Você está na página 1de 11

0

FÉ E MODERNIDADE
Arquitetura e Arte em Igreja Paulistana

Flávia Rudge Ramos


Dra. Em Artes Visuais pela ECA USP
Mestre em Estética e História da Arte pelo
Programa e Pós-Graduação em Estética e História da Arte USP

Publicado em: AJZENBERG, Elza Maria (organizadora), América, Américas, Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte, MAC USP, São Paulo: 2015
Republicação bilíngüe em: 19 & 20, revista eletrônica, v. 3, nº 4
1

Fé e modernidade são palavras contraditórias. Apesar disso, no final da década de 30, um

arquiteto, um pintor e um escultor, romperam os padrões vigentes e venceram preconceitos para

atender aos anseios de uma ordem de missionários e da comunidade de imigrantes italianos, de

construir num bairro operário, uma igreja moderna, que representasse ao mesmo tempo, a memória

do país de origem e a esperança de prosperidade no progresso. Eram eles: o arquiteto Leopoldo

Pettini, o pintor Fulvio Pennacchi e o escultor Galileo Emendabili. A iniciativa da construção da

igreja partiu do Pd. Francesco Milini, superior provincial da Congregação Carlista, em 1937. 1 A obra

contou com o empenho dos expoentes da colônia italiana em São Paulo, para angariar os recursos

necessários.

O lugar escolhido foi o bairro do Glicério, na época um centro operário localizado entre

Cambuci, Mooca e Liberdade, cortado pela rua General Glicério. Pd. Milini, com o dinheiro

arrecadado, comprou um terreno de 10.000 m², que ocupava toda uma quadra, próxima a fábrica de

cigarros Sudan. O projeto não se restringia apenas à construção da igreja, e sim de um verdadeiro

centro de convivência comunitária onde seria possível receber os imigrantes recém-chegados e

preservar a cultura italiana.2

Predominava no Brasil, as igrejas de estilo neogótico, mas independente do estilo adotado,

os arquitetos eram instruídos de que a função básica da igreja era converter o visitante num devoto,

criando assim igrejas em que predominava uma atmosfera mística. A partir da conferencia realizada

em Malines, na Bélgica, em 1909, a finalidade primordial da construção de uma igreja passa a ser

puramente prática: dar abrigo à liturgia ou ao culto público.3

1
GALLO, Revista O Mensageiro da Paz, 1950, nº 135
2
Idem
3
A IGREJA através dos tempos, Informativo A Relíquia, setembro de 2005, nº 91, p. 24
2

Segundo Carlos Oswald, em artigo na revista Fede e Arte, publicada pelo Vaticano em

1954, o gosto moderno não era compreendido nem apreciado pela maior parte dos fiéis, tão pouco

pelo Clero Católico. Por essa razão, são raras as igrejas de arquitetura ou decoração artística

modernas. Entretanto a arte moderna, em suas várias formas e tendências, não era hostilizada pela

Igreja, que somente se opunha às deformações irreverentes e as imagens insólitas ou

incompreensíveis ao público.1

Quando a II Guerra já havia se iniciado e os imigrantes, fugindo do horror e da morte,

começaram a chegar aos milhares em São Paulo, a igreja se viu compelida a ampliar seu papel dando

a essa gente, além do conforto espiritual, o conforto físico. No complexo da igreja, foram então

projetados a casa paroquial, uma creche, e, na quadra vizinha da rua Almirante Muriti, um albergue.

Foram construídas também salas para cursos profissionalizantes e de catequese para os filhos de

imigrantes e operários que trabalhavam nas indústrias das redondezas. A Igreja Nossa Senhora da

Paz, representou dessa forma, “a súplica continua da alma religiosa do povo paulista pela paz

mundial, em perene oração diante da Rainha da Paz, pedindo a pacificação mundial”.2

No projeto, o arquiteto Leopoldo Pettini demonstra erudição ao estabelecer um diálogo

consistente com a tradição italiana e ao mesmo tempo, ser moderno por não imitá-la. Leonardo

Arroyo em seu livro “Igrejas de São Paulo”, publicado em 1954, afirmou que a Igreja N. Sra. da Paz

“é o mais original de todos os templos de São Paulo.”

Pettini seguiu alguns fundamentos da arquitetura moderna: ausência de ornamentos,

funcionalidade, racionalismo, e comprometimento com os aspectos estruturais e econômicos. Ao

mesmo tempo, interpreta com uma linguagem formal moderna, diversos elementos históricos da

1
Fede e Arte – Rivista Internazionale di Arte Sacra, Vaticano nº 6, p.: 180
2
IGREJA Nossa Senhora da Paz – A sagração do Altar Mor e a inauguração da Capela Mor do novo templo
construído pelos padres da Pia Sociedade dos Missionários de S. Carlos, A Gazeta, S. Paulo, 27/03/1943
3

arquitetura greco-romana e italiana. Apesar da arquitetura inovadora e arrojada da Igreja Nossa

Senhora da Paz, na época nenhum teórico da arquitetura manifestou por escrito suas impressões

sobre esse projeto e a razão disso é que a arquitetura modernista não aceitava concessões. Qualquer

referência ao passado poderia ser confundida como um retrocesso à arquitetura historicista, a qual

era duramente combatida pelos arquitetos modernistas.

Por outro lado, a modernidade do projeto causou grande resistência tanto por parte dos

clérigos como por parte da sociedade. Quando a construção estava em seus alicerces, chegou a

notícia de uma denuncia às autoridades eclesiásticas segundo a qual o Pde. Mario Rimondi estava

construindo um “monstrengo modernista” no Glicério. Felizmente, tudo não passou de intriga e a

Cúria Metropolitana manteve firme apoio a inicitiva dos padres carlistas.1

O projeto arquitetônico é simples, imponente, simétrico, conciso, racional, e equilibrado

entre a proporção e o estilo, a forma e a função. O espaço é agradável, acolhedor e continua atraindo

os fiéis. A idéia inicial de Fulvio Pennacchi foi acatada pelo arquiteto, sendo então, a arquitetura da

basílica paleocristã, do período Românico uma referência no projeto da Igreja Nossa Senhora da Paz.

Foi nesse período, iniciado em 313, quando o Imperador Constantino permitiu que o cristianismo

fosse livremente professado, que os cultos deixaram as catacumbas, ganhando luz no espaço das

primeiras basílicas. A intenção do projeto é promover o retorno aos valores originais da fé cristã,

expressos nas linhas simples e austeras da igreja paleocristã.

São varias as semelhanças entre a igreja de Sto. Apolinário, erguida em Ravena durante

este período e a Igreja projetada por Pettini. As duas igrejas têm três naves, sendo a nave central mais

alta. A basílica esta apoiada sobre arcos, sem transepto.2 Em ambas igrejas, as janelas superiores,

localizadas na altura entre o telhado das naves laterais e o da nave central, formam, juntamente com

1
LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais „moderna‟ construção sacra do continente depois da
Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949
1949, p: 27
2
Transepto – parte de um edifício de uma ou mais naves, que atravessa perpendicularmente o seu corpo principal.
4

as janelas inferiores, um eficiente sistema de iluminação e de ventilação, utilizado com freqüência

até os dias de hoje, que funciona da seguinte maneira: o ar fresco que entra no interior da igreja pelas

janelas inferiores, ao se aquecer, torna-se mais leve que o ar frio, se eleva e sai pelas janelas

superiores. O ar em circulação se renova permanentemente, mantendo a temperatura interna

agradável, mesmo nos dias quentes.

O projeto arquitetônico estabelece diálogos também com a arquitetura de outros períodos.

A Nossa Senhora da Paz, assim como os templos gregos, é construída sobre um patamar elevado

com vários degraus. A fachada simétrica de tijolos aparentes e totalmente despida de ornamentos;

possui cinco grandes arcos de volta inteira, que unem seis colunas, formando o pronaos,1 um espaço

de transição entre o espaço profano da rua e o espaço sagrado do interior do templo.

A igreja tem altura de 18 metros, 25 metros de largura e 49 de comprimento, ocupando uma

área de 1.225 m², com capacidade para 368 pessoas sentadas e 200 em pé.2 O esguio e simples

campanário tem 37,5 ms. de altura.3

A planta da Nossa Senhora da Paz é também muito semelhante a da Igreja Sto. Apolinário

in Classe. A planta é longitudinal, e simétrica, com o pastofório 4 formado no centro, pela abside 3

onde esta o altar, ladeado pela prótese e o diacônico 5. A planta busca atender ao programa do

templo que é baseado na dinâmica da liturgia católica e na movimentação dos fiéis.

O interior do templo, encimado por uma abóbada de berço, possui nas duas naves laterais,
oito capelas. A nave central é formada por um vasto espaço longetudinal na extremidade da qual

1
Pronaos: do grego pro, à frente, e naos templo.
Parte frontal de um templo da Antiguidade greco-romana.
2
Segundo o projeto arquitetônico e a planta atualizada fornecida pela paróquia.
3
Pastofório: a parte posterior de uma igreja paleo-cristã
4
Abside: Recinto abobadado com planta semi-circular, onde fica o altar-mor.
5
Prótese e o diacônico: locais reservados aos diáconos e aos paramentos
sacros.
5

está o altar-mor elevado, tendo por trás uma abside, que ladeado por dois púlpitos revestidos de
mármore, de formas aerodinâmicas, concebidos de acordo com as linhas puras e geométricas do Art-
Déco; e no alto, por dois coros elevados que se comunicam com a nave por estreitas janelas
arqueadas.

Sobre a arquitetura da igreja, o jornalista Daniel Linguanotto, escreveu em 1949, em


reportagem para a revista O Globo, o seguinte:

O fundamental na arquitetura é o arco, que se repete em centenas de vezes, em diversas


proporções interna e externamente, dando uma impressão de leveza celeste, de enormidade quando
ela é pequena e íntima. Fina e macia definiriam essa impressão. Os arcos projetando as paredes
para além do espaço figurado abastecem a ilusão de amplidão sem limites, suave, esgarçante como
se as nuvens confinassem o templo, ilusão essa ampliada pelos tons azuis dos afrescos.

As capelas laterais são compostas cada uma, com altar dedicado a um santo para atender as

exigências de devoção dos fiéis e a adoração de determinados santos. A decoração do interior da

igreja com seus afrescos e esculturas, foi planejada juntamente com a arquitetura, como demonstram

os estudos para decoração assim como a maquete interna. Segundo Menotti del Picchia “não há

solistas nessa execução sinfônica. O todo – a unidade concepcional – domina as partes.”1

Os santos representados na igreja são modelos de virtudes que a igreja pretende

disseminar. As pinturas e esculturas seguem um plano didático-moral, que começa no altar-mór

com o nascimento da Virgem e vai descrevendo em

círculo, o nascimento do menino Jesus, passando

para as capelas laterais onde se narram eventos da

vida dos santos, fechando com os murais do juízo

final. 2

1
Estão fazendo uma obra de Arte, in O Mensageiro da Paz, Orgão mensal da Pia Sociedade dos Missionários de S.
Carlos Borromeu, nº 135, dez. 1950
2
LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais „moderna‟ construção sacra do continente depois da
Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949, p: 71
6

Em cada capela lateral da igreja N. Sra. da Paz,


IgrejaoN.santo
Sra. daesculpido por 2005
Paz, São Paulo, Emendabili esta

estático ao centro, enquanto ao fundo, dois afrescos de Fulvio Pennacchi se movimentam para

narrar episódios de sua história. Os artistas nos chamam a testemunhar os eventos como se eles

estivessem sendo representados num palco. Nessas capelas as representações das figuras são em

escala natural, mas para obter um efeito de profundidade no conjunto as esculturas de santos

possuem altura um pouco maior que as figuras da pintura. O altar-mor apresenta uma escala maior:

A escultura de N. Sra. com o menino Jesus tem 3.5 metros de altura e as figuras dos afrescos, três

metros. Ao centro da abside, separando os dois afrescos, está a pintura monumental do Cristo

Crucificado com cerca de sete metros de altura.¹

Fulvio Pennacchi e Galileo Emendabili apresentam nos afrescos e nas esculturas dessa

igreja uma unidade de linguagem estética. Como imigrantes italianos não abandonam nem renegam

as tradições de seu país de origem; pelo contrário, as introduzem, combinando as na circulação de

idéias da arte brasileira. Nesse sentido trabalham a partir da absorção de duas tendências

antagônicas: o Novecento, movimento surgido na Itália, ligado ao fascismo, que defendia um

“retorno à ordem” e uma revalorização dos ideais clássicos na arte; e movimentos que surgiram na

Europa entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, sobretudo a Escola de

Paris, que defendiam uma ruptura com os postulados tradicionais da arte defendidos pela

academia.1 Observa-se também nos afrescos, uma clara influência da pintura narrativa de Giotto,

pintor italiano, que no séc. XIV, cobriu as paredes de uma pequena igreja em Pádua (Itália

setentrional) com afrescos que narram histórias inspiradas na vida de Cristo e da Virgem Maria.

1
CHIARELLI, Tadeu, in catálogo da exposição de Galileu Emendabili no Conjunto Cultural da Caixa, São Paulo, 2005
7

Questionado sobre quais seriam suas referências na representação dos santos, Pennacchi

deu o seguinte depoimento à revista O Globo: “Sabe, para pintar afresco, a gente precisa ter

alguma coisa dentro da gente, não pode haver modelo. Eles estavam dentro da minha cabeça. Fui

tirando e pintando depressa, antes que secasse a argamassa, é isso.”

A igreja, em sua concepção arquitetônica e artística, busca uma conciliação entre o

passado e o futuro, o céu e a terra. Como é possível observar, Pettini, Pennacchi e Emendabili,

utilizam um vasto repertório do passado para conceber uma igreja nova e moderna.

A Igreja Nossa Senhora da Paz, cuja sagração ocorreu em 1954, foi a única de São Paulo

escolhida pela comissão nacional para participar da Exposição Internacional de Arte Sacra do Ano

Santo, realizada em 1950 em Roma.1 Quatro anos depois, o trabalho realizado por Pettini,

Pennacchi e Emendabili, foi destaque no artigo Arte

Sacra Contemporanea in Brasile da revista publicada

pelo Vaticano Fede e Arte. As igrejas N. Sra. da Paz e

Sta. Teresa, projeto do arquiteto Archimedes Memória

no Rio de Janeiro, são os únicos exemplos de

arquitetura moderna apresentados. Segundo o autor do

artigo, Carlos Oswald, os dois templos representam o

louvável esforço de harmonizar os elementos formais e

construtivos modernos com as exigências litúrgicas e

canônicas. O artigo mostra também fotografias de dois

afrescos de Pennacchi e do cálice de prata desenhado

por Emendabili.

1
LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais „moderna‟ construção sacra do continente depois da
Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949, p: 26
8

PENNACCHI
Estudo para decoração da Igreja Regina Pacis, dec. de 30
grafite sobre papel

EMENDABILI
Cálice
Prata, dec. de 40

O nó é formado por quatro estatuetas de santos devotos da


Eucaristia: S. Tomaz de Aquino, S. Pascoal Báilon, Sta.
Clara e S. Carlos Borromeu. Sobre o pé foi desenvolvido
em relevo tema relativo às matérias da Eucaristia: A uva e o
trigo.
9

BIBLIOGRAFIA

Livros:

ARAUJO, Olívio Tavares de, Pintura Mural das Cidades Brasileiras, Rio de Janeiro: Banco
Nacional, 1985

ARGAN, Giulio Carlo, Guia de História da Arte, Lisboa: Ed. Estampa, 1977

ARROYO, Leonardo, Igrejas de São Paulo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1954

BARDI, Pietro Maria, Fulvio Pennacchi, São Paulo: Raízes, 1980

GIOVANETTI, Bruno, Arquitetura Italiana em São Paulo, Consulado Geral da Itália: São
Paulo, 1994
LEITE, José Roberto Teixeira, Dicionário Crítico da Pintura no Brasil, Rio de Janeiro:
Artlivre, 1988

LOURENÇO, Maria Cecília França Lourenço, Maioridade do Moderno em São Paulo,


São Paulo: Edusp,1990
____________. Operários da Modernidade, São Paulo, Edusp, 1995

ZANINI, Walter, A Arte no Brasil nas décadas de 1930-40: O grupo Sta. Helena, São Paulo:
Nobel/Edusp, 1991

Artigos e Ensaios em Jornais e Periódicos:

ANDRADE, Mário de, Esta Família Paulista, O Estado de S. Paulo, 2 jul. 1939

CESAR, Osório, Os Frescos Monumentais da Igreja N. Sra. da Paz, Diário de São Paulo, 10
dez.1942

GALLO, Antonio, Acariciando uma Idéia, Primeiros Contactos, Nos Dias da Maquete, Reunindo a
Grei, Abrindo a Terra, Elevando-se ao Céu; Mensageiro de Nossa Senhora da Paz, Orgão mensal da
Pia Sociedade dos Missionários de S. Carlos Borromeu, nº 135, dez. 1950
10

LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais „moderna‟ construção sacra do


continente depois da Igreja da Pampulha, Revista do Globo, 15 out.1949

MIRANDA, Carla, No Glicério, uma igreja de obras-primas, O Estado de S. Paulo, 04 dez.


2004

OSWALD, Carlos, Arte Sacra Contemporânea in Brasile, Fede e Arte / Rivista Internazionale
di Arte Sacra, Vaticano, junho de 1954.

Dissertações e teses:

RAMOS, Flávia Rudge, Pennacchi e seu Templo (dissertação de mestrado), São Paulo:
Programa Interunidades de Pós-Graduação em Estética e História da Arte, USP, 2007

CHIOVATTO, Milene, Desejos imigrados: análise de igrejas católicas na Mooca e Glicério como
objetos culturais e indentitários, São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, USP, 2000

REIS, Andréia Cristina Costa, Catalogação de painéis e murais da cidade de São Paulo – Espaços
públicos e semi-públicos (tese de doutorado) São Paulo: FAU USP, 1989

Você também pode gostar