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30 Ensinando a transgredit ainda nao criamos ¢ implementamos estratégias perfeitas. Para criar uma academia culturalmente diversa, temos de nos comprometer inteiramente. Aprendendo com outros / movimentos de mudanga social, com os esforgos pelos di- reitos civis e pela liberacao feminina, temos de aceitar que nossa luta serd longa e estar dispostos a permanecer pa- cientes ¢ vigilantes. Para nos comprometer com a tarefa de ‘transformar a academia num lugar onde a diversidade cul- tural informe cada aspecto do nosso conhecimento, temos de abracar a luta ¢ 0 sactificio. Nao podemos nos desenco- rajar facilmente. Néo podemos nos desesperar diante dos conflitos. Temos de afirmar nossa solidariedade por meio da crenca num espitito de abertura intelectual que celebre a diversidade, acolha a divergéncia e se regozije com a de~ dicagio coletiva & verdade. Buscando forcas na vida e na obra de Martin Luther King, sempre me lembro do profundo conflito interior que ele softeu quando sentiu que suas crencas religiosas 0 obriga- vam a se opor 2 Guerra do Vietn. Com medo de perder 0 apoio dos burgueses conservadores e de afastar-se das Igrejas dos negros, King meditou numa passagem da Epistola aos Romanos, capitulo 12, versiculo 2, que o lembrou da neces- sidade da dissensio, do desafio da mudanga: “Nao vos con- formeis com este mundo, mas transformai-vos pela renova- ao da vossa mente,” Todos nés, na academia e na cultura como um todo, somos chamados a renovar nossa mente para transformar as instituigGes educacionais—e a sociedade = de tal modo que nossa maneira de viver, ensinar ¢ traba- Ihar possa refletir nossa alegria diante da diversidade cultu- ral, nossa paixo pela justica e nosso amor pela liberdade. Abragar a mudanga O ensino num mundo multicultural Apesar de 0 multiculturalismo estar atualmente em foco ‘em nossa sociedade, especialmente na educagio, nao hé, riem de longe, discuss6es préticas suficientes acerca de como o contexto da sala de aula pode ser transformado de modo a faver do aprendizado uma experiéncia de inclusio. Para que 0 esforgo de respeitar ¢ honrar a realidade social ¢ a expe- riéncia de grupos nao brancos possa se refletir num processo pedagégico, nés, como professores — em todos os niveis, do cnsino fundamental & universidade —, temos de reconhecer {que nosso estilo de ensino tem de mudar, Vamos encatar a realidade: a maioria de nés frequentamos escolas onde o es- tilo de ensino refletia a nogio de uma tinica norma de pen- samento ¢ experiéncia, a qual éramos encorajados a crer que fosse universal. Isso vale tanto para os professores nao bran- ‘cos quanto para os brancos. A maioria de nés aprendemos a ensinar imitando esse modelo, Como consequéncia, muitos professores se perturbam com as implicagdes politicas de uma educaggo multicultural, pois tém medo de perder o controle da turma caso nao haja um modo tinico de abordar um tema, mas sim modos miiltiplos ¢ referéncias miiltiplas. Os educadores tém de reconhecer que qualquer esforgo para transformar as instituig6es de maneira a refletir um sl 2 Ensinando a transgredir ponto de vista multicultural deve levar em consideragio 0 medo dos professores quando se Ihes pede que mudem de paradigma. E, preciso instituir locais de formacio onde os professores tenham a oportunidade de expressar seus te- mores €.0 mesmo tempo aprender a criar estratégias para abordar a sala de aula e 0 curriculo muleiculturais. Quan- do entrei no Oberlin College, fiquei transtornada pelo que me parecia uma falta de compreensio de muitos professo- res sobre como poderia ser a sala de aula multicultural. Chandra Mohanty, minha colega de Estudos da Mulhes, tinha a mesma preocupago. Embora nem eu nem ela fOs- semos professoras titulares, nossa forte crenga de que o campus de Oberlin nao estava encarando de frente a ques- tao de mudar © curriculo ¢ as priticas de ensino de um jeito progressista que promovesse a incluséo nos levou a pensar em como intervir nesse processo. Partimos do prin- cfpio de que a imensa maioria dos professores de Oberlin, quase todos brancos, eram essencialmente bem-intenciona- dos e se preocupavam com a qualidade da educacéo que os alunos recebiam no campus. Portanto, tenderiam a apoiar qualquer esforgo no sentido da educagio para a consciéncia critica. Juntas, decidimos realizar uma série de semindrios com foco na pedagogia transformadora e abertos a todos os professores. De inicio também acolhiamos alunos, mas percebemos que a presenga deles tolhia a discussio sincera. Na primeira noite, por excmplo, virios professores brancos fizeram comentérios que poderiam ser interpretados como tertivelmente racistas, ¢ os alunos safram da sala e espalha- ram por toda a faculdade o que tinha sido dito, Visto que nossa intengao era educar para a consciéncia critica, nao ‘Abrasar a mudanga 3 querfamos que ninguém se sentisse atacado ou tivesse sua reputagao de professor manchada no espaco do semindrio. Querfamos, porém, que este fosse um espaco de confronta- «io construtiva e questionamento critico. Para garantir que isso acontecesse, tivemos de excluir os alunos. No primeiro encontro, Chandra (pedagoga por forma- .¢4o) e eu falamos sobre os fatores que haviam influenciado nossas praticas pedagégicas. Sublinhei o impacto da obra de Freire sobre 0 meu pensamento. Uma vez que minha formagio bésica tinha se realizado em escolas segregadas por raga, falei sobre a experiéncia de aprender quando as nnossas préprias experiéncias sio consideradas centrais € significativas, ¢ sobre como isso mudou com a dessegrega- 0, quando as criangas negras foram obrigadas a frequen- tar escolas onde eram vistas como objetos ¢ nao sujeitos, Muitos professores presentes no primeiro encontro se sen- tiram perturbados pelo fato de discutirmos temas politicos abertamente. Tivemos de lembrar a todos, varias vezes, que nenhuma educagdo € politicamente neutra. Mostran- do que o professor branco do departamento de literatura inglesa que sé fala das obras escritas por “grandes homens brancos” esté tomando uma decis4o politica, tivemos de enfrentar e vencer a vontade avassaladora de muitos pre- sentes de negar a politica do racismo, do sexismo, do hete- rosexismo etc. que determina 0 que ensinamos e como censinamos. Constatamos varias vezes que quase todos, es- pecialmente a velha guarda, se perturbavam mais com 0 reconhecimento franco de o quanto nossas preferéncias politicas moldam nossa pedagogia do que com sua aceita- ‘gio passiva de modos de ensinar e aprender que refletem 54 Ensinando a transgredir parcialidades, particularmente o ponto de vista da supre- macia branca. Para partilhar nosso esforgo de interveng0, convidamos professores universitérios de todo o pais a vir dar palestras —formais e informais — sobre o trabalho que desenvolviam no sentido de transformar 0 ensino e 0 aprendizado para possibilitar uma educago multicultural. Convidamos Cor- nel West, entio professor de religiao e filosofia em Princeton, para dar uma palestra sobre “descentralizar a civilizacio ocidental”. Esperdvamos que sua formagio muito conven- cional e sua prética progressista como pesquisador dessem a todos uma sensagio de otimismo quanto & nossa capaci- dade de mudar. Na sesso informal, alguns professores brancos, homens, tiveram a coragem de dizer claramente que accitavam a necessidade de mudas, mas nao tinham certeza de quais seriam as consequéncias da mudanga. Isso nos lembrou que as pessoas tém dificuldade de mudar de paradigma e precisam de um contexto onde deem voz a seus medos, onde falem sobre 0 que estio fazendo, como estéo fazendo e por qué. Uma das reunides mais titeis foi aqucla em que pedimos a professores de varias disciplinas (inclusive de matemética e ciéncias) que falassem informal- mente sobre como scu ensino havia sido modificado pelo desejo de promover a incluso. A abordagem de ouvir as pessoas descrevendo estratégias concretas ajudava a dissipar medo. Era crucial que os professores mais tradicionais ou conservadores que tinham tido a disposigao de fazer mu- dangas falassem sobre motivacbes e estratégias. Quando as reunises acabaram, Chandra e eu sentimos, de inicio, uma tremenda decepeao. Nao haviamos percebi- Abragar a mudanga 5s do 0 quanto 0 corpo docente precisava desaprender 0 ra- cismo para aprender sobre a colonizacao ¢ a descoloniza- cao e compreender plenamente a necessidade de criar uma experiéncia democratica de aprendizado das artes liberais. Com demasiada frequéncia, & vontade de incuir os considerados “marginais” no correspondia a disposicao de atribuir a seus trabalhos © mesmo respeito e consideracao dados aos trabalhos de outras pessoas. Nos Estudos da Mulher, por exemplo, as professoras tratam das mulheres decor somente no finalzinho do semestre ou juntam numa tinica parte do curso tudo 0 que se refere & raga ¢ as dife- rengas. Essa modificagio pré-forma do curriculo nao & uma transformago multicultural, mas sabemos que é a mudanga que os professores mais tendem a fazer. Vou dar outro exemplo, Quando uma professora de inglés, branca, inclui uma obra de Toni Morrison no roteiro do curso, mas fala sobre ela sem fazer nenhuma referéncia & raga ou A etnia, 0 que isso significa? J4 ouvi varias mulheres bran- cas “se gabarem” de ter mostrado aos alunos que os escri- totes ¢ escritoras negros sio tao “bons” quanto os do cino- ne dos homens brancos, mas elas no chamam a atengao para a questo da raga. E claro que essa pedagogia nao ques- tiona as parcialidades estabelecidas pelos cAnones conven- cionais (ou, quem sabe, por todos os cinones). £, ao con- tririo, mais um tipo de modificagao pré-forma, ‘A falta de disposigao de abordar o ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciéncia da raga, do sexo ¢ da classe social tem suas rafzes, muitas vezes, no medo de que a sala de aula se torne incontrolavel, que as emogGes € paixées nao sejam mais represadas. Em certa medida, todos

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