, podendo ser
enquanto indica algo diferente de si. Segundo Brentano, ou não ser.
precisamente, a intencionalidade é o que tipifica os Mas, quando um fato (este som, esta cor etc.) se
fenômenos psíquicos, que sempre se referem a algo nos apresenta à consciência, juntamente com o fato
diferente de si próprio. Eles se distinguem em três captamos uma essência (o som, a cor etc.). Nas ocasiões
classes fundamentais, que são a representação, o juízo e mais díspares, podemos ouvir os sons mais diversos
o sentimento. Na representação, o objeto é puramente (clarim, violino, piano etc.), mas neles reconhecemos
presente; no juízo, ele é afirmado ou negado; no algo de comum, uma essência comum. No fato sempre se
sentimento, ele é amado ou odiado. capta uma essência. O individual se anuncia para a
consciência através do universal.
2. EDMUND HUSSERL Quando a consciência capta um fato aqui e agora,
ela capta também a essência: esta cor é caso particular da
Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia), em essência "cor", este som é caso particular da essência
1859. Estudou matemática em Berlim e laureou-se em "som", este ruído é caso particular da essência "ruído"
1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. etc.
Em Viena, seguiu as aulas de Brentano. Em As essências, portanto, são os modos típicos do
1891, publicou a Filosofia da aritmética. aparecer dos fenômenos. E não é que nós abstraiamos
Livre-docente em Halles em 1887, foi nomeado as essências da comparação de coisas semelhantes,
professor de filosofia em Gottingen em 1901. Neste como queriam os empiristas, uma vez que a semelhança
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já é essência. Não abstraímos a ideia ou essência de mais variar, caso contrário já não se estaria tratando do
“triângulo” da comparação de muitos triângulos: o que mesmo conceito.
ocorre é que este, esse e aquele são triângulos porque É óbvio que essas essências não existem
são casos particulares da ideia de triângulo. Este somente no interior do mundo perceptivo: fatos como
triângulo isóscele desenhado no quadro-negro existe recordações, esperanças ou desejos também tem sua
aqui e agora, com estas dimensões e não outras. Esse é essência, isto é, se apresentam à consciência de modo
um dado de fato particular. Mas nele captamos uma típico. Além disso, a distinção entre o fato (que é um isto)
essência. e uma essência (que é um “o que”) permite a Husserl
E o conhecimento das essências não é justificar a lógica e a matemática.
conhecimento mediato, obtido, como se repete, por As proposições lógicas e matemáticas são juízos
meio da abstração ou comparação de vários fatos. Para universais e necessários porque são relações entre
comparar vários fatos, é preciso já ter captado uma essências. E sendo relações entre essências, as
essência, isto é, um aspecto pelo qual eles são proposições lógicas e matemáticas não recorrem a
semelhantes. experiência como fundamento de sua validade.
O conhecimento das essências é uma intuição. O fato de a consciência poder efetivamente
É uma intuição diferente daquela que nos permite referir-se a essências ideais não legitima somente uma
captar os fatos particulares. É a ela que Husserl chama análise dos modos típicos em que se apresentam os
intuição eidética ou intuição da essência. Trata-se de fenômenos perceptivos, nem apenas a distinção das
conhecimento distinto do conhecimento do fato. Os proposições lógicas e matemáticas das propriedades das
fatos particulares são casos de essências eidéticas. Essas ciências empíricas; o fato da referência às essências
essências eidéticas, portanto, não são objetos ideais abre à fenomenologia a exploração e a descrição
misteriosos ou evanescentes. do que Husserl chama de “ontologias regionais”.
É verdade que só os fatos particulares são reais, Nesse sentido, “regiões” são a natureza, a
e que os universais não são reais como os fatos sociedade, a moral e a religião. O estudo dessas
particulares. Os universais, isto é, as essências, são ontologias regionais se propõe captar e descrever as
conceitos, ou seja, objetos ideais que, porém, permitem essências, isto é, as modalidades típicas com que
classificar, reconhecer e distinguir os fatos particulares, aparecem à consciência os fenômenos morais, por
dos quais a consciência, quando eles se lhe apresentam, exemplo, ou os fenômenos religiosos. À essas
reconhece o “aqui e agora”, mas também o “o quê”. ontologias regionais, Husserl contrapõe a ontologia
formal, que depois identifica com a lógica.
Ontologias regionais e ontologia formal
A intencionalidade da consciência
A fenomenologia pretende ser ciência de
essências e não de dados de fato. Ela é fenomenologia, A fenomenologia, portanto, é ciência das
ou seja, “ciência dos fenômenos”, mas seu objetivo é o essências, isto é, dos modos típicos do aparecer e do
de descrever os modos típicos com os quais os manifestar-se dos fenômenos da consciência, cuja
fenômenos se apresentam à consciência. E essas característica fundamental é a da intencionalidade.
modalidades típicas (pelas quais este som é um som e A consciência, com efeito, é sempre consciência
não uma cor ou um ruído, ou pelas quais este desenho é de alguma coisa. Quando eu percebo, imagino, penso
de um triângulo e não de outra coisa) são precisamente ou recordo, eu percebo, imagino, penso ou recordo
as essências. alguma coisa. Por isso se pode ver, diz Husserl, que a
A fenomenologia, portanto, é ciência de distinção entre sujeito e objeto dá-se imediatamente. O
experiência, não, porém, de dados de fato. Os objetos sujeito é um eu capaz de atos de consciência como
da fenomenologia são as essências dos dados de fato, perceber, julgar, imaginar e recordar; o objeto, ao
são os universais que a consciência intui quando os contrário, é o que se manifesta nesses atos, ou seja,
fenômenos a ela se apresentam. E nisso consiste a corpos percebidos, imagens, pensamentos,
redução eidética, isto é, a intuição das essências, quando, recordações.
na descrição do fenômeno que se apresenta à Por isso, devemos distinguir ainda o aparecer de
consciência, sabemos prescindir dos aspectos empíricos um objeto do objeto que aparece. E se é verdade que
e das preocupações que nos ligam a eles. conhecemos o que aparece, para Husserl também é
Nesse sentido, as essências são invariáveis. E verdade que vivemos o aparecer do que aparece. Husserl
são obtidas através do que, nos escritos póstumos de chama de noese o ter consciência, e noema aquilo de que
Husserl, denomina-se “método da variação eidética”. se tem consciência. E entre os diversos noemas, como
Toma-se determinado exemplo de um conceito que se sabemos, Husserl distingue claramente os fatos das
quer explicar e depois, pouco a pouco, se introduzem essências.
variações nas propriedades, as quais são submetidas a A consciência, portanto, é intencional. Como
variações até se chegar a um ponto em que não se pode escreve Husserl, “a intencionalidade é o que caracteriza
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consciência de modo significativo. Nossos atos porém, não possuem evidencia constritiva e,
psíquicos têm a característica de se referirem sempre a um consequentemente, devem ser postas entre parênteses.
objeto, pois sempre fazem aparecer objetos”. Não é que o filósofo duvide delas: ele muito
Entretanto, deve-se notar que, em Husserl, o mais as põe fora de uso, não as utilizando como
caráter intencional da consciência, em si mesmo, não fundamento de sua filosofia, uma vez que, se a filosofia
implica concepção realista. Em outros termos: a quer ser ciência rigorosa, deve pôr como seu
consciência refere-se a outra coisa; isto, porém, não fundamento apenas o que é indubitavelmente evidente.
significa que essa outra intencionalidade da consciência Por conseguinte, da minha persuasão de que o mundo
deixa pendente a controvérsia entre realismo e existe, eu não devo deduzir nenhuma proposição
idealismo. filosófica, pelo motivo de que a existência do mundo,
O que importa, no entanto, é descrever o que fora da consciência que a percebe, não é de modo
efetivamente se dá à consciência, o que nela se nenhum indubitável.
manifesta e nos limites em que se manifesta. E o que se Como homem, o filósofo crê na existência do
manifesta e aparece é o fenômeno, em que por mundo e, ainda como homem, não pode deixar de crer
“fenômeno” não devemos entender a “aparência” em muitas outras coisas na vida prática, mas, como
contraposta à “coisa em si”: eu não ouço a aparência de filósofo, ele não pode partir delas.
uma música, eu escuto a música; eu não sinto a E não pode partir tampouco dos resultados a
aparência de um perfume, eu sinto o perfume; nem pesquisa científica, em virtude do fato de que, embora
tenho a aparência de uma recordação, eu tenho uma procedendo crítica e rigorosamente no seu âmbito, as
recordação. ciências interpretam, aceitando-os “ingenuamente”, os
Consequentemente, o “princípio de todos os dados da experiência comum, sem se perguntar se eles
princípios”, enunciado por Husserl, é o seguinte: “Toda resistem à pressão da epoché, ou seja, se são realidades
intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, indubitáveis.
por direito, fonte de conhecimento; tudo aquilo que se Portanto, nem as doutrinas filosóficas, nem os
apresenta a nós originariamente na intuição (que, por resultados da ciência, nem as crenças da atitude natural,
assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser até as mais óbvias, podem constituir pontos de partida
assumido assim como se apresenta, mas também indubitáveis, que são precisamente aquilo de que
apenas nos limites em que se apresenta”. necessita a filosofia concebida como ciência rigorosa.
Todas essas crenças, pois, devem ser postas entre
Epoché parênteses.
Mas existe alguma coisa da qual não se possa
Mediante o princípio acima mencionado, duvidar e que não se deixa pôr entre parênteses? Se
Husserl pensava fundamentar a fenomenologia como existe, o que é isso que pode resistir a epoché? Pois bem,
ciência rigorosa, como ciência voltada para as coisas, para Husserl, o que resiste aos ataques da epoché, ou seja,
para as próprias coisas; uma ciência que está voltada o que não se pode pôr entre parêneses, é a consciência
para ver como são as coisas. ou subjetividade. Aquilo cuja existência é
“Vamos às coisas!” torna-se o lema da absolutamente evidente é o cogito com seus cogitata, a
fenomenologia. E é precisamente a fim de ir às coisas, consciência à qual se manifesta tudo aquilo que aparece.
as coisas em carne e osso, ou seja, a fim de encontrar A consciência, portanto, é o resíduo
pontos sólidos e dados indubitáveis, coisas tão fenomenológico que resiste aos continuados assaltos da
manifestas a ponto de não poderem ser postas em epoché. Mas a consciência, prossegue Husserl, não é
dúvida e sobre as quais poder fundar uma concepção apenas a realidade mais evidente, e sim também
filosófica consistente, que Husserl propõe a epoché ou realidade absoluta, é o fundamento de toda realidade, é
redução fenomenológica, como método da filosofia. aquela realidade que não há necessidade de existir. O
Epoché (que é a transliteração do termo usado mundo, diz Husserl, é “constituído” pela consciência.
pelos céticos gregos para indicar a suspensão do juízo)
significa justamente suspender o juízo em primeiro A crise das ciências européias e o “mundo da
lugar sobre tudo aquilo que nos dizem as doutrinas vida”
filosóficas com seus debates metafísicos, depois
igualmente sobre tudo o que nos dizem as ciências, Em 1950, apareceu postumamente A crise das
sobre aquilo que cada um de nós afirma e pressupõe na ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Esta é a
vida quotidiana, isto é, sobre as crenças que compõem última obra de fôlego de Husserl, na qual trabalhou até
aquilo que Husserl chama de atitude natural. próximo da morte.
A atitude natural do homem é feita de A crise das ciências, obviamente, não é a crise
persuasões variadas, úteis e necessárias à vida cotidiana. de sua cientificidade, e sim crise do que elas, as ciências
E a primeira dessas persuasões é a de que vivemos em em geral, têm significado e podem significar para a
um mundo de coisas existentes. Essas persuasões, existência humana. Escreve Husserl: “A exclusividade
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com que, na segunda metade do século XIX, a visão de significado em Duns Escoto. Professor por alguns anos na
conjunto do mundo do homem moderno se deixou Universidade de Marburgo, em 1929 Heidegger
determinar pelas ciências positivas, e com que se deixou sucedeu a Husserl na cátedra de filosofia em Friburgo,
deslumbrar pela 'prosperidade' que daí derivava, dando sua aula inaugural sobre 0 que é a metafisica?
significou o afastamento dos problemas decisivos para Do mesmo ano é o
uma autêntica humanidade. As meras ciências de fatos ensaio Sobre a essência do
criam meros homens de fato”. fundamento (escrito para o
O objeto da crítica de Husserl são o naturalismo volume miscelâneo publicado
e o objetivismo, a pretensão pela qual a verdade científica em comemoração dos setenta
é a única verdade válida, e a ideia a ela ligada de que o anos de Husserl), bem como o
mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira livro Kant e o problema da
realidade. metafisica. Nesse entretempo,
E Husserl traça a história dessa pretensão e em 1927, saíra o trabalho
dessa ideia, a começar por Galileu e Descartes. Mas, fundamental de Heidegger, Ser e tempo.
escreve ele, “na miséria de nossa vida [...] tal ciência não Em 1933, Heidegger, que aderira ao nazismo,
tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles torna-se reitor da Universidade de Friburgo,
problemas que são os mais candentes para o homem, o pronunciando o discurso A autoafirmação da universidade
qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê alemã. Mas pouco depois se demitiu do cargo de reitor.
do destino; os problemas do sentido e do não-sentido Seus escritos posteriores a esse período são:
da existência humana em seu conjunto”. Na opinião de Holderlin e a essência da poesia (1937), A doutrina de Platão
Husserl, em sua generalidade e em sua necessidade, sobre a verdade (1942), republicado em 1947, juntamente
esses problemas exigem solução racionalmente com a Carta sobre o humanismo; A essência da verdade (1943);
fundada. Caminhos interrompidos (1950); Introdução à metafisica 1953);
Eles “concernem ao homem em seu 0 que é a filosofia? (1956), A caminho rumo à linguagem
comportamento diante do mundo circundante, (1959); Nietzsche (1961), em dois volumes. Heidegger
humano e extra-humano, o homem que deve escolher morreu em 1976.
livremente, o homem livre de plasmar-se a si mesmo e
ao mundo que o circunda”. Da fenomenologia ao existencialismo
Então Husserl pergunta: “O que tal ciência tem
a dizer sobre a razão e sobre a não-razão, o que tem ela O objetivo declarado de Ser e tempo é o de uma
a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa ontologia capaz de determinar adequadamente o
liberdade? Obviamente, a mera ciência de fatos não tem sentido do ser. Mas, para alcançar esse objetivo, é
nada a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente, preciso analisar quem é que se propõe a pergunta sobre
abstrai de qualquer sujeito”. o sentido do ser. Enquanto Ser e tempo se resume em
O drama da época moderna é o drama que uma analítica existencial sobre aquele ente (o homem) que
começou com Galileu, ele recortou do mundo-da-vida se propõe a pergunta sobre o sentido do ser, os escritos
a dimensão físico-matemática, que depois passou a ser de 1930 em diante abandonam a proposição originária:
considerada como vida concreta. “Galileu vive na não se trata mais de analisar aquele ente que procura
ingenuidade da evidência apodítica”. caminhos de acesso ao ser, mas sim o próprio ser e sua
Naturalmente, a filosofia reconhece a função da auto revelação. E aqui, precisamente, reside a
ciência e da técnica, mas a função da filosofia “é a de “reviravolta” do pensamento de Heidegger, que, no
libertar a história da fetichização da ciência e da segundo período de sua filosofia, prescinde da
técnica”. Vista desse modo, “a fenomenologia é existência, que se torna uma determinação não essencial
filosofia primeira que se liberta da clausura do mundo, do ser. Escreve ele: “A história do ser rege e determina
anulando-o, para descobrir na humanidade a liberdade toda condição e situação humana”.
de se transcender em direção a novos horizontes”.
O ser-aí e a analítica existencial
3. MARTIN HEIDEGGER: DA
FENOMENOLOGIA AO EXISTENCIALISMO A intenção da obra Ser e tempo, diz Heidegger, é
“a elaboração concreta do problema do sentido do ser”.
O expoente principal da filosofia da existência é Entretanto, o problema do sentido do ser propõe
Martin Heidegger. Nascido em Messkirch em 1889, imediatamente a interrogação: “A respeito de qual ente
estudou teologia e filosofia, laureou-se em filosofia em deve ser compreendido o sentido do ser?”
1914 com uma tese sobre A doutrina do juízo no Pois bem, prossegue Heidegger, se o problema
psicologismo. do ser deve ser proposto explicitamente em toda a sua
Em 1916, como tese de habilitação ao ensino transparecia, então [...] torna-se necessário evidenciar as
universitário, publicou A doutrina das categorias e do maneiras de penetração no ser, de compreensão e de
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posse conceitual de seu sentido, bem como a solução existência é essencialmente transcendência, identificada
da possibilidade de escolha correta do ente exemplar e por Heidegger com a ultrapassagem. Desse modo, para
a indicação do caminho autêntico de acesso a esse ente. ele, a transcendência não é um entre os muitos possíveis
Penetração, compreensão, solução, escolha, acesso - comportamentos do homem, e sim sua constituição
são momentos constitutivos da busca e, ao mesmo fundamental: o homem é projeto e as coisas do
tempo, modos de ser de determinado ente, mais “mundo” são originariamente utensílios em função do
precisamente daquele ente que, nós que o buscamos, já projetar humano.
somos. Tudo isso nos introduz à tratação da
Por tudo isso, a elaboração do problema do ser característica fundamental do homem que Heidegger
significa, portanto, o tornar-se transparente de um ente, chama de ser-no-mundo. O homem está-no-mundo. Mas,
pôr aquele que busca em seu ser. E nisso consiste a como o homem é constitutivamente projeto, o mundo
analítica existencial. - diferentemente do que pensava Husserl - não é
O homem, portanto, é o ente que se propõe a originariamente uma realidade a contemplar, e sim
pergunta sobre o sentido do ser. Por isso, a proposição muito mais um conjunto de instrumentos “para” o
correta do problema do sentido do ser requer uma homem, um conjunto de utensílios, ou seja, de coisas a
explicitação preliminar daquele ente que se propõe a utilizar, à mão, e não de coisas a contemplar como
pergunta sobre o sentido do ser: e “esse ente, que nós presentes.
mesmos já somos sempre, e que tem, entre as outras A existência é poder-ser, projeto,
possibilidades de ser, a de buscar, nós o indicamos com transcendência em relação ao mundo: estar-no-mundo,
o termo Ser-aí (Dasein, em alemão)”. portanto, significa originariamente fazer do mundo o
Considerado em seu modo de ser, o homem é projeto das ações e dos comportamentos possíveis do
precisamente Da-sein, ou seja, Ser-aí. E o “da” (aí) indica homem.
o fato de que o homem está sempre em uma situação, A transcendência institui o projeto ou esboço
lançado nela e em relação ativa com ela. O Ser-aí, isto de um mundo: ela é um ato de liberdade - aliás, para
é, o homem, não é somente aquele ente que propõe a Heidegger, é a própria liberdade. Entretanto, se é
pergunta sobre o sentido do ser, mas é também aquele verdade que qualquer projeto se radica em um ato de
ente que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela liberdade, também é verdade que todo projeto limita
filosofia ocidental, que identifica o ser com a imediatamente o homem que se encontra dependente
objetividade, ou seja, como diz Heidegger, com a das necessidades e limitado pelo conjunto daqueles
simples-presença. utensílios que é o mundo. Estar-no-mundo, pois,
As coisas são certamente diversas uma da outra, significa para o homem cuidar das coisas necessárias a
mas todas são objetos colocados diante de mim: e nesse seus projetos, e ter a ver com uma realidade-utensílio,
seu estar presente a filosofia ocidental viu o ser. meio para sua vida e para suas ações.
Mas o homem não pode se reduzir a objeto Sendo o Ser-aí constitutivamente projeto, o
puro e simples no mundo; o Ser-aí jamais é uma mundo existe como conjunto de coisas utilizáveis: o
simples-presença, uma vez que ele é precisamente mundo vem a ser graças a seu ser utilizável. O ser das
aquele ente para o qual as coisas estão presentes. coisas equivale ao seu ser utilizadas pelo homem. O homem,
O modo de ser do Ser-aí é a existência: “A portanto, não é um espectador do grande teatro do
'natureza', a 'essência' do Ser-aí consiste em sua mundo: o homem está no mundo, envolvido nele, em
existência”. A essência da existência é dada pela suas vicissitudes. E transformando o mundo, ele forma
possibilidade, que não é possibilidade lógica vazia nem e se transforma a si mesmo.
simples contingência empírica. O ser do homem é A atitude teórica e contemplativa do espectador
sempre uma possibilidade a atuar e, consequentemente, o desinteressado (na qual Husserl tanto insistira, bem
homem pode escolher-se, isto é, pode conquistar-se ou como a tradição filosófica ocidental em geral) é
perder-se. somente um aspecto da mais ampla e geral
Neste sentido, o Ser-aí (ou homem) é “o ente utilizabilidade das coisas. As coisas são sempre
que depende de seu ser” e “a existência é decidida, no instrumentos: se for conveniente, poderão ser vistas
sentido da posse ou da ruína, somente por cada Ser-aí como instrumentos que satisfazem um prazer estético;
individual”. mas, se o consideramos útil, poderão ser vistas
“objetivamente”, isto é, cientificamente, tendo como
O ser-no-mundo fundo um projeto total.
O homem compreende uma coisa quando sabe
O homem é aquele ente que se interroga sobre o que fazer dela, do mesmo modo como compreende a
o sentido do ser. O homem não pode reduzir-se a si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo, isto é,
simples objeto, isto é, a simples estar-presente. O modo quando sabe o que pode ser.
de ser do homem é a existência. A existência é poder-
ser. Mas poder-ser significa projetar. Por isso, a
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O ser-com-os-outros e da curiosidade, a terceira característica da existência


inautêntica é o equívoco: a individualidade das situações,
Se o ser-no-mundo é um existencial, também o em uma existência devorada pelo palavrório e pela
ser-com-os-outros é um existencial. Não há “um sujeito curiosidade, desvanece na neblina do equívoco. A
sem mundo” e, ao mesmo tempo, não existe “um eu existência inautêntica é existência anônima: é a
isolado sem os outros”. Os outros não são inferidos existência do “se diz” e do “se faz”.
como outros “eus”; eles são dados, ao invés, como A análise existencial revela que a existência
outros “eus”, desde a origem. Sendo a existência anônima é um poder ser constitutivo do homem. E,
constitutivamente abertura, desde a origem os outros segundo Heidegger, o que se encontra na base desse
“eus”, como tais, participam do mesmo mundo no qual poder-ser é a dejeção, ou seja, a queda do homem no
eu vivo. plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da
consciência, que chama à existência, quando então nós
colocamos não mais no plano “ôntico” ou
“existentivo”, e sim no plano “ontológico” ou
“existencial”, procurando o sentido do ser dos entes,
isto é, o sentido do seu existir.
A voz da consciência traz de novo o homem
envolvido pelos cuidados para diante de si mesmo,
remetendo-o a questão do que ele é no mais profundo
o seu ser e que não pode ocultar. Como já sabemos, a
existência é poder-ser; e é nesse poder-ser que se baseia
o projetar ou transcender do homem. Mas todo projetar
leva o homem ao nível das coisas e do mundo.
Tudo isso quer dizer que os projetos e as
Por outro lado, assim como o ser-no-mundo do escolhas do homem, no fundo, são todos equivalentes:
homem se expressa pelo cuidar das coisas, do mesmo posso dedicar minha vida ao trabalho, ao estudo, a
modo o seu ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar riqueza ou a qualquer outra coisa, mas posso ser
dos outros, coisa que constitui a estrutura basilar de toda homem seja escolhendo uma possibilidade, seja
possível relação entre os homens. E o cuidar dos outros escolhendo outra. E por essa razão que, considerando
pode tomar duas direções: na primeira, procura-se como última e decisiva uma dessas escolhas ou
subtrair os outros de seus cuidados; na segunda, possibilidades, o homem se decide por e se dispersa em
procura-se ajudá-los a conquistar a liberdade de assumir uma existência inautêntica.
seus próprios cuidados. No primeiro caso, temos um Entretanto, entre as várias possibilidades, há
simples “estar junto” e estamos diante de uma forma uma diferente das outras, à qual o homem não pode
inautêntica de coexistência; no segundo caso, ao escapar: trata-se da morte. Posso decidir dedicar minha
contrário, temos um autêntico “coexistir”. vida a um objetivo ou a outro, posso escolher uma
profissão ou outra, mas não posso deixar de morrer. E
O ser-para-a-morte, existência inautêntica e então, quando a morte se torna realidade, não há mais
existência autêntica existência. Isso nos faz entender que, enquanto há o
existente, a morte é possibilidade permanente, e essa é
O Ser-aí é e tem de ser; isto é, o homem se a possibilidade de que todas as outras possibilidades se
encontra sempre em uma situação e enfrenta essa tornem impossíveis.
situação graças a seu projetar. Mas, quando volta seus Diz Heidegger: “Enquanto possibilidade, a
“cuidados” para o plano “ôntico” ou “existentivo”, isto morte não dá ao homem nada a realizar”. Ela é a
é, ao plano dos entes em sua factualidade, o homem
permanece na existência inautêntica. Nesta, o homem
manipula as coisas, utiliza-as e estabelece relações
sociais com outros homens. Todos esses projetos,
porém, em uma espécie de vertigem, atiram o homem
para o nível dos fatos. A utilização das coisas se
transforma em fim em si mesma. A linguagem se
transforma então no palavrório da existência anônima
subjacente ao axioma “as coisas são assim porque assim
se diz”.
Essa existência anônima procura encher o vazio
que a caracteriza, recorrendo continuamente ao novo:
ela se afoga na curiosidade. E, por fim, além do palavrório

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possibilidade da impossibilidade de todo projeto e, com determinações do tempo (passado, presente e futuro) a
isso, de toda existência: com efeito, com a morte, não fundamental é o futuro: “O projetar-se-adiante para o
há outras possibilidades a escolher nem novos projetos 'em-vista-de-si-mesmo', projetar-se que se baseia no
a realizar. futuro, é característica essencial da existencialidade. Seu
A voz da consciência, por conseguinte, nos sentido primário é o futuro”.
remete ao sentido da morte e revela a nulidade de todo Entretanto, o cuidado, que antecipa as
projeto: na perspectiva da morte, todas as situações possibilidades, surge do passado e o implica. E entre
singulares aparecem como possibilidades que podem se passado e futuro estão o ocupar-se com as coisas que é
tornar impossíveis. Desse modo, a morte impede que o presente. Essas três determinações do tempo
alguém se fixe em uma situação, mostra a nulidade de encontram seu significado em seu ser “fora de si”: o
todo projeto e funda a historicidade da existência. futuro é um pretender-se, o presente é estar preso as
A existência autentica, portanto, é um ser-para- coisas e o passado é retornar à situação de fato para
a-morte. Somente compreendendo a impossibilidade da aceitá-la.
morte como possibilidade da existência, e somente Essa é a razão pela qual Heidegger chama os
assumindo essa possibilidade com decisão antecipada, três momentos do tempo de êxtase, entendido em seu
o homem encontra seu ser autêntico. sentido etimológico de “estar fora”.
Em todo caso, as três determinações do tempo
A coragem diante da angústia mudam com base no fato de se tratar de tempo
autêntico ou de tempo inautêntico, sendo o tempo
O “viver para a morte” constitui, portanto, o autêntico o da existência autentica e o tempo
sentido autêntico da existência. O “viver-para-a-morte” inautêntico tipificado pela preocupação com o sucesso,
nos afasta do estar submerso nos fatos e nas é a atenção para com o êxito; ao passo que na existência
circunstâncias. A antecipação da morte (que não autentica, que assume a morte como possibilidade que
significa de modo algum realiza-la pelo suicídio) dá qualifica a existência, o futuro é um viver para a morte
sentido ao ser dos entes, mediante a experiência do seu que não permite ao homem ser envolvido pelas
nada possível. possibilidades mundanas.
Essa experiência, no entanto, não se tem por E se o passado autêntico é o não aceitar
obra de ato intelectivo, e sim, muito mais, por meio do passivamente a tradição, mas confiar nas possibilidades
sentimento especifico que é a angústia: “O ser-para-a- que a tradição nos oferece e reviver a possibilidade do
morte é essencialmente angústia”. A angústia põe o homem que já foi, o presente autêntico é o instante, em
homem diante do nada, do nada de sentido, isto é, do que o homem repudia o presente inautêntico (onde o
não-sentido dos projetos humanos e da própria homem é absorvido sem descanso pelas coisas a fazer)
existência. e decide seu destino.
Existir autenticamente implica ter a coragem de Dessa análise do tempo, entre outras coisas,
olhar de frente a possibilidade do próprio não-ser, de derivam algumas consequências importantes no
sentir a angústia do ser-para-a-morte. A existência pensamento de Heidegger:
autentica, por conseguinte, significa a aceitação da 1) Os significados do tempo usados no
própria finitude. E é a essa aceitação que nos conclama pensamento comum e na ciência (a databilidade e a
a voz da consciência: a aceitação da nossa própria medida científica do tempo) constituem tempo
finitude e negatividade. inautêntico, já que remetem à existência lançada entre
A existência inautêntica e anônima, ao as coisas do mundo.
contrário, tem medo da angústia diante da morte, de 2) A existência autentica é a existência
modo que, para escapar a angústia, a existência anônima angustiada, que vê a insignificância de todos os projetos
ocupa-se muito com as coisas e afunda no reino do se e fins do homem. Essa insignificância torna todos os
(man): “a existência anônima e banal não tem a coragem projetos equivalentes. Pondo o homem diante da
da angústia diante da morte”. E isso pode ser visto no equivalente nulidade dos fins, a angústia dá ao indivíduo
fato de que a existência anônima banaliza a angústia no a possibilidade de aceitar o próprio tempo e a ele
medo: “o medo é uma angústia que decaiu ao nível do permanecer fiel, ou seja, assumir como próprio o
mundo, inautêntica e oculta para si mesma como destino da comunidade humana a qual pertence, em
angústia”. Sempre se tem medo de alguma coisa; ao uma espécie de amor fati.
passo que nos angustiamos por nada: na angústia está Em outros termos, o homem que vive
presente o nada, com seu poder de aniquilação. autenticamente continua a viver a vida, por assim dizer,
banal de seu tempo e de seu povo, mas a vive com todo
O tempo aquele afastamento próprio de quem, com a experiência
antecipadora da morte, teve a revelação do nada dos
Dado que a existência é possibilidade e projeto, projetos humanos e da existência humana.
escreve Heidegger em Ser e tempo, entre as
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A metafísica ocidental como “esquecimento do levar a filosofia de sua deformação “humanista” até o
ser” “mistério” do Ser, a seu desvelar-se originário. Mas
onde ocorre esse desvelar-se do Ser? Diz Heidegger que
A tarefa declarada de Ser e tempo é a de o ser se desvela na linguagem, não na linguagem
determinar o sentido do Ser. Entretanto, essa científica própria dos entes, ou na linguagem
interrogação - que se desdobrou na analítica existencial, inautêntica do palavrório, e sim na linguagem autentica
ou seja, na análise das estruturas da existência - teve da poesia.
como resultado o de que o sentido do ser não pode ser Escreve ele na Carta sobre o humanismo: “A
obtido pela interrogação de um ente. linguagem é a casa do ser. E nessa morada habita o
A análise da existência mostra que a existência homem. Os pensadores são os guardiões dessa
autentica é o nada de todo projeto e o nada da própria morada”. Na forma autoral da poesia, a palavra tinha
existência. A análise do Ser-aí, isto é, daquele ente caráter “sacral”: língua originária, a poesia deu nomes
privilegiado que se propõe a pergunta sobre o sentido às coisas e fundou o Ser.
do ser, não revela o sentido do Ser, e sim o nada da Essa fundação do Ser, porém, especificada por
existência. Heidegger em Holderlin e a essência da poesia (1937), não é
Essas considerações são explicitadas por obra do homem, e sim dom do Ser. Na linguagem do
Heidegger em sua Introdução à metafisica (1953), que se poeta, não é o homem que fala, e sim a própria
apresenta como crítica radical da metafísica clássica. linguagem - e, nela, o Ser. Consequentemente, a justa
De Aristóteles a Hegel e ao próprio Nietzsche, atitude do homem em relação ao ser é a do silêncio para
a metafísica clássica fez o que a analítica existencial ouvi-lo; o abandono ao Ser é o único comportamento
mostrou ser impossível: procurou o sentido do Ser correto. O homem deve, portanto, tornar-se livre para
indagando os entes. a verdade, concebida como desvelamento do Ser. E,
A metafísica identificou o ser com a assim, liberdade e verdade se identificam. E, como a
objetividade, isto é, com a simples presença dos entes. verdade, também a liberdade é dom do Ser ao homem,
Desse modo, ela não é metafísica, senão “física” uma iniciativa do Ser.
absorvida pelas coisas, que esqueceu o ser e que, aliás,
leva ao esquecimento desse esquecimento. A técnica e o mundo ocidental
Heidegger diz que Platão foi o primeiro
responsável pela degradação da metafísica a física. Os São, portanto, os “pensadores essenciais”
primeiros filósofos (Anaximandro, Parmênides, (como Anaximandro, Parmênides, Heráclito e
Heráclito) conceberam a verdade como um desvelar-se Holderlin) as testemunhas ou os ouvintes da voz do Ser,
do Ser, como provaria o sentido etimológico de alétheia, e não a metafísica ocidental. O senhor do ente não é o
onde lantháno (velar) é precedido do alfa privativo. pastor do Ser. Mas o homem ocidental, precisamente
Entretanto, Platão rejeitou a verdade como “não- por força daquela “física” que pretendia ser
ocultamento” do Ser e subverteu a relação entre Ser e “metafísica”, transformou-se em senhor do ente.
verdade, baseando o Ser na verdade, no sentido de que A reviravolta operada por Platão no conceito de
a verdade estaria no pensamento que julga e estabelece verdade e, com isso, no destino da metafísica, explica o
relações entre os próprios “conteúdos” ou “ideias”, e destino do Ocidente e o primado da técnica no mundo
não no ser que se desvela ao pensamento. Desse modo, moderno.
o ser deveria se finalizar e relativizar para a mente A técnica não é instrumento neutro nas mãos
humana, aliás, para a linguagem dela. do homem, que pode usá-la para o bem ou para o mal,
nem constitui acontecimento acidental no Ocidente.
A linguagem da poesia como linguagem do ser Para Heidegger, a realidade é que a técnica é o resultado
natural daquele desenvolvimento pelo qual, esquecendo
Entretanto, o patrimônio de palavras, de regras o Ser, o homem se deixou arrastar pelas coisas,
lógicas, gramaticais e sintáticas, que é a linguagem, tornando a realidade puro objeto a dominar e a
estabelece limites intransponíveis ao que podemos desfrutar. E esse comportamento, que não se deterá
dizer. sequer quando chega, como acontece hoje, a ameaçar
A linguagem do homem pode falar dos entes, as bases da própria vida, é comportamento que se
mas não do ser. Por isso, a revelação do ser não pode ser tornou onívoro; trata-se de uma fé, a fé na técnica como
obra de um ente, ainda que privilegiado como o Ser-aí, domínio sobre tudo.
mas só pode se dar através da iniciativa do próprio ser.
Aí reside a “reviravolta” do pensamento de Heidegger. 4. HANNA ARENDT
O homem não pode desvelar o sentido do Ser.
Ele deve ser o pastor do Ser e não o senhor do ente. E Hannah Arendt nasce de família judaica em
sua dignidade “consiste em ser chamado pelo próprio Hannover, dia 14 de outubro de 1906. Entre 1924 e
Ser para ser o guarda de sua verdade”. Por isso, é preciso
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1929 foi estudante universitária em Marburg e em Anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo


Freiburg na Brisgóvia, e sucessivamente em Heidelberg.
Frequentou os cursos As origens do totalitarismo é uma obra que divide-
de literatura grega, teologia e se em três partes:
filosofia. Laureou-se em 1928, 1) O antissemitismo;
apresentando uma dissertação 2) O imperialismo;
sobre santo Agostinho. 3) O totalitarismo.
Em 1933 abandonou a Escreve Arendt: “O antissemitismo (não o
Alemanha nazista e se refugiou simples ódio contra os judeus), o imperialismo (não a
em Paris, onde entrou em simples conquista), o totalitarismo (não a simples
contato com os pensadores ditadura) demonstraram, um depois do outro, um mais
mais conhecidos da época. brutalmente que o outro, que a dignidade humana tem
Na França foi ativa na organização para a necessidade de nova garantia, que se pode encontrar
emigração na Palestina das crianças judias. Foi presa em apenas em um novo princípio político, em nova lei
1940, mas conseguiu fugir, e em 1941 foi para os sobre a terra, destinada a valer para toda a
Estados Unidos. Escreveu muito e em diversas revistas. humanidade”.
Ensinou em numerosas Universidades, entre as quais Em primeiro lugar, todavia, é preciso
Berkeley, Princeton, Columbia. compreender; e compreender “significa [...] examinar e
Em 1967 foi nomeada professora de filosofia carregar conscientemente o fardo que nosso século nos
política na New School for Social Research em Nova colocou sobre as costas, não negar sua existência, não
York, a “filial americana no exilio”, por assim dizer, da nos submeter supinamente a seu peso”.
Escola de Frankfurt. Arendt quer compreender como o
Morreu em Nova York dia 4 de dezembro de antissemitismo “tenha podido se tornar o catalisador,
1975. Sua influência sobre a cultura europeia, assim primeiro do movimento nazista, depois de uma guerra
como sobre a americana, foi e ainda é muito forte. mundial, e por fim da criação da fábrica da morte”.
Fundamental é compreender, além disso, que os
Uma filosofia em defesa da liberdade regimes totalitários baseiam sua política sobre a ideia de
alcançar o fim último, que é “a conquista do mundo”; e
Sua obra mais conhecida em 1951; trata-se de tal fim os totalitaristas “jamais o perdem de vista, por
As origens do totalitarismo. De 1958 é o livro A condição mais remoto que possa parecer, e por mais gravemente
humana. Em 1963 Arendt publica aquele que se tornou que suas exigências 'ideais' possam contrastar com a
seu livro mais conhecido: Eichmann em Jerusalem: Um necessidade do momento".
relato sobre a banalidade do mal. Este é um livro sobre o Justamente por isso - afirma Arendt – “eles não
processo que teve lugar em Jerusalém, e que viu como consideram [...] nenhum país como perpetuamente
imputado um dos máximos responsáveis pelo estrangeiro, mas, ao contrário, todo país como um
Holocausto. potencial território seu”. E da “questão judaica”
Foi a publicação dos Pentagon Papers - os serviram-se os nazistas para seu escopo: “Obrigando-os
quarenta e seis volumes da História do processo decisional [os judeus] a deixar o Reich sem passaporte e sem
americano sobre a política no Vietnam - que, segundo dinheiro, se traduzia na realidade a lenda do hebreu
Arendt, fez com que "o famoso vazio de credibilidade, errante; e obrigando-os a assumir um comportamento
que nos acompanhou por seis longos anos, tenha de hostilidade intransigente contra o Terceiro Reich, os
improvisamente se aberto tanto a ponto de se tornar nazistas providenciavam o pretexto para imiscuir-se nos
um abismo [...]. O ponto crucial [...] não é apenas que a assuntos internos de qualquer país estrangeiro”.
política da mentira quase nunca haja se voltado contra Mais em profundidade e mais em particular,
o inimigo [...], mas também que estava destinada Arendt faz ver que os campos de concentração e de
principalmente, senão exclusivamente, ao consumo extermínio servem para o regime totalitário como
interno, à propaganda nacional, e tinha em particular a laboratórios para a verificação de sua pretensão de
finalidade de enganar o Congresso”. domínio absoluto sobre o homem [...]. O domínio total,
Adversária irredutível dos regimes totalitários, que visa a organizar os homens em sua infinita
Hannah Arendt foi fustigadora implacável das carências pluralidade e diversidade como se todos juntos
e tortuosidades das sociedades democráticas; atenta constituíssem único indivíduo, é possível apenas se cada
para captar o novo, mas sem a ele sucumbir, viu com pessoa for reduzida a imutável identidade de reações, de
bons olhos as lutas dos estudantes, principalmente modo que cada um destes feixes de reações: possa ser
pelos direitos civis. Postumamente foi publicado o trocado com qualquer outro. É assim - afirma Arendt -
volume incompleto A vida da mente. que o totalitarismo procura fabricar algo que não existe,
isto é, um tipo humano semelhante aos animais, cuja
única “liberdade” consistiria em “preservar a espécie”.
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E chega-se a esse inferno (propagandeado implacável da presença constante de outros sobre a


como o paraíso) tanto com a doutrinação das elites como cena pública” - pensemos no amor: “o amor,
com o terror dos campos de concentração, que diferentemente da amizade, morre, ou melhor, apaga-se
“servem, além de ao extermínio e à degradação dos no momento em que aparece em público”.
indivíduos, para realizar o horrendo experimento de Todavia, Arendt insiste sobre o fato de que a
eliminar, em condições cientificamente controladas, a verdade não encontra sua sede na profundidade íntima
própria espontaneidade como expressão do do homem; a verdade é antes um fato público fruto não
comportamento humano e de transformar o homem de introspecção, ou de vida contemplativa, e sim de vita
em um objeto, em algo que nem sequer os animais são”. activa, e “como nossa sensibilidade em relação a
A Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin realidade se funda sobretudo sobre a aparência, e portanto
quiseram tornar “supérfluos os homens”. E por trás de sobre a existência de um domínio público em que as coisas podem
tudo isso encontra-se, justamente, a ideologia totalitária: emergir da existência latente, também o lusco-fusco que ilumina
ela exige a punição sem o reato, o desfrutamento sem o nossas vidas privadas e íntimas deriva em última análise da luz
proveito e o trabalho sem o produto; é a justificação de muito mais forte do domínio público”.
uma sociedade que é “um lugar onde quotidianamente
se cria a insensatez”. 5. JEAN PAUL SARTRE

A ação como atividade política por excelência Testemunha atenta e arguta de nosso tempo,
Jean-Paul Sartre, nascido em Paris em 1905, realizou
Contra as ideologias que reduzem o homem a seus estudos na Escola Normal Superior e ensinou
objeto, esmagando-o sob as atrocidades das torturas, e filosofia nos liceus de Le Havre e Paris até o início da
contra as ideologias que, como o materialismo última guerra, exceto em um período que passou em
histórico, o aniquilam nos abismos do determinismo e Berlim (1933-1934), onde estudou a fenomenologia e
do fatalismo, Arendt vê o homem como fonte escreveu A transcendência do Ego.
espontânea de livres iniciativas, como início de ações
criativas.
Em A condição humana ela escreve: “Com o
termo vita activa, proponho designar três atividades
humanas fundamentais: a atividade trabalhadora, o
operar e o agir”.
A atividade trabalhadora “corresponde ao
desenvolvimento biológico do corpo humano [...] e
assegura não só a sobrevivência individual, mas também
a vida da espécie. O operar é a práxis não absorvida pelo
ciclo vital e que produz um “mundo artificial” de coisas,
“claramente distinto do ambiente natural”. A ação - Convocado para o serviço militar, foi
afirma Arendt - é “a única atividade que põe em relação aprisionado pelos alemães e levado para a Alemanha.
direta os homens sem a mediação de coisas materiais [e] Voltando logo depois para a França, fundou o grupo de
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato resistência intelectual “Socialismo e Liberdade”,
de que mais homens, e não o homem, vivem sobre a juntamente com Merleau-Ponty.
terra”. No imediato pós-guerra, seu pensamento se
São sempre os homens individuais que agem; a impõe ao público mundial durante cerca de duas
ação e interação: “viver” e “estar entre os homens” décadas (graças sobretudo a seu “teatro de situações”),
eram sinônimos para os romanos - lembra Arendt -, e influindo amplamente na sociedade e nos costumes.
para eles os sinônimos eram “morrer” e “deixar de estar Nas últimas duas décadas de sua vida, Sartre não
entre os homens”. teve descanso: as viagens políticas (como a viagem a
A ação significa iniciativa, nascimento ou início Cuba, onde encontrou Fidel Castro e Che Guevara, e a
de algo de novo, e “uma vez que a ação é a atividade viagem a Moscou, onde foi recebido por Kruschev) não
política por excelência, a natalidade, e não a lhe impediram o frenético trabalho de filósofo,
mortalidade, pode ser a categoria central do romancista, ensaísta, dramaturgo, conferencista e
pensamento político enquanto se distingue do roteirista cinematográfico. Sartre morreu em 1980.
pensamento metafisico”. Sua obra é bastante extensa e variada:
E é a ação - salienta Arendt - que cria e conserva 1 - Romances
os organismos políticos, e deste modo ela permite a a) A náusea (1938);
lembrança, isto é, a história. A ação, além disso, desloca b) A idade da razão (1945);
a vida do indivíduo sobre o lado público. Sem dúvida há c) O adiamento (1945);
coisas “que não podem suportar a luz violenta e d) A morte na alma (1949);

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2 - Escritos para o teatro Não há nenhum ser necessário que possa explicar a
a) As moscas (1943); existência: a contingência não é falsa fisionomia,
b) A portas fechadas (1945); aparência que pode se dissipar; é o absoluto e, por
c) A prostituta respeitosa (1946); conseguinte, a perfeita gratuidade”.
d) Mãos sujas (1948); É a essa tese que Sartre queria chegar: “Tudo é
e) O diabo e o bom Deus (1951); gratuito: este jardim, esta cidade, eu mesmo. E quando
f) Nekrassov (1956); acontece de nos darmos conta disso, nosso estômago
g) Os sequestrados de Altona (1960). se revira e tudo se põe a flutuar [. . .] eis a náusea”.
A vida de Roquentin torna-se privada de
3 - Panfletos políticos sentido; nenhum objetivo consegue mais orientá-la; ele
a) O antissemitismo (1946); existe como uma coisa, como todas as coisas que
b) Os comunistas e a paz, (1952); emergem, na experiência da náusea, em sua gratuidade
e em seu absurdo: um sujeito sem sentido cancela de
4 - Obras filosóficas repente o sentido de todas as coisas e passam a faltar
a) O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia instruções para seu uso. A náusea de Sartre não está
fenomenológica, (1943); longe da angústia de Heidegger.
b) A transcendência do Ego (1936);
c) A imaginação (1936); O “em si”, e o “para-si”, o “ser” e o “nada”
d) Ensaio de uma teoria das emoções (1939);
e) O imaginário. Psicologia fenomenológica da Se a experiência da náusea revela a gratuidade
imaginação (1940). das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas
f) O existencialismo é um humanismo (1946); coisas, a analise desenvolvida em O ser e o nada revela,
g) Crítica da razão dialética (1960). antes de mais nada, que a consciência é sempre
Onisciência de algo, de algo que não é consciência. Em
A náusea diante da gratuidade das coisas outras palavras, o exame da experiência mostra-nos que
desde o início o ser-em-si, isto é, os objetos que
Sartre iniciou sua atividade de pensador com transcendem a consciência, não são a consciência. Eu
análises de psicologia fenomenológica relativas ao eu, a tenho consciência dos objetos do mundo, mas nenhum
imaginação e as emoções. Retoma de Husserl a ideia de desses objetos é minha consciência: a consciência “é um
intencionalidade da consciência, censurando-o, porém, nada de ser e, ao mesmo tempo, um poder nulificante,
por ter caído no idealismo e no solipsismo com o seu o nada”.
sujeito transcendental. O mundo é o “em-si”, é o dado “misturado de
Em A transcendência do Ego, Sartre afirma que “o si mesmo”, “opaco a si mesmo porque cheio de si
eu não é um habitante da consciência”, pois ele “não mesmo”, absolutamente contingente e gratuito (como
está na consciência, mas fora dela, no mundo: é um ente precisamente revela a náusea).
do mundo como o eu de outro”. Diante do “em si” está a consciência, que Sartre
O homem, diz Sartre, é o ser cujo aparecimento denomina o “para-si”. A consciência está no mundo, no
faz com que exista um mundo. O mundo não é a “ser-em-si”, mas é radicalmente diferente dele, não está
consciência. A consciência é abertura para o mundo; a ligada a ele. A consciência, que vem a ser a existência ou
consciência está encarnada na densa realidade do o homem, é, portanto, absolutamente livre. O “em si”
universo; o mundo pode ser visto como um conjunto é “o ser que é o que é”; a consciência não é um objeto.
de utensílios. Mas o mundo não é a existência. E O ser é pleno e completo; a consciência é vazia de ser,
quando o homem não tem mais objetivos, o mundo fica é possibilidade - e a possibilidade não é realidade. A
privado de sentido. consciência é liberdade.
Essa é a tese expressa por Sartre em A náusea, Escreve Sartre em O Ser e o nada: “A liberdade
na qual o autor opõe o absurdo aos valores positivos da não é um ser; ela é o ser do homem, isto é, o seu nada
filosofia clássica. O herói do romance é Antoine de ser”. A liberdade é constitutiva da consciência: “Eu
Roquentin, que, refletindo sobre as razões de sua estou condenado a existir para sempre além dos
própria existência e do mundo que o circunda, tem a moventes e dos motivos de meu ato: estou condenado
experiência reveladora da náusea. a ser livre”.
A náusea é o sentimento que nos invade quando Uma vez lançado à vida, o homem é
descobrimos a contingência essencial e o absurdo do responsável por tudo o que faz do projeto fundamental,
real. E Roquentin põe essa descoberta nas seguintes isto é, da sua vida. E ninguém tem desculpas: se
palavras: “O essencial é a contingência. Quero dizer falirmos, falimos porque escolhemos a falência.
que, por definição, a existência não é a necessidade. Procurar desculpas significa estar de mé-fé: a má-fé
Existir é estar ali, simplesmente; os seres aparecem, se apresenta o desejado como necessidade inevitável.
deixam encontrar, mas nunca se pode deduzi-los [...].
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O homem, portanto, se escolhe; sua liberdade A possibilidade de um sentido menos negativo


não é condicionada; e ele pode mudar seu projeto da consciência humana já aparece no ensaio O
fundamental a qualquer momento. E assim como a existencialismo é um humanismo (1946). Nesse escrito,
náusea constitui a experiência metafísica que revela a Sartre também identifica o homem com sua liberdade;
gratuidade e o absurdo das coisas, da mesma forma a o homem não está de modo algum sujeito ao
angústia é a experiência metafísica do nada, isto é, da determinismo; sua vida não se assemelha à da planta,
liberdade incondicionada. Com efeito, o homem, e só o cujo futuro já está “escrito” na semente; o homem é o
homem, é “o ser para o qual todos os valores existem”. demiurgo de seu futuro.
Todavia, estabelecido isso, não é preciso muito Em suma, o homem não é uma essência fixa: ele
para ver que, então, “todas as atividades humanas são é muito mais o que projeta ser. Nele, a existência
equivalentes [...] e que todas estão destinadas em precede a essência. Contudo, “se, na realidade, a
principio à falência. No fundo, é a mesma coisa existência precede a essência, nunca será possível explicá-la
embriagar-se na solidão ou conduzir os povos”. em referência a uma natureza humana dada e não
As coisas do mundo são gratuitas, e um valor modificável; em outras palavras, não há determinismo;
não é superior a outro. As coisas são desprovidas de o homem é livre, o homem é liberdade”.
sentido e fundamento, e as ações dos homens são Por outro lado, “se [...] Deus não existe, nós não
desprovidas de valor. Em suma, a vida é aventura encontramos diante de nós valores e ordens em
absurda, onde o homem se projeta continuamente além condições de legitimar nossa conduta. Assim, nem atrás
de si mesmo, como que para poder tornar-se Deus. nem diante de nós, em um domínio luminoso de
Escreve Sartre: “O homem é o ser que projeta ser valores, temos justificações ou desculpas. Estamos sós,
Deus”, mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que sem desculpas. É isso o que eu expresso com a
é, “uma paixão inútil”. afirmação de que o homem está condenado a ser livre.
Condenado porque não se criou por si mesmo e, no
O “ser-para-os-outros” entanto, livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é
responsável por tudo aquilo que faz”.
O homem ou “ser-para-si” é também “ser-para- A liberdade defendida por Sartre é uma
outros”. O outro não tem necessidade de ser inferido liberdade absoluta, e a responsabilidade que ele,
analogicamente a partir de mim mesmo. O outro revela- consequentemente, atribui ao homem, é total. Estas
se como outro naquelas experiências em que ele invade palavras resumem bem a convicção de fundo de Sartre:
o campo de minha subjetividade e, de sujeito, me “O homem, sem nenhum socorro e apoio, está
transforma em objeto de seu mundo. condenado a cada instante a inventar o homem [...]. O
Em suma, o outro não é aquele que é visto por homem inventa o homem”.
mim, mas muito mais aquele que me vê, aquele que se A liberdade é absoluta e a responsabilidade é
torna presente a mim, para além de qualquer dúvida, total. Mas já estamos em 1946: Sartre tem atrás de si
mantendo-me sob a opressão de seu olhar. uma guerra terrível e a experiência da Resistência; mas,
Sartre analisa com habilidade magistral aquelas diante dele, está a grande questão da reconstrução.
experiências típicas do olhar-alheio, que geralmente são Todas essas coisas não passam em vão,
as experiências da inferioridade, como a vergonha, o deixando um trago em seu pensamento, onde se
pudor, a timidez. Quando outro entra subitamente no delineia uma moral social com base na relação entre a
mundo de minha consciência, minha experiência se liberdade de cada um e a liberdade dos outros: “eu sou
modifica: não tem mais seu centro em mim, e vejo-me obrigado - escreve ele - a querer ao mesmo tempo
como elemento de um projeto que não é meu e não me minha liberdade e a liberdade dos outros, e não posso
pertence. tomar minha liberdade como fim se não tomar
O olhar de outro me fixa e me paralisa, ao passo igualmente como fim a liberdade dos outros”.
que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é,
era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, Crítica da razão dialética
portanto, nasce o conflito: “o conflito é o sentido
original do ser-para-outros”. Diz ainda Sartre: “Minha Minha liberdade, porém, não depende somente
queda original é a existência do outro”. E também faz da liberdade dos outros. Ela também é condicionada
uma das personagens de A portas fechadas pronunciar a por situações precisas, com as quais os projetos
famosa expressão: “o inferno são os outros”. fundamentais dos homens têm de se defrontar. É com
base nisso que Sartre enfrenta a questão das relações
O existencialismo é um humanismo entre seu existencialismo e o marxismo, como mostram
vários ensaios escritos para a revista “Tempos
Nos anos seguintes a O ser e o nada, Sartre modernos” (revista dirigida pelo próprio Sartre) e,
atenuou sempre mais o tom desesperado de sua sobretudo, a obra Crítica da razão dialética (da qual só
filosofia inicial, como veremos a seguir. apareceu a primeira parte, Teoria dos conjuntos práticos).
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Na realidade, afirma Sartre, “dizer de um Militante da Resistência durante a ocupação


homem o que ele é significa dizer o que ele pode, e nazista, depois da guerra
reciprocamente: as condições materiais de sua tornou-se professor na
existência circunscrevem o campo de suas Sorbonne, posteriormente na
possibilidades [...], de modo que o campo do possível é Escola Normal e, por fim, a
o objetivo em direção ao qual o agente ultrapassa sua partir de 1952, tornou-se titular
situação objetiva. E esse campo, por sua vez, depende de filosofia no Callége de
estritamente da realidade social e histórica”. France.
Com base nisso, podemos compreender por Desde a fundação,
que Sartre afirma firmemente aderir sem reservas à participou do comitê de direção
teoria do materialismo histórico, para a qual, como diz da revista “Tempos modernos”,
Marx, “o modo de produção da vida material domina embora as suas relações com Sartre logo se tenham
em geral o desenvolvimento da vida social, política e transformado em polêmica apaixonada.
intelectual”. Entretanto, se Sartre adere ao materialismo As principais obras de Merleau-Ponty são: A
histórico, ele rejeita, porém, o materialismo dialético. estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da
Em suma, para Sartre, o marxismo não é de percepção (1945). Além disso, também são notáveis suas
modo nenhum “o materialismo dialético, se com este se coletâneas de ensaios: Humanismo e terror (1947), Senso e
entende a ilusão metafísica de descobrir uma dialética contra-senso (1948), As aventuras da dialética (1955) e Sinais
da natureza. Essa dialética pode efetivamente existir, (1960).
mas é preciso reconhecer que não temos a mínima
prova disso”. A relação “consciência” e “corpo”, e “homem” e
Em suma, Sartre não aceita as três leis da “mundo”
dialética propostas por Engels como regras que
guiariam o desenvolvimento da natureza, da história e
do pensamento. A admissão dessas leis gerais do devir
implicaria um otimismo ingênuo que proclamaria um
finalismo de tipo hegeliano e, o que é ainda mais
inadmissível, reduziria o homem a simples instrumento
passivo da grande máquina dialética, incapaz de se
subtrair ao mais rígido determinismo.
A doutrina da dialética é um dogma - e o dogma
não hesita em se opor aos fatos. É essa a razão por que,
diante de toda experiência possível, o marxista não
muda de opinião. O marxista transformou o marxismo
em “saber eterno” e, desse modo, “a busca totalizadora
deu lugar a uma escolástica da totalidade”. O princípio
heurístico “procurai o todo através das partes”
transformou-se em prática terrorista: “liquidar a
particularidade”. Merleau-Panty é um existencialista sobre o qual
Com base nessas premissas, podemos são muito acentuadas as influências tanto da
compreender, diz Sartre, por que o marxismo “não sabe fenomenologia como da psicologia científica e da
mais nada: seus conceitos são impostos; seu fim não é biologia.
mais o de adquirir conhecimentos, mas de se constituir Também para Merleau-Ponty a existência é ser-
a priori como saber absoluto”. no-mundo, isto é, “certa maneira de enfrentar o
E como o marxismo, com a teoria dialética, mundo”. Mas esse ser-no-mundo é anterior a
dissolveu os homens “em um banho de Ácido contraposição entre alma e corpo, entre o psíquico e o
sulfúrico”, “o existencialismo pôde renascer e se manter físico. A interpretação causal das relações entre alma e
porque afirmava a realidade dos homens, como corpo é rejeitada por Merleau-Ponty. Ele vê nessa
Kierkegaard afirmava sua própria realidade contra relação muito mais uma dualidade dialética de
Hegel”. comportamentos. Ou melhor: alma e corpo indicam níveis
de comportamento do homem, dotados de significado diverso.
6. MAURICE MARLEAU-PONTY: ENTRE Escreve Merleau-Ponty em A estrutura do
EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA comportamento: “Nem o psíquico em relação ao vital, nem
o espiritual em relação ao psíquico podem ser
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), ensinou considerados como substâncias ou mundos novos”. Na
filosofia em escolas secundárias. realidade, escreve ele, “trata-se de 'oposição funcional'

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que não pode ser transformada em 'oposição mundo em que vive e pelo passado que viveu. Assim,
substancial' “. “jamais existe determinismo e jamais existe escolha
Na representação das relações entre alma e absoluta; eu jamais sou coisa e jamais sou consciência
corpo, portanto, Merleau-Ponty não aceita “nenhum nua”. A realidade é que nós escolhemos nosso mundo
modelo materialista, mas também nenhum modelo e o mundo nos escolhe. Por isso, é desviante o dilema
espiritualista, como o contido na metáfora cartesiana do que afirma que “nossa liberdade [...] ou é total ou não
artesão e de seu utensilio. Não se pode comparar o existe”.
órgão a um instrumento, como se ele existisse e pudesse A liberdade existe, não porque algo me solicite,
ser pensado à parte de seu funcionamento integral, nem mas, ao contrário, porque de repente estou fora de mim
se pode comparar o espírito a um artesão que o use: isso e aberto para o mundo. Ou seja, a liberdade existe, mas
seria recair em uma relação puramente extrínseca [...]. O é condicionada, porque “somos uma estrutura
espírito não utiliza o corpo, mas se faz por meio dele”. psicológica e histórica”, porque “estamos misturados
Compreende-se muito bem, por conseguinte, a ao mundo e aos outros em confusão inextricável".
centralidade do tema da percepção. Segundo nosso Nossa liberdade, portanto, não destrói a
filósofo, todas as ciências inserem-se em um mundo situação, mas nela se insere. E é por essa razão que as
completo e “real”, sem se dar conta de que a experiência situações permanecem abertas, já que a inserção do
perceptiva tem valor constitutivo em relação a este homem nelas poderá configurá-las de um ou de outro
mundo. Assim, encontramo-nos diante de um campo modo, obviamente enquanto as situações o permitirem.
de percepções vividas que são anteriores ao número, à E nesta dimensão a liberdade condicionada do homem
medida, ao espaço, à causalidade e que, porém, não se assume um significado construtivo positivo.
apresenta como visão prospectiva de objetos dotados
de propriedades estáveis, de mundo e de espaço
objetivos. O problema da percepção consiste em ver
como é que, através desse campo, chega-se ao mundo
intersubjetivo, do qual, pouco a pouco, a ciência precisa
as determinações.
Em tal programa de análises, torna-se central o
conceito de corpo, já que “meu corpo (...) é meu ponto
de vista sobre o mundo’, “o corpo é nosso meio geral
de ter um mundo”. A percepção é a inserção do corpo
no mundo.
E se, por um lado, a percepção tem o caráter da
“totalidade”, por outro lado ela permanece sempre
“aberta”, remetendo sempre a um além de sua
manifestação singular, prometendo-nos outros ângulos
de visão e, com isso, “algo mais a ver”.
Portanto, o significado das coisas no mundo e do
próprio mundo permanece aberto ou, como diz
Merleau-Ponty, ambíguo. E essa ambiguidade ou abertura
é constitutiva da existência.

A liberdade “condicionada”

Se é errado conceber a relação entre a


consciência e o corpo como relação causal entre duas
substâncias, também é errado, portanto, ter uma
concepção análoga sobre as relações entre o sujeito e o
mundo. Mas, para Merleau-Ponty, também é errado
conceber uma relação de causalidade entre o homem e
a sociedade. Por isso, se Sartre está fora de rumo com
sua ideia da liberdade absoluta, também é errada a teoria
marxista da primazia causal do fato econômico sobre a
constituição do homem e da sociedade.
Na opinião de Merleau-Ponty, o homem é livre
e não existe estrutura, como a econômica, que possa
anular sua liberdade constitutiva. Mas a liberdade do
homem é liberdade condicionada: condicionada pelo
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FILOSOFIA ANALÍTICA não influenciado pela filosofia e pela religião, supõe que
seja real. Com a sensação de escapar de uma prisão, nos
permitimos pensar que a grama é verde, que o sol e as
1. BERTRAND RUSSEL estrelas existiriam ainda que ninguém tivesse
consciência de sua existência. E foi assim que o mundo,
que até então fora sutil e lógico, de repente tornou-se
Bertrand Arthur William Russell (1872-1970)
rico, variado e só1ido”.
nasceu em Ravenscroft, nas proximidades de Tintern,
em Monmouthshire. Depois da morte precoce de seus
pais, foi acolhido na casa de sua avó, “Lady John”, O atomismo lógico
escocesa e presbiteriana, que defendeu os direitos dos
irlandeses e atacou a política imperialista da Grã- Foi desse modo, portanto, que Russell se
Bretanha na África. libertou das cadeias do idealismo e voltou a trilha do
Russell recebeu sua educação inicial de tradicional empirismo da filosofia inglesa. E passaria a
preceptores particulares agnósticos, aprendeu contribuir para essa concepção empírica e realista da
perfeitamente o francês e o alemão e, na biblioteca de filosofia com toda uma longa série de livros relativos a
seu avô, adquiriu gosto pela história e descobriu na vitais e difíceis questões de gnosiologia e epistemologia:
geometria de Euclides as alegrias que podem ser dadas 0s problemas da filosofia (1912), Nosso conhecimento do mundo
pelo rigor e a clareza da matemática. externo (1914), Misticismo e lógica (1918), A análise da mente
(1921), A análise da matéria (1927) e 0 conhecimento humano:
seu objetivo e seus limites (1948).
Embora em um desenvolvimento que viu
mudados alguns de seus pontos de vista, Russell sempre
sustentou que a filosofia não pode ser fecunda se estiver
afastada da ciência. E o Russell da década de 1960 via
sua própria concepção do mundo como “uma
concepção resultante da síntese de quatro ciências
diferentes, ou seja, a física, a fisiologia, a psicologia e a
lógica matemática”.
Russell fixa em 1899-1900 a data fundamental
de seu trabalho filosófico: foi nessa época que ele
adotou “a filosofia do atomismo lógico e a técnica de
Aos dezoito anos, porém, ingressou como Peano na lógica matemática [...]. A reviravolta desses
aluno no Trinity College de Cambridge, que lhe revelou anos representou urna revolução, ao passo que as
“um mundo novo”. Mais tarde, sempre no Trinity, teve mudanças posteriores tiveram o caráter de uma
como discípulo L. Wittgenstein, o inspirador do evolução”.
neopositivismo do Círculo de Viena e mestre O atomismo lógico pretendia ser urna filosofia
reconhecido do movimento analítico-linguístico hoje emergente da simbiose entre um empirismo radical e
conhecido como Cambridge-Oxford-Philosophy. urna lógica perspicaz.
Falando do encontro com Wittgenstein, Russell disse A lógica oferece as formas-padrão do raciocínio
que representou para ele “uma das aventuras correto e o empirismo oferece premissas, que são
intelectuais mais excitantes de minha vida”. proposições atômicas ou proposições complexas,
Posteriormente, Russell e Wittgenstein afastaram-se construídas a partir das primeiras. A proposição
cada vez mais, até romperem completamente a atômica descreve um fato, afirma que uma coisa tem
amizade. certa qualidade ou que determinadas coisas em certas
No Trinity, Russell foi hegeliano. Mas em 1898, relações. Um fato atômico, por seu turno, é o que torna
com a ajuda de Moore, libertou-se do idealismo. verdadeira ou falsa urna proposição atômica. “Sócrates
Escreve ele: “Em Cambridge, li Kant e Hegel, bem é ateniense” é uma proposição atômica, que expressa o
como a Lógica de Bradley, que me influenciou fato de Sócrates ser cidadão ateniense. “Sócrates é
profundamente. Durante alguns anos, fui discípulo de marido de Xantipa” é outra proposição atômica.
Bradley, mas, em torno de 1898, mudei meus pontos de “Sócrates é ateniense e marido de Xantipa” é
vista, em grande parte por causa das argumentações de proposição complexa ou molecular. Veremos essas
G. E. Moore [...]. Ele assumiu a guia da rebelião, e eu o ideias retornarem no Tractatus logico-philosophicus, de
segui com a sensação de libertação. Bradley sustentava L. Wittgenstein.
que qualquer coisa em que o senso comum crê é mera Em 1903 publicou Os princípios da matemática,
aparência. Nós passamos ao extremo oposto: passamos onde se propõe “a mostrar, em primeiro lugar, que toda
a pensar que é real qualquer coisa que o senso comum, a matemática procede da lógica simbólica, depois de

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descobrir, tanto quanto possível, quais são os princípios é, os objetos indicados pelas expressões denotativas. Em
da própria lógica simbólica”. suma, ainda que não existam realmente, as montanhas
Pois bem, enquanto ilustrava o primeiro de ouro, as quimeras e os círculos quadrados devem de
objetivo com o livro citado, Russell pretendeu alguma forma ter algum tipo de existência se as
desenvolver o segundo com os Principia mathematica, três expressões que os denotam são parte de enunciados que
grandes volumes elaborados em colaboração com A. N. tem significado e são verdadeiros, como é o caso da
Whitehead, publicados respectivamente em 1910,1912 afirmação “o círculo quadrado não existe”.
e 1913. Russell se rebelou contra o reino das sombras
Juntamente com o alemão Gottlob Frege, ele de Meinong. E, para evitar os becos sem saída e os
considera enigmas a que tais expressões denotativas levam,
a) que a matemática pode ser reduzida a um propôs uma análise que visava a fazer desaparecer tais
ramo da lógica; expressões, de modo que, ao invés de dizer “a
b) que “a matemática pura é a classe de todas as montanha de ouro não existe”, se possa dizer que “não
proposições da forma 'p implica q' ”; há nenhuma entidade que, ao mesmo tempo, seja de
c) que não existem conceitos típicos da ouro e seja montanha”. Tal análise elimina a locução
matemática que não possam ser reduzidos a conceitos “uma montanha de ouro” e consequentemente elimina
lógicos (de lógica das classes) e também qualquer razão de crer que o objeto por ela
d) que, com maior razão, não existem indicado tenha algum tipo de existência.
procedimentos de cálculo e de derivação dentro da A frase “o círculo quadrado não existe” torna-
matemática que não possam ser resumidos em se "jamais é verdadeiro que x seja circular, y seja
derivações de caráter puramente formal. quadrado e não seja sempre falso que x e y se
identifiquem”. Como se vê, nas reconstruções de
A teoria das descrições Russell desaparecem as expressões denotativas, e
desaparecem as formas do verbo “existir” e do verbo
Próximo a Frege no programa logicista, Russell, “ser” em função não-copulativa.
em sua reação ao idealismo, também está de acordo Exposta em 1905, essa teoria foi depois
com Frege ao sustentar o realismo platônico para os desenvolvida nos Principia mathematica onde Russell
objetos da matemática: os números, as classes, as distingue entre descrições indefinidas ou ambíguas (“um
relações etc., tem existência independente do sujeito e da homem”, “alguém que caminha” etc.) e descrições definidas
experiência. Uma relação como “Se A = B e B = C, (“o primeiro rei de Roman”, “o assim e assado” etc.).
então A = C” existe independentemente do sujeito que Por esse caminho, Russell pensava eliminar os
a pensa: existe e é sempre verdadeira. paradoxos metafísicos da “existência” e os paradoxos
Entretanto, há uma questão importante sobre a dos não-existentes. Em suma, a teoria das descrições de
qual, naquela época, Russell se distanciou de Frege. Russell afirma essencialmente que as expressões
Trata-se da sua Teoria das descrições (1905). Frege fizera denotativas são incompletas, ou seja, são incapazes de
notar que expressões como “a estrela da manhã” e “a ter significado por si sós e se distinguem claramente dos
estrela vespertina”, embora indicando o mesmo planeta nomes próprios (que, tomados isoladamente, têm
Vênus, dizem coisas diferentes, apresentando sentidos significado).
diferentes.
Consequentemente, ele distinguira entre O embate contra o segundo Witgestein e a filosofia
sentido e significado ou, em termos clássicos, entre analítica
conotação e denotação ou intensão e extensão. As
duas expressões têm o mesmo significado ou a mesma Atento analista da linguagem, durante toda a sua
denotação, ou seja, indicam o mesmo objeto, ao passo vida Russell submeteu ao “microscópio da lógica toda
que o seu sentido ou conotação, isto é, o que dizem uma série de questões filosoficamente relevantes e
desse objeto, é diferente. amiúde difíceis e complicadas. Mas o fez preocupado
Ora, Alexius Meinong também refletira sobre sempre com a relação que a linguagem deve ter com os
esses problemas e sobre o status de certas frases como fatos, se deve haver conhecimento válido.
“a montanha de ouro não existe” ou “o círculo Naturalmente, Russell tem consciência dos
quadrado não existe”. limites do empirismo. Com efeito, o empirismo pode ser
Trata-se de proposições verdadeiras que, em definido com a afirmação de que “todo conhecimento
alguns casos, podem também ser úteis. Mas eis o sintético baseia-se na experiência”. Mas esse princípio
problema: como pode uma proposição ser verdadeira e não se baseia na experiência. Consequentemente, o
ter significado se ela se refere ao nada? Pensou-se então empirismo é uma teoria que mostra suas inadequações.
que deveria haver algum sentido em que existam tanto E, no entanto, diz Russell, entre as teorias
as montanhas de ouro como os círculos quadrados, isto disponíveis, o empirismo é a teoria melhor. Contrário

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ao pragmatismo, Russell também era avesso aqueles A moral e o cristianismo


neopositivistas (Neurath, Hempel e outros) que
pareciam ter esquecido que o objetivo das palavras “é o Persuadido de que os valores não podem ser
de se ocupar de coisas diferentes das palavras”. deduzidos logicamente do conhecimento, Russell foi
Mas Russell reservou seus ataques mais ferozes tenaz defensor da liberdade do indivíduo contra toda
ao “segundo” Wittgenstein e a filosofia da linguagem. ditadura e contra os abusos do poder. Sensível às
Como se verá nas páginas dedicadas tanto ao injustiças sociais, Russell também foi convicto defensor
“segundo” Wittgenstein como à filosofia analítica, as do pacifismo.
acusações de Russell caem substancialmente fora do Com suas dilacerações e seus sofrimentos,
alvo, já que a filosofia analítica preocupa-se com as amiúde inúteis, a vida irredutível e obstinada levou
palavras, precisamente porque a filosofia analítica está Russell do céu da matemática a terra dos homens
atenta para uma relação não enevoada ou ilusória entre sofredores.
as palavras e as coisas, ou melhor, entre as palavras e a Adversário das injustiças do capitalismo, Russell
vida. não foi menos duro em relação aos métodos do
Sobre o movimento analítico em seu conjunto, bolchevismo. Em Teoria e pratica do bolchevismo (1920),
disse Russell: “Pelo que entendi, a doutrina consiste em podemos ler: “O sectarismo e a crueldade mongólica de
sustentar que a linguagem da vida cotidiana, com as Lênin (com quem Russell manteve longa conversa em
palavras usadas em seu significado comum, basta para 1920) gelaram-me o sangue nas veias”. Em 1952,
a filosofia, pois esta não teria necessidade de termos Russell pediu ao governo norte-americano que fosse
técnicos ou de mudanças de significado nos termos libertado Morton Sobell (acusado por Rosenberg em
comuns. Não consigo absolutamente aceitar essa 1951), que fora condenado a trinta anos de prisão por
opinião. espionagem. Em 1954, apoiado por Einstein,
Sou contrário a ela: promoveu uma campanha contra os armamentos
a) porque é insincera; atômicos. Durante a crise de Cuba, escreveu a Kennedy
b) porque é suscetível de desculpar a ignorância e a Kruschev duas cartas memoráveis. Alguns meses
da matemática, da física e da neurologia naqueles que mais tarde, escreveu ao Izvestia para combater a
tiveram somente uma educação clássica; hostilidade russa em relação aos judeus.
c) porque é apresentada por alguns com o tom Pacifista durante a Primeira Guerra Mundial,
de retidão cerimoniosa, como se a oposição a ela fosse colocou-se do lado dos aliados na Segunda Guerra.
pecado contra a democracia; Horrorizado com os crimes nazistas, criou
d) porque torna esmiuçada e superficial a posteriormente a “Fundação Atlântica da Paz” para
filosofia; despertar a consciência das massas contra a guerra dos
e) porque torna quase inevitável a perpetuação Estados Unidos no Vietnã, e inspirou o “Tribunal
entre os filósofos daquela atitude confusa que eles Russell” para desmascarar os crimes de guerra contra o
retomaram do senso comum”. Vietnã.
Em suma, Russell acredita que os filósofos da Pacifista coerente e desmistificador corajoso,
linguagem estão praticando a mística do uso comum. E Russell pagou pessoalmente por seus ideais. Foi
rejeita o fato de que os oxfordianos consideram a processado várias vezes, esteve preso, enfrentou a
linguagem comum como o banco de prova de qualquer impopularidade, foi-lhe tirada a cátedra de filosofia no
outra linguagem. Claro, na linguagem comum não City College de Nova Iorque.
queremos de modo algum “ficar discorrendo sobre o Russell defendeu o amor livre. Casou-se quatro
sol que surge e que cai. Mas os astrônomos acham vezes e, evidentemente, divorciou-se três. Em 1927,
melhor uma linguagem diferente, e eu sustento que uma juntamente com a segunda mulher, Dora Winefred
linguagem diferente também é preferível m filosofia”. Black, chegou a fundar uma escola baseada em
A outra acusação que Russell faz a Oxford é que princípios educativos “revolucionários”: nela, rapazes e
a filosofia que nela se faz “parece urna disciplina moças liam aquilo que quisessem, nunca eram punidos,
desprovida de relevância e de interesse. Discutir ao tomavam banho juntos, e corriam nus pelo parque. A
infinito o que os tolos entendem quando dizem tolices escola faliu.
pode ser divertido, mas é muito difícil que seja No fundo, para Russell, somente as afirmações
importante”. tautológicas da matemática e as afirmações sintéticas
São duas, portanto, as acusações que Russell das ciências empíricas têm sentido. E com base nesses
levanta contra a filosofia analítica: por um lado, ela fundamentos, é óbvio que caem por terra toda fé, toda
praticaria o culto ao uso comum da linguagem, a visão metafísica do mundo e toda religião. Como todas
despeito de toda linguagem técnica; por outro lado, ao as outras religiões, ele considerou o cristianismo do
invés de buscar o sentido das coisas e da realidade, ela ponto de vista teórico, como um conjunto de contra-
se ocuparia de modo estéril com o sentido das palavras. sensos e, do ponto de vista ético, como implicando

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moral desumana e obscurantista. A respeito desse “A proposição é uma função de verdade das
ponto, porém, surge a forte suspeita de que Russell não proposições elementares”.
tenha querido reconhecer outra interpretação histórica “A forma geral da função de verdade é [r, x,
do cristianismo diferente da visão imperante na N(x)]: essa é a fórmula geral da proposição”.
Inglaterra, no cinzento período da época vitoriana. “Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.
Russell dedicou sua vida a um mundo novo, no Em uma primeira consideração, encontramos
qual, como fazia questão de dizer, “o espirito criativo é no Tractatus uma ontologia: “O mundo divide-se em
vivaz, e em que a vida é uma aventura cheia de alegria e fatos”. Mas o próprio fato é divisível: “Aquilo que
de esperança [...], um mundo no qual o afeto tenha livre acontece, o fato, é a existência de fatos atômicos”. E os
trânsito, e onde a crueldade e a inveja tenham sido fatos atômicos, por seu turno, são constituídos por
afugentadas pela felicidade e pelo desenvolvimento objetos simples: estes são substância do mundo. “O
livre e solto de todos aqueles instintos que constroem a fato atômico é uma combinação de objetos (entidades,
vida e a enchem de delicias intelectuais”. coisas)”. “O objeto é simples”. “Os objetos constituem
Russell também escreveu uma brilhante História a substância do mundo. Por isso não podem ser
da filosofia ocidental (4 vols., 1934), onde tenta mostrar compostos”. “O fixo, o consistente e o objeto são uma
que “Os filósofos são o resultado de seu meio social”. só coisa”. “O objeto é o fixo, o consistente; a
configuração é o mutável, o instável".
2. LUDWIG WITTGESTEIN
Realidade e linguagem
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nasceu em
Viena. Encaminhado pelo pai (Karl Wittgenstein, À teoria da realidade corresponde a teoria da
fundador da indústria do aço no império dos linguagem. Segundo o Wittgenstein do Tractatus (ou,
Hasburgos) foi estudar engenharia. Em 1911 foi para como se diz, o “primeiro” Wittgenstein), a linguagem é
Cambridge para estudar os fundamentos da uma representação projetiva da realidade. “Nós
matemática, sob a guia de Bertrand Russel. fazemos representações dos fatos”. “A representação é
um modelo da realidade”. E “o que a representação
deve ter em comum com a realidade para poder
representá-la – exata ou falsamente -, segundo seu
próprio modo, é a forma de representação”. Sem
dúvida, diz Wittgenstein, “à primeira vista não parece
que a proposição - assim como, por exemplo, a que está
estampada no papel - seja representação da realidade de
que trata. Mas a notação musical também não parece à
primeira vista, representação da música, assim como
nossa escritura fonética (ou letras) também não parece
uma representação de nossa linguagem falada. E, no
entanto, esses símbolos se revelam, também no sentido
comum do termo, como representações daquilo que
Em 1930 tornou-se professor no Trinity representam”. “O disco fonográfico, o pensamento
College, iniciando sua atividade de ensino superior. Em musical, a notação, as ondas sonoras, estão todos, entre
1939, sucedeu a G. E. Moore na cátedra de filosofia. si, naquela relação interior representativa que se
estabelece entre língua e mundo. O que é comum a
todas essas coisas é a estrutura lógica (como, na fábula,
As teses fundamentais
os dois jovens, seus dois cavalos e seus lírios, que são
todos, em certo sentido, uma só coisa)”.
O Tractatus logico-philosophicus saiu em 1921, em Por conseguinte, o pensamento ou proposição
alemão e foi publicado em inglês em 1922, representa ou espelha projetivamente a realidade. E a
acompanhado do texto alemão, com uma introdução de cada elemento constitutivo do real corresponde outro
Bertrand Russell. elemento no pensamento. A realidade consta de fatos
As teses fundamentais do Tractatus são as que se resumem em fatos atômicos, compostos por seu
seguintes: turno de objetos simples.
“O mundo é tudo o que acontece”. Analogamente, a linguagem é formada de
“O que acontece, o fato, é a existência dos fatos proposições complexas (moleculares), que podem ser
atômicos”. divididas em proposições simples ou atômicas
“A representação lógica dos fatos é o (elementares), não ulteriormente divisíveis em outras
pensamento”. proposições.
“O pensamento é a proposição exata”.

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Essas proposições elementares constituem o Entretanto, em nossos dias, essa imagem do Tractatus
correspondente dos fatos atômicos. E são combinações foi justamente abandonada.
de nomes, correspondentes aos objetos: “O nome Wittgenstein não apenas não foi membro do
significa o objeto. O objeto é seu significado”. Para Círculo de Viena e nunca participou das suas sessões,
exemplificar, “Sócrates é ateniense” é uma proposição mas também nunca foi neopositivista. Suas intenções
atômica, que descreve o fato atômico de que Sócrates é eram bem diversas das intenções dos neopositivistas.
ateniense; já “Sócrates é ateniense e mestre de Platão” Na realidade, em 1919 (portanto, três anos antes
é proposição molecular, que reflete o fato molecular de que M. Schlick, o fundador do Círculo de Viena, fosse
que Sócrates é ateniense e mestre de Platão. chamado a Viena), Wittgenstein escreveu uma carta a L.
A proposição atômica é a menor entidade von Ficker, com o qual estava tratando da publicação
linguística da qual se pode proclamar o verdadeiro ou o do Tractatus. Entre outras coisas, podemos ler nessa
falso. O fato atômico é o que torna verdadeira ou falsa carta: “Talvez lhe seja útil que eu lhe escreva algumas
uma proposição atômica. O fato molecular é uma palavras sobre o meu livro: com efeito, o senhor não
combinação de fatos atômicos que torna verdadeira ou extrairá grande coisa de sua leitura, essa é minha opinião
falsa uma proposição molecular. exata. De fato, o senhor não o compreendera; o tema
lhe parecerá totalmente estranho. Na realidade, porém,
A parte “mística” do Tractatus ele não lhe é estranho, já que o sentido do livro é um
sentido ético. Certa vez, pensei em incluir no prefacio uma
São essas, em resumo, as ideias centrais do proposição, que agora de fato não está lá, mas que
Tractatus. Mas Wittgenstein se dá conta de que, embora escreverei neste momento para o senhor, porque talvez
a ciência represente projetivamente o mundo, constitua para o senhor uma chave para a compreensão
entretanto, além da ciência e do mundo, “há do trabalho. Com efeito, eu queria escrever que meu
verdadeiramente o inexprimível. Mostra-se; é aquilo que trabalho consiste em duas partes: aquilo que escrevi e,
é místico”. “O que é místico não é como o mundo é, mas além disso, tudo aquilo que não escrevi. E precisamente
que ele é”. esta segunda parte é a importante [...]”.
“O sentido do mundo deve se encontrar fora Ou seja, o que não está escrito, o que não é dito
dele. No mundo, tudo é como é, e acontece como porque não é dizível cientificamente é a parte mais
acontece: nele não há nenhum valor - e, se houvesse, importante: a ética e a religião. E é assim que se
não teria nenhum valor”. reconciliam em um todo consistente a lógica e a
E “nós sentimos que, ainda que todas as “filosofia” do Tractatus com a mística do próprio
possíveis perguntas da ciência recebessem resposta, os Tractatus.
problemas de nossa vida não seriam sequer arranhados. Este era o problema de fundo de Wittgenstein:
Sem dúvida, não resta então nenhuma pergunta - e esta “Poder encontrar um método qualquer para reconciliar
é precisamente a resposta”. “O problema da vida a física de Hertz e Boltzmann com a ética de
resolve-se quando se desvanece”. Nessas afirmações Kierkegaard e Tolstoi”.
consiste precisamente a denominada parte mística do Mas os neopositivistas, devido a seus interesses
Tractatus. e perspectivas, não souberam ver esse problema
profundo e condenaram como contra-senso a mística
A interpretação não neopositivistas do Tractatus de Wittgenstein.
Toda uma geração considerou Wittgenstein
Lido, discutido, pesquisado nos pressupostos e positivista, já que ele tinha em comum com os
nos diversos núcleos teóricos, interpretado com base positivistas algo de enorme importância: traçara uma
em perspectivas diversas, o Tractatus foi um dos livros linha de separação entre aquilo de que se pode falar e
filosóficos mais influentes do século XX. E a influência aquilo que se deve calar, coisa que os positivistas
mais consistente foi a que exerceu sobre os também haviam feito. A diferença está apenas no fato
neopositivistas, que, embora rejeitando a parte mística, de que eles não tinham nada sobre o que calar. O
aceitaram sua antimetafísica, retomaram a teoria da positivismo sustenta - e esta é sua essência - que aquilo
tautologicidade das assertivas lógicas, interpretaram as de que podemos falar é tudo o que conta na vida.
proposições atômicas como protocolos das ciências Wittgenstein, ao contrário, crê
empíricas e assumiram sua ideia de que a filosofia é apaixonadamente que tudo o que conta na vida humana
atividade clarificadora da linguagem cientifica e não é precisamente aquilo sobre o qual, no seu modo de ver,
doutrina. devemos calar. Apesar disso, quando ele toma grande
Tanto mediante a Introdução de Bertrand Russell cuidado em delimitar o que não é importante, não é a
ao Tractatus como mediante a interpretação dos costa daquela ilha que ele quer examinar tão
neopositivistas, o Tractatus foi visto pela maior parte dos acuradamente, e sim os limites do oceano.
estudiosos como a bíblia do neopositivismo.

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A volta à filosofia A teoria dos “jogos de língua”

As Investigações filosóficas se iniciam com uma


crítica cerrada ao esquema tradicional de interpretação
que vê a linguagem como um conjunto de nomes que
denominam ou designam objetos, nomes de coisas e de
pessoas, unidos pela aparelhagem lógico-sintática
constituída por termos como “e”, “o”, “se” ... “então”
etc.
É obvio que, assim concebendo a linguagem, o
compreender se reduz a dar explicações que se
resumem em definições ostensivas, que postulam toda
aquela série de atos e processos mentais que deveriam
explicar a passagem da linguagem à realidade. Como se
vê, a teoria da representação, o atomismo lógico e o
mentalismo estão estreitamente conjugados.
Na realidade, porém, o jogo linguístico da
No Prefacio ao Tractatus, Wittgenstein escrevia denominação não é de modo nenhum primário. Com
que “a veracidade das ideias aqui transmitidas é efeito, se eu digo, indicando uma pessoa ou um objeto,
intocável e definitiva” e pensava “ter, no essencial, “este é Mário” ou “isto é vermelho”, haverá sempre
resolvido definitivamente os problemas”. Desse modo, para quem me escuta certa ambiguidade, já que não sabe
Wittgenstein calou-se. Os problemas estavam a que propriedade da pessoa ou do objeto me referi.
definitivamente resolvidos. Por isso, em 4 de julho de “Dizendo ‘cada palavra desta linguagem designa alguma
1924, Wittgenstein escrevia a J. M. Keynes (que, coisa’, não dizemos absolutamente nada”, escreve
juntamente com o matemático F. P. Ramsey, Wittgenstein nas Observações sobre os fundamentos
preocupava-se em fazer o filósofo austríaco retornar a da matemática. “Pensa-se que aprender a linguagem
Cambridge): “O senhor me pergunta se pode fazer algo consista em denominar objetos, isto é, homens, formas,
para tornar-me novamente possível o trabalho cores, dores, estados de espirito, números etc. A
científico. Não, a esse respeito não há mais nada a fazer; denominação é semelhante a pendurar em um a coisa
com efeito, não tenho mais nenhum forte impulso um cartãozinho com um nome. Pode-se dizer que isso
interior para tal ocupação. Tudo o que eu realmente é uma preparação para o uso da palavra. Mas para que
tinha a dizer, já o disse. E, com isso, a fonte se esgotou. nos prepara?”.
Isso pode soar estranho, mas é assim mesmo”. A teoria da representação sustenta que, com
Na realidade, não seria assim por muito tempo. nossa linguagem, nós fazemos apenas uma coisa:
Em janeiro de 1929 Wittgenstein estava novamente em denominamos. Mas Wittgenstein está persuadido de
Cambridge. E o retorno a Cambridge era o retorno à que, “ao contrário, com nossas proposições, fazemos as
filosofia. Em suma, Wittgenstein percebeu que os coisas mais diversas. Basta pensar nas exclamações,
problemas filosóficos não haviam sido definitivamente com suas tão diferentes funções: Agua! Fora! Ai!
resolvidos. Não devemos esquecer três coisas em Socorro! Lindo! Não! E agora, ainda estão dispostos a
relação a seu retorno à filosofia: chamar essas palavras de ‘denominação de objetos’?”.
a) os encontros que Wittgenstein manteve com Com a linguagem, fazemos as coisas mais
alguns membros do Círculo de Viena; variadas. Os “jogos linguísticos” são inumeráveis: “São
b) os “inumeráveis colóquios” que Wittgenstein inumeráveis os tipos diferentes de emprego de tudo o
diz ter mantido com Ramsey, tendo por objeto a revisão que chamamos ‘sinais’, ‘palavras’, ‘proposições’. E essa
dos Principia matemáticas e as teses do Tractatus sobre a multiplicidade não é algo fixo ou algo dado de uma vez
lógica e sobre os fundamentos da matemática; por todas, mas novos tipos de linguagem, novos jogos
C) o contato com “a linguagem real das linguísticos, como poderíamos dizer, surgem
crianças” das escolas primárias. continuamente, enquanto outros envelhecem e são
Esses três fatos - a reflexão sobre a matemática esquecidos (uma imagem aproximada disso poderia ser
intuicionista, os colóquios com Ramsey e a linguagem dada pelas mudanças da matemática)”.
das crianças levaram Wittgenstein a assumir nova
perspectiva teórica na interpretação da linguagem. E, O princípio de uso e a filosofia como terapia
em um esforço intenso, Wittgenstein afasta-se das linguística
soluções do Tractatus e elabora sua nova perspectiva
filosófica, da qual as Investigações filosóficas representam o A linguagem é um conjunto de jogos de
documento mais elaborado. linguagem. O significado de uma palavra é seu uso. E o

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uso tem regras. Por outro lado, “seguir uma regra é 3. EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA
análogo a obedecer a uma ordem: somos adestrados 3.1 NEOPOSITIVISMO
para obedecer à ordem”. “Seguir uma regra, fazer urna
comunicação, dar urna ordem ou jogar urna partida de A reflexão sobre o método cientifico conhece,
xadrez sio hábitos (usos, instituições)”. E essas regras nos anos que intercorrem entre as duas guerras, um
que aprendemos através do adestramento são públicas: impulso decisivo. O principal centro para a filosofia da
“No sentido em que existem processos (também ciência foi nesse período, a Universidade de Viena,
processos psíquicos) característicos do compreender, o onde um grupo de intelectuais se reuniram, a partir de
compreender não é processo psíquico”. 1924, ao redor de Moritz Schlick, dando vida ao que se
Mas uma imagem nos mantinha prisioneiros. E tornou o Círculo de Viena, cuja atividade, que consistia
ela fez com que o mundo de nossa mente se povoasse de discussões, seminários, congressos, publicações,
de espectros, isto é, de problemas filosóficos: “Eles não durou até pela metade da década de 1930. A tomada do
são naturalmente problemas empíricos, mas problemas poder por Hitler levou consigo também o fim do
que se resolvem penetrando na operação de nossa Círculo de Viena, enquanto significou a diáspora de
linguagem de forma a reconhecê-la, contra uma forte neopositivistas.
tendência a subentendê-la. Os problemas não se
resolvem mais produzindo novas experiências, mas sim
ajustando aquilo que já nos é conhecido há tempo. A
filosofia é batalha contra o encantamento de nosso
intelecto, por meio de nossa linguagem”.
“Os problemas filosóficos surgem quando falta
a linguagem”. E esses problemas se resolvem
dissolvendo-os. “Quando os filósofos usam uma
palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’, ‘proposição’,
‘nome’ – e tentam captar a essência da coisa, devemos
sempre perguntar: essa palavra é efetivamente usada
assim na linguagem, na qual tem sua pátria?”.
“Nós utilizamos as palavras, no seu emprego
metafísico, na trilha do seu emprego cotidiano”. E isso Paralelamente ao Círculo de Viena, e em ligação
porque a linguagem “faz parte de nossa história natural, estreita de intenções, desenvolveu-se o assim chamado
como o caminhar, o comer, o beber, o brincar”. Círculo de Berlim ou Sociedade para a filosofia
A linguagem opera sobre o fundo de científica.
necessidades humanas, na determinação de um
ambiente humano. E como “o significado de uma O manifesto do neopositivismo
palavra é seu uso na linguagem”, a função da filosofia é
puramente descritiva. Como na psicanálise, a diagnose É em 1929 que, com a assinatura de Neurath,
é a terapia: “o filósofo trata uma questão como uma Hahn e Carnap, aparece o manifesto do Círculo de
doença”. Viena, pequeno volume com o título A concepção cientifica
Não busqueis o significado, buscai o uso - do mundo, cujas linhas programáticas eram:
repetia Wittgenstein em Cambridge. E acrescentava: “O 1) a formulação de uma ciência unificada,
que vos dou é a morfologia do uso de uma expressão. compreendendo todos os conhecimentos provenientes
Demonstro que ela tem usos com os quais jamais da física, das ciências naturais etc.;
havíeis sonhado. Em filosofia, as pessoas sentem-se 2) o meio para tal fim devia consistir no uso da
forçadas a ver um conceito de determinado modo. Pois logica matemática;
o que faço é propor ou até inventar outros modos de 3) contribuir para o esclarecimento dos
considerá-lo. Sugiro possibilidades nas quais jamais conceitos e das teorias da ciência empírica e para o
havíeis pensado. Acreditáveis que só existisse uma esclarecimento dos fundamentos da matemática.
possibilidade ou, no máximo, duas. Mas eu vos fiz O princípio fundamental do neopositivismo -
pensar em outras possibilidades. Além disso, mostrei que é, justamente, a filosofia do Círculo de Viena - é o
que era absurdo esperar que o conceito se adequasse a princípio de verificação, segundo o qual têm sentido
possibilidades tão restritas assim. Desse modo, vos apenas as proposições que podem empiricamente ser
libertei de vossa cãibra mental; agora, podeis olhar em verificadas, ou seja, apenas as proposições que podem
volta, no campo do uso da expressão, e descrever seus se reduzir ou traduzir na linguagem “coisificada” da
diversos tipos de uso”. Em suma, a filosofia é a terapia física: ou seja, têm sentido unicamente as proposições
das doenças da linguagem. “Qual é o teu objetivo em da ciência empírica (física, química, geografia, história,
filosofia? Indicar à mosca o caminho de saída de dentro geologia etc.).
da garrafa”.
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A antimetafísica aceitas no corpus da ciência; se, ao contrário, está de


acordo com as outras proposições, então está “correta”.
Daí a antimetafísica dos neopositivistas
vienenses, para os quais as afirmações metafísicas junto A linguagem física como linguagem da ciência
com as religiosas são simplesmente não-sentidos, unificada
justamente pela razão de que não são verificáveis.
Carnap dirá que “nem Deus nem diabo algum poderão Embora fortemente influenciado por Neurath,
jamais dar-nos uma metafisica”, e que “Os metafísicos Carnap achou que as formulações deste eram “de modo
são musicistas sem talento musical”. nenhum irrepreensíveis”. Carnap não insistiu sobre a
redução da linguagem a fato físico nem rejeitou a
função simbólica dos sinais; ele, porém, aceitou
totalmente a tese da universalidade da língua fiscalista.

Em Filosofia e sintaxe lógica (1935) Carnap


Do mesmo parecer foram, em relação a escreve: “Nós, nas discussões no Círculo de Viena,
antimetafísica, Schlick e os outros frequentadores do chegamos a concepção de que a linguagem física é a
Círculo. Para Neurath, mais especificamente, a rejeição linguagem-base de toda a ciência, uma linguagem
da metafísica constituía uma batalha, justamente como universal que abraça os conteúdos de qualquer outra
se se tratasse de marchar contra um inimigo político. E linguagem científica”.
Hans Reichenbach dirá que é um fato decididamente E a linguagem física deve ser a linguagem da
positivo o abandono de qualquer metafísica ou poesia ciência unificada (na qual entram também a psicologia,
em conceitos. a sociologia, enfim, as chamadas “ciências do espírito”)
por causa de sua intersensualidade, intersubjetividade e
Da fase semântica à sintática universalidade. E se para Carnap - que naquele tempo
trabalhava na Sintaxe lógica da linguagem - a questão da
Tendo admitido o princípio de verificação, o relação entre linguagem e realidade não interessava
trabalho filosófico sério não consistira mais na muito, ela constituía o problema mais candente para
construção de teorias metafísicas, e sim muito mais na Schlick: para ele uma linguagem não contraditória não
análise dos conceitos e das teorias científicas. E de é suficiente para dar razão da ciência; de fato, também
grande valor foram as contribuições dos filósofos uma fábula bem engenhada pode ser não contraditória,
vienenses na análise das teorias cientificas e na mas não é ciência. Dentro do neopositivismo vienense
discussão de seu significado filosófico. E isso enquanto Schlick teve a função dialética de se remeter
a discussão sobre a base empírica da ciência - ou seja, continuamente aos fatos.
seus protocolos ou afirmações-de-observação -, que
pareceu estar cheia de solipsismo (a observação de A liberalização do neopositivismo
alguma coisa é sempre a observação feita por um
indivíduo), levou Neurath, seguido em parte por O princípio de verificação comporta
Carnap, a inverter a orientação semântica do Círculo na dificuldades que não foram de fato protegidas. Com
direção sintática ou, como foi dito, fisicalísta: a efeito, ele é um princípio cripto-metafisico;
linguagem e assumida como um fato físico; e eliminada autocontraditório (diz que tem sentido apenas as
sua função de representação projetiva dos fatos; e à proposições que podem empiricamente ser verificadas,
verdade como correspondência com os fatos mas o próprio princípio é uma proposição não
substituiu-se a verdade como coerência entre verificável e, portanto, também ele é insensato); e
proposições. De modo que uma proposição é “não- incapaz, sendo indutivo, de dar conta das afirmações
correta” se ela não está de acordo com as outras universais da ciência.
proposições reconhecidas pelos cientistas e por eles já E enquanto pelo fim da década de 1920 Ludwig
Wittgenstein - cujo Tractatus lógico-philosophicus havia

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incitado os neopositivistas a construção de uma 3) a ciência é um evento essencialmente


linguagem perfeita - voltava a filosofar e não via mais histórico;
“o sentido de uma proposição no método de sua 4) a ciência possui um “inevitável caráter
verificação”, e sustentava que o significado de uma social”.
palavra ou de uma expressão está no uso que dela se Em O materialismo racional, Bachelard constata
faz; em 1934 Karl Popper rejeitava o critério de amargamente que “a ciência não tem a filosofia que
verificação - que é um critério de significância -, e merece”. A filosofia está sempre atrasada em relação as
propunha a falsificabilidade como critério de mudanças do saber cientifico. E Bachelard procura
demarcação entre ciência e não ciência. opor a “filosofia dos filósofos” a “filosofia produzida
Nesse tempo, com o transplante do pela ciência”.
neopositivismo nos Estados Unidos, o neo-empirismo O que caracteriza a filosofia dos filósofos são
se liberalizava e o próprio Carnap, em Controlabilidade e atributos como a unidade, o fechamento e a
significado (1936), em vez de verificabilidade falará de imobilidade, ao passo que os traços marcantes da
controlabilidade e conformabilidade: “Diremos que “filosofia científica” (ou filosofia criada pela ciência)
uma proposição é controlável se, de fato, conhecemos são a falta de unidade ou centro, a abertura e a
um método para proceder à sua eventual confirmação; historicidade. Diz Bachelard em A filosofia do não:
ao passo que diremos que é confirmável, se soubermos “Pediremos aos filósofos que rompam com a ambição
sob quais condições ela em linha de princípio seria de encontrar um só ponto de vista para julgar uma
confirmada”. ciência tão vasta e tão mutável como a física”.
Para Bachelard, a filosofia das ciências é
3.2 GASTON BACHELARD filosofia dispersiva, distribuída: “Dever-se-ia fundar
uma filosofia do pormenor epistemológico, uma
Gaston Bachelard nasceu na França meridional, filosofia diferencial, para contrapor a filosofia integral
em 1884. Suas obras epistemológicas apareceram em dos filósofos. Essa filosofia diferencial seria
um momento em que a filosofia da ciência (o encarregada de medir o futuro de um pensamento”.
neopositivismo vienense e o operacionalismo norte- Esse tipo de filosofia diferencial “é a única filosofia
americano) se apresenta como concepção aberta. Toda outra filosofia estabelece seus princípios
antimetafísica e a-histórica. como intangíveis, suas verdades primeiras como totais
É bem verdade que Bachelard continuaria seu e adquiridas. Toda outra filosofia se orgulha de seu
trabalho de epistemólogo e historiador da ciência fechamento”.
também depois da Segunda Guerra Mundial, mas deve-
se dizer que ainda nesse momento, enquanto ainda não É a ciência que instrui a razão
se havia difundido o pensamento de Popper e de sua
Escola, a filosofia científica (isto é, a filosofia ligada a Em O racionalismo aplicado, Bachelard afirma que
ciência e que pretendia dar conta da ciência) ainda era o “a epistemologia deve ser tão móvel quanto a ciência”.
neopositivismo. Porém, é óbvio que, para haver uma filosofia dispersiva,
distribuída, aberta, diferencial e móvel, é necessário
A ciência não tem a filosofia que merece penetrar nas práticas científicas, em vez de julgá-las do
exterior - em suma, é preciso que o filosofo tenha
A epistemologia de Bachelard, devido a época confiança no cientista, que ele próprio seja cientista
em que surgiu e se desenvolveu, representa o antes de ser filósofo.
pensamento, prenhe de novidade, de um filósofo Na opinião de Bachelard, existem poucos
solitário (ainda que não isolado) que, dentro da tradição pensamentos filosoficamente mais variados do que o
francesa de reflexo sobre a ciência, ultrapassa a filosofia pensamento científico. E o papel da filosofia da ciência
“oficial” da ciência de sua época (o neopositivismo) e é o de recensear essa variedade e mostrar como os
propõe, como escreveu Althusser, um não-positivismo filósofos aprenderiam se quisessem meditar sobre o
radical e deliberado. pensamento cientifico contemporâneo.
Com base nisso, devemos registrar logo que os Enquanto os neopositivistas procuravam um
pontos fundamentais de seu pensamento podem ser princípio rígido (o princípio da verificação) capaz de
reduzidos a quatro: separar claramente a ciência da não-ciência, Bachelard
1) o filósofo deve ser “contemporâneo” à não aceita um critério a priori que tenha a presunção de
ciência de seu próprio tempo; captar a essência da cientificidade. Não é a razão
2) tanto o empirismo de tradição baconiana filosófica que domestica a ciência, e sim muito mais “a
como o racionalismo idealista são incapazes de dar ciência que instrui a razão”.
conta da prática científica real e efetiva; Assim, contrariamente aos neopositivistas,
Bachelard não aceita um princípio que estabeleça a priori

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a cientificidade das ciências, nem a rejeição da história perguntas. Tem respostas para tudo. No entanto, o
feita pelos próprios neopositivistas. Por outro lado, espírito cientifico “nos proíbe ter opiniões sobre
combate a filosofia dos filósofos, porém não considera questões que não compreendemos, sobre questões que
a metafisica como insensata ou indiferente para a não sabemos formular claramente. Antes de mais nada,
ciência, como o fizeram os filósofos do Círculo de é preciso saber propor os problemas”. Para o espírito
Viena. Escreve ele: “O espírito pode mudar a científico, toda teoria é a resposta a uma pergunta.
metafisica, mas não pode prescindir da metafisica”. E E o sentido e a construção do problema são as
se é verdade que “um pouco de metafisica nos afasta da características primeiras do espirito científico: o
natureza, muita metafisica nos aproxima dela”. conhecimento vulgar é feito de respostas, o
Por aí pode-se ver que Bachelard não nutre conhecimento científico vive na agitação dos
preconceitos antifilosóficos ou antimetafísicos em problemas. “O eu científico é programa de experiências, ao
nome da ciência. Ele é avesso à filosofia não passo que o não-científico é problemática já constituída”.
contemporânea da ciência e arremete contra os
filósofos que “pensam antes de estudar”, e sob cuja Não há verdade sem erro corrigido
pena “a relatividade degenera em relativismo, a hipótese
em suposição, o axioma em verdade primeira”. E esses Há mais, porém; diferentemente das rotinas
juízos depreciativos em relação à “filosofia dos incorrigíveis da experiência comum, o conhecimento
filósofos” brotam da firme vontade de Bachelard de dar científico avança através de sucessivas retificações as
à filosofia uma oportunidade para que se torne teorias anteriores: “não há verdade sem erro retificado”. Mas,
contemporânea da ciência. afirma Bachelard em O novo espirito científico, para além
do sentimento psicológico, “o espírito científico é
As “rupturas epistemológicas” essencialmente retificação do saber, ampliação dos
esquemas do conhecimento. Ele julga seu passado
Para Bachelard, não podemos considerar a histórico, condenando-o. Sua estrutura é a consciência
ciência independentemente de seu devir. E o “real de seus erros históricos. Do ponto de vista científico, o
científico” não é imediato e primário. Ele precisa verdadeiro é pensado como retificação histórica de um
receber um valor convencional. É preciso que ele seja longo erro, e a experiência como retificação da ilusão
retomado em um sistema teórico. Aqui, como em toda comum e primitiva”.
parte, é a objetivação que domina a objetividade. Uma verdade sobre o fundo de um erro: essa
O “dado cientifico”, portanto, é sempre relativo é a forma do pensamento científico, cujo método “é
a sistemas teóricos. O cientista nunca parte da método que busca o risco. A dúvida está na frente do
experiência pura. No tocante a isso, escreve Bachelard método e não atrás, como em Descartes. E esse é o
em A formação do espírito científico: “Conhece-se contra um motivo por que posso dizer sem grandiloquência que o
conhecimento anterior, destruindo conhecimentos pensamento cientifico é pensamento empenhado. Ele
malfeitos e superando o que, dentro do próprio espírito, põe continuamente em jogo sua própria organização.
constitui um obstáculo a espiritualização. O espírito Há mais: paradoxalmente, parece que o espírito
nunca é jovem quando se apresenta à cultura científica. científico vive na estranha esperança de que o próprio
Ao contrário, é muito velho, porque tem a idade de seus método se choque com xeque-mate vital. E isso porque
preconceitos. Ter acesso à ciência significa rejuvenescer um xeque-mate tem por consequência o fato novo e a
espiritualmente, quer dizer aceitar brusca mudança que ideia nova”.
deve contradizer um passado”. As hipóteses cientificas podem sofrer xeques-
Segundo Bachelard, essas sucessivas contradições mates; o espírito não-científico, ao contrário, é aquele
do “passado” são autênticas rupturas epistemológicas, que se torna “impermeável aos desmentidos da
que, de vez em quando, comportam a negação de algo experiência”. Esta é a razão por que as rotinas
fundamental (pressupostos, categorias centrais, incorrigíveis e as ideias vagas são sempre verificáveis. E
métodos) que sustentava a pesquisa na fase anterior. A essa é a razão por que é anticientífica a atitude de quem
teoria da relatividade e a teoria quântica, pondo em sempre encontra um modo de comprovar sua teoria, ao
discussão os conceitos de espaço, tempo e causalidade, invés de mostrá-la errada e, portanto, retificá-la.
representariam algumas das mais flagrantes
confirmações da ideia de ruptura epistemológica. O “obstáculo epistemológico”
A história da ciência, portanto, avança por meio
de sucessivas rupturas epistemológicas. Mas, O conhecimento científico avança por meio de
contrariamente a muitos outros, entre os quais Popper, rupturas epistemológicas sucessivas. É desse modo que
Bachelard sustenta que também existe ruptura entre ele se aproxima da verdade: “não encontramos
saber comum e conhecimento cientifico. O nenhuma solução possível para o problema da verdade,
conhecimento vulgar tem sempre mais respostas do que senão a de ir descartando erros cada vez mais sutis”.

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Entretanto, o progresso da ciência, essa concepções absolutas e totalizantes da realidade e a


continua retificação dos erros anteriores, especialmente imporem à ciência princípios intangíveis.
as retificações que constituem autênticas rupturas, não A tese de Bachelard é de que a evolução do
são passos que se efetuam com facilidade, em virtude conhecimento não tem fim, e de que a filosofia deve ser
do seu choque com o que Bachelard chama de instruída pela ciência. Isso pode até perturbar o filosofo.
“obstáculos epistemológicos”. No entanto, é necessário chegar a essa conclusão se
Podemos dizer que o obstáculo epistemológico quisermos definir a filosofia do conhecimento científico
é uma ideia que impede e bloqueia outras ideias: hábitos como filosofia aberta, como a consciência de espírito
intelectuais cristalizados, a inércia que faz estagnar as que se fundamenta trabalhando sobre o desconhecido,
culturas, teorias cientificas ensinadas como dogmas, os e procurando no real o que contradiz conhecimentos
dogmas ideológicos que dominam as diversas ciências - anteriores.
eis alguns obstáculos epistemológicos.
a) O primeiro obstáculo a superar é o de 3.3 KARL POPPER
derrubar a opinião: “A opinião, por direito, está sempre
errada. A opinião pensa mal, não pensa, traduz Karl Popper, nascido em Viena em 1902,
necessidades por conhecimentos. Decifrando os faleceu na Inglaterra em 1994. Na capital austríaca
objetos segundo sua utilidade, impede-se de conhecê- estudou filosofia, matemática e física.
los. Não se pode basear nada na opinião: antes de mais
nada, é preciso destrui-la”.
b) Outro obstáculo é a falta de genuíno sentido
dos problemas, sentido que se perde quando a pesquisa
se encerra na casca dos conhecimentos dados como
adquiridos e não mais problematizados. Mediante o
uso, diz Bachelard, as ideias se valorizam indevidamente.
E esse é um verdadeiro fator de inércia para o espírito.
Por vezes, ocorre que uma ideia dominante polariza o
espírito em sua totalidade. “Ha cerca de vinte anos, um
epistemólogo irreverente dizia que os grandes homens
são uteis para a ciência na primeira metade de sua vida,
e nocivos na segunda metade”.
Obstáculos importantes e difíceis de remover Em 1928, formou-se em filosofia e em 1929,
são: habilitou-se para o ensino de matemática e da física nas
c) o obstáculo da experiência primeira, ou seja, escolas de Ensino Médio. Suas principais obras são:
da experiência que pretende se situar além da crítica; 1 - Lógica da descoberta científica (1935);
d) aquele que pode ser chamado obstáculo 2 - A miséria do historicismo (1944-1945);
realista, e que consiste na sedução da ideia de 3 - A sociedade aberta e seus inimigos (1945);
substância; 4 - Conjecturas e refutações (1962);
e) por fim, aquele que se pode chamar de 5 - Conhecimento objetivo (1972) .
obstáculo animista (“a palavra vida é palavra mágica. É São notáveis e sempre perspicazes suas
palavra valorizada”). contribuições em múltiplos anais de seminários e
Diante dessas realidades constituídas pelos simpósios. Membro da Royal Society, foi feito Sir em
obstáculos epistemológicos, Bachelard propõe uma 1965. Professor visitante em muitas universidades
psicanálise do conhecimento objetivo, voltada para a estrangeiras, suas obras foram traduzidas em mais de
identificação e para a remoção dos obstáculos que vinte línguas.
bloqueiam o desenvolvimento do espírito científico.
Tal catarse torna-se absolutamente necessária se Popper contra o neopositivismo
quisermos tornar possível o progresso da ciência, já que
se conhece sempre contra um conhecimento anterior.
Durante muito tempo, na literatura filosófica,
Popper apareceu associado ao neopositivismo. Chegou-
Ciência e história da ciência se a dizer até que foi membro do Círculo de Viena.
Entretanto, a exemplo de Wittgenstein, Popper nunca
Tudo isso mostra também a função da negação foi membro do Círculo. Em suas Réplicas aos meus críticos,
dentro de nossa atividade de conhecimento e dentro da o próprio Popper afirma que essa história é apenas
própria filosofia, que, na opinião de Bachelard, deve se lenda. E, em sua Autobiografia, admite a responsabilidade
configurar como filosofia do não, firme na rejeição das pela morte do neopositivismo.
pretensões dos velhos sistemas a se apresentarem como

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Com efeito, Popper não é neopositivista. E, Escreve Popper a esse propósito: “Hoje como
com toda razão, Neurath chamou Popper de “a então (isto é, nos tempos do Círculo de Viena), os
oposição oficial” do Círculo de Viena. analistas da linguagem são importantes para mim e não
Popper embaralhou todas as cartas com as quais apenas como opositores, mas também como aliados,
os neopositivistas estavam jogando seu jogo: substituiu porque parecem os únicos filósofos que continuaram a
o princípio de verificação (que é um princípio de manter vivas algumas tradições da filosofia racional. Os
significância) pelo critério de falsificabilidade (que é um analistas da linguagem acreditam que não existem
critério de demarcação entre ciência e não-ciência); problemas filosóficos genuínos, ou que os problemas
substituiu a velha e venerável, mas, em sua opinião, da filosofia – admitindo-se que existam – são problemas
impotente teoria da indução, pelo método dedutivo da referentes ao uso linguístico ou ao significado das
prova; deu uma interpretação diferente da interpretação palavras”.
de alguns membros do Círculo a respeito dos Mas Popper não concorda com esse programa,
fundamentos empíricos da ciência, afirmando que os tanto que afirma peremptoriamente que “devemos
protocolos não são de natureza absoluta e definitiva; deixar de nos preocupar com as palavras e seus
reinterpretou a probabilidade, sustentando que as significados para passar a nos preocupar com as teorias
melhores teorias cientificas (enquanto implicam mais e criticáveis, com os raciocínios e com sua validade”.
podem ser mais bem verificadas) são as menos
prováveis; rejeitou a antimetafísica dos vienenses, A indução não existe
considerando-a simples exclamação, e, entre outras
coisas, defendeu a metafísica como progenitora de Escrevia Popper: “Penso ter resolvido um
teorias científicas; problema filosófico fundamental: o problema da
Rejeitou também o desinteresse de muitos indução [...]. Essa solução tem sido extremamente
circulistas em relação a tradição e releu em novas bases fecunda, e tem-me permitido resolver grande número
filósofos como Kant, Hegel, Stuart Mill, Berkeley, de outros problemas filosóficos”. E ele resolveu o
Bacon, Aristóteles, Platão e Sócrates para chegar a uma problema da indução dissolvendo-o: “A indução não
estimulante releitura, em bases epistemológicas, dos existe. E a concepção oposta é um grande erro”.
pré-socráticos, vistos como os criadores da tradição de No passado, o termo “indução” era usado
discussão crítica. principalmente em dois sentidos:
Enfrentou seriamente autênticos e clássicos a) indução repetitiva ou por enumeração;
problemas filosóficos, como o das relações corpo- b) indução por eliminação.
mente ou como o do sentido ou não da história A ideia de Popper é que ambos os tipos de
humana; interessou-se pelo sempre emergente drama indução caem por terra. Escreve ele: “A primeira é a
da violência, e é um dos mais aguerridos adversários indução repetitiva (ou indução por enumeração), que
teóricos do totalitarismo; rejeitou a diferença entre consiste em observações frequentemente repetidas,
termos teóricos e termos observáveis; contra o observações que deveriam fundamentar algumas
convencionalismo de Carnap e Neurath, ou seja, a generalizações da teoria. É óbvia a falta de validade
chamada “fase sintática” do Círculo, fez valer, a ideia desse gênero de raciocínio: nenhum número de
reguladora da verdade. observações de cisnes brancos é capaz de estabelecer
Em suma, não há questão ventilada pelos que todos os cisnes são brancos (ou que é pequena a
vienenses em torno da qual Popper não pense diferente. probabilidade de se encontrar um cisne que não seja
Por tudo isso, Neurath estava certo ao chamar Popper branco). Do mesmo modo, por maior que seja o
de “a oposição oficial do Círculo de Viena”. número de espectros de átomos de hidrogênio que
observamos, nunca poderemos estabelecer que todos
Popper contra a filosofia analítica os átomos de hidrogênio emitem espectros do mesmo
tipo [...]. Portanto, a indução por enumeração está fora
Crítico em relação aos vienenses, mais de questão: não pode fundamentar nada”.
recentemente, em 1961, Popper também atacou, em Por outro lado, a indução eliminatória baseia-se
nome da unidade do método cientifico, as pretensões no método da eliminação ou rejeição das falsas teorias.
da Escola de Frankfurt de compreender a sociedade Diz Popper: “À primeira vista, esse tipo de indução
com categorias como a “totalidade” e a “dialética”. E pode parecer muito semelhante ao método da discussão
também não se mostrou mais suave em relação a crítica que eu defendo, mas, na realidade, é muito
Cambridge-Oxford-Philosophy. Omitindo alguns diferente. Com efeito, Bacon, Mill e os outros difusores
acenos esparsos aqui e ali em seus escritos, Popper desse método de indução acreditavam que, eliminando
precisou sua posição essencialmente contrária ao todas as teorias falsas, pode-se fazer valer a verdadeira
movimento analítico no prefácio à primeira edição teoria. Em outras palavras, não se davam conta de que
inglesa (1959) da Lógica da descoberta cientifica. o número de teorias rivais é sempre infinito, ainda que,
via de regra, em cada momento particular possamos
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tomar em consideração um número finito de teorias desprovida de pressupostos, de hipóteses, de suspeitas


[...]. O fato de, para cada problema, existir sempre e de problemas, em suma, uma tábula rasa, na qual
infinidade de soluções logicamente possíveis constitui refletir-se-ia depois o livro da natureza. Essa ideia é o
um dos fatos decisivos de toda a ciência, e é uma das que Popper chama de observativismo, e que ele
coisas que fazem da ciência uma aventura tão excitante. considera mito.
Com efeito, ele torna ineficazes todos os métodos O observativismo é mito filosófico, já que a
baseados nas meras rotinas, o que significa que, na realidade é que nós somos uma tábula plena, um
ciência, devemos usar a imaginação e ideias ousadas, quadro-negro cheio dos sinais que a tradição ou a
ainda que uma e outras devam ser sempre temperadas evolução cultural deixaram escritos.
pela crítica e pelos controles mais severos”. A observação sempre se orienta por
A indução, portanto, não existe. Por expectativas teóricas. Esse fato, diz Popper, “pode ser
conseguinte, não pode fundamentar nada, e, ilustrado com um simples experimento, que eu gostaria
consequentemente, não existem métodos baseados em de realizar, com vossa permissão, tomando a vos
meras rotinas. É erro pensar que a ciência empírica mesmos como cobaias. O meu experimento consiste
proceda com métodos indutivos. Normalmente, em pedir-vos para observar, aqui e agora. Espero que
afirma-se que uma inferência é indutiva quando todos vós estejais cooperando: observai! Temo, porém,
procede a partir de assertivas particulares, como os que algum de vos, ao invés de observar, experimente a
relatórios dos resultados de observações ou de forte vontade de perguntar-me: ‘O que queres que eu
experimentos, para chegar a asserções universais, como observe?’ Se essa é a vossa resposta, então meu
hipóteses ou teorias. No entanto, já em 1934 Popper experimento teve êxito. Com efeito, aquilo que estou
escrevia: “Do ponto de vista logico, não é nada obvio tentando evidenciar é que, tendo em vista a observação,
que se justifique inferir assertivas universais a partir de devemos ter em mente uma questão bem definida, que
assertivas singulares, por mais numerosas sejam estas podemos estar em condições de decidir através da
últimas. Com efeito, qualquer conclusão tirada desse observação.”
modo sempre pode se revelar falsa: por mais Um experimento ou prova pressupõe sempre
numerosos que sejam os casos de cisnes brancos que alguma coisa a experimentar ou a comprovar. E esse
possamos ter observado, isso não justifica a conclusão algo são as hipóteses (ou conjecturas, ideais e teorias)
de que todos os cisnes são brancos”. que inventamos para resolver os problemas. Purgada
A inferência indutiva, portanto, não se justifica dos preconceitos, a mente não será mente pura, afirma
logicamente. Popper, mas apenas mente vazia. Nós operamos
Também poder-se-ia atacar a questão da sempre com teorias, ainda que frequentemente não
indução a partir desta outra perspectiva. tenhamos consciência disso.
O princípio de indução é uma proposição
analítica (isto é, tautológica) ou uma assertiva sintética Problemas e criatividade; gênese e prova da
(isto é, empírica). Entretanto, “se existisse algo como hipótese
um princípio de indução puramente lógico, não existiria
nenhum problema de indução, porque nesse caso todas Portanto, segundo Popper, não existe
as inferências indutivas deveriam ser consideradas procedimento indutivo, e a ideia da mente como tábula
como transformações puramente lógicas ou rasa é um mito. Para Popper, a pesquisa não parte de
tautológicas, precisamente como as inércias da lógica observações, mas sempre de problemas, “de problemas
dedutiva”. práticos ou de uma teoria que se chocou com
Portanto, o princípio de indução deve ser uma dificuldades, ou seja, que despertou expectativas e depois
assertiva universal sintética. Mas, “se tentarmos as desiludiu”.
considerar sua veracidade como conhecida pela Um problema é uma expectativa desiludida. Em
experiência, então ressurgem exatamente os mesmos sua natureza lógica, um problema é uma contradição
problemas que deram origem à sua introdução. Para entre afirmações estabelecidas; o maravilhamento e o
justificá-la, devemos empregar inferências indutivas. E interesse são as vestimentas psicológicas daquele fato
para justificar estas últimas, devemos adotar um lógico que é a contradição entre duas teorias ou, pelo
princípio indutivo de ordem superior, e assim por menos, entre a consequência de uma teoria e uma
diante. Desse modo, a tentativa de basear o princípio de proposição que, presumivelmente, descreve um fato. E
indução na experiência acaba falindo, porque leva os problemas explodem justamente porque nós somos
necessariamente a um regresso infinito”. “memória” biológico-cultural, fruto de uma evolução,
primeiramente biológica e depois eminentemente
A mente não é tábula rasa cultural.
Com efeito, quando um pedaço de “memoria”,
Há outra ideia ligada a teoria da indução: a de ou seja, uma expectativa (hipótese ou preconceito),
que a mente do pesquisador deveria ser mente choca-se com outra expectativa ou com algum pedaço
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de realidade (ou fatos), então temos um problema. É Com efeito, se não for possível extrair de uma
assim que Popper descreve a correlação entre o teoria consequências passíveis de verificação factual, ela
conjunto de expectativas que é a nossa “memória” não é científica. Entretanto, deve-se observar aqui que
cultural e os problemas: “Por vezes, enquanto uma hipótese metafísica de hoje pode se tornar
descemos por uma escada, acontece-nos descobrir de científica amanhã (como foi o caso da antiga teoria
repente que esperávamos outro degrau (que não existe) atomista, metafísica nos tempos de Demócrito e
ou, ao contrário, que não esperávamos nenhum outro cientifica na época de Fermi).
degrau, quando na verdade ainda existe um. A Nessa extração de consequências da teoria sob
desagradável descoberta de nos termos enganado faz controle e no seu confronto com as assertivas de base
com que nos demos conta de ter alimentado certas (ou protocolos) que, pelo que sabemos, descrevem os
expectativas inconscientes. E mostra que existem “fatos”, consiste o método dedutivo dos controles.
milhares de tais expectativas inconscientes”. Controles que, numa perspectiva lógica, nunca
A pesquisa, portanto, inicia-se com os encontrarão um fim, já que, por mais confirmações que
problemas; buscamos precisamente a solução dos uma teoria possa ter obtido, ela nunca será certa, pois o
problemas. próximo controle poderá desmenti-la. Esse fato lógico
E para resolver os problemas, é necessária a se coaduna com a história da ciência, onde vemos
imaginação criadora de hipóteses ou conjecturas; teorias, que resistiram durante décadas, e décadas
precisamos de criatividade, da criação de ideias “novas acabarem por desmoronar sob o peso dos fatos
e boas”, boas para a solução dos problemas. contrários.
Aqui é necessário traçar uma distinção - na qual Na realidade, existe uma assimetria lógica entre
Popper insiste com frequência - entre contexto da verificação e falsificação: bilhões e bilhões de
descoberta e contexto da justificação. Uma coisa é o processo confirmações não tornam certa uma teoria (como, por
psicológico ou gênese das ideias; outra coisa, bem exemplo, a de que “todos os pedaços de madeira boiam
diferente da gênese das ideias, é sua prova. As ideias na água”), ao passo que apenas um fato negativo (“este
cientificas não têm fontes privilegiadas: podem brotar pedaço de ébano não boia na água”) falseia a teoria, do
do mito, das metafísicas, do sonho, da embriaguez etc. ponto de vista lógico. É com base nessa assimetria que
Mas o que importa é que elas sejam de fato Popper fixa a ordem metodológica da falsificação;
comprovadas. E é óbvio que, para que sejam provadas como uma teoria permanece sempre desmentível, por
de fato, as teorias cientificas devem ser prováveis ou mais confirmada que esteja, então é necessário tentar
verificáveis em princípio. falsificá-la, porque, quanto antes se encontrar um erro,
mais cedo poderemos eliminá-lo, com a formulação e a
O critério de falsificabilidade experimentação de uma teoria melhor do que a anterior.
Desse modo, a epistemologia de Popper reflete a força
A pesquisa inicia pelos problemas. Para resolver do erro. Como dizia Oscar Wilde, “experiência é o
os problemas, é preciso elaborar hipóteses como nome que cada um de nós dá aos seus próprios erros”.
tentativas de solução. Por tudo isso pode-se compreender muito bem
Uma vez propostas, as hipóteses devem ser a centralidade da ideia de falsificabilidade na
provadas. E essa prova se dá extraindo-se epistemologia de Popper: “Não exigirei de um sistema
consequências das hipóteses e vendo se tais científico que seja capaz de ser escolhido, em sentido
consequências se confirmam ou não. Se elas ocorrem, positivo, de uma vez por todas, mas exigirei que sua
dizemos que, no momento, as hipóteses estão forma lógica seja tal que ele possa ser posto em
confirmadas. Se, ao contrário, pelo menos uma evidência, por meio de verificações empíricas, em
consequência não ocorre, então dizemos que a hipótese sentido negativo: um sistema empírico deve poder ser
é falsificada. refutado pela experiência”.
Em outros termos, dado um problema P e uma Pode-se ver a adequação desse critério quando
teoria T, proposta como sua solução, nós dizemos: se T pensamos nos sistemas metafísicos, sempre verificáveis
é verdadeira, então devem se dar as consequências p,, (qual fato não confirma uma das tantas filosofias da
p,, p ,,..., p,; se elas se derem, confirmarão a teoria; se, história?) e nunca desmentíveis (qual fato poderia
ao contrário, não se derem, a desmentirão ou desmentir urna filosofia da história ou uma visão
falsificarão, ou seja, demonstrarão ser falsa. religiosa do mundo?)
Por aí se pode ver que, para ser provada de fato,
uma teoria deve ser provável ou verificável em Significado das teorias metafísicas
princípio. Em outras palavras, deve ser falsificável, ou
seja, deve ser tal que dela sejam extraíveis Diversamente do princípio de verificação, o
consequências que possam ser refutadas, isto é, critério de falsificabilidade não é um critério de
falsificadas pelos fatos. significância, mas, repetimos, um critério de
demarcação entre assertivas empíricas e assertivas não
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empíricas. Entretanto, dizer que uma assertiva ou um somente se torna possível decidir empiricamente entre
conjunto de assertivas não é científico não implica em ela e alguma teoria rival.
absoluto dizer que ele é insensato. Tendo escrito tudo isso em 1934, Popper, em
Foi por essa razão que, em 1933, Popper seu Postscript (esboçado desde 1957), a propósito dos
escreveu uma carta ao diretor da revista “Erkenntnis”, programas de pesquisa metafísicos, também dizia que o
dizendo entre outras coisas: “Tão logo ouvi falar do atomismo é um exemplo excelente de uma teoria
novo critério de verificabilidade do significado elaborado metafísica não controlável, cuja influência na ciência
pelo Circulo (de Viena), lhe contrapus meu critério de supera a de muitas teorias controláveis. O último e mais
falsificabilidade: critério de demarcação destinado a grandioso, até agora, foi o programa de Faraday,
demarcar sistemas de assertivas científicas dos sistemas Maxwell, Einstein, De Broglie e Schrodinger, de
perfeitamente significantes de assertivas metafisicas”. conceber o mundo em termos de campos contínuos.
Com efeito, nós compreendemos muito bem o Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou
que querem dizer os realistas, os idealistas, os solipsistas como programa para a ciência, indicando a direção em
ou os dialéticos. Na realidade, afirma Popper, os que se poderiam encontrar teorias da ciência
neopositivistas tentaram eliminar a metafísica, adequadamente explicativas, e tornando possível a
lançando-lhe impropérios. Mas, com seu princípio de avaliação da profundidade de uma teoria. Em biologia,
verificação, reintroduziram a metafísica na ciência a teoria da evolução, a teoria da célula e a teoria da
(enquanto as próprias leis da natureza não são infecção bacteriana desenvolveram todas um papel
verificáveis). Mas o fato é que “não se pode negar que, semelhante, pelo menos por algum tempo. Em
ao lado das ideias metafísicas que obstaculizaram o psicologia, o sensismo, o atomismo (ou seja, a teoria
caminho da ciência, também houve outras, como o segundo a qual todas as experiências são compostas de
atomismo especulativo, que contribuíram para seu elementos últimos, como, por exemplo, os dados
progresso. E, olhando a questão do ponto de vista sensoriais) e a psicanalise deveriam ser recordados
psicológico, estou propenso a considerar que a como programas de pesquisa metafísicos.
descoberta cientifica é impossível sem a fé em ideias que Assertivas puramente existenciais também se
em natureza puramente especulativa e que, por vezes, revelaram, por vezes, inspiradoras e frutíferas na
são até bastante nebulosas - uma fé que é história da ciência, ainda que nunca tenham vindo a
completamente desprovida de garantias do ponto de tornar-se parte dela. Aliás, poucas teorias metafísicas
vista da ciência e que, portanto, dentro desses limites, é exerceram maior influência sobre o desenvolvimento
‘metafisica’ “. da ciência do que a afirmação puramente metafísica de
que existe uma substância que pode transformar os
Relações entre ciência e metafísica metais vis em ouro (isto é, uma pedra filosofal),
afirmação que, se não é falsificável, nunca foi verificada
Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa é e na qual ninguém mais acredita.
impossível sem ideias metafísicas que, por exemplo Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa
poderiam ser as ideias de realismo, de ordem do cientifica é impossível sem ideias metafísicas. Do ponto
universo ou de casualidade. de vista histórico, é um dado de fato que, ao lado das ideias
Do ponto de vista histórico vemos que, por vezes, metafísicas que obstaculizaram a ciência, há outras que
ideias que antes flutuavam nas regiões metafísicas mais representaram fecundos programas de pesquisa; e
altas podem ser alcançadas com o crescimento da existiram metafísicas que, com o crescimento do saber
ciência e, postas em contato com ela, podem se de fundo, transformaram-se em teorias verificáveis. E
concretizar. São exemplos de tais ideias: o atomismo; a esse fato histórico nos mostra claramente que, do ponto de
ideia de um ‘principio’ físico único ou elemento último vista lógico, o âmbito do verdadeiro não se identifica com
(do qual derivam os outros); a teoria do movimento da o âmbito do verificável.
terra (à qual Bacon se opunha, considerando-a fictícia);
a venerável teoria corpuscular da luz; a teoria da Contra a dialética, a “miséria do historicismo”
eletricidade como fluido (que foi revivida com a
hipótese de que a condução dos metais deve-se a um Os primeiros elementos da filosofia social de
gás de elétrons). Popper encontram-se no ensaio O que é a dialética? Esse
Todos esses conceitos e essas ideias metafisicas, escrito marca o momento em que Popper começa a se
ainda que em suas formas mais primitivas, foram de interessar pelos problemas de metodologia das ciências
ajuda na ordenação da imagem que o homem faz do sociais. E com base em sua concepção do método
mundo. E, em alguns casos, podem também ter levado científico, Popper afirma, entre outras coisas, que
a previsões cercadas de êxito. Entretanto, uma ideia enquanto, de um lado, a contradição lógica e a
desse gênero só adquire status científico quando é contradição dialítica não têm nada a partilhar, do outro
apresentada de forma que possa ser falsificada, ou seja, lado o método dialético é um subentendimento e
absolutização do método científico.
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No método científico com efeito não se tem A contraposição entre ciências sociais e ciências
como pretendem os dialéticos, nem uma produção naturais verifica-se unicamente porque, amiúde, não se
necessária da “síntese” nem a conservação necessária, entendem o método e o procedimento das ciências
nesta, da “tese” e da “antítese”. naturais. E o fato de que as ciências sociais sejam dessa
Além disso, Popper ainda diz que, enquanto natureza, ou seja, da mesma natureza que as ciências
teoria descritiva, a dialética se resume na banalidade do físicas, implica que, no plano da tecnologia social,
tautológico, ou então se qualifica como teoria que procede-se na solução dos problemas mais urgentes
permite justificar tudo, pois, não sendo falsificável, ela mediante uma série de experimentos, dispostos de
escapa à prova da experiência. Em essência, embora modo a corrigir objetivos e meios com base nos
parecendo onipotente, a dialética, na realidade, nada resultados conseguidos.
pode. Pois bem, com base nessa premissa, vejamos os
pontos básicos da conhecida obra de Popper, intitulada A sociedade aberta
A miséria do historicismo.
Esse ensaio concentra-se na crítica ao Desse modo, as teses metodológicas do
historicismo e ao holismo, na defesa da unidade historicismo, segundo Popper, constituem o suporte
fundamental do método cientifico nas ciências naturais teórico mais válido das ideologias totalitárias. E ele
e nas ciências sociais, e na consequente proposta de procura provar essa opinião nos dois volumes de A
uma tecnologia social racional, ou seja, gradualista. sociedade aberta e seus inimigos.
Segundo os historicistas, a função das ciências sociais Com essa obra, Popper passa da crítica
deveria ser a de captar as leis de desenvolvimento da metodológica ao ataque ideológico contra o
evolução da história humana, de modo que se possa historicismo, visto como filosofia reacionária e como
prever seus desdobramentos posteriores. defesa da “sociedade fechada” contra a “sociedade
Mas Popper sustenta que tais profecias aberta”, ou seja, como defesa de uma sociedade
incondicionadas não têm nada a ver com as predições totalitária concebida organicamente e organizada
condicionadas da ciência. O historicismo é capaz tribalmente segundo normas não modificáveis.
apenas de pretensiosas profecias políticas. Ao contrário, a sociedade aberta, em sua
concepção, configura-se inversamente como sociedade
Crítica do “holismo” baseada no exercício crítico da razão humana, como
sociedade que não apenas tolera mas também estimula,
O holismo é a concepção segundo a qual seria em seu interior e por meio das instituições
possível captar intelectualmente a totalidade de um democráticas, a liberdade dos indivíduos e dos grupos
objeto, de um acontecimento, de um grupo ou de uma tendo em vista a solução dos problemas sociais, ou seja,
sociedade e, paralelamente, do ponto de vista prático, tendo em vista reformas continuas.
ou melhor, político, transformar tal totalidade. Contra Mais precisamente, Popper concebe a
essa concepção holística, Popper observa que: democracia como a conservação e o aperfeiçoamento
a) por um lado, é grave erro metodológico continuo de determinadas instituições, particularmente
pensar que nós podemos compreender a totalidade, até as que oferecem aos governados a possibilidade efetiva
do menor e mais insignificante pedaço de mundo, visto de criticar seus governantes e substitui-los sem
que todas as teorias captam e não podem captar mais derramamento de sangue. Mas, com isso, Popper não
do que aspectos seletivos da realidade, e são por quer dizer que, precisamente por ser tal, o democrático
princípio sempre falsificáveis e, sempre por princípio, deva aceitar a subida dos totalitários ao poder.
infinitas em número; Escreve Popper: “A democracia apresenta um
b) do ponto de vista prático e operativo, o campo de batalha precioso para qualquer reforma
holismo se resolve no utopismo no que se refere à razoável, dado que permite a realização de reformas
tecnologia social, e no totalitarismo no que se refere à sem violência. Mas, se a defesa da democracia não se
prática política. tornar a preocupação predominante em toda batalha
Como se pode ver, Popper desenvolve a crítica particular travada nesse campo maior de batalha, as
ao historicismo e ao holismo em nome da unidade tendências antidemocráticas latentes, que sempre estão
fundamental do método cientifico que deve existir, presentes - e que recorrem aos que padecem dos efeitos
tanto nas ciências naturais como nas ciências sociais. Na estressantes da civilização -, podem provocar a
opinião do autor, as ciências procedem segundo o derrocada da democracia. Se a compreensão desses
modelo delineado na lógica da descoberta cientifica. Ou princípios ainda não estiver suficientemente
seja, procedem através da elaboração de hipóteses que desenvolvida, é preciso promovê-la. A linha política
formulamos para resolver os problemas que nos oposta pode ser fatal, pois pode implicar na perda da
preocupam e que é preciso submeter à prova da batalha mais importante, que é a batalha pela própria
experiência. democracia.

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Para Popper é democrática a sociedade que Por outro lado, a filosofia hegeliana, centrada
possui instituições democráticas. Mas é preciso ficar sobre a ideia de um inexorável desenvolvimento
atento, adverte ele, pois as instituições são como uma dialético da história e sobre o pressuposto da identidade
fortaleza: resistem se a guarnição for boa. entre o real e o racional, nada mais é do que a
justificação e a apologia do Estado prussiano e do
Fé na liberdade e na razão mito da horda.

Além disso, para Popper, os maiores ideais


humanitários são constituídos pela justiça e pela
liberdade. Mas ele constrói uma hierarquia em que a
liberdade vem antes da justiça, já que, em uma
sociedade livre, mediante a crítica intensa e reformas
sucessivas, também se poderá caminhar para a justiça,
ao passo que, na sociedade fechada, na tirania ou na
ditadura, onde não é possível a crítica, a justiça
tampouco será alcançada: aqui, haverá sempre a classe
privilegiada dos servos do tirano.
Para concluir, devemos dizer que, por trás de
tudo isso, por trás dessa defesa racional e apaixonada das
instituições democráticas, existe o que Popper chama
de fé na razão.
O racionalismo atribui valor à argumentação Popper vê no hegelianismo o arsenal conceitual
racional e à teoria, bem como ao controle com base na dos movimentos totalitários modernos: do nazismo e
experiência. Mas essa decisão em favor do racionalismo, da nefasta fé fascista, doutrina materialista e ao mesmo
por seu turno, não se pode demonstrar pela tempo mística, totalitária e simultaneamente tribal. E é
argumentação racional e pela experiência. ainda do hegelianismo que, segundo Popper, brotam os
Ainda que se possa submetê-la à discussão, ela piores aspectos do marxismo, ou seja, seu historicismo (a
repousa em ótima análise na decisão irracional, na fé, na pretensão de ter descoberto as leis que guiariam de
razio. Mas essa opção em favor da razão não é de ordem modo ferrenho toda a história humana) e seu
puramente intelectual, e sim de ordem moral. Ela totalitarismo.
condiciona toda a nossa atitude em relação aos outros O materialismo histórico (é a “estrutura
homens e em relação aos problemas da vida social. E econômica” que determina a “superestrutura
está estreitamente relacionada à fé na racionalidade do ideológica”) é uma absolutização metafísica de um
homem, no valor de cada homem. O racionalismo pode aspecto da realidade; a dialítica é um mito; e, além disso,
se acompanhar de uma atitude humanitária, muito os próprios marxistas proibiram as componentes
melhor do que o irracionalismo, com sua rejeição da teóricas do marxismo, que eram científicas, de se
igualdade dos direitos. Naturalmente, os indivíduos desenvolverem como ciência, uma vez que, diante das
humanos em particular são desiguais sob muitos refutações históricas da teoria, eles procuraram proteger
aspectos. a teoria com hipóteses ad hoc (compensam anomalias não
Isso, porém, não está em contraste com a previstas pelas teorias em sua forma original, ainda não
exigência de que todos sejam tratados do mesmo modo modificada), comportando-se como o médico que, em
e de que todos tenham direitos iguais. A igualdade vez de salvar o paciente, procura salvar com vários
diante da lei não é um fato, e sim uma instância política subterfúgios o seu diagnóstico, matando o paciente.
que repousa sobre uma opção moral. A fé na razão, A pergunta justa de teoria da política, diz
inclusive na razão dos outros, implica a ideia de Popper, não é: “quem deve comandar?”, porque
imparcialidade, de tolerância, de rejeição de toda nenhum homem, nenhum grupo, nenhuma raça e
pretensão autoritária. nenhuma classe pode arrogar-se o direito natural de
domínio sobre os outros. A pergunta justa é antes:
Os inimigos da sociedade aberta “como é possível controlar quem comanda e substituir
os governantes sem derramamento de sangue?” Este é
Justamente por isso Popper combate a sociedade o delineamento de quem constrói, aperfeiçoa e defende
fechada, ou seja, o Estado totalitário, teorizado em as instituições democráticas em favor da liberdade e dos
tempos e contextos diversos por pensadores como direitos de cada um e, portanto, de todos. E o
Platão, Hegel e Marx. Platão foi o Judas de Sócrates e delineamento de todos os que prezam de coração a
propôs, na opinião de Popper, um Estado petrificado, sociedade aberta.
estruturado sobre urna rígida divisão das classes e
dirigido pelo domínio exclusivo dos filósofos-reis.
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3.4 THOMAS KUHN tentativa esforçada e devotada de forçar a natureza


dentro dos quadros conceituais fornecidos pela
O conceito de “paradigma” educação profissional”.
Significa a pesquisa estavelmente baseada em
Thomas S. Kuhn integra a luta de conhecidos um ou mais resultados alcançados pela ciência do
epistemólogos pós-popperianos que desenvolveram passado, aos quais uma comunidade cientifica
suas teorias epistemológicas em contato sempre mais particular, por certo período de tempo, reconhece a
estreito com a história da ciência. capacidade de constituir o fundamento de sua práxis
ulterior.
Essa práxis ulterior - a ciência normal - consiste
em tentar realizar as promessas do paradigma,
determinando os fatos relevantes (para o paradigma),
confrontando (por exemplo, mediante medidas sempre
mais exatas) os fatos com a teoria, articulando os
conceitos da própria teoria, ampliando os campos de
aplicação da teoria.
Fazer ciência normal, portanto, significa
resolver quebra-cabeças, isto é, problemas definidos
pelo paradigma, que emergem do paradigma ou que se
inserem no paradigma, razão por que o insucesso da
solução de um quebra-cabeças não é visto como
insucesso do paradigma, mas muito mais como
insucesso do pesquisador, que não soube resolver uma
questão para a qual o paradigma diz (e promete) que
existe solução.
Em 1963 Kuhn publicou o livro A estrutura das
revoluções cientificas, sustentando que a comunidade
científica se constitui através da aceitação de teorias que
Kuhn chama de paradigmas. “Com esse termo –
escreve ele -, quero indicar conquistas científicas
universalmente reconhecidas, que por certo período
fornecem um modelo de problemas e soluções
aceitáveis aos que praticam certo campo de pesquisas”.
Na realidade, Kuhn utiliza o termo paradigma
em mais de um sentido. Entretanto, ele próprio explica
que a função do paradigma é hoje cumprida pelos
manuais científicos, por meio dos quais o jovem
estudante é iniciado na comunidade científica;
antigamente isso era realizado pelos clássicos da ciência,
como a Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu,
os Principia e a Ótica de Newton, a Eletricidade de
Franklin ou a Química de Lavoisier. Por essa razão, a
astronomia ptolemaica (ou a copernicana), a dinâmica
aristotélica (ou a newtoniana) são todas paradigmáticas, a Essa é situação análoga à do jogador de xadrez
exemplo do fixismo de Lineu, da teoria da evolução de que, quando não soube resolver um problema e perde,
Darwin ou da teoria da relatividade de Einstein. acha que isso aconteceu porque ele não é capaz, e não
porque as regras do xadrez não funcionam.
“Ciência normal” e “ciência extraordinária” A ciência normal, portanto, é cumulativa
(constroem-se instrumentos mais potentes, efetuam-se
Assim como uma comunidade religiosa pode medidas mais exatas, precisam-se os conceitos da teoria,
ser reconhecida pelos dogmas específicos em que amplia-se a teoria a outros campos etc.) e o cientista
acredita, ou como um partido político agrega seus normal não procura a novidade. No entanto, a novidade
membros em torno de valores e finalidades específicos, deve aparecer necessariamente, pela razão de que a
da mesma forma é uma teoria paradigmática a que articulação teórica e empírica do paradigma aumenta o
institui uma comunidade científica, a qual, por força e conteúdo informativo da teoria e, portanto, a expõe ao
no interior dos temas paradigmáticos, realiza o que risco do desmentido (com efeito, quanto mais se diz,
Kuhn chama de ciência normal. A ciência normal é “a mais se está arriscado a errar; quem não diz nada, não

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erra nunca; se fala pouco, arrisca-se a cometer poucos A “passagem” de um paradigma para outro
erros).
Tudo isso explica as anomalias que, em dado Na realidade, Kuhn afirma que “a transferência
momento, a comunidade cientifica tem de enfrentar e da confiança de um paradigma para outro é uma
que, resistindo aos reiterados assaltos paradigmáticos, experiência de conversão que não pode ser imposta pela
determinam a crise do paradigma. força”.
Com a crise do paradigma inicia-se o período de Mas então por que, e em que bases, se verifica
ciência extraordinária: o paradigma é submetido a um essa experiência de conversão?
processo de desfocamento, os dogmas são postos em Os cientistas em particular abraçam um novo
dúvida e, consequentemente, suavizam-se as normas paradigma por todo tipo de razões e, habitualmente,
que governam a pesquisa normal. por várias razões ao mesmo tempo. Algumas dessas
Em suma, postos diante de anomalias, os razões - como, por exemplo, o culto ao sol, que
cientistas perdem a confiança na teoria que antes contribuiu para converter Kepler ao copernicanismo -
haviam abraçado. A perda de um sólido ponto de encontram- se completamente fora da esfera da ciência.
partida se expressa pelo recurso à discussão filosófica Outras razões podem depender de idiossincrasias
sobre os fundamentos e a metodologia. Esses são os autobiográficas e pessoais.
sintomas da crise, que cessa quando, do cadinho Até a nacionalidade ou a reputação anterior do
daquele período de pesquisa desconjuntada que é a inovador e de seus mestres pode, por vezes,
ciência extraordinária, um novo paradigma consegue desempenhar papel importante.
emergir, e sobre ele se articulará novamente a ciência Provavelmente, a pretensão mais importante
normal, que, por seu turno, depois de um período de posta pelos defensores de um novo paradigma seja a de
tempo talvez bastante longo, levará a novas anomalias, estar em condições de resolver os problemas que
e assim por diante. levaram o velho paradigma à crise. Quando pode ser
posta legitimamente, essa pretensão constitui
As revoluções científicas frequentemente a argumentação a favor mais eficaz.
Além disso, deve-se considerar que, por vezes,
Kuhn descreve a passagem a um novo a aceitação de um novo paradigma não se deve ao fato
paradigma (da astronomia ptolemaica à copernicana, de que ele resolve os problemas que o velho paradigma
por exemplo) como urna reorientação gestáltica: não consegue resolver, e sim a promessas que dizem
quando abraça um novo paradigma, por exemplo, a respeito a outros campos. E existem até razões estéticas
comunidade cientifica manipula o mesmo número de que introduzem um cientista ou um grupo de cientistas
dados que antes, mas inserindo-os em relações a aceitar um paradigma. Entretanto, Kuhn afirma que
diferentes de antes. Além disso, a passagem de um nos debates sobre os paradigmas não se discutem
paradigma a outro, para Kuhn, é o que constitui uma realmente suas respectivas capacidades para resolver os
revolução científica. Mas - e esse é um dos problemas problemas, ainda que, com razão, normalmente sejam
mais candentes suscitados por Kuhn - como ocorre a utilizados termos que a eles se refiram.
passagem de um paradigma para outro? Essa passagem O ponto em discussão, ao contrário, consiste
realiza-se por motivos racionais ou não? em decidir que paradigma deve guiar a pesquisa no
futuro, em torno de problemas que, muitas vezes,
Pois bem, Kuhn afirma que “paradigmas nenhum dos dois competidores pode ainda pretender
sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre os objetos seja capaz de resolver completamente. É preciso decidir
que povoam o universo e sobre o comportamento de entre formas alternativas de desenvolver a atividade
tais objetos”. E “precisamente por se tratar de urna científica e, dadas as circunstâncias, essa decisão deve-
passagem entre incomensuráveis, a passagem de um se basear mais nas promessas futuras do que nas
paradigma para outro, oposto, não se pode realizar com conquistas passadas.
um passo cada vez, nem imposto pela lógica ou por Quem abraça um novo paradigma desde o
uma experiência, neutra. Como a reorientação início, frequentemente o faz a despeito das provas
gestáltica, ela deve se dar toda de uma vez (ainda que fornecidas pela solução dos problemas. Ou seja, ele
não em um só instante), ou então não se realizará de deve ter confiança de que o novo paradigma, no futuro,
modo nenhum”. conseguira resolver muitos dos vastos problemas que
Assim, talvez Max Planck tenha razão quando, tem à sua frente, sabendo somente que o velho
em sua Autobiografia, fez questão de observar com paradigma não conseguiu resolver alguns. Uma decisão
tristeza que “uma nova verdade cientifica não triunfa desse tipo pode ser tomada apenas com base na fé.
convencendo seus opositores e fazendo-lhes ver a luz, Assim, para que um paradigma possa triunfar,
e sim muito mais porque seus opositores acabam por deve primeiro conquistar (as vezes, com base em
morrer, e cresce uma nova geração a ela habituada”. considerações pessoais ou em considerações estéticas
inarticuladas) “alguns defensores, que o desenvolverão
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até um ponto em que muitas argumentações sólidas 3.5 PAUL FEYERABEND


poderão ser produzidas e multiplicadas. Mas, quando
existem, essas argumentações também não são O livro de Feyerabend (1924-1994) Contra o
individualmente decisivas. Visto que os cientistas são método (1970) foi escrito na convicção de que “o
homens racionais, uma ou outra argumentação acabará anarquismo, embora não sendo talvez a filosofia política
por persuadir muitos deles. Não existe, porém, mais atraente, é sem dúvida um excelente remédio para
nenhuma argumentação em particular que possa ou a epistemologia e para a filosofia da ciência”.
deva persuadir a todos. O que se verifica não é tanto
uma única conversão de grupo, e sim muito mais um
progressivo deslocamento da distribuição da confiança
dos especialistas”.

O desenvolvimento ateleológico da ciência

Pergunta-se, porém: a passagem de um


paradigma para outro implica em progresso?
O problema é complexo. Entretanto, somente
durante os períodos de “ciência normal” é que o
progresso parece evidente e seguro, ao passo que
durante os períodos de revolução, quando as doutrinas
fundamentais de um campo estão mais uma vez em
discussão, surgem repetidamente dúvidas sobre a
possibilidade de continuação do progresso, se for
adotado este ou aquele dos paradigmas que se
confrontam.
Naturalmente, quando um paradigma se afirma,
seus defensores o encaram como progresso. Mas Kuhn
pergunta: progresso em que direção? Com efeito, diz ele,
o processo que vemos na evolução da ciência é um
processo de evolução a partir de estágios primitivos, o
que não significa, porém, que tal processo leve a
pesquisa sempre para mais perto da verdade ou em Em essência, segundo Feyerabend, é preciso
direção a algo. abandonar a quimera de que as normas “ingênuas e
“Seria necessário existir tal objetivo?” - simplistas” propostas pelos epistemólogos podem
pergunta-se ele -. Não é possível explicar a existência da explicar o “labirinto de interações” apresentado pela
ciência como o seu sucesso em termos de evolução a história real. A história em geral e a história das
partir do estado do conhecimento possuído pela revoluções em particular são sempre mais ricas em
comunidade em cada dado período de tempo? conteúdos, mais variadas, mais multilaterais, mais vivas
Adiantará verdadeiramente alguma coisa e mais ‘astutas’ do que pode ser imaginado até pelo
imaginar que exista uma explicação da natureza melhor historiador e pelo melhor metodólogo”.
completa, objetiva e verdadeira, e que a medida Consequentemente, o anarquismo
apropriada da conquista cientifica é a medida em que epistemológico de Feyerabend consiste na tese de que a
ela se aproxima desse objetivo final? Se aprendermos a ideia de um método que contenha princípios estáticos,
substituir a evolução na direção daquilo que queremos imutáveis e absolutamente obrigatórios como guia para
conhecer pela evolução a partir daquilo que a atividade cientifica se defronta com dificuldades
conhecemos, grande número de inquietantes problemas consideráveis quando é posta diante dos resultados da
pode se dissolver no curso desse processo. pesquisa histórica.
Assim como na evolução biológicas, também na Podemos ver que não existe uma norma isolada,
evolução da ciência nos encontramos diante de um por mais plausível e por mais solidamente radicada na
processo que se desenvolve constantemente a partir de epistemologia, que não tenha sido violada em alguma
estágios primitivos, mas que não tende a nenhum circunstância.
objetivo. Também se torna evidente que tais violações
não são acontecimentos acidentais, e que não são
resultado de um saber insuficiente ou de desatenções
que teriam podido ser evitadas. Ao contrário, vemos

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que tais violações são necessárias para o progresso adequadamente interpretados enquanto suas origens
científico. sociais permanecerem obscuras”.
Uma das características que mais chamam a A consciência do condicionamento social das
atenção nas recentes discussões sobre a história e a categorias e das produções mentais não é coisa recente.
filosofia da ciência é a tomada de consciência do fato de Assim, apenas para citar alguns pensadores do passado,
que acontecimentos e desdobramentos como a a teoria dos idola de Bacon é exemplo da consciência do
invenção do atomismo na antiguidade, a revolução condicionamento social do pensamento.
copernicana, o advento da teoria atômica moderna
(teoria cinética, teoria da dispersão, estereoquimica,
teoria quântica) e o surgimento gradual da teoria
ondulatória da luz só se verificaram porque alguns
pensadores decidiram não se deixar obrigar por certas
normas metodológicas “óbvias”, ou porque as
violaram involuntariamente.
Tal liberdade de ação, segundo Feyerabend, não
é somente um fato da história da ciência. Ela é tão
racional quanto absolutamente necessária para o
crescimento do saber. Mais especificamente, pode-se
demonstrar o seguinte: dada uma norma qualquer, por
mais “fundamental” ou “necessária” que ela seja para a
ciência, há sempre circunstâncias nas quais é oportuno
não somente ignorar a norma, mas também adotar seu
oposto.
Por exemplo, há circunstâncias nas quais é Mas essa consciência também pode ser
aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses encontrada em Malebranche, Pascal, Voltaire,
ad hoc (compensam anomalias não previstas pelas teorias Montesquieu, Saint-Simon e, mais recentemente, em
em sua forma original, ainda não modificada), ou Nietzsche. Foi Maquiavel quem observou que se pensa
hipóteses cujo conteúdo seja menor em relação ao das de um modo na praça e de outro no palácio. E Marx, por
hipóteses alternativas existentes e empiricamente seu turno, estabeleceu como um dos fulcros de seu
adequadas, ou ainda, hipóteses autocontraditórias etc. pensamento a ideia de que “não é a consciência dos
Há inclusive circunstâncias - que, aliás, se homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o
verificam bastante frequentemente - nas quais o seu ser social que determina sua consciência”.
raciocínio perde seu aspecto orientado para o futuro, Pois bem, a sociologia do conhecimento assume
tornando-se até obstáculo para o progresso. e modifica criticamente essa conhecida afirmação de
Marx, no sentido de que, sem negar que exista a
3.6 KARL MANNHEIM influência da sociedade sobre o pensamento, a
sociologia do conhecimento considera que essa
Concepção parcial e total da ideologia influência não é determinação, e sim condicionamento.
Para Mannheim, o marxismo viu claramente
Aqui, delinearemos os traços de fundo das que por trás de toda doutrina se encerra a consciência
teorias de Karl Mannheim (1893-1947), o pensador que, de uma classe. Esse pensamento coletivo, que procede
mais do que qualquer outro, contribuiu (com seu de acordo com determinados interesses e situações
trabalho Ideologia e utopia, 1929) para a proposição dos sociais, Marx o chamou de ideologia.
problemas típicos da sociologia do conhecimento. Em Marx, a ideologia é um pensamento
A sociologia do conhecimento ou sociologia do subvertido (não são as ideias que dão sentido a
saber estuda os condicionamentos sociais do saber, realidade, mas sim a realidade social que determina as
“procurando analisar a relação entre conhecimento e ideias morais, religiosas, filosóficas etc.) e distorcido (o
existência”. burguês, por exemplo, propõe suas ideias como
O fato de pertencer a determinada classe, como, universalmente validas, embora elas sejam somente a
por exemplo, a classe burguesa ou proletária, implica o defesa de interesses particulares), que tende a justificar
que para as ideias morais, religiosas, políticas, e manter uma situação de fato.
econômicas, ou para o próprio modo de fazer ciência É a partir da concepção marxista de ideologia
de quem a ela pertence? E como são condicionadas as que Mannheim começa a tecer a rede de seus conceitos.
produções mentais de quem pertence a uma Igreja, a Antes de mais nada, ele distingue entre concepção
uma camada social, a um partido ou a uma geração em particular da ideologia e concepção total. Escreve
função dessa participação? Na realidade, escreve Mannheim que, “na primeira, incluímos todos aqueles
Mannheim, “há aspectos do pensar que não podem ser
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casos em que a ‘falsidade’ deve-se a um elemento que, invalidar a concepção burguesa do mundo não porque
intencional ou não, consciente ou inconsciente, ela seja um “engano político deliberado”, e sim porque
permanece em nível psicológico e não supera o plano determinada por uma situação social precisa. A
da simples mentira”. cosmovisão burguesa é filha direta de uma situação
Nessa concepção particular de ideologia, nos histórica e social. Mas, se o condicionamento social vale
referimos sempre a afirmações especificas que podem para o pensamento burguês, pergunta-se Mannheim,
ser vistas como deformações e falsificações, sem que não valerá também para o pensamento marxista?
por isso fique comprometida a integridade da estrutura Escreve Mannheim: “Pode-se mostrar
mental do sujeito. facilmente que aqueles que pensam em termos
Mas a sociologia do conhecimento socialistas e comunistas só identificam o elemento
problematiza precisamente essa estrutura mental em ideológico nas ideias de seus adversários, ao passo que
sua totalidade, tal como ela aparece nas diversas consideram suas próprias ideias como inteiramente
correntes de pensamento e nos vários grupos histórico- livres da deformação ideológica. Como sociólogos, não
sociais. Em outros termos, a sociologia do saber não temos nenhuma razão para deixar de aplicar ao
critica as simples afirmações que camuflam situações marxismo o que ele próprio descobriu, e para não
particulares; ao contrário, ela muito mais “as examina identificar, caso por caso, seu caráter ideológico”. E
em plano estrutural ou noológico, que não se apresenta precisamente quando alguém “tem a coragem de
de modo algum igual em todos os homens, mas é tal submeter não só o ponto de vista do adversário, mas
que a mesma realidade assume diversas formas e qualquer ponto de vista, inclusive o seu próprio, a
aspectos no curso do desenvolvimento social. análise ideológica, então se passa da crítica da ideologia à
sociologia do conhecimento propriamente dita. Sociologia do
conhecimento que realiza também outra distinção: a
distinção entre ideologia e utopia.

A concepção particular da ideologia mantém


suas analises “em nível puramente psicológico”,
enquanto a concepção total da ideologia refere-se à
ideologia de uma época ou de um grupo histórico-
social, como uma classe. A concepção total chama em
causa toda a cosmovisão da oposição (inclusive todo o
seu instrumento conceitual), compreendendo tais
conceitos como produto da vida coletiva de que Por ideologia, diz Mannheim, entendem-se “as
participa. Desmascaramos a ideologia parcial quando, convicções e ideias dos grupos dominantes, os fatores
por exemplo, dizemos ao adversário que essa sua ideia inconscientes de certos grupos que ocultam o estado
é somente uma defesa do seu posto de trabalho ou deste real da sociedade para si e para outros, exercendo,
ou daquele privilégio social, e estou descobrindo uma portanto, sobre ele função conservadora”.
ideologia total quando constato correspondência entre Já o conceito de utopia mostra uma segunda e
uma situação social e determinada perspectiva ou inteiramente oposta descoberta: “Existem grupos
consciência coletiva. subordinados tão fortemente empenhados na
transformação de determinada condição social, que só
O marxismo é “ideológico”? A distinção entre conseguem perceber na realidade os elementos que eles
ideologia e utopia tendem a negar. Seu pensamento é incapaz de um
diagnóstico correto da sociedade presente”.
Marx utilizou unilateralmente a descoberta do O pensamento de tais grupos nunca constitui
condicionamento social do pensamento. Ele procurou uma visão objetiva da situação, podendo ser usado

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somente como diretriz para a ação. É pensamento que conhecimento (ou seja, o condicionamento social do
dá as costas a tudo o que poderia ameaçar sua convicção pensamento) não leva necessariamente ao relativismo?
profunda ou paralisar seu desejo de revolução. São problemas que não podem ser evitados. E
Portanto, enquanto a ideologia é o pensamento Mannheim os enfrenta e tenta resolvê-los com sua
conservador que se ergue em defesa dos interesses teoria da intellighentzia e, vinculada a ela, a teoria do
adquiridos, a utopia é o pensamento voltado a destruir a relacionismo.
ordem existente. Assim, para Mannheim, a utopia é um O pensamento é socialmente condicionado, diz
projeto realizável; trata-se de uma “verdade prematura”. Mannheim, mas, consciente dos condicionamentos do
De tais utopias, também elas obviamente seu pensamento e dos condicionamentos das outras
condicionadas socialmente, Mannheim analisa quatro concepções do mundo, o intelectual, precisamente com
formas: base nesta sua consciência, conseguiria se desvincular
1) o quiliasmo orgiástico dos anabatistas; do condicionamento social.
2) o ideal liberal-humanitário que guiou o Em suma, na sua opinião, a intellighentzia seria
movimento da Revolução Francesa; um grupo relativamente independente daqueles
3) o ideal conservador; interesses sociais que interferem nas concepções de
4) a utopia socialista-comunista. mundo dos outros grupos, limitando-as. Em suma,
A ideologia é o pensamento da classe conscientes dos laços entre as diversas cosmovisões e a
“superior”, que detém o poder e procura não perdê-lo; existência social, os intelectuais estariam em condições
a utopia é o pensamento da classe “inferior”, que visa de chegar a “uma síntese das virias perspectivas” e,
libertar-se das opressões e tomar o poder. portanto, a uma visão mais objetiva da realidade. Daí a
teoria do relacionismo.
O “relacionamento” evita o “relativismo” Escreve Mannheim: “A sociologia do
conhecimento submete consciente e sistematicamente
Se o pensamento é socialmente condicionado, todo fenômeno intelectual, sem exceção, à pergunta:
então também a sociologia do conhecimento deve ser em relação a que estrutura social tais fenômenos
socialmente condicionada. E Mannheim está pronto a nascem e são válidos? A referência das ideias individuais
reconhecer esse condicionamento. Podemos a toda a estrutura histórico-social não deveria ser
identificar, com relativa precisão, as condições que confundida com um relativismo filosófico, que nega a
impelem as pessoas a refletir mais sobre o pensamento validade de todo modelo e a existência de uma ordem
do que sobre as coisas do mundo e mostrar que, nesse no mundo. Assim como o fato de que toda medida no
caso, não se faz tanta questão de uma verdade absoluta, espaço depende da natureza da luz não significa que
e sim muito mais do fato, em si mesmo alarmante, da nossas medidas sejam arbitrárias, e sim que elas são
mesma realidade que se apresenta diversamente para válidas em relação à luz, da mesma forma é o
diferentes observadores. relacionismo que se aplica às nossas discussões, e não o
Mannheim vê na base da gênese da sociologia relativismo e a arbitrariedade a ele implícita. O
do conhecimento “a intensificação da mobilidade relacionismo não significa que faltem critérios de
social”. Trata-se de uma mobilidade vertical e verdade na discussão. Segundo ele, entretanto, é
horizontal: a horizontal é “o movimento de uma próprio da natureza de certas afirmações o não
posição a outra ou de um lugar a outro, sem que ocorra poderem ser formuladas em absoluto, mas somente nos
mudança no estado social”; a vertical, ao contrário, termos da perspectiva posta por determinada situação”.
consiste em “rápido movimento entre as diversas Ora, considerando precisamente o exemplo
camadas, no sentido de ascensão ou de declínio social”. escolhido por Mannheim, podemos logo ver que há
Um e outro tipo de mobilidade contribuem para uma diferença abissal entre a relatividade dos
tornar as pessoas incertas em relação a sua concepção conhecimentos fornecidos pelas ciências naturais e o
do mundo e a destruir a ilusão, dominante nas relativismo das várias perspectivas em que,
sociedades estáticas, de que “tudo pode mudar, mas o habitualmente, se faz caminhar a sociologia do
pensamento permanece eternamente o mesmo”. Aí, conhecimento. Todo conhecimento cientifico é relativo
portanto, está a raiz social da sociologia do a época em que é proposto e provado: depende do
conhecimento: a dissolução das sociedades estáveis. saber anterior, dos instrumentos disponíveis na época
Chegando-se a esse ponto, resta enfrentar o etc. Entretanto, quando respeitadas as condições do
principal problema da sociologia do conhecimento. método cientifico, as teorias cientificas são universais e
Com efeito, se todo pensamento é socialmente válidas para todos, ainda que desmentíeis em período
condicionado, e se toda concepção do mundo é relativa posterior.
à condição social de seu portador, então onde está a O trabalho de Mannheim levantou toda uma
verdade? Não há mais nenhum critério para distinguir série de problemas, sobre os quais trabalharia
concepções verdadeiras de concepções falsas? O posteriormente a sociologia empírica, tanto européia
pressuposto fundamental da sociologia do como norte-americana.
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4. PRAGMATISMO No ensaio de 1877 A


O pragmatismo é a forma que o empirismo fixação da crença Peirce sustenta
assumiu nos Estados Unidos que os métodos para fixar a
crença são substancialmente
O pragmatismo nasceu nos Estados Unidos nas redutíveis a quatro:
últimas décadas do século passado, e sua força de
expressão, tanto na América quanto na Europa, chegou 1) o método da tenacidade;
a seu ponto máximo nos primeiros quinze anos do 2) o método da autoridade;
século XX. Do ponto de vista sociológico, o 3) o método do a priori;
pragmatismo representa a filosofia de uma nação 4) por fim, o método
voltada com confiança para o futuro, enquanto do científico.
ponto de vista da história das ideias ele se configura
como a contribuição mais significativa dos Estados 1) O método da tenacidade
Unidos à filosofia ocidental. O pragmatismo é a forma é o comportamento do
que o empirismo tradicional assumiu nos Estados avestruz, que esconde a cabeça
Unidos. na areia quando se aproxima o
perigo; é o caminho de quem está seguro somente na
aparência, ao passo que, em seu interior, está
espantosamente inseguro. E tal insegurança emerge
quando ele se defronta com outras crenças, reputadas
igualmente boas por outros. O impulso social, escreve
Peirce, é contra esse método.
2) O método da autoridade é o de quem, com a
ignorância, o terror e a inquisição, quer alcançar a
concordância de quem não pensa igual ou não pensa em
harmonia com o grupo ao qual pertence.
Este é um método que tem incomensurável
Com efeito, enquanto o empirismo tradicional, superioridade mental e moral sobre o método da
de Bacon a Locke, de Berkeley a Hume, considerava tenacidade, e seu sucesso tem sido grande e de fato
válido o conhecimento baseado na experiência e a ela sempre apresentou os mais majestosos resultados; este
redutível - concebendo a experiência como a é o método das fés organizadas. Mas nenhuma de tais
acumulação e organização progressiva de dados fés organizadas permaneceu eterna; na opinião de
sensíveis passados ou presentes -, para o pragmatismo Peirce, a crítica as corroeu e a história as redimensionou
a experiência é abertura para o futuro, é previsão, é e, de qualquer forma, as particularizou.
norma de ação. 3) O método do “a priori” é o de quem considera
Os representantes mais prestigiosos do que suas próprias proposições fundamentais estão de
movimento pragmatista nos Estados Unidos foram: acordo com a razão. Entretanto, observa Peirce, a razão
Charles Peirce, William James e John Dewey. de um filósofo não é a razão de outro filósofo, como o
demonstra a história das ideias metafísicas. O método a
4.1 CHARLES S. PEIRCE E OS priori leva ao insucesso, porque faz da pesquisa algo
PROCEDIMENTOS PARA FIXAR AS semelhante ao desenvolvimento do gosto, visto ser
CRENÇAS método que não difere de modo essencial do método
da autoridade.
Se o pragmatismo de William James teve mais 4) Assim, por um ou outro motivo, os três
sucesso na época, no entanto o pragmatismo de Charles métodos precedentes (da tenacidade, da autoridade e do
S. Peirce (1839-1914) exerceu e ainda em nossos dias a priori) não se sustentam.
exerce influência decididamente mais importante sobre Se quisermos estabelecer validamente as nossas
as pesquisas metodológicas e semiológicas. crenças, segundo Peirce, o método correto é o método
Para Peirce, o conhecimento é pesquisa. E a cientifico.
pesquisa se inicia com a dúvida. E a irritação da dúvida
que causa a luta para se obter o estado de crença, que é Dedução, indução e abdução
um estado de calma e satisfação. E nós procuramos
obter crenças, já que são esses hábitos que determinam Ora, na ciência, temos três diferentes modos
as nossas ações. fundamentais de raciocínio:
Pois bem, por quais caminhos ou a) a dedução;
procedimentos se passa da dúvida à crença? b) a indução; e aquela que Peirce chama de
c) abdução.
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a) A dedução é o raciocínio que não pode levar 4.2 O EMPIRISMO RADICAL DE WILLIAM
de premissas verdadeiras a conclusões falsas. JAMES
b) A indução é argumentação que, a partir do
conhecimento de que certos membros de uma classe, O pragmatismo é apenas um método
escolhidos ao acaso, possuem certas propriedades,
conclui que todos os membros da mesma classe Apesar de James (1842-1910) ser laureado em
igualmente as terão. A indução, diz Peirce, move-se na medicina e ter ensinado fisiologia e anatomia em
linha de fatos homogêneos; classifica e não explica. Harvard, foi ele quem lançou o pragmatismo como
C) O salto da linha dos fatos para a das suas filosofia em 1898. O pragmatismo de fato foi recebido
razões, ao contrário, temos com o tipo de raciocínio que e conhecido pelo público mais amplo nas concepções
Peirce chama de abdução, cujo esquema é o seguinte: propostas por James. Foi sob a sua liderança que o
1. Observa-se C, um fato surpreendente. pragmatismo se tornou conhecido no mundo. Com ele
2. Mas, se A fosse verdadeiro, então C seria temos a versão moral e religiosa do pragmatismo.
natural.
3. Portanto, há razões para suspeitar que A seja
verdadeiro.
Esse tipo de argumentação nos diz que, para
encontrar a explicação de um fato problemático,
devemos inventar uma hipótese ou conjectura, da qual
se deduzam consequências, que, por seu turno, possam
ser verificadas indutivamente, isto é,
experimentalmente.
Esse é o modo pelo qual a abdução mostra-se
intimamente relacionada com a dedução e a indução.
Por outro lado, a abdução mostra que as crenças
cientificas são sempre falíveis, já que as provas
experimentais sempre poderão desmentir as
consequências de nossas conjecturas: “Para a mente
cientifica, a hipótese deve ser o tempo todo provada”.

Como tornar clara as nossas ideias: a regra


pragmática

O método válido para fixar as crenças, portanto, Afirma James: “O pragmatismo é apenas
é o método cientifico, que consiste em formular método” que se configura, em primeiro lugar, como
hipóteses e submetê-las à verificação, com base em suas uma atitude de pesquisa, como “a disposição de afastar
consequências. Por outro lado, a regra válida para a o olhar das coisas primeiras, dos princípios, das
teoria do significado, isto é, a regra adequada para ‘categorias’, das pretensas necessidades e, ao contrário,
estabelecer o significado de um conceito, é a regra voltar os olhos para as coisas ultimas, os resultados, as
pragmática, segundo a qual um conceito se reduz a seus consequências, os fatos”.
efeitos experimentais concebíveis; estes efeitos O pragmatismo é método para alcançar a
experimentais se reduzem, por sua vez, a ações clareza das ideias que temos dos objetos. E esse método
possíveis (ou seja, a ações efetuáveis no momento em nos impõe “considerar quais efeitos práticos
que se apresentar a ocasião); e a ação se refere concebíveis essa ideia pode implicar, quais sensações
exclusivamente a aquilo que atinge os sentidos. podemos esperar e quais reações devemos preparar.
Do que foi dito torna-se evidente que o Nossa concepção desses efeitos, tanto imediata como
pragmatismo de Peirce não reduz de modo algum a remota, é então toda a concepção que temos do objeto,
verdade à utilidade, mas se estrutura muito mais como enquanto ela tiver significado positivo”.
uma lógica da pesquisa ou uma norma metodológica
que vê a verdade como por fazer, no sentido de A verdade de uma ideia se reduz a sua capacidade
considerar verdadeiras as ideias cujos efeitos de “operar”
concebíveis são comprovados pelo sucesso prático,
sucesso jamais definitivo e absoluto. A verdade, escreve A este ponto, parece que as ideias de James
Peirce, jaz no futuro. sobre o pragmatismo (expostas no ensaio Pragmatismo,
de 1907) não diferem das de Peirce. No entanto, as
coisas não são bem assim: para James, as ideias (que são

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parte da nossa experiência) tornam-se verdadeiras a que se expressa como energia seletiva já no ato
medida que nos ajudam a obter relações satisfat6ria elementar da sensação.
com as outras partes de nossa experiência, e a resumi- Por isso tudo, a velha noção de alma já não
las por meio de esquemas conceituais. servia para James. Mas ele também criticava os
Uma ideia é verdadeira quando nos permite associacionistas, que reduziam a vida psíquica a
andar adiante e leva-nos de uma parte a outra de nossa combinação das sensações elementares, e criticava os
experiência, ligando as coisas de modo satisfatório, materialistas, com sua pretensão de identificar os
operando com segurança, simplificando, fenômenos psíquicos com os movimentos da matéria
economizando esforços. cerebral.
Esta, diz ainda James, “é a concepção A consciência se apresenta para James como
‘instrumental’ da verdade, ensinada com tanto sucesso corrente contínua: ele fala de uma corrente de
em Chicago, a concepção tão brilhantemente difundida pensamento. E a única unidade que se pode detectar na
em Oxford: a veracidade de nossas ideias significa sua corrente de pensamento é aquela pela qual o
capacidade de ‘operar’”. Desse modo, a veracidade das pensamento difere em cada momento do momento
ideias era identificada com sua capacidade de operar, anterior, apropriando-o juntamente com tudo o que
com sua utilidade, tendo em vista a melhoria ou a tornar este último chama de seu. A “experiência pura” aparece
menos precária a condição vital do indivíduo. para ele como “o imenso fluxo vital que fornece o
Além disso, para James “a verdade de uma ideia material para a nossa reflexão ulterior”. Para James, a
não está em sua estagnante propriedade”. relação sujeito-objeto é derivada.
Há um processo de verificação que torna Conceber a mente como instrumento de
verdadeira uma ideia. “Uma ideia torna-se verdadeira, é adaptação ao ambiente foi a ideia que levou James a
tornada verdadeira pelos acontecimentos. Sua ampliação do objeto de estudo da psicologia: esse
veracidade é de fato acontecimento, processo: mais objeto não diria mais respeito somente aos fenômenos
exatamente, o processo de seu verificar-se, sua perceptivos e intelectivos, e sim também aos
verificação. As ideias verdadeiras, segundo James, “são condicionamentos sociais ou fenômenos como os
as que podemos assimilar, ratificar, confirmar e concernentes ao hipnotismo, a dissociação ou ao
verificar. E falsas são aquelas em relação as quais não subconsciente. James apenas realizou análises refinadas
podemos fazer o mesmo”. e críticas agudas sobre esses temas, mas também
As ideias ou teorias verdadeiras, para James, são prenunciou muitas doutrinas que depois seriam
aproximações melhores do que as ideias anteriores, desenvolvidas pelo comportamentalismo, pela
resolvendo os problemas de modo mais satisfatório. E psicologia da Gestalt e pela psicanálise.
“a posse da verdade, longe de ser fim, é apenas meio
para outras satisfações vitais”. A questão moral: como escolher entre ideias
contrastantes
Os princípios da psicologia e os instrumentos da
adaptação Presente em diversos escritos de James, a
questão ética é enfrentada explicitamente em dois
Em 1890, James publicou os dois volumes que escritos fundamentais para sua concepção pragmática:
constituem os Princípios de psicologia. O filósofo moral e a vida moral (1891), e A vontade de crer
James considera que uma fórmula que prestou (1897). Neste último ensaio, James levanta questões
amplos serviços à psicologia foi a fórmula spenceriana, como a dos valores, que não podem ser decididas
segundo a qual “a essência da vida mental e a essência recorrendo às experiências sensíveis. As questões
da vida corporal são idênticas, ou seja, ‘a adaptação das morais, antes de tudo, não são tais que sua solução
relações internas as externas’ ”. Essa formula pode ser possa esperar prova sensível. Com efeito, uma questão
considerada a encarnação da generalidade – comenta moral não é uma questão do que existe, mas daquilo que
James - mas, “como considera o fato de que as mentes é bom ou seria bom que existisse.
vivem em ambientes que agem sobre elas e sobre as A ciência pode nos dizer o que existe ou não
quais elas por seu turno reagem, já que, em suma, ela existe. Mas, para as questões mais urgentes, devemos
põe a mente no concreto de suas relações, tal formula é consultar as “razões do coração”. Há decisões que todo
imensamente mais fértil do que a velha ‘psicologia homem não pode deixar de tomar, dizem respeito ao
racional’, que considerava a alma como coisa separada sentido último da vida, ao problema da liberdade
e autossuficiente, e pretendia estudar somente sua humana ou de sua falta, da dependência ou não no
natureza e prioridade”. mundo em relação a uma inteligência ordenadora e
Na realidade, James faz da mente um regente, da unidade monística ou não do mundo todas
instrumento dinâmico e funcional para a adaptação questões teoricamente insolúveis, que só se podem
ambiental. A vida psíquica caracteriza-se por finalismo enfrentar mediante escolha pragmática.

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Voltemos, porém, aos valores. Os fatos físicos 4.3 O INSTRUMENTALISMO DE JOHN


existem ou não existem e, enquanto tais, não são bons DEWEY
nem maus. O ser melhor não é relação física. A
realidade é que o bem e o mal só existem em referência A experiência não se reduz à consciência nem ao
ao fato de que satisfazem ou não às exigências dos conhecimento
indivíduos. Refletindo variedade enorme de
necessidades e impulsos diversos, essas exigências A filosofia de John Dewey (1859-1952), que foi
geram um universo de valores frequentemente em o mais significativo filósofo americano do século XX,
contraste. foi definida como “naturalismo”. É uma filosofia que
Então, como unificar e hierarquizar tais ideais, se move no leito do pragmatismo e se situa no quadro
variados e muitas vezes contrastantes? da tradição empirista.
A resposta de James a essa pergunta crucial é
que se devem preferir os ideais que, se realizados,
impliquem a destruição do menor número de outros
ideais e o universo mais rico de possibilidades.
Naturalmente, tal universo não é dado de fato, não é
absolutamente garantido, e se propõe como simples
norma que caracteriza a vontade moral enquanto tal.

A variedade da experiência religiosa e o universo


pluralista

Outra grande obra de William James é A


Entretanto, Dewey optou por chamar sua
variedade da experiência religiosa (1902), onde o autor
filosofia de instrumentalismo, que, em primeiro lugar,
propõe antes de mais nada uma rica fenomenologia da
se diferencia do empirismo clássico quanto ao conceito
experiência religiosa.
fundamental de experiência. A experiência dos
James é contrário aos positivistas, que ligavam a
empiristas clássicos é simplificada, ordenada e
religião a fenômenos degenerativos. O empirista radical
purificada de todos os elementos de desordem e erro,
James não quer que a identificação das riquezas das
reduzida a estados de consciência claros e distintos.
experiências humanas seja bloqueada por um juízo de
Dewey, em Experiência e natureza (1925), sustenta
valor qualquer. A vida religiosa é inconfundível; ela põe
que “a experiência não é consciência, e sim história”; ou
os homens em contato com uma ordem invisível e
seja, ela não se reduz a um estado de consciência claro
muda sua existência.
e distinto. A experiência não se reduz tampouco ao
Segundo James, o estado místico é o momento
conhecimento, ainda que o próprio conhecimento seja
mais intenso da vida religiosa e age como se ampliasse
parte da experiência, seja uma experiência. Ela, de fato,
o campo perceptivo, abrindo-nos possibilidades
inclui os sonhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra,
desconhecidas ao controle racional. E a atitude mística
a confusão, a ambiguidade, a mentira e o horror; inclui
não pode se tornar garantia de uma determinada
os sistemas transcendentais, e também os sistemas
teologia. Aliás, para James, a experiência mística deve
empíricos; inclui tanto a magia e a superstição como a
ser defendida pela filosofia.
ciência. Inclui tanto a inclinação que impede de
Aqui podemos ver como James passa da
aprender da experiência como a habilidade que tira
descrição à avaliação da experiência mística,
partido de seus mais fracos acenos.
considerada como acesso privilegiado, inacessível pelos
Dewey propõe substancialmente a ideia de
meios comuns, ao Deus que potencializa nossas ações
experiência capaz de dar a mesma atenção que se tem
e que é “a alma e a razão interior do universo”, de um
para aquilo que é “nobre, honroso e verdadeiro”
universo pluralista, onde Deus (que não é o mal nem o
também para o que, na vida humana, existe de
responsável pelo mal) é concebido como pessoa
“desfavorável, precário, incerto, irracional e odioso”.
espiritual que nos transcende e nos convoca a colaborar
Afirma ele: “Considerando o papel que a antecipação e
com ele.
a memória da morte desempenharam na vida humana,
Um universo pluralista (1909) é uma das últimas
da religião às companhias de seguro, o que se pode dizer
obras de James, onde ele tenta libertar a experiência
de uma teoria que define a experiência de tal modo a
religiosa da angústia do pecado - angústia arraigada na
ponto de fazer seguir-se logicamente que a morte nunca
tradição puritana da Nova Inglaterra - e onde,
seja matéria de experiência?”
precisamente, Deus é concebido como ser finito. Para
Há mais, já que a não identificação entre
James, Deus não é o todo, ele é um Deus-companheiro.
experiência e conhecimento permite a Dewey realizar a
tentativa de solução do problema gnosiológico: com

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efeito, “há duas dimensões das coisas experimentadas; por outras ideias tranquilizadoras, como a imutabilidade
uma é a de tê-las outra é a de conhecê-las para tê-las de do ser, o processo universal, a racionalidade inerente ao
modo mais significativo e seguro”. universo, o universo regido por leis necessárias e
Na realidade, não é fácil conhecer as coisas que universais.
temos ou somos, sejam elas o sonho, o sarampo, a “De Heráclito a Bergson, há muitas filosofias
virtude, uma pena, o vermelho. O problema do ou metafísicas do universo. Somos gratos a essas
conhecimento é o problema de como encontrar o que filosofias, que mantiveram vivo aquilo que as filosofias
é necessário encontrar em torno dessas coisas para clássicas e ortodoxas deixaram de lado. Mas as filosofias
garantir, retificar ou evitar o fato de tê-las ou o de sê- do fluxo normal também indicam a intensidade com
las. que se deseja o que é seguro e estável. Elas deificaram a
Desse modo, para Dewey, enquanto o mudança, tornando-a universal, regular e segura.
ceticismo pode verificar-se (a fim de nos tornar curiosos Considerai o modo completamente laudatório com o
e indagadores) em qualquer momento em relação a qual Hegel, Bergsoe os filósofos evolucionistas do devir
qualquer crença ou conclusão intelectual, no entanto ele consideraram a mudança. Para Hegel, o devir é
é impossível acerca das coisas que nós temos e somos. processo racional que define uma lógica, mesmo nova
Um homem pode duvidar se está com sarampo, porque e estranha, e um absoluto, também este novo e
o sarampo é termo intelectual, classificação, mas não estranho, Deus. Para Spencer, a evolução é somente um
pode duvidar do que tem empiricamente - não, como processo transitório para obter o equilíbrio estável e
se diz, porque está imediatamente certo dele, mas universal de ajustamento harmonioso. Para Bergson, a
porque não é matéria de conhecimento, não é de modo mudança é a operação criadora de Deus ou é o próprio
algum questão intelectual, não é caso de verdade ou Deus”.
falsidade, de certeza ou de dúvida, mas somente de Para Dewey, essas filosofias são filosofias do
existência. medo, hiper-simplificadoras e des-responsabilizadoras.
Elas transformam um elemento da realidade na
Precariedade e risco da existência realidade em seu todo, confinando assim na aparência
(no secundário, errôneo, ilusório etc.) tudo o que não
A experiência é história, história voltada para o se revela compatível com seu respectivo esquema de
futuro, prenhe de futuro. E a filosofia, diferentemente imutabilidade, ordem, racionalidade, necessidade ou
da antropologia cultural, tem a função do perfeição do ser ou da realidade.
desmembramento analítico e da reconstrução sintética Além disso, são des-responsabilizadoras, já que
da experiência. Os fenômenos da cultura, apresentados presumem garantir metafisicamente a ordem, o
pelo antropólogo, constituem o material para o trabalho progresso ou a racionalidade, que, ao contrário,
do filósofo. constituem a tarefa fundamental da condução
Pois bem, uma característica da existência que inteligente da vida humana.
os fenômenos culturais põem em relevo é o seu caráter Em suma, para Dewey, é preciso ter a coragem
precário e arriscado. de denunciar a falência filosófica de metafísicas
Diz Dewev: “O homem vive em mundo consoladoras e ilusórias, que iludem precisamente a
aleatório; para dizê-lo cruamente, sua existência implica respeito da permanência estável de bens e valores, posse
o acaso. O mundo é o palco do risco: é incerto, instável, exclusiva de uma camada privilegiada. São metafísicas
terrivelmente instável”. Claro, seria fácil e confortante que aparentemente repelem a irracionalidade, a
insistir na boa sorte e nas alegrias inesperadas. desordem, o mal, o erro, coisas que não são aparências,
A comédia é tão genuína quanto a tragédia. Mas, e sim realidades que precisamos dominar e controlar,
observa Dewey, é sabido que "a comédia atinge uma embora com a consciência de que a existência
nota mais superficial que a tragédia. E o homem teme permanece, sempre e de qualquer modo, precária e
porque vive em um mundo temível, em um mundo que cheia de riscos.
dá medo. O próprio mundo é precário e perigoso: “Não
foi o temor em relação aos deuses que criou os deuses”. A teoria da pesquisa
O homem vive neste mundo: a natureza não
existe sem homem nem o homem existe sem a natureza. A luta para enfrentar o mundo e a existência tão
O homem está imerso na natureza. E, no entanto, ele é difíceis exige comportamentos e operações humanas
uma natureza capaz de, e destinada a, mudar a própria inteligentes e responsáveis. É aí que se inserem o
natureza e dar-lhe significado. instrumentalismo e a teoria da pesquisa.
É precisamente para se garantir contra a Segundo a maior parte dos sistemas filosóficos
instabilidade e a precariedade da existência o homem, tradicionais, a verdade é estática e definitiva, absoluta e
primeiro, recorreu a forças mágicas e construiu mitos eterna. Dewey, porém, não pensa assim. Dado seu
que, depois de terem caído, logo procurou substituir interesse pela biologia, ele vê o pensamento como

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processo de evolução; segundo ele, o conhecimento é Senso comum e pesquisa científica: as ideias como
processo chamado pesquisa, que, no fundo, consiste em instrumentos
uma forma de adaptação ao ambiente. O conhecimento
é prática que tem êxito. Êxito no sentido de que resolve A inteligência, portanto, é constitutivamente
os problemas postos pelo ambiente (entendendo este operativa. A razão não é meramente contemplativa: é
no sentido mais amplo). força ativa chamada a transformar o mundo em
Em sua grande obra Lógica: teoria da investigação conformidade com objetivos humanos.
(1938) Dewey sustenta que a função do pensamento A contemplação, sem dúvida, é ela própria uma
reflexivo é a de transformar uma situação na qual se tem experiência, mas, para Dewey, ela constitui a parte final,
experiências caracterizadas por obscuridade, dúvida, na qual o homem desfruta do espetáculo de seus
conflito, em suma, experiências perturbadas, em uma processos. O processo cognoscitivo não é
situação que seja clara, coerente, ordenada e contemplação, e sim participação nas vicissitudes de um
harmoniosa. mundo que deve ser mudado e reorganizado sem
Em poucas palavras, a investigação parte dos descanso.
problemas, isto é, de situações que implicam incerteza, Dewey comenta que o método experimental é
perturbação, dúvida e obscuridade. E Dewey se novo como recurso cientifico ou como meio
declarava desconcertado diante do fato de que pessoas sistematizado de criar o conhecimento e de garantir que
sistematicamente empenhadas nas investigações sobre seja conhecimento; entretanto, “como expediente
questões e problemas (como certamente são os prático, ele é tão antigo quanto a própria vida”. E é
filósofos) sejam tão pouco curiosas acerca da existência precisamente por essa razão que Dewey insiste na
e da natureza dos problemas. continuidade entre conhecimento comum e
Situações desse tipo, isto é, de dúvida e conhecimento cientifico.
obscuridade, tornam-se problemáticas quando se No escrito A unidade da ciência como problema social
tornam objeto de pesquisa, no sentido de que seja (1938), ele diz que a ciência, em sentido especializado, é
possível avançar alguma tentativa de solução, ainda que a elaboração de operações cotidianas, ainda que essa
vaga, já que caso contrário se teria o caos, e de que seja elaboração assuma frequentemente caráter muito
possível intelectualizar essa vaga sugestão, formulando técnico. E, ainda na Lógica, Dewey reafirma o fato de
o problema dentro de uma ideia que consista em que “a ciência tem seu ponto de partida necessário nos
antecipação ou previsões do que pode acontecer. objetos qualitativos, nos processos e nos instrumentos
A ideia proposta desenvolve-se em seus do senso comum, que é o mundo do uso, da fruição e
significados pelo raciocínio, que identifica as dos sofrimentos concretos”.
consequências da ideia, pondo-a em relação com o Depois, porém, pouco a pouco, através de
sistema das outras ideias e esclarecendo-a assim em seus processos mais ou menos tortuosos e inicialmente
aspectos mais diversos. A solução do problema, desprovidos de uma linha diretriz, formam-se e são
inserida e antecipada na ideia que depois foi transmitidos determinados procedimentos e
desenvolvida pelo raciocínio, dirige e articula o instrumentos técnicos.
experimento. E será precisamente o experimento que Vão sendo reunidas informações sobre as
dirá se a solução proposta deve ser aceita ou rejeitada coisas, sobre suas propriedades e seus
ou, ainda, corrigida, a fim de dar conta dos fatos comportamentos, independentemente de cada
problemáticos. aplicação imediata particular. Vamo-nos afastando
A propósito dos fatos, diferentemente do sempre mais das situações originarias de uso e fruição
antigo empirismo, Dewey observa que eles não são imediatos.
puros dados, pois não existem dados em si. Nada Não se ganha muito mantendo o próprio
constitui um dado senão em relação com uma ideia ou pensamento ligado ao tronco do uso com uma corrente
com um plano operativo que possa ser formulado em muito curta, sentencia Dewey. O importante é que,
termos simbólicos, desde os da linguagem comum até como quer que seja, o pensamento, isto é, as ideias,
os mais precisos e específicos da matemática, da física estejam ligadas à prática, porque as ideias – tanto
ou da química. lógicas como científicas - estão sempre em função de
Em suma, Dewey é da opinião de que tanto as problemas reais, ainda que abstratos, e porque é sempre
ideias como os fatos são de natureza operacional. As a prática que decide do valor de urna ideia.
ideias são operacionais porque não são mais que E as ideias são exatamente instrumentos em
propostas e planos de operação e intervenção sobre as nossa investigação. São instrumentos para resolver os
condições existentes; e os fatos são operacionais no problemas e para enfrentar um mundo ameaçador e
sentido de que são resultados de operações de uma existência precária. E, por serem instrumentos, há
organização e de escolha. muito pouco sentido em pregar a veracidade ou a
falsidade deles. As ideias são instrumentos que podem

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ser eficazes, relevantes ou não, danosos ou econômicos, objetivo da filosofia educar os homens a refletir sobre
mas não verdadeiros ou falsos. E o juízo final que se dá os valores humanos mais elevados, da mesma forma
em todo processo de pesquisa nada mais é do que uma como eles aprenderam a refletir sobre aquelas questões
“afirmação garantida”. que se inserem no âmbito da técnica.
Eis, portanto, o significado genuíno do Há, sem dúvida, o problema da determinação
instrumentalismo de Dewey: a verdade não é mais dos fins. Escreveu Dewey: “A ciência é indiferente ao
adequação do pensamento ao ser, mas se identifica fato de suas descobertas serem utilizadas para curar as
muito mais com “o poder comprovado de guia” de uma doenças ou difundi-las, para acrescer os meios para a
ideia e, em última análise, com “o corpo sempre promoção da vida ou para fabricar material bélico a fim
crescente das afirmações garantidas”, devendo-se ter de aniquila-la”. Por vezes, Dewey parece indicar como
em vista que essa garantia não é absoluta nem eterna, já fim último da vida dos homens um reino de Deus visto
que os resultados da pesquisa científica, bem como de como justiça, amor e verdade. Entretanto, é preciso
toda operação humana, são continuamente corrigíveis e insistir em um ponto de capital importância no
aperfeiçoáveis em relação às novas e cambiantes pensamento de Dewey: trata-se da não possibilidade de
situações em que o homem virá a se encontrar em sua distinguir entre meios e fins.
história. Para Dewey todo fim é também meio e todo
meio para atingir um fim é desfrutado ou percebido
A teoria dos valores também como fim. A atividade que produz meios e a
atividade que inventa e consuma os fins estão
Se as ideias comprovam seu valor na luta com intimamente ligadas uma a outra. O fim alcançado é
os problemas reais, e se cada indivíduo tem o direito- meio para outros fins. E a avaliação dos meios é
dever de dar sua contribuição à elaboração de ideias fundamental para todo fim real e genuíno, que não
capazes de guiar positivamente a ação humana, então queira ser vã fantasia, ainda que nobre e sugestiva. E as
está claro que as ideias morais, os dogmas políticos ou coisas que parecem fins são, com efeito, unicamente
os preconceitos do costume também não se revestem previsões ou antecipações do que pode ser levado a
de autoridade especial. Também eles devem ser existência em determinadas condições. Por isso, em
submetidos à verificação de suas consequências na Teoria da avaliação (1939), Dewey escreve que não existe
prática e devem ser responsavelmente aceitos, problema de avaliação fora da relação entre meios e
rejeitados ou mudados com base na análise de seus fins, o que vale não somente na ética, mas também na
efeitos. arte, onde a criação dos valores estéticos (a arte é
Dewey é relativista, não considera possível natureza transformada e não existe distinção entre
fundamentar valores absolutos. Os valores são belas-artes e artes úteis) requer a utilização de meios
históricos e a tarefa do filósofo é a de examinar as adequados.
“condições generativas” (isto é, as instituições e os
costumes ligados a estes valores) e de avaliar sua A teoria da democracia
funcionalidade na perspectiva de uma renovação, em
relação às necessidades que pouco a pouco irrompem Dewey é um relativista pelo fato de que, em sua
da vida associada dos homens. opinião, não existem métodos racionais para a
Existem valores de fato, isto é, bens determinação dos fins últimos. Por isso ele é
imediatamente desejados, e valores de direito, isto é, decididamente contrário aos filósofos utópicos que,
bens razoavelmente desejáveis. projetando suas visões ideais, não se preocuparam em
É precisamente função da filosofia e da ética dedicar uma investigação acurada aos meios necessários
promover a contínua revisão crítica, voltada para a para sua realização, e sequer em avaliar atentamente sua
conservação e o enriquecimento dos valores de direito. E desejabilidade moral efetiva.
está claro que, na perspectiva de Dewey, sequer estes A utopia gera normalmente o ceticismo ou o
últimos podem ter a pretensão de dignidade meta- fanatismo. O que é necessário, segundo Dewey, é
histórica, já que todo sistema ético é relativo ao meio propor metas concretas e descer dos fins remotos para
em que se formou e se tornou funcional. os mais próximos, realizáveis em condições históricas
A ética de Dewey é histórica e social: como na efetivas. Portanto, ele projeta o operar contínuo tendo
teoria da pesquisa, nela também desponta aquele em vista maior consciência e maior liberdade, no
sentido de interdependência e de unidade inter-relativa sentido de que a liberdade conquistada hoje cria
dos fenômenos, que se explicitará no conceito de situações graças às quais haveria mais liberdade amanhã,
interação entre indivíduo e meio físico e social. Assim, e no sentido de que minha liberdade faz crescer a dos
os valores também são fatos tipicamente humanos: são outros.
planos de ação, tentativas de resolver problemas que Consequentemente, Dewey é avesso à
brotam da vida associada dos homens. E constitui sociedade totalitária e convicto defensor da sociedade

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democrática. Para ele, a pressuposição de um fim Richard Rorty nasceu em New York em 1931.
absoluto dificulta a discussão, ao passo que a Estudou na Universidade de Chicago e na de Yale.
democracia representa discussão inteiramente livre. É “Dewey - disse ele – foi sem dúvida a figura mais
método que permite discutir toda finalidade, é debate influente durante toda a minha juventude; chamavam-
sem fim, é colaboração, é participação em finalidades no de filósofo da democracia, do New Deal, dos
conjuntas. intelectuais socialistas americanos: para quem quer que
A democracia é aquele modo de vida em que tenha frequentado uma universidade americana antes
todas as pessoas maduras participam da formação dos dos anos cinquenta, era impossível não percebe-lo”.
valores que regem a vida dos homens associados, modo E ainda: “Minha formação foi principalmente
de vida que é necessário tanto do ponto de vista do bem histórica. O encontro com a filosofia analítica ocorreu
social como da ética do desenvolvimento pleno dos em Princeton, quando eu já ensinava, e foi um
seres humanos como indivíduos. momento verdadeiramente intenso. Quando as ótimas
Em Liberalismo e ação social (1935), Dewey afirma obras de Wittgenstein mal estavam para serem
que o problema da democracia se torna o problema assimiladas”.
daquela forma de organização social que se estende a Foi justamente a leitura do “segundo”
todo campo e a todo caminho da vida, pelo qual as Wittgenstein que persuadiu Rorty a tomar distância do
forças individuais não deveriam ser simplesmente pensamento analítico dominante nos Estados Unidos.
libertadas de constrições mecânicas externas, mas Este pensamento - dirá Rorty - profissionalizou a
deveriam ser alimentadas, sustentadas e dirigidas. filosofia, reduziu-a a uma disciplina acadêmica que se
Com base nisso tudo, pode-se compreender a resolve na pesquisa obsessiva dos fundamentos do
aversão de Dewey pela sociedade planejada. O que ele conhecimento objetivo, tirou da filosofia toda
almeja e defende é a sociedade que se planeja dimensão histórica, arrancou-a dos problemas da vida.
constantemente a partir de seu interior, atenta, Auxiliado também pelas críticas internas ao
portanto, ao controle social mais amplo e articulado dos movimento analítico, Rorty se convenceu do
resultados. A diferença existente entre a sociedade esgotamento intrínseco da filosofia analítica (ou pós-
planejada, e a sociedade que se planeja filosófica, no sentido de estar distante da filosofia
constantemente é definida por Dewey nos termos tradicional) des-disciplinarizada e de andamento
seguintes: “A primeira requer desígnios finais impostos discursivo, à qual não cabe mais o papel de mãe ou de
de cima e que, portanto, se baseiam na força, física e rainha da ciência, sempre em busca de um vocabulário
psicológica, para fazer com que nos conformemos a definitivo e imortal sobre a base do qual sintetizar ou
eles. A segunda significa libertar a inteligência mediante descartar os resultados de outras esferas de atividade.
a forma mais vasta de intercâmbio cooperativo”. A filosofia pós-analítica, de preferência, se
Ligada à teoria da investigação, a teoria dos democratiza na forma de uma “crítica da cultura” que a
valores e a teoria da democracia de Dewey encontra-se vê transformada em uma disciplina entre as outras,
sua teoria da educação, entendida como reconstrução e fundada sobre critérios histórica e socialmente
reorganização continua da experiência, visando a contextuais, e preposta ao estudo comparado das
aumentar a consciência dos vínculos entre as atividades vantagens e das desvantagens das diversas visões do
presentes, passadas e futuras, nossas e alheias, e mundo.
aumentar a capacidade dos indivíduos para dirigir o A filosofia e o espelho da natureza (1979) foi o livro
curso da experiência futura. que no plano internacional tornou Rorty conhecido
como fundador do neopragmatismo. Em 1980 aparece
5. NEOPRAGMATISMO - RICHARD RORTY Consequências do pragmatismo. De 1989 é Contingência, ironia
e solidariedade, livro que se ocupa de questões éticas e
filosóficas.
Segundo Rorty, os ensaios coletados nesse livro
representam tentativas de delinear as consequências de
uma teoria pragmatista da verdade. E ainda: “Os
pragmatistas pensam que a tradição platônica tenha
esgotado a própria função. Os pragmatistas sustentam
que a maior aspiração da filosofia é a de não praticar a
filosofia. Não consideram que pensar na verdade sirva
para dizer algo de verdadeiro, nem que pensar no bem
sirva para agir do melhor dos modos, nem que pensar
na racionalidade sirva para ser racionais”.

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Dois mitos da tradição filosófica que confirma ou rejeita a pretensão da cultura restante.
O volume A filosofia e o espelho da natureza A filosofia, praticada como disciplina fundacional que
consiste na tentativa de desengonçar a pretensão garante a certeza dos fundamentos do conhecimento,
fundante da filosofia tradicional. foi consolidada pelos neokantianos. E no século XX,
Escreve Rorty, “Em geral os filósofos ainda segundo nosso filósofo, ela foi reproposta por
consideram sua disciplina como uma discussão de filósofos como Russell e Husserl que se propuseram a
problemas perenes, eternos. Alguns destes referem-se a mantê-la “rigorosa” e “cientifica”.
diferença entre seres humanos e os outros seres, e se No seu entendimento, o gênero de filosofia que
concentram nas questões que se referem a relação entre descende de Russell, justamente como a fenomenologia
mente e corpo. Outros problemas se referem à clássica de Husserl, é simplesmente uma tentativa
legitimação das pretensões de conhecimento e posterior de manter a filosofia na posição em que Kant
concentram-se nas questões que se referem aos a desejava pôr, ou seja, a de juiz das outras áreas da
‘fundamentos’ do conhecimento. Descobrir tais cultura, sobre a base de seu conhecimento especial dos
fundamentos significa descobrir algo sobre a mente e “fundamentos” dessas áreas.
vice-versa”. As coisas, ao seu ver, não param aqui, uma vez
Problemas eternos resolvidos por teorias perenes: eis a que também a filosofia analítica é uma variante
pretensão de fundo da filosofia tradicional, a qual se posterior da filosofia kantiana, uma variante
configura como filosofia fundacional em relação a toda caracterizada principalmente por considerar a
a cultura. E esta sua pretensão se apoia sobre o fato de representação como linguística muito mais que mental
que ela compreenderia os fundamentos do e, portanto, a filosofia da linguagem como a disciplina
conhecimento e encontraria tais fundamentos por meio que exibe os “fundamentos do conhecimento”, em vez
do estudo da mente, dos “processos mentais”. Eis, da “critica transcendental” ou da psicologia.
portanto, que a tarefa central da filosofia tradicional está Na base, portanto, do pensamento fundacional
na construção de uma teoria geral da representação acurada tradicional há uma ideia de mente, concebida como
tanto do mundo externo, como do modo com que a grande espelho que contém representações; voltando-
mente constrói essas representações. nos para nossa interioridade (Descartes) ou trazendo à
Tudo isso, afirma Rorty, nos mostra que existe superfície os a priori da experiência (Kant), a filosofia -
“uma imagem que mantém prisioneira a filosofia examinando e polindo novamente o grande espelho –
tradicional”: é a imagem da mente como um grande estaria depois em grau de chegar à posse dos
espelho, que contém representações diversas – fundamentos do conhecimento.
algumas acuradas, outras não - e pode ser estudado por A união destas três ideias de mente como espelho
meio de métodos puros, não empíricos”. da natureza, de conhecimento como representação acurada
Rorty comenta que se não houvesse a ideia da e de filosofia como busca e posse dos fundamentos do
mente como espelho, não haveria sequer a ideia do conhecimento “profissionalizou” a filosofia, tornando-
conhecimento como representação acurada; sem a a uma disciplina acadêmica restrita substancialmente à
ideia de conhecimento como representação acurada não epistemologia, isto é, à teoria do conhecimento, e a
teriam sentido os grandes esforços de Descartes e de propôs como uma fuga da história, uma vez que ela
Kant dirigidos a obter representações mais acuradas por quer ser pesquisa e posse de fundamentos válidos para
meio do exame, da reparação e do polimento do todo desenvolvimento histórico possível.
espelho. E, postos fora dessa estratégia, não teriam tido
sentido sequer as recentes teses segundo as quais a O abandono da filosofia do fundamento
filosofia consistiria de “analise conceitual”, ou de Pois bem, é sobre este pano de fundo que Rorty
“análise fenomenológica”, ou de “explicação dos olha para a obra daqueles que ele considera os três
significados”, ou de exame da “lógica de nossa filósofos mais importantes do século XX, ou seja, a
linguagem”, ou então da “estrutura da atividade obra de Dewey, de Wittgenstein e de Heidegger. Estes
constitutiva da consciência”. três filósofos tentaram, em um primeiro momento, a
construção de uma filosofia fundacional, propondo a
A filosofia fundacional formulação de “um critério último para o pensamento”.
De acordo com Rorty, devemos ao século Cada um dos três, todavia, no desenvolvimento
XVII, e em particular a Locke, a noção de uma “teoria do próprio pensamento percebeu quão ilusória era sua
do conhecimento” baseada sobre a compreensão dos primeira tentativa. E foi assim, então, que cada um dos
“processos mentais”. Devemos ao mesmo período, e três, na obra sucessiva, libertou-se da concepção
em particular a Descartes, a noção de “mente” como kantiana da filosofia como fundamento, e consumou
entidade separada em que se atuam os “processos”. seu próprio tempo a pôr em alerta contra essas
Devemos ao século XVIII, e em particular a tentações às quais eles próprios haviam cedido. Assim,
Kant, a noção da filosofia como tribunal da razão pura, sua obra sucessiva é terapêutica, mais que construtiva;

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mais edificante do que sistemática, dirigida a fazer o como para exorcizar a incerteza do futuro; os filósofos
leitor refletir sobre motivos que tem para filosofar, edificantes estão à espera e investigam algo de novo,
muito mais do que para lhe fornecer um novo programa prontos para se abrir à maravilha de que haja algo de
filosófico. novo sob o sol, algo que não seja uma acurada
Wittgenstein, Heidegger e Dewey deixam de representação daquilo que já havia, algo que (ao menos
lado, ao ver de Rorty, a noção de mente produzida no momento) não pode ser explicado e pode apenas ser
justamente por Descartes, Locke e Kant, e entendida descrito.
como um objeto de estudo especial, colocado no
espaço interno, que contém os elementos ou os A filosofia edificante
processos que tornam possível o conhecimento.
Wittgenstein, Heidegger e Dewey, todos os três, A filosofia edificante, portanto, deixa de lado a
concordam sobre o fato de que deve ser abandonada a tradição da filosofia sistemática, construtiva, normal,
noção do conhecimento como representação acurada, fundacional. Mas o que devemos entender mais
tornada possível por processos mentais especiais, e propriamente com tal filosofia edificante?
compreensível por meio de uma teoria geral da Pois bem, trata-se de um projeto de educação
representação. Todos os três abandonam as noções de ou formação - ou melhor, de edificação de nós mesmos
“fundamentos do conhecimento” e da filosofia como ou de outros – dirigido à descoberta de modos de falar
de algo que gira ao redor da tentativa cartesiana de novos, melhores, mais interessantes e mais frutuosos.
responder ao cético epistemológico. Isso no sentido de que a tentativa de edificar (nós
mesmos ou os outros) pode consistir na atividade
Filósofos sistemáticos e edificantes hermenêutica de realizar ligações entre nossa própria
A imagem neokantiana da filosofia como cultura e alguma cultura exótica ou algum período
profissão - imagem que se encontra implícita na imagem histórico, ou então entre nossa disciplina e outra
da mente ou da linguagem que espelham a natureza – disciplina que pareça perseguir objetivos
não se sustenta mais. A filosofia fundacional acabou; incomensuráveis com um vocabulário incomensurável.
como acabou, em suma, a filosofia entendida como Mas também pode consistir na atividade poética de
disciplina que julga as pretensões da ciência e da descobrir esses novos objetivos, novas palavras, novas
religião, da matemática e da poesia, da razão e do disciplinas.
sentimento, atribuindo a cada uma o lugar apropriado. A filosofia edificante torna própria, assim, a
É preciso, portanto, tomar outros caminhos; e, hermenêutica de Gadamer, na qual não há contraste -
para sair da “normalidade” da tradição, é preciso ser afirma Rorty - entre o desejo de edificação e o desejo
“revolucionário” (no sentido de Kuhn). E, todavia, de verdade; e na qual, todavia, salienta-se o fato de que
entre os filósofos revolucionários, Rorty distingue dois a pesquisa da verdade é um dos muitos modos com que
tipos: os que fundam novas escolas dentro das quais podemos ser edificados.
pode ser praticada a filosofia normal e profissionalizada E os objetivos da filosofia edificante são mais a
(um exemplo de tais filósofos são Husserl, e, antes dele, continuação de uma conversação do que a descoberta
Descartes e Kant); e aqueles que rejeitam a ideia de que da verdade, de uma verdade objetiva como “resultado
seu vocabulário possa um dia ser institucionalizado, ou normal do discurso normal”. “A filosofia edificante não
que seus escritos possam ser considerados é apenas anormal, mas também reativa, tendo sentido
comensuráveis com a tradição (exemplos desses apenas enquanto é um protesto contra a tentativa de
filósofos são o “último” Wittgenstein e o “último” truncar a conversação”.
Heidegger; e Nietzsche).
É a esse último tipo de filósofos que vai a Manter aberta a conversação da humanidade
aprovação de Rorty, filósofos que ele chama de As tentativas de truncar a conversação não
edificantes para distingui-los dos sistemáticos. A seu ver, os faltam. Com efeito, truncam a conversação todas as
grandes filósofos sistemáticos são construtivos e filosofias sistemáticas, que não fazem mais que
oferecem argumentações. Os grandes filósofos hipostatizar alguma descrição privilegiada em que se
edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias e presume ter captado de uma vez por todas a verdade, a
aforismos. Eles sabem que suas obras perdem sua realidade, o bem, visto que se estaria em posse da razão.
própria função essencial, quando é superado o período Por sua vez, os filósofos edificantes são do parecer que
em relação ao qual definiram sua própria reação. Eles presunções desse tipo equivaleriam ao congelamento da
são intencionalmente periféricos. cultura, o que significaria a desumanização dos seres
Os filósofos sistemáticos pretendem construir humanos.
um saber, uma ciência para a eternidade; os filósofos Segundo Rorty, que para os filósofos edificantes
edificantes destroem em benefício de sua própria a própria ideia de atingir “a totalidade da verdade” é
geração. Os filósofos sistemáticos constroem certezas,

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absurda, porque a noção platônica de verdade enquanto De sua parte, Rorty quer fazer justiça tanto a um
tal é absurda. como ao outro grupo de pensadores historicistas. E o
Concluindo as considerações precedentes, seu é “um convite a não querer escolher entre eles mas
Rorty sintetiza: “Pensar que manter aberta a discussão a dar-lhes, ao contrário, igual peso, a fim de usá-los
constitua uma tarefa suficiente para a filosofia, que a depois para finalidades diversas”. Continua Rorty: “Os
sabedoria consista na habilidade de sustentar uma autores como Kierkegaard, Nietzsche, Baudelaire,
conversão, significa considerar os seres humanos como Proust, Heidegger e Nabokov são úteis enquanto
criadores de novos discursos mais do que seres a serem modelos, exemplos de perfeições individuais, de vida
acuradamente descritos. Terminou, portanto, a filosofia autônoma que se criou por si. Os autores como Marx,
fundacional; mas não terminou a filosofia: ela continua Mill, Dewey, Habermas e Rawls são mais que modelos,
como filosofia edificante, como “uma voz na são concidadãos. Seu empenho é social, é a tentativa de
conversação da humanidade”. tornar nossas instituições e práticas mais justas e menos
Com ela nós continuamos a conversação cruéis”.
iniciada por Platão, mesmo sem discutir os assuntos que
Platão considerava que se devessem discutir. A filosofia A solidariedade do “liberalismo” irônico
edificante, é a maneira específica de intervir na
discussão sobre todo tipo de problema, condicionada e E inútil, ao ver de Rorty, ir em busca de uma
caracterizada por uma tradição de textos e pelo teoria que unifique o público e o privado. O caminho
adestramento peculiar de quem a pratica, mas não mais que ele propõe é o seguinte: contentarmo-nos em
pela ilusão de possuir um domínio próprio dela, um “considerar igualmente válidas, embora destinadas a ser
método, e uma tarefa privilegiada em relação à de outras incomensuráveis, as exigências de autocriação e de
“vozes”. solidariedade humana”.
E de tal proposta emerge a figura daquilo que
“Historicistas” para uma autonomia individual, Rorty chama de “irônico liberal”. Quem é o liberal? Os
“historicistas” para uma sociedade mais justa liberais, para Rorty, “são aqueles que pensam que a
crueldade é o nosso pior delito”. E o irônico? “Uso o
Contingência, ironia e solidariedade é um livro que é termo ‘irônico’ – responde Rorty - para designar um
o fruto maduro de reflexões ético-políticas que Rorty indivíduo que olha abertamente a contingência de suas
estava elaborando há algum tempo. A partir de Hegel – crenças e de seus desejos mais fundamentais, alguém
afirma Rorty - diversos pensadores historicistas que é historicista e nominalista o suficiente para ter
negaram a existência de uma “natureza humana” ou de abandonado a ideia de que tais crenças e desejos
um “estrato mais profundo do eu” sobre o atual fundar remetam a algo que foge ao tempo e ao acaso". Segundo
as virtudes pessoais e os ideais sociais. Estes pensadores ele, a ironia “significa algo de muito próximo ao
sustentaram que tudo é socialização e, portanto, antifundacionalismo”.
circunstância histórica, que não existe uma essência do No fundo, afirma Rorty, “os irônicos liberais
homem “abaixo” da socialização e antes da história. são pessoas que têm, entre estes seus desejos
Autores como estes não se colocam mais a pergunta infundáveis, a esperança de que o sofrimento possa
sobre “o que significa ser homens?”; mas a substituem diminuir, e que possa ter fim a humilhação sofrida por
por perguntas como: “o que significa pertencer a uma alguns seres humanos por causa de outros seres
rica sociedade democrática do século XX?”, ou então: humanos”.
“O membro de uma tal sociedade pode fazer algo a Essa utopia liberal renuncia às teorias filosóficas
mais do que recitar uma parte de um roteiro já escrito?”. de largo porte - como as que se referem às leis da
Pois bem, comenta Rorty, tal reviravolta história, o declínio do Ocidente e o fim do niilismo. Na
historicista, gradual mas decididamente, nos libertou da sociedade utópica proposta por Rorty, “a solidariedade
teologia e da metafísica, e com isso da tentação de não é descoberta com a reflexão; ela é criada”. É criada
buscar trégua para o tempo e para o acaso; ela, por com a imaginação, “tornando mais sensíveis ao
outro lado, nos permitiu substituir, “como viés do sofrimento e humilhação particulares, sofridos por
pensamento e do progresso social”, a liberdade à outras pessoas desconhecidas”.
verdade.
A reviravolta historicista existiu; todavia, ainda Levar à esfera do “nós” pessoas que antes eram do
continua a antiga tensão entre os historicistas (por “eles”
exemplo, Heidegger e Foucault), nos quais domina o
desejo de autocriação e de autonomia individual, e os É uma sensibilidade acrescida que nos faz
historicistas (por exemplo, Dewey e Habermas), para os reconhecer um indivíduo como “dos nossos” mais que
quais dominante é o desejo de uma comunidade vê-lo como “dos deles”.
humana mais justa e mais livre.

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Mas esta sensibilidade não cresce por causa de tema poder, que para ele não está localizado em uma
uma teoria universal que descreve uma essência humana instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por
presente em todos os homens; e ninguém se identifica contratos jurídicos ou políticos. O poder em Foucault
com a comunidade de todos os seres racionais. Tal reprime, mas também produz efeitos de saber e
sensibilidade cresce por obra não da teoria, “mas de verdade. Trata-se (...) de captar o poder em suas
outros gêneros literários como a etnografia, a extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar
reportagem jornalística, a história em quadrinhos, o o poder nas suas formas e instituições mais regionais e
teatro-verdade e sobretudo o romance”. Dickens, Olive locais, principalmente no ponto em que ultrapassando
Schreiner ou Richard Wright nos fazem conhecer de as regras de direito que o organizam e delimitam. Em
modo detalhado formas de sofrimento passadas por outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez
pessoas que antes ignorávamos. Choderlos de Laclos, menos jurídica de seu exercício.
Henry James ou Nabokov nos mostram a crueldade da Ele acreditava que os acontecimentos deveriam
qual nós mesmos somos capazes, e nos obrigam, ser considerados em seu tempo, história e espaço e sua
portanto, a redescrevermo-nos. obra pode ser dividida em três fases metodológicas:
Aqui está - insiste Rorty - a razão pela qual o arqueológica, genealógica e ética. Para cada uma dessas
romance, o filme e o programa televisivo substituíram, fases elaborou perguntas fundamentais: que posso
de modo gradual, mas decidido, o sermão e o tratado saber (ser-saber); que posso fazer (ser-poder - ação de
como veículos principais da mudança das convicções uns com os outros); e quem eu sou (ser-consigo - ação
morais e do progresso. de cada um consigo próprio)?
O liberal irônico exerce sua ironia sobre teorias Nesse sentido, o trabalho de Foucault pode ser
a respeito da essência humana mas está atento a dividido em três fases metodológicas: arqueologia,
minimizar sempre mais a importância das diferenças genealogia e ética.
tradicionais (de raça, de religião, de usos etc.) em relação A fase arqueológica se refere ao procedimento
“à semelhança na dor e na humilhação”. O liberal vertical de investigar os discursos descontínuos, a fim
irônico inclui sempre mais na esfera do “nós” pessoas de entender como e em seguida por quê. Nessa fase, o
diferentes de nós que antes eram dos “eles”. Nós - diz todo não deve ser considerado modelo prévio,
Rorty – devemos começar de onde estamos. E eis seu necessário, principalmente, para encontrar os discursos
comentário a uma posição que à primeira vista pareceria e partes esquecidas ou ínfimas.
moralmente muito estreita: “Aquilo que redime este Essa fase tem um enfoque explicitamente
etnocentrismo é o fato de que é o etnocentrismo de um histórico com a preocupação de descrever a construção
‘nós’ (‘nós liberais’), cuja finalidade é a de expandir-se, dos discursos das chamadas “ciências humanas”.
de criar um ethos ainda maior e diversificado. É o ‘nós’ Nas análises dele, os discursos são tomados em
daqueles que foram educados a estar em alerta contra o sua positividade, como “fatos”, e trata-se de buscar não
etnocentrismo”. sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições
de sua emergência, as regras que presidem seu
6.MICHEL FOUCAULT surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu
desaparecimento, em determinada época, assim como
Foucault (1926-1984) as novas regras que presidem a formação de novos
veio de família tradicional de discursos em outras épocas.
médicos, mas acabou se Fazem parte dessa fase da “constituição dos
graduando em história, filosofia saberes” as seguintes obras:
e psicologia. Foi considerado 1 – A história da loucura (1961);
um filósofo contemporâneo dos 2 – O nascimento da clínica (1963);
mais polêmicos, pois possuía 3 – As palavras e as coisas (1966);
um olhar crítico de si mesmo. 4 – A arqueologia do saber (1969).
Devido às suas Autor do Nascimento da clínica (1963) e de A
tentativas de suicídio, História da loucura na época clássica (1961), Foucault não
aproximou-se da psicologia e psiquiatria e produziu quis escrever uma história da psiquiatria entendida
diversas obras sobre esse tema. Os seus estudos e como história das teorias relativas ao tratamento prático
pensamento envolvem, principalmente, o biopoder e a dos doentes mentais, mas como uma reconstrução do
sociedade disciplinar. Para tanto, o filósofo percorreu modo pouco racional, na verdade, com que os homens
três técnicas independentes, mas sucessivas e “normais” e “racionais” da Europa Ocidental deram
incorporadas umas pelas outras: do discurso, do poder expressão a seu medo da não-razão, estabelecendo de
e da subjetivação. modo repressivo o que é mentalmente “normal” e, ao
Acreditava ser possível a luta contra padrões de contrário, o que é mentalmente “patológico”.
pensamentos e comportamentos, mas impossível se É com As palavras e as coisas (1966) que Foucault
livrar das relações de poder. Trata principalmente do exemplifica, de modo já considerado clássico, a
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abordagem estruturalista do estudo da história. Ele Na segunda estrutura, o discurso rompe os


rejeita também o mito do progresso: a continuidade na laços que o uniam às coisas. Os sinais diretamente
qual o homem ocidental pretende representar seu perceptíveis, quando não são ídolos enganadores, se
glorioso desenvolvimento é continuidade que não configuram somente como pequenos auxílios para que
existe. A história não tem sentido, a história não tem o sujeito que conhece possa chegar a uma representação
fins últimos. da realidade.
A história é, antes, descontinua. E, no que se Na terceira estrutura, o saber assume novo
refere a história da cultura, ela é informada ou aspecto: ele não se detém nem se reduz à representação
governada por típicas estruturas epistêmicas (ou epistemas), do visível, mas busca nova dimensão do real, ou seja, a
que agem no nível inconsciente. Cada época é regida da estrutura oculta.
por uma episteme diferente, ele analisa estas mudanças. São essas, portanto, as estruturas epistêmicas
Mas o que é, mais precisamente, uma estrutura que, de modo inconsciente, estruturaram as práticas
epistêmica? Diz Foucault: “Quando falo de ‘epistemas’, discursivas (só aparentemente livres) dos homens em
entendo todas as relações que existiram em certa época três diversas e descontinuas épocas da história do saber
entre os vários campos da ciência. Penso, por exemplo, no Ocidente.
no fato de que, a certo ponto, a matemática foi utilizada Na fase da genealogia, ele busca as
para pesquisas no campo da física; de que a linguística, homogeneidades básicas que estão no fundo de
ou melhor, a semiologia, a ciência dos sinais, foi determinada episteme. Como colocado pelo próprio
utilizada pela biologia (para as mensagens genéticas); de Foucault: “a genealogia é cinza; ela é meticulosa e
que a teoria da evolução pôde ser utilizada ou servir de pacientemente documentária. Ela trabalha com
modelo para os historiadores, os psicólogos e os pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes
sociólogos do século XIX. Todos estes são fenômenos reescritos”. Nesse sentido, é procurar as
de relações entre as ciências ou entre os vários particularidades que formam o conhecimento, as
‘discursos’ nos vários setores científicos que constituem percepções e o saber.
o que eu chamo ‘epistema’ de uma época”. Nessa fase de investigação dos “mecanismos de
E Foucault chamou a ciência que estuda tais poder” temos as obras:
discursos e tais epistemas de arqueologia do saber. Essa 1 – Vigiar e punir (1975);
ciência “arqueológica” mostra exatamente que não há 2 – História da sexualidade vol. 1, intitulado A
nenhum progresso na história, e que não existe a vontade de saber (1976).
continuidade de que se orgulha todo historicismo. O Aqui ele procura evidenciar as articulações entre
que a arqueologia do saber mostra é uma sucessão saber e poder, mediados, por assim dizer, pelo que
descontinua de epistemas, com a afirmação e a podemos chamar de modos de produção da verdade.
decadência de epistemas em uma história sem sentido. Em nossa sociedade a produção da verdade é
A descrição que ele faz dos “fatos discursivos” regulamentada por regras que autorizam a eleição dos
se limita a enunciados já formulados que compõe as discursos reconhecidos como científicos, que
formações discursivas e quer estabelecer o jogo de qualificam os objetos dignos de saber, os sujeitos aptos
regras (episteme de uma época, seu a priori histórico, o a produzi-los, as instituições apropriadas, e cujos efeitos
solo onde são constituídas as formações discursivas de poder, particularmente no caso das ciências
historicamente realizadas e que compõem as diferentes humanas, são sobretudo disciplinar e normatizar.
configurações no espaço do saber) que definem as Para ele, verdade é o conjunto de regras
condições de possibilidade, das transformações, do segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se
desaparecimento de tais discursos, numa época dada e atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Este,
numa dada sociedade, jogo viável num curso histórico por sua vez, é exercício, prática, que só existe em sua
marcado por diferenças e descontinuidades. concretude, multifacetado e cotidiano.
Em As palavras e as coisas Foucault distingue, na Nesse momento de sua produção intelectual
história do saber ocidental, três estruturas passa a fazer o cruzamento da análise dos discursos com
epistêmicas que se sucedem sem nenhuma a trama das instituições e práticas sociais, abandonando
continuidade. a noção de episteme pela noção mais complexa de
A primeira é a que se conservou até a “dispositivo estratégico”. Apesar da episteme ser um
Renascença; a segunda é a que se impôs nos séculos elemento prioritário do dispositivo, este envolve
XVII e XVIII; a terceira se afirmou no século XIX. Mas articulações entre elementos heterogêneos, discursivos
o que tipifica essas diversas estruturas epistêmicas, que, por e extradiscursivos (práticas jurídicas, projetos
seu turno, qualificariam três diversas épocas culturais? arquitetônicos, instituições sociais diversas).
Na primeira estrutura, “as palavras tinham a Nosso filósofo então progride da arqueologia
mesma realidade do que significavam”; o que as coisas (método para análise da discursividade local onde tem-
são pode-se ler nos sinais do livro da natureza. se uma análise descritiva vinculando uma denúncia)
para a genealogia. Agora tem-se uma tática que, a partir
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da discursividade local (arqueologia) assim descrita, mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de
ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta custo afinal de contas irrisório”.
discursividade, construindo uma política de resistência Enquanto na arqueologia do saber ele procurou
e de luta. olhar para as transformações dos saberes, ou seja, como
Nesse sentido, para entender as relações de o saber foi sendo trabalhando a partir das ciências
poder é necessário, também, que se entenda como é humanas; na genealogia do poder ele dá um passo a
elaborada a noção de verdade em nossa sociedade, pois mais na profundidade da análise, ou seja, ele busca
é a partir daí que todo o sistema funciona. analisar não mais as transformações dos saberes, mas a
Caracterizando a economia política da verdade em origem dos saberes, o surgimento dos saberes.
nossa sociedade, podemos afirmar que a verdade é Assim, Foucault explicita que antes de olharmos
centrada na forma do discurso científico e nas para os saberes existentes, é preciso olhar e descobrir
instituições que a produzem. É objeto de uma grande que eles têm uma raiz, uma origem, uma criação. Ou
difusão que tem a missão de espalhá-la. seja, todas as sociedades, todas as culturas, todas as
Segundo Foucault, “o importante, creio, é que a classes, nenhuma é livre das relações de poder, porque
verdade não existe fora do poder ou sem poder. A em todas elas existem as relações de saber. E se
verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a precisamos de uma personificação dessas relações de
múltiplas coerções e nele produz efeitos poder, elas estão personificadas nos indivíduos.
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu Ele propõe, então, com a genealogia, uma
regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto concepção não jurídica do poder, ou seja, não podemos
é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar olhar para o poder apenas do ponto de vista da lei, da
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que repressão, da negatividade. Seria até um erro,
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos caracterizar o poder como negativo, repressivo, ou que
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as castiga, que impõe limites.
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a Veja o que ele diz em Vigiar e Punir: “temos que
obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o deixar de descrever sempre os efeitos do poder em
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. termos negativos: ‘ele exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’,
Em suma, podemos dizer que a verdade está ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’.
diretamente ligada ao sistema de poder, sustentando-o. Na verdade o poder produz; ele produz realidade;
Este sistema a elabora e reproduz de acordo com suas produz campos de objetos e rituais da verdade. O
necessidades. indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se
Até o final do século XVIII, a medicina era uma originam nessa produção”.
sabedoria particular do médico que auxiliava o doente Portanto, para Foucault, as relações de poder
no combate à epidemia. Com a necessidade de não são negativas justamente porque elas geram saberes
mudanças estruturais e arquitetônicas, o hospital novos, elas produzem, elas deslocam, mexem,
começou a utilizar a tecnologia política da disciplina. provocam. Todos os indivíduos participam dessas
Para isso modificou se espaço interno e externo relações. Nessa genealogia, todos produzem saber a
fazendo do médico seu organizador e utilizando o partir das relações de poder.
registro permanentemente. Assim, o hospital passa a ser A fase ética em Foucault se refere à
não apenas um local de cura, mas também de registro, subjetivação, ou melhor, à constituição dos sujeitos e,
acúmulo e formação de saber. A verdade que era dessa forma, o autor acreditava entender o
produzida passa a ser procurada através de técnicas. conhecimento e suas relações pela multiplicidade e por
Quando nos referimos à prisão, vemos também diversas dimensões.
que ela exerce um papel fundamental nessa relação de Aqui ele pretende responder a um problema
produzir verdades, por ser um mecanismo de específico, qual seja, por que se deu o nascimento de
manutenção do poder. Não é capaz de extinguir a uma moral, uma moral enquanto reflexão sobre a
delinquência, mas, antes, difunde a mesma para sexualidade, sobre o desejo, o prazer. Por que fizemos
justificar a ação policial sobre a população. da sexualidade uma experiência moral?
Assim como no final do século XVIII mudou- Essa pergunta fez ele mudar o rumo de suas
se de estratégia: do punir passou-se a vigiar. É mais pesquisas, fazendo-o recuar um pouco mais no tempo
eficiente. Até porque se imaginava que o homem faz o indo até a antiguidade clássica. O foco muda do sujeito
mal somente quando não está sendo visto. Com a objeto para o sujeito ético, indivíduo que se constitui a
estratégia do olhar vigiador esse problema estaria si mesmo, tomando então a relação a si e aos outros
resolvido pois, “sem necessitar de armas, violências enquanto “sujeito do desejo”, como espaço de
físicas, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar referência.
que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, Outra questão central é o sexo. As instituições
acabará por interiorizar, a ponto de observar a si apressaram-se em proibi-lo, não somente no discurso,
mas também nas instituições e na prática. A aversão a
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masturbação infantil surgiu no momento em que se nível do próprio corpo social, e não acima dele,
precisava de uma nova educação, pois se estava penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser
instalando a industrialização e uma das maneiras de caracterizado como micropoder ou subpoder.
disciplinar as crianças foi pela “repressão” sexual. Este processo de renovação e adaptação das
Nesse sentido, podemos constatar que, para se relações atinge certo grau de eficiência e o poder parece
responder a uma urgência histórica, se constrói o adquirir uma importante dose de autonomia, quase
dispositivo da sexualidade: uma rede que estabelece na como se fosse independente dos indivíduos. Através
relação de discursos, instituições, organizações, das ideologias e da burocracia, mas não só por elas, o
controladas através da confissão: o dirigido vai buscar poder se exerce, envolvendo-se nos indivíduos.
no confessor uma verdade – a do pecado cometido. A Diz Foucault: “O poder não se dá, não se troca
verdade exige um discurso próprio. Assim, para se nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação; (...) o
conseguir obter o saber válido para o sistema que o poder não é principalmente manutenção e reprodução
mantém, é preciso apossar-se do discurso que confere das relações econômicas, mas acima de tudo uma
esse saber. relação de força”. Ele até parece invisível, mas é
As obras que compõe essa fase de “constituição transmitido e reproduzido e perpetuado através dos
do sujeito ético” são os outros dois volumes da História indivíduos.
da sexualidade, escritos em 1984: Assim, o poder existe e age de modo sofisticado
1 – Uso dos prazeres (Volume II); e sutil. O poder disciplinar adestra os corpos no intuito
2 – O cuidado de si (Volume III). de tanto multiplicar suas forças, para que possam
produzir riquezas, quanto diminuir sua capacidade de
Relações de poder resistência política.
Para fazer essa análise do poder, Foucault
Todas as pessoas estão envolvidas por relações centra sua atenção no que chamou de poder disciplinar,
de poder e não podem ser consideradas independente além dos dispositivos da loucura e da sexualidade.
delas ou alheias a elas. Segundo ele, a finalidade das práticas de adestramento
Nas palavras de Foucault, “é preciso não tomar era disciplina e reclusão, tendo em vista a docilidade dos
o poder como um fenômeno de dominação maciço e corpos. Para chegar a essas conclusões que adentram o
homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um interior das relações humanas, em vez de analisar a
grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; história de origem única e causal, ele realiza uma
mas ter bem presente que o poder não é algo que se genealogia, ou seja, um olhar sobre as multiplicidades e
possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém as lutas.
exclusivamente e aqueles que não o possuem. O poder Para Foucault, “houve uma ideologia da
deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, educação, uma ideologia do poder monárquico, uma
como algo que só funciona em cadeia. Nunca está ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não
localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias:
nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O é muito menos e muito mais do que isso. São
poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os instrumentos reais de formação e de acumulação do
indivíduos não só circulam mas estão sempre em saber: métodos de observação, técnicas de registro,
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de
nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são verificação. Tudo isso significa que o poder, para
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a
poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles”. formar, organizar e pôr em circulação um saber”.
Dessa maneira, não existindo “o” poder, mas Desse modo, estamos todos envolvidos nessa
sim “relações de” poder, ele não está situado em um rede que recebe, gera e distribui o poder. Somos seres
lugar específico, mas está distribuído e agindo em toda relacionáveis, sociáveis, e isso nos envolve nas relações
a sociedade, em todos os lugares e em todas as pessoas. de poder. Foucault nos aproxima dessa temática e, mais
Através de seus mecanismos, o poder atua como uma que isso, ele nos envolve nessa teia, nessa rede chamada
força coagindo, disciplinando e controlando os poder.
indivíduos. O biopoder foi um termo-conceito criado pelo
Para Foucault, de acordo com as necessidades e próprio Foucault para mostrar a prática dos Estados
com as realidades de cada local, são produzidas novas modernos. Segundo ele, os Estados modernos regulam
relações de poder. A mecânica do poder que se expande os sujeitos (cidadãos) através de numerosas técnicas que
por toda a sociedade, assumindo as formas mais possibilitavam o controle dos corpos e da população
regionais e concretas, investindo em instituições, em geral.
tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse No que se refere ao poder, direito e verdade,
que intervém materialmente, atingindo a realidade mais sob a análise de Foucault, existe um triângulo em que
concreta dos indivíduos (o seu corpo), e se situa no
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cada item mencionado (poder, direito e verdade) se O poder disciplinar surgiu em substituição ao
encontra nos seus vértices. poder pastoral (no campo religioso), poder esse
Nesse triângulo, o filósofo vem demonstrar o exercido verticalmente por um pastor que depende do
poder como direito, pelas formas que a sociedade se seu rebanho e vice-versa. No poder pastoral, o pastor
coloca e se movimenta, ou seja, se há o rei, há também deve conhecer individualmente cada membro do seu
os súditos, se há leis que operam, há também os que a rebanho, se sacrificar por eles e salvá-los, estabelecendo
determinam e os que devem obediência. desse modo uma relação vertical, sacrificial e
O poder como verdade vem se instituir, ora salvacionista, individualizante e detalhista.
pelos discursos a que lhe é obrigada a produzir, ora No campo político, a sociedade estatal veio em
pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela substituição ao poder de soberania, vem da lógica
própria organização que a acomete e, por vezes, sem a pastoral, embora não possa ser salvacionista, nem
devida consciência e reflexão, “para assinalar piedoso e nem mesmo individualizante. Assim, o poder
simplesmente, não o próprio mecanismo da relação de soberania tem um déficit em relação ao poder
entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da pastoral. Daí surge o poder disciplinar para preencher
relação e sua constância, digamos isto: somos forçados essa lacuna, com efeitos individualizantes, vigilante, a
a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade fim de preencher os espaços vazios do campo político.
e que necessita dela para funcionar, temos de dizer a Em muitos momentos ocorreu a “a invasão do
verdade, somos coagidos, somos condenados a poder pastoral no plano político do corpo social”. Ou
confessar a verdade ou encontrá-la”. Nessa perspectiva, seja, o caráter individualizante do poder pastoral deveria
pode-se entender por poder uma ação sobre ações. ser abarcado pela sociedade estatal e essa contradição
pode ser bem identificada no estado de bem-estar
Estado e sociedade social.
A partir disso, podemos observar as
As relações de poder, direito e verdade, entre o transformações do Estado e suas formas de produção
Estado, mercado e sociedade civil são tão complexas, e/ou regulação. O estado de bem-estar social surgiu da
tácitas, intrínsecas e interdependentes que, por vezes, movimentação histórica em que houve urgência de o
encontram-se discursos de verdades e direitos Estado provir necessidades básicas para a sociedade,
desenhados pelo interesse individual, o que pode ser visto que o liberalismo não deu conta de suprir tais
chamado de relação de força, e tais forças estão necessidades. A economia capitalista entra na década de
distribuídas difusamente por todo tecido social. 1970 em profunda crise histórica, parecendo haver um
Para Foucault existem diversas ações que consenso entre as correntes conservadoras e
perfazem o poder, o direito e a verdade, ações essas que progressistas em relação ao seu caráter: trata-se de uma
são transportadas para aquelas que permeiam a tríplice crise de Estado.
Estado/mercado/sociedade civil. Assim, pode-se Essa passagem de Estado tutelar, assistencial
concluir que a harmonia das relações de poder-direito, (Estado produtor) a Estado de livre iniciativa (Estado
poder-verdade, estado, mercado e sociedade civil é regulador) coaduna com a questão levantada por
essencial para que as políticas e ações sejam Foucault, em relação à arte de governar: “como
fundamentadas nos princípios éticos. introduzir a economia — isto é, a maneira de gerir
Diante dos papéis possíveis que a sociedade corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no
pode apresentar, Foucault nos apresenta duas interior da família — ao nível da gestão de um Estado”.
tecnologias de poder, divididas em duas séries: a série Governar um Estado significará, portanto,
corpo — organismo/disciplina/instituições, que são os estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é,
mecanismos disciplinares; a série população — ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos
processos biológicos (que são os mecanismos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de
regulamentares)/Estado. vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de
Segundo ele, “uma técnica que é centrada no família.
corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o Adiante, ele vem colocar a população não só
corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e como força do soberano, mas como sujeito das
dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma necessidades e aspirações, consciente daquilo que se
tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, quer, e inconsciente em relação ao que se quer que ela
mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de faça. “O interesse individual — como consciência de
massas próprios de uma população”. cada indivíduo constituinte da população — e o
De acordo com Foucault a modernidade trouxe interesse geral — como interesse da população (...)”.
duas novidades fortemente interligadas: poder Dessa forma, governar e programar políticas públicas
disciplinar, no âmbito dos indivíduos; e sociedade perpassa pelas necessidades e aspirações da sociedade,
estatal, no âmbito do coletivo. identificadas não só pelo aspecto quantitativo de

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demanda mas, principalmente, pelo aspecto qualitativo Passada a época do principado, com as
para garantir a sua sustentabilidade. características de multiplicidade iniciada no século XVI,
que introduziu a ideia de Estado, tal como se tem hoje,
Governabilidade Foucault coloca como principais movimentos de
constituição desse Estado: o movimento de
Na Microfísica do poder (1979), Foucault coloca a concentração estatal; dispersão e dissidência religiosa.
governabilidade como objeto de estudo em relação às Foucault reflete sobre governabilidade a partir
formas de governar. Ele põe as questões do problema das três formas de governo:
da população e a questão de governo, em que faz 1 - o governo de si (a moral);
deferência à relação de segurança, população e governo, 2 - o governo da família e da casa (economia);
sendo este o objeto principal. 3 - o governo do Estado (a política).
Ele decorre pelo principado, em particular a Esmiuçando essas três formas de governo,
obra de Maquiavel, O príncipe, no sentido do modo de Foucault quer responder à questão postulada por
se comportar, de exercer o poder, de ser aceito pelos Rousseau: como introduzir a questão da economia ao
súditos. Dessa forma, traz à tona a temática acerca do nível geral do Estado, ou seja, o controle atento de um
governo dos estados pelos príncipes que seria: “(...) pai a riquezas, recursos, comportamentos individuais e
como se governar, como ser governado, como ser o coletivos, para que a convivência seja assegurada e
melhor governante possível etc.”. legitimada de forma conveniente e em prol do bem
Maquiavel, em princípio, como coloca comum.
Foucault, foi reverenciado por seus contemporâneos, Foucault aborda a questão da continuidade da
para depois ser abominado e sofrer uma enorme arte de governar: ascendente e descendente. Na
literatura contrária à sua obra, daí o termo pejorativo e continuidade ascendente, ele afirma que “aquele que
negativo de “maquiavélico”. É preciso levar em quer poder governar o Estado deve primeiro saber se
consideração que O príncipe, de Maquiavel, foi um governar, governar a sua família, seus bens, seu
postulado do comportamento do príncipe e dos que o patrimônio”. A continuidade descendente é no sentido
cercavam, no sentido de reproduzir o comportamento de que “quando o Estado é bem governado, os pais de
e não escrever um tratado, um manual “maquiavélico”. família sabem governar suas famílias, seus bens, seu
Como bem colocado por Foucault, O príncipe patrimônio e por sua vez os indivíduos se comportam
deve ser analisado não pela função de censura, mas pela como devem”.
positividade dos conceitos e estratégias. No primeiro As duas linhas de continuidade fecham o cerco
momento, Foucault coloca a relação de singularidade, para a arte de bem governar, ou melhor, uma sociedade
exterioridade e transcendência do príncipe em relação em que “todos” conseguem se governar e governar
ao principado, ou seja, o príncipe “recebe seu outrem; torna-se uma sociedade livre dos preceitos
principado por herança, por aquisição, por conquista, negativos imbricados nos interesses individuais
mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o colocados à frente dos coletivos, na sobreposição do
unem ao principado são de violência, de tradição, espaço privado ao espaço público.
estabelecidos por tratado com a cumplicidade ou Essas linhas de continuidade de Foucault vêm
aliança de outros príncipes”. chamar atenção para a linha central entre o governo de
Para ele, a constituição de governabilidade si (a moral) e o governo de Estado (a política), e o
implica analisar as formas de racionalidade, de governo da família (a economia), que permitirá que o
procedimentos técnicos, de formas de equilíbrio desse triângulo, moral — economia —
instrumentalização, “o essencial é, portanto, este política, possa ser encaminhado ao bem da sociedade.
conjunto de coisas e homens; o território e a
propriedade são apenas variáveis”. Quando se refere ao A sociedade da vigilância e punição
conjunto de coisas e homens, se refere à essência do ser
perante as suas necessidades, interações e bem-estar; as Para Foucault, estamos de uma forma ou de
propriedades, riquezas, recursos são as variáveis outra, todos envolvidos numa teia de relações que dá
pertinentes de cada território e que dão suporte ao vida e “movimento” ao poder. Ele propõe também uma
suprimento das necessidades do ser e o bem-estar da reflexão sobre a forma como os espaços se organizam
população. para formar isso que chamamos de sociedade. Sobre
Estas coisas, de que o governo deve se essa organização do espaço, que chamamos de
encarregar, são os homens, os recursos, os meios de sociedade, Foucault diz: “[...] é uma máquina que
subsistência, o território e suas fronteiras, com suas circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o
qualidades, clima, seca, fertilidade etc.; os homens em poder, quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce.
suas relações com outras coisas que são os costumes, os Isso me parece ser a característica das sociedades que se
hábitos, as formas de agir e pensar etc. instauraram no século XIX”.

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Mas Foucault vai além. Ele separa dois fatores carcerário torna natural e legítimo o exercício da
que para ele funcionam como “dispositivos” para o punição, acaba com os exageros do castigo, porém, dá
exercício do poder: a vigilância e a punição. legalidade aos mecanismos disciplinares. Quando a
Dispositivos são meios, formas, veios, caminhos, pelos punição se torna “legal” ela pode ser infligida pelo
quais o poder se exerce na sociedade. Dispositivos são poder sem que isso seja visto como excesso. O poder
mecanismos usados de forma discreta para dar força de punir torna-se discreto.
aos meios que, em suma, objetivam determinado fim. Na sua análise, “era assim que funcionava o
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em poder monárquico. A justiça só prendia uma proporção
um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado irrisória de criminosos; ela se utilizava do fato para
a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas dizer: é preciso que a punição seja espetacular para que
que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: os outros tenham medo”.
estratégias de relações de força sustentando tipos de Dessa forma, os dispositivos de vigilância e
saber e sendo sustentadas por eles. punição são inseridos na sociedade de forma discreta,
O primeiro dispositivo usado pela sociedade, arquitetada para significar necessidade. Chega um certo
segundo Foucault, é a vigilância. Para haver vigilância, ponto da construção da sociedade, que a existência
há custos econômicos e políticos. Econômicos porque desses dispositivos é vista como necessária,
precisam de investimentos com materiais e pessoas que indispensável e legítima pelos próprios cidadãos. É a
possam agir como vigilantes. Custos políticos porque se partir destes dispositivos que Foucault vai desenvolver
a violência existir, por causa da vigilância, podem sua análise do poder disciplinar, que já não é
ocorrer revoltas. Isso é um custo político porque apresentado de forma centralizado e sim, de forma
“desgasta” a imagem daqueles que estruturam essas dinâmico, atuando em todos os níveis da sociedade.
forças e mantém tais mecanismos.
Foucault também descreve o forte poder O olhar que controla
vigilante existente nas prisões, nas clínicas de
recuperação, nos hospitais, enfim, nas formas de No capítulo XIV da Microfísica do Poder,
construção e estruturação dos locais onde se tratam do intitulado “O olho do poder”, Foucault procura
ser humano. No entanto, para uma maior precisão trabalhar sobre a considerável mudança que acontece
sobre a eficácia da vigilância, cria-se a filosofia do na sociedade a partir do século XVIII.
controle pelo olhar. Seus estudos estiveram relacionados às
Nasce a figura do inspetor. Este, de um lugar instituições, quartéis, fábricas, prisões, hospitais
privilegiado, pode olhar e, desse modo, controlar a psiquiátricos e escolas, em que o autor perpassa pela
todos. O olhar torna-se uma boa forma de vigilância: sociedade disciplinar. A política que conduz tais
“O olhar vai exigir muito pouca despesa. Sem instituições, Foucault afirma ser a “continuação da
necessidade de armas, violência física, coações guerra por outros meios”. “A disciplina procede em
materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço”.
cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por Entretanto, a organização espacial, horários, escala
interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo hierárquica, tudo leva a essas instituições a prescrição
assim, cada um exercerá essa vigilância sobre e contra si de comportamentos humanos estabelecidos e
mesmo. Formula maravilhosa: um poder contínuo e de homogêneos, assim como descreve Foucault.
custo afinal de contas irrisório”. Ao estudar as instituições, Foucault já havia
Se um dos dispositivos é a vigilância, o outro é passado pela fase arqueológica que se constitui da
a punição. Em Vigiar e Punir, ele faz um estudo quase análise do discurso e do saber. Nessa nova etapa (das
científico sobre a evolução histórica da legislação penal instituições), o autor buscou melhor entender as
e os métodos coercitivos e punitivos, adotados pelo instituições e, por conseguinte, os sujeitos (fase ética).
poder público nas formas de repressão. Métodos que Analisando a arquitetura desenvolvida naquela
vão desde a violência física até instituições correcionais. época, Foucault observa principalmente como eram
Segundo Foucault, a aplicação da pena torna-se construídos os hospitais: com uma preocupação voltada
um procedimento burocrático, permitindo que a para o modo de separação dos doentes, isolamento em
punição seja oficializada pelo Estado mas, ao mesmo departamentos separados para evitar o contágio,
tempo, que justiça ou o sistema do estado tome uma classificação dos problemas de saúde através do
certa distância da prática da punição. Essa distância diagnóstico e, principalmente, desenvolvendo uma
justifica os atos de punição. Tais atos são apresentados maneira de vigiar o paciente e observá-lo. De
como necessários para corrigir, reeducar, curar aqueles preferência mantendo o indivíduo longe da sociedade
que são infratores da lei e da ordem. É a sadia, para “evitar os contatos, os contágios, as
institucionalização do direito de castigar, punir. aproximações e os amontoamentos”. Os médicos
Ele analisa outros sistemas de punição, mas tornam-se, dessa forma, os “especialistas do espaço”.
centra sua análise na prisão. Para ele o sistema
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Para ele, “toda uma problemática se desenvolve desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de
então: a de uma arquitetura que não é mais feita poder”.
simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou Ele explica que os “discursos de verdade” da
para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), sociedade, por meio de sua linguagem, comportamento
mas para permitir um controle interior, articulado e e valores, são relações constituídas de poder e, portanto,
detalhado – para tornar visíveis os que nela se aprisionam os sujeitos. Para ele, “cada sociedade tem
encontram”. seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade,
Um outro lugar onde a arquitetura exerce isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar
bastante influencia é na forma como são construídas as como verdadeiros..., os meios pelo qual cada um deles
prisões: celas, torres de observações, aberturas é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados
estratégicas, iluminação especial. Tudo para permitir na aquisição da verdade; o status daqueles que estão
um olhar que controle tudo e todos. Vigiar é preciso. encarregados de dizer o que conta como verdadeiro”.
As construções eram então da seguinte forma: Para tanto, Foucault vê na linguagem uma
“Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma forma já constituída na sociedade, e por esse motivo, os
torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a discursos já circulam por muito tempo: “(...) analisando
parte interior do anel. A construção periférica é dividida os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços
em celas, cada uma ocupando toda a largura da aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e
construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo- destacar um conjunto de regras, próprias da prática
se para o interior, correspondendo às janelas da torre; discursiva”.
outra dando para o exterior permite que a luz atravesse De acordo com Foucault, as técnicas e práticas
a cela de um lado para o outro. Basta então colocar um que induzem ao comportamento da internalização de
vigia na torre central e em cada cela trancaria um louco, movimentos sem questionamentos são chamadas de
um doente, um condenado, um operário ou um tecnologias do eu. As tecnologias de poder como
estudante. Devido ao efeito da contraluz, podem-se produtoras da subjetividade, a análise arqueológica e a
perceber, da torre, recortando-se na luminosidade, as análise genealógica são alguns dos aspectos que podem
silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma ser utilizados para analisar a construção histórica de
inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de uma visão mecanicista e reducionista da sociedade.
um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, O panoptismo é um laboratório de poder. Cada
protegia”. vez que se aplica vai aperfeiçoando o exercício de poder
Surge daí o conceito “olho do poder”, que porque reduz o número dos que exercem e multiplica-
estabelece uma nova forma de controle. Controle este se o número daqueles sobre os quais é exercido. Assim,
que está calcado no olhar, na vigilância e não mais na a forma do panóptico é uma maneira de perpetuar o
força, como ocorreu até o século XVIII. poder porque todos estão sujeitos à verificação que este
Com a restauração do sistema penal, a pena de estabelece uma vez que qualquer pessoa pode assumir a
morte só aparece nos casos extremos. A prisão passa a torre central e exercer a vigilância. O poder torna-se,
ser admitida como a forma de punição ideal, então, perpétuo, porque o panóptico o amplia; não pelo
transformando-se no local que irá corrigir reformar, próprio poder, mas para fortificar as forças sociais,
reeducar e civilizar o indivíduo. O fator punitivo está na “aumentar a produção, desenvolver a economia,
usurpação da liberdade (que passa a ser vigiada) e na espalhar a instrução, elevar o nível da moral publica;
correção disciplinar do detento para que este mude a fazer crescer e multiplicar.”
sua forma de agir, tornando-se normal e produtivo. A Com esse poderoso olhar, que tudo pode ver e
prisão, então faz com que todos produzam: seja por vigiar (o do panóptico) temos uma diferente maneira de
meio de incentivo, ou por meio de castigo. analisar as relações sociais: não uma relação de
Com toda essa mudança estrutural, nasce o que soberania, como sugeriam os autores modernos
Foucault chama de PANOPTISMO. É uma figura Hobbes e Rousseau, mas numa relação de disciplina ou
arquitetural que tem a visibilidade como uma armadilha. que usa de mecanismos disciplinares que tornam o
Para garantir a ordem na prisão, se constrói celas de poder rápido, eficaz, eficiente e sutil. A formação da
onde não se pode ver, mas ser visto. Isso garante a sociedade disciplinar vem da necessidade de ordenação
ordem. O panóptico tem como efeito mais importante das multiplicidades humanas. Consequentemente de
induzir o detento a estar consciente de que se está sendo uma explosão demográfica no século XVIII, a
observado. Dessa forma, o poder é automático e sociedade necessita de um ordenamento.
desindividualizado. É uma maquinaria facilmente
assumida e controlada por qualquer indivíduo. A disciplina aplicada ao corpo
O panoptismo é, portanto, um dispositivo
invertido do espetáculo, shows, circo, poucos assistem Com a necessidade de um ordenamento da
ao que acontece com a multidão. Segundo Foucault: “o sociedade, teve-se uma preocupação especial em se
panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos impor uma disciplina ao corpo. Este se deve adequar
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espacial e funcionalmente. E vemos que esta adequação por idade, a classificação de conteúdos, as questões
se dá num âmbito geral porque ela está implantada em classificadas e tratadas por ordem de dificuldade
todos os seguimentos da sociedade e do indivíduo: na potencializam resultados, comportamentos e valores de
escola, no quartel, nos hospitais. Sua característica mais valia.
principal é a observância do detalhe. Segundo ele, “a minúcia dos regulamentos, o
Para Foucault, “não se trata de cuidar do corpo, olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade parcelas da vida e do corpo darão, em breve, no quadro
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou
ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito”.
atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo As análises de Foucault das instituições não são
ativo. (...). Esses métodos que permitem o controle uma crítica pura, mas trazem reflexões aos sistemas
minucioso das operações do corpo, que realizam a instituídos no interior delas, à medida que ocorre sua
sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma progressão histórica. A ordem disciplinar, como vista,
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos perfaz uma forma de instituir ordem e alçar eficiência e
chamar as ‘disciplinas’.” utilidade econômica.
Todas as atividades desenvolvidas pelos Segundo ele, “o corpo humano entra numa
indivíduos devem ser rítmicas e estabelecidas em um maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e
determinado tempo. O corpo deve assumir uma o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também
determinada postura que seja adequada para mais igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela
eficiência. O soldado é o exemplo de como o corpo é define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
alvo do poder disciplinar. O corpo torna-se dócil, pois outros, não simplesmente para que façam o que se quer,
pode ser manipulado, submetido, aperfeiçoado. Assim, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
quando se impõe a disciplina ao corpo se está tentando segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
impor a toda a sociedade porque ele não se torna apenas disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
obediente, mas também, útil. corpos ‘dóceis’.”
Nasce uma “mecânica do poder”, onde os É importante destacar que para Foucault corpos
corpos tornam-se dóceis e manipuláveis da maneira que dóceis são corpos maleáveis e moldáveis, o que significa
se quer. No entanto, esse é um processo que não se dá que, por um lado, a disciplina se submete ao corpo num
de repente. Vem das escolas primárias dos colégios, dos ganho de força pela sua utilidade; e, por outro lado,
hospitais, e da organização militar, uma vez que nestes perde força pela sua sujeição à obediência política. Nas
ambientes se busca valorizar os detalhes, as minúcias. suas palavras, “(...) se a exploração econômica separa a
O homem moderno nasce neste esmiuçamento, que força e o produto do trabalho, digamos que a coerção
nada mais é que uma tática usada para o controle e disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre
utilização dos homens. uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”.
Foucault, quando fez a análise das instituições Esse modelo de reclusão e disciplina usado nos
sobre a ideia do panoptismo, trouxe as escolas, quartéis quartéis, nos conventos etc., contribui para o
e hospitais como modelos do aparelhamento nascimento das fábricas que seguem as mesmas regras,
disciplinar, como já visto. os mesmos parâmetros de ação dirigida ao indivíduo de
Nesse sentido, ele perpassa em primeiro lugar modo a evitar roubos, vadiagem, enfim, para vigiar o
pela distribuição dos corpos no espaço, “o espaço comportamento de cada um. As relações de poder são
escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela sutilmente estabelecidas em meio a estes ambientes.
agora só se compõe de elementos individuais que vêm Nas fábricas do fim do século XVIII surge o
se colocar uns ao lado dos outros sob o olhar do mestre “quadriculamento individualizante”, onde as pessoas
(...)”. Em segundo lugar, pelo controle das atividades, são distribuídas em postos, pois, assim, a força de
seja na rigidez do cumprimento de horários; seja na trabalho pode ser analisada em unidades individuais de
penetração do tempo nos corpos, a fim de prevalecerem acordo com a função que o indivíduo exerce.
os efeitos de poder; seja pela eficiência, rapidez e Nesse sentido, nos diversos modos de se aplicar
utilidade dadas pelos corpos disciplinados; seja na esse poder controlador do olhar panóptico, há o
articulação corpo-objeto, no que se refere à surgimento das celas, dos lugares designados para cada
manipulação do corpo ao objeto e na engrenagem de um, das fileiras nos colégios, etc. para propiciar isso, a
um e outro; seja, por fim, pela utilização exaustiva, que arquitetura tem lugar muito importante no modo de
importa extrair do tempo sempre mais tempos construir os edifícios, na maneira de dividir as salas, na
disponíveis e dessa forma tornar cada instante mais disposição dos móveis, na maneira como se posicionam
forças úteis. os corredores, janelas e jardins.
A ordenação por fileiras, a colocação de cada Surge desses detalhes o que Foucault chama de
aluno em suas tarefas e provas, o alinhamento de classes relações “microfísicas” do poder, apresentadas de
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maneira celular, discreta e arquitetonicamente a disciplina produz a partir do controle de corpos, que
planejada. a seu ver é constituída de quatro espécies:
Para que a população em geral se familiarize 1) celular — pelo jogo de repartição espacial;
com essa sociedade, com a preocupação em manter 2) orgânica — pela codificação das atividades;
uma disciplina do corpo e com a preocupação de ser 3) genética — pela acumulação do tempo;
útil a cada momento e cada vez mais, é preciso que haja 4) combinatória — pela composição de forças.
uma “domesticação” dessa população. Isso se dá Para ele, “O exercício da disciplina supõe um
através dos moldes dos meios militares e conventos, dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho
que apresentam e vivem com horários determinados e onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de
rigorosamente cumpridos; com formulas de boa poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem
convivência, de eficiência e produção constante. Dá-se claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.”
aqui o uso exaustivo do tempo visando garantir a O fim último do poder disciplinar é
qualidade e o controle. Busca-se o tempo útil para evitar ADESTRAR. A disciplina fabrica indivíduos através de
a vadiagem, os desocupados e os conflitos. No exército um poder que circula discretamente, de forma modesta,
chega-se a fazer com que até mesmos os passos sejam desconfiada, mas permanente.
dados ao mesmo tempo, numa sincronia invejável. O Em Vigiar e punir, Foucault vem retratar, além
corpo é ajustado ao tempo e, uma vez disciplinado, da ordem disciplinar, os dispositivos que a fazem
gerará gestos eficientes. ganhar força.
A disciplina é um controle do tempo. Isto é, São simples os instrumentos que o fazem
estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o acontecer: o olhar hierárquico instituído através da
objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo ordenação espacial é analisada no panoptismo (se
de eficácia. Neste sentido, não é o resultado que traduz no ver sem ser visto que se apresenta por um
interessa, mas seu desenvolvimento. E esse controle lado de maneira discreta porque é silencioso e anônimo
minucioso das operações do corpo, ela o realiza através e, por outro lado de forma bastante indiscreta, porque
da elaboração temporal do ato, da correlação de um está inserido em todas as partes, alerta, controlando), a
gesto com o corpo que o produz e, finalmente, pela sansão normalizadora (se referem à imposição de
articulação do corpo com o objeto a ser manipulado. ordem, escala hierárquica, dispositivos de comando,
Dessa forma, podemos verificar uma mudança corrigindo os desvios, as negligencias, a tagarelice e,
de uma visão de massa para uma visão mais enfim, todos os atos que fogem à normalidade,
individualizante das pessoas; por conta deste produzindo comportamentos aceitáveis e eficientes) e o
deslocamento é exigida uma maior eficiência em exame (onde cada indivíduo é diagnosticado a partir do
consequência da disciplina que lhe é imposta. O homem que faz e pensa e da maneira como age.
passa a ser como que a engrenagem de uma máquina Cada um é colocado numa ficha, num cadastro,
funcional. É proibido, ou indesejável, falhar. Cada um que o define como sendo dessa ou daquela forma, desse
deve estar interligado ao outro. Desenvolve-se a ideia ou daquele comportamento, com essas ou aquelas
de que se cada um desenvolver bem seu papel e capacidades, com essas ou aquelas fraquezas).
“funcionar” de maneira correta, todo o conjunto Esse exame está presente nos hospitais (através
alcançará ótimos resultados. doa médicos), nos colégios (com os mestres), nos
Para se chegar a esse resultado positivo é quartéis (com o corpo militar), nas igrejas (através do
necessário que se tenha um importante e eficiente padre que atende a confissão).
sistema de comando. Não se exige da pessoa que Segundo Foucault, “o exame combina as
entenda o funcionamento do todo, mas que seja técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que
eficiente no seu espaço. Por exemplo, o responsável normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância
pelo sino do colégio, o olhar constante do inspetor que que permite qualificar, classificar e punir. (...). É por isso
vigia e guarda os corredores, o responsável pela fila que que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é
consequentemente deve ser formada. “O aluno deverá altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia
aprender o código dos sinais e atender automaticamente do poder e a forma da experiência, a demonstração da
a cada um deles”. força e o estabelecimento da verdade”.
Tudo isso existe na tentativa de manter a ordem. Ele coloca o exame no centro dos processos
Essas micro-maneiras de reproduzir o poder é que dá que constituem o indivíduo “como efeito e objeto de
sustentação a toda essa engrenagem que por aí se poder, como efeito e objeto de saber”. Portanto, o
sustenta. caminho para a individualização acaba por ser regido
Essa disciplina vai criar uma individualidade, e pelo percurso disciplinar e pelos exames que qualificam
é na fase ética, que trata da subjetivação e constituição e classificam os sujeitos.
do sujeito, que Foucault faz uma análise (a partir dessa Os rituais nos quais os indivíduos estão sujeitos
fase genealógica aqui percorrida) de como é formado corporificam e fabricam a individualidade celular,
esse mecanismo de produção das individualidades que orgânica, genética e combinatória, entre o aparelho
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institucional e entre as sanções normalizadoras em que seja útil, produtivo, ágil. Isso porque o aumento da
estão inseridos. população coloca a família não mais como centro, mas
como segmento interno desta que se tornará o alvo do
Considerações finais governo que quer “olhar a sorte da população,
aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde,
O modo como Foucault trata a questão do etc.”.
poder é inédito. Ao invés do modelo jurídico-político, Nesse caso, o poder disciplinar não pode ser
Foucault mergulha no detalhado esquema apresentado deixado de lado porque através dele se pode gerir a
pela sociedade disciplinar. Faz um recorte histórico e população em profundidade, em detalhe. Estudar o
procura analisar o como desse poder que está poder em sua face externa, onde ele se implanta e
subjacente às práticas que os homens desenvolvem em produz efeitos reais. Não é perguntando o porquê do
sua vivência social. poder, o que ele procura e qual é a sua estratégia, mas
Foucault pergunta pelas relações de poder, pelas como estão constituídos aqueles que estão sujeitos a
ramificações, pelas táticas que buscam observar os esse poder. Não é querer formular o problema da “alma
detalhes, as minúcias, o comportamento, o modo de ser central” do poder (como faz Hobbes, no Leviatã), mas
de cada um para que possa domesticá-lo, encaixá-lo estudar os corpos sujeitos do poder. Essa nova
num espaço quadriculado a partir das verdades vividas tecnologia de poder não tem sua origem com um
e reproduzidas naquele momento histórico. indivíduo ou um determinado Estado ou Monarquia.
Não que para Foucault não tenha importância Ele foi requerido em determinadas condições locais, a
estar atento ao poder estatal, instituído, representado partir de urgências particulares. Analisar os mecanismos
pelo Estado. Muito pelo contrário. Diz ele que, se o desse poder significa, em suma, ver as posições e os
problema do poder estivesse centrado nessa visão modos de ação de cada um.
hierarquizada seria fácil acabar com o poder. O que Em face de toda essa análise feita do poder,
acontece é que ele se sustenta não por subjugar, Foucault diz que cabe apenas resistir a ele, pois sempre
submeter, constranger, obrigar, sempre de cima para haverá poder já que ele se exerce produzindo verdade
baixo, mas justamente porque essas ramificações acerca do sujeito, fazendo aparecer indivíduo.
existentes na base, dão força de sustentação para que o
Estado se mantenha. 7. JÜRGEN HABERMAS
Se nos perguntarmos sobre como acontece isso,
Foucault nos vai mostrar que é da forma mais simples Habermas é conhecido por suas teorias sobre a
possível: nas normas e regulamentos de um colégio; do razão comunicativa e a esfera pública sendo
sábio sobre o ignorante; do general que exige harmonia, considerado como um dos mais importantes
sincronia e cadencia nos gestos dos soldados; do padre intelectuais contemporâneos.
que, através da confissão, analisa e julga o
comportamento do fiel em relação a Deus; do guarda
de transito que, atrás da farda e do apito se faz
respeitado frente a uma grande quantidade de
motoristas; enfim, onde há relacionamento humano, há
essa relação de poder.
A partir dessa visão de que se deve vigiar cada
indivíduo, registrar cada doente numa ficha de relatório,
separar os doentes dos sadios, manter a ordem nas
repartições públicas (escolas, por exemplo), manter
vigiada a prática da delinquência, punir os infratores,
respeitar os saberes das ciências, etc. subjaz toda uma
tentativa de manter o poder maior uma vez que as
instâncias vão se completando num leque cada vez
maior de relações até chegar no Estado que, com todos
os micro poderes funcionando, se mantém.
Segundo Foucault, “temos que deixar de
descrever sempre os efeitos de poder em termos
negativos: ele “exclui”, “recalca”, “censura”, “abstrai”,
“máscara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz
realidade, produz campos de objetos e rituais da
verdade”.
Porque o indivíduo é adestrado, corrigido, não
mais como força e martírio e morte, mas para que ele
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Sua preocupação com as questões políticas baseadas em símbolos – seguem uma lógica
aparece desde a sua tese de doutorado quando realizou interpretativa.
uma pesquisa empírica sobre a participação estudantil E em cada um desses temas expressa-se a
na política alemã, intitulada “Estudante e Política”. característica de Habermas, herança explícita da Escola
Doutorou-se em 1954 e em 1961 conquistou sua livre- de Frankfurt, isto é, a abordagem dita “crítica” a
docência com a tese intitulada “Mudanças estruturais respeito das teorias, das ciências e do próprio presente,
do espaço público”. Em 1954, tornou-se assistente de construindo, assim, um conhecimento engajado e
Theodor Adorno (1903-1969), no Instituto de Pesquisa revolucionário.
Social (Escola) de Frankfurt de 1956 a 1959. Seguindo este eixo e introduzindo uma nova
Seu trabalho trata ainda dos fundamentos da visão a respeito das relações entre a linguagem e a
teoria social, da análise da democracia, do Estado de sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é
direito e da política contemporânea, particularmente na considerada sua obra mais importante: Teoria da Ação
Alemanha. Esteve preocupado com o restabelecimento Comunicativa.
dos vínculos entre socialismo e democracia e seu Em algumas outras obras ele abordou as
interesse esteve centrado no desenvolvimento de uma ciências sociais e, em especial, dedicou-se a estudar o
teoria crítica da sociedade. Direito.
Em seu sistema teórico, Habermas procura Em Conhecimento e Interesse (1968), Habermas
revelar as possibilidades da razão, da emancipação e da apresenta uma distinção entre as ciências exatas e as
comunicação racional-crítica, latentes nas instituições ciências humanas, afirmando a especificidade das
modernas e na capacidade humana de deliberar e agir ciências sociais
em função de interesses racionais. No seu livro A Transformação Estrutural da Esfera
Esse projeto fez com que ele adotasse o Pública (1962), aborda o fundamento da legitimidade da
paradigma da razão comunicativa, como uma forma de autoridade política como o consenso e a discussão
superar os impasses criados pelas análises de Adorno e racional.
Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento. Na obra Entre Fatos e Normas (1996), ele faz uma
Habermas concebe a razão comunicativa – e a ação descrição do contexto social necessário à democracia,
comunicativa – como alternativa à razão instrumental bem como esclarece fundamentos da lei, de direitos
teorizada por Adorno e Horkheimer. fundamentais bem como uma crítica ao papel da lei e
Várias obras e artigos foram publicados pelo do Estado.
filósofo nos anos seguintes, entre os quais se destacam: A obra habermasiana tem diversos momentos e
A Transformação Estrutural da Esfera Pública, em 1962; a um dos mais importante ocorre no final dos anos 70 e
famosa Teoria e Práxis, em 1963; Lógica das Ciências começo dos anos 80 onde ocorrerá a tentativa de inserir
Sociais, em 1967; e Técnica e Ciência como Ideologia e a ideia de um consenso discursivo em uma teoria da
Conhecimento e Interesse, ambas em 1968. reflexividade da ação social.
Autor de vasta obra, que compreende A “Teoria da Ação Comunicativa” é a obra
hermenêutica jurídica; críticas ferrenhas ao positivismo onde esse empreendimento é construído do ponto de
em sua expressão resultante, o tecnicismo; análise do vista teórico. Duas dimensões são centrais a esse
Marxismo e muitos outros temas, Jürgen Habermas é empreendimento: a construção de um conceito de
representante da segunda fase da Escola da Frankfurt. mundo social reflexivamente adquirido e a ideia de uma
Contudo, mesmo sendo vasta a sua obra, o forma de ação que seja intersubjetiva e voltada para um
principal eixo das discussões do filósofo é, sem dúvida, consenso comunicativo. Essa ação intersubjetiva se
a crítica ao tecnicismo e cientificismo que, ao seu ver, torna uma dimensão central pois a subjetividade não é
reduziam todo o conhecimento humano ao domínio da construída através de um ato solitário, mas é resultante
técnica e modelo das ciências empíricas, limitando o das interações que estabelecem nesse mundo social, a
campo de atuação da razão humana a todo partir de uma complexa rede de interações sociais, que
conhecimento que fosse objetivo e prático. são simultaneamente dialógicas e comunicativas. É
Destacam-se, assim, três ideias fundamentais dentro desta perspectiva que Habermas procura
seguidas por Habermas: trabalhar com o conceito de uma racionalidade
a) Teoria da Ação Comunicativa; comunicativa.
b) A defesa da existência de uma esfera A Teoria do Agir Comunicativo é uma obra de
pública, na qual os cidadãos, livres de domínio político, arquitetura complexa. O objetivo é a formulação de
podem expor ideias e discuti-las – Habermas, contudo, uma teoria orgânica da racionalidade crítica e
destaca que a mídia exerce influência no sentido de comunicativa; uma teoria fundada sob a dialética entre
diminuir este espaço; agir instrumental e agir comunicativo ou, como ele diz,
c) A ideia de que as ciências naturais entre “sistema e mundo da vida”. O sistema está
seguem uma lógica objetiva, enquanto as ciências vinculado ao agir instrumental; é o Estado com seu
humanas – uma vez que a sociedade e a cultura são aparato e a sua organização econômica. O mundo da
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vida está vinculado ao agir comunicativo; é o conjunto linguagem. Sem ela, não temos nem conhecimento e
de valores que cada um de nós individualmente ou nem acesso ao mundo.
comunitariamente “vive” de maneira imediata, Todos nós vivemos dentro de uma teia de
espontânea e natural. relações humanas onde a linguagem marca as
coordenadas da nossa vida na sociedade e enche esta
Teoria do Agir Comunicativo vida de objetos dotados de significação.
Um sujeito solitário não terá como agir
A Teoria do Agir Comunicativo de Habermas comunicativamente. Comunicação que é concebida
tem sido analisada sob diferentes enfoques: seja sua como um ato intrinsecamente intersubjetivo. Por isso a
aplicação às teorias sociais, políticas e democráticas seja teoria do agir comunicativo só pode ser fundada sobre
sua relação com o direito, com a saúde e muitas outras. as estruturas da linguagem natural, capaz de produzir
Sua obra é dominada por quatro eixos temáticos, uma racionalidade baseada em uma compreensão
1) fundamentação de um conceito de intersubjetiva. O conceito de agir comunicativo refere-
racionalidade comunicativa que serve de base e se, portanto, a interação de pelo menos dois sujeitos
princípio norteador; capazes de se expressar através da linguagem e que, por
2) dicotomia entre agir estratégico ou meios verbais ou não, estabeleçam uma relação entre si.
instrumental e agir comunicativo; A tarefa da linguagem, no agir comunicativo, é
3) elaboração de uma nova teoria da ordem fornecer o horizonte pré-estruturado a partir do qual os
social com primazia do agir comunicativo; sujeitos podem relacionar-se entre si e sobre o mundo.
4) contraposição entre mundo da vida e sistema. O entendimento possível entre os sujeitos dá-se na
A obra contém também um diálogo crítico com linguagem porque nela está depositado o saber pré-
autores consagrados das ciências sociais, como a análise teórico específico do gênero humano. A linguagem,
da teoria da racionalização de Max Weber, análise da como horizonte pré-estruturante, possibilita as
teoria da comunicação de G. H. Mead e da sociologia experiências, as ações e a obtenção do consenso.
da religião de Durkheim. Está posto o caminho, grosso modo, para se
Habermas afirma, no prefácio da Lógica das criar a teoria habermasiana do agir comunicativo e de
ciências sociais que já havia prefigurado o surgimento da uma racionalidade comunicativa. Racionalidade
teoria do agir comunicativo, a partir de um viés comunicativa que está intimamente ligada ao agir
metodológico para uma fundamentação teórico- comunicativo e tem como objetivo a busca do consenso
linguística das ciências sociais. A teoria do agir entre sujeitos capazes de falarem e agirem. Mediatizadas
comunicativo “substancializa”, por assim dizer, essa pela linguagem, toda relação existente entre sujeitos que
ideia. Neste mesmo prefácio Habermas afirma que a interagem uns com os outros está inevitavelmente
obra foi escrita ao longo de quatro anos e desenvolve presente em toda comunicação humana e, por
“o conceito fundamental de agir comunicativo, abrindo conseguinte, o conhecimento, a partir de sua mediação
caminho para três complexos temáticos ligados entre si: pela linguagem, só pode ser concebido como a
o conceito de racionalidade comunicativa; o conceito de compreensão comunicativa e formação do consenso
sociedade em dois níveis, a saber, “mundo da vida” e sobre algo do mundo.
“sistema”; e por fim uma teoria da modernidade que Ao ventilar que a linguagem, enquanto ato de
“deve possibilitar uma conceitualização do contexto entendimento é consenso humano sobre questões
social da vida que se revele adequada aos paradoxos da pertinentes (ética, política, direito, moral, estética,
modernidade”. poder) inicia-se o abandono do paradigma monológico
A premissa básica da Teoria da Ação Comunicativa da razão kantiana, fundada no discernimento pessoal,
é a de que os homens são capazes de ação, e para tanto, para um paradigma do entendimento mútuo mediado
se utilizam da linguagem para se comunicar com seus intersubjetivamente pela linguagem.
pares, buscando chegar a um entendimento. Sendo o A partir da publicação da obra Teoria do Agir
princípio base da razão comunicativa a linguagem, esta Comunicativo, Habermas começa um processo de
constitui o meio através do qual as interações sociais se aplicação da sua concepção de teoria do discurso à
dão no mundo da vida. política contemporânea. Ele irá operacionalizar tal
A linguagem mediatiza fundamentalmente toda aplicação através da percepção de que o problema da
relação significativa entre sujeito e objeto. Ela está legitimidade na política está ligado a um processo de
inevitavelmente presente em toda comunicação deliberação coletiva que contasse com a participação
humana, a qual implica um entendimento mútuo sobre racional de todos os indivíduos possivelmente
o sentido de todas as palavras e sobre o sentido do ser interessados ou afetados por decisões políticas.
das coisas mediadas pelos significados da palavra. A Esta obra que é considerada a mais importante
linguagem possui, primordialmente, um sentido tem uma relevância sem precedentes dentro do
comunicativo, ou seja, nós moramos na linguagem. contexto atual de qualquer regime que se pretende
Para nos comunicarmos, a única alternativa é a democrático. Habermas sugere um modelo ideal de
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ação comunicativa e democracia deliberativa, no qual as condições universais de produção de enunciados que
pessoas interagem através da linguagem, organizam-se visem ao entendimento, uma vez que todas as normas
em sociedade e procuram o consenso de forma não de ação social são entendidas como derivadas do agir
coercitiva. voltado para o entendimento.
Uma democracia deliberativa que defende que De outro modo, as relações mediadas
o exercício da cidadania se estende para além da mera comunicativamente devem ser inteligíveis, sob pena de
participação no processo eleitoral, exigindo uma ofuscar o entendimento. Para isso, Habermas identifica
participação mais direta dos indivíduos no domínio da na filosofia da linguagem de cunho analítico os
esfera pública, em um processo contínuo de discussão pressupostos de validade do ato de fala, onde se
e crítica reflexiva das normas e valores sociais. As encontra o fundamento da racionalidade comunicativa.
questões sociais e coletivas devem ser objeto de Para Habermas, entender um “ato-de-fala”,
apreciação de todos. Ora, se nós considerarmos que em significa que, pelo menos, dois sujeitos, linguística e
uma sociedade democrática, a esfera pública é interativamente competentes, compreendem
dominada pelo discurso e pela argumentação, de identicamente uma mesma impressão. E é este
interesses da coletividade, então fica fácil entender a entendimento que pode possibilitar a obtenção de um
importância dessa Teoria da Ação Comunicativa. Sua consenso, um consenso que seja aceito como válido
relevância está, indubitavelmente, em pretender o fim para todos os participantes do discurso, fundando na
da arbitrariedade e da coerção nas questões que ação e na razão comunicativa.
envolvem toda a comunidade, propondo uma Para tentar ilustrar suas ideias Habermas cria
participação mais ativa e igualitária de todos os cidadãos uma “situação de fala ideal”, em que o filósofo
nas discussões em torno da coisa pública. Essa forma pressupõe uma situação onde os participantes são
defendida por Habermas é o agir comunicativo que se autênticos e verdadeiros. Uma situação talvez
ramifica no discurso. empiricamente impossível de ser atingida, mas
Do ponto de vista do exercício democrático, pressuposta como real em cada discurso onde uma
Habermas pressupõe que as instituições devem estar questão possa ser tematizada e onde os participantes
organizadas e estruturadas de maneira que o discurso atuem livres de coerções naturais e/ou intrapsíquicas.
possa surgir como forma de resolução dos conflitos
surgidos das quebras pactuais ou dificuldades de A Esfera Pública
comunicação das comunidades. O ponto central é,
portanto, o mesmo, independente da sua formulação. Entre 1989 e 1992, Habermas, pela primeira vez
As normas e as decisões políticas só podem desde os anos 60, reconsidera o seu pensamento sobre
legitimarem-se em decorrência de poderem ser a esfera pública. Isso acontece devido a um congresso
questionadas e aceitas no discurso entre cidadãos livres sobre o tema em 1989, no qual o filósofo foi
e iguais. confrontado com releituras da sua obra e do conceito
A ação comunicativa habermasiana pressupõe por ele desenvolvido em 1962.
uma teoria social: a do mundo da vida; e contrapõe-se à Isso o levou a publicar Direito e Democracia: Entre
uma ação estratégica, regida pela lógica da dominação. Facticidade e Validade, em 1992, obra que traz, entre
A ação comunicativa tem como lócus privilegiado outras coisas, a noção de esfera pública de volta ao
o mundo da vida . patrimônio argumentativo do pensador alemão.
Ao conceito de agir comunicativo Habermas Também, pela primeira vez em trinta anos, é
opõe o conceito de agir estratégico, sendo que ambos feita a conexão entre a noção de esfera pública e temas-
estão ligados entre si, porém se distinguem e se chave do seu patrimônio, como “ação comunicativa”
diferenciam: o agir comunicativo parte do pressuposto “formação discursiva da opinião e da vontade” e
que as decisões levam em conta os interesses “discurso”.
interpessoais do bem-comum e da reciprocidade, ao Esfera pública é o domínio ou espaço
passo que o agir estratégico pressupõe que as decisões socialmente reconhecido, mas não-institucionalizado,
levam em conta os interesses pessoais individuais. O onde há a livre circulação de questões, informações,
agir estratégico tem como horizonte os interesses pontos de vista e argumentos provenientes das
individuais da ação, com o objetivo de obter sucesso e vivências diárias dos sujeitos. Assim como as câmaras e
poder. O agir comunicativo não pode, ao contrário, ser tribunais existem por meio dos debates
orientado por interesses pessoais, já que pressupõe institucionalizados, a esfera pública se realiza por meio
satisfazer as condições de entendimento e cooperação da livre flutuação de problemas e contribuições.
e consenso. Para ajudar a definir o que é a esfera pública,
O agir comunicativo compreende aquelas ações Habermas usa metáforas, como a dos sensores sociais,
orientadas para o entendimento e o agente é o sujeito por exemplo. A esfera pública nesse caso seria uma
competente linguisticamente para agir na busca do ampla rede de radares e sensores, localizados no
consenso. Trata-se de uma tentativa de compreender as interior da sociedade, sensíveis ao ponto de perceber e
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identificar os problemas da sociedade. Ainda nessa Nesse sentido, entender, como Habermas, que
ideia, a sugestão dos radares sociais se junta à metáfora as formas da ação comunicativa (do mundo da vida)
da caixa de ressonância. A esfera pública não é capaz de seriam capazes, com base na organização política de
resolver, sozinha, os problemas sociais, portanto, ela movimentos sociais, de conter esse avanço pressupõe
aumenta seu eco e volume para conseguir chamar a que o processo de reinvenção e reorganização da
atenção dos parlamentares e orientar suas decisões. economia capitalista em algum momento cederá a
Habermas se esforça para ligar a esfera pública argumentos racionalmente defendidos na esfera
a uma das suas principais teorias: a ação comunicativa. pública.
A sua existência depende dessa ação voltada para o Na esfera pública, onde impera a razão
entendimento, ou seja, aquela em que os sujeitos comunicativa, as pessoas dialogam livres das pressões
orientam o seu comportamento pela vontade de econômicas e políticas, construindo argumentos
entender uns aos outros. A esfera pública não tem racionais que produzem normas morais válidas em uma
propriamente a ver nem com as funções nem com os “situação ideal de fala” que permite o consenso do
conteúdos da ação comunicativa; a esfera pública é, na conjunto dos indivíduos, não privilegiando nenhum
verdade, o espaço social que a ação comunicativa interesse particular.
forma. É importante deixar claro que Habermas
Nesse sentido, a esfera pública tem grande constrói uma ética procedimentalista na medida em que
função em explicar os processos pelos quais são não afirma o que seja certo ou errado, justo ou injusto.
formadas a opinião e a vontade coletivas. Esses Ele explicita a forma, o meio, o procedimento a
processos são baseados em interações, de modo que ser tomado pelos indivíduos para que cheguem a essas
precisam de comunicação e busca de consenso. Para conclusões através de um diálogo livre de qualquer tipo
Habermas, parece razoável e democrático que a opinião de dominação ideológica.
pública e a vontade geral devam ser formadas
discursivamente. Direito e Moral
Somente as leis que surgem de um processo
discursivo, debatido por todos os cidadãos A obra Direito e Moral é dividida em dois
interessados, em situação de igualdade de segmentos principais, o primeiro fazendo uma crítica a
oportunidades e direitos, são democraticamente pontos de vista de Max Weber no que toca o direito e a
legitimas. moral, tendo como título “Como é possível a
legitimidade através da legalidade”; e o segundo
Ética do discurso mostrando se o desmoronamento do direito puramente
racional resulta em um estado jurídico com maior
Se as ações sociais de natureza comunicativa agilidade diante da sociedade, sendo o título “Para a
estão concentradas na esfera pública, são os ideia do estado jurídico”.
movimentos sociais que reorganizam as formas de O primeiro grande segmento é subdividido em
participação democrática. Portanto, os movimentos três partes. Na primeira parte Habermas comenta a
sociais devem preservar as formas de solidariedade visão de Max Weber sobre a racionalidade do direito.
postas em risco pelo Estado ou pelas corporações Segundo Weber a racionalidade só existe devido ao
capitalistas, exercendo o papel de atores sociais e caráter formal que está incutido no direito, ou seja, só
políticos na defesa de um espaço autônomo e pode existir a razão em decorrência da obediência aos
democrático. procedimentos jurídicos.
Tais atores sociais têm como objetivo a Dessa forma, moral e direito são dois campos
organização e a reprodução da cultura, sobretudo com separados, sendo a moral subjetiva e o direito
base na formação de identidades e solidariedades objetivamente racional. Assim a interferência da moral
coletivas. no direito acabaria por retirar a racionalidade do
Uma questão importante que se coloca à teoria mesmo. Mas Habermas nos mostra que o próprio ato
de Habermas diz respeito à contenção da tendência de de seguir os procedimentos jurídicos já implica na
desenvolvimento do dinheiro e do poder (do sistema) mistura entre moral e direito, afinal o direito é
pelos movimentos sociais, isto é, a contenção da constituído de normas estabelecidas por um legislador
racionalidade instrumental pelo agir comunicativo. e este possui uma moral que acaba sendo incorporada à
Marx, no Manifesto comunista, ao analisar o lei. Sendo assim, a teoria de Weber onde a legitimidade
desenvolvimento da sociedade capitalista, afirmou que só pode ser alcançada pela legalidade puramente
“tudo o que é sólido e estável se volatiza, tudo o que é racional perde força.
sagrado é profanado”. Em outras palavras, a lógica de Na segunda parte são abordados alguns
produção e reprodução da sociedade capitalista tende a fenômenos não previstos por Weber. Dessa forma
invadir todos os espaços sociais. temos o direito reflexivo, onde os juristas refletem
sobre as leis e fazendo isso acabam recorrendo a
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preceitos morais para explicá-las. Podemos falar ainda Concluindo


da marginalização dos litígios, pois as partes envolvidas
podem fazer contratos aproveitando brechas na lei e O objetivo de Habermas é compreender
acabam tornando o processo bastante subjetivo. Os como as sociedades ocidentais estão organizadas e quais
imperativos funcionais, onde a criação de condições os efeitos desse processo de racionalização sobre os
para um estado regulador pender espaço para as agentes sociais.
preferências geradas pelo dinheiro e poder, deixando de Apesar do predomínio da lógica estratégica do
lado a razão. Por fim temos a sucessão de legisladores, mercado e do Estado, a ação comunicativa tem papel
que tentam embutir seus próprios padrões morais na lei. decisivo na constituição das formas de solidariedade e
Para encerrar esse segmento do texto o autor ainda de identidade sociais.
menciona a axiologia das Constituições Federais Na prática, Habermas admite um confronto
existentes como uma prova de padrões morais constante entre a lógica instrumental (o “sistema”) e o
presentes na lei. agir comunicativo (o “mundo da vida”). Ele entende
O último texto deste segmento mostra como que o sistema e o mundo da vida seriam formas
nossa sociedade aceita a legitimidade só através da sintéticas para qualificar a racionalidade instrumental e
legalidade, sendo assim é preciso fundamentar esta o agir comunicativo. O ponto de encontro dessas duas
legalidade. Já foram utilizados fundamentos como a lógicas distintas se daria nos espaços de disputa política.
metafísica e a religião, mas atualmente estes não são A lógica instrumental do mercado se apresenta
mais aceitos. Assim se buscou a razão como como um processo em desenvolvimento. Ou seja, ainda
fundamento para nossa legalidade. Mas se de acordo há espaços sociais em que a razão instrumental não
com Max Weber a inserção da moral no direito retira predomina, onde ainda prevalecem as relações de
sua razão e por sua vez sua legalidade, podemos solidariedade e identidade social. Mas o
questionar o fato de a razão estar baseada na moral; desenvolvimento da racionalidade instrumental coloca
afinal não retiramos os padrões morais sociais do limbo. esses espaços em risco.
A segunda parte do livro também é dividida em Habermas identifica esse processo como uma
três partes. A primeira delas mostra como o sistema forma de colonização do mundo da vida pelo sistema.
jurídico não está preso aos conceitos gerais da teoria de O desenvolvimento de sistemas econômicos e
sistema. Isso acontece porque o direito tem uma administrativos de racionalidade instrumental tende a
necessidade peculiar, que não ocorre na maioria dos colonizar, com base no dinheiro e no poder, áreas de
sistemas, a de se adaptar constantemente e rapidamente interação ainda não governadas por eles.
às mudanças que se desenrolam na sociedade como um Criam-se, dessa forma, conflitos sociais, já que
todo. Afinal a norma jurídica tem lacunas que devem essas áreas se caracterizam pela transmissão cultural,
ser preenchidas para manter a sociedade controlada e pela integração social e pela socialização, isto é, são
regulada. dependentes de uma articulação social que se daria pelo
Nesta próxima parte o autor busca mostrar o entendimento mútuo.
entrelaçamento do direito e da moral com a política. Ou A partir dessas considerações, Habermas elege
seja, expor que o direito não se coloca a serviço da a esfera pública como um local onde os atores sociais,
política, pois se a política controlasse o direito a sobretudo os movimentos sociais, resistiriam ao
legitimidade daquela seria comprometida pois este não desenvolvimento da racionalidade instrumental.
teria poder para dar credibilidade, sendo o direito Fundamentadas na linguagem e em argumentos
incorporado à política. E a seguir vemos que o contrário discursivamente defendidos, os atores sociais se
também é impensável, pois a ideia de que o direito expressam e resistem ao avanço do sistema. Suas
pudesse criar suas próprias estruturas normativas pela competências comunicativas são, assim, as formas
razão também lesaria a legitimidade da norma jurídica. privilegiadas de contenção da racionalidade estratégica.
Por fim, Habermas mostra o porquê da
transformação do direito racional em estado jurídico. 8. JOHN RAWLS
Uma sociedade como à atual não pode se prender as
estruturas formais presentes no direito racionalista. Os John Rawls (1921 – 2002) nasceu em Baltimore,
mercados pedem uma maior agilidade por parte do estudou em Princeton e, depois de uma estadia em
ordenamento jurídico, assim se abre espaço para o Oxford, voltou para os Estados Unidos, passando a
direito subjetivo criar as condições necessárias para tal ensinar na Universidade de Harvard, onde também
agilidade. Os contratos privados ganham uma maior ensina seu mais aguerrido e leal adversário: Robert
autonomia para preencher as lacunas da legislação e Nozick.
dessa maneira a moral ganha um grande espaço no Rawls é conhecido por ter publicado em 1971
direito pois os contratos privados são subjetivos e a um dos livros mais discutidos - e mais influentes -
subjetividade é uma das manifestações mais claras da destes últimos vinte anos: Uma teoria da justiça.
moral.
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Karl Popper definiu a obra de John Rawls como Os utilitaristas - pensemos, justamente, em
“um livro importantíssimo sob muitos aspectos”, e Bentham ou em Mill – perseguiram o ideal do maior
apreciou muito a ideia de Rawls segundo o qual é um bem-estar para o maior número de pessoas; por
projeto de vida “que caracteriza as intenções ou as conseguinte, defenderam uma concepção tal que no
finalidades que fazem de um homem ‘uma pessoa moral fim, de fato, comportava a submissão do indivíduo a
unificada, consciente’”. sociedade. Rawls combate tal impostação, enquanto, a
seu ver, nenhum homem deve sofrer privações em
vantagem de algum outro ou da “maior parte da
sociedade”.

“Véu de ignorância e posição originária”

Rawls, na pesquisa de Uma teoria da justiça, parte


daquela que ele chama de posição originária. Esta
posição originaria é o estado em que se encontram os
indivíduos que devem determinar o contrato. Ela não é
uma hipótese de estado de natureza, mais ou menos
fictícia. É simplesmente um expediente heurístico
imaginado “de modo a obter - afirma Rawls - a solução
desejada”.
Na posição originária, os indivíduos particulares
se encontram em uma situação de equidade, isto é, de
igualdade; e tal equidade deve-se ao véu de ignorância
que caracteriza a condição dos indivíduos que se põem
na posição originária.
Escreve Rawls: “Devemos de algum modo
Por sua vez, justamente Robert Nozick zerar os efeitos das consequências particulares que
escreveu que Uma teoria da justiça “é uma fonte de ideias põem em dificuldade os homens, e que os impelem a
iluminadoras, fundidas em um conjunto agradável. Ora, desfrutar em sua própria vantagem as circunstâncias
os filósofos devem trabalhar dentro da teoria de Rawls, naturais e sociais. Com este objetivo, assumo que as
ou então explicar por que não o fazem [...]. Também partes estão situadas por trás de um véu de ignorância.
quem não estiver convencido do desencontro com a As partes não sabem de que modo as alternativas
visão sistemática de Rawls aprenderá muito, estudando- influenciarão em seu caso particular, e são por isso
o aprofundadamente”. Essas coisas, ditas por seu obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em
adversário mais temível, constituem o melhor elogio da considerações gerais. Assume-se, portanto, que as
obra de Rawls. partes não conhecem alguns tipos de fatos particulares.
Primeiramente, ninguém conhece seu próprio
Contra o Utilitarismo lugar na sociedade, sua posição de classe ou seu status
social; o mesmo vale na distribuição dos dotes e das
Desde os inícios de seu livro Uma teoria da justiça, capacidades naturais, sua força, inteligência e
Rawls é claro sobre o fato de que sua teoria é de semelhantes. Além disso, ninguém conhece sua própria
“natureza profundamente kantiana”; e isso no sentido concepção do bem, nem os particulares dos próprios
de que ele põe sua obra na esteira do contratualismo planos racionais de vida e nem as próprias
(Locke, Rousseau, Kant), em contraste com a tradição características psicológicas particulares, como a aversão
do utilitarismo (Hume, Bentham e Mill). ao risco ou a tendência ao pessimismo ou ao otimismo.
O intento de fundo da obra de Rawls está na Além disso, assumo que as partes não conheçam as
proposta e no exame de princípios em grau de sustentar circunstâncias especificas de sua sociedade”.
uma sociedade livre e justa. “A justiça - escreve Rawls -
é o primeiro requisito das instituições sociais, assim A posição originária faz escolher princípios
como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. E universais
logo acrescenta: “uma teoria, por mais simples e Pois bem, em urna situação desse tipo, nessa
elegante que seja, deve ser abandonada ou modificada, posição originária, o véu de ignorância torna todos
se não for verdadeira”. Pois bem, “do mesmo modo as iguais. O véu de ignorância não beneficia ninguém;
leis e as instituições, não importa o quanto sejam portanto, nenhum dos contraentes poderá propor uma
eficientes e bem urdidas, devem ser reformadas ou sociedade futura ou instituições em sua própria
abolidas se forem injustas”. vantagem; ninguém sabe qual é ou será seu próprio
Mas quando é que leis e instituições são justas? interesse ou privilégio particular.
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A posição originária faz com que todos sejam As desigualdades econômicas e sociais são
igualmente racionais e reciprocamente desinteressados; admitidas, ou seja, são justas, não por beneficiar os
é uma situação que obriga todos a escolher princípios poucos ou os muitos ou os mais, mas apenas com a
universais de justiça, ou, para dizer com Kant - ao qual condição de que favoreçam todos, e de modo especial
Rawls se remete -, princípios de uma moral autônoma os mais desfavorecidos.
que nós mesmos nos damos não como seres
interessados nisto ou naquilo, ou como membros desta O primeiro princípio de justiça
ou daquela sociedade, mas como seres livres e racionais. O primeiro princípio de justiça fala das
“O véu de ignorância - escreve Rawls - priva a pessoa liberdades individuais. Estas liberdades, iguais para
na posição originária dos conhecimentos que a todos, são a liberdade de pensamento e de consciência,
colocariam em grau de escolher princípios a liberdade de palavra e de reunião, a liberdade da
heterônomos. As partes chegam juntas à sua escolha, detenção arbitrária, a liberdade política – o direito de
enquanto pessoas livres, racionais e iguais, conhecendo voto.
apenas as circunstâncias que fazem surgir a necessidade A Constituição e as leis têm a função de garantir
de princípios de justiça”. o uso livre destas liberdades, onde se deve salientar que
Os indivíduos que se encontram na posição as liberdades de consciência e de pensamento são as
originária não podem propor princípios ou pensar em primeiras na graduação, as absolutamente
uma sociedade em que poderão ser favorecidos eles irrenunciáveis. E, diz Rawls, “não só deve ser permitido
mesmos ou talvez seus amigos, e desfavorecidos os aos indivíduos fazer ou não fazer uma coisa, mas o
outros. Ninguém sabe nada nem de si mesmo nem dos governo e as outras pessoas têm também o dever legal
outros. de não criar obstáculos”.
A única escolha possível é, então, a que deverá Por outro lado, um sistema inspirado na
se referir a todos; tratar-se-á, portanto, de uma escolha liberdade não pode se autodestruir deixando, por
de princípios universais de justiça. exemplo, livres os intolerantes. A liberdade deve ser
defendida por meio de um sistema de regras que
Dois princípios de justiça consigam defini-la.
Na base da proposta dos princípios que Escreve Rawls: “Nos Estados democráticos,
constituem “a estrutura fundamental da sociedade” há, alguns grupos políticos sustentam doutrinas que os
portanto, um contrato. As partes contraentes são todos impelem a suprimir as liberdades constitucionais toda
os indivíduos - não conta aqui o tempo nem tem vez que obtiverem o poder; do mesmo modo há aqueles
importância nenhuma as gerações - que se põem na que negam a liberdade individual mas que ensinam nas
posição originária. Objeto do contrato são os dois universidades”.
princípios de justiça, que são princípios morais e que Eis, portanto, um problema não descartável:
serão expostos em breve. E a motivação que está por deve-se ser tolerante com os intolerantes?
trás do contrato e da proposta dos dois princípios é Rawls responde a esta pergunta afirmando que
principalmente a de se proteger contra a possibilidade os intolerantes não tem nenhum direito de queixar-se
de se encontrar amanhã entre os desfavorecidos. da intolerância; isso, todavia, não justifica, em sua
O primeiro princípio de justiça é o seguinte: opinião, o fato de que os tolerantes teriam o direito de
“toda pessoa tem direito igual a mais extensa suprimi-los.
liberdade fundamental, compativelmente com Apenas em um caso Rawls admite a intolerância
semelhante liberdade para os outros”. contra os intolerantes: no caso em que a segurança dos
O segundo princípio sustenta que: tolerantes seja posta em perigo, e isso pelo motivo de
“as desigualdades econômicas e sociais, como as que “toda pessoa na posição originária deliberaria em
de riqueza e de poder, são justas apenas se produzem favor da autoconservação”.
benefícios compensatórios para cada um, e em A justiça não requer de fato o sacrifício da auto-
particular para os membros menos favorecidos da aniquilação; “mas - afirma Rawls - quando a
sociedade”. Constituição é salva, não há mais nenhuma razão de
O primeiro princípio funciona como negar a liberdade aos intolerantes”.
fundamento das liberdades individuais; ele “requer a
igualdade na atribuição dos direitos e dos deveres O segundo princípio de justiça
fundamentais”. O segundo princípio não justifica o
sacrifício de alguns, mesmo que ele chegue a produzir Mais de uma vez, em Uma teoria da justiça,
um bem maior para alguns ou para a maioria. encontramos reformulado o segundo princípio de
Isso é o que o utilitarismo propõe; mas Rawls é justiça.
antiutilitarista: Já vimos uma primeira formulação:
“O fato de que alguns tenham menos a fim de “As desigualdades econômicas e sociais, como
que outros prosperem pode ser útil, mas é injusto”. as de riqueza e de poder, são justas apenas se produzem
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benefícios compensat6rios para cada um, e em 3. ROBERT NOZICK


particular para os membros menos favorecidos da
sociedade”.
Uma segunda formulação é a seguinte:
“As desigualdades sociais e econômicas
devem ser combinadas de modo a ser (a) para o maior
benefício dos menos favorecidos, (b) ligadas também
a posições abertas a todos em condições de justa
igualdade e pertença”.
E, a seguir, uma posterior formulação do
princípio:
“As desigualdades sociais e econômicas
devem ser combinadas de modo a ser (a)
razoavelmente previstas para a vantagem de cada um,
(b) ligadas a funções e posições abertas a todos”.
O segundo princípio de justiça afirma que as
desigualdades na distribuição da renda são injustas
quando não são para o benefício de todos e, de modo O “Estado mínimo”
especial, dos mais desfavorecidos; e que as funções e as
posições de prestígio devem estar abertas a todos. O Robert Nozick (1938-2002) descende de uma
segundo princípio de justiça, portanto, projeta e exige a família de judeus russos. Ele conta de si mesmo: “O
reparação das desvantagens dos menos favorecidos. interesse que me levou à filosofia foi decididamente
Que em uma sociedade existam pessoas em político”.
condições ruins de saúde, portadoras de deficiências, ou Da filosofia analítica Nozick aprende “a pensar
indivíduos que, desmerecidamente, tem uma renda de modo claro e rigoroso”. Mas ele acha demasiado
demasiado baixa, tudo isso é um fato. A existência dos restrito para seus interesses o estilo de pensamento
desfavorecidos é um fato; e os fatos não são nem justos analítico: “Jamais desejei ser um filósofo analítico, e sim
nem injustos. Mas - precisa Rawls – “aquilo que é justo um pensador que levava, dentro dos confins da análise,
e aquilo que é injusto é o modo com que as instituições alguma coisa que considerasse útil e interessante”.
tratam esses fatos”. De 1974 é, portanto, Anarquia, Estado e utopia.
E para que as instituições sejam justas em Em 1981 Nozick publica Explicações filosóficas. “Velhas
relação aos desfavorecidos, estas, na opinião de Rawls, perguntas - escreve Nozick - estimularam esse ensaio:
devem fazer valer aquilo que ele chama de princípio de A vida tem um significado? Existem verdades éticas
diferença, princípio que requer que “as maiores objetivas? Nossa vontade é livre? Qual é a natureza de
expectativas dos mais favorecidos contribuam para as nossa identidade, de nosso si mesmo? Nosso
perspectivas daqueles que são menos favorecidos”. conhecimento e compreensão devem observar limites
Para sermos claros: isso equivale a dizer que se, imutáveis?”
por causa de uma lei, fossem limitadas as perspectivas E tais questões filosóficas de fundo são
dos mais favorecidos, e tal limitação acarretasse um enfrentadas no quadro de uma crítica da ideia de que a
dano para os desfavorecidos, a lei em questão seria argumentação filosófica seja de natureza coercitiva:
injusta. Arrancar o empreendimento filosófico do espírito da
Por outro lado, se uma melhoria das disputa e restitui-lo sobre novas bases, mais pluralistas,
perspectivas dos mais favorecidos servisse para da compreensão, é o objetivo central do pensamento de
melhorar as perspectivas dos desfavorecidos, tal Nozick.
melhoria não deveria ser considerada injusta. Mas isso Questões fundamentais da filosofia enfrenta
nos limites impostos pelo princípio do “maxmin” também o mais recente trabalho de Nozick O Exame da
(maximum minimorurn), para o qual é permitida não Vida (em italiano, publicado em 1989). Aqui ele procura
qualquer desigualdade, e sim são permitidas unicamente responder a perguntas como as seguintes: “Por que a
as desigualdades que maximizam o mínimo. felicidade não é a única coisa que conta? Como poderia
Como se vê o princípio do maxmin impõe que o ser a imortalidade, e que sentido teria? Os bens
verdadeiro indicador da maximização não é a melhoria herdados deveriam passar de geração em geração? As
das condições de toda a sociedade, mas a específica das doutrinas orientais da iluminação são válidas? O que é
posições dos mais fracos. E é aqui que se encontra a a criatividade, e por que as pessoas protelam o
razão pela qual Daniel Bell definiu as ideias de Rawls enfrentamento de projetos promissores? O que
como “a maior tentativa de justificar, em nossos dias, perderíamos se jamais experimentássemos alguma
uma ética socialista”. Contra essa tentativa se emoção, mas pudéssemos em todo caso ter sensações
confrontará Robert Nozick.
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agradáveis? De que modo o Holocausto mudou a Do Estado de natureza ao “Estado mínimo”


humanidade? O que é que não funciona quando alguém
pensa principalmente na riqueza e no poder? Uma Nozick parte do Estado de natureza de Locke -
pessoa religiosa pode explicar por que Deus permite onde os indivíduos estão prontos para fazer justiça por
que exista o mal? O que há de particularmente valioso si mesmos contra os usurpadores de seus próprios
no modo com que o amor passional altera uma pessoa? direitos. Todavia, enquanto Locke sustenta que se sai
O que é a sabedoria, e por que os filósofos a amam do Estado de natureza e se entra no Estado civil por
tanto? O que dizer da cisão entre ideais e fatos? Existem meio de um contrato ou acordo, Nozick afirma que do
coisas mais reais que outras, e podemos nós mesmos Estado de natureza chega-se ao Estado mínimo não por
nos tornarmos mais reais?" meio de um contrato e sim espontaneamente, por obra
O trabalho, todavia, certamente mais conhecido daquela que Adam Smith havia chamado de “mão
e mais discutido de Nozick é Anarquia, Estado e utopia, invisível”, atravessando as fases sucessivas da
um livro que se apresenta como alternativa à obra de associação de proteção, da associação protetora
John Rawls Uma teoria da justiça. dominante e do Estado ultramínimo.
O Estado nasce, portanto, espontaneamente, e
Os direitos invioláveis dos indivíduos e o “Estado não é de fato - como o desejariam os anárquicos - uma
mínimo” construção imoral que viola e esmaga os direitos dos
cidadãos.
O assunto de fundo de Anarquia, Estado e utopia “O Estado ultramínimo reserva-se o monopólio
é o seguinte: “Os indivíduos têm direitos; há coisas que de todo uso da força, excluindo a força necessária para
nenhuma pessoa ou nenhum grupo pode lhes fazer a autodefesa imediata; exclui assim as represálias
(sem violar seus direitos). Tais direitos são tão fortes e privadas (ou das companhias) aos erros, e a exação
de tão grande porte, que levantam o problema do que o privada dos ressarcimentos. Fornece, porém, serviços
Estado e seus funcionários possam fazer, se podem de proteção e de aplicação dos direitos apenas a quem
alguma coisa”. Eis, portanto, a pergunta central que compra as suas próprias apólices de proteção e de
Nozick se coloca: quanto espaço deixam para o Estado aplicação dos direitos. Quem não adquire um contrato
os direitos dos indivíduos? de proteção do monopólio não obtém proteção”.
E as conclusões a que ele chega em suas Pois bem, diversamente do Estado
reflexões sobre o Estado são: “que um Estado mínimo, ultramínimo, no Estado mínimo os cidadãos que
reduzido estritamente às funções de proteção contra a podem pagam as taxas para que a todos sejam
força, o furto, a fraude, de execução dos contratos, e garantidas proteção e aplicação dos direitos.
assim por diante, é justificado; que qualquer Estado Esta é a concepção liberal clássica do Estado
mais extenso violará os direitos das pessoas de não mínimo como guarda noturno, cuja tarefa consiste em
serem obrigadas a realizar certas coisas, e é injustificado; fazer respeitar os “vínculos colaterais” que derivam da
e que o Estado mínimo é sedutor, além de justo”. inviolabilidade dos indivíduos, os quais não são meios
Duas implicações de tudo isso, e que Nozick para o Estado e devem ser tratados pelo Estado como
julga dignas de nota, são que “o Estado não pode usar fins.
seu aparato coercitivo com o objetivo de fazer com que
alguns cidadãos ajudem outros, ou para proibir às Ninguém pode ser sacrificado em benefício de
pessoas atividades para seu próprio bem ou para sua outros
própria proteção”. Portanto, a proposta de Nozick
consiste na defesa dos direitos invioláveis de indivíduos, A inviolabilidade das pessoas significa,
indivíduos que vivem dentro de um Estado mínimo, ou exatamente, que os indivíduos devem ser respeitados
seja, de um Estado que se limita a proteger os cidadãos como fins. E ninguém deve fazer sacrifícios dos quais
da violência, do furto, da fraude e na execução de alguma entidade social ou outras pessoas tirarão
contratos. vantagens maiores. Mas que sentido tem falar de
A concepção de Nozick é uma concepção entidades sociais? A realidade é que “há apenas
individualista: é o indivíduo que ele quer defender indivíduos, indivíduos diferentes, com suas vidas
contra a ingerência e a intervenção do Estado. E aqui individuais. Usando um destes indivíduos para a
imediatamente se abre caminho para a objeção vantagem de outros, usa-se dele e se favorecem outros
anárquica: não seria melhor que o Estado de fato não e basta. O que acontece? Que lhe é feito alguma coisa
existisse? O Estado não é, por sua natureza, em proveito de outros. Isso está escondido sob o
intrinsecamente imoral? discurso do bem social complexivo.
Robert Nozick rejeita a objeção anárquica (Intencionalmente?)”.
elaborando uma explicação (na sua opinião em todo Todo individuo é uma “pessoa separada” e “a
caso instrutiva) “do modo com que o Estado poderia dele é a única vida que possui”. Ninguém - insiste
ter nascido, mesmo que não tenha nascido assim”. Nozick - pode impor sacrifícios a um indivíduo em
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benefício de outros indivíduos, e muito menos o “neste argumento entram as descrições gerais da troca
Estado. voluntária, da doação e (no extremo oposto) da fraude
A ideia fundamental é que existem indivíduos e, além disso, faz-se referência a convenções
diferentes com vidas separadas e que “ninguém pode particulares especiais, escolhidas em dada sociedade” .
ser sacrificado em favor de outros”. Ninguém, e muito O terceiro argumento refere-se à justiça na
menos o Estado, pode decidir que alguns indivíduos propriedade: “se a injustiça passada formou a
sejam recursos para outros. propriedade atual de vários modos, alguns identificáveis
e outros não, o que a este ponto se deveria fazer para
Os direitos dos animais remediar essas injustiças, uma vez que se deva?”.

Dos direitos dos homens chegamos aos dos Os três princípios da justiça
animais não humanos. Nozick pergunta:
“Existem limites ao que podemos fazer aos A matéria do primeiro argumento é regulada,
animais? Os animais têm seguramente o status moral de para Nozick, pelo princípio de justiça na aquisição:
objetos?” “Um processo que normalmente dá origem a um direito
É a Jeremy Bentham que ele se remete, ao de propriedade permanente e transmissível por herança
Bentham que não conseguia ver uma razão sequer que sobre uma coisa precedentemente sem possuidor, não
permitisse atormentar os animais, e que sustentava que será feito se a posição de outros, que não tem mais a
a questão não é se os animais podem raciocinar ou se liberdade de usar a coisa, se tornar pior”.
podem falar, e sim se podem sofrer. Nozick não quer O segundo argumento é regulado pelo princípio
ser mal-entendido e não quer que se creia que, segundo de justiça na transferência: a transferência da
ele, “deve-se dar aos animais o mesmo valor moral que propriedade é justa se é fruto de livre vontade e não
às pessoas”. Seu intento é o de discutir novamente a resultado de imposições, nem de fraude; em linha geral
questão da diferença entre homens e animais, e de ela se efetua com base em critérios válidos e que
delimitar novamente o mapa dos direitos dos animais. funcionam nesta ou naquela sociedade.
No entanto, por algumas perguntas que ele coloca, A matéria do terceiro argumento é regulada pelo
aparece suficientemente clara a direção de sua proposta. princípio de retificação: “este princípio usa os dados
Examinemos, diz ele, o caso da caça; pois bem, históricos sobre as situações precedentes e sobre as
é justo perseguir e matar animais por puro injustiças nelas realizadas, e os dados sobre o curso real,
divertimento? E suponhamos que comer animais não até agora, dos eventos originados por essas injustiças, e
seja necessário à saúde. Em um caso desse tipo o prazer favorece uma descrição (ou descrições) da propriedade
de comer animais estaria “nos prazeres do paladar, nas na sociedade. O princípio de retificação servir-se-á
delicias do gosto, na variedade dos sabores”. presumivelmente da melhor avaliação dos dados,
Pois bem, “esses prazeres superam no querer o hipotéticos, sobre o que teria acontecido se a injustiça
valor moral que se deve dar a vida e aos sofrimentos não tivesse acontecido”.
dos animais?” Eis, portanto, delineada em suas linhas de fundo
uma teoria histórica da justiça, onde vemos que “a
Os três argumentos de uma teoria histórica da propriedade de uma pessoa é justa se a pessoa tem
justiça direito a ela em decorrência dos princípios de justiça na
aquisição e na transferência, ou do princípio de
Intervencionistas e totalitários sustentam que ao retificação da injustiça”.
Estado cabe fixar e aplicar os critérios para distribuir de
modo justo a riqueza. Contra esses modelos abstratos Não existe critério para estabelecer qual é a
de justiça - e sobretudo contra aquela “obra sistemática sociedade perfeita
de filosofia política e moral vigorosa, profunda, sutil, de
amplo fôlego” que é Uma Teoria da Justiça de J. Rawls -, A ideia de Estado mínimo parece “pálida e
Nozick propõe uma teoria histórica da justiça. Essa fraca”, escreve Nozick, se comparada com as
teoria compreende três argumentos. esperanças e os sonhos dos teóricos da utopia. Todavia,
O primeiro é a aquisição inicial da propriedade; quais são e quantas são as possíveis utopias? Como será
esse argumento compreende os problemas de como o melhor dos mundos possíveis? E “melhor” para
coisas sem possuidor podem vir a ser possuídas, o quem? - uma vez que é claro que “entre todos os
processo, ou os processos com que as coisas sem mundos que posso imaginar, aquele em que eu
possuidor podem vir a ser possuídas com esses preferiria viver não será exatamente o mesmo que vocês
processos, a extensão daquilo que vem a ser possuído escolheriam”.
com um processo particular, e assim por diante. Aqui Nozick elenca os nomes de diversas
O segundo argumento refere-se à pessoas ilustres: “Wittgenstein, Elisabeth Taylor,
transferência da propriedade de uma pessoa para outra: Bertrand Russell, Thoreau, Picasso, Moisés, Einstein,
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Henry Ford, Lenny Bruce, Gandhi, Buda, Frank todos realizar a tentativa de construir sua visão e
Sinatra, Colombo, Freud, o barão Rothschild, Ted oferecer um exemplo sedutor”.
Williams, Thomas Edison, vocês e seus genitores”. Existe, portanto, o palco para utopias e existem
Feita esta lista de nomes, Nozick pede para as comunidades particulares dentro desse palco. E a
imaginar que todos eles vivam em uma das utopias este ponto aparece com toda evidência, assegura
quaisquer que foram descritas em seus particulares. Pois Nozick, que “o palco para uma utopia que descrevemos
bem, qual será a sociedade ideal para todas essas equivale ao Estado mínimo. O Estado mínimo é o
pessoas? único moralmente legitimo e o único moralmente
Viveriam elas no luxo ou levariam uma vida tolerável, é aquele que melhor do que todos realiza as
austera? Em tal sociedade haveria o matrimônio? Seria aspirações utópicas de fileiras de sonhadores e de
ele monogâmico? As crianças seriam criadas pelos visionários”. E se as coisas assim se configuram, “o
genitores? Existiria a propriedade privada? Haveria uma Estado mínimo, o palco para urna utopia, não é talvez
religião ou mais fés? O que aconteceria com a arte? uma visão atraente?”
Haverá modas de vestuário? Diante de tais e outras A verdade – assim Nozick conclui Anarquia,
perguntas, Nozick conclui que “a ideia de que exista Estado, utopia - é a seguinte: “O Estado mínimo trata-
uma resposta compósita melhor do que toda outra para nos como indivíduos invioláveis, que não podem ser
todas essas perguntas, uma sociedade em que todos usados por outros de certo modo como meios ou
podem viver no mundo melhor, parece-me ferramentas ou instrumentos ou recursos; trata-nos
inacreditável. (E a ideia de que, se houver uma, dela como pessoas que têm direitos individuais com toda a
saibamos o bastante para descrevê-la, é ainda mais dignidade que daí provém. Tratando-nos com respeito
incrível)”. porque respeita nossos direitos, permite-nos,
individualmente ou com quem julgamos melhor,
O “Estado mínimo” como o único Estado escolher nossa vida e atingir nossos fins e a ideia que
moralmente legítimo e tolerável temos de nós mesmos, no limite de nossas capacidades;
auxiliados pela cooperação voluntaria de outros
Não existe um só tipo de comunidade, e uma só indivíduos investidos da mesma dignidade. Como
ideia de sociedade perfeita é um ideal sem nenhum poderia um Estado ou um grupo de indivíduos ousar
fundamento. Por conseguinte, “a sociedade utópica é a fazer mais? Ou menos?"
sociedade dos experimentos utópicos, de muitas
comunidades diferentes e divergentes em que as 4. HANS JONAS
pessoas levam gêneros de vida diversos com diversas
intenções”.
Eis que então, insiste Nozick, “a utopia é um
palco para utopias, um lugar em que a pessoa é livre
para se associar voluntariamente a fim de perseguir e
tentar atuar sua própria visão de uma vida bela em uma
comunidade ideal, mas em que ninguém pode impor sua
própria visão utópica”. É sobre a base de tais premissas
que Nozick proclama sua verdade, ou seja, que “a
utopia é uma meta-utopia: o ambiente em que podem
ser tentados experimentos utópicos; o ambiente em que
a pessoa é livre para fazer suas próprias tentativas; o
ambiente que deve, em grande parte, ser atuado por
primeiro, caso se queiram atuar de modo estável outras
visões utópicas particulares”.
Dentro do palco para utopias, qualquer grupo 4.1 A Crítica do modelo ético tradicional perante as
de pessoas poderá propor seu modelo e tentar transformações tecnológicas
convencer os outros a participar na aventura baseada Hans Jonas (1903-1993) é considerado o último
sobre aquele modelo. representante do grupo dos filósofos judeus nascidos
“Visionários e extravagantes, maníacos e santos, na Alemanha. Viveu durante quase todo século XX,
monges e libertinos, capitalistas e comunistas e presenciando grandes mudanças e problemas que
democratas da participação, quem propõe as falanges ocorreram em tal período. Além de vivenciar a crise
(Fourier), os ministérios do trabalho (Flora Tristan), as européia nas décadas de 20 e 30, Jonas presenciou a
aldeias de unidade e cooperação (Owen), as Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o advento do
comunidades mutualistas (Proudhon), os negócios do Nazismo, e o triunfo da sociedade tecnológica.
tempo (Josiah Warren), os Bruderhof, os Kibbutzim, os Poder presenciar e analisar o estado real dos
‘Kundalini’ ioga ashram, e assim por diante, podem acontecimentos, fizeram com que Hans Jonas
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observasse e refletisse sobre a forma com que o moral. Grande parte do pensamento ético de Jonas
desenvolvimento tecnológico, oriundo da técnica, foi nasce de uma crítica de toda história da filosofia moral
decisivo para alargar em grande escala, destruições em da ação humana. Entretanto quando se aplica a Ética
grandezas nunca imagináveis. Para Jonas, o impacto que tradicional é considerada ética antropocêntrica
as bombas atômicas causaram durante a II Guerra (especialmente leia-se aqui a ética antiga e moderna)
Mundial, inaugurou uma reflexão nova e angustiada no ética liberal, por exemplo, ou mesmo a da religião e
mundo ocidental. filosofia tradicional, usamos instrumentos antigos e
Pelo fato de ser de origem judia, teve o período insuficientes para lidar com todos os efeitos negativos
inicial de sua formação baseada na leitura dos profetas e os novos desafios da civilização.
hebreus; estudou Filosofia e Teologia em Freiburg, Jonas quer chamar a atenção para a insuficiência
enraizado na Fenomenologia e no Existencialismo. No dos imperativos éticos tradicionais diante das “novas”
ano de 1921 Jonas frequentou as aulas de Heidegger e dimensões do agir coletivo. A ética tradicional já não
Husserl. Em 1933, com a chegada dos nazistas ao tem categorias consensualmente convincentes para
poder, Jonas migra para a Palestina. sustentar um debate sobre a ação humana com o meio
Entre 1940 e 1945, Jonas alista-se no Exército em que estamos vivendo. No entanto, é central
Britânico e decide lutar contra Hitler: “eu fiz um considerar a emergência de uma ética que garanta a
juramento sagrado, uma promessa: não regressarei existência humana e de todas as formas de vida
jamais, a não ser como soldado de um exército invasor”. existentes na biosfera. Jonas propõe o Princípio
Nesse período, Jonas estava longe das bibliotecas e Responsabilidade, como sendo um princípio ético para
universidades, porém inserido em um universo de a civilização tecnológica.
espanto e reflexão. O sobressalto do estado
apocalíptico das “coisas” fizeram com que ele refletisse 4.2 O Princípio Responsabilidade como um
sobre a origem do universo, sobre as formas de vida e, imperativo ético.
acima de tudo, sobre a natureza e o abuso da técnica.
No ano de 1945, Jonas pisa em solo alemão, O Princípio Responsabilidade, além de ser
conforme havia jurado, como um soldado vitorioso e considerado um princípio ético, proporciona uma
consciente de sua dignidade: “Não voltarei a pôr os pés perspectiva de diálogo crítico em plena era tecnológica.
neste país a não ser como membro de um exército Jonas entende que, “sob o signo da tecnologia, a ética
armado”. Desde a década de 30, Hans Jonas não tem a ver com ações de um alcance causal que carece
publicou nem um escrito na língua alemã por de precedentes (...). tudo isso coloca a responsabilidade
convicções particulares: “Não posso publicar em um no centro da ética”.
país que assassinou minha mãe”. Quase quarenta anos Hans Jonas formulou um novo e característico
depois, Jonas volta a fazer o uso da escrita alemã para imperativo categórico, relacionado a um novo tipo de
edições e publicações. ação humana: “Age de tal forma que os efeitos de tua
Para Hans Jonas todas as fundamentações e ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
investigações, que abordam as doutrinas éticas humana autêntica sobre a terra”. O imperativo
tradicionais demandam reflexões e análises, proposto por ele é de ordem racional para um agir
especialmente por serem concebidas como certas no coletivo como um bem público e não individual.
período da Modernidade. Na ética tradicional, a Para Jonas, não devemos ver a destruição física
natureza não era ostentada como objeto da da humanidade como sendo algo mais catastrófico. Se
responsabilidade humana; pois emergia somente os chegamos a esse ponto é porque houve uma morte
problemas emergentes do “aqui e o agora”. essencial, uma grande desconstrução e crise do ser com
No período Moderno, o imperativo categórico o meio. Esta sim seria a maior destruição. “Não se trata
kantiano foi mantido como sendo exemplar por muito só da sorte da sobrevivência do homem, mas do
tempo, tendo a pretensão de negar tudo que fosse extra- conceito que dele possuímos, não só de sua
humano. Kant formulou seu imperativo com o seguinte sobrevivência física, mas da integridade de sua
propósito: “Age apenas segundo uma máxima tal que essência”.
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei Jonas quer demonstrar que muitas das
universal”. Ou seja, age de tal maneira que o princípio premissas que limitam as questões humanas e
de tua ação se transforme numa lei universal. O existenciais dadas como certas na concepção
imperativo de Kant é um caso extremo da ética da antropocêntrica, não podem ser referências para o
intenção, obedecendo à ação individual, válido no plano modelo de vida contemporânea, pois os antigos
individual. Este imperativo dirige-se ao imediato e só preceitos éticos perderam a validade pela mudança do
requer a consistência do ato consigo mesmo. agir humano.
Hans Jonas não nega as premissas da ética Conforme Jonas escreveu no livro Técnica,
tradicional, mas busca uma ponderação sobre o Medicina e Ética: “Nem uma ética anterior tinha de levar
significado dessas mudanças para a nossa condição em consideração a condição global da vida humana, o
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futuro distante e até mesmo a existência da espécie. transformadora do homem e seu trato com o mundo,
Com a consciência de extrema vulnerabilidade da incluindo a ameaça de sua existência futura”.
natureza a intervenção tecnológica do homem, surge a Para Hans Jonas, o período Contemporâneo
ecologia. Repensar os princípios básicos da ética. está imerso de tecnologia, porém afastado de
Procurar não só o bem humano, mas também o bem de responsabilidade nos atos intencionais. Ele deixa claro
coisas - extra-humanas, ou seja, alargar o conhecimento na citação a seguir sobre as suas inquietações no sentido
dos ‘fins em si mesmos’ para além da esfera do homem, do ser humano ter a opção de fazer escolhas.
e fazer com que o bem humano incluísse o cuidado
delas”. “A natureza como uma responsabilidade
A ética que Hans Jonas aborda como ética da humana é seguramente um novum sobre o qual uma
responsabilidade é uma área do conhecimento que nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres
emerge questões relacionadas à bioética, que é uma ética ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse
que não deve se referir somente ao homem, mas deve utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda
estender o olhar para a biosfera em seu conjunto, ou que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não
melhor, para cada intervenção científica do Homem se serre o galho sobre o qual se está sentado? Mas este
sobre a vida em geral. A bioética, portanto, deve se que aqui se senta e que talvez caia no precipício quem
ocupar de uma “ética” e a “biologia”, os valores éticos é? E qual é no meu interesse no seu sentar ou cair?”.
e os fatos biológicos para a sobrevivência do
ecossistema como um todo. O dever com as gerações futuras é um dever da
Vivemos grandes mudanças e conflitos nesta humanidade, independentemente se os seres são ou não
primeira década do século XXI e Hans Jonas pode ser nossos descendentes. Nosso filósofo entende que,
considerado um dos alicerces do pensamento filosófico quanto mais se pressente o perigo do futuro, mais
contemporâneo. Sua contribuição teórica busca temos que agir no presente. Jonas apropria o Princípio
responder aos inúmeros desafios trazidos pela Responsabilidade com o entrelaçamento de algumas
civilização tecnológica. teorias, no qual denominaremos de categorias:
Jonas vivenciou a ameaça da existência de seres Heurística do Medo, Fim e o Valor, o Bem o Dever e o
vivos frente à destruição da biosfera, remetendo a Ser, a relação entre a Responsabilidade Paterna, Política
seguinte reflexão: “O enorme impacto do Princípio e Total, que contribuíram para criar a base da
Responsabilidade não se deve somente a sua configuração ética que Jonas propõe.
fundamentação filosófica, mas ao sentimento geral, que
até então os mais atentos observadores poderão 4.2.1 A Heurística do Medo
permitir cada vez menos de que algo poderia ir mal para
a humanidade, inclusive o tempo poderia estar em A Heurística do Medo é considerada viável para o
posição no marco de crescimento exagerado e crescente descompasso entre a previsão e o poder da ação. A
das interferências técnicas sobre a natureza, de pôr em categoria Heurística do Medo é a capacidade humana
jogo a própria existência. Entretanto, se havia de solucionar problemas imprevistos, servindo como
comentado que era evidente a vinda da chuva ácida, o critério seguro para a avaliação dos perigos
efeito estufa, a poluição dos rios e muitos outros efeitos apresentados pela técnica.
perigosos, fomos pegos de cheio na destruição de nossa Conter tal progresso deveria ser visto como
biosfera”. nada mais do que uma precaução inteligente,
Hans Jonas determinou o Princípio acompanhada de uma simples decência em relação aos
Responsabilidade como sendo uma ética em que o mundo nossos descendentes. O medo que faz parte da
animal, vegetal, mineral, biosfera e estratosfera passam responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não
a fazer parte da esfera da responsabilidade. A reflexão agir, mas aquele que nos convida a agir. Trata-se de um
sobre a incerteza da vida futura é resultante de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade.
equívoco cometido ao isolar o ser humano do restante Trata-se de assumir a responsabilidade pelo futuro do
da natureza (sendo o homem a própria Natureza). homem.
Somente uma ética fundamentada na magnitude do ser, Quanto mais próximo do futuro estiver aquilo
poderia ter um significado real e verdadeiro das coisas que deve ser temido, mais a Heurística do Medo se torna
em si. Para “Ser é necessário existir, e para existir é necessária. O medo se torna a primeira obrigação
necessário viver e ter deveres, porém, (...) somente uma preliminar de uma ética da responsabilidade. É do medo
ética fundada na amplitude do Ser pode ter significado”. fundado que deriva a atitude ética fundamental,
Desta forma, entendemos que somos seres com repensada a partir da vontade de evitar o pior.
capacidades de entendimento, tendo liberdade para agir Hans Jonas entende que o medo é primordial
com responsabilidade frente aos nossos atos. “O mais para uma ética da responsabilidade, pois é através dele
importante que devemos reconhecer, é a realidade que o ser humano poderá agir e refletir sobre o destino
da humanidade. “O sacrifício do futuro em prol do
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presente não é logicamente mais refutável do que o O fim é aquilo em vista do qual existe uma coisa e para
sacrifício do presente a favor do futuro. A diferença está cuja produção ou conservação se realiza um processo
apenas em que, em um caso, a série segue adiante e, no ou se empreende uma ação.
outro, não”. Nesse sentido, é possível compreender o
A Heurística do Medo não é um medo paralisante tamanho da preocupação no horizonte de uma
e nem um medo patológico, mas sim, um medo que sociedade que se encontra emersa pela técnica através
desperta para o pensar e para o agir. de seus grandes inventos tecnológicos, pois tudo é
A Heurística do Medo é uma faculdade de criado e desenvolvido para ter uma finalidade (A
conhecimento, é objeto de um dever moral, um finalidade de todo o instrumento, produto ou técnica
sentimento moral e uma hipótese ruim para a política pertence ao fabricante, ao homo faber).
(um constrangimento útil) lá onde a responsabilidade é Para Jonas tudo tem um próprio Fim. O ser
muito fraca. Faculdade de conhecimento é o que indica humano, os animais, os vegetais, todos,
heurística. Nós não podemos prever os efeitos a longo independentemente de sua função, tem como finalidade
prazo de nossa técnica; nem sabemos muito bem isto, a participação no ciclo natural da vida. Todos os Fins
que tem verdadeiramente necessidade de ser protegido da produção tecnológica devem ser levados a uma
e defendido na situação atual. Estas duas coisas nos discussão ética, tanto no sentido social como individual.
serão reveladas pela antecipação do perigo. O ser humano busca suas realizações através
O medo é uma forma de frear a velocidade do das somas das ações, como também constrói a
conhecimento científico ilimitado. A heurística do liberdade pela soma de atos livres. Os seres irracionais,
temor não é seguramente a última palavra na busca do os animais, sobrevivem com um sistema genético
bem, mas, um veículo extraordinariamente útil. Deveria diferenciado. Deste modo, as ações humanas estão
ser aproveitada para o empreendimento de preservação dirigidas por uma cadeia de atos e Fins, que dão
do planeta, podendo, dessa forma, acordar para a cumprimento a um dever. O agir dos animais é
possibilidade de uma catástrofe, assim que provocando desenvolvido por um esquema de estimulações
a necessidade do limite e da renúncia em relação ao uso instintivas. Isto nos leva à conclusão de que os
de certas tecnologias. O medo seria uma forma de frear estímulos e os fins estão preestabelecidos pela própria
a compulsão e a onipotência prometeana de considerar estrutura biológica, em forma de especialização
o conhecimento científico ilimitado. genética.
O problema ético somente será anunciado ou Para Jonas, a existência do Fim último é uma
revelado quando tivermos a previsão da destruição. O questão ontológica. Desta forma, é possível entender
medo assume um lugar de grande importância na teoria que na natureza encontram-se valores e Fins, mas quais
da Responsabilidade, pois adota uma posição como seriam os Fins da natureza? A resposta é a própria
forma de conhecimento, proteção e decisão. Enfim, a existência, a “vida”. O fim da natureza está na exigência
Heurística do Medo pode ser considerada a capacidade do cumprimento do seu fim último, ou seja, na
humana de resolver problemas inesperados mediante continuidade da existência. Este é um argumento
um agir em defesa do ser. fundamental da teoria ética, em que a vida passa a ser
objeto da responsabilidade.
4.2.2 O Fim e o Valor
4.2.3 O Bem, o Dever e o Ser
Consideramos essencial o desdobramento
sobre as categorias Fim e Valor, pois ambas possuem A ética de responsabilidade está fundamentada
sentido próprio. em hipóteses ontológicas. Entre elas, os conceitos de
Em relação ao Fim, Jonas exemplifica da Bem, Dever e o Ser. Para Jonas, a compreensão
seguinte forma: “O martelo tem o fim do poder-se- científica dos fatos, não pode ser a última palavra, pois
martelar-com-ele: foi criado com esse fim e para ele; o Ser, em todas as suas dimensões, resulta em um
esse fim faz parte do seu Ser, produzido para tal, de um Dever. Entendemos que o Bem se torna um Dever
modo totalmente diferente do fim momentâneo que quando existe vontade na transformação da ação.
tem a pedra há pouco recolhida e arremessada ou o Sendo assim, o Bem pode originar uma incumbência,
galho que se quebra para alcançar algo. O fim podemos pois “com isso, torna-se um dever, desde que seja uma
dizer, faz parte do conceito do martelo, e esse conceito vontade que assuma essa exigência e trate de realizá-la”.
precedeu sua existência, como acontece com todos os Hans Jonas demonstra uma preocupação a
artefatos; foi a causa do seu devir”. favor da vida, quando afirma que a única escolha é optar
A finalidade do martelo não encerra o juízo de pela biodiversidade que se encontra em toda a natureza.
Valor, sendo uma determinação real da necessidade Segundo ele, “mais do que uma extensão do espectro
projetada para o mesmo. Esta forma de pensar ocorre genérico, o interesse se manifesta na intensidade dos
com todos os artefatos, que apenas por si só, não terão fins próprios dos seres vivos, nos quais a finalidade da
finalidades. É preciso então atribuir um Valor de uso. natureza se torna cada vez mais sugestiva”.
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Jonas tem a intenção de mostrar que os seres Desta forma, percebemos que existe um Dever
vivos devem viver para cumprir com um objetivo, implícito de forma muito concreta no Ser, com
mesmo que seja com ele mesmo. Se o ser humano tem obrigações objetivas sob a responsabilidade externa,
várias finalidades, da mesma forma todos os outros como por exemplo, a Responsabilidade Paterna.
seres têm a sua, mesmo que nos seja desconhecida, Jonas definiu a Responsabilidade Paterna como
devemos respeitar o seu ciclo. sendo uma relação natural, incondicional, englobando a
Na vida orgânica, por exemplo, a natureza totalidade do objeto, não dependendo de aprovação
satisfaz todos os seus interesses através da prévia. A Responsabilidade Política, Jonas definiu como
biodiversidade. Para ele, “o homem bom não é aquele sendo fruto de uma escolha, ambicionando o poder
que se tornou um homem bom, mas aquele que faz o para exercer a responsabilidade suprema.
bem em virtude do bem. O bem é a causa no mundo, Ele escreve sobre a importância da
na verdade, a causa do mundo. A moralidade jamais se Responsabilidade Paterna e Política dizendo que: “a
pode considerar como um fim”. essa altura, pode ser do maior interesse teórico
Jonas entende o Bem como pertencente à examinar como essa responsabilidade nascida da livre
realidade do Ser, pois lhe é próprio e poderá escolha e aquela decorrente da menos livre das relações
transformar-se em Dever na medida em que exista uma naturais, ou seja, a responsabilidade do homem público
vontade capaz de transformá-lo em ação. A partir deste e a dos pais, que se situam nos extremos do espectro da
entendimento é fundamentada a ética da responsabilidade, são as que têm mais aspectos em
responsabilidade, como exigência pertencente à comum entre si e as que, em conjunto, mais nos podem
realidade do ser, direcionada à preservação da vida. ensinar a respeito da essência da responsabilidade”.
O Dever é uma exigência que está implícita no Para Jonas, quando a criança adquire
Ser, desenvolvido na reciprocidade. Se existem deveres, conhecimentos de linguagens, ela aprende normas,
existem também direitos. Para Jonas, o Dever com a códigos sociais que estão implícitos nas normas
existência futura depende exclusivamente de nossa estabelecidas no processo educativo. No entanto, a
responsabilidade. Se somos responsáveis pelo Ser, esfera política tem o dever de assumir a educação dos
somos responsáveis pelo futuro que ainda não existe, filhos e os pais, nesse caso, terão que confiar no Estado.
mas que está projetado pela continuidade do direito de A Responsabilidade Política é ampla, pois
ser e estar no mundo. trabalha com espaços maiores em direções históricas. Já
a Responsabilidade Paterna é centrada no
4.2.4 A relação entre a Responsabilidade Paterna, desenvolvimento individual do ser. A Responsabilidade
Política e Total Política e Paterna tem o poder de decisões em relação à
vida na continuidade no presente e futuro. No entanto,
Para Hans Jonas, o ser humano por si só já tem a responsabilidade não pode deixar de estar presente e
um valor fundamental pela totalidade do seu Ser, tendo nem pode ser interrompida.
uma vantagem em relação aos outros seres pelo fato de De acordo com ele, “as assistências paterna e
poder assumir responsabilidades, podendo assim, governamental não podem tirar férias, pois a vida do
garantir seus próprios Fins. É a partir deste momento seu objeto segue em frente, renovando as demandas
que surge o arquétipo de toda a responsabilidade do ininterruptamente. Mais importante e a continuidade
homem, baseada na natureza das coisas, na relação do dessa existência assistida como uma preocupação, que
sujeito e objeto, porém, essa relação ocorre somente ambas as responsabilidades aqui analisadas necessitam
com a existência do espaço e do tempo. considerar em cada oportunidade de atuação. As
Jonas contribui afirmando que: “a marca responsabilidades particulares não se limitam apenas a
distintiva do ser humano, de ser o único capaz de ter um aspecto, mas também a um período determinado de
responsabilidade, significa igualmente que ele deve tê-la uma existência”.
pelos seus semelhantes, eles próprios, potenciais Jonas utiliza exemplos para demonstrar as
sujeitos de responsabilidade, e que realmente ele sempre responsabilidades e particularidades de cada situação
a tem, de um jeito ou de outro: a faculdade para tal é a vivida. Por exemplo: O capitão de um barco não tem
condição suficiente para a sua efetividade. Ser interesse em saber de onde vieram seus passageiros e
responsável efetivamente por alguém ou por qualquer muito menos para onde vão depois de chegar ao destino
coisa em certas circunstâncias (mesmo que não assuma programado. A tarefa do capitão consiste unicamente
e nem reconheça tal responsabilidade) é tão inseparável em transportar os seus passageiros com vida, segurança
da existência do homem quanto o fato de que ele seja e responsabilidade. Outro exemplo é a forma com que
genericamente capaz de responsabilidade da mesma o médico conduz o tratamento de um paciente. A
maneira que lhe é inalienável a sua natureza falante, responsabilidade de um médico com o seu paciente
característica fundamental para a sua definição, caso termina quando o paciente finaliza o seu tratamento e
deseje empreender essa duvidosa tarefa”. obtém a cura, ou o prolongamento da vida. Para o
médico, “não lhe interessam os outros prazeres e
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sofrimentos que tem significado para aquela vida que recomeça, abrindo um caminho para o recomeçar e
ele salvou, sua responsabilidade termina com o fim do continuar a existência de vidas no mundo de amanhã.
tratamento”.
Para termos uma responsabilidade total e não 4.3. Finalizando
parcial das situações vividas, devemos ter como
critérios, as seguintes indagações: “O que vem agora? É possível analisar através dos desdobramentos
Para onde vamos? E em seguida, o que houve antes? feitos que, Jonas pretende validar e fundamentar o
Como se liga o que está ocorrendo agora com o arquétipo de uma ética fundamentada na amplitude do
desenrolar da existência? Em uma palavra, a ser. Mas para isso é necessário a articulação das
responsabilidade total tem de proceder de forma categorias Heurística do Medo, Fim e valor, Bem, o
“histórica”, aprender seu objeto na sua historicidade. Dever e o Ser e a relação entre a Responsabilidade
Esse é o sentido preciso do elemento que Paterna, Política e Total, para criar a base de uma
caracterizamos aqui como continuidade”. configuração ética que fundamenta o Principio
Nesse aspecto, percebemos o quanto a Responsabilidade.
Responsabilidade Política tem uma dimensão ampla na Conforme Jonas, a ética precisa ser
dimensão histórica. A preocupação fundamental neste fundamentada na globalidade do ser, mas também,
momento está voltada ao futuro, pois implica a fundamentada na singularidade do homem, buscando
continuidade de uma identidade a qual integra sempre evitar qualquer forma de relativismo de valores.
diretamente a responsabilidade coletiva. Entretanto, na O Princípio Responsabilidade implica ser também,
Responsabilidade Paterna existe uma preocupação um imperativo da existência, pois essa seria a primeira
voltada ao indivíduo, como, por exemplo, a criança condição ética e responsável com e para o mundo de
adquire uma identidade histórica a partir de sua amanhã. Entretanto, pensar nas possibilidades de
historicidade individual. termos através da educação uma construção coesiva de
É essa identidade histórica sobre o tempo que, conhecimento, que busque através da dialogicidade
para Jonas, pode ser desenvolvida e garantida pela princípios éticos e responsáveis, é uma possibilidade de
Educação, pois ocorre uma passagem da efetivarmos uma práxis coletiva. Poder respeitar, cuidar,
Responsabilidade Paterna para o mundo histórico. O lutar, renunciar e acima de tudo agir com
processo de responsabilidade total via educação deverá responsabilidade, é um ato essencialmente ético, que
ser de forma individual ao social, sem correr o risco de por sinal está em nossa esfera do poder. Hans Jonas foi
perder a identidade histórica. um educador, um pensador, que remeteu suas
Desta forma, Jonas entende que “todo preocupações com a humanidade, com a vida presente
educador sabe disso. Mas, além disso, e de forma e futura. Jonas tornou-se uma referência para a área da
inseparável encontra-se a comunicação da tradição Bioética, Educação e Filosofia, desafiando questões
coletiva, com o seu primeiro som articulado e a pertinentes sobre como educar para a vida, em uma
preparação para a vida em sociedade. Com isso, o sociedade tecnológica contemporânea.
horizonte da continuidade amplia-se no mundo
histórico; uma se sobrepõe à outra, e assim é impossível
à responsabilidade educativa deixar de ser ‘política’,
mesmo no mais privado dos âmbitos”.
A responsabilidade, seja ela por vias individuais
ou coletivas, deverá ocupar-se com a vida, com o hoje
e o mundo de amanhã. “Mas essa óbvia inclusão do
amanhã no hoje, que tem a ver com a temporalidade
como tal, adquire uma dimensão e uma qualidade
totalmente nova no contexto da responsabilidade
total”.
A responsabilidade total inclui a existência da
vida futura, ao contrário dos exemplos anteriores, em
que o médico e o capitão do barco não têm como
princípio preocupações com o que não envolve as suas
responsabilidades momentâneas (responsabilidade
parcial). A Responsabilidade Paterna tem como fim
pré-determinado educar para tornar o filho adulto e
responsável, tem inclusa uma das grandes tarefas da
vida, que é cuidar da vida. Nem uma criança pede para
nascer em determinadas situações privilegiadas. Porém,
é a partir do nascimento de uma vida que a humanidade
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